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POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E HISTÓRIA DA LEITURA NUMA PERSPECTIVA DE INCLUSÃO SOCIAL Giselle Pereira Campos Faria 108 Selma Martines Peres 109 GT3- Instituições, culturas e práticas escolares Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir historicamente o ensino da leitura e as políticas públicas de educação e leitura numa perspectiva de inclusão social. Entendendo a leitura como uma prática que leva o sujeito a perceber o mundo e a ampliar a sua compreensão da sociedade, numa postura crítica e emancipadora, ela torna-se um dos fatores que proporciona o conhecimento. Nesse sentido, este artigo analisa as concepções de políticas de educação e leitura que estão vigorando no país, atualmente. Palavras-chave: Políticas. Educação. Leitura. ABSTRACT This article aims to discuss the historical teaching of reading and public policy education and reading from a perspective of social inclusion. Understanding reading as a practice that takes the subject to perceive the world and to broaden their understanding of society, a critical stance and emancipatory, it becomes one of the factors that gives knowledge. Therefore, this article analyzes the conceptions of education and reading policies that are in force in the country today. Key-words: Policies. Education. Reading. Introdução O objetivo deste texto é discutir historicamente o ensino da leitura levando em consideração o papel do leitor, as políticas educacionais e de leitura, através de revisão bibliográfica que trata desse tema numa lógica crítica e emancipadora, portanto, numa perspectiva de inclusão social. Os suportes teóricos que discutem a história do ensino da leitura e o papel critico do leitor no decorrer das ultimas décadas são embasados em Manguel 108 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação/RC/UFG-BRASIL; [email protected] 109 Professora Doutora do Programa de Pós Graduação em Educação/RC/UFG-BRASIL [email protected] 241 III EHECO – CatalãoGO, Agosto de 2015

POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E HISTÓRIA DA LEITURA NUMA ... · Para que as crianças conseguissem ler todas as palavras escritas, as quais supostamente já sabiam oralmente, a lista

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POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO E HISTÓRIA DA LEITURA NUMA PERSPECTIVA DE

INCLUSÃO SOCIAL

Giselle Pereira Campos Faria108 Selma Martines Peres109

GT3- Instituições, culturas e práticas escolares

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir historicamente o ensino da leitura e as

políticas públicas de educação e leitura numa perspectiva de inclusão social. Entendendo a

leitura como uma prática que leva o sujeito a perceber o mundo e a ampliar a sua

compreensão da sociedade, numa postura crítica e emancipadora, ela torna-se um dos fatores

que proporciona o conhecimento. Nesse sentido, este artigo analisa as concepções de políticas

de educação e leitura que estão vigorando no país, atualmente.

Palavras-chave: Políticas. Educação. Leitura.

ABSTRACTThis article aims to discuss the historical teaching of reading and public policy education andreading from a perspective of social inclusion. Understanding reading as a practice that takesthe subject to perceive the world and to broaden their understanding of society, a criticalstance and emancipatory, it becomes one of the factors that gives knowledge. Therefore, thisarticle analyzes the conceptions of education and reading policies that are in force in thecountry today.

Key-words: Policies. Education. Reading.

Introdução

O objetivo deste texto é discutir historicamente o ensino da leitura levando em

consideração o papel do leitor, as políticas educacionais e de leitura, através de revisão

bibliográfica que trata desse tema numa lógica crítica e emancipadora, portanto, numa

perspectiva de inclusão social. Os suportes teóricos que discutem a história do ensino da

leitura e o papel critico do leitor no decorrer das ultimas décadas são embasados em Manguel

108 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação/RC/UFG-BRASIL;[email protected]

109 Professora Doutora do Programa de Pós Graduação em Educação/RC/[email protected]

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(1997), Zilberman (2009), Paulino e Cosson ( 2009), Chartier (1998) e Chartier (2010). As

ideias de políticas educacionais numa perspectiva crítica contra a política de dominação

imposta pela ideologia do capital e da globalização, fundamenta-se em Dias Sobrinho e Dias

(2006), Fonseca (2009); e na compreensão das relações de poder que permeiam as políticas de

leitura, Britto (1999; 2012), Freire (2011), Fernandes (2007), Belmiro (1999) e Abreu (2001).Na primeira parte desse texto, aborda-se a história da evolução da leitura no decorrer

dos anos. No segundo discute-se a influência da lógica do mercado neoliberal e o efeito da

globalização nas políticas públicas educacionais. No terceiro, trata-se das políticas de leitura,

propondo uma reflexão sobre a relação entre a leitura, a informação e o conhecimento no

processo de aprendizagem do sujeito.

1 O ensino da leitura na história da educação

Para Manguel (1997), a leitura é uma aptidão espantosa que adquirimos por meio

incertos. Todavia, antes que essas aptidões sejam adquiridas, o leitor precisa aprender a

capacidade básica de reconhecer os signos comuns pelos quais uma sociedade escolheu

comunicar-se: em outras palavras, o leitor precisa aprender a ler. Segundo Chartier (1998) A

história da leitura parte do pressuposto que o leitor tem a liberdade de compreender aquilo que

o livro lhe pretende impor. Mas esta liberdade leitora é parcial, pois está contextualizada em

limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas

especificidades, as práticas de leitura. Manguel (1997, p. 85) afirma que: Os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as convenções de nossasociedade em relação à alfabetização – canalização da informação, as hierarquias deconhecimento e poder -, como podem também determinar e limitar as formas pelasquais nossa capacidade de ler é posta em uso.

Nesse aspecto, leitura e educação caminham juntas historicamente, atendendo as

necessidades de determinados interesses que variavam no decorrer dos anos, e que atualmente

para organismos financeiros numa concepção hegemônica, têm a função de contribuir na

erradicação da pobreza e na produção. Nesse sentido, Chartier (2010, p.19) esclarece, “é

como se os benefícios do desenvolvimento tivessem sido conseqüência automática da

educação (crença que não pode ser verificada) e como se não houvesse nenhum outro

caminho para aqueles países que estão ficando para trás.”

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De acordo com Chartier (2010) esse posicionamento é questionável, nos séculos XVII

e XVIII, em países da Europa o ensino da leitura e a educação ou ficavam a cargo da família e

cabia aos pastores a avaliação dessa aprendizagem ou ficava totalmente na responsabilidade

dos religiosos que ensinavam as crianças a lerem preces no catecismo.Sobre a dominação, o papel, e a organização da escola para atender determinados

interesses religiosos ou econômicos no ensino da leitura e escrita, Zilberman (2009, p.18)

esclarece:[...] se as práticas econômicas encontram-se na origem da escrita, as práticasreligiosas, a que se vinculam as literárias e jurídicas, determinam a organização daescola, que se encarregará da difusão daquela ferramenta da linguagem verbal. Aescola será dominada pelos religiosos, e seus freqüentadores comungarão os ideaissagrados de que a escrita igualmente se reverte entre seus usuários.

A história do ensino da leitura no decorrer dos séculos é permeada por contextos

diversos, que vão de encontro à necessidade de ser ler numa determinada época e as políticas

do ensino da leitura para atender a essa necessidade, Chartier (2010) aponta que o Centro de

pesquisa de Umea, tem desenvolvido estudos sobre a cultura da escrita e sua transmissão, o

instituto aborda a história da leitura em dois aspectos, o primeiro é o aumento dos índices de

letramento e o segundo, o material providenciado por autoridades sociais ou políticas. No que

diz respeito aos índices estatísticos da leitura e escrita, esclarece que esse não pode ser

desvinculado das diversas práticas culturais de leitura em diversos grupos sociais. O Umea

ainda estabelece uma relação existente entre os aspectos da história da leitura com os métodos

de ensino, que para Chartier (2010), no decorrer dos séculos, em determinadas épocas foi

contextualizado nas necessidades de se ler conteúdos religiosos através de métodos de

silabação e em outras na “tecnologia da palavra escrita”.No século XVI até XVIII, para se ensinar a ler, existiam livros, que refletiam a

uniformidade da doutrina medieval cristã em todas as religiões da época, pois só havia sentido

em ensinar a ler se fosse para instruir religiosamente as pessoas. Tanto na religião católica

quanto na protestante o ensino era através textos religiosos e preces, decorados e já

aprendidos oralmente pela família e pela igreja. Conforme descreve Chartier (2010, p. 23): O processo da leitura consistia em soletrar as letras para que se falassem as sílabas(p-a, pa), e então a palavra (Pa-ter, Pater). O jovem leitor ligava os sinaisidentificados na página ao texto que ele já sabia de cor (Pater Noster, qui es).Quando as crianças conseguiam ler sílabas, podiam ir diretamente para os textos depreces. Esse era o velho método da soletração, que estava em progresso desde aantiguidade mais remota; ele era transmitido em escolas medievais, nas quais jovens

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seminaristas tinham seu treinamento iniciado com salmos e com o Pater Noster.Apenas no segundo estágio era requerida do aluno uma leitura fluente, ligandopalavras e sequências de palavras.

Atualmente o ensino da leitura é diferente dos séculos anteriores, o ato de ler hoje tem

como objetivo a retirada de informações do texto e a sua interpretação, enquanto que

antigamente a leitura era necessária apenas para o ensino/aprendizagem da religião. Assim

como o significado do termo letramento aqui usado também mudou nos decorrer dos séculos.

Já que, conforme Paulino e Cosson (2009), o termo letramento não possui uma definição

única e universal, e o seu significado vem mudando no decorrer dos séculos de uma elementar

decifração daquilo que está escrito para uma gama de habilidades e competências.[...] o conceito de letramento apresenta, ao longo do século XX, pelo menos, doiseixos de definição que, a despeito de corresponderem a momentos históricosdistintos, continuam vigentes, renovados até mesmo intercambiais em algunscontextos, quando não colaboram para confusões e disputas acadêmicas. Em termoscronológicos, o primeiro desses eixos de definição é aquele que situa letramento,literacy em língua inglesa, no campo do domínio básico da escrita, consideradacomo uma tecnologia. Com tal significado, o conceito se afasta do adjetivo letradocom o qual convivia no século XIX, deixando para trás a relação com umrefinamento literário e cognitivo próprio das pessoas consideradas eruditas.(PAULINO; COSSON 2009, p. 64)

Com o Iluminismo e o surgimento das classes privilegiadas, tutores ensinavam por

meio de cartilhas, atendiam um aluno de cada vez e se opunham ao método de ensino que

priorizava memorizar textos, pois davam preferência à memorização do léxico de determinada

língua. Chartier (2010)Os alunos não mudavam mais de um texto recitado para um lido, e sim de umalíngua falada para uma escrita. Assim que a criança soubesse falar adequadamente,poderia começar a ler. O melhor método consistia em ler o mais cedo possível, ealgumas crianças já conseguiam isso com 4 ou 5 anos. Apesar da ortografia simples,francês e inglês não têm a simplicidade gráfica das palavras em latim, alemão ouespanhol. Para que as crianças conseguissem ler todas as palavras escritas, as quaissupostamente já sabiam oralmente, a lista de combinações silábicas só aumentava,assim como o tempo dedicado ao aprendizado e a repulsa e o tédio das crianças.(CHARTIER 2010, P.28)

Para lidar com a dificuldade e o tédio das crianças com relação ao novo método de

ensino da leitura foram criadas cartilhas com listas de sílabas, variando das mais simples para

as mais complexas e jogos infantis, porém tais métodos necessitavam de constantes

intervenções por parte dos tutores, nesse caso eram possíveis apenas para ensino particular,

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não para o ensino coletivo e aprender tornou-se algo enfadonho, sem ligação com os textos

religiosos, portanto, com as práticas sociais da escrita.Um preço tinha de ser pago por todas essas inovações. Aprender a ler e ler paraaprender foram completamente separados. Rousseau e Pestalozzi achavam essaseparação ainda mais perversa por ser implícita. Os meios se tornaram o fim. Naeducação anterior, ao lerem ou recitarem o Pater Noster, o Credo ou os salmos, ascrianças se envolviam no processo de ler e, ao mesmo tempo, no conteúdo da culturaescrita em foco. Ao brincarem de dados, elas aprendiam, que ler era pura questão decombinação, sem conteúdo. (CHARTIER 2010, p. 33)

Com o objetivo de se contrapor ao método de ensino que tornou a leitura apenas um

fim, Rousseau e Pestalozzi criaram por meio de um aprendizado construtivo, exercícios

físicos e sensoriais, que não necessitavam da leitura como pré-requisito. Porém, esse método

de ensino não agradava pais e professores, pois ambos achavam necessário que a criança

começasse o mais cedo possível com seus estudos. Com o intuito de evitar a leitura

prematura levou Rousseau a jogos educacionais para manter as crianças pequenas ocupadas e

instruídas, mas sem utilizar livros. Chartier (2010).A partir do século XVIII, quando a sociedade europeia experimentava um processo de

revolução industrial, política e cultural que resultava numa alteração na democracia daquela

época, e muitos passavam a ter condições de obter conhecimento e tecnologias de informação

que facilitavam a difusão dos objetos culturais que antes eram privilégios apenas da elite

social e intelectual. Nesse contexto, o público leitor se tornava cada vez mais exigente e ativo,

exigindo que a escola se reformulasse para atender a essa demanda. Zilberman (2009, p. 22)O papel original da escola, intermediando as relações entre o ser humano e a escrita,amplia-se, convertendo-se na principal ponte entre o seu usuário – o estudante, queinicia na infância sua trajetória pelo ensino, já que a escolarização torna-seobrigatória desde os primeiros anos de vida – e a cultura, sendo a aquisição daleitura uma das condições de aprendizagem. São várias as razões pelas quais aleitura a ocupar o primeiro plano, em detrimento de outras modalidades depercepção e representação da realidade, vindo a funcionar como porta de entrada dojovem ao universo do conhecimento.

2 Políticas Educacionais

O século XX proporcionou alterações significativas na sociedade, cujo projeto tinha

por meta o desenvolvimento e cujas mudanças valorizavam o individualismo e o pensamento

neoliberal capitalista. Nesse contexto, a educação, considerada o resultado do trabalho

intelectual do aluno, configurou-se para que o sujeito pudesse ingressar em novos modos de

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produção e também de consumo, e assim atender às necessidades do mercado e aos interesses

políticos do capital. Dessa forma, o conhecimento deixa de ser o único quesito necessário para

a formação de mão de obra e passa a sê-lo cada vez mais à competência para resolver os

problemas. Com o avanço das tecnologias de base informática, a globalização tornou-se um

fenômeno com múltiplas facetas, de maneira que todos os acontecimentos são interligados na

economia global e no mundo ideológico-cultural que ela proporciona. Como afirmam Dias

Sobrinho e Dias (2006, p.10) “De caráter centralmente econômico, a Globalização também

tem muito a ver com a comunicação, a cultura, a política, a ética, a ecologia e as relações

entre o local e o universal”. Assim, a globalização apresenta aspectos relacionados com os

avanços nas áreas das tecnologias, das ciências, da indústria e das comunicações, no entanto

numa perspectiva hegemônica que apoia o acúmulo do capital, relacionada segundo Dias

Sobrinho e Dias (2006, p.10) à anomização da sociedade, à corrosão da solidariedade, à competitividade, aoindividualismo possessivo, aos conflitos em escalas locais e mundiais, aocrescimento das desigualdades, à ampliação da geografia da miséria, às crises desentidos, à expansão das incertezas nas esferas individuais e públicas..

Além desses aspectos, a globalização, segundo a lógica da acumulação de riquezas,

tem como princípio a eficiência e a produtividade, requisitos extremamente valorizados pelo

mercado. Nesse sentido, a escola, entendida como local privilegiado de produção de

conhecimento e de formação humana, torna-se um espaço de relevância nas sociedades atuais,

na medida em que atenda a critérios de produtividade de acordo com as demandas dos

mercados. Nessa perspectiva de competição, exclusão e privilégios existentes na sociedade da

economia global, a educação contribui para a implementação das desigualdades e para a

seleção de mão de obra para o mercado. A globalização da economia requer uma certa padronização geral das carreirasprofissionais, especialmente no que se refere à comparabilidade e à compatibilidadedos currículos em escala regional e mundial, para atender às necessidades demobilidade profissional e de trocas mercantis nos blocos e conglomeradoseconômicos (DIAS SOBRINHO; DIAS, 2006, p.11).

Sendo assim, a “qualidade” na educação, que, de acordo com Fonseca (2009 p. 154),

realiza-se na medida em que logre preparar o indivíduo para o exercício da ética profissional e

da cidadania, passa a ser definida por políticas desenvolvidas pelo Banco Mundial, UNESCO,

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e outros organismos multilaterais (OM) para atender a critérios internacionais

mercadológicos. Nessa mesma vertente, o Estado tem o dever de regular e controlar os

requisitos que devem ser atendidos na lógica do mundo econômico, que privilegia o

individualismo, a produtividade, a competitividade e também, segundo Fonseca (2009,

p.154), “o provimento de padrões aceitáveis de aprendizagem para inserir o indivíduo - como

produtor-consumidor - na dinâmica do mercado”. Embora no contexto das reformas educativas internacionais a qualidade da educação

tenha uma conotação muito precisa, que para o Banco Mundial é incluir os resultados das

avaliações dos alunos e as orientações com as prioridades da educação através de análises

econômicas, esse modelo de regulação utiliza-se de avaliações de sistema em larga escala

para monitorar a aprendizagem dos estudantes e os mecanismos de gestão e controle e para

culpabilizar o professor pelos resultados negativos obtidos, no entanto, sem lhes dar

condições adequadas para superarem as deficiências. Diante dessa conjuntura, em muitas partes do país os professores vêm se mobilizando

para sugerirem propostas de educação que tenha como base um projeto social voltado para a

emancipação dos sujeitos, para a igualdade de oportunidades para todos e qualidade

educacional, desconstruindo a “qualidade” da educação em que prevalece o enfoque da

competitividade e do utilitarismo que servem apenas ao mercado financeiro.

2 Políticas e Leitura

O debate educacional envolvendo o acesso à escolaridade e à leitura está no cenário

de discussão das agendas governamentais do país. Ambas as temáticas numa perspectiva de

inserção social, com o objetivo de melhorar as condições de letramento da população por

meio de políticas públicas que sejam amplamente discutidas pelo Estado, pelas universidades,

pelo setor privado e pelas organizações da sociedade civil. A esse respeito, Fernandes (2007, p

10) afirma queNo Brasil, nos últimos trinta anos, foram criados programas, instituições, leis,congressos, movimentos e campanhas, com a finalidade de formar o leitor, bemcomo de difundir e melhorar a leitura da população. Em decorrência dessas medidas,houve uma ampliação da produção e da circulação de livros, principalmente pormeio de compras governamentais de didáticos e de literatura infanto-juvenil,tornando o Brasil o oitavo mercado editorial do mundo.

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Cabe aqui ressaltar que a necessidade da leitura é um processo que vem sendo

construído historicamente pelas civilizações conforme as transformações ocorridas na

sociedade e nas suas instituições, como também na produção e técnicas de reprodução. Nesse

sentido, a leitura vem sendo compreendida a partir de diferentes concepções e práticas. No

entanto, somente nas últimas décadas a perspectiva de inclusão e transformação social passou

a ser discutida, como destaca Freire (2011, p. 17) “em sociedade que exclui dois terços de sua

população e que impõe ainda profundas injustiças à grande parte do terço para o qual

funciona, é urgente que a questão da leitura e da escrita seja vista enfaticamente sob o ângulo

da luta política a que a compreensão científica do problema traz sua colaboração”. Nesse contexto, a leitura é amplamente debatida no meio educacional das escolas e

universidades com o objetivo de ampliar o acesso ao público leitor.A democratização da leitura na Europa iniciou-se após a invenção da imprensa porGutenberg, no século XVIII, o que possibilitou tanto a produção (e o barateamento)de um número maior de publicação periódica e de livros, quanto a escolarização e aalfabetização em massa. Ferramenta das mais importantes na difusão e naassimilação do projeto político e ideológico da burguesia, a leitura transformou-seem um “direito inalienável de todo cidadão” (FERNANDES, 2007, p.10-11).

Atualmente, a leitura é requisito fundamental no exercício da cidadania. Para

conviver numa sociedade em que a ideia de letramento amplia e fortalece a inserção na

cultura, e em que os textos escritos circulam mediante a necessidade que se tem de manipular

caixas eletrônicos, orientar-se pelas placas na rua, ou até mesmo outros exemplos básicos do

cotidiano como andar de ônibus e fazer compras no supermercado, é necessário que as

pessoas tenham práticas fortalecidas de leitura. A leitura, para além do exercício da cidadania, é também importante quando é feita

pelo sujeito com a competência de interpretar, de atribuir sentido ao texto, de posicionar-se

criticamente perante a ideologia hegemônica da sociedade e compreender os descompassos do

mundo capitalista globalizado, que exclui milhares de pessoas da participação social. Para

Belmiro (1999, p.125), “mais que um meio de adaptar-se às exigências de uma sociedade cada

vez mais seletiva e excludente, portanto o ensino da leitura com valor técnico, ler é

possibilitar uma compreensão crítica do mundo, é dar sentido para o nosso estar no mundo e,

portanto, ensino da leitura com valor ético”.

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Na lógica do atual cenário das discussões sobre a leitura, percebe-se no discurso a

ideia de que ler é uma questão de hábito ou gosto que se adquire no decorrer da vida por

vontade própria e sem vínculos sociais. No entanto, conforme assegura Britto:Não se pode, na reflexão sobre a construção do conhecimento e sua relação com aleitura, desconsiderar o modo como é elaborada e veiculada a informação,particularmente aquela presente nos textos escritos de circulação pública, nem asconformações ideológicas dentro das quais se constroem os valores e saberesdominantes na sociedade industrial de massa que informam as chamadas práticasleitoras (BRITTO, 1999, p.77).

O conhecimento adquirido por meio da leitura não pode ser medido pela quantidade

de informação que o sujeito possui. Porém, a informação, disposta num determinado contexto

histórico, onde são selecionados dados, fatos e teorias, é importante para que o sujeito possa

articular-se criticamente e formular seu conhecimento. Tal contexto histórico é construído no

interior de uma sociedade onde a informação se realiza de acordo com as interações dos

sujeitos para que não sejam tão influenciados pelo pensamento neoliberal, onde imperam as

relações de produção, consumo e de exercício do poder. Além das informações de interesse restrito, que dizem respeito à vida particular das

pessoas, existem as de interesse supostamente geral, que se referem aos fatos do mundo.

Nesse caso, é possível identificar critérios de relevância que regulam a produção de uma

informação de interesse público que são, de acordo com Britto (1999, p.79): “sua abrangência,

densidade, finalidade da divulgação, grau de impacto, ineditismo e grau de veracidade”.

Porém, na divulgação de uma notícia, tais aspectos não são colocados de maneira neutra e

nem são universais, pois sofrem implicações éticas, políticas e econômicas. Ou seja, a

informação resulta dos interesses políticos e econômicos de agentes de produção de

informação e é inserida na sociedade na forma de um produto cultural.Sobre o processo de construção de conhecimento que fundamenta a informação,

Britto esclarece que:Há duas questões fundamentais para o processo de construção de conhecimento: aque toda informação tem um valor extrínseco que lhe é agregado no ato mesmo desua enunciação; e de que uma informação é nova não porque nunca tenha sidoanunciada dentro de um contexto de produção de discurso. Daí porque é necessárioconsiderar, na análise dos processos e construção de informação, seu lugar deprodução, seu espaço de circulação e a inserção social dos sujeitos que a recebem(BRITTO, 1999, p. 80).

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Nesse contexto, a interpretação ingênua das informações nas suas dimensões

políticas, veiculadas de acordo com os interesses hegemônicos da lógica do poder existente na

sociedade, contribui para o impedimento da percepção crítica do caráter social do

conhecimento. Outro fator preponderante é que nem todos que escrevem têm a oportunidade de

publicar suas percepções do mundo e da sociedade. Ao contrário do que se pensa, a expansão

dos meios de comunicação não proporcionou a democratização da circulação das percepções

e compreensões que as pessoas têm sobre as relações existentes no mundo atual, no espaço

público. Assim, é perceptível a necessidade de compreender que as informações disponíveis e

circuladas nos mais diversos tipos de meios de comunicação, obtidas por meio da leitura, não

garantem a apropriação do conhecimento pelo indivíduo. Nesse sentido, as questões sobre a leitura, discutidas nas últimas décadas, são

fomentadas na perspectiva em que esta é fator preponderante para o desenvolvimento do

sujeito e para a construção de uma sociedade voltada para o crescimento, a criatividade e a

produtividade. Porém, nessa lógica, a leitura deixa de contribuir para uma prática social, e é

atribuído a ela o sentido de “salvadora” do sujeito, como se fosse capaz de tirá-lo da pobreza e

da ignorância. Entretanto, numa visão mais humanista e dialética de leitura, compreende-se

queLer é uma ação intelectiva, através da qual os sujeitos, em função de suaexperiência, conhecimentos e valores prévios, processam informação codificada emtextos escritos. A leitura se faz sempre sobre textos que se dão a ler, textos quetrazem representações do mundo e com as quais o leitor vê-se obrigado a negociar,já que “ao ler um texto, o leitor mobiliza dois tipos de “informação”: aquelas que seconstituíram em sua experiência de vida e aquelas que lhe fornece o autor em seupróprio texto” (BRITTO, 1999, p.84).

De acordo com este autor, a leitura vai para além de um processo cognitivo de

decodificação ou mesmo afetivo, ela é resultado da interação entre o sujeito, seus saberes e os

conjuntos de valores que possui dentro de uma sociedade historicamente constituída,

enquanto o texto é a expressão de um conjunto de valores de um determinado tema e não

possui neutralidade, pois carrega a intenção de atuar sobre a representação que o leitor faz de

determinado assunto, com estratégias argumentativas acerca de uma ação política (BRITTO,

1999). Nesse sentido, o ato de ler é um ato político que requer um posicionamento do mundo

e quanto mais consciência deste processo o leitor tiver mais poder de discernimento terá e

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mais crítica será sua leitura. Portanto, o ato de ler na perspectiva do letramento é um ato de

empoderamento social. Para Freire (2011, p. 35), “não é possível pensar sequer educação sem

que se pense a questão do poder”. A valorização da leitura numa concepção de promotora da moral, composta por

textos patrióticos de forte cunho de reprodução didática onde predominava o valor da família

e o heroísmo, foi convertida para a ideologia do mercado, da competitividade e da

competência (BRITTO, 1999). Tal conversão se deu no Brasil de maneira contextualizada

com as alterações que ocorreram na sociedade, acompanhando as sucessivas mudanças no

capital. Essas mudanças correspondem ao “milagre econômico” dos anos 70, ao processo

conservador de abertura política dos anos 80 e ao neoliberalismo dos anos 90 (CHAUÍ, 2014).

Percebe-se assim que, no decorrer dos anos, surgia uma nova ideologia fundada numa nova

ética discursiva. Ainda numa outra concepção mais atual, a leitura foi relacionada à ideia do deleite,

numa visão espontaneísta de que esta pode ser realizada com objetivo de divertimento e

tornar-se mais prazerosa. Essa visão está relacionada à crença de que a educação não precisa

ser chata, tem que proporcionar momentos agradáveis, favorecendo, assim, a produção de

textos fáceis, aproximados com a oralidade e o conhecimento do senso comum (BRITTO,

1999). E partindo das premissas do discurso pedagógico do prazer, o governo lança

campanhas que incentivam a leitura utilizando como slogan “Quem Lê Viaja”, que para

Abreu:Um texto desta natureza só faz sentido se se imaginar que estamos diante de umatábula rasa, de um país sem leitores, em que cumpre estimular o contato com o livroseja ele qual for. No entanto, as ilustrações que acompanham a campanha,mostrando leitores caracterizados como personagens de romances, sugerem que aleitura que se quer estimular é a de identificação e evasão, aquela que faz com que oleitor se sinta Peri em uma academia de ginástica (ABREU, 2001, p.150).

Tal slogan mostra o ato de ler como bom em si, sendo necessário apenas ler mais e

mais. Além desse fator, é carregado de termos que tratam de discursos mercadológicos e têm

como objetivo construir um “consentimento ativo” na sociedade. De fato, o uso cotidiano de

alguns conceitos pode dar a falsa impressão de que são naturais e inevitáveis, que constituem

o fazer cotidiano e, com isso, gerar a conformação. Sendo assim, campanhas que tenham a

intenção de promover a leitura como forma de entretenimento, numa perspectiva

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mercadológica, devem ser realizadas pelas editoras comerciais que vão lucrar com o consumo

desses livros e não pelo Governo (BRITTO, 1999). Ainda numa concepção de leitura com o objetivo de entretenimento, em que

predomina a lógica de um pensamento voltado para o individualismo e senso comum são

produzidos materiais escritos diversos de acordo com a faixa etária, sexo e interesse, em

consonância com as demandas do mercado, numa concepção imediatista e tecnicista. Tais

materiais, em que os conteúdos são extremamente compartilhados e as verdades tratadas de

forma superficiais, são também difundidos e utilizados nas escolas. A consequência imediata da concepção de leitura predominante hoje na práticaescolar e nas ações e campanhas de promoção de leitura é a submissão das práticasleitoras à vontade das empresas de produção de texto e informação. Produzem-se evendem-se objetos de leitura, assim como se produzem e se vendem outros objetosde massa. A diversidade dos gêneros de textos e de seus veículos relaciona-sediretamente aos interesses econômicos e políticos da indústria do texto, que, por suavez, está cada vez mais articulada às indústrias da formação e do entretenimento.(BRITTO, 1999, p. 88).

Nessa perspectiva, a leitura sem uma análise mais aprofundada das ideologias e

perspectivas que estão postas na sociedade não contribui para que o leitor se torne crítico e

contribui para que se alfabetize e forme o leitor para que ele se torne mão de obra

especializada, consumidor e reprodutor dos interesses do mercado.Entendendo a escola como lugar privilegiado onde existem processos com espaços

para ensinar e o tempo de aprender, numa organização de alunos com procedimentos

formalizados que respeitam os seus desenvolvimentos e ritmos, e que a leitura também é

desenvolvida nesse espaço, nas salas de aula ou bibliotecas, envolvendo alunos, professores e

comunidade escolar, para Fernandes (2007) “percebe-se poucas contribuições desses sujeitos

no processo de seleção dos livros”. Esse fator contribui ainda mais na exclusão da cultura dos

sujeitos que estão no espaço da escola, pois apesar da democratização e do acesso à leitura

que vem ocorrendo nas últimas décadas, eles não participam do processo de escolha dos livros

a que terão acesso. A eles não é permitido o papel político de emancipação social, na medida

em podem se tornar protagonistas na construção do seu conhecimento.

3- Considerações Finais

Diante do exposto pode-se concluir que desde a antiguidade, a leitura ocupa uma

posição importante dentre os instrumentos necessários para o funcionamento da sociedade, já

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que a mesma é utilizada para que as pessoas tenham acesso aos bens em circulação, que

podem ser negócios, crenças ou literatura. A escola passa a ser um importante lugar para a

democratização da leitura, consequentemente se torna foco de políticas educacionais que

promovem programas de alfabetização em massa, patrocinadas pelo estado. Nesse sentido, percebe-se que no decorrer das últimas décadas as políticas

educacionais e de leitura vêm acompanhando as profundas transformações sociais e culturais

que ocorreram na sociedade. Atualmente, numa perspectiva mercadológica imposta pelo

capitalismo neoliberal e o processo de globalização, surge uma ideia de que informação é

imprescindível para o conhecimento, contribuindo com o crescimento do mercado editorial no

país. A leitura, embora muitas vezas seja submetida às regras do poder da política, numa

visão descontextualizada do processo cultural, é fundamental no processo de cidadania, pois

por meio do letramento é possível conviver mais efetivamente com as práticas sociais em que

a escrita está presente. A leitura, numa perspectiva de educação que para Freire não é neutra e

está relacionada ao poder da política de uma sociedade, é imprescindível na emancipação dos

sujeitos quando se torna crítica e contribui na reflexão sobre a literatura imposta pela elite

dominante e pelo mercado.Por fim, a leitura e o processo de letramento de forma crítica e emancipadora, no

espaço escolar, tornam-se possíveis quando os sujeitos são autores do seu conhecimento, e na

medida em que possam também participar do processo de escolha dos livros que irão ler. Esse

movimento deve incluir também toda a comunidade escolar, de modo a colaborar para a

circulação de novas ideias numa lógica diferente dessa que está imposta. Nesse processo de

escolha, em que prevalecem os saberes dos alunos, criados nos diversos contextos em que

vivem e aprendem, a seleção dos livros atenderia aos interesses dos principais envolvidos no

processo de aprendizagem e deixaria de atender o mercado editorial e os interesses do

mercado.

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