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www.lusosofia.net Poderemos conhecer verdadeiramente a natureza das coisas? Uma defesa do realismo epistemológico contra o anti-realismo relativista pós-moderno João Carlos Silva 2016

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das coisas?Uma defesa do realismo epistemológico

contra o anti-realismo relativista pós-moderno

João Carlos Silva

2016

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Covilhã, 2016

FICHA TÉCNICA

Título: Poderemos conhecer verdadeiramente a natureza das coisas?Autor: João Carlos SilvaColecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2016

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das coisas?Uma defesa do realismo epistemológico

contra o anti-realismo relativista pós-moderno

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Quando se afirma que a natureza das coisas é fundamental-mente incognoscível por causa da camada linguística-conceptualde mediação (ou histórico-cultural, ou biopsicológica, ou transcen-dental, etc.) existente entre nós e as coisas, a qual supostamente sónos permitiria lidar com o conceito que temos das coisas e nuncacom as coisas em si, isto é, com as suas essências ou naturezas –contrariamente àquilo que defende o realismo epistemológico, quesubscreve essa possibilidade –, a primeira coisa que é preciso dizeré que talvez seja verdade... ou talvez não. Apesar de essa ideia seter tornado – desde Kant, e de modo paradoxal em relação ao su-posto criticismo do seu autor – quase um dogma do senso comum,em particular do senso comum filosófico, como é costume aconte-cer com praticamente todas as ideias e teorias filosóficas originaisalguma vez propostas que tenham recebido o aval do tempo, a suaaparente evidência reflecte, provavelmente, apenas o relativo graude consenso intersubjectivo que a mesma alcançou, a ponto de seconsiderar hoje verdade óbvia e indiscutível, um dogma, portanto,ainda que de natureza não-religiosa, mas antes epistémica ou gno-

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seológica. Mas quando nos libertamos do poder sugestivo e hipnó-tico dessa ilusão colectiva, começamos a perceber que talvez a suaaparente evidência afinal não seja de todo e afinal possam existirboas razões para se duvidar da sua validade teórica e do seu valorde verdade.

Vejamos então que objecções podem ser colocadas a essa ideiaou hipótese:

1) Se alargarmos o conceito de "coisa"e de "natureza das coi-sas"também a ideias, conceitos, valores, significados, princípiosou símbolos, isto é, a entidades não-físicas, ficamos assim com oproblema em duplicado, uma vez que também estes exigiriam, porsua vez, uma outra mediação suplementar para serem conhecidosou compreendidos, e assim sucessivamente... Ora bem, nesse casoseria então de se perguntar como é que se sabe que essa crença éverdadeira, já que ela supõe da parte dos seus defensores um acessoprivilegiado à verdade... de que nenhuma verdade das coisas é co-nhecível em si mesma, o que é obviamente auto-contraditório, dadonão ser possível, de acordo com a mesma crença, aceder directa-mente à natureza das coisas ou ao seu verdadeiro significado;

2) Por outro lado, se estamos tragicamente condenados a nãopodermos sair cognitivamente de nós próprios e da nossa subjecti-vidade, seja ela individual, colectiva ou transcendental, então todoo projecto científico-filosófico de tentar saber a verdade sobre as"coisas"se encontra comprometido pela base, não passando por-tanto de uma ilusão a ideia de que a ciência é capaz de atingir umconhecimento objectivo e universalmente válido acerca da reali-dade e não apenas sobre os nossos conceitos dela, o que criaria oproblema de explicar não só a fé que nela depositamos, mas princi-palmente os seus resultados efectivos, tanto no domínio do conhe-cimento puro como aplicado;

3) Por último, convém recordar que as mesmas mediações detoda a ordem que invariavelmente se interpõem entre as coisas enós, ou entre nós e as coisas, são exactamente as mesmas que nos

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permitem vê-las, senti-las, pensá-las e conhecê-las, funcionandoassim tanto como obstáculos ou factores condicionantes, no sentidolimitativo, como condições de possibilidade do nosso acesso cogni-tivo às coisas, sejam elas de que natureza forem. Além disso, con-vém não esquecer que todo o nosso aparelho cognitivo foi evolu-tivamente construído e seleccionado para nos adaptarmos ao meioe podermos sobreviver, o que seria de todo impossível se estivés-semos condenados a permanecer fechados sobre nós próprios e asnossas construções culturais ou conceptuais, sem qualquer ideiaminimamente adequada do que é a realidade em si mesma.

Claro que se pode objectar que nem todo o discurso, só porqueparece ser do senso comum, é necessariamente do senso comum.Como se deve calcular, não custa nada concordar que sim, uma vezque não são somente as coisas e as suas aparências que iludem, ounos iludem, mas também as palavras e os seus significados, sobre-tudo aquelas que usamos mais e às quais estamos mais habituados,por paradoxal que isso seja ou pareça. De qualquer modo, que atese kantiana da separação absoluta entre a natureza ou essênciadas coisas (o famoso númeno ou coisa-em-si) e as suas aparênciasou fenómenos (ou coisas-para-nós, ou representações), com a ine-vitável crença na absoluta incognoscibilidade da primeira, se tor-nou praticamente um dogma do senso comum, seja ele mais popu-lar ou intelectualmente mais sofisticado, parece dificilmente con-testável, atendendo à proliferação das suas manifestações tanto nafilosofia como na ciência ou na cultura popular. Ora, a despeito dasua aparente evidência e carácter mais ou menos consensual – tam-bém eles historicamente e culturalmente datados e condicionados,e logo potencialmente ilusórios, de acordo com esses mesmos pres-supostos –, ou talvez precisamente por causa disso, a tese que aquise defende tem a pretensão, porventura arrogante, mas seguramentenão ingénua, de pôr em causa tal pseudo-evidência consensual eousar colocar-se novamente do ponto de vista adoptado desde sem-pre – ou, pelo menos, desde os clássicos gregos – pelos filósofos,

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isto é, do ponto de vista de quem quer conhecer a realidade talcomo ela é em si mesma, e não apenas de como ela nos parece ouaparece nas nossas representações dela, pressupondo-a dogmatica-mente (ou criticamente, na própria linguagem kantiana) inacessívelou transcendente às nossas capacidades cognitivas, como se tornoumoda desde Hume e Kant até aos pós-modernos. Portanto, não du-vidando minimamente da origem intelectualmente mais sofisticadade algumas críticas ao realismo epistemológico, é necessário dizerque essa mesma sofisticação de origem não parece relevante paraquem quer discutir ideias não tanto pela sua origem ou prestígioacadémico, muito menos pelos nomes sonantes que lhes possamestar associados, mas mais pelo seu valor de verdade, assim comopelos argumentos melhores ou piores que podemos ter para as con-siderar racionais ou defensáveis, como é seguramente aqui o caso.Será preciso lembrar que os argumentos de autoridade, para alémde serem argumentos informais sempre falíveis, em filosofia o seuvalor tende para zero, dado ser virtualmente impossível conseguirobter o consenso de todos os especialistas em relação a pratica-mente qualquer problema, tese, argumento ou teoria filosófica? Eque mesmo que este fosse obtido isso não asseguraria de todo averdade ou validade da matéria em causa? Por outro lado, mesmosendo verdade que a filiação filosófica que coloca em causa aquelapossibilidade possa não ser assumidamente humeana ou a kantiana,certamente que ela pura e simplesmente não existiria sem o em-pirismo céptico de Hume ou o idealismo transcendental de Kant,que é, pelo menos na idade moderna, a fonte original dessa cisão“crítica” entre sujeito cognitivo e realidade – embora tal influên-cia possa ser histórica ou arqueologicamente rastreada pelo menosaté Descartes, com a sua distinção metafísica entre coisa pensantee coisa extensa, ou mesmo até Platão, com a sua teoria dos doismundos, já para não falar dos sofistas ou dos cépticos gregos, pelolado do relativismo e do cepticismo epistémicos –, sendo por issoKant a influência dominante, ainda que muitas vezes inconsciente

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e não reconhecida – e, logo, acriticamente aceite - dessa crençainstituída, não só no senso comum, como também, ou sobretudo,entre cientistas e filósofos. Aliás, quando se presta atenção às pa-lavras normalmente usadas para colocar criticamente em causa apossibilidade do realismo – que é, no fundo, a possibilidade dopróprio conhecimento –, elas surgem, regra geral, como explici-tamente kantianas, revelando assim, eventualmente à revelia dosseus autores, a matriz básica que os informa, dada a não inocên-cia dos termos que usamos para significar o que queremos dizer,como certamente saberão muito bem todos os adeptos assumidosdo pós-estruturalismo e do desconstrucionismo filosóficos.

Examinemos agora criticamente algumas contra-objecçõespossíveis e actuais à tese do realismo epistemológico, a fim de veri-ficar se aquelas têm melhores argumentos a suportá-las do que esteúltimo:

1) Contrariamente ao que os críticos costumam afirmar, nãose trata de colocar no mesmo plano ontológico, ou no mesmo sacoepistemológico, ideias e coisas, conceitos abstractos e objectosconcretos, ou entidades físicas e não-físicas, pois é evidente que,tanto pela sua natureza e origem objectiva como pela forma comosubjectivamente as conhecemos, se trata de realidades distintasque, como tal, devem ser distinguidas, e não tratadas como se fos-sem idênticas e colocassem o mesmo tipo de problemas. No en-tanto, apesar disso, há pelo menos um sentido relevante em que po-demos aproximá-las e reconhecer-lhes semelhança ou identidadecomum: é que existem. Seja de que forma for, seja onde for e comofor, seja qual for o seu estatuto ontológico ou metafísico, seja qualfor a sua essência ou modalidade de existência, seja ela abstracta ouconcreta, física ou mental, simbólica ou material, social ou indivi-dual, ideias e coisas – tanto quanto desejos, crenças, pensamentos,ideais, valores, significados, princípios, números ou figuras geomé-tricas – existem objectivamente, fazendo, por isso, parte do real epodendo assim tornar-se objecto de conhecimento nosso, quer esse

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“objecto” esteja dentro de nós e dependa de nós para existir quernão. Por outro lado, quando se argumenta que é devido a essa dife-rença, supostamente essencial e irredutível, tanto epistémica comoontologicamente, entre entidades físicas e não-físicas, que justificao facto de a ciência se ocupar de determinado tipo de fenómenos ese afastar de outros, por estarem fora do seu âmbito, fica-se com aimpressão, porventura errónea, de que se está a limitar o espaço ob-jectivo da investigação científica apenas ao domínio das entidadesou fenómenos físicos, o que, se for esse o caso, não corresponde àrealidade, uma vez que se reduz a Ciência às ciências físicas, ex-cluindo ou omitindo as ciências humanas, tais como a psicologia,a sociologia, a história, a economia ou a antropologia, bem comoas ciências formais, onde se incluem a lógica e a matemática, porexemplo. Ora, se é verdade que as primeiras tratam igualmentede fenómenos físicos, ou que se manifestam no plano físico, nãoé menos verdade que procuram explicá-los, muitas vezes, em fun-ção de causas, leis, factores ou condições não-físicas, enquanto assegundas nem sequer tratam directamente de quaisquer fenómenosfísicos, pelo menos nas suas formas puras e não aplicadas. Pa-rece, assim, poder ler-se nas entrelinhas desse argumento, como sede premissas ocultas ou implícitas se tratassem, o pressuposto deque a Ciência só se ocuparia de fenómenos de natureza física, re-legando para fora do seu âmbito próprio tudo o que não for dessanatureza, como sejam os fenómenos mentais, simbólicos ou soci-ais, assim como as relações e propriedades de entidades abstractas,como os números, as formas geométricas os conceitos, proposi-ções e argumentos da lógica, que não são exactamente entidadesfísicas e, no entanto, são tratados pela ciência. Salvo melhor opi-nião, aquilo que escapa ao âmbito da ciência, seja provisória oudefinitivamente, essencial ou contingentemente, são precisamenteaqueles problemas (e não fenómenos) de que a filosofia precisa-mente se ocupa, como é o caso dos problemas metafísicos, episte-mológicos, éticos, estéticos ou políticos, por estes não serem, em

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princípio, susceptíveis de serem resolvidos mediante o uso exclu-sivo dos instrumentos próprios das ciências lógico-matemáticas edas ciências empíricas, quer elas sejam naturais ou humanas. Serápreciso lembrar que nós não lidamos com, nem produzimos apenasdirectamente ideias, palavras ou significados, pois não só também ofazemos indirectamente e de forma mediada, tanto em nós próprioscomo em relação aos outros, como igualmente lidamos e produzi-mos directa e indirectamente coisas, fenómenos e objectos físicosou materiais, como o atesta a dimensão material (e não apenas sim-bólica ou ideal) da cultura. Além do mais, embora seja escusadolembrá-lo, a nossa natureza não é puramente mental, conceptual oulinguística, mas também física e biológica, sendo os nossos corposfísicos feitos exactamente da mesma matéria e estando sujeitos àsmesmas leis e condições de toda a matéria física e de todos os orga-nismos biológicos, o que significa que, por muito que isso nos custee queiramos esquecê-lo, que fazemos igualmente parte do mundofísico e não apenas do mundo histórico-cultural que nós próprioscriámos física e simbolicamente. Sendo verdade que não produzi-mos quarks ou átomos (e nem esta última é inteiramente verdade,pois já conseguimos produzi-los e aniquilá-los em aceleradores ebombas nucleares, enquanto tanto natural como artificialmente sin-tetizamos moléculas – o nosso próprio corpo é, bioquimicamente,uma máquina molecular), na realidade somos feitos deles, tal comoacontece com todo o universo físico, e o nosso corpo e pensamento,inclusive este que aqui e agora é expresso, só existe e só é possívelpor causa disso mesmo. Assim, ao contrário do que é habitual-mente afirmado ou assumido pelos anti-realistas, nós usamos defacto esses materiais como elementos mínimos da nossa estruturade funcionamento, uma vez que são eles que nos compõem e per-mitem a nossa existência física, que é a condição básica subjacentea todas as outras dimensões do nosso ser. Num certo sentido, até aspedras são por nós tecnologicamente usadas, produzidas e transfor-madas, desde que inventámos o machado de pedra ou usámos uma

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para caçar, construir ou agredir, fazendo, portanto, igualmente par-tes do nosso funcionamento natural e cultural.

2) Quanto ao facto de os discursos da ciência e da filosofia se-rem diferentes, no seu esforço convergente para atingirem um co-nhecimento universalmente válido e objectivo da realidade, e deisso apontar supostamente para diferentes estratégias retóricas daprodução de verdade ou para diferentes sistemas de produção deconhecimento, que é argumento igualmente usado pelos críticosdo realismo epistemológico, é preciso dizer-se que, se aquela pri-meira diferença parece indiscutível nos dias de hoje (não tanto nopassado, quando ciência e filosofia eram a mesma coisa), uma vezque a filosofia se ocupa precisamente daquelas questões e proble-mas que não podem, ainda ou por princípio, ser resolvidos cien-tificamente pela conjugação de métodos empíricos e/ou formais,convém, no entanto evitar vê-las como actividades radicalmentedistintas, pelo menos se quisermos preservar e defender a possi-bilidade de a filosofia possuir virtualmente valor cognitivo no quediz respeito aos seus objectos próprios, e não um valor meramenteretórico, histórico ou hermenêutico. Na medida em que ambas, ci-ência e filosofia, visam resolver problemas e obter conhecimentoverdadeiro sobre as coisas, incluindo aí o nosso conhecimento de-las e o modo como o obtemos, tanto uma como outra fazem partedo esforço humano para perceber a realidade e tentar descobrir averdade de tudo isto por via racional, não sendo portanto comple-tamente diferentes nem no seu objectivo comum nem sequer, na re-alidade, ao nível dos métodos, posto que a formulação rigorosa deproblemas, a procura racional da sua resolução mediante a análisecrítica de diferentes alternativas hipotéticas de resposta, acrescidada apresentação e discussão de provas ou razões para preferir umasem relação a outras, sejam essas razões de natureza formal e em-pírica ou informal e argumentativa, é estratégia comum à ciência(ou às ciências) e à filosofia, pelo menos quando esta é praticadade forma cognitivamente séria como aspirante a um conhecimento

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verdadeiro. Assim, apesar de possuírem algumas regras distintasnos seus respectivos sistemas de produção de conhecimento (oude verdade, como preferem os pós-modernos, embora a expressãoseja ambígua e se preste a confusões retóricas, nomeadamente en-tre crenças verdadeiras solidamente justificadas e crenças falsas,falaciosas e/ou solidamente injustificadas), o que é natural, dadosos seus respectivos âmbitos de aplicação e enfoques apropriados aestes, tanto a ciência como a filosofia comungam de algumas re-gras básicas comuns na forma como procuram investigar/descobrira verdade e resolver os seus problemas, regras essas que tradu-zem simplesmente o trabalho da racionalidade humana no sentidode compreender a verdadeira natureza das coisas, reconhecendo asua (a nossa, humana, demasiado humana) falibilidade natural ea consequente necessidade de pôr sempre em questão tudo aquiloque dá como cognitivamente adquirido ou garantido. Aliás, estamesma discussão entre realistas e anti-realistas é expressão vivadisso mesmo, ou não tivesse ela começado com a crença de uns nacapacidade humana de atingir um ponto de vista incondicionadosobre a natureza das coisas e a (des)crença de outros nessa possibi-lidade, assumindo ambos, no entanto, irónica e paradoxalmente, acrença comum de nesse esforço de poder contemplar as coisas subspecie aeternitatis pelo menos no que se refere ao valor de verdadede ambas as crenças.

3) Outra objecção que costuma ser apresentada pelos anti-rea-listas de matriz pós-moderna é que a definição de validade cientí-fica, ou do conhecimento científico, não é em si mesmo científica,mas sim retórica e ideológica. Para a refutar talvez seja conveni-ente começar por dizer que, por um lado, provavelmente não seencontrará cientista nenhum que subscreva essa ideia, a não sertalvez alguns cientistas sociais já devidamente formatados no rela-tivismo pós-moderno, que acham que toda a ciência é uma cons-trução retórica igual a qualquer outra, crendo-a, portanto, contra-ditória e paradoxalmente, incapaz de produzir conhecimento real

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sobre as coisas no mesmo gesto em que declaram saber isso cienti-ficamente; por outro lado, seria útil que esses críticos explicassemo que têm de retórica ou ideologia afirmações científicas básicase trivialmente verdadeiras como 2 + 2 = 4 ou a água ser essen-cialmente H2O, ou os nossos corpos serem feitos de átomos, oua Terra ser um planeta e o sol uma estrela, ou que existiram di-nossauros, etc., etc., etc.? Será que a validade científica dessasafirmações é determinada retórica ou ideologicamente? Ou sê-lo-ácientificamente pelos métodos de descoberta e de prova própriosdas respectivas ciências? Além disso, curiosamente, esquecem-seos críticos idealistas de que os problemas específicos relativos àciência e ao conhecimento científico, tanto em geral como nas ci-ências particulares, são tratados pela filosofia da ciência e/ou pelaepistemologia, e não pela retórica ou pela ideologia, que só podemfuncionar como obstáculos epistemológicos tanto ao conhecimentocientífico em si como à sua análise filosófica – embora nessa qua-lidade seja útil reconhecê-los como tal, verificando até onde vai asua influência e qual a extensão do seu poder (como fazem, e bem,alguns dos próprios relativistas pós-modernos). Nessa medida, adefinição, tanto conceptual como pragmática ou operacional, devalidade ou de objectividade científica competem à filosofia da ci-ência (a primeira) e à ciência em si mesma (a segunda), fazendo-oesta última através do estabelecimento de protocolos metodológi-cos de investigação e validação formal ou empírica, tanto quantopossível tendencialmente imunes à contaminação retórica e/ou ide-ológica. Por outro lado, quanto à questão do método científico, éclaro que a criação do método científico não foi em si mesma ci-entífica, a não ser no sentido em que a ciência é uma actividadehumana e, assim, a definição e construção histórica dos seus mé-todos de investigação faz, ela própria, parte integrante da históriada ciência e da ciência em si própria, Na verdade, pode até mesmoir-se mais longe e argumentar que aquilo a que hoje se chama mé-todo científico (e resta saber se essa entidade existe de facto tal

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como o imaginamos) não foi sendo estabelecido e apurado cienti-ficamente da mesma forma que se faz o apuramento de teorias ouhipóteses científicas, isto é, testando-as, pondo-as à prova e veri-ficando se funcionam ou não, se descrevem, explicam ou preveemmelhor ou pior os factos e fenómenos que é suposto descrevem,explicarem ou preverem, ou seja, como resultado de um processoselectivo de evolução metodológica que, à semelhança das teoriasdos organismos vivos, sobreviveu e se revelou bem adaptado paralidar eficazmente com os problemas e desafios que o meio lhe foicolocando, ou melhor, que a realidade nos foi colocando. Por ou-tro lado, é legítimo duvidar de que essa entidade vulgarmente de-signada por "método científico"exista sequer, ou pelo menos queexista na realidade tal como o concebemos abstractamente, isto é,como um método único universalmente seguido por todas as disci-plinas científicas desde a matemática à história e desde a psicologiaà arqueologia. Ora, se entendermos por "método"um conjunto deregras e procedimentos específicos que invariavelmente são apli-cados com vista à obtenção de um determinado resultado, temoso problema de saber o que haverá de metodologicamente comumentre a investigação que se faz, por exemplo, entre a matemática(de que ninguém duvida que seja, de facto, uma ciência, e algunsaté consideram a mais pura de todas) e a arqueologia ou a his-tória (de que alguns duvidam que assim possa ser correctamenteclassificada). Para além do facto de todas as ciências buscaremum conhecimento verdadeiro, universalmente válido e objectivo,e de todas elas, para esse efeito, sujeitarem ao teste de realidadetodas as suas descrições, interpretações, explicações e previsões,corrigindo-as e alterando-os em função do seu grau de adequaçãoà realidade (seja esta de natureza física e empírica ou formal e abs-tracta), e dificilmente se poderá chamar a isso um "método", queoutro denominador comum têm ciências tão díspares nos seus ob-jectos, linguagem, enfoque e... métodos? Se por método científicose entender o famoso método experimental, então teremos obriga-

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toriamente de rever a extensão do nosso conceito de ciência, demodo a excluir uma série de disciplinas que não o aplicam nempodem aplicar, incluindo-se aí praticamente todas as ciências hu-manas fundamentais, como a antropologia, a sociologia, a história,ou mesmo a economia, e salvando-se tão somente a psicologia ex-perimental, que corresponde, como se sabe, apenas a uma pequenaporção da disciplina. Para além disso, excluir-se-iam também vá-rias outras ciências da natureza, tais como a astronomia, a cosmolo-gia ou a paleontologia, que também não são propriamente ciênciasexperimentais no mesmo sentido restrito que a física ou a químicao são. O pior é que, com esse critério experimental, teríamos queexcluir igualmente ciências indiscutíveis como a lógica e a mate-mática, o que não parece de todo recomendável por se assemelharperigosamente ao acto de deitar fora o bebé com a água do banho.

4) Argumentam ainda por vezes os anti-realistas pós-modernosque, caso fôssemos desprovidos de corpo e de sentidos, não sen-tiríamos (ou sentiríamos outras coisas, ou de maneira diferente,caso o nosso corpo e sentidos fossem outros), e se fôssemos des-providos de mente não pensaríamos nem conheceríamos nada (oupensaríamos e conheceríamos coisas diferentes ou de maneira di-ferente), constituindo estes, com as suas possibilidades e limites,as nossas condições básicas de acesso cognitivo às coisas, já paranão falar da linguagem que partilhamos e da cultura em que ne-cessariamente estamos mergulhados. Argumento ao qual se poderesponder que, por outro lado, é graças a esses diversos sistemase à sua articulação conjunta que somos capazes, ao menos virtu-almente, não provavelmente de aceder de modo directo e incon-dicional à natureza das coisas, mas de transcendermos o caráctermeramente relativo e subjectivo das representações que vamos for-mando delas, em direcção a uma objectividade possível e mensu-rável em termos de melhor adequação ou correspondência com arealidade que visam representar. Ora, essa capacidade de pensar econhecer objectivamente as coisas, ou de atingir um conhecimento

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universalmente válido, necessário e objectivo sobre elas, que se-ria até uma das características distintivas da nossa espécie (ou ACaracterística), pelo menos desde os gregos que se denomina ra-zão (logos). Conforme a ciência e a sua filha tecnologia aí estãopara o demonstrar, o conhecimento que podemos obter do mundo,ainda que sempre imperfeito, incompleto e sujeito a revisão, é su-ficientemente adequado para nos ter tornado, para o bem e parao mal, a espécie dominante do planeta, sinal de que a correspon-dência ou adequação entre os nossos esquemas mentais (teorias,representações, explicações) e a realidade a eles exterior, sendoparcial e aproximativa, é, no entanto, possível e real. Mais, casoestivéssemos condenados à relatividade e contingência da subjec-tividade individual ou colectiva (psicológica, sociológica, culturale/ ou histórica), não era apenas a ciência como tal que seria impos-sível, mas também o próprio entendimento racional prático entreos seres humanos estaria inevitavelmente comprometido, tornandovirtualmente impossível qualquer acordo moral, jurídico ou polí-tico em torno de princípios mínimos de convivência. Toda a racio-nalidade moral, jurídica e política não passaria, portanto, de merailusão, uma ficção social que poderia até ser útil ou conveniente,mas que não teria qualquer fundamento que não fosse a irraciona-lidade ou arbitrariedade dos interesses e necessidades em jogo, oque, a ser verdade, tornaria igualmente ilegítima e arbitrária qual-quer pretensão crítica à sua denúncia ou desmontagem. Se partir-mos do princípio que nenhuma objectividade é possível, e que tudoo que temos e podemos ter são perspectivas subjectivamente con-dicionadas pela história, pela cultura, pela língua, pela sociedade,pelos genes, pelos desejos, interesses e necessidades individuais oucolectivos, etc., etc., etc., então não só não poderíamos afirmar istomesmo objectivamente, já que isso pressuporia uma perspectivaincondicionada e transcendente às condições relativas a que supos-tamente não poderíamos escapar, como perderia todo e qualquersentido tentar perceber a verdadeira natureza das coisas, sejam elas

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humanas ou naturais, uma vez que tal empresa seria por princípioimpossível, ficando também, por arrastamento, logicamente inva-lidada a crítica moral, jurídica ou política, por ser desprovida dequalquer fundamento racional digno desse nome, mesmo que esteseja mais um ideal regulador do que uma realidade efectiva. Por-tanto, ou bem que somos, ao menos potencialmente e em princípio,capazes de conhecer objectivamente as coisas, ou algumas coisas, enesse caso vale a pena dedicarmo-nos, tanto individual como colec-tivamente, a tentar compreendê-las melhor filosófica e/ou cientifi-camente, ou bem que tal tarefa é vã por natureza e condição, sendoassim inútil prosseguirmos nessa direcção, dado o carácter neces-sariamente condicionado, relativo e subjectivo das representaçõesque podemos formar da realidade. Assim, aquilo que os críticospós-modernos parecem estranhamente ignorar é que caiem numadupla contradição quando defendem esta segunda tese e, ao mesmotempo, acreditam na sua verdade objectiva, assim como acreditamque as teorias que eles próprios propõem – e defendem com unhase dentes de qualquer crítica racionalista, realista ou objectivista –descrevem ou explicam objectivamente a verdade das coisas de queeles mesmos falam, pois se a tese inicial fosse verdadeira tal coisaseria logicamente impossível, estando essa mesma tese, essas teo-rias e os seus autores igualmente condicionadas por todos aquelesfactores atrás referidos, tornando-as assim tão irracionais, relativase subjectivas como as suas contrárias e ficando nós, dessa forma,sem qualquer maneira de saber quem tem afinal razão ou quemmais perto está da verdade, se os realistas ou os anti-realistas, vistoambas perspectivas estarem afectadas do mesmo problema gené-tico e não haver forma de transcender essas supostas condiçõesestruturais que nos cegariam para a coisa-em-si, condenando-nosao fechamento idealístico (ou autístico) da coisa-para-nós da re-presentação e tornando, desse modo, a discussão inútil e absurda,o mesmo sucedendo com toda e qualquer discussão de ideias ondese tente apurar a verdade ou validade das mesmas, quer essa discus-

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são seja científica, filosófica, moral, política, estética ou outra, dadaa subjectividade e relatividade condicionadas de todas as represen-tações. Em suma, se os anti-realistas pós-modernos tiverem razãono que defendem, então não vale a pena continuar a discutir, esseproblema de saber onde está a verdade ou quem tem razão nesseponto simplesmente porque não há maneira de sabermos quem temrazão ou fala verdade, visto não haver quaisquer critérios racionaise objectivos que imparcialmente permitam aferir tal coisa e a ver-dadeira natureza das coisas nos estar essencialmente vedada; se,pelo contrário, forem os realistas, os objectivistas e os racionalis-tas que tiverem razão, então vale a pena continuar a discutir esse eos outros problemas, pois existem formas racionais e objectivas dedesempatar a discussão entre posições teóricas antagónicas, nome-adamente a qualidade dos factos e a força dos argumentos usadospara sustentar as teses ou teorias que ambos defendem, havendoa possibilidade de se compararem criticamente as representaçõesque ambas as partes fazem da realidade com a própria, permitindoassim avaliar não só a sua coerência interna, mas igualmente a suaconsistência ou grau de correspondência com a realidade que sãosupostas representar.

5) Se porventura os neo-sofistas pós-modernos não se derempor satisfeitos e contra-atacarem ainda com o argumento segundoo qual, nos seus próprios termos, “o que sucede é que trabalhamoscom o objecto através da sua representação, e portanto a retóricada obtenção da Coisa-em-si é, na verdade, mais um aparelho dis-cursivo de produção de verdade, junto de vários outros aparelhos,histórica e socialmente condicionados, mutáveis nas suas aparên-cias e funcionamentos”, o que há a fazer é lembrar-lhes que, nessecaso, essa mesma posição não passa, ela própria, juntamente comtodas as suas outras teses, ideias, argumentos ou teorias por meiodas quais julgam produzir conhecimento científico ou filosófico,também de meras formas retóricas ou aparelhos discursivos de pro-dução de verdade, necessariamente mutáveis na sua aparência e

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funcionamento, o mesmo acontecendo, por exemplo, com o na-zismo ou a astrologia, sem que se possa dizer que algumas formasou representações sejam melhores ou superiores do ponto de vistaracional – seja descritiva ou explicativa avaliado em função da rea-lidade ou normativamente avaliado em função da sua justeza, umavez que tais coisas não existem ou são humanamente inacessíveis.E é exactamente por isso que expressão “produção de verdade” pa-rece simultaneamente ambígua e perigosa, pois faz da verdade umaprodução humana, como se esta fosse uma invenção arbitrária doshomens ao serviço de quaisquer poderes ou interesses, e o mundo,ou ao menos o mundo a que podemos cognitivamente aceder, nãopassasse, de facto, de vontade e representação, ou melhor, da re-presentação da nossa vontade.

Isto dito, compreender-se-á certamente que, do ponto de vistaque aqui é defendido (necessariamente condicionado e subjectivo,se os relativistas tiverem razão), o que mais importa não é sabercomo nos devemos posicionar relativamente aos autores ou obrasque defendam uma ou outra das posições, invocá-los como auto-ridades ou fazer mera hermenêutica dos seus textos, mas sim sa-ber se a sua posição é verdadeira ou falsa, correcta ou incorrecta,justa ou injusta, racional ou irracional, tentando descobrir ondese encontra afinal a verdade e a razão, procurando determiná-lasem função das razões que sustentam ou justificam objectivamenteas teses/teorias defendidas e não pelo seu efeito retórico ou pelacausa/poder/interesse ao serviço do qual se colocaram, uma vezque a causa ou interesse que filosófica e/ou cientificamente nosdeve mover é saber a verdade e não saber quem disse o quê, comque interesse ou ao serviço de que poder, excepto quando saber issotambém possa fazer parte da busca da verdade ou for essa a verdadeque nos interessa saber – o que, aliás, uma vez mais contraditori-amente, corresponde à forma como os próprios pós-modernos sevêm a si próprios.

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Só para concluir, encerrando aqui o caso, a título de exemplo,quando Heidegger faz determinadas afirmações, tais como “A lin-guagem é a casa do Ser”, ou “O Homem é o pastor do Ser”, ou que“A Verdade é desvelamento do Ser”, ou que “A história da meta-física ocidental (leia-se, filosofia ocidental) é a história da oculta-ção do Ser”, ou ainda quando defende que a metafísica (= filoso-fia) encerrou o seu ciclo de vida e é preciso pensar (e passar) paraalém dela, rumo a um pensamento poético-meditante que recupereo sentido do mistério ontológico original e vá além do pensamentoracional e calculante das ciências e da técnica, aquilo que parecerelevante saber, para além do significado que tais ideias possam terno interior do pensamento do autor, é se elas fazem ou não sentido,se são verdadeiras ou falsas, se o autor tem ou não razão naquiloque afirma, e se temos ou não boas razões para as aceitarmos comotal – ou então, se preferir, para usar uma linguagem heideggeri-ana, se aquilo que ele diz revela ou desoculta mais do que aquiloque oculta ou obnubila –, o mesmo acontecendo com qualquer ou-tro filósofo, chame-se ele Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Ni-etzsche, Foucault, Deleuze ou Derrida, por ser isso que a filosofiaessencialmente é e deve continuar a ser: a intransigente procurada verdade das coisas, doa o que doer e doa a quem doer, e nãode todo mais um aparelho retórico de produção da verdade (ou desupostas verdades), seja ao serviço de que interesses, causas ou po-deres forem, por muitos bonitos, bem intencionados, libertários ouemancipatórios que se apresentem ou pretendam fazer-se passar.

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