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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ramon Silva Chaves
Sombras negras: a imagem de autor em Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2014
PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ramon Silva Chaves
Sombras negras: a imagem de autor em Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE em
Língua Portuguesa sob orientação da Prof.
Dr. Jarbas Vargas Nascimento.
SÃO PAULO
2014
PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
RAMON SILVA CHAVES
SOMBRAS NEGRAS: A IMAGEM DE AUTOR EM
RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA
BARRETO.
SÃO PAULO
2014
PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
RAMON SILVA CHAVES
SOMBRAS NEGRAS: A IMAGEM DE AUTOR EM
RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA
BARRETO.
.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE em
Língua Portuguesa sob orientação do Prof.
Dr. Jarbas Vargas Nascimento.
SÃO PAULO
2014
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
Senhor de engenho
Eu sei bem quem você é
Sozinho, cê num guenta
Sozinho, cê num entra a pé.
Racionais Mc’s, Negro Drama.
Representou-se-me a luta daqueles heróis com os
Deuses, a sua teimosia em escalar o céu, a energia que
puseram em tão insensata empresa... Vi o quadro com
todas as cores e figuras... Abalei-me de emoção; achei
nessa atitude uma estranha grandeza, não sei que
fulgurante beleza que me tornou logo interiormente alegre
– tanto é verdade dizer-se que a beleza é uma promessa
de felicidade!
Lima Barreto, Recordações do Escrivão Isaías Caminha,
cap. VI
AGRADECIMENTOS
À vida, que de milagre em milagre, tem me apresentado a Deus
quotidianamente.
À minha mãe, que me instrui todos os dias e que me dá motivos para ser quem
sou.
A meu irmão, Anderson, que acreditou nessa pesquisa todos os dias.
Ao meu padrasto, Isaías, homem forte com o qual pude discutir pouco a pouco
todas as angústias de homem e de menino.
À Sheila, minha cunhada, parte integrante da minha família, que pode me fazer
rir nas longas horas de estudo.
Ao meu pai Venerando.
Ao meu orientador, Professor Dr. Jarbas Vargas Nascimento, homem
exemplar, na minha carreira, no meu ofício, em minha vida.
Aos membros do Grupo de Pesquisa, Memória e Cultura da Língua Portuguesa
Escrita no Brasil.
Aos meus alunos, que fizeram parte do meu crescimento.
À Profa. Dra. Izilda Maria Nardocci e à Profa. Dra. Paula Dias, pelas excelentes
contribuições para a minha pesquisa.
A toda comunidade do Sucupira, meu lugar de origem, que estimulou todas as
minhas iniciativas, ajudando-me a despir-me dos preconceitos.
Aos meus grandes amigos, em especial, Ricardo Celestino, Adilma Alencar,
Fábio Lana Nascimento, Silvia Costa, Carla França, que nunca se negaram de
me auxiliar, estando sempre ao meu lado.
À CAPES, pela bolsa de estudos.
DEDICATÓRIA
In memoriam de Domingos Durante.
RESUMO
Este trabalho está inserido nos postulados teórico-metodológicos da Análise de
Discurso de linha francesa e tem como tema o exame da Imagem de Autor em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Esse tema mostra-
se relevante, porque observaremos o discurso literário pela perspectiva
enunciativo-discursiva que aloca o Autor como sujeito que, enunciativamente,
projeta a própria imagem na polemicidade do discurso. Isso pode ser notado
pelo desvelamento das unidades tópicas e não tópicas que têm representação
extrínseca ao enunciado literário. Para tanto, tomaremos como base os
conceitos tratados por Maingueneau, tais como, o Autor e a Imagem de Autor,
Discurso Literário e cenografia. A análise proposta se alicerça em um
procedimento teórico-metodológico em que a cenografia institui as unidades
tópicas e não tópicas, que revelam no discurso literário selecionado, pela via
paratópica, uma Imagem de Autor. Nosso estudo identificou uma Imagem de
Autor que emerge enunciativa e discursivamente em Recordações do Escrivão
Isaías Caminha como uma sombra, que revela nuances de contratos, atos,
ações e formações discursivas do negro e mulato no final do século XIX e início
do século XX.
Palavras-Chave: Discurso, autor, cenografia, unidades tópicas e não tópicas.
ABSTRACT
This study is inserted in the theoretical and methodological postulates of the
discourse analysis in French lines and has as theme the exam of the image of
Author in Recordações do Escrivão Isaías Caminha by Lima Barreto. This
theme shows itself relevant because we observe the literary discourse by the
enunciative-dircursive perspective which allocates the Author as subject who,
inunciatively, projects his own image in the polemically of the discourse. It can
be noticed by the unveiling of the topical and non-topical units and that have
extrinsic representation to the literary enunciation. For this purpose, we will
build on the concepts attendant Maingueneau, such as the Author and The
Image of Author, Literary Discourse and scenography. The proposed analysis
founded itself in a theoretical and methodological procedure in which the
scenography established the topical and non-topical units, which reveal in the
selected literary discourse, by paratopic via, an Image of the Author.Our study
identified an Image of Author which emerges enunciative and discoursively in
Recordações do Escrivão Isaías Caminha as a shadow which reveals nuances
of contrasts, acts, actions and discoursive formations of black and mulatto from
the late nineteenth century and early twentieth century.
Keywords: Discourse, scenography, author, topical and non-topical units.
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................ 1
CAPÍTULO I SOMBRAS NEGRAS: A CONDIÇÃO PARATÓPICA DO DISCURSO
LITERÁRIO E A IMAGEM DE AUTOR ....................................................................... 4
1.1 O autor e sua imagem: ponto inicial .......................................................... 4
1.2 Uma Análise de Discurso .......................................................................... 5
1.3 O lugar e o não lugar: o discurso constituinte literário ............................ 11
1.4 As cenas enunciativas e os topismos do discurso literário ..................... 24
CAPÍTULO II OBJETO SOMBREADO: O EXTRÍNSECO AO DISCURSO
RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO .............. 30
2.1 A cenografia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha .................. 30
2.2 Um estudo das fronteiras ........................................................................ 33
2.3 Afonso Henriques de Lima Barreto: as práticas tópicas .......................... 35
2.3 A formação discursiva: racismo, prática não tópica ................................ 38
2.4 O cenário do final do século XIX e início do século XX: topismos. ......... 45
CAPÍTULO III A IMAGEM DE AUTOR: A CENOGRAFIA NA CONSTITUIÇÃO
PARATÓPICA DO DISCURSO LITERÁRIO ............................................................... 54
3.1 Procedimentos Metodológicos ................................................................ 54
3.2 A imagem de autor como sombra literária: análise do intrínseco em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha. .................................................. 57
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ........................................................................... 98
1
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Esta pesquisa se interessa pela imagem de autor em Recordações do Escrivão
Isaias Caminha, de Lima Barreto. Nosso principal objetivo é operacionalizar
uma análise pela via da cenografia capaz de identificar aspectos enunciativo-
discursivos, que revelem a emersão de uma imagem de autor consagrado na
história do enunciador de Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
Utilizaremos a abordagem teórico-metodológica da Análise de Discurso de
linha francesa, que é, em sua gênese interdisciplinar, amparando-nos na
Crítica Literária, História, Sociologia e Filosofia. Visamos, com isso, a sustentar
uma análise que observa o discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha
de maneira ampla, privilegiando uma perspectiva de análise orientada a partir
da enunciação. Desta maneira, o olhar pela Análise de Discurso (disciplina da
linguística que considera a complexidade enunciativa) está justificado pelo
aparato que nos fornece, para perceber, na enunciação, como nosso objeto de
análise reflete as condições sócio-históricas de produção, os sujeitos inseridos
naquela contemporaneidade, as implicações no campo político que
interpelavam os sujeitos e os fazeres enunciativos.
Recordações do Escrivão Isaias Caminha é um discurso literário publicado em
1909, em Portugal, foi considerado em sua contemporaneidade como uma
enunciação autobiográfica. Isso se deve ao fato de que tanto Lima Barreto,
quanto os registros históricos atribuídos à vida do enunciador desse discurso,
sejam muito parecidos. O principal traço desse entrelaçamento entre vida e
enunciação é a denúncia em relação ao racismo enraizado nas práticas
quotidianas. Nesse sentido, fica evidente a presença política, social e estética
do autor na enunciação literária, pois, diferentemente dos padrões estéticos de
maior prestígio no início do século XX, o discurso Recordações do Escrivão
Isaías Caminha tinha forte interlocução com as práticas do dia a dia e com as
experiências vividas pelo autor.
2
A identificação do discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha como
discurso autobiográfico acompanhou por muito tempo à crítica e, por
conseguinte, fez com que, por muito tempo, o valor literário daquele discurso
fosse equiparado a biografia de um homem que, insatisfeito com os problemas
causados pela cor, falou de si mesmo como um desabafo. No entanto, a
relação discurso biográfico e discurso literário nos permitirá observar
Recordações do Escrivão Isaías Caminha sob um olhar correlato, que se
debruça sobre o “dentro” e o “fora” da enunciação.
Selecionamos de Recordações do Escrivão Isaías Caminha vinte recortes, que
consideramos responsivos aos objetivos desta pesquisa, que examina a
categoria imagem de autor. A cenografia, no discurso literário, apresenta-se
como uma ancoragem entre o dentro e o fora da enunciação literária e, por
isso, evidencia-nos as formações discursivas que incidiam sobre negro no final
do século XIX e início do século XX no Brasil.
Nesse sentido, nossa meta é buscar uma concepção de cenografia, pois que
ela pode revelar, enunciativamente, comportamentos, ações, rotinas de sujeitos
localizados em um tempo e em um espaço. Assim, o sujeito que emerge na
cenografia corresponde ao enunciador do discurso, ou seja, seu autor e, além
disso, aquele que enuncia sobre o mundo que participa; por isso, constrói a
própria imagem e a imagem do mundo do qual participa.
A Análise de Discurso é uma disciplina sem fronteiras predelineadas; cabe ao
analista, a partir de uma opção metodológica, observar quais campos fazem
fronteira com seu objeto de análise e, a partir disso, apoiar-se em campos que
podem contribuir para a construção de efeitos de sentido possíveis,
materializados no discurso. Em nosso caso, optamos por uma pesquisa que,
em primeiro lugar se fundamenta em um arcabouço teórico-metodológico
enunciativo-discursivo, em razão dos objetivos desta pesquisa, e que, em
segundo plano, seleciona diferentes campos discursivos, que se integram à
enunciação literária de Recordações do Escrivão Isaías Caminha e com as
formações discursivas, que caracterizava o negro no Brasil no início do século
XX.
Deste modo, nossa pesquisa se organiza da seguinte maneira:
3
No primeiro capítulo, tratamos da categoria imagem de autor, conforme
proposta por Maingueneau (2006,2010). Seguiremos um percurso que visa a
abordar o percurso histórico da Análise de Discurso desde sua fundação, na
França, na década de 1960. Nessa etapa, ocupamo-nos, também, da união
interdisciplinar que formatou a Análise de Discurso como disciplina, partilhada
por estudiosos de diversas áreas. Esse aspecto inaugural da Análise do
discurso importa, na medida em que irá justificar o processo teórico-
metodológico sob o qual está basilada a pesquisa. Ainda nesta etapa,
desenvolvemos aspectos da literatura como discurso constituinte paratópico,
imagem de autor, e os topismos discursivos.
No segundo capítulo, tratamos, também, do arcabouço teórico-metodológico,
com a contribuição de pensadores de campos alheios à Análise de Discurso.
Partimos do pressuposto que o autor em Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto, se cristalizou como denunciante das condições às
quais estava submetido o homem negro no final do século XIX e início do
século XX. Organizamos o capítulo com o diálogo da História, da Sociologia e
da Crítica Literária sobre as condições sócio-históricas de produção do
discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha e sobre as condições do
negro em um período de transições políticas, marcado pela libertação dos
escravos, a república brasileira e o liberalismo.
No terceiro capítulo, por fim, de posse do arcabouço teórico-metodológico que
configurou as categorias de autor e de imagem de autor, como emergentes na
cenografia, dão-nos as condições de construção de uma análise
interdisciplinar. Neste sentido, nossa análise considera, na cenografia, as
unidades tópicas e não tópicas do discurso constituinte literário, para, nessas
unidades, notarmos as manifestações enunciativo-discursivas que dialogam
com o extrínseco enunciativo como parte integrante do discurso Recordações
do Escrivão Isaías Caminha.
4
CAPÍTULO I
SOMBRAS NEGRAS: A CONDIÇÃO PARATÓPICA DO DISCURSO
LITERÁRIO E A IMAGEM DE AUTOR
1.1 O autor e sua imagem: ponto inicial
O conceito de autor foi objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento,
tais como a Teoria Literária, a Filosofia e a Linguística. A Literatura, por muito
tempo, negou a necessidade de considerar o autor empírico na produção de
sentidos de um discurso, mas o postulado de Bakhtin (2010) a respeito de um
sujeito enunciador trouxe um novo olhar sobre este ponto. Além disso, outros
filósofos ofertaram à academia pesquisas sobre o conceito de autor. Foucault
(1997), em seu texto O que é um Autor? condicionou a categoria autor a uma
função exercida dentro e fora do discurso e pressupôs que o autor representa-
se a si dentro de sua própria enunciação.Não obstante, a proposta de Barthes
(2004) de que a condição do autor não teria espaço diante da condição de
leitor, o pesquisador propõe refletir sobre o princípio de que o autor é um
criador. Nesse sentido, o produto do objeto literário passa a ser pensado a
partir dos efeitos de sentido possíveis nos inúmeros contatos que a Literatura
tem com os leitores, deixando o pensamento advindo do século XVIII, quando a
literatura ganha forte apelo editorial e mercadológico (Chartier, 2012). Notamos
que as diversas posturas em relação à autoria, tanto da Literatura, quanto da
Filosofia, se alteram, na medida em que se alocam em relação ao discurso.
A análise de Discurso de linha francesa (a partir de agora AD), por ser
interdisciplinar, poderá nos oferecer subsídios necessários, para considerarmos
a dispersão das abordagens que observam o discurso literário no que tange à
formalização do conceito de autor, conforme Maingueneau (2010). Durante
este capítulo, trataremos do conceito de autor e de imagem de autor nas
perspectivas da AD, mais particularmente como proposto por Maingueneau.
Para o estudioso, não há autor sem Imagem, e essa imagem emerge
enunciativo-discursivamente do/no discurso, que é criado pelo autor, na medida
em que enuncia seu discurso. A imagem de autor, nesse sentido, é uma
5
espécie de sombra do autor, que se move de acordo com os movimentos de
seu enunciador, mesmo sem sê-lo.
Este capítulo destaca nossa opção pela AD, pois acreditarmos que esta
disciplina pode contribuir para instaurar a imagem de autor como um conceito
capaz de atualizar os efeitos de sentido em Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto por meio de dispositivos de análise, que
delinearemos doravante. Além disso, a constituição do arcabouço teórico-
metodológico da AD torna-se capaz de perceber a imagem de autor como
emergente do discurso literário, que não se localiza nem no fora, nem no
dentro enunciativo, mas que está na fronteira do discurso literário. Por outras
palavras, a imagem de autor localiza-se como sombra do enunciador, que
projeta na enunciação literária um mundo possível, partilhado por sujeitos, em
uma época e em um lugar.
O discurso Recordações do Escrivão Isaías Caminha, a partir de agora
Recordações, foi produzido no final do século XIX, publicado no início do
século XX, tornou-se reconhecido como opus representante do Pré-
modernismo brasileiro, porque rompia com os padrões estéticos do movimento
literário anterior, o Parnasianismo. Recordações representa em seu conteúdo a
vida de um jovem mulato inserido em uma sociedade escravocrata, retratando,
por conseguinte, temática controversa ao esperado para a literatura da época,
conforme salienta Bosi (2002). A seguir, expomos o percurso teórico-
metodológico que dará subsídio a nossa análise. Pretendemos, portanto,
explicitar os constituintes da AD, que nos ajudarão a responder às questões
direcionados pelos objetivos elencados para essa pesquisa.
1.2 Uma Análise de Discurso
A AD vem desde a década de 1960 se situando como uma disciplina da
Linguística, que observa os discursos como práticas sociais. Sem paternidade
definida, a AD surgiu de uma necessidade fixada na história da França, no
campo da pedagogia, em tornar os discentes leitores e produtores de textos
6
mais críticos e da possibilidade de diálogo com pensadores, que não eram
propriamente do campo da linguística, tais como Pêcheux e outros autores
ligados ao Estruturalismo, à Psicanálise e ao Marxismo. Essa
interdisciplinaridade possibilitou um olhar, em relação aos conteúdos discutidos
no campo escolar, menos recortado e, portanto, mais plural. Assim, a AD,
tornou-se uma disciplina capaz de fomentar a reflexão das práticas sociais,
tomando como objeto de estudo o discurso (em perspectivas mais recentes se
dirá interdiscurso, (Maingueneau 2010)). A AD parte do pressuposto de que o
texto é a materialização do discurso, o qual opera em sua relação enunciativa
uma série de eventos, que não são de ordem estritamente linguística, pois leva
em consideração outros territórios como a História, a Sociologia e a Psicologia.
Não podemos entender discurso apenas como um evento linguístico
organizado de acordo com a melhor opção lexical, porque os enunciados se
organizam nas relações que operam nos lugares em que estão e entre os
agentes que estão em contato durante a enunciação. Assim, pensar em
discurso é pensar na relação humana, que é histórica, social e psicológica,
para dizer o mínimo.
A AD se constitui como um território e está estabelecida por um arcabouço
teórico-metodológico bem delineado e, em certa medida, constituído. O fato de
pertencer a um território, a AD se aloca nos limites entre territórios, por outras
palavras, o arcabouço teórico-metodológico da AD é delineado pelo analista de
discurso, que constituirá um percurso de análise que melhor possa responder
aos objetivos de sua análise. Cabe ao analista, por conseguinte, perceber as
fronteiras as quais o discurso estudado se constitui e, a partir delas,
estabelecer o percurso teórico-metodológico que, com base na enunciação,
observe o discurso e relacione-o com outros.
Pensar que o discurso se aloca em zonas fronteiriças não é a mesma coisa
que pensar na noção de texto trabalhada sob perspectivas transfrásticas, como
acontece na Linguística Textual e na Semântica de textos (Paveau e Sarfati,
2006). Quando estudamos o texto nessas perspectivas, estamos falando do
universo estritamente textual, que não leva em consideração elementos
sociais, históricos, não-verbais e os sujeitos que tornam o texto possível. A AD
considera o texto como produto enunciativo situado em um tempo histórico, por
7
sujeitos que têm relação direta com esse momento. Ela se interessa pelo
discurso, situa-o como evento social, não deixa, portanto, de relacionar os
sujeitos em sua complexidade ao texto propriamente dito. Não interessa à AD a
distinção entre texto e discurso, mas o discurso materializado na prática
textual, que não tem condição de ser observada por uma única via. A
linguagem é o próprio discurso, porque é por meio da linguagem que a relação
entre os homens se torna sustentável.
Desse modo, não se pode pensar na ideia de discurso, reduzindo-o apenas a
materialização dos códigos linguísticos que constroem o texto, pois o discurso
é a relação construída entre linguagem e sociedade. Pensar na ideia de
discurso é pensar na ideia de relação. Fora da relação, fora da sociedade e,
fora da sociedade, não há discurso.
O discurso é construído na sociedade, em um período, em uma circunstância,
por uma autoridade concebida como autor (em sentido lato) que é o “EU”,
porta-voz da enunciação, que se mantém fixo a uma concepção ideológica, ou
como prefere Maingueneau (2008), por uma formação discursiva. Todas essas
parcelas de construção do discurso são intrínsecas e simultâneas, acontecem
na enunciação, no processo enunciativo de interação.
A sociedade exerce uma importante função no processo enunciativo, porque a
enunciação não acontece de maneira caótica, sem estar ligada a outras
enunciações anteriores. O discurso não acontece de maneira nova todas as
vezes que é utilizado em um ambiente de interação, há relações “relativamente
estáveis (BAKHTIN, 2003), que se repetem, e para essas relações
relativamente estáveis, usamos, tanto quanto, gêneros do discurso
relativamente estáveis.
Não podemos desconsiderar o fato de que toda enunciação acontece baseada
em um universo de outras enunciações, há, portanto, a inextricável presença
de Outro em toda dada enunciação. Essa presença pode ser notada por níveis
de heterogeneidade, ou seja, imbricação de outras enunciações a uma posta;
um nível de heterogeneidade mostrada e outro constitutiva. (Maingueneau,
2008b).
8
A heterogeneidade mostrada pertence à presença de Outro na enunciação que
pode ser localizada por aparelhos linguísticos, por meio de aspas, discurso
direto, referências a outros discursos. É comum encontrarmos a presença de
Outro na enunciação de um discurso por esse primeiro nível de
heterogeneidade, contudo, quando se trata do nível constitutivo de
heterogeneidade, não poderíamos circular sua presença por aparelhos
linguísticos. Em uma dada enunciação, podemos perceber a heterogeneidade
mostrada, mas é impossível perceber a constitutiva, pois, essa última, se dá de
maneira intrínseca à enunciação.
Não se pode dizer por quantas presenças se constituem uma dada enunciação,
se há um ou muitos Outro(s) histórico(s), sociológico(s), psicológico(s), ainda
mais especificamente, se esse Outro é uma marca autoral, ou de uma
comunidade, ou de um tempo histórico. A heterogeneidade constitutiva,
inerente a toda enunciação dada, é que torna possível a noção de
interdiscurso, superando a noção de discurso, e dando a AD seu verdadeiro
objeto, escopo de seu universo de interesse. A AD, enquanto disciplina
linguística, apoia-se em diferentes territórios da ciência, como a Psicologia, a
Psicanálise, a História, a Sociologia, entre outras, para examinar seu objeto de
estudo, considera a impossibilidade de um discurso ter uma única fonte
geradora e que não esteja pautada no primado do interdiscurso, categoria
constitutiva de toda prática social. Funda-se, assim, a interdiscursividade, ponto
basilar para a AD francófona que vem se desdobrando no Brasil.
O discurso passa a ser, sob esse ponto de vista, uma marca histórica, que tem
um conjunto finito de formações discursivas e constroem um Eu enunciador
pertencente a um tempo. A esse conjunto finito de formações discursivas, mas
impossível de ser delineado, chamamos de universo discursivo (Maingueneau,
2008a). O universo discursivo é uma zona ampla de suposição, e cabe ao
analista de discurso delimitar esse vasto espaço de restrições a um campo
mais restrito, ou seja, direcionar seu olhar a uma dada enunciação para um
sistema de restrições específico diante das formações discursivas possíveis de
terem relação direta ou indireta com esta dada enunciação.
9
A partir das possibilidades de um universo discursivo, encontraremos campos
onde as formações discursivas se agruparam de forma a obterem certo tipo de
concorrência. Assim, se organizarem em favor umas das outras ou em
oposição umas às outras em favor de uma mesma função social, teremos
então, o campo pedagógico, filosófico, dramatúrgico (Maingueneau, 2008b).
O campo discursivo pode ser delineado, pois o agrupamento de formações
discursivas obedece a um processo lógico de construção, que está diretamente
ligado à enunciação, assim, à sua função social. Contudo, de pouco vale ao
analista de discurso preocupar-se com um “ambiente” discursivo
demasiadamente vasto, além de exaustivo; seria inapropriada uma pesquisa
que debruçasse a esse intento, pois não conseguiria dar cabo aos próprios
objetivos.
É mais apropriado que o analista de discurso isole – de acordo com seus
interesses – dentro do campo discursivo um espaço que possa ser observado
de maneira privilegiada pelo aparato que dispõe. Um espaço cujas formações
discursivas concorram de maneira simples de serem associadas às suas
funções sócias; como, por exemplo, o campo pedagógico, o espaço escola, ou
o espaço secretaria, entre outros. Trata-se de pensar em interdiscurso como
confirmação de que o discurso acontece por meio de raízes criadas na
comunicação do homem e pelo que o homem construiu em sociedade como
possibilidade. Todo discurso enunciado é possível.
O texto tem de ser observado como acontecimento. Não se trata de pôr em
relação dois paradigmas como se fossem distintos, em se tratando de texto e
discurso, mas relacioná-los. A AD propõe uma percepção discursiva do texto,
que o perceba como acontecimento social, que pode ser concebido pelo olhar
do analista de discurso, a partir, caso seja de seu interesse, também de
concepções linguísticas e de enunciação. Assim, podemos entender que os
textos –como acontecimentos sociais - são discursos que têm ocorrência
relativamente estável, pois toda enunciação acontece, também, de maneira
relativamente estável (Bakthin, 2003:236).
Nesse sentido, toda enunciação é portadora de um nome: “panfleto”, “carta”,
“redação de vestibular”, e essa nomeação obedece a critérios heterogêneos de
10
nomeação, por exemplo, panfleto e carta estão relacionados às práticas sociais
distintas com funções sociais distintas; enquanto esta tem a função de
comunicar pessoas de diferentes localidades ou informar a respeito de trâmite
bancário, ou imposto, aquele tem a finalidade de informar a respeito de um
produto, e assim construir uma relação comercial. A redação escolar está
ligada à prática de um universo muito restrito: a escola. Podemos ainda pensar
em uma carta de publicidade e em uma infinidade de gêneros, que nascem de
distintas necessidades geradas socialmente.
Os gêneros, contudo, não existem como esqueletos textuais empregados
diante de uma necessidade de enunciação, mas são construídos
historicamente por enunciadores que veem surgir em variados ambientes
enunciativos novas maneiras de enunciação e novas necessidades
enunciativas. Os gêneros de discurso estão aglutinados a setores da atividade
social (Maingueneau, 2004), ou seja, dentro do setor escola, podemos
encontrar o panfleto, a carta e a redação escolar para citarmos poucos
exemplos.
As formas de organização, cujas inscrições na memória perpassam as
condições de produção da coletividade e, pelas quais se reconhecem lugares
sociais e posicionamentos, são setores da atividade social em que os gêneros
do discurso se manifestam. Nesses “ambientes”, pelos quais vastos números
de gêneros circulam, a AD chama de tipos de discurso. Os tipos de discurso
abraçam uma variedade inestimável de gêneros do discurso, e, embora sejam
concebidos historicamente como gêneros, possuem um caráter menos volátil
em relação ao tempo.
Os tipos de discurso possibilitam a circulação de atos de enunciação que
obedecem às condições de êxito (Maingueneau, 2006), por outras palavras,
quando temos que dar uma opinião incisiva a alguém que nos avaliará em um
ambiente escolar, escrevemos um texto curto, de algumas linhas de sequência
textual argumentativo-dissertativa, e a essa condição de produção enunciativa
dá-se o nome de redação escolar; contudo, há gêneros que estão
estandardizados socialmente, como a missa, a tese, a aula.
11
Um gênero do discurso não é uma unidade que está completamente
distinguida e construída, se não o conceito bakthiniano “relativamente estáveis”
não faria sentido. Os gêneros são concebidos por finalidades reconhecidas, por
estatutos de parceiros legítimos, por lugar e momentos legítimos, um suporte
material e uma organização textual, (Maingueneau: 2004). O suporte material
“jornal”, por exemplo, pode “trazer” o gênero “tirinha” e o gênero “coluna”. Os
parceiros legítimos de uma “transmissão de futebol” podem no final da partida
ter uma “conversa formal”.
Os gêneros do discurso estão em todas as atividades sociais de comunicação,
e em todas as instituições sociais, como a religião, a ciência e a literatura e
servem a essas instituições de maneira relevante. Contudo, podemos notar que
o gênero do discurso carta, por exemplo, pode aparecer em territórios
institucionais variados, como o religioso e o literário, conquanto sirva a cada um
de maneira singular. Percebemos, assim, que há níveis dentro de uma mesma
enunciação; no exemplo citado, o discurso literário aparece em um “nível”
acima do gênero carta. Não se pode considerar a “carta” e a “literatura” sobre o
mesmo patamar, pois a segunda serve a primeira como fonte geradora.
A literatura é assim uma “forma” enunciativa maior, e envolve múltiplos gêneros
do discurso que modificam suas especificidades dentro da manifestação
enunciativo-discursiva literária. Desta maneira, não podemos conceber a
literatura como um gênero do discurso, pois ela é fonte geradora de gêneros do
discurso. Entretanto, também não se pode conceber a literatura como
instituição, como a escola, ou um hospital. É problemático, ainda, dizer que a
literatura é uma representação ideológica, como seria, por exemplo, o discurso
capitalista, ou comunista. Cabe, então, delinear o que, para a AD, se pode
considerar o discurso literário.
1.3 O lugar e o não lugar: o discurso constituinte literário
O discurso literário é um acontecimento social, portanto, um discurso que tem,
segundo o arcabouço teórico-metodológico da AD, um desvelamento
12
profundamente relacionado à época, lugar e relações autorais que os sujeitos
componentes desse discurso mantiveram no ato de produção discursiva. Além
disso, o discurso literário não é um discurso que pode ser percebido apenas
como uma bolha que é preenchida por diversos gêneros do discurso que, de
uma maneira simples, irão representar o mundo. Mas uma manifestação da
linguagem, capaz de estar diretamente relacionada com o mundo em que está,
mesmo sem pertencer a ele, de fato. Essa dupla possibilidade – estar e não-
estar- é condição do discurso literário e parte do que se pode considerar
próprio dos discursos constituintes1.
Uma análise da “constituição” dos discursos constituintes deve assim
se ater a mostrar a articulação entre o interdiscursivo e o discursivo, a
imbricação entre uma representação do mundo e uma atividade
enunciativa. Esses discursos representam o mundo, mas suas
enunciações são parte integrante do mundo que eles representam,
elas são inseparáveis da maneira pela qual geram sua própria
emergência, o acontecimento de fala que elas instituem
.(MAINGUENEAU,2008:40).
Quando um discurso toma um potencial literário, quando uma “carta” , por
exemplo, torna-se literária, ou seja, quando a forma predomina em detrimento à
função? (Bourdier 1996: 321). A questão feita pelo filósofo Bourdier nos
interessa, na medida em que reflete sobre como a literatura tem acesso “aos
leitores”. Quando temos contato com uma obra da literatura, o contato se dá
pelo reconhecimento do gênero do discurso que é encenado, como
possibilidade e como necessidade dessa mesma enunciação (Maingueneau
2006). A literatura tem uma função geradora, e constitui-se como um discurso
“acima” do discurso mostrado. Embora, no caso citado, exista uma carta
aparentemente, existe um processo criado socialmente que a faz literária. A
literatura tem, portanto, uma fundação anterior ao gênero enunciado.
A literatura é considerada um campo primeiro, pois outros discursos decorrem
de sua constituência.
1 Nosso interesse é o discurso literário, contudo, há outros discursos constituintes trabalhados por
Dominique Maingueneau, especialmente nas obras “Gênese do Discurso” de 2008, e “Cenas da Enunciação” de 2008.
13
A pretensão desses discursos, assim chamados por nós de “
constituintes”, é de não reconhecer outra autoridade além da sua
própria, de não admitir quaisquer outros discursos acima deles. Isso
não significa que as diversas outras zonas de produção verbal ( a
conversação, a imprensa, os documentos administrativos etc.) não
exerçam sobre eles; bem ao contrário, existe uma interação
constante entre discursos constituintes e não constituintes, assim
como entre discursos constituintes e discursos constituintes. Mas faz
parte da natureza dos discursos constituintes negar essa interação ou
pretender submetê-la a seus princípios. (MAINGUENEAU 2008b:37.)
Esses discursos autorizam a si mesmos, uma categoria que, embora aceite a
existência de outros discursos, tenta submeter o “Outro” às próprias condições
de produção. A visualização fica clara, se deixarmos o discurso constituinte da
literatura, e partirmos, rapidamente, para a oposição lógica entre o discurso
constituinte científico, e o discurso constituinte religioso: muito embora ambos
se aceitem, nem um, nem o outro, poderá apropriar-se de princípios e
procedimentos do outro, porque seria negar os próprios fundamentos.
Sendo assim, os discursos constituintes são auto e hétero constituintes,
(Maingueneau 2000,2008), Ou seja, eles se validam a si mesmos dentro do
interdiscurso, não aceitando intervenção de outros discursos constituintes. Isso
é possível pela associação de um lugar a um corpo de enunciadores
consagrados e uma gestão na memória.
O discurso constituinte submete toda manifestação enunciativa às próprias
regras de imersão no interdiscurso. Não se pode construir uma tese, sendo ela
própria do discurso constituinte científico, em forma de romance, pois isso não
seria socialmente aceito, e sua representação morreria antes de construir
qualquer tipo de relação.
Os discursos constituintes mobilizam o que se poderia chamar de
archéion da produção verbal de uma sociedade. Esse termo grego,
étimo do latino archivum, apresenta polissemia interessante para
nossa perspectiva: ligado a arché, “fonte”, “princípio”, e a partir daí
“mandamento”, “poder”, o archéion é a sede da autoridade, um
palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas também os
arquivos públicos. (MAINGUENEAU 2008a:37)
14
Existem em sociedade espaços que podem ser facilmente reconhecidos como
aglutinadores de gêneros do discurso; uma redação de jornal, por exemplo, irá
aglutinar gêneros do discurso de sua esfera composicional, segundo
Maingueneau (2008) e pode-se tratar de tipos de discurso relacionados a
certos setores da atividade social. O discurso constituinte literário não existe
em função dos tipos de discurso, contudo cria em sua enunciação
representações dos tipos do discurso, simulando suas rotinas, construindo em
sua enunciação práticas de um mundo possível. Esse aspecto do discurso
constituinte literário nos permite considerar que esses territórios, os tipos de
discurso, são aglutinadores de gêneros que estarão em sua esfera, e ainda que
alguns gêneros sirvam a esses territórios de maneira recíproca, a esses
espaços considera-se a definição de topismos enunciativo-discursivos.
Os topismos enunciativo-discursivos têm, em parte, uma representação
linguística, correspondem a atividades extratextuais. Assim, observar as
unidades tópicas no discurso literário é como observar dois polos de um
mesmo objeto. O discurso literário envolve a prática quotidiana à atividade
linguística. De um lado, temos as rotinas do escritor ou produtor do texto
literário, que se relaciona com os pares de sua vida integrada à sociedade. Do
outro, temos a manifestação enunciativa da participação desse escritor com a
própria integração social. Nessa integração fronteiriça, aloca-se uma condição
do discurso constituinte, a paratopia (Maingueneau, 2006).
A enunciação paratópica do discurso literário olha para dois polos que se
integram; o “fora” e o “dentro” enunciativo. Contudo, quando se pensa na ideia
de paratopia não se trata de pensar no “fora” e no “dentro” isoladamente, sem
correspondência entre si, mas no atrito entre esses dois “espaços”, que se
percebe como a paratopia literária.
O olhar sobre a paratopia revela que, no discurso literário, as formas de
representação se integram, associando o “fora” e o “dentro” como unidades
discursivo-enunciativas que representam atividades reconhecidas socialmente.
Esse terreno encarado frente a frente pelo leitor no contato com a literatura é
chamado de topismo (Maingueneau 2007). Esses topismos são unidades que
interessam à pesquisa que se debruça sobre o discurso literário, porque
15
revelam a condição paratópica do discurso literário, sem desprezar o “fora” e o
“dentro” enunciativo-discursivo, mas mostrando como a fronteira da enunciação
literária constituiu a si mesma como fonte de existência e possibilidade. Desta
maneira, estudar por uma análise que aponte para os topismos literários
significará localizar, de maneira analítica, um posicionamento na matriz da AD
em relação ao discurso literário, que se debruça sobre sua condição
paratópica.
A literatura não encontra em si um lugar de existência. Tem, em sua
enunciação, a própria necessidade enunciativa, que, da mesma maneira que
pertence ao mundo, não é o mundo. Dessa percepção, emerge uma imagem
que se acopla ao discurso literário como agente e paciente: o autor. O autor é
fonte enunciativa que pode sustentar o discurso literário, na mesma medida em
que é sustentado por ele. Desta maneira, é o autor uma representação
enunciativo-discursiva do enunciador. É o autor uma instancia que emerge do
discurso como uma imagem e essa imagem de autor tem de representar o
discurso enunciado como fonte fundadora. O discurso projeta, por conseguinte,
uma imagem de autor que o sustenta. Vemos, deste modo, no discurso literário
uma imagem de autor que é uma sombra do enunciador literário.
1.3 As sombras: a imagem de autor no discurso constituinte literário
Na confluência entre o “dentro” e o “fora” da enunciação literária está a
condição paratópica. Essa condição é a possibilidade geradora e mantenedora
do discurso literário. Desse espaço fronteiriço emerge uma imagem que liga a
materialidade do discurso literário a uma realidade extrínseca ao texto. Ou seja,
uma categoria que enquadra o discurso literário em uma possibilidade de
existência em um lugar, em um espaço, em um registro, em meio às condições
sócio-históricas de produção, em manifestações da linguagem, entre outros. É
assim a categoria do autor (Maingueneau, 2010), que sustenta e é sustentada
pela enunciação literária, cuja responsabilidade lhe pertence. O autor constrói
discursivamente a cena da própria vida, sem pertencer à cena literária.
16
O autor é fruto da enunciação literária, pois a tradição dos estudos da crítica
literária assim revela: não existe autor sem opus. Só podemos pensar em um
autor, quando o associamos a uma imagem criadora a um opus de sua própria
responsabilidade. Desta maneira, o autor é condição da sua própria criação.
Existem autores que não estão relacionados a grandes opus literários; não são
referência e, por isso, negados por alguns, negligenciados por outros, quem
sabe, esquecidos. Cabe pensar se a condição de autor nesses níveis “
inferiores” não foi alcançada pela ausência do prestígio do opus literário, ou do
próprio autor2.
Quando pensamos em “autor”, também estamos pensando em discursos que
suportam autoralidade, por outras palavras, quando estamos tratando do
conceito de autor, também estamos tratando do conceito de gênero do
discurso, pois se todo gênero do discurso possui algum enunciador, não são
todos os gêneros que possuem um autor, (Maingueneau, 2010).
Evidentemente, quando nos direcionamos a autor de um bilhete e autor de um
discurso literário, estamos falando de autor em dimensões diferentes, mas, nas
duas situações, estamos falando de sujeito com o foco na enunciação. Se
considerarmos que todo enunciado só pode ser enunciado, pois já foi
executado em ocasiões anteriores e que, por representarem sua presença na
memória da coletividade, estaremos desconsiderando que são os sujeitos
enunciadores que representam a si mesmos, ora mais, ora menos, em
enunciados novos capazes de dizer o novo de maneira nova.
O estudo do autor conflui com o estudo do sujeito, porque são os autores, para
a AD, aqueles que representam a si no “dentro” e no “fora” da enunciação,
aqueles cujos enunciados trazem marcas sociais, textuais e da memória da
coletividade e que se consagram pela produção de gêneros são auto e hétero
constituintes (Maingueneau 2010). Grosso modo, a noção de autor parece ora
privilegiar a criação, ora a existência empírica. A perspectiva da AD, contudo,
marca-se na indistinção e na confluência desses “lugares” do discurso literário.
Por conseguinte, o trabalho da AD na investigação do autor, considera que o
discurso que tem autoralidade é aquele que se registra por discursos que
2 Essa reflexão será expandida na página 22 quando refletirmos sobre a questão da condição
do discurso literário na validação social
17
tenham unidades linguísticas, territoriais e formações discursivas.3 marcadas
interdiscursivamente.
Pensar que o discurso literário é orquestrado por unidades pode parecer
embaraçoso a princípio, pois esse pensamento tende a fazer pensar que as
unidades compõem o discurso como peças de tetrix e que, por isso, podemos
dissecar o discurso como partes de um todo. Esse pensamento só está correto
em certa medida, pois o estudo sobre os “topismos” do discurso só pode ser
considerado, se estivermos pautados pelo interdiscurso. Então, só podemos
desmembrar o discurso, considerando o olhar do analista que direciona esse
desmembramento. Não podemos imaginar, porém, que esse desmembramento
seja intuitivo, pois o analista do discurso tem de estar orquestrado pela
possibilidade enunciativa que o próprio discurso sugere. No caso do discurso
literário, a imagem de autor é fonte norteadora, pois “fixa” a enunciação em um
tempo e em um espaço, esclarecendo possíveis formas de vida,
comportamentos e, desta maneira, instruindo o olhar analítico para as
condições sócio-históricas de produção, sob as quais estava o autor e os
sujeitos que são objetos reprodutores da sombra que é a literatura.
A consagração de determinada imagem, como a de um autor, pressupõe
evidentemente, uma obra, ou um corpus que se possa considerar de autor. De
acordo com o dicionário de língua portuguesa Houaiss, autor é
\ô\ s.m 1 Aquele que causa algo; agente (desse fato feliz) 2 escritor 3
inventor, descobridor (a. da bomba atômica) 4DIR quem pratica um
delito 5 DIR quem inicia um processo judicial ( autoria s.f HOUAISS
2004).
A primeira dimensão de autor em Houaiss parece aquela que vimos explorando
ao longo deste capítulo, a de que o autor está relacionado a um opus, no caso “
aquele que causa algo”. Contudo, os outros conceitos dados pelo dicionário
ainda podem nos trazer, em certa medida, curiosidade. O segundo conceito,
situa o autor como escritor. Essa perspectiva não é nova e parece a mesma em
que Foucault (1977), que a entende como função-autor. Não estamos
3A expressão formação discursiva foi explorada por Pêcheux e por Foucault, mas é sob a perspectiva de
Maingueneau, que trata a noção como unidades tópicas e não tópicas, que nos parece ser mais claro o conceito e, por isso, a nossa fonte de filiação.
18
relacionando a postura do dicionário a do filósofo, mas optando por um olhar
acerca do dito. Embora Foucault relacione autor também à fala, essa relação é
apagada ao longo do texto e passa a privilegiar, quase que totalmente, a
escrita, ou ao que ele considera “à prática de escrita” (Foucault 1977:06).
A AD também percebe a dimensão escrita como a mais fortuita na emersão da
imagem de autor. Os gêneros de discurso da esfera oral, grosso modo, não
trazem a emersão de imagens de autor, por conta do dinamismo com o qual
circulam. Isso talvez justifique o fato de que a palavra autor, – quando se trata
de literatura – seja tratada como sinônimo da palavra escritor.
O terceiro e o quarto pontos trabalhados por Houaiss esclarecem a relação do
autor com uma instância comercial, ou seja, como aquele que produziu algo e
que pode ser beneficiado, economicamente, por exemplo, pelo fruto de sua
produção, ou pelo ônus jurídico de um ato criminoso. Essas duas abordagens
são correlacionadas e foram exploradas por Roger Chartier (2012:37), que
considera a ideia bipartida (aquele que ganha ou aquele que perde algo) de
autor, advinda do século XVI ou XVII, quando houve uma ligação
há de fato uma ligação estabelecida entre a “função autor” e o direito
de vigiar, censurar, julgar e punir, exercido por uma autoridade ou um
poder. [...] ]fica evidente que tal mecanismo censor referido é anterior
ao momento da definição jurídica de uma propriedade, o que levava o
leitor ou auditor da conferência de Foucault4 ao momento em que os
Estados ou as igrejas dotaram-se desse poder de vigiar e punir os
autores e os textos transgressores [...]
O conceito de autor não pode ser desatrelado do produto de um autor. Só se
pode consagrar autor aquele que produz algo, ou alguma coisa, como vimos no
verbete acima. Entretanto não são todos os gêneros do discurso que são
passíveis de se considerar um autor; uma conversa, por exemplo não tem nela
desvelada uma autoria.
Tratando-se de literatura há um problema de posicionamento de autor. O
discurso literário tem que ser parte da sociedade que está relacionado, sem
contudo, pertencer a essa sociedade, o que nos possibilitou pensar na
4 Chartier revisa em seu texto a conferência de Michel Foucault, e, neste ponto, usa a
conferência como exemplo.
19
metáfora da “sombra”. Por isso, quem produz uma obra literária é alguém que
não tem um lugar/ uma razão de ser (nos dois sentidos da locução) e que deve
construir o território por meio dessa mesma falha, (Maingueneau 2006.)
Nota-se que a sagração de um autor não é concomitante à obra que ele criou;
desta maneira, esse é um processo complexo de criação, pois em se tratando
de discurso literário, em qual momento determinado o objeto se torna
literatura? O autor de literatura assume uma posição complexa, porque a
produção literária não é um campo que gera uma instituição comum, não há
um ofício garantido na produção autoral; por exemplo, em que momento se
processa a autoria? No ato de enunciação? Não poderíamos considerar isso
como verdade, pois não é a enunciação literária, somente, que torna um
discurso literário, mas o reconhecimento de um discurso como literário, por
uma instituição que pode ser a academia, ou como um grupo que valide
determinado discurso como literário. Assim ,
o campo literário e artístico atrai e acolhe agentes muito diferentes
entre si por suas propriedades e suas disposições, portanto, por suas
ambições, e com frequência bastante providos de confiança e de
segurança para recusar contentar-se com uma carreira de
universitário ou de funcionário e para enfrentar os riscos dessa
profissão que não é profissão. (BOURDIEU 1996:256.)
Ainda, nas palavras de Maingueneau(2006:90): uma das condições do discurso
literário é o pertencimento a um espaço privilegiado, que tem agentes de
validação,
Esse espaço é uma rede de aparelhos em que os indivíduos podem
constituir-se em escritores ou público, em que são garantidos e
estabilizados os contratos genéricos considerados literários, em que
intervém mediadores (editores, livrarias...) intérpretes ou avaliadores
legítimos (críticos, professores...) , cânons ( que podem assumir a
forma de manuais, antologias...)
A condição de ser autor nasce da relação lógica de “autor de”. A autoria se
justifica por aquilo que ela produz: o autor de uma carta, de um panfleto, de um
discurso. Sabemos, entretanto, que não são todos os gêneros do discurso que
possuem as condições ideais para a autoria. Uma anedota ou uma conversa
20
têm em si muitos autores possíveis, pois seu dinamismo tornaria pouco
consistente algum estudo que tentasse desvelar desses gêneros seus
respectivos autores.
A literatura se manifesta, grosso modo, na esfera escrita. Dessa maneira, tem
como ser cristalizada na memória da coletividade. Isso facilita a emersão de
uma imagem de autor, mesmo sendo o Autor uma figura incontornável que tem
relação direta com um tempo e com um espaço (Maingueneau 2010). O
discurso que “viaja” no tempo tem maior chance de, um dia, validar-se como
literário e fazer emergir de si, uma imagem de Autor.
Para podermos considerar que uma figura deixe de ser autor de para tornar-se
Autor apenas, referência em um discurso literário que o desvela, um olhar
torna-se essencial: a qualidade que determinado “produto” do autor tem, pois
como pensa Bourdier (1996), a obra de arte se valida socialmente e não pela
predisposição de um autor em torná-la arte, e por isso, torna-se seu próprio
autor. Assim, para notarmos a figura potencial de autor em um discurso
literário, é necessário notarmos a validade que o discurso atingiu na sociedade
em que se circunscreve.
Existe um número muito restrito que atinge uma categoria máxima de autor,
aquele que se torna correlato de uma obra ou um Opus de produção.
Poderíamos ainda considerar duas outras dimensões na emergência de um
autor: uma primeira superficial em que o autor se torna apenas responsável
pelo dizer, e a segunda, o autor que se torna ator de sua produção enunciativa.
Essa segunda categoria entra em concorrência com outras como: “escritor”,
“homem de letras”, “literato”, “artista”, “intelectual”( Maingueneau 2010).
Essas duas categorias são as de mais simples apreensão, pois se trata de “dar
ao discurso” uma referência de criador. A primeira dimensão, que Maingueneau
(2010) nomeia como “autor-garante”, é aquela destinada a qualquer
enunciação dada, como um bilhete, um cartaz, um teste escolar. Vemos que,
embora muito superficial, essa dimensão ainda dependerá do gênero a que se
21
circunscreve, pois não se atribuirá um autor-garante5 a uma aula, a menos que
essa aula atinja um estatuto diferenciado.
A segunda dimensão, autor-ator, é aquele que está associado ao universo das
produções escritas propriamente ditas, e, ainda, que se relacione à ideia de
literatura. Podemos tratar assim de um editor que reúne sob uma publicação
diversos poemas ou contos. Citemos, como exemplo, autores de biografias e
autores de textos, que não se consagram socialmente como um opus literário,
aqueles cuja obra se condensou, de maneira a trazer a ideia de unidade.
Percebe-se que não existe uma autoria plena, digna de autoridade e que ainda
não tenha dispersão, que seja autovalidada. É evidente que alguém que produz
um texto é um autor em potencial, entretanto, sua autoria plena será concebida
socialmente pela validação que sua enunciação atinge no espaço social que se
circunscreve. Assim, será “autor” efetivo, fonte de “autoridade”, apenas se
terceiros falam dele, contribuem para modelar uma “imagem de autor dele”
(Maingueneau 2010).
Dessa maneira, o autor precisa que outros, em especial figuras também
validadas socialmente, dirijam-se a ele e a seu opus como de prestígio. O Autor
de referência é aquele em que outros se dirigem a ele com admiração ou
consternação, aquele cuja obra é mencionada como compacta o suficiente
para ter uma “fonte” representante. Essa fonte representante se manifesta
dentro e fora da enunciação, ou seja, tem uma validade socialmente e na
mesma medida que essa imagem pode ser reconhecida no enunciado.
Essa última dimensão da ideia de autor, a que vimos chamando Autor de
referência é trabalhada por Maingueneau (2010, 20110 ) como Auctor6. Esse
termo é utilizado para revelar autores, que se consagraram socialmente por
uma produção literária, aos quais são atribuídas imagens de autor. O que nos
parece interessante explorar.
5 Gêneros do discurso como a aula, por exemplo, são entrecortados por uma rede enunciativa
muito dispersa. O conceito de polifonia (BAHHTIN, 2003) seria mais preciso para perceber as “vozes” se manifestam como autores na enunciação de uma aula. Ser autor de um gênero de caráter tão disperso só pode acontecer em circunstâncias muito peculiares.
6 Aqui trabalharemos esse conceito como o correlato à enunciação em Recordações do
Escrivão Isaías Caminha, sem, contudo, alterar a grafia da palavra: autor.
22
A imagem de autor está filiada a um nome de autor. Embora pareçam figuras
indissociáveis – nome e imagem -, não são. Há exemplo de produtores que
constroem opus literários para imagens alheias, os ghost writers7 . Além disso,
se pensarmos nos heterônimos, a imagem de autor se distingue do enunciador
empírico, por outras palavras, o nome que representava o opus literário não é
um sujeito jurídico. A imagem de autor é uma representação extraída na
enunciação literária. Está, só em partes, filiada ao produtor empírico do
enunciado. Ela tem que sustentar e ser sustentada pelo que é enunciado, a
partir das formações discursivas cuja obra se circunscreve.
A enunciação literária é parte integrante de um tempo e um espaço
(Maingueneau, 2006). Essa integração pode ser percebida pela representação
de cenografias8 que, de uma maneira ou de outra, são representativas do que
a sociedade projeta para uma vida possível de um autor. Contudo, existem
enunciações literárias que não foram “entendidas” pela rede de aparelhos
como opus capazes de serem consagrados como “obra literária”. Assim, a
imagem de autor se filia diretamente à condição paratópica do discurso
constituinte literário, instaurando-se no lugar e no não-lugar da paratopia, pois
são nesses lugares que ocorrem verdadeiramente as relações entre o escritor
e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade (MAINGUENEAU,
op.cit.: 94).
Essa dupla face da existência de um autor, nome e imagem têm de conseguir
ser responsável pelo o que se enuncia no discurso, ou seja, a imagem de autor
tem de ser relacionado a um rito de produção, não poderíamos pensar em um
autor de textos de vertente comunista que se comportasse como um rei. A esse
processo se dá o nome de ritos genéticos, que
constituem, na verdade, o único aspecto da criação que ele pode
controlar, a única maneira de conjurar o aspecto do fracasso. Em
matéria de criação, o êxito é profundamente incerto: como se
assegura de que se fez uma obra de valor quando nem mesmo a
aprovação do público imediato é um critério seguro? Não resta ao
7 Na tradução literal “escritor fantasma”. O termo se reporta aos escritores que são pagos para
escrever para outras pessoas, que serão “autores” dos textos escritos pelos ghost writers. 8 A questão sobre a cenografia será discutida na página 24.
23
autor senão multiplicar os gestos conjuradores, mostrar a si mesmo e
ao público os sinais de sua legitimidade. (MAINGUENEAU 2006:156)
O autor, assim, se constitui por dois aspectos intrínsecos; representar em vida
uma imagem que será desvelada no discurso literário, e regular o discurso de
maneira que desvele nele uma imagem que possa ser sustentada. Assim, cabe
propor que fundamentos, além da questão de gênero, unidades tópicas e
formações discursivas, fariam um discurso se tornar opus literário que garanta
uma autoria.
O que está sendo proposto, até agora, são condições do discurso literário, tais
como a paratopia e a imagem de autor, que parecem convergir na percepção
da dupla possibilidade de existência da enunciação literária; o intrínseco e o
extrínseco.
A condição paratópica do discurso literário condiciona uma imagem de autor,
na mesma medida em que é o autor da enunciação literária que cria as
condições paratópicas do discurso literário. Essa fricção das fronteiras existe,
porque a enunciação literária participa do mundo, construindo a própria
condição enunciativa de participação no mundo.
Essa condição enunciativa é construída – mesmo o termo “construir” não sendo
o mais adequado – por meio de cenas possíveis, as quais têm correspondência
com os membros de uma sociedade, em uma época, em um lugar, com autor
empírico, para o qual criamos uma imagem que é oriunda na enunciação
literária. Nesse sentido, a imagem de autor, emerge na enunciação, porque
pode representar a si mesma, a partir de um sistema enunciativo que coaduna
com a memória discursiva e com as condições sócio-históricas da produção do
autor como sujeito situado em um tempo e um espaço.
Quando, na enunciação literária, os pares enunciativos (leitores) tomam
contato com a materialidade do texto, estes pares têm a condição de perceber
que essa materialidade pertence a um “tipo de discurso”, ou seja, à literatura.
Contudo, essa percepção não acontece pelo mero contato com a
materialidade, pois essa materialidade não está desconectada de uma série de
aspectos que direcionam o olhar dos pares ligados à enunciação, como, por
exemplo, os elementos paratextuais, além disso, onde a materialidade circula e
24
que tipos de relações se executam diante dessa materialidade. A esse
reconhecimento do tipo do discurso, juntamente com os elementos linguísticos
que “orbitam” a enunciação, damos o nome de quadro cênico (Maingueneau,
2013). O quadro cênico é subdividido em tipo de discurso. A cena englobante,
em nosso caso, a literária, e a cena genérica, os elementos que envolvem a
enunciação literária, dando a ela uma função social, uma estrutura entre
parceiros legítimos e uma formatação circunscrita na memória.
Contudo, a interação mais profunda entre os pares da enunciação literária não
acontece pelo quadro cênico, mas pela enunciação, que se acopla à vida como
uma sombra, ou seja, participando da vida, das rotinas e das possibilidades
reais de interação discursivas, sem ser a própria vida. A essa enunciação de
um mundo possível, Maingueneau (2006) chamou de cenografia e é, na
cenografia, que se pode perceber uma imagem de autor, que garante à
enunciação literária sua condição paratópica, pois é o ato do autor que constrói
um mundo que o integra como sujeito, sem participar efetivamente desse
mundo.
A cenografia no discurso literário dá condições de observar o que é enunciado
como possibilidade real. Essa possibilidade se reporta diretamente à vida de
um autor, cuja imagem se pode depreender na enunciação literária. Além
disso, a imagem de autor está fixada às condições sócio-históricas de
produção que, em certa medida, são depreendidas como cenografias. Por
outras palavras, perceber a cenografia do discurso literário é perceber uma
imagem de autor filiada a um tempo e a um espaço.
1.4 As cenas enunciativas e os topismos do discurso literário
O discurso literário toma contato com os leitores por meio das cenas
enunciativas. Cena englobante e cena genérica compõem o quadro cênico
(Maingueneau, 2013), cuja função está associada a formalizar, a partir das
condições sócio-históricas de produção, o que é o tipo de discurso literário.
Contudo, é pela cenografia que o discurso literário acessa seus leitores
25
(Maingueneau, 2006). Na literatura, as cenografias serão aquelas às quais os
leitores criam expectativas.
Desse modo, a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e
aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez,
deve legitimá-la, estabelecendo que essa cenografia onde nasce a
fala9
é precisamente a cenografia exigida para enunciar como
convém (MAINGUENEAU, 2013:98)
A cenografia do discurso literário tem diálogo fixo com o autor e sua imagem,
pois “encena” as rotinas comuns à vida, que podem ser aceitas pelos leitores
como verdadeiras e pertencentes ao mundo extrínseco à enunciação literária,
ao que corresponderia ao “mundo” do autor.
O enunciado literário agrupa unidades enunciativo-discursivas que pertencem
às rotinas verbais, que, agrupadas, compõem a cenografia. Uma cenografia
corresponde às rotinas, que se executam no discurso literário. Vemos, na
literatura, ser enunciada uma rotina possível ao extraliterário. Essa
“possibilidade” paratópica é composta por uma série de eventos enunciativos
que correspondem às práticas conhecidas por membros da atividade
enunciativa. As cenografias da rotina literária são as mesmas das práticas
quotidianas, isso é parte da condição paratópica do discurso literário
(Maingueneau, 2007).
A partir disto, a imagem de autor ancora essas rotinas a um tempo e um
espaço, por exemplo, quando se toma a reflexão acerca de um autor,
pressupõe-se dele uma vida extraliterária, um mundo no qual esse “sujeito”
existe/existiu e percebeu o mundo a sua volta. Essa ancoragem viabiliza
observar, a partir de um olhar interdisciplinar, quais experiências são possíveis
em uma época, quais vivências um sujeito pôde/pode experimentar, qual era o
mundo e em qual tempo esse sujeito enunciador está/esteve. Desta maneira, a
cenografia do discurso literário dá condições de perceber, pela perspectiva
enunciativo-discursiva, a imagem de autor e o mundo em torno desse autor. As
9 Nesse exemplo, Maingueneau se refere a uma análise que está proposta em “Análise de
Textos de Comunicação”. Essa análise trata de um enunciado prototípico da fala, mas, com efeito, pode representar os enunciados escritos.
26
unidades que compõem a cenografia são práticas, que correspondem ao que
vínhamos tratando como topismos do discurso literário.
Os topismos literários são unidades enunciativo-discursivas que compõem a
cenografia “desenhando” os acontecimentos e modelando comportamentos,
ações, fazeres. Esses fazeres têm correspondência com a história, com os
lugares e com os sujeitos que os enunciam. São as unidades tópicas e não
tópicas o “lugar”, onde se podem delinear os comportamentos de uma época,
os sujeitos e as instituições. Perceber as unidades tópicas e não tópicas é
perceber a própria sociedade, pois as relações de comportamento, de fazeres,
de quotidiano não são aspectos próprios da enunciação literária, mas dos
sujeitos interpelados pela sociedade onde estão.
Nesse sentido, quando obervamos nos discursos as unidades tópicas e não
tópicas, experienciamos, na mesma medida, um mundo enunciado como real,
por outras palavras, a enunciação registra, pelas unidades tópicas e não
tópicas, o próprio sujeito enunciador em sua relação com o mundo e com as “
forças” - instituições, acontecimentos, eventos -, que o fazem tomar essa ou
aquela atitude, ter esse ou aquele comportamento, por conseguinte, ser o que
é enunciativamente.
Existem unidades que correspondem a setores da atividade humana. Uma
redação de jornal, por exemplo, tem suas próprias práticas enunciativas, com
seus próprios sujeitos, com suas próprias funções. Em situações como esta,
teremos práticas assumidas como pertencentes a um grupo (jornalistas), que
acontecem em um universo discursivo-enunciativo de fácil delineação; são as
práticas tópicas. Contudo, há práticas que não pertencem a um setor da
atividade humana, mas os atravessam de maneira clandestina, são registradas
na memória da coletividade, mas só podem ser percebidas a partir de um
aparato interdisciplinar que as justifique na história, no contato com os sujeitos
e na “força” que exercem sobre eles; são as unidades não tópicas.
A enunciação literária se estabiliza no que se pode entender como uma rotina
cuja expectativa compõe um simulacro. Por outras palavras, a enunciação
literária se compõe de um agrupamento de gêneros que pertencem a um tipo
27
de discurso literário que, por sua vez, está filiado a setores da atividade
humana. Assim
mesmo os gêneros definidos por um autor, como ocorre com
frequência em literatura ou em filosofia, somente são definidos no
interior de práticas verbais instituídas. Tipos e gêneros de discurso
são tomados numa relação de reciprocidade: todo tipo é um
agrupamento de gêneros, todo gênero só se define como tal por
pertencer a um determinado tipo. (MAINGUENEAU 2007:30)
As rotinas reconhecidas nas práticas verbais são, na cenografia, “pontes
paratópicas”, pois ligam o extrínseco e o intrínseco do discurso literário,
engendrando uma enunciação fronteiriça de onde se pode perceber uma
imagem de autor e uma sombra de um autor, que se consagra pelo/no discurso
literário. A essas rotinas filiadas aos setores e atividades reconhecidas,
concebidas na enunciação, dão-se o nome de unidades tópicas (Maingueneau
2007).
No entanto, existem unidades enunciativo-discursivas, reconhecidas pela
coletividade, que não bastaria chamar de unidades tópicas, pois elas
atravessam múltiplos gêneros do discurso, mas estão configuradas na
construção do dizer e no como dizer. Estão intrinsecamente relacionadas às
outras unidades, contudo estão aparelhadas sobre os recursos linguísticos,
como a narração, a argumentação, a descrição, entre outras. Essas unidades
estão voltadas ao “fazer” enunciativo, ou seja, estão pautadas sobre o
interesse do enunciador em contar uma história e fazer com que o co-
enunciador adira a um produto ou ideia, conforme postula Maingueneau (2007),
quando as chamou de unidades transversas. São estas manifestações
linguísticas que integram o discurso.
Há, contudo, unidades que estão nas fronteiras das unidades delineadas pela
função social e pelo atravessamento linguístico. Essas unidades são anômalas
e não autorizadas; além disso, são registradas pela marginalização de seus
dizeres e, por isso, não são admitidas, embora sejam construídas e concebidas
na memória da coletividade. São estas as unidades não tópicas.
28
Discurso como o racista é de extensa circulação em nossa sociedade e, muito
embora se veja mencionar “que alguém é racista”, não será comum ver alguém
dizer “ sou racista”. Isso acontece porque a prática racista foi percebida, junto a
um longo processo de conscientização racial, que ainda acontece, como
extremamente negativa e, por isso, deve ser combatida, conforme afirma
Nascimento (2010). Contudo, o combate ao discurso racista não impede que
ele circule como unidades discursivas, que circulam em diversos tipos e
gêneros do discurso de maneira clandestina. Essas unidades estão nas
fronteiras, atravessam diferentes enunciados como fazem as unidades
transversas e estão registradas na coletividade. Assim, tais unidades só podem
ser percebidas pelo desenho de suas fronteiras, a partir de uma reflexão
histórica sobre sua enunciação. Nesse sentido, registrar uma imagem de autor
é também fixar, pela condição paratópica do discurso constituinte literário, uma
possível fronteira na qual se podem perceber unidades não tópicas.
Inferindo a imagem de autor, que emerge no discurso literário, podemos
verificar a que condições sócio-históricas este discurso está filiado na fronteira
paratópica. Nesse sentido, podemos constatar que as unidades não tópicas
são apreendidas, particularmente, pelo olhar de uma analista, que reconhece
nas fronteiras de determinado discurso, aspectos de clandestinidade dessas
unidades. Cabe, por conseguinte, ao analista construir um arcabouço que
revele como possível que determinada enunciação é perpassada por unidades
conhecidas por todos, mas que ninguém as autoriza. As unidades não tópicas
parecem úteis e produtivas ao estudo de nosso objeto de análise, pois
Restringir a análise de discurso apenas as unidades tópicas seria
denegar (no sentido psicanalítico) a realidade do discurso, que é
relacionamento do discurso e do interdiscurso: este último trabalha o
discurso, que em retorno o redistribuí perpetuamente. É esse
impossível fechamento que me parece testemunhar a persistência da
noção de formação discursiva: não haveria análise de discurso se
não houvesse agrupamentos de enunciados inscritos nas fronteiras,
mas, por outro lado, também não haveria análise do discurso, se o
sentido se fechasse nas fronteiras (MAINGUENEAU, 2008:25).
Neste capítulo, por fim, delineamos um arcabouço teórico-metodológico, que
será reavivado durante toda essa pesquisa como capaz de evidenciar uma
29
imagem de autor emergida do discurso constituinte literário. Esse discurso se
configura em fronteiras enunciativas. Dá a seus autores grande prestígio e
pode tornar-se importante panorama para observação de uma época e dos
sujeitos dessa época. Contudo, como apontamos anteriormente, o autor não
está em uma localização confortável, não adianta nada se perguntar se a
autoralidade está no interior ou no exterior do texto: ela subverte essa oposição
(Maingueneau, 2010:46). O que parece ser mais interessante é a observância
da cenografia, para que ela possa ser ampliada, quando da busca da projeção
de uma imagem de autor.
Assim, nosso estudo se configura por meio de unidades tópicas e não tópicas
do discurso, pois consideramos esse estudo relevante para a clareza e
compreensão da imagem de autor. Vê-se que o Autor emerge do discurso
literário na confluência entre o fora e o dentro do discurso. A autoralidade é
possível pela condição paratópica do discurso constituinte literário. Essa
representação pode ser percebida no agrupamento de unidades tópicas -
atividades reconhecidas e autorizadas nas rotinas sócio-histórica de um sujeito
e não tópicas - discurso racista -, que contribuem para a construção de uma
imagem de autor. A partir do que antecede, seguimos para a configuração das
condições de produção e para a demarcação das unidades tópicas e não
tópicas
30
CAPÍTULO II
OBJETO SOMBREADO: O EXTRÍNSECO AO DISCURSO RECORDAÇÕES
DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA, DE LIMA BARRETO
2.1 A cenografia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha
Neste capítulo, expomos aspectos extrínsecos à enunciação em Recordações.
Nosso objetivo é observar o diálogo entre o intrínseco e o extrínseco e, por
isso, apoiamo-nos na História, na Sociologia, na Filosofia e na Crítica Literária
para ampliar nosso olhar sobre os efeitos de sentido possíveis de serem
construídos na cenografia de Recordações. Para isso, dividimos nosso
percurso de pesquisa em dois tópicos. Primeiramente, desvelaremos as ações
que enunciativo-discursivamente representariam as unidades tópicas,
observando na vida do escritor de Recordações as atividades assumidas como
a de um grupo, seu percurso escolar, acadêmico e as rotinas propriamente
ditas. Em segundo lugar, construímos um percurso que reflete sobre as
formações discursivas, que incidem sobre o negro no final do século XIX e
início do XX. Isso nos dará condição de desvelar na enunciação de
Recordações aspectos discriminatórios e racistas sobre o negro, que não foram
assumidas por um grupo, mas reconhecidos, quando observados pelos vieses
da História, da Sociologia e da Crítica Literária. Debruçamo-nos, portanto,
sobre as unidades não tópicas.
Essa postura se justifica porque é pela cenografia que os leitores têm contato
direto com o campo literário (Maingueneau, 2013). A cenografia se instaura no
agrupamento de práticas enunciativo-discursivas, tópicas e não tópicas que,
materializadas em textos, integram o quadro cênico literário. Analisar as
unidades tópicas e não tópicas, na cenografia (a representação das atividades
do coletivo, que têm relação com as rotinas, com a vida) é examinar a
correspondência extrínseca ao enunciado e perceber a condição paratópica do
discurso constituinte literário. Observar em Recordações a cenografia
engendrada enunciativo-discursivamente é também considerar a emersão de
uma imagem de autor nascida no discurso, que cria rotinas da vida possível em
31
seu enunciado, unindo o “dentro” e o “fora” do discurso numa fronteira
impossível, em um impossível lugar (Maingueneau, 2010).
O estudo da imagem de autor ancora o intrínseco e o extrínseco literário em
um período sócio-histórico, às formações discursivas, sujeitos de uma
contemporaneidade. Por outras palavras, a imagem de autor dá uma
possibilidade de leitura da condição paratópica, pois fixa o discurso literário em
um lugar, em um momento histórico, às formações discursivas que, na
enunciação literária, são sombras do mundo empírico, por conseguinte,
sombras do próprio autor. O estudo do extrínseco, a partir da condição dada
pela imagem de autor, em Recordações, é também o estudo do intrínseco, pois
no discurso literário, extrínseco e intrínseco são pares indissolúveis.
Nossa preocupação está na delineação das fronteiras que compõe, primeiro,
as unidades tópicas em Recordações, ou seja, as rotinas autorizadas que são
“sombras” das rotinas extrínsecas á enunciação literária, como a juventude em
uma família suburbana, o ofício de jornalista, o funcionalismo público e o que
está em volta dessas rotinas como prática de um sujeito ou de um grupo.
Depois disso nossa exporemos aspectos de uma prática que não é pertencente
a um grupo e que, além disso, não é autorizada: o racismo. O racismo é uma
unidade não tópica, pois não é aceita como atividade que pertence a um grupo,
contudo, é executada por grupos e só pode ser percebida como ação
cristalizada na história e nas rotinas que estão nas formações discursivas de
um grupo quando a delineamos, a partir dos pressupostos dados pela História,
pela Sociologia, Filosofia e Crítica Literária.
A rejeição ao racismo não o impede de ser reconhecido impregnado em
diversas práticas do quotidiano. O racismo recaiu sobre o homem negro como
uma chaga de grande preconceito, herdado dos anos de escravidão a que foi
submetido e dos discursos ideologicamente construídos sobre a perspectiva do
homem branco (Nascimento, 2010:65).
Nesse sentido, o que se manifesta como não tópico no discurso são as
formações discursivas do racismo, que foram historicamente construídas, no
Brasil, em um processo de inferiorização do negro e do mulato em relação ao
branco. A manifestação do racismo no discurso Recordações também é parte
32
da composição da cenografia que sustenta, na mesma medida que é
sustentada, uma imagem de autor, pois as representações não tópicas se
localizam na fronteira entre intrínseco e extrínseco na enunciação literária do
quotidiano, como práticas
que produziram a ideologia dominante e fixaram as diferenças e a
superioridade dos brancos sobre os negros e indígenas. Nesse
sentido, o branco se perpetuou como sinônimo de sabedoria,
superioridade, e o negro e o indígena, de forma particular, o negro,
como sinônimo de ignorância, inferioridade. Assim, as desigualdades
sociais, construídas historicamente com base na superioridade do
branco, na submissão dos negros e na violência da escravidão
geraram, em nossa sociedade, uma mentalidade racista não somente
no modo de pensar, mas também no modo de agir. (NASCIMENTO,
2010:65)
Esse “pensar” e “agir” são percebidos no discurso Recordações no esconderijo
das relações e só podem ser percebidos pelo percurso instruído pelo olhar do
analista, amparado por bases epistemológicas de áreas distintas do
conhecimento.
De agora em diante, construiremos um percurso histórico das condições de
produção que cercam a paratopia literária em Recordações, apontando as
fronteiras perceptíveis e tornando possível exibir a emersão de uma imagem de
autor. Nossa finalidade é perceber unidades tópicas e não tópicas baseadas no
desvelamento das características realçadas na imagem de autor, ou seja, um
homem mulato que presenciou como jornalista e funcionário público, os
desmandos raciais do Brasil em parte dos séculos XIX e XX.
Quando tratamos de condições de produção de determinado discurso,
podemos incorrer em dois erros correlacionados. O primeiro é tratar as
condições de produção como “contexto”,
Condições de produção é um termo empregado [...] como variante de
contexto. Mas é cada vez menos utilizado, pois ele minimiza a
dimensão interacional do discurso e o caráter construído enquanto
dada da situação comunicacional (MAINGUNEAU, 1998:31)
33
O segundo equívoco se localiza na necessidade de o pesquisador enxergar
nas condições de produção de seu objeto, a justificativa do discurso. O
discurso literário é parte integrante da sociedade e sua enunciação está na
impossibilidade de pertencimento a esta sociedade, ou seja, a enunciação
literária não pode ser justificada pelo extrínseco, tanto quanto o intrínseco
enunciativo não pode justificar o extrínseco.
A partir disso, delinearemos o percurso fronteiriço do final do século XIX e
início do século XX. Em AD, delinear o percurso do discurso literário já é uma
conduta de análise; por isso, direcionaremos nosso olhar, desde já, à imagem
de autor que se consagrou como cânon literário em Recordações. Enfocamos,
assim, o escritor Lima Barreto e o discurso racista, o qual foi objeto de
denuncia em Recordações.
2.2 Um estudo das fronteiras
O contato entre europeus e africanos, desde o século XV, período de expansão
marítima, até os dias atuais, trouxe grande miscigenação cultural, tornando o
mundo multicultural. O europeu, melhor aparelhado com a cultura bélica
(Munanga, 1986), levou ao continente africano e, por conseguinte, às diásporas
negras pelo mundo, uma corrosiva ideia de dominação econômica que, por
diversos mecanismos, acabou por diminuir a identidade negra ontológica,
epistemológica e teologicamente construída (Munanga, 1986). Desse modo,
tornou-se previsível que o negro, capturado de seu território para servir como
escravo em favor do crescimento econômico europeu, fosse inserido ao
discurso depreciativo, que os povos de pele branca criaram para justificar a
colonização africana e, por meio disto, a cultura escravagista. O processo de
miscigenação causado pelo contato entre europeus e africanos trouxe a chaga
da segregação, preconceito e falta de acesso aos que legaram a pele
azeitonada e o cabelo crespo. Emana da imagem de autor, em Recordações, a
denuncia em relação às manifestações de racismo oriundas das formações
discursivas racialistas, que se cristalizaram como formações discursivas no
período de produção de Recordações. Por isso, para melhor entendermos as
unidades tópicas e não tópicas que constituem a cenografia de Recordações,
34
iniciaremos um percurso histórico, amparado por estudiosos diversos, incluindo
Lima Barreto, a respeito da questão do negro e da literatura, no Brasil do final
do século XIX e início do século XX.
Se, ainda hoje, presenciamos possíveis discussões a respeito de cor da pele,
oriundas da exploração do continente africano, sem dúvida, a sociedade à qual
pertencia Afonso Henriques de Lima Barreto não se manifestava menos hostil
para um mulato como ele. Reconhecer em Isaías Caminha traços de grande
semelhança com a história de vida de Lima Barreto não é equívoco: ambos
mulatos e descontentes com as condições geradas pelo preconceito da cor, no
período pós-escravocrata no Brasil. Podemos citar, ainda, a trajetória de ambos
em redações de jornais, na finalização do período imperialista e de
consagração da república. Tais fatos trouxeram ao discurso Recordações
inúmeras críticas e longo período de ostracismo. Esse fato fez com que um
crítico conhecido de Lima Barreto, desenrolasse tais aspectos a respeito de
Recordações,
É pessoalíssimo e, o que é pior sente-se demais que o é. [...] A
sua amargura, legítima, sincera, respeitável, como todo nobre
sentimento, ressumbra demais no seu livro, tendo-lhe faltado a
arte de a esconder, quando talvez a arte o exija. E seria mais
altivo não a mostrar tanto. (BOSI, 2002:292)
Recordações encontrou resistência por parte de importantes críticos de sua
época, pois o ideal parnasiano de arte pela arte não combinava com seu
caráter autobiográfico. O movimento pré-moderno – batizado posteriormente
por Tristão de Ataíde – no qual se enquadrava Recordações, é reconhecido
pela estética transgressora, que vê, no extrínseco, a força motriz da construção
do belo, ideal que vai à contramão do Parnasianismo e do Neoparnasianismo,
movimentos literários em vigor naquela contemporaneidade. Lima Barreto foi
um escritor que se contrapôs a esta estética. Para Lima Barreto, cabia ao autor
impregnar à enunciação literária com as próprias vivências, fazendo do
discurso literário uma possibilidade política, histórica, sociológica. Mais do que
pressupor um discurso político, contudo, o escritor de Recordações fez sua
enunciação ser um registro do olhar humano sobre as condições do homem,
que estava pressionado pela formação discursiva que recaí negativamente
35
sobre o negro. Nesse sentido, perceber a vida do enunciador de Recordações
é perceber parte das práticas enunciativo-discursivas, que se arrolam, portanto,
é fazer uma análise de Recordações.
2.3 Afonso Henriques de Lima Barreto: as práticas tópicas
Filho de mãe mulata agregada à família Pereira de Carvalho, Carlota Maria dos
Anjos e de negro nascido escravo, João Henriques de Lima Barreto, Lima
Barreto nasceu mulato. Sua inteligência acima da média deu a Lima Barreto o
prognóstico de vida de “doutor”. Lima Barreto, na infância, alimentou o sonho
de se formar em medicina. Teve sua formação básica nas áreas das
humanidades, no Instituto Comercial da corte antiga e lá aprendeu francês.
Ainda na infância, começou a frequentar a casa dos Pereira de Carvalho,
família à qual um de seus integrantes fora o ilustre doutor Manuel Feliciano
Pereira de Carvalho, que é chamado Patriarca da Cirurgia Brasileira. A família
Pereira de Carvalho tinha uma série de agregados negros e mulatos, dos quais
diziam serem filhos dos varões da família. Foi nesta casa que Lima Barreto,
ainda na infância, conheceu quem viria a ser sua esposa e mãe de seus filhos,
a senhora Amália Augusta, também mulata, neta de africana.
Na juventude, Lima Barreto frequentou o instituto artístico, onde teve sua
formação técnica em tipografia, tal e qual seu pai, João Henriques de Lima
Barreto. Por ser tão bom no ofício, logo foi trabalhar na imprensa, na oficina do
jornal O Comércio.
O gênio forte e a confiança na própria competência fizeram com que Lima
Barreto pedisse seu desligamento da Oficina de O Comércio por não ter
conseguido ocupar o lugar de um chefe que havia falecido.
O futuro de doutor, projetado na infância por Lima Barreto, começa a ruir no
contato diário com a condição de se reconhecer como mulato em um mundo
composto por injustiças raciais. Recordações, discurso atribuído a Lima
Barreto, é conhecido por ter um enredo semelhante à sua biografia relatada por
estudo histórico e por notas escritas pelo próprio Lima Barreto. Por isso,
Recordações é considerada um resgate autobiográfico de um trajeto de
36
humilhação racial. Lima Barreto percebia o racismo a sua volta com indignação
e posicionamento crítico, coisa que só poderia ser notado por alguém que,
naquela época, tivesse consciência crítica a respeito do mundo que o cercava.
O discurso Recordações foi associado pela Crítica Literária a um discurso de
posicionamento político, que dava voz a Lima pela força enunciativa de Isaías
Caminha.
No exame retrospectivo das humilhações porque passou na
adolescência o seu personagem Isaías Caminha. Este também
sentia-se um condenado por culpa da cor, proibido de viver, fechado
o caminho da vida “ por mais forte que a dos homens. Pretinho!
Mulatinho! Isso doía mais que uma bofetada! Está é pelo menos a
confissão de Isaías Caminha. (BARBOSA,2003:141)
Lima Barreto iniciou a publicação Recordações na Revista Floreal.
Infelizmente, a Revista fechou em seu quarto volume e Lima Barreto só
conseguiu terminar seu intento em uma publicação fora do Brasil, em Portugal.
A obra foi enviada a um editor português chamado Sr. A. M. Teixeira, por
intermédio de uma amigo de Lima Barreto, João Pereira Barreto, que também
havia trabalhado na Floreal.
Nesta época, Lima Barreto já tinha em mãos outra obra pronta, o seu mais
cerebrino trabalho, como Lima mesmo o tratou, Vida e Morte de M. J. Gonzaga
de Sá. Lima Barreto deixa claro o motivo que o fez optar por Recordações em
vez de Gonzaga de Sá como primeira publicação,
Mandei as Recordações do Escrivão Isaías Caminha, um livro
desigual, propositalmente malfeito, brutal por vezes, mas sincero
sempre. Espero muito que ele escandalize e desagrade. Como
contigo, eu terei grande desgosto que isso aconteça a outros amigos.
Espero que esse primeiro movimento muito natural, seja seguido de
um outro de reflexão em que vocês considerem bem que não foi só o
escândalo, o egotismo e a charge que pus ali. (LIMA BARRETO apud
BARBOSA: 2003: 184/185)
A charge em Recordações é constante, além do próprio Isaías Caminha que
disse à crítica da época ser uma representação de Lima Barreto. Encontramos
na obra outras figuras públicas, além de o Correio da Manhã, que aparece no
enredo, ter tido uma charge de O Globo, jornal o qual Lima fora funcionário.
37
Quanto a estas charges, Lima Barreto dizia: “se lá pus certas figuras e o jornal,
foi para escandalizar e provocar atenção para a minha brochura” (apud
BARBOSA:2003:37).
O discurso Recordações está relacionado à decepção do homem mulato em
um período de grande desprestígio da cor. O discurso em questão trata das
condições emergentes dos homens negros, dentro ou fora dos discursos
literários: jovens com expectativa de grande ascensão, mas que não atingiram
os anseios da juventude por causa da opressão gerada pelo preconceito racial.
Antes de seu falecimento, em 1922, Lima Barreto, um dos grandes precursores
da estética moderna no Brasil, deu sua última contribuição intelectual, ao
escrever o discurso O destino da literatura, por ocasião de uma conferência,
em Rio Preto, cidade do interior de São Paulo, que fica próximo a Mirassol,
cidade, onde Lima Barreto se recolheu, para atenuar os problemas que os
excessos da vida boêmia havia lhe trazido. Lima Barreto, embora não fosse
exímio palestrante, optou por proferir a palestra. É pena, entretanto, a intenção
não ter sido contemplada, pois, no dia em que se faria a palestra, Lima Barreto
se entregou, mais uma vez, ao vício do álcool e não conseguiu concluir seu
objetivo. O que restou, contudo, pode nos dar a ideia do que Lima Barreto
entendia como literatura e qual a projeção que um escritor deveria ter em seu
texto. Para ele
E se uma percepção religiosa existe entre nós, então os sentimentos
tratados pela nossa arte deveriam ser examinados na base dessa
percepção religiosa; e como foi o caso sempre e em toda parte, a arte
que comunica sentimentos decorrentes da percepção religiosa de
nosso tempo, deveria ser escolhida dentre toda a arte medíocre,
deveria ser saudada, valorizada e, acima de tudo, promovida, ao
passo que qualquer arte que negue aquela percepção, deveria ser
condenada e menosprezada, e toda arte restante deveria nem
distinguir-se nem promover-se. (apud OAKLEY 2011:06)
Para Lima Barreto, a produção artística estava entrelaçada à condição de
sacerdócio; desta maneira, o literato deveria assumir uma postura sacerdotal.
O ideal artístico de Lima Barreto fora contemplado em sua arte, pois faz parte
do sacerdócio a doação, no caso de Recordações, a doação é de tanta
38
relevância que, ao passo de exaltar uma autoria, trouxe-lhe o ostracismo da
crítica de sua época, que estava embebida no padrão parnasiano de arte pela
arte que Lima Barreto rompia. O escritor em questão só gozou de interesse da
crítica, na década de 1940, quase vinte anos depois de sua morte.
A relação de Lima Barreto com Isaías Caminha é notória. Entretanto, de qual
mulato com inteligência acima da média e nas mesmas condições sociais e
financeiras não seria? Nosso interesse aqui não é mostrar que Recordações
seja um registro da vida de Lima Barreto, mas considerar aspectos no discurso,
que representam, de maneira interdiscursiva, as condições sócio-históricas do
homem mulato, no Brasil, vivenciado por Lima Barreto e resgatar possíveis
aspectos, materializados, no discurso, de maneira interdiscursiva, que
corroboram com a construção de efeitos de sentido no ato enunciativo.
Consideramos que esses elementos nos deem condições de perceber a
emersão de uma imagem de autor, que rompeu não apenas preconceitos de
cor, mas também estéticos, tornando-se, assim, referência e interesse da
academia, uma vez que pode ser importante para a releitura do discurso
Recordações, no âmbito dos estudos literários e daqueles voltados sobre o
negro, no Brasil.
Isso posto, entendemos que se faz necessário um resgate histórico do
tratamento dado ao homem negro, no Brasil, no período mencionado, a fim de
estabelecermos a possível origem da presença de negros e mulatos em
discursos literários, e aspectos da condições sócio-históricas daqueles sujeitos,
que se encontram incrustados na enunciação literária como registro de um
período.
2.3 A formação discursiva: racismo, prática não tópica
Após 13 de maio de 1988, era de se esperar que o homem negro, no Brasil,
estivesse livre do ferrolho da dor causada pela chaga da escravidão. Contudo,
os processos que foram orquestrados por um princípio econômico de
enriquecimento de algumas potências europeias, desde o século XV, período
39
de grande expansão marítima e de enraização da cultura eurocêntrica,
cooperou, para que o Brasil, do final do século XIX e início do século XX, fosse,
ainda, hostil com o homem negro10, mesmo diante da lei de libertação dos
escravos. Neste subitem, resgataremos alguns pontos cruciais para a
construção das condições sócio-históricas no Brasil no final do século XIX e
início do século XX. Este período está envolvido com a questão do preconceito
racial e o racismo, visto que as condições de produção de Recordações
registram como a sociedade lidou com a questão do negro no período que
corresponde ao pré-modernismo literário.
A lei áurea foi assinada em um cenário mundial de mudanças econômicas. A
revolução industrial se consolidava na Europa, que vendia produtos
manufaturados aos outros continentes. O homem europeu rompia com a ideia
de enriquecimento de maneira hereditária, e o homem religioso deixava o papel
doutrinário e mantenedor do status quo social. O processo de industrialização
europeu não gerou mudanças apenas na Europa, pois o mundo, de maneira
geral, conheceu novas formas de organização social. A ideia do livre capital,
que se desatrelava do lastro monárquico, bem como a ruptura com a igreja no
sentido de que o homem, agora, poderia enriquecer, sem estar associado às
famílias fidalgas ou aos cargos eclesiásticos, fomentaram, no século XIX e no
século XX, novas formas de acúmulo de capital e, como era de se esperar,
novas formas de trabalho.
Nesse sentido, a forma de trabalho pautada no processo de escravização do
homem só contemplava parte do processo econômico vigente de
industrialização – europeia – e do enriquecimento. Pela primeira vez, o Brasil
não estava ligado apenas ao meio rural, mas ao que ficou conhecido como
Liberalismo econômico. No momento inicial de chegada do negro, o braço
escravo produzia riqueza e fomentava o crescimento econômico; contudo, não
gerava força de consumo, pois a economia brasileira, com uma base escrava,
não distribuía o capital de forma que ele retornasse à indústria. Desta maneira,
o modelo brasileiro de industrialização não projetava por completo o ideal de
10
O discurso sobre o homem negro se estendeu sobre o homem mulato. O processo de
branqueamento sofrido pela ideia biológica de “ser negro” não atenuou o sofrimento causado pelo preconceito racial que o homem mulato sofreu no período de nosso interesse.
40
liberalismo econômico europeu, pois já tínhamos o negro liberto, mas
cultivávamos a cultura de escravização. O trabalho escravo estava enraizado à
forma de cultura colonial e enraizado na sociedade de maneira tal que era
comum notar que ao negro no Brasil cabiam os cargos de menor prestígio, que
estivessem à margem social e que geravam pouco capital e pouco retorno
desse capital à indústria.
Entretanto, a posição do negro como marginal na sociedade brasileira se
consagra a partir de sua libertação, porque, enquanto braço escravo, o negro
agiu ao longo da história do Brasil, até o século XIX, como integrante bem
situado às circunstâncias sociais. O papel de negro foi delineado no percurso
de construção histórica, econômica, moral, religiosa, ética, filosófica, científica,
como pertencente do lugar de escravo. A sociedade, de modo amplo, na
Europa, América e na África, estava convencida de que o papel social do negro
era de escravo. Não se trata de afirmar que os homens, ao longo desse
percurso, não se insatisfizeram com a condição do negro como escravo, as
ações sociais, contudo, foram estabelecidas contra essa condição e não
bastaram, para que a maioria não aceitasse, disseminasse e usufruísse desse
estigma.
O Brasil foi organizado sob o estigma de pertencimento a Europa. Nesse
âmbito, o território brasileiro não existia como nação, mas como parte
integrante ao território português. Ainda no século XV, período das grandes
navegações, quando a América começava ser delineada, inclusive o Brasil, a
expansão portuguesa não acontecia apenas para dominação de território e
exploração deste por motivo da flora e minério, A exploração ao homem negro
também se ampliava e intensificava. As colônias africanas não obedeciam ao
olho europeu e às mesmas regras e necessidades das colônias americanas. O
interesse principal no continente africano era o braço do homem, que seria
utilizado ao longo de quatro séculos de maneira intensa como escravo, na
exploração e na extração de riquezas minerais e da flora americana.
Sem a escravização do homem africano, o projeto de colonização do
continente americano não teria acontecido como nós o conhecemos, pois foi,
sem dúvida, o braço do trabalho forçado que mais delineou as terras da
41
América e, por conseguinte, as terras brasileiras. A princípio tendemos a
imaginar que o europeu convenceu o africano ao trabalho escravo pela força
bélica. Não à toa, que
quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana em
meados do século XV, a organização política dos Estados africanos
já tinha atingido um nível de aperfeiçoamento muito alto. As
monarquias eram constituídas por um conselho popular no qual as
diferentes camadas sociais eram representadas. A ordem social e
moral equivalia à política. Em contrapartida, o desenvolvimento
técnico, incluía a tecnologia de guerra, que era menos acentuada.
(MUNANGA,1986 :8).
A imposição eurocêntrica em relação à África pela força bélica fora o primeiro
passo do projeto de dominação do continente africano. A ideia de que o
continente africano deveria ser colônia, parte de um princípio básico: a ideia de
que o natural era ser europeu. O pensamento baseado na ideia de que a
Europa era o continente mais desenvolvido econômica, social e religiosamente
fez com que o homem europeu atribuísse a si o papel de explorador e
colonizador do mundo. Esse pensamento agregado às grandes descobertas
marítimas trouxe ótimo ambiente para o crescimento eurocêntrico, desde o
século XV.
Tratava-se, portanto, de um discurso de duas vias: na primeira via, aparecia um
discurso capaz de convencer e normatizar moralmente o europeu sobre a ideia
de que escravizar o africano poderia, deveria e era o melhor a ser feito, na
exploração do continente africano, por meio do trabalho escravo como forma
de ofício. Na segunda via, no convencimento do negro, pelo apagamento
social, religioso, cultural, do povo africano, de que o homem europeu, branco,
era o modelo para a economia, para a religião e para a cultura.
Neste contexto, o homem africano encontrava-se diminuído em todos os
setores da vida social. Isso foi necessário, para que europeu se eximisse
moralmente do peso da escravidão e para que o africano aceitasse,
discursivamente, a condição de escravo. A aceitação da condição de escravo
aconteceu de maneira relativamente simples, considerando que o discurso
42
europeu fora inculcado na memória africana por faltar nesta o que aquela
dominava: a tradição escrita.
O continente africano possui uma série de línguas ágrafas, e sua tradição é, ou
era, nesse caso, passada de pai para filho de maneira oral, por meio de rituais,
cantos e ritos do quotidiano do sua população. Assim, para que os traços
culturais fossem perpetuados e a configuração de sujeito e de homem fosse
mantida, era necessária a ligação de pai para filho, entre os membros dos
grupos sociais. Para o europeu, bastou apagar os símbolos africanos pela
violência física e pôr em seus lugares símbolos, que correspondiam à visão
eurocêntrica de que o homem europeu era o exemplo a ser seguido.
Desta imposição cultural, o que ficava mais acentuado era a distinção entre
homem branco e homem negro. É certo que o europeu, após chegar à África,
notou variações físicas entre os homens das diversas etnias do continente,
contudo, o que mais se registrou em documentos, além de relatos de criaturas
com aparências mitológicas com apenas um olho e com chifres aparentes, era
o cabelo crespo, o nariz largo e a pele negra, (MUNANGA, 1986: 14). Dessa
visão, montou-se uma proposta que abstraísse a noção de cultura alheia por
completo, esvaziando a África de significados, símbolos, formas de
conhecimento, e reduzindo essa complexa sociedade à visão preconceituosa
do homem europeu.
As sociedades negras da África foram vistas como fora da normalidade
humana. Por outros meios, o homem europeu observou o africano a partir de si
e, desta maneira, considerou que o normal era ser branco e que o negro
correspondia a alguma anomalia que poderia ser justificada; e isso aconteceu
pela ciência, pela religião, pela filosofia, pela economia. As justificativas
tendiam, em suma, ao desprestígio do africano em relação ao europeu e,
ainda, no convencimento do homem africano que o europeu era superior e que
este poderia exercer sobre aquele vantagem social e econômica.
Nas diásporas negras pelo mundo, depois do grande processo de migração
compulsória que o povo africano sofreu, tornou-se comum a assimilação
43
cultural do branco pelo negro. O modelo eurocêntrico funcionava como fonte de
inspiração para os negros, que assimilavam idiomas, vestes, religião, traços
culturais, ou seja, maquiavam-se e alisavam os crespos cabelos para ter sua
imagem associada ao do homem branco.
Na religião, a cosmologia do africano foi associada, discursivamente ao
negativo por dois planos diferentes e complementares. Em primeiro plano,
considerou-se o negro, em contato com o europeu, parte da ascendência de
Cam, filho de Noé, que tivera sido punido, na cosmologia cristã, por ter
cometido pecados e recebido em sua pele a marca destes pecados. Essa
marca foi interpretada pelo discurso eurocêntrico como a tom da pele. Em
segundo plano, toda a cosmologia negra fora associada à maldade cristã. Não
era incomum ver representações do demônio cristão como uma criança negra.
Essa prática social trouxe aos ritos africanos um peso negativo e,
gradativamente, ocasionou o apagamento de suas religiões. Por isso, tornou-se
comum a conversão negra ao cristianismo e, posteriormente, ao sincretismo
religioso, que unia traços cosmológicos da religião africana e europeia no
entendimento do mundo.
As diferenças do negro, sempre em relação ao branco, considerado exemplo,
tinham de ser justificadas por um meio (Munanga, 1986); coube, então, à
ciência fazer registro do que se considerou anomalia. Surgiram justificativas
baseadas na alimentação do homem africano, e também no clima. A ideia de
que o negro era um branco degenerado, era trabalhada por teorias e
observações que, na prática, não podiam ser comprovadas e que, por isso, o
mecanismo de maior potência era o religioso. Esse pensamento discursivo,
unido à resistência dos negros à conversão, trouxe a entendimento que era
urgente e necessário “salvar” os povos africanos da condição de escravidão.
De acordo com a simbologia de cor, alguns missionários,
decepcionados na sua missão de evangelização pensaram que a
recusa dos negros em se converterem ao cristianismo refletia, de
fato, sua profunda corrupção e sua natureza pecaminosa [...] Desse
modo, não haverá nenhum problema moral entre os europeus dos
séculos XVI e XVII, porque na doutrina cristã o homem não deve
44
temer a escravidão do homem pelo homem, e sim sua submissão às
forças do mal. (MUNANGA, 1986: 15)
A forma de vida na colônia africana foi reduzida a uma espécie de fracasso
econômico e também relacionada à consciência de que o homem negro era
pior. A economia, em suma, na colônia africana não era baseada no propósito
de lucro, do imperialismo europeu. Evidentemente, essa diferença foi
associada ao desprestígio social em que o homem negro fora condicionado.
Desta maneira, as diásporas negras, que se espalharam pelo mundo,
passaram por um processo de assimilação dos valores culturais do branco
(Munanga, 1986). O negro, marcado por uma situação discursiva negativa,
submeteu-se, a princípio, a um processo de branqueamento, por imposição de
uma necessidade econômica, que o fazia escravo. Esse processo de
branqueamento acontecia em níveis diversos, com o intuito de aniquilar a
cultura negra; vestimentas, objetos e alimentos foram, primeiramente, impostos
aos negros pelo branco. Em nível maior, impôs-se sobre os africanos a língua
falada por seus colonizadores. A língua do branco dominador marcou-se com
acentuada intensidade, pois os negros que dominassem a língua imposta eram
mais respeitados em relação àqueles que não tinham este domínio.
A política de branqueamento da cultura se entendeu às noções do corpo.
Tornou-se comum, por conseguinte, a relação sexual entre mulheres negras
com homens brancos e homens negros com mulheres brancas. Essa relação
étnica trouxe problemas na compreensão do homem mestiço, que Munanga,
(1986, p. 28), expõe da seguinte maneira.
A questão do sexo misto já era objeto de falsa especulação científica
no século passado. Paul Broca escreveu que tal relação era possível
somente entre um homem branco e uma mulher negra. O contrário
não o seria, porque o homem negro tinha um pênis excessivo e a
mulher branca uma vagina estreita, mostrando até que ponto o sexo
era um motivo de distanciamento numa sociedade machista
dominada pelo branco [...] Desde esta época, nasceu o preconceito
que ainda hoje persiste sobre os mestiços, considerados fracos física
e moralmente.
45
Não basta pensar, contudo, que o processo de assimilação do colonizador pelo
colonizado aconteceu de maneira tranquila sem nenhum conflito. Houve negros
que se mantiveram firmes contra esta postura e se colocaram em desacordo
com a situação, a qual, desde o século XV, o mundo tendeu a desenhar. O
homem negro, na diáspora, tomou contato com uma base política que o
percebia como representação de um homem, nem mais bonito, nem mais feio
que os brancos, mas igual.
A resistência do negro não bastou para atenuar a ideia de imposição racial que
ainda hoje persiste. O discurso negativo sobre o negro, desde o século XV,
estruturado em sólidas bases de pensamento, não conseguiu chegar ao total
apagamento. No final do século XIX e início do século XX, o sistema político
mundial mudou, e o braço escravo deixou de ser necessário. Aliás,
considerando o novo modelo político, que se moldava ao fluxo financeiro no
mundo, a escravidão deixava de ser necessidade, para ser um passo de atraso
no sistema econômico. O desenho social negativo em relação ao homem negro
nas diásporas africanas e brasileiras, em meio a uma necessidade de nova
forma de trabalho, merecerá, a seguir, nossa reflexão.
2.4 O cenário do final do século XIX e início do século XX: topismos.
A formação discursiva negativa que recaía sobre o negro, nos séculos XIX e
XX, no Brasil, foi construída ao longo de quatrocentos anos. Por isso, esse
posicionamento não pôde ser apagado, a partir do momento em que o
pensamento político no Brasil entendeu o trabalho livre, como parte do
processo de enriquecimento industrial. A essa época, percebeu-se que o
homem negro não poderia ser apreendido como mercadoria. Nesse período
pré e pós- republicano, de 1840 a 1920, quando viveu Lima Barreto, a
Inglaterra exerceu forte influência sobre as relações políticas no mundo e, de
modo particular, na América Latina. Essa pressão compreendia a mudança na
forma e nas condições de trabalho que, embora envolvida sobre um discurso
filantropo, tinha latente interesse comercial. Nessa perspectiva, era urgente
46
libertar o escravo. Mesmo assim, considerando que é nesse período que se
inicia um forte processo de imigração europeia para a América, o homem
negro, em consequência do forte discurso negativo criado a seu respeito, fica
em segundo plano, obrigado a viver às margens da sociedade.
Seria ingenuidade pensar que a sociedade do inicio do século XX, que estava
embebida do discurso depreciativo em relação ao negro, fosse, a partir da Lei
Áurea, considerar os negros libertos cidadãos integrados às rotinas sociais.
Antes, o homem negro estava inserido na sociedade no papel de escravo, e
agora, esse “não-lugar” provocado pela Lei Áurea, oferta ao negro a
marginalidade como única possibilidade.
O período econômico que o Brasil experiência no final do século XIX e início do
século XX dão-nos condição de entender como o “novo lugar” do homem negro
foi delineado. Aproveitando-se do discurso inculcado nas mentes em relação à
inferioridade do homem negro, e a forte pressão econômica do capital
estrangeiro, as tendências políticas liberais no Brasil ganharam força e voz no
campo social. A tendência europeia de acúmulo de capital, engendrada pela
revolução industrial, e a produção em massa soou como um modelo
interessante de economia, ainda mais considerando a desgastada monarquia
brasileira que, sem potencial e representação política, começava a pressionar o
império a dar lugar à república. Havia, contudo, pelo menos duas tendências
liberais no Brasil, os vanguardistas, filhos de antigos burgueses brasileiros, que
esperavam que o modelo liberalista aqui adotado fosse idêntico ao modelo
europeu. Sob esta conduta o homem negro liberto serviria como força de
consumo, ou seja, se o trabalho do negro o recompensasse com dinheiro, esse
“novo” trabalhador se tornaria consumidor, o que geraria, em certa medida,
fluxo monetário na sociedade, pautada em acúmulo de capital.
A outra tendência liberalista era mais tradicional que a primeira. Acostumados
com o passado escravagista, esta segunda tendência não tolerava a ideia de
que o homem negro liberto poderia trazer melhorias à sociedade liberalista.
Para estes, o entendimento de livre mercado não está associado, de maneira
direta, a ideia de trabalho livre (Bosi, 1992).
47
Essas duas formas de liberalismo em nada, ou muito pouco, privilegiavam o
homem negro, que, não se pode esquecer, agora partilhava da sociedade
brasileira como integrante marginalizado e hostilizado pelo discurso econômico
em especial. Além disso, as duas frentes políticas tinham alguns pontos em
comunhão. O principal é o pressuposto de que o capital é um bem que diferia
os sujeitos. Desta maneira, o liberalismo entende a sociedade baseada no
acúmulo de bens que dá a eles grande importância, podendo agregar aos
homens valor. Lima Barreto (2010:37) observa essa sociedade com certo
desprezo e registra um sentimento negativo a esse respeito, quando afirma:
A vida do homem e o progresso da humanidade pedem mais do que
dinheiro, caixas-fortes atestadas em moedas, casarões imbecis com
lambrequins vulgares. Pedem sonho, pedem arte, pedem cultura,
pedem caridade, piedade, pedem amor, pedem felicidade; e esta, a
não ser que seja um burguês burro intoxicado da ganância, ninguém
pode ter, quando se vê cercado da fome, da dor, da moléstia, da
miséria de quase toda uma grande população.
As duas posturas liberalistas, que representam a vanguarda política do final do
século XIX e início do século XX, consideram o homem negro uma mera
ferramenta de acúmulo de capital, quer livre, quer escravo, pois ora o negro
funciona como um bem, ora na manutenção dos bens.
Embora os dois posicionamentos liberalistas tivessem como escopo o modelo
econômico europeu, a frente que apoiava o livre trabalho sobressaiu em
relação a que apoiava a manutenção do trabalho escravo. O que se poderia
supor, com a libertação do negro escravo, seria o equilibro, mesmo que
demorado, das classes, agora, trabalhadoras remuneradas; contudo, não foi o
que aconteceu, por dois motivos iniciais. Primeiramente, o discurso justificador
do negro escravo ainda perdurava na sociedade burguesa, que preferia ver o
negro distante, anulado socialmente. Houve, inclusive, tentativas de tornar a
sociedade mais branca. Em segundo lugar, o processo de imigração dos
europeus proletários, que vinham à América em busca de enriquecimento.
Esses últimos chegavam e ocupavam ofícios de baixo prestígio social que, se
assim não o fosse, seriam ocupados por negros libertados. Aliado ao discurso
racial à oferta de trabalhadores brancos dispostos à má remuneração, o negro
48
foi ainda mais marginalizado. O fracasso econômico do negro, diante destas
condições, trouxe ainda outro ponto para mencionar é a comprovação da
correlação entre cor da pele e classe socioeconômica.
Por pertencerem à classe socioeconômica mais pobre, recai
sobre o negro outro dado discriminatório, embora a condição
de ser pobre e negro seja reforçada. Nesse sentido, ao negro é
negado o direito de viver plenamente a sua identidade étnica,
pois o modelo branco prevalece, e ele se sente inferiorizado,
sem prestígio e sem o reconhecimento de sua condição
humana. Dessa forma, a população negra, enquanto grupo
social, passa a ser percebida e tratada como ameaçadora,
inferior, odiosa, sendo ela própria a causa do racismo, da
discriminação e da intolerância (NASCIMENTO, 2010:71)
A ideia de que a ascensão no mundo do trabalho está associada à força da
vontade individual é desmistificada, quando se observa a vida de um homem
marcada pela chaga do preconceito racial. Quando jovem, Lima Barreto quis se
tornar médico. Já maduro, o sonho de ser médico foi alterado para o de ser
escritor. Ambos os desejos não foram alcançados. Lima Barreto foi, além de
funcionário público, jornalista e, neste ofício, exerceu importantes diálogos com
representações sociais, literárias e políticas. Fez da possibilidade que a
imprensa lhe permitia importante meio de comunicação social e, na forma da
arte, um rico opus que tinha como principal fonte de produção as mazelas que
eram direcionadas, segundo ele, aos que não eram como a parte burguesa da
sociedade, branca e rica. Mais do que um escritor de romances, novelas e
contos, mostrou-se preocupado com as relações sócio-políticas pelas quais os
jovens do subúrbio carioca eram direcionados na Belle Époque. Para Lima
Barreto,
a literatura é construída por meio da beleza estética que depende da
“substância da obra”, que é o pensamento que o artista investe nela
(apud OAKLEY, 2011: 04).
O escritor considera que a arte não deve preocupar-se com sua construção
estrutural, como se fez no Parnasianismo, em que a arte literária tinha
interesse e fidelidade à técnica. Essa preocupação com a forma em detrimento
ao conteúdo é, para o escritor de Recordações, secundária, pois o que mais
49
interessa à arte, em especial à literatura, é um instrumento sociológico, que
mais se revela pelo conteúdo do que pela forma. Nas palavras de Lima Barreto
(2010: 388)
A beleza [...] é a manifestação por meio dos elementos artísticos e
literários, do caráter essencial de uma ideia mais completamente do
que ela se acha expressa nos fatos reais. [...] Não é um caráter
extrínseco da obra, mas intrínseco, perante o qual aquele pouco vale.
É a substância da obra, não a suas aparências.
Nas palavras do escritor de Recordações, percebe-se que a energia
empregada em seu opus literário não está contida na forma e que o conteúdo
para ele é, de certo modo, uma denúncia, que se marca pela observação da
época que está condicionada pelo racismo. Deste modo, a arte operada por
Lima Barreto constitui , segundo ele mesmo, uma reprodução do mundo à sua
volta.
A integração do negro na sociedade, no final do século XIX e início do século
XX, foi operada por discursos depreciativos associados ao negro, no período
em que o trabalho escravo foi utilizado por todo o mundo. Não se poderia
supor, considerados esses discursos que, ao ser integrado à sociedade, o
homem recentemente libertado do regime escravo fosse inserido à Belle
Époque como protagonista. Mesmo os movimentos abolicionistas, em especial
o sustentado por Joaquim Nabuco, não tinha representantes líderes negros e,
se estes eram representados pelo discurso abolicionista, não é porque a
liberdade humana interessava às classes dominantes, mas porque o sistema
político escravocrata já não representava o modelo liberal de economia
(Fernandes,1978).
Nessas condições, Lima Barreto considera que a verdadeira obra de arte
deveria se comportar como manifestação de resistência política do que ele
considerava prejudicial à sociedade e, principalmente aos jovens negros e
mulatos que, como ele mesmo, tinham o estigma de séculos oriundos da
escravização. Nessa empresa, o que Lima Barreto opera como opus, dentro de
sua enunciação, são suas próprias condições sócio-históricas de produção. O
escritor constrói dentro da enunciação, segundo ele próprio, uma
representação do mundo em que se acostumou viver e perceber as mazelas
50
políticas. Por isso, age na própria enunciação dentro e fora, como protagonista
do mundo extrínseco à enunciação, crítico e atuante na vida pública e política,
e como protagonista no mundo intrínseco à enunciação, como parte dela. No
caso de Recordações, Lima Barreto (1998:243) argumenta em reposta à crítica
que o discurso era autobiográfico, por que:
Foi se como o próprio Isaías Caminha escrevesse suas recordações.
Pensei que, mesmo de tal maneira, ela teria qualidades, pois lá diz
Sheley, creio eu, que os nossos mais doces cantos são so que falam
dos nossos mais tristes pensamentos
O tom biográfico em Recordações não eximiu, para Lima Barreto, o potencial
artístico de sua enunciação Ao contrário, é dessa representação do mundo
exterior à enunciação que, para ele se considera o potencial artístico de fato. É
no mundo sócio-histórico-político que a arte, e a literatura devem estar
apoiadas, para se manifestarem. Aliás, é essa a condição essencial para a
estética artística de acordo com Lima Barreto. Assim, a força motivadora da
produção de Recordações é interdisciplinar, pois antes de considerar a
produção artística também havia interesses políticos
As recordações são fonte rica de dados para a história social e
cultural do Rio de Janeiro no começo do século XX. A condição do
mestiço humilde, interiorano, depois suburbano, e os seus percalços
para integrar-se na vida capital que se modernizava a passos largos;
a rotina do jornal onde achou emprego, com toda a sua galeria de
tipos beirando a caricatura; enfim, o clima de fatuidade e
subserviência que se respirava na imprensa e nos círculos literários
da Belle Époque carioca – tudo são índices de valor documental que
interessam de perto historiador das mentalidades da República Velha.
(BOSI 2002: 187)
Nessa empresa, Lima Barreto encontrou grande fortuna para reproduzir sua
literatura nos jornais em que tinha contato como escritor de periódicos, como
por exemplo, O Comércio, onde se inclinou ao jornalismo, e na Revista Floreal,
onde publicou parte de Recordações e na vida frustrada de funcionário público
amanuense. Aliás, a frustração acompanhou a vida profissional de Lima
Barreto, que não obteve prazer como jornalista, pois considerava que as
relações pessoais estavam influenciadas pelas formações discursivas racistas,
51
fator que o impedia de ter acesso à vida de escritor de literatura em sua
contemporaneidade, onde poderia revelar verdadeiramente o próprio potencial
intelectual. Quanto a esse desconforto, Lima Barreto (1998:281,282) explana:
É isso que me aborrece, mesmo na boca de amigos, porque estou
bastante apto para saber que a maioria dos doutores, seja em que
forem, pode talvez tratar com alguma proficiência da matéria de sua
profissão; mas quando se abalança a escrever sobre assuntos
intelectuais de ordem geral, como literatura, arte, filosofia, enfim, a
manifestar um pensamento, uma vista geral da vida, do mundo e da
sociedade, - a maioria dos doutores revela-se totalmente besta,
fazendo uso de receitazinhas de curandeiro, expectorando clichês e
escrevendo colchas de retalhos. [...] Todos nós que escrevemos, que
queremos realizar uma obra intelectual seja ela qual for, sofremos
muito quando exercemos uma atividade normal na sociedade. Não é
só no comércio ou na banca, como dizem os italianos. é em todas
elas.
Exercer uma atividade normal, para o escritor de Recordações era matéria de
sofrimento. Ele acreditava que sua função intelectual não obtinha crédito
principalmente pelo apadrinhamento, que as classes dominantes estavam
acostumadas e que ele, por sua origem e pelo discurso em torno das próprias
suas condições sócio-históricas de produção do discurso, não teria acesso.
Acreditava, portanto, que sua manifestação política era ainda mais relevante
porque, além de trazer rigor artístico, portava a denuncia de um Rio de Janeiro
– o que, aliás, representava a sociedade brasileira como um todo -, dividido
entre classes; de um lado, a rica burguesia branca e bem apadrinhada, folgada
em conchavos, nepotismo e boas relações, de outro, a classe pobre, negra e
mulata.
O espaço social do negro e do mulato era, definitivamente, reduzido em
detrimento às figuras dominantes do fazendeiro e do imigrante, como descreve
Florestan Fernandes (1978). E é esse um dos pressupostos artísticos da
literatura em Recordações, que pressupõe, de um lado, uma classe dominante
caricata e, e em muitos recortes, cômica e, de outro lado, uma classe oprimida
representada pelo protagonista que, embora muito talentoso e inteligente,
estava submetido à força dos diplomas conseguidos pelo poder de dominação
52
de anos de tradição eurocêntrica, cuja força opressora dessa tradição foi
exposta como unidade tópica e não-tópica, na enunciação de Recordações. A
mudança desse paradigma era urgente, Lima Barreto (1998:243) que
considerava que sua enunciação estava a serviço desse desconforto político,
pois
enquanto os costumes e as leis derem a estes privilégios, e àqueles a
consideração de nobreza, estou disposto a ajudar , até com sacrifício
meu, qualquer rapaz preto, branco, caboclo, amarelo, ou mulato a se
fazer doutor .Não é justo que se venham a obter as regalias do
diploma ( nunca digo pergaminho) os Aluísios de Castro e os
Calmons. É preciso que a coisa seja temperada e os de modesta
extração não sejam todos eles destinados aos duros ofícios em que é
preciso lutar, sofrer, provar capacidade e aptidão. Quanto ao
preconceito de cor, [...] diz o senhor que ele não existe entre nó.
Houve sempre que se ia fazendo preconceito quando o senhor Rio
Branco tratou de “eleganciar” o Brasil. Isto não se prova, sei bem;
mas se não tenho provas judiciais, tenho muito por onde concluir.
O sofrimento causado pela segregação racial e, naquele contexto, que
conduziu a separação de castas sociais, trouxe a Lima Barreto condição de
esclarecer o próprio mundo, expondo formas relacionais explícitas desse
mundo ou não como condução de seu processo de enunciação artística. Desta
maneira, o discurso Recordações não apresenta interesse apenas à produção
literária, mas a urgência em dar voz às condições, a que estavam submetidos o
negro e mulato que, de certo modo, se posicionavam contrários às condições
vigentes.
Essa relação simbiótica entre o extrínseco e o intrínseco é, na construção da
literatura barretiana, não o fim, mas justamente o processo inteiro, que une os
discursos sócio-históricos e a enunciação literária, como eventos que
acontecem concomitantemente. Mais do que a reprodução artística, o autor de
Recordações emerge da enunciação de Recordações como categoria, pois
revela, na sociedade em que está, como protagonista, o lugar social imposto
por anos de tradição, que corroboraram com a depreciação de uma parcela da
sociedade brasileira do fim do século XIX e início do século XX, e mesmo
sacrificando-se, deseja mostrar como protagonista e célula modificadora deste
53
discurso. A enunciação em Recordações é concebida em um universo muito
hostil aos anseios dos homens negros; mesmo assim, mostra a imposição
contrária às castas e ao racismo, de um sujeito que, em seu tempo, sofreu com
as inadequações de sua contemporaneidade.
Consideramos, por fim, que a imagem de autor percebida em Recordações é
parte do discurso, pois integra o dentro e o fora enunciativo, localizando o
discurso literário nesse impossível lugar (Maingueneau, 2006). Desta maneira
se pode pensar em uma imagem de autor que seja também autor das próprias
condições de produção, portanto, sujeito de um discurso.
A imagem de autor em Recordações é um marco de uma época, que pode ser
estudado pelo viés histórico, literário, filosófico ou como sugeriu Lima Barreto,
(1998), antropológico. Em nosso caso, optamos por uma análise
interdisciplinar, amparada pelo arcabouço teórico-metodológico da AD, que se
debruça sobre o exame da cenografia do discurso literário, pois nela emergem
as unidades tópicas e não tópicas que são responsivas na percepção de uma
imagem de autor que tem correspondência extrínseca e intrinsecamente com a
enunciação.
54
CAPÍTULO III
A IMAGEM DE AUTOR: A CENOGRAFIA NA CONSTITUIÇÃO
PARATÓPICA DO DISCURSO LITERÁRIO
3.1 Procedimentos Metodológicos
A Imagem de autor em Recordação do Escrivão Isaías Caminha, de Lima
Barreto, se localiza na fronteira paratópica do discurso literário, lugar onde
sustenta a enunciação na mesma medida em que é sustentada por ela. Esse
atrito entre sustentar e ser sustentado é gerado pela enunciação literária, que
une unidades reconhecidas como práticas circunscritas na história, que podem
ser admitidas ou não, no extrínseco e no intrínseco enunciativo discursivo: as
unidades tópicas e não tópicas. Observar essas unidades, a partir da análise
enunciativo-discursiva que perceba, por aparelhos linguísticos, traços dessas
unidades é inferir formas de representação da imagem de autor. O termo
representação não pode ser entendido como “ o que o autor cria representando
o mundo na enunciação literária”, mas como o autor que participa do mundo
revelando na enunciação literária parte dessa participação como sujeito que
viveu experiências próprias de um lugar e de um tempo.
A partir desse pressuposto, nossa análise caminha em direção à circulação da
fronteira paratópica constituída na cenografia por meio da circulação das
unidades tópicas, aquelas que se mostram na enunciação como princípio de
interação aos que estão envolvidos com ela, e as formações discursivas,
atualizadas por Maingueneau (2008) como unidades não tópicas, que são as
unidades direcionadas pelo olhar do analista, mas que estão circunscritas na
memória da coletividade, por comportamentos, enunciados, gestos, que não
são tolerados e que, mesmo assim, não deixam de ser propagados no
underground enunciativo, em nosso caso, no discurso racista.
Consideramos que as unidades tópicas e não tópicas nos darão forte aparato
para empresa de nosso trabalho de pesquisa que é o de delinear, no discurso
literário Recordações, a imagem de autor que pôde ser atribuída a um opus
55
que não se encerra no discurso, que nos interessa nesta pesquisa, mas que
passa e depende dele.
Nossa análise tem interesse pela cenografia, pois ela é o ponto de acesso do
co-enunciador ao discurso literário (Maingueneau,2006). A cenografia está
associada ao extrínseco do discurso, como rotinas do quotidiano empírico, por
conseguinte, a cenografia engendra unidades tópicas e não tópicas as quais
podemos perceber por meio da compreensão das condições sócio-históricas
de produção do discurso. Desta maneira, nesse capítulo, delineamos as
unidades tópicas e não tópicas, mas retomamos o que está extrínseco e
intrínseco ao enunciado, pois é a cenografia a fonte do discurso e aquilo que
ele engendra (Maingueneau, 2004). Consideramos, ainda, particularmente, as
unidades não tópicas, fonte de representação que, interdiscursivamente,
pertence ao fora e ao dentro do enunciado em Recordações, pois são os
discursos racistas representações que
o narrador-protagonista, Isaías Caminha, declara que não é ambição
literária que o impele a dar ao mundo suas memórias, mas que,
mediante elas, espera modificar a opinião de seus pares, fazê-los
pensar de um modo diferente, para que sejam menos hostis quando
encontrarem gente como ele, com ambições como as que ele tinha
havia dez anos. Em prólogo, Isaías informa-nos que resolveu contar
trechos de seu passado para refutar a tese de que um dia ele tinha
lido num fascículo publicado por uma revista nacional: o mulato era
inferior e estava fadado a fracassar na vida por falta da capacidade
de resistência inerente ao mestiço. (OAKLEY 2011: 50.)
Os interesses do escritor de Recordações e de Isaías Caminha são, em suma,
os desejos de muitos jovens mestiços e negros do final do século XIX e início
do século XX. Essa interseção é mostrada, de maneira simbiótica, por Lima
Barreto, quando diz a um amigo o quanto concordava com a publicação de
Recordações, aceitando não ganhar pela produção do documento, na época,
fator que traria a Lima Barreto status de autor
Fizeste bem em lhe autorizar a imprimir o livro. Não tenho pretensão
alguma de lucro com Caminha. Além de saber que um primeiro livro
tem fortuna arriscada, sabes muito bem que penso sobre essa cousa
de make money com livros. Decerto, se eu estivesse aí, em Paris,
56
havia de guardar bem escondida a pretensão de ter um castelo com o
produto das minhas obras; mas aqui, dentro do Brasil e da língua
portuguesa, as minhas pretensões são mais razoáveis. (1998: 213)
Vemos, em Lima Barreto e em Isaías Caminhas, as mesmas pretensões e as
mesmas realidades que confluem em Recordações. Não é a ambição literária,
ou a criação de fortunas, que fazem com que a enunciação ganhe um potencial
artístico, mas, como o próprio Lima acreditava, a excitação em dizer sobre as
coisas e, principalmente, as coisas que, de alguma forma, representassem a
formação sócio-histórica-política do final de um século e do início de outro,
marcados profundamente pelo preconceito da cor.
A análise baseada apenas nas unidades tópicas, como vimos, não é o único
ponto a ser observado neste trabalho. Trata-se também de um estudo que
relaciona as unidades, que não possuem propriamente um território e que são
construídas historicamente e delineadas pelo olhar do analista. Em
Recordações, vemos circular, na enunciação, a condição do homem negro
como foco do sentimento de frustração pelo qual o enunciador, Isaías
Caminha, passa em seu percurso de vida. Essa frustração, inclusive, justifica a
indignação com a qual Isaias Caminha inicia suas recordações. Não se pode
supor que, na enunciação, esteja explícito onde está representado o
preconceito racial que o narrador logra, pois o discurso literário não lida com o
que está explícito, mas com o que se percebe no processo enunciativo dos que
tomam contato com o enunciado. Desta maneira, podemos recorrer ao texto de
Oakley acima referido, e notarmos a condição determinista pela qual passava o
jovem Isaías e com a qual se inconformava. Essa era parte do que a sociedade
supunha para os homens negros e mulatos. Circulavam periódicos no final do
século XIX e início do século XX, discutindo a “ incapacidade do negro em
relação ao branco”.
Como vemos, nossa análise circula pelos aspectos de vida do escritor de
Recordações, que se comprova ativamente na enunciação e nas condições de
produção desse discurso. A época que produziu Recordações, Lima Barreto
também reproduziu as condições de produção, que são exibidas na
enunciação. Assim, Recordações é uma sombra da sociedade brasileira no
final do século XIX e início do século XX, pois não surge como representação
57
social, mas tem a sociedade como motivo que a faz existir da maneira que
existe.
3.2 A imagem de Autor como sombra literária: análise do intrínseco em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
Recordações narra a trajetória de vida de Isaías Caminha, um jovem muito
mais inteligente do que os outros de jovens de sua época, mas que sofreu,
desde sua saída de casa, o preconceito gerado pela cor de sua pele. Filho de
uma negra com um ex-eclesiástico, o jovem Isaías Caminha não sofre os
males do preconceito em sua infância. Entretanto, o preconceito é desvelado,
na obra, desde o princípio, pois a comparação entre a mãe e o pai que a
personagem Isaías Caminha faz manifesta fortíssima tendência a considerar o
branco superior ao negro. Podemos notar isso no seguinte recorte O
espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de
outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um
deslumbramento (LIMA BARRETO, 2010:67)
Recordações, segundo análise de Bosi (2002), pode ser dividida em três
partes. A primeira com o deslumbramento da infância causado pela inteligência
acima da média, a segunda seria a raiva na juventude por não conseguir
durante o percurso de sua carreira chegar, por direito, aos lugares que imagina
e atribuir a essas barreiras ao preconceito causado pela cor, e, por último, a
resignação meio cômica, meio dramática, na maturidade e a própria inclusão
em um sistema social racista. Nossa amostra estará direcionada por esse
olhar. Extrairemos de Recordações recortes representativos dessas fases, a
que Bosi considerou pertinente para entender a totalidade do discurso.
Nascido no interior do Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século
XX, o jovem Isaías Caminha decide ainda em sua juventude que sua
inteligência está incompatível com a pequenez interiorana. Com o apoio de sua
família e com o apadrinhamento de um coronel amigo de seu tio em sua
58
cidade, o jovem Isaías, decide sair de casa para conquistar a vida com a
promessa feita por um deputado federal de um emprego político na capital.
Ao sair de casa, já em direção à capital carioca, o jovem Isaías Caminha tem
os primeiros contatos com a discriminação. Em uma parada para comer, em
dois recortes do discurso, um homem branco, que estava depois dele em uma
fila, é atendido primeiramente. O sentimento de raiva e rancor começa a ser
incorporado em seu discurso. Esse sentimento fica ainda maior quando, ao
chegar à capital, Isaías não consegue a prometida ocupação profissional e tem
de, por causa da iminente falta de recursos financeiros, sujeitar-se a trabalhar
em tarefas que julgava impróprias para seus conhecimentos. Mesmo se
sujeitando a trabalhar fosse do que fosse, Isaías não consegue emprego. Ao
ser chamado por um português, dono de padaria, para uma entrevista ao cargo
de entregador de pães, o já decepcionado Isaías é rejeitado sem explicação.
Logo fica claro ao jovem que o motivo que o fizera não ser aceito é justamente
a cor de sua pele.
Com o seu amadurecimento ao longo dos anos, Isaías consegue emprego em
um jornal – o qual consta ser uma charge do jornal o Globo -, onde Isaias se
empregou - e, mesmo em um cargo de melhor prestígio, ainda não consegue
cargos, que são ocupados, a vista de Isaías Caminha, por gente menos
preparada que ele.
A vida no jornal se torna possível para o Isaias, porque ele se vê absorvido por
um sistema que o tinha recusado, mas que, nesse estado de violência pela
recusa, deu-lhe recursos financeiros, em especial, para não ter uma vida
totalmente execrada da sociedade dominada pelo branco.
No fim do recorte, Isaías reflete sobre suas condições de vida em relação aos
eventos, que são associados à cor de sua pele e percebe que, se não fosse o
preconceito, a discriminação e as próprias condições sociais, ele teria
alcançado posições muito mais prestigiadas com seu nível de conhecimento.
Contudo, essas afirmações são possíveis, apenas pela retomada que o já
velho Isaías faz de sua vida, desde a adolescência. Retirando de lá cenografias
próximas à vida intrínseca ao discurso, teremos:
59
Recorte I.
A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a Batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: Quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!...
O espetáculo de saber do meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento. (p. 67).
A enunciação de Recordações se constrói, desde o início, como uma
“lembrança”. A existência de verbos no pretérito perfeito resgata o passado
cronológico da vida de Isaias, criando na interação enunciativa o acesso pela
cenografia de Recordações. O resgate do passado opera, na enunciação,
como um indício de como eram as condições sócio-históricas de produção da
época em que viveu o autor de Recordações
Sendo assim, a importância da obra literária que se quer bela sem
desprezar os atributos externos da perfeição de forma, de estilo, de
correção gramatical, de ritmo vocabular, de jogo de equilíbrio das
partes em vista de um fim, de obter unidade na variedade; uma tal
importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e
determinado pensamento de interesse humano, que fale do problema
angustioso do nosso destino em face do infinito e do Mistério que nos
cerca, e aluda às questões de nossa conduta na vida. (BARRETO
1998: 388)
O exterior ao discurso, para o autor de Recordações é de extrema importância,
pois é nessa tensão que se aloca a beleza estética da literatura. Assim, a
reprodução de uma cenografia de recordação, ultrapassa a enunciação de
Isaias, mas incorpora a recordação típica de muitos jovens de mesmo destino
60
por conta do preconceito de cor e que, na maturidade, repassam o passado.
Como disse Lima Barreto, já maduro, em carta enviada a um colega escritor
ainda jovem
O senhor está moço, muito e há de estranhar essa minha resolução,
mas, quando chegar à minha idade, depois de lutas e desgostos de
toda ordem, dera como tenho razão. Aproveite, portanto, a sua
mocidade e escreva livros como o que me deu a hora de ofertar, para
não ser surpreendido aos quarenta anos, com o desânimo e a
desesperança. (BARRETO 1998: 288)
A voz que enuncia relembra duas principais figuras infantis; de um lado, o pai
que o representa o saber dentro do núcleo familiar, o qual predestina o garoto
ao um destino próximo ao de Napoleão. De outro lado, a mãe que realça a
inteligência do pai pela falta de ilustração e saber. O resgate da formação
discursiva começa a ser acentuado neste ponto. A estrutura familiar que se
apresenta no Recorte I é bifurcada e o principal “pavimento” dessa bifurcação é
o que sabe o pai e o que sabe a mãe. Destarte, recordando o abordado nessas
condições de produção, Munanga (1986) chamou de erotismo afetivo. O
processo de assimilação do homem negro do discurso do branco aconteceu,
também, pelas relações sexuais e pelas eventuais proles geradas por estas
relações. Esse tipo de relação tornou-se comum, sendo mais comum a relação
do homem branco com a mulher negra, pois o contrário era considerado
indevido pela consideração, preconceituosa, sobre as genitálias dos homens
negros serem desproporcionais às genitálias de mulheres brancas.
Existe, ainda, uma questão em torno da dominação do estereótipo de homem
branco como dominador. O seio familiar, em Recordações, tem um dominador
que é apontado pela figura paterna que, nos olhos da criança, relembra o
adulto que enuncia e revela-se como um “deslumbramento”. Registra-se aí um
modelo social, cuja simbiose se constitui dentro e fora da enunciação de
Recordações. Para facilitar nossa análise colocaremos letras, entre parênteses,
para segmentar os recortes.
Recorte II.
(a) Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados... (b) Se minha mãe me aparecia triste e humilde - pensava eu naquele tempo - era
61
porque não sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva...
Foi com estes sentimentos que entrei para o curso primário. Dediquei-me açodadamente ao estudo. Brilhei, e com o tempo foram-se desdobrando as minhas primitivas noções sobre o saber.
(c) Acentuaram-se-me tendências; pus-me a colimar glórias extraordinárias, sem lhes avaliar ao certo a significação e a utilidade. Houve na minha alma um tumultuar de desejos, de aspirações indefinidas. Para mim era como se o mundo me estivesse esperando para continuar a evoluir...
Eu ouvia uma tentadora sibila falar-me, a toda a hora e a todo instante, na minha glória futura. Agia desordenadamente e sentia a incoerência dos meus atos, mas esperava que o preenchimento final do meu destino me explicasse cabalmente. Veio-me a pose a necessidade de ser diferente. Relaxei-me no vestuário e era preciso que minha mãe me repreendesse para que eu fosse mais zeloso.
Neste recorte, a enunciação mantém-se com verbos no passado, compondo
uma cenografia de recordação. Vemos, ainda, a voz que enuncia sem um
referencial evidente, mas que compõe o arquétipo de uma criança, que vive
uma rotina comum. A cenografia de recordação acessa os envolvidos na
enunciação de uma maneira a construir uma espécie de conversa em que
apenas uma voz é ouvida. Nesse sentido, essa voz pode, ao longo de toda a
enunciação, criar argumentos capazes de defender um ponto de vista sobre
algum posicionamento, quer patenteando, quer convencendo.
Vemos que, na cenografia em questão, o enunciador aproxima o co-enunciador
quase como num diálogo, no Recorte II (a).
O verbo, que inicia o período no pretérito, insere a ideia de conclusão sobre um
assunto que o co-enunciador já está habituado. Essa ideia é própria da
construção de um diálogo criado a base de uma recordação. Vê-se a
cenografia de uma “conversa” informal, sendo gerada pelo enunciado que, no
Recorte II(b), se incorpora à enunciação com os pronomes “me”, ”mim” e “ eu”.
As unidades transversas são alocadas para constituir cenografias, dentro do
discurso literário, que estejam de acordo com a vida cotidiana dos homens. O
autor de Recordações preferiu as cenografias de contato dinâmico, que estão
mais próximas aos gêneros da oralidade.
62
O discurso não tópico é mantido no Recorte II(b) pelas referências que temos
do Recorte I, pois o enunciador, no traço comparativo entre pai e mãe, decide
associar-se ao universo paterno e, em certa medida, distanciar-se do universo
materno.
No Recorte II (b), a mãe é caracterizada como “triste e humilde”. Mas essa
tristeza que, no início, é relacionada ao saber, que a mulher possuía, era
apenas temporária. O enunciador reflete sobre a impressão que tem da mãe.
Não revela, contudo, o que no futuro se revelou a respeito da condição materna
de “triste” e “humilde”. Nesse ponto, inicia-se uma tensão que faz emergir
aspectos sobre uma imagem autoral relacionada com a forma de dizer e o que
se dizer.
A forma de dizer se filia aos muitos diálogos públicos sobre política e sobre a
visão de um homem que indignado com a situação sócio-histórica do homem
negro e, ainda, acuado pelo discurso negativo a respeito da própria cor, só tem
como direito falar a público a verdade, ou seja, o que sente a respeito da
condição que tem
Se a minha modesta pessoa deseja conseguir alguma coisa, é retirar
do “doutor” o halo de aristocracia , de sujeito digno de executar tudo,
melhor que os outros, mesmo aquilo que seja inteiramente diferente
da profissão que lhe marca o diploma.
O doutor não entende da nossa gente, de alto a baixo, é sempre o
mais apto, não pelo que ele revela , mas por ser doutor.(BARRETO
1998:243)
Além disso, o que se diz revela a insatisfação com o comportamento da época.
Essa representação gera uma imagem de acordo com o discurso, em sua
enunciação, em seu conteúdo, em seu interior e em seu exterior. A partir disso,
essa imagem, ora fora, ora dentro, torna-se indissociável em Recordações,
quando
a enunciação literária desestabiliza a representação que se tem
normalmente de um lugar, algo dotado de um dentro e de um fora. Os
“ meios “ literários são na verdade fronteiras. A existência social da
literatura supõe ao mesmo tempo a impossibilidade de ela se fechar
em si mesma e a de confundir com a sociedade “comum”, a
63
necessidade de jogar com esse meio-termo e em seu
âmbito.(MAINGUENEAU 2006:92)
É nessa tensão paratópica que se encontra o discurso não tópico, aquele que,
apresentados no Recorte associam a exclusão da mãe à sua condição de
negra. E, assim, associam a esse discurso e a esta formação discursiva, uma
imagem de autor negra.
Recorte III
(a) A minha energia no estudo não diminuiu com os anos, como era de esperar; cresceu sempre progressivamente. (b) A professora admirou-me e começou a simpatizar comigo. De si para si (suspeito eu hoje), ela imaginou que lhe passava pelas mãos um gênio. Correspondi-lhe à afeição com tanta força d’alma, que tive ciúmes dela, dos seus olhos azuis e dos seus cabelos castanhos, quando se casou. Tinha eu então dois anos de escola e doze de idade. (c) Daí a um ano, saí do colégio, dando-me ela como recordação, um exemplar do “Poder da Vontade”, luxuosamente encadernado, com uma dedicatória afetuosa e lisonjeira. Foi o meu livro de cabeceira. Li-o sempre com mão diurna e noturna, durante o meu curso secundário, de cujos professores, poucas recordações importantes conservo hoje. Eram banais! Nenhum deles tinha os olhos azuis de D. Ester, tão meigos e transcendentais que pareciam ler o meu destino, beijando as páginas em que estava escrito!...
Neste recorte, o enunciador mantém a cenografia de recordação. Contudo,
essa recordação mantém relações de proximidade com o co-enunciador.
Estabelece, na constituição da cenografia, respondendo expectativas que, por
ventura, o co-enunciador tenha, no Recorte II (a).
Esse “diálogo” gerado, vai se intensificando e normatizando a ideia dos eventos
que, no futuro, não justificaram às expectativas do enunciador. Vemos no
seguinte recorte, a similaridade do Recorte II (c) com o Recorte III (b).
A recorrência da falsa expectativa vai marcando presença na cenografia de
conversa. Nos recortes examinados até então, percebemos a criação de uma
cenografia, que tende a criar uma expectativa que não será confirmada,
“pensava eu naquele tempo”, “suspeito eu hoje”. A construção narrativa no
passado é contraposta á situação do hoje como uma decepção do que se
esperava e do que realmente tinha acontecido, sem, contudo, revelar no início
64
o ponto de clímax, que quebrou em algum momento a expectativa inicial.
Nesse aspecto, discorre Oakley da seguinte forma:
O pai, ex-padre, era homem que sabia do grande herói do século e
chamava a atenção do menino para a coincidência das datas de seu
nascimento e de um dos triunfos do Corso. Um signo de vitórias
futuras, que marcava o desapontar de um eu já mergulhado em
sonhos de uma grandeza posta muito acima da sua condição de raça
e classe. (2011:188.)
A expectativa relacionada ao pai, de alguma forma, para Oakley, não
representa a classe a qual pertence o enunciador. A imagem que se propaga é
a da voz, denunciadora de um homem, que sofreu o preconceito gerado pela
classe e pela cor,
Na realidade, Recordações do Escrivão Isaías Caminha pode ser
considerado um romance social, psicológico ou existencial. Em todo
caso, a intenção inicial de Lima Barreto era criar um romance de
ilusões perdidas. (OAKLEY 2011:51)
As ilusões perdidas são projetas pela cenografia inicial. Apresentadas nos fatos
narrados na interação enunciativo-discursiva no início. Ainda, essas ilusões são
perdidas por causas, que começam a ser apresentadas, em primeiro plano
como deslumbramento, em um discurso de superioridade de beleza e de saber,
como se pode constatar no Recorte III (b).
Uma segunda figura que logra admiração do enunciador é a professora, que é
apresentada, pelo olhar do enunciador, como uma mulher que “sabe” e que
possuir “olhos azuis e cabelos castanhos”. Essa mulher, além disso, apresenta-
se como alguém de quem o enunciador cria um sentimento de ciúme, de inveja
“quando se casou”. Contudo, existe a expectativa do enunciador de que a
mulher também o admira. E essa expectativa é gerada pelo nível de
conhecimento do protagonista
Temos, ainda no Recorte III (b), a existência de um agrupamento de
informações, que alocam as condições do negro e do mulato no final do século
XIX e início do século XX.
65
a perpetuação, em bloco, de padrões de relações raciais elaboradas
sob égide da escravidão e da dominação senhorial, tão nociva para o
“ homem de cor”, produziu-se independentemente de qualquer temor,
por parte dos “ brancos”, das prováveis consequências econômicas,
sociais ou políticas da igualdade racial e da livre competição com os
“negros”. Por isso, na raiz desse fenômeno não se encontra nenhuma
espécie de ansiedade ou inquietação, nem qualquer sorte de
intolerância e de ódios raciais, que essas duas condições fizessem
irromper na cena histórica. Em nenhum ponto ou momento o “
homem de cor” chegou a ameaçar seja a posição do “ homem
branco” na estrutura do poder da sociedade inclusiva, seja na
respeitabilidade e a exclusividade de seu estilo de vida (FERNANDES
1978: 250)
Nesse sentido, aos homens, fossem negros ou não, cabia a força do trabalho e
do esforço pessoal como recompensa pela ascensão socioeconômica.
Todavia, essa ascensão não passava de um mito gerado pelo liberalismo, pois
os patrimônios eram poucos, ou nada, divididos, cabendo a ascensão
econômica apenas aos brancos. E isso era evidente, por que [os negros] não
progrediam como os imigrantes que chegaram aqui com tão pouco e logo
tinham alcançado algum avanço? (SANTOS, 2002:119). As condições sócio-
históricas de produção são, nesse ponto, fortemente inseridas e delineadas às
condições de vida do enunciador, em Recordações. Aliás, torna-se tão
simbiótico extrínseco e intrínseco, que não existem condições distintas para o
fora e para o dentro, pois é na paratopia literária que emergem as unidades
não tópicas, como o racismo confirmado no discurso literário.
As unidades não tópicas não são identificadas por dizer próprio do racismo,
como, por exemplo, um xingamento, mas pelas condições de produção do
enunciador que percebe o racismo como parte destas condições. Assim, nos
Recortes em que se evidenciam o “saber” e o “cabelo castanho e olhos azuis”
da professora, bem como, no Recorte em que a ignorância materna ao saber
paterno, o universo extrínseco ao discurso, que representa a época de
reprodução e tiragem de Recordações é, interdiscursivamente, recuperado
pelas formações discursivas de uma comunidade discursiva, que revela um
posicionamento do autor, portanto, sua própria imagem representada na
enunciação, pois que
66
o posicionamento supõe a existência de redes institucionais
específicas, de comunidades discursivas que partilham um conjunto
de tiros e normas. Podemos distinguir comunidades discursivas de
dois tipos, estreitamente imbricadas: as que gerem e as que
produzem o discurso. Um discurso constituinte não mobiliza apenas
autores, mas uma variedade de papéis sociodiscursivos.
(MAINGUENEAU 2008a: 44)
Os papéis gerados na cenografia, e, ainda, unidos às condições sócio-
históricas de produção, condicionam ao discurso racista ao qual o enunciador
está associado, sem perceber, contudo, enquanto é uma criança. Mesmo
assim, o discurso racial não deixa de ser representado no Recorte III (c)
O presente dado pela professora, que serviu como grande estímulo ao jovem
enunciador, intitula-se “o poder da vontade”. Esse título, dado ao enunciador,
relaciona-se ao período sociopolítico liberalista, próprio do início do século XX
no Brasil, em que se supunha que é a “vontade” individual força motriz das
ações e do movimento da vida e que, por isso, ser negro, mesmo naquelas
condições, não evitaria a ascensão econômica, social e política, do jovem
Isaías..Essa expectativa, como temos analisado, não será confirmada. Mesmo
assim, o enunciador é convencido pelo conselho e pelos “olhos azuis“ de Dona
Ester.
Em nota, Isabel Lustosa, escreveu na edição de 2010 de Recordações que, na
infância, Lima Barreto teve uma professora, D. Annie Cunditt, a quem se
afeiçoou e cuja descrição corresponde à imagem de Dona Ester. A imagem de
autor que se formata, assemelha-se com o ethos discursivo, ou, pelo menos,
uma imagem de autor, que entende os percalços pelos quais atravessava a
vida de um jovem mulato e negro no final do século XIX e início do século XX.
Tanto a cenografia quanto as formações discursivas compõem uma imagem de
autor correlata às condições sócio-históricas em que Recordações foi
produzido. Uma imagem de autor mulata, inteligente e com grandes
expectativas de futuro que a inteligência, na juventude, lhe trairia na
maturidade.
67
Recorte IV.
(a) Quando acabei o curso do Liceu, tinha uma boa reputação de estudante, quatro aprovações plenas, uma distinção e muitas sabatinas ótimas. Demorei-me na minha cidade natal ainda dois anos, dois anos que passei fora de mim, excitado pelas notas ótimas e pelos prognósticos da minha professora, a quem sempre visitava e ouvia. (b) Todas as manhãs, ao acordar-me, ainda com o espírito acariciado pelos nevoentos sonhos de bom agouro, a sibila me dizia ao ouvido: Vai, Isaías! vai!... Isto aqui não te basta... Vai para o Rio! Então, durante horas, através das minhas ocupações quotidianas, punha-me a medir as dificuldades, a considerar que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações, protetores que me pudessem valer... (c)Que faria lá, só, a contar com as minhas próprias forças? Nada... Havia de ser como uma palha no redemoinho da vida - levado daqui, tocado para ali, afinal engolido no sorvedouro... ladrão... bêbado... tísico e quem sabe mais? Hesitava. De manhã, a minha resolução era quase inabalável, mas, já à tarde, eu me acobardava diante dos perigos que antevia.
A cenografia de conversa continua. Há, em poucos recortes, uma interação
entre “personagens”, mas a manutenção de um diálogo constante com o co-
enunciador. Esse diálogo se mantém vivo, mesmo na mudança de ambiente,
ou no avanço cronológico pelos marcadores de tempo, como vemos no
Recorte IV(a).
O encadeador “quando” iniciando o período, aloca o co-enunciador em um
tempo no espaço, mantendo o ato enunciativo atualizado ao espaço da
enunciação. A cenografia ainda se configura por outros elementos, como a
introspecção do enunciador com o que ele “pensa”. Isso é possível na
cenografia apresentada, porque o co-enunciador tece a enunciação como ato
de fala. Por outras palavras, uma conversa acontece, quando o enunciador
expõe fatos passados, presentes ou futuros, projetando o que se configura na
memória individual. E, em Recordações, a memória é sempre mostrada, como
podemos notar no Recorte IV (b)
Os sonhos expostos pelo enunciador revelam o que dizia a Sibila, figura
mitológica que, na enunciação, representa o eco dos pensamentos do jovem
enunciador. O jovem enunciador recupera, também, o desejo que começa a ter
de ir para o Rio de Janeiro, por considerar o interior onde nasceu e criou-se,
68
pequeno diante aos seus sonhos e de sua inteligência. Isso nota-se, mais
especificamente, no Recorte IV (c).
A cenografia de conversa permanece, ainda, com as perguntar retóricas feitas
pelo enunciador. Essas perguntas, nessa cenografia, têm a função de manter a
atenção em um processo dialógico. Gera, no co-enunciador, expectativas,
mantém a atenção e o foco em um diálogo do qual o co-enunciador só pode
participar como expectador, considerando que sua voz não será ouvida ou lida.
As formações discursivas, aqui, projetam-se como expectativas em relação ao
destino de enunciador. Contudo, a falta de segurança em relação a “contar com
as próprias forças” se contrapõe ao um destino marcado por “
ladrão...bêbado... tísico e quem sabe mais ?” A oposição direta entre “futuro
glorioso” e ladrão...bêbado... tísico e quem sabe mais ?” sugere-nos um
processo na formação discursiva de integração com o interdiscurso
O suburbano funcionário público Afonso, talvez tentasse aplacar a dor
e a frustração de não poder viver exclusivamente daquilo que mais
gostava – escrever – entregando-se progressivamente à bebida. Por
trás daquela mesa, no escritório de repartição pública, escondia-se
um escritor e apaixonado pelas letras. [...] aos dezesseis anos,
quando ingressara na Escola Politécnica, de certa forma, a vida se
apresentava promissora. (BOTELHO 2002: 48)
O alcoolismo colidi, paratopicamente, no plano extrínseco e intrínseco do
enunciado. Nesse sentido, vê-se apresentar-se um discurso muito negativo
sobre as expectativas da vida do enunciador, relacionado ao discurso sobre o
negro e o mulato no final do século XIX e início do século XX. Sob esse
pressuposto, temos a imagem de um autor, que se forma nessa união, fora e
dentro do discurso, relacionada à vida do autor e a do enunciador de
Recordações, como uma verdade apreendida das condições sócio-históricas
em que viviam os homens negros e mulatos daquela sociedade, na medida em
que se encontram submetidos, isto é, “propensão do negro se concentrar na
cidade, para “viver na vadiagem” (Fernandes 1978). Fernandes discorre, ainda,
sobre as condições que os homens negros e mulatos foram submetidos na
vida, nos centros urbanos. Abandonados pelo Estado e inseridos em condições
sociais negativas, o homem negro e mulato eram obrigados a viver à margem
69
da sociedade. A vida do homem negro e mulato longe do trabalho,
compulsoriamente, foi interpretada pelo povo, acostumado à negativação dos “
homens de cor negra”, como vadiagem
os recursos adaptativos e integrativos da “ população de cor”
revelaram-se insuficientes para criar tal padrão histórico de mudança
social – o que expôs essa população, prolongadamente, aos efeitos
sociopáticos da miséria, e ao impacto acumulativo da reação em
cadeia dos aludidos efeitos. Numa população que não conseguia
sequer ordenar as alterações econômicas e sócio-culturais no tempo,
o poder destrutivo desse impacto é naturalmente alto. Pois as forças
sócio-culturais indisciplinadas e incontroláveis passam a concorrer,
incessantemente, para alimentar a área da desorganização
social.(1978 :227)
Percebemos que o discurso negativo sobre os homens negros e mulatos é
absorvido pelo enunciador, que contrapõe, em relação ao próprio destino, às
vantagens de uma vida consagrada pelo saber – até aqui associado aos
brancos- e a vida entregue às desventuras, associadas aos homens negros de
mulatos.
Recorte V
(a) Um dia, porém, li no “Diário de * * *” que o Felício, meu antigo condiscípulo, se formara em Farmácia, tendo recebido por isso uma estrondosa, dizia o “Diário”, manifestação dos seus colegas. Ora Felício! pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também - eu que lhe ensinara, na aula de português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por quê!?
Li essa notícia na sexta-feira. Durante o sábado, tudo enfileirei no meu espírito, as vantagens e as desvantagens de uma partida. Hoje, já não me recordo bem das fases dessa batalha; porém uma circunstância me ocorre das que me demoveram a partir.(b) Na tarde de sábado, saí pela estrada fora. Fazia mau tempo. Uma chuva intermitente caía desde dois dias. Saí sem destino, a esmo, melancolicamente aproveitando a estiada.
Passava por um largo descampado e olhei o céu. Pardas nuvens cinzentas galopavam, e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada nelas. A mancha aproximava-se e, pouco a pouco, via-a subdividir-se, multiplicar-se; por fim, um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado em dois ramos, divergentes de um pato que voara na frente,
70
a formar um V. Era a inicial de “Vai”. Tomei isso como sinal animador, como bom augúrio do meu propósito audacioso. No domingo, de manhã, disse de um só jato à minha mãe: - Amanhã, mamãe, vou para o Rio.
A cenografia instituída, nesse Recorte, promove uma enunciação aferida pelo
enunciador ainda jovem. Desloca-se, assim, o enunciador que faz uma
retrospectiva para outro momento da enunciação em que, enquanto criança,
cria expectativas positivas sobre o seu próprio destino. Essas expectativas são
alocadas na comparação de saberes entre o enunciador jovem e o saber de
um amigo seu, de quem recebe notícia sobre a graduação em farmácia.
Tomemos o Recorte V(a) como exemplo.
A pergunta final “ Por quê?” sugere, na cenografia de conversa, um pacto entre
os envolvidos na cena enunciativa que diz respeito a um processo lógico. Esse
pacto está na configuração de uma sociedade que se habitou a diplomação
como ascensão econômica
Numa sociedade como a nossa em que certas virtudes
senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do
espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns
dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de
bacharel, podem equivaler a autênticos brasões de nobreza.
Aliás, o exercício dessas qualidades que ocupam a inteligência
sem ocupar os braços, tinha sido expressamente considerado,
já em outras épocas, como pertinente aos homens nobres e
livres, de onde, segundo parece, o nome liberais dado a
determinadas artes, em oposição às mecânicas que pertencem
às classes servis.(HOLANDA 1968: 51)
A cenografia toma contato com um e liga ao pressuposto da época em que a
enunciação está imbricada, o homem inteligente ascende economicamente.
Esta máxima, apresentada no Recorte V, é bem mais acentuada em
decorrência dos símbolos que expressam a voz do enunciador ainda jovem.
Vê-se, assim, porque a enunciação deixa de ser conduzida, nesse ponto, pela
voz madura inicial e passa a ser conduzida, quase que de maneira mística,
pela voz de um jovem. Podemos tomar o Recorte V(b) como exemplificação.
71
A enunciação, neste ponto, insere, topicalizando a cenografia pela locução
adverbial “na tarde de sábado” e inclui, por conseguinte, um novo espaço e um
novo tempo, mantendo, como em outros recortes, a cenografia de conversa,
unilateralmente. Nesse novo espaço, o enunciador recebe a mensagem de
ótimo agouro, que ele fia ser o próprio destino, comunicando-se, de maneira
fantástica, consigo.
O discurso não tópico emerge, nessa condição, pela construção do símbolo
agourento descrito no recorte acima. Embora sejam os patos que dizem “Vai”,
são patos de uma espécie muito peculiar, “um bando de patos negros”. A cor
negra se torna, nesse ponto, um símbolo de coragem. A descrição do que
nasce como uma nuvem cinzenta e que, aos poucos, a partir de processos de
transformação muito rápidos, se modifica a “bando de patos negros”, chega,
por fim, a ser representada pela expressão Tomei isso como sinal animador,
como bom augúrio do meu propósito audacioso.
O encorajamento do enunciador, ainda criança, metamorfoseia-se de nuvem
cinzenta a um bom agouro, que o faz tomar a decisão de ir para um grande
centro urbano, lugar onde teria sucesso por sua inteligente maior do que a de
muitos. As cenografias e as unidades tópicas circulam, em uníssono, São,
portanto, indissociáveis.
A cenografia de “conversa” que propõe o enunciador em Recordações, partindo
de que, na infância, a pele negra não seria um problema contraposto a uma
inteligência acima da média corroboram com as condições sócio-históricas de
produção e promove, assim, um agrupamento interdiscursivo de uma imagem
de autor colaborativa do tempo, da mensagem e do valor estético que apregoa
a Recordações, como artista e como empenhado nas condições do homem
negro de uma época, oprimido por um discurso de exclusão.
Os múltiplos contatos entre estudantes negros de diversas
procedências abriram-lhe os olhos sobre a sorte reservada a seu
povo em toda a parte. Assim, chegaram rapidamente a uma
consciência racial ( não- racista). Eles se convenceram de que a
opressão sofrida não era apenas a de uma classe minoritária sobre
uma outra majoritária inferiorizada, mas ao mesmo tempo a de uma
raça, independente da classe social. (MUNANGA 1986: 39)
72
O processo paratópico, em Recordações, é percebido por uma rede
interdiscursiva que, no processo de enunciação, se desvela pelo olhar analítico,
que é possibilitado pelo arcabouço teórico-metodológico da AD,
particularmente, pelas condições sócio-históricas de produção de
Recordações. O primado do interdiscurso gera uma identidade de autor, que
está de acordo, em muito, com o ethos discursivo, contudo, que não é
apresentado e referenciado apenas na enunciação, mas pela maneira com a
qual o autor se apresenta no processo paratópico, que mencionamos acima.
Recorte VI
(a) Minha mãe nada respondeu, limitou-se a olhar-me enigmaticamente, sem aprovação nem reprovação; mas, minha tia, que costurava em uma ponta de mesa, ergueu um tanto a cabeça, descansou a costura no colo e falou persuasiva:
- Veja lá o que vai fazer, rapaz! Acho que você deve aconselhar-se com o Valentim!
- Ora qual! fiz eu com enfado. Para que Valentim? Não sou eu rapaz ilustrado? Não tenho todo o curso de preparatórios? Para que conselhos?
- Mas olhe, Isaías! você é muito criança... Não têm prática... O Valentim conhece mais a vida do que você. Tanto mais que já esteve no Rio...
Minha tia, irmã mais velha de minha mãe, não tinha acabado de dizer a última palavra, quando o Valentim entrou envolvido num comprido capote de baeta.
(b) Descansou alguns pacotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou o boné com o emblema do Correio e pediu café.
- Você veio a propósito, Valentim. Isaías quer ir para o Rio e eu acabo de recomendar que se aconselhasse com você.
- Quando você pretende ir, Isaías? indagou meu tio, sem surpresa e imediatamente:
- Amanhã, disse eu cheio de resolução.
Ele nada mais disse. Calamo-nos e minha tia saiu da sala, levando o capote molhado e logo depois voltou, trazendo o café.
- Quer parati, Valentim?
- Quero.
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O enunciador, nesse recorte, mantém-se como detentor da voz a ser ouvida;
contudo, sofre deslocamento. Até aqui, poucos vezes, a enunciação tinha
passado pela “voz” de outros enunciadores, mas nesse ponto, um diálogo
cenográfico entre os membros do núcleo familiar do enunciador é presenciado,
e o co-enunciador assume a posição de espectador de uma cenografia
arrolada pela narração do enunciador de Recordações.
Os membros no núcleo familiar do enunciador são apresentados pela relação
de parentesco, que têm com o protagonista: “mãe”, “tia”, e “tio”, que também é
tratado por “Valentim” e “ tio Valentim”.
A conversa se trava por meio de discurso direto, representado por travessão.
Contudo, o co-enunciador inicial não é excluído da cenografia de conversa,
pois esse momento se representa, interinamente, como exposição de fatos
passados na memória do enunciador.
A enunciação não tópica aparece com mais ênfase no Recorte VI (a). O
enunciador se relaciona com a parte materna da família que, de acordo com a
análise de recortes anteriores, percebe-se ser a parte da família de Isaías que
tem pele preta. A cenografia de conversa aproxima os enunciadores, no
cenário de recordação, pela exposição do enunciador da decisão revelada no
Recorte V. O funcionário do Correio, Valentim, é apresentado como homem
mais ilustre. Entretanto, essa característica é limitada pela condição que se
esclarece, ainda nesse recorte. Valentim aceita a bebida ofertada. Não
surpreende o fato, de esta bebida ser parati, como vemos no estudo de
Joaquim Botelho, em citação feita de João Antônio:
Conheci-o por volta de 1916. O primeiro ponto de parada de Lima
Barreto em suas andanças e bebericagens pelos bares urbanos era
um barzinho da sua Sachet (entre as ruas Sete de Setembro e do
Ouvidor). O barzinho era de três portas, um balcão, uma sala curta,
um mictório. Ali serviam-se café, bebidas. No mesmo prédio havia
uma livraria pequena, de Francisco Shetino (cujo filho era poeta),
onde se vendiam jornais, revistas e, principalmente, publicações
estrangeiras e de literatura e obras de interesse geral. (...). Aquele
era o primeiro ponto, a livraria, na passagem de Lima Barreto. Lima,
em geral, saía da Careta, na rua Sete de Setembro. (...) Pedia parati.
74
Recusava qualquer outra bebida alcoólica, inclusive Cerveja.
(2002:52.
A relação do homem negro com o álcool é revelada. Além disso, retoma um
pressuposto social apresentado já no Recorte IV (c), o de que os “ homens de
cor” estavam destinados a um futuro relacionado “à vadiagem”. Esse discurso
opressor era a condição sócio-histórica de uma sociedade excludente que, não
via lugar social ao homem negro.
A cenografia revela um discurso racial observado por um menino, que fugia do
discurso de condicionamento social em que estava submetida toda a sua
geração. Por força e por entusiasmo de um bando de pássaros negros, o
enunciador justifica ao co-enunciador, por uma cenografia de diálogo, os
percalços em que se envolviam a sociedade, de maneira geral. É desta
simbiose que se apresenta um autor que compactua com esse discurso. Pelo
menos, de maneira a denunciá-lo.
Ora, a análise da atitude racista revela três elementos importantes já
presentes no discurso pseudojustificador que acabamos de ver:
descobrir e pôr em evidencia as diferenças entre colonizador e
colonizado, valorizá-las, em proveito do primeiro e em detrimento do
ultimo e levá-las ao absoluto, afirmando que são definitivas, e agindo
para que assim se tornem. (MUNANGA 1978: 21)
Vemos que, na cenografia existente, como unidade tópica, e nas formações
discursivas que agrupam as unidades não tópicas, o racismo se manifesta no
diálogo de um enunciador em Recordações, que poderia chamar Isaías,
Afonso, ou muitos outros negros do final do século XIX e início do século XX. A
imagem de autor que emerge condição paratópica do discurso literário é, em si
mesma, resultante das condições sócio-históricas de produção de
Recordações.
Já no Rio de Janeiro, o protagonista permanece em situações que remetem
aos conflitos do interior e do exterior. As condições sócio-históricas a que os
homens negros estavam submetidos denunciam um lugar do descrédito. Isso,
contudo, não era uma atividade revelada, aceita, ou enunciada, mas ação que
se percebia de maneira clandestina e escondida.
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Recorte VII
(a) O trem parara e eu abstinha-me de saltar. Uma vez, porém, o fiz; não sei mesmo em que estação. Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos passageiros. Servi-me e dei uma pequena nota a pagar. Como se demorassem em trazer-me o troco reclamei: "Oh! fez o caixeiro indignado e em tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se rouba, fique sabendo!" Ao mesmo tempo, a meu lado, um rapazola alourado reclamava o dele, que lhe foi prazenteiramente entregue. (b) O contraste feriu-me, e com os olhares que os presentes me lançaram, mais cresceu a minha indignação. (c) Curti, durante segundos, uma raiva muda, e por pouco ela não rebentou em pranto. Trôpego e tonto, embarquei e tentei decifrar a razão da diferença dos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei em revista a minha roupa e a minha pessoa. Os meus dezenove anos eram sadios e poupados, e o meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros largos e os membros ágeis e elásticos. As minhas mãos fidalgas, com dedos afilados e esguios, eram herança de minha mãe, que as tinha tão valentemente bonitas que se mantiveram assim, apesar do trabalho manual a que a sua condição, a obrigava. Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não fossem extraordinariamente regulares, eu não era hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada.
(d) Além de tudo, eu sentia que a minha fisionomia era animada pelos meus olhos castanhos, que brilhavam doces e ternos nas arcadas superciliares profundas, traço de sagacidade que herdei de meu pai. Demais, a emanação da minha pessoa. os desprendimentos da minha alma, deviam ser de mansuetude, de timidez e bondade... Por que seria então, meu Deus?
Na cenografia mostrada, no intrínseco enunciativo, há um jogo direto com o
extrínseco, e é nesse jogo de dentro e fora que podemos notar as unidades
não tópicas que estão reveladas apenas na dimensão das condições sócio-
históricas de produção do discurso Recordações. O tópico enunciativo
mantém-se nas referências ao passado, na recordação de um jovem, agora,
saído de sua casa, uma “espécie” de proteção, e irá desbravar o mundo em
busca de crescimento socioeconômico. Essa condição é construída no “dentro”
da enunciação pelo autor como uma sombra da própria condição de vida.
Podemos notar uma quebra de expectativa em relação às partes segmentadas
no Recorte VII. No Recorte (VII(a)), a cenografia mostra um jovem que não
passa por nenhum problema, observa o mundo com a novidade natural a um
jovem que sai de casa, sem grande tribulação; contudo, essa calma inicial é
abruptamente quebrada pelo acontecimento final do segmento, em que um
rapaz branco é tratado com preferência.
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No segmento VII (b) Isaías sofre uma forte amargura, que é mantida e revelada
em todo o Recorte VII. No entanto, podemos perceber que essa amargura não
é fruto de uma angústia, omitida pelo autor, e investigada por Isaías. Essa
investigação pode ser notada na comparação física do branco e do negro que
existe entre os segmentos VII (c) e VII (d). O branco e o negro são comparados
sem, contudo, apresentar uma denuncia marcada linguisticamente, a diferença
no tratamento dado a brancos e negros que Isaías não reconhece e que está
relacionada às condições que estavam representadas no discurso
Recordações.
Além de alienar o negro de sua própria história, apregoando seu
caráter passivo e desinteressado, o movimento abolicionista visava a
infundir uma imagem invertida do mundo dos negros, para que eles
tomassem como parâmetro a conduta dos homens brancos, não se
opondo à forma de “integração” que lhes era oferecida. (SANTOS
2002:120)
A unidade não tópica, no Recorte VII é, de maneira clara, oprimida. Ela,
todavia, permeia todo o recorte de maneira violenta, inclusiva, fazendo o
questionamento de Isaías ser associado - podemos ver no Recorte VII(b) - “a
um ferimento. A cenografia é a mesma dos negros do final do século XIX e
início do século XX, por outras palavras, é o retrato de um mundo possível, que
é observado pela emersão de uma imagem de autor que sustenta o discurso,
na mesma medida em que é sustentado por ele. O caráter paratópico do
discurso literário, evidenciado pela imagem de autor, que se sombreia, na
cenografia, é tratado por Bosi como documental
Chegando no Rio de Janeiro e antes de entrar na rotina do jornal,
Isaías Caminha toma o choque do conhecimento do Brasil formal, em
suas tragicômicas discrepâncias com o Brasil real. O valor
documental dessas páginas de espanto é alto, e o fato de instituições
visadas, o Exército, a Câmara dos deputados e a delegacia de
polícia, serem descritas por um interiorano que as vê pela primeira
vez produz duplo efeito de estranhamento e passagem a mais uma
etapa da maturação do narrador. A ingenuidade e o desaponto do
jovem Isaías têm algo a ver com o brasileirismo recrudescente
naqueles anos em que se refundava a não a partir das expectativas
77
despertadas pelo fim do trabalho escravo e a proclamação do novo
regime. (BOSI, 2012:193)
A cenografia compacta as unidades tópicas e não tópicas na enunciação, onde
a imagem de autor se manifesta. O tópico está na enunciação direta com o co-
enunciador, que perpassa as unidades transversas como a narração e a
descrição citadas por Bosi. O não tópico só pode ser alcançado no exercício do
analista, que direciona o olhar sobre a amostra. Todavia, em Recordações, a
enunciação não tópica é referência no processo de consolidação do racismo
em um dos primeiros momentos após a libertação do homem negro escravo.
No próximo recorte, veremos outro traço paratópico, em que o enunciado que
narra acontecimentos nos quais o jovem Isaías não tem exata ciência e, por
isso, sente-se com raiva.
Recorte VIII
(a) A sala da delegacia voltou novamente ao seu silêncio primitivo. Um soldado veio apresentar-se, trocando rápidas palavras com o inspetor. Um relógio próximo bateu quatro horas. Dos compartimentos do fundo, chegou um personagem ventrudo, meão de altura, de pernas curtas, furta-cor, tendo atravessado no peito um grilhão de ouro, donde pendia uma imensa medalha cravejada de brilhantes. (b) Dirigiu-se ao inspetor:
— Raposo, vou sair: há alguma coisa?
— Nada, Capitão Viveiros.
— E o caso do Jenikalé? Já apareceu o tal “mulatinho”?
(c) Não tenho pejo em confessar hoje que quando me ouvi tratado assim, as lágrimas me vieram aos olhos. Eu saíra do colégio, vivera sempre num ambiente artificial de consideração, de respeito, de atenções comigo; a minha sensibilidade, portanto, estava cultivada e tinha uma delicadeza extrema que se ajuntava ao meu orgulho de inteligente e estudioso, para me dar não sei que exaltada representação de mim mesmo, espécie de homem diferente do que era na realidade, ente superior e digno a quem um epíteto daqueles feria como uma bofetada. (d) Hoje, agora, depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro, insensível e cínico, mais forte talvez; aos meus olhos, porém, muito diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus sonhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. Não sei a que me compare, não sei mesmo se poderia ter sido inteiriço até ao fim da vida; mas choro agora, choro hoje quando me lembro que uma palavra desprezível dessas não me torna a fazer chorar. (e) Entretanto, isso tudo é uma questão de semântica: amanhã, dentro de um século, não terá mais significação injuriosa. Essa reflexão, porém, não me confortava naquele tempo, porque sentia na baixeza do tratamento todo o desconhecimento das minhas
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qualidades, o julgamento anterior da minha personalidade que não queriam ouvir, sentir e examinar. (f) O que mais me feriu, foi que ele partisse de um funcionário, de um representante do governo, da administração que devia ter tão perfeitamente, como eu, a consciência jurídica dos meus direitos ao Brasil e como tal merecia dele um tratamento respeitoso.
(g) As lágrimas secaram-se-me nos olhos, antes que o inspetor me apresentasse ao Escrivão Viveiros. Olhou-me com olhar de entendido. Creio que sondava as minhas algibeiras detidamente, antes de me fazer esta pergunta:
— O senhor é o moço do Hotel Jenikalé?
— Sou um deles.
— Qual é a sua profissão?
— Estudante.
(h) Houve algum espanto na sua fisionomia deslavada.
Neste Recorte, Isaías é intimado a ir à delegacia prestar queixa em decorrência
de um roubou acontecido no hotel onde estava hospedado. O sujeito
enunciador age com surpresa a esta intimação, pois não considera que pode
colaborar com as investigações. O que não é de conhecimento de Isaías é que
ele próprio é suspeito. No segmento (a) do Recorte VIII, o narrador descreve a
delegacia e o sujeito que o interpela de maneira muito negativa. Esse último
sujeito se refere a Isaías como “mulatinho”. A expressão “mulatinho” construída
no diminutivo é marcada pela formação discursiva da época, e, nesse caso,
reveladora das condições sócio-históricas pelas quais o autor de Recordações
era marcado e, ainda, como se revela na fronteira paratópica literária, que
associava negros e mulatos a crimes. A falta de acesso, a repressão moral, a
necessidade, a que o homem negro e mulato estavam submetidos, atualizava a
formação discursiva do negro como sujeito à margem.
os pobre e miseráveis [ex-escravos] passaram a ser tratados não
apenas como desclassificados sociais ( inúteis) mas também como
uma ameaça. [...] nesse período, os parlamentares engendraram a
ideia de que os pobres são sinônimos de classe perigosa. (SANTOS,
2002:120)
Ainda no segmento (a) do recorte VIII, a unidade não tópica sobre a formação
discursiva sobre o negro é transmitida pela expressão dada pela “voz” do
poder, que no segmento (c) e (d) é relatada por Isaías como efeito de “lágrimas
79
aos olhos”. Essa “voz” de homem do poder era o principal incômodo de Isaías,
que no segmento (f) do recorte VIII é explanado. Nessa direção confunde-se o
narrador e o autor, pois a Iimagem que instaura a cenografia é de um autor que
narra as proporias condições
O tom e o andamento lembram os diários íntimos de romântica
memória: Lima vinha redigindo o seu nos mesmo anos em que
compunhas as Recordações.O movimento peculiar a esse gênero é a
sequência de registros de fatos e digressões psicológicas nas quais o
narrador faz ressoar cada episódio no seu próprio eu. A certa altura, a
fronteira entre ficção e a análise torna-se móvel, difícil de fixar. As
memórias assumem uma linguagem metanarrativa e o autor confessa
diretamente as suas dúvidas em relação à obra que está escrevendo.
(BOSI, 2012:197).
O autor constrói uma cenografia da vida possível, cuja condição é própria da
embreagem paratópica do discurso literário, que representa no enunciado a si
mesmo, por meio de marcas linguísticas
A noção de paratopia só interessa para uma análise do literário se for
remetida ao “contexto”, se for tomada a um só tempo como condição
e produto do processo criador. Essa relação dinâmica e paradoxal
deixa marcas no enunciado. (MAINGUENEAU, 2006:120).
No seguimento (g) do Recorte VIII, o narrador parece instaurar uma
conformidade que será parte de um processo que se desenvolverá por todo o
enunciado em Recordações, de um homem que passa a se conformar com as
próprias condições sócias históricas de produção e com as formações
discursivas sobre negros e mulatos da própria contemporaneidade (Bosi,
2012). Nesse sentido, intrínseco e extrínseco unem-se e corroboram com a
imersão de uma imagem de autor que pode ser associada aos “personagens”
seria necessário distinguir os estereótipos do autor dos estereótipos
das personagens – os primeiro sendo característicos de uma só
pessoa, talvez peculiares a ela, os segundos tendo mais
probabilidade de refletir o pensamento coletivo. Tendo mais
probabilidade, dizemos, pois anda aqui uma distinção seria
necessária, entre os romances psicológicos e os romances de
costumes. Se estes últimos pretendem mostrar o que pensam e
sentem os homens comuns, buscando assim o geral, os outros, ao
80
contrário ( se bem feitos), apenas poderão mostrar os estereótipos
ligados à própria psicologia do herói, variando então com eles e
sendo, por conseguinte, peculiares também. (BASTIDE, 1973:114)
Essa associação instaura uma imagem de autor que se marca como alguém
que viveu situações em que o preconceito não é revelado, mas em que Tudo é
dito de passagem, em registro episódico, mas a lucidez da sátira corta fundo e
vai ponto a nu mazelas bem reais que o aparato do Estado mal consegue
encobrir (Bosi 2012:194). Vemos ainda, no segmento (h) do recorte VIII que
existe espanto ao saber que um mulato é estudante, ou seja, pertence à
camada que tem acesso ao saber, ao discurso de poder. Era intolerável pensar
que um mulato poderia chegar a “ser estudante”.
Recorte IX
(a) De forma que não tenho por onde aferir se as minhas Recordações preenchem o fim a que as destino; se a minha inabilidade literária está prejudicando completamente o seu pensamento. (b) Que tortura! E não é só isso: envergonho-me por esta ou aquela passagem em que me acho, em que me dispo em frente de desconhecidos, como uma mulher pública... Sofro assim de tantos modos, por causa desta obra, que julgo que esse mal-estar, com que às vezes acordo, vem dela, unicamente dela. Quero abandoná-la; mas não posso absolutamente. De manhã, ao almoço, na coletoria, na botica, jantando, banhando-me, só penso nela. À noite, quando todos em casa se vão recolhendo, insensivelmente aproximo-me da mesa e escrevo furiosamente. Estou no sexto capítulo e ainda não me preocupei em fazê-la pública, anunciar e arranjar um bom recebimento dos detentores da opinião nacional. Que ela tenha a sorte que merecer, mas que possa também, amanhã ou daqui a séculos, despertar um escritor mais hábil que a refaça e que diga o que não pude nem soube dize
No recorte IX, Isaías diz querer fazer as próprias recordações, retomar o
passado. Como um espelho na frente do outro, o enunciado em Recordações
projeta uma imagem de si dentro de si mesmo. Preferimos até aqui, o exemplo
das sombras, pois uma sombra está ligada ao objeto sombreado, copiando-
lhes as feições, os gestos, existindo porque o objeto sombreado existe, sem,
contudo, ser o objeto sombreado, sendo, portando, uma simulação em tempo
real, que não pode ser enganada, participando do objeto sombreado como
realidade, sem ser o objeto ao qual se dá o foco, uma parte do todo, que segue
o todo incessantemente.
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No segmento (b) do Recorte IX, Isaías descreve uma “espécie de nudez “ que
o incomoda, que parece insuportável. Um autorreconhecimento, que ele não
quer aceitar, e parece-lhe um fardo muito grande e horrível. Se olhar no
espelho, nu seria representar algo que não gostaria e não quer. O motivo da
nudez ser negada não é revelado, é apenas sugerido não topicamente, mas, se
reunirmos as possibilidades geradas pela unidade não tópica, poderemos
alcançar a seguinte definição, pois havia um consenso na formação discursiva,
que impregnava a condição sócio-histórica daquela contemporaneidade.
O amplo consenso social que a ideologia escravagista tinha atingido,
mas também a disseminação, inclusive entre os “não-brancos”, de um
ideal que hoje chamamos de “branqueamento”; um ideário
historicamente construído ( uma “ideologia”, um “mito”) que funde
status social elevado com “cor branca e/ou raça branca” e projeta
ainda a possibilidade de transformação da cor da pele, de
“metamorfose” da cor (raça). Ao atuar como interpretação do mundo (
das relações sociais), esta construção ideológica foi fundamental para
a manutenção da ordem social. Chamar a atenção para a cor de pele
escura ( ou “traços raciais negróides”) de alguém era uma grande
ofensa, sobretudo para aqueles que buscavam ascender socialmente.
Enquanto as palavras “negro” e “preto” estavam intrinsecamente
associadas à vida escrava, a cor branca estada ligada ao status de
“livre”. (HOFBAUER,2006:177)
Recorte X
(a) — Decerto... não nego... mas quando era manifestação individual, quando não era coisa que desse lucro; hoje, é a mais tirânica manifestação do capitalismo e a mais terrível também... É um poder vago, sutil, impessoal, que só poucas inteligências podem colher-lhe a força e a essencial ausência da mais elementar moralidade, dos mais rudimentares sentimentos de justiça e honestidade! São grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus desejos inferiores, para os seus atrozes lucros burgueses...(b) Não é fácil a um indivíduo qualquer, pobre, cheio de grandes idéias, fundar um que os combata... Há necessidade de dinheiro; são precisos, portanto, capitalistas que determinem e imponham o que se deve fazer num jornal... Vocês vejam: antigamente, entre nos, o jornal era de Ferreira de Araújo, de José do Patrocínio, de Fulano, de Beltrano... Hoje de quem são? A Gazeta é do Gaffrée, o País é do Visconde de Morais ou do Sampaio e assim por diante. E por detrás dela estão os estrangeiros, senão inimigos nossos, mas quase sempre indiferentes às nossas aspirações...
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No recorte X, o enunciador evidencia uma extrema angústia em relação ao
sistema econômico, que estava pautado em discurso de “liberdade” e
“evolução” pelo trabalho e pelo estudo que apresenta no segmento (a) do
Recorte X, não conseguir partilhar. Nesse mesmo segmento, o enunciador se
espanta com o fato de que existe uma força de dominação exercida por
grandes empresas, propriedade de venturosos donos, destinadas a lhes dar o
domínio sobre as massas, em cuja linguagem falam, e a cuja inferioridade
mental vão ao encontro, conduzindo os governos, os caracteres para os seus
desejos inferiores. Essa é uma descrição sobre as condições sócio-históricas,
que “são sombra” das condições em que estava imerso o autor, ser que
enuncia, no início do século XX. Essa cenografia está em diálogo com o
discurso concomitante com a libertação dos homens negros e da formação
discursiva sobre as formas de enxergar o trabalho. Os negros eram
necessários para compor a nova forma de mão de obra; mesmo assim, o
discurso negativo oprimia-os e distanciava-os da mão de obra do imigrante
europeu
Os negros libertos [...], estavam na última escala social, assumiam a
liberdade sem nenhuma profissionalização e enfrentariam a
concorrência da força de trabalho dos que os precederam na
liberdade – mulatos e negros, que não encontravam meios de
sobrevivência digna no Brasil. Além disso a política das classe
dominates voltou-se para imigração, primeiro para o Sul e os cafezais
paulistas e, depois, para a incipiente indústria que se formava.
Consolidou-se o mito que o negro era incapaz, obtuso e vagabundo;
ideologicamente, sedimentaram-se as teorias que o mito do
embranquecimento sustentava, de que o trabalhador bomera o
imigrante branco. a presença dos imigrantes , mais capazes
profissionalmente, ajudou a marginalizar ainda mais o negro.
(CHIAVENET0,1980:233).
A unidade tópica nesse recorte pôde ser percebida pelo direcionamento
histórico sobre os homens negros. A partir disso, o segmento (b) do Recorte X
dialoga intrinsecamente, como se as palavras do pesquisador se referissem às
palavras do autor em Recordações e como se as palavras do autor fossem
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condicionadas ao texto do pesquisador. Isso acontece porque tanto o
pesquisador como o autor de Recordações trabalham com o mesmo objeto,
discursos que fazem parte das ações sociais. No caso, Recordações é como
“retrato” do não-lugar paratópico de onde emerge uma imagem de autor, que
se consagrou como representativa de Recordações, repetidas vezes tratada
como uma imagem mulata, inteligente e insatisfeita com as condições
opressoras de sua contemporaneidade. Tais traços estão marcadamente
posicionados na enunciação, topicamente descritos como ações corriqueiras,
geradoras de raiva, desconforto, angústia, não acesso, não topicamente
percebida como fruto do preconceito racial.
Recorte XI
O espaço era diminuto, acanhado, e bastava que um redator arrastasse um pouco a cadeira para esbarrar na mesa de trás, do vizinho. Um tabique separava o gabinete do diretor, onde trabalhavam o secretário e o redator-chefe; era também de superfície diminuta, mas duas janelas para a rua davam-lhe ar, desafogavam-no muito. Estava na redação do O Globo, jornal de grande circulação, diário e matutino, recentemente fundado e já dispondo de grande prestigio sobre a opinião. Falei ao Oliveira, perguntando-lhe pelo doutor Gregoróvitch. O eminente repórter levantou um pouco o olhar de cima do importante escrito (relação dos decretos assinados no último despacho) e, ao dar com a minha fisionomia conhecida e humilde, abaixou-o logo e, entre dentes, transcendentalmente superior, respondeu: “Ainda não veio”. Eu não tinha mais onde dormir, havia dois dias que não comia, tinha a máxima necessidade de falar ao russo. Intimidado com a secura do Oliveira, fiquei de pé hesitando fazer-lhe uma segunda pergunta. Medroso e esfomeado, deixei-me assim permanecer alguns minutos debaixo daquele teto que abrigava a falange sagrada que vinha combatendo pelos fracos e oprimidos.
No recorte XI, o enunciador está na redação do jornal o Correio da Manhã,
onde procura por emprego. A redação é descrita com certa humildade em
relação ao poder que exercia. A mídia carioca, nesse período, ganhava
extrema força política inclusiva. No segmento (b) do Recorte XII, nota-se uma
grande esperança trazida pelo novo ofício no jornal. Sabe-se que Lima Barreto
trabalhou no jornal O Globo, o que trouxe a Recordações a ideia de um caráter
autobiográfico e irônico.
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A partir desse recorte, encontrado no capitulo VI de Recordações, o discurso,
parece, tomar um caminho que está menos relacionado à causa do homem
negro. Nas palavras de Oakley
Assim que Isaías Caminha entra no mundo da imprensa, o que até
aqui tinha sido uma narrativa introspectiva centrada na angústia do
herói se torna um veículo para uma sátira em grande escala à
imprensa carioca. Como já repararam vários críticos, de óbvio centro
de interesse Caminha passa a espectador, através de cujos olhos
contemplamos o mundo jornalístico, à medida que os poucos trechos
de introspecção que subsistem vão mostrando o jovem abandonando
suas ideiais literárias e acadêmicas, engolindo seu desagrado,
consentindo com a imoralidade de seu novo ambiente e
compactuando com ela. (2011:54)
A imprensa começa a funcionar como unidade tópica, como o que se revela no
discurso Recordações. Isso não significa o abandono do discurso não tópico
racista, pois se o enunciador “vai se acostumando” ao discurso opressor que
participa só em parte, isso significa que o discurso sobre o negro e o mulato se
torna ainda mais sutil, ainda mais não revelado, ainda mais cerebrino.
Resumidamente, ainda mais não tópico.
Recorte XII
(a) E o monstruoso redator desandou dizendo asneiras. Eu estava ali de colarinho sujo, esfomeado, mas tive ímpeto de discutir e de quebrar a cara dos idiotas que o ouviam. Entre eles, havia alguns a quem cabia bem a carapuça, mas que se calaram cobardemente. (b) Queria perguntar-lhe se aqueles seus artigos acacianos, cheirando ainda muito à brochura francesa de dois mil e quinhentos se podiam pôr a par dos trabalhos do Tito Lívio, do Tobias Barreto; eu queria perguntar-lhe se a sua genialidade no artiguete seria capaz de aparecer se tivesse nascido nas condições desfavoráveis do Caldas Barbosa, do José Maurício, do Silva Alvarenga e outros!
No recorte XII, o enunciador carrega sua voz com ironia que esta direcionada
aos que detém o poder. Instaura-se aqui, uma guerra entre classe, que na
cenografia estão separados o narrado e os “ditos” poderosos; senhores da
imprensa carioca. No segmento (a), o “redator” é qualificado com a palavra
“monstruoso”, ainda, o enunciador revela de si “ que teve ímpeto de quebrar a
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cara dos idiotas”. A cenografia apresenta um sujeito enunciador que está
abaixo economicamente e socialmente dos que deseja afrontar pela
inteligência superior.
No segmento (b), do mesmo recorte, a cenografia reafirma a distinção entre
classes: “os que têm acesso e por isso ascendem e dominam” e os “ que não
têm acesso e por isso são dominados”. Contudo, essa relação de acesso e não
acesso é direcionada à causa do homem negro e mulato. O enunciador cita
homens reconhecidamente negros, como Tobias Barreto (de mesmo
sobrenome do autor de Recordações) e Tito Lívio. Além disso, os artigos
escritos pela classe dos homens com acesso é diminuído linguisticamente,
como “artiguete”.
Nessa direção, a ironia parece mencionar a formação discursiva cristalizada,
do negro como inferior intelectualmente, que só poderia exercer trabalhos de
força, distante dos ofícios que exigissem práticas intelectuais.
Nas camadas superiores da sociedade brasileira, por exemplo, no
que se refere à formação de atitudes raciais, a identificação histórica
da população de cor com as camadas laboriosas e mais pobres da
sociedade tem servido para para que, sobre o fundo de uma ideologia
conservadora, do status quo, haja uma fusão de atitudes contrárias à
ascensão social das massas trabalhadoras com atitudes contrárias à
ascensão social da população de cor (COSTA PINTO, 1998:172).
A unidade tópica, a partir do ingresso de Lima Barreto na imprensa, torna-se
ainda mais sutil, ainda mais clandestina. Só a base de um estudo que direcione
o olhar sobre a formação discursiva do negro é que se pode perceber que é
por meio da ironização das atores, dos ambientes, das posturas demonstradas
topicamente, nas praticas de um quotidiano possível às rotinas de quem
partilha do universo da mídia, que se percebe o racismo, cristalizado nas
pequenas práticas.
Recorte XIII
(a) No começo, custei a conformar-me com a posição de continuo, mas consolei-me logo, ao lembrar-me dos meus heróis do Poder da Vontade; e não foi sem desgosto que aceitei as fatiotas daqueles desconhecidos. Custou-me muito curvar-me a tão vil necessidade; com o tempo, porém, conformei-me, e
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de tal modo me habituei que, mais tarde, quando a minha situação mudou, foi-me preciso grande esforço, para me habituar a comprar roupa em primeira mão. Achava-a cara, e o dinheiro gasto nela, despendido inutilmente, como se o gastasse em orgias e bebedeiras. (b) Os meus vencimentos eram aumentados pelas gorjetas. Havia-as de duzentos réis, mas, em geral, eram de quinhentos réis para cima. (b) A gente dos jornais é pródiga como jogadores e gosta de aparentar desprezo pelo dinheiro e generosidade. Uma vez, recordo-me bem, um repórter, entrando alta noite na redação, com o olhar brilhante e o passo um tanto trôpego, disse-me cheio de efusão:
— Caminha, tens dinheiro?
— Tenho, sim senhor, dois mil-réis... O senhor...
Ele não entendeu bem a minha resposta e continuou com a voz pastosa:
— Sabes donde venho? Do Aplomb Club. Ganhei oitocentos mil-réis no baccarat... Arre! Que desta vez levei a melhor ao Laje... Sabes quem bancava? O Demóstenes, o doutor Demóstenes Brandão, pretor, primo de um ministro.
O repórter falava bamboleando a cabeça e agitando os braços molemente. Esteve alguns instantes calado, a revirar os olhos, e depois puxou da algibeira uma nota de vinte mil-réis e disse-me:
— Toma! Vai procurar um bom fim de noite...
No segmento (a) do Recorte XIII, vemos a semelhança com o que se declara
no Recorte XII. O enunciador revela insatisfação com a situação de subalterno
a que estava como contínuo, cargo que julgava não merecer. A similaridade
com a biografia do autor de Recordações é evidente, quando
Isaías já fora recusado inclusive em empregos humílimos e já
percebera, enfim, que estava na sua cor o motivo da rejeição. Como
contínuo em um grande órgão da imprensa da capital aprenderá o
poder da hierarquia em meios pretensamente liberais. Ele observará
atentamente os colegas de redação ora de baixo para cima, enquanto
subalterno, ora de cima para baixo, enquanto olho crítico que julga
cada palavra e cada gesto seu interlocutor. (BOSI,2002:199)
A partir do segmento (b) desse recorte, o narrador parece ser incorporado pela
formação discursiva de poder. O poder do dinheiro vai desestimulando-o,
causando-lhe angústia, mas desejos de ascensão social. Nesse ponto,
ascender economicamente é confortável, e o o enunciador revela um certo
relaxamento com a ideia de ser “doutor”, presente nos primeiros recortes do
discurso Recordações.
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Recorte XIV
E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos.
Ao ser apresentado, ninguém lhe deu importância, mesmo porque dias antes houvera um crime sensacional, que monopolizara a atenção da cidade.
A ironia toma a enunciação em Recordações, criando uma cenografia tórrida
de um quotidiano de notícias absurdas sobre as classes mais abastadas
socialmente. Toma conta, no Recorte XIV, uma notícia sobre os sapatos das
gueixas orientais. Faz parte da cultura oriental medieval, a mutilação dos pés
das gueixas em prol de uma estética dos pés pequenos. Nesse recorte, no
segmento (a), o enunciador fala de uma sociedade “higienista”, que anseia pelo
embraquecimento social. Essa é uma formação típica da época, que se volta
às características biológicas dos negros e que, aos poucos, seriam
“minimizadas” pelo convívio e pelo processo de miscigenação (HOFBAUER,
2006).
Além disso, a vida na imprensa permite que o enunciador possa observar as
relações políticas e os costumes das classes mais abastadas. Sempre com tom
irônico, que se direciona às condições dos homens negros. A convivência com
jornalistas, criaturas lábeis, que viviam tão-só da opinião, e não da busca isenta
da verdade, fortaleceu a sua suspeita de que na capital daquele novo Brasil a
representação tomava o lugar da realidade (Bosi, 2006).
Recorte XV
(a) Demais eram as banalidades, os conceitos familiares sobre o crime e os criminosos que ele desenvolvia com a convicção de quem estivesse fazendo um estudo profundamente psicológico e social. (b) Oh! A vaidade dos desconhecidos da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções excepcionais, proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo. Não reconhecem que são como um empregado qualquer, funcionando
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automaticamente, burocraticamente, e que uma notícia é feita com chavões, chavões tão evidentes como os da redação oficial. Quase todos os repórteres e burocratas dos jornais desprezam a literatura e os literatos. Não os grandes nomes vitoriosos que eles veneram e cumulam de elogios; mas os pequenos, os que principiam. Estranha ignorância de quem, por intermédio dos artigos dos que sabem, copia os processos dos romancistas, as frases dos poetas e deturpa os conceitos dos historiadores, imitando-lhes o estilo com uma habilidade simiesca...
A ironia se mantém viva no Recorte XV. No segmento (a), o enunciador destina
um pequeno trecho destinado a parte das rotinas do quotidiano do jornal.
Reflete, muito rapidamente, que os jornalistas imaginavam ser cientistas
sociais, analisando os crimes como causa e não como efeito de uma sociedade
desigual. Crimes cometidos por homens negros eram vastamente noticiados e
isso corroborava com a manutenção da imagem do negro e o mulato como
perigoso. Essa formação discursiva havia se estandardizado desde a libertação
dos negros escravos.
A descrição do negro como lascivo, libidinoso, violento, beberrão,
imoral ganha as páginas dos jornais compondo a imagem de alguém
em que não se pode confiar. Condenavam o samba e a capoeira
como práticas selvagens e que terminavam em desordem e violência.
Acusavam os negros por praticarem bruxarias, por não possuírem
espírito familiar sendo as mulheres sensuais e infiéis e os maridos
violentos, retratos da falta de estrutura moral, psíquica e social do
negro. (SANTOS, 2002:131)
Além disso, no segmento (b) do mesmo recorte, a ironia que recai sobre os
colegas da imprensa se atualiza. O enunciador explana o discurso soberbo das
classes dominantes que, por ocuparem lugares de prestígio, acreditavam ser
intelectuais e pessoas de grande prestígio.
A sua posição de contínuo de jornal, sem raízes na cidade, só lhe dá
oportunidade de conhecer diletantes de ideiais antiburguesas. Esses
contatos no plano da palavra, e não da ação da organizada, suscitam
em Isaías uma desconfiança paralisante em relação às próprias
doutrinas que lhe aparecem sempre mediadas, quando deformadas,
pelo discurso dos intelectuais que as pregam ( BOSI, 2002:202)
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Recorte XVI
(a) Adelermo era a imaginação do jornal. Nascera no Maranhão e escrevia regularmente. Apesar de nunca se ter feito notar por uma associação mais original de idéias, no jornal era imaginoso porque nascera no Norte e tinha uma boa dose de sangue negro nas veias. As generalizações dos jornais são infalíveis... (b) Mas... Adelermo era a imaginação do jornal, e em seus ombros recaia todo o peso da necessidade de informações imediatas ao público quando os documentos faltavam ou eram omissos. Se havia um atentado anarquista ou um terremoto na Europa e o telegrama era por demais conciso, Adelermo tinha o encargo de desenvolvê-lo, de explicá-lo, de reconstruir a cena para o gosto público. Às vezes, pediam-se-lhe mais detalhes; o diretor queria a descrição do complot, a cena da “sorte”, à lôbrega luz de um fumarento lampião, em uma mansarda.
(c) Adelermo era obediente e fazia. Intimamente desgostava-se com aquele papel de mentiroso; mas temia ser despedido, posto na rua. Era esse o grande terror de todos. Não eram os ordenados, não era a miséria que os apavorava; temiam não encontrar outro lugar nos jornais e perderem por isso a importância, a honra suprema de pertencer ao jornalismo. Eles não valiam por si; o jornal é que lhes dava brilho. Nas invenções de Adelermo, quase sempre se passavam coisas fantásticas e curiosas
No recorte XVI “Adelarmo”, um dos membros do corpo do jornal em que o
enunciador estava, é descrito. No segmento (a), as características físicas de
Adelarmo são salientadas, bem como seu lugar de origem e sua própria
origem; “dose de sangue negro” nas veias. Adelarmo é mostrado como uma
pessoa pouco criativa, mas que, pelo poder da generalização, deveria ser
“imaginoso”, e mesmo não se levando em consideração o potencial de
Adelarmo, no segmento (b), notamos que a ele cabia uma a responsabilidade
de ser “criativo” em relação às noticias. Dois pontos que têm correspondências
com o extrínseco valem a pena ser salientados. O primeiro, o fator biologizante
a que a sociedade estava impregnada, desde o século XVIII (HOFBAUER,
2002). O segundo ponto é o fato de a mídia ser associada à criatividade.
No segmento (b) do Recorte XVI, Adelarmo é associado àquele que deveria
preencher lacunas, quando os documentos faltavam ou eram omissos. Cabia a
Adelarmo o trabalho de forjar partes da notícia como se fossem verdadeiras.
No segmento (c), vemos que Adelarmo não se satisfazia com o oficio, mas era
oprimido. Em linhas gerais, vemos no segmento (a), um homem biologicamente
definido e generalizado, no segmento (b) a este homem recaía um trabalho na
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ilegalidade e no (c) a ilegalidade era impulsionada pela formação discursiva do
poder, naquela contemporaneidade.
Aqueles que se entendiam como “progressistas” pregavam um
Estado liberal, mas recorriam também a ideias raciais biologizadas e
concepções evolucionistas. À primeira vista, parecia haver mais
incompatibilidade entre liberalismo e “modelos evolucionistas” e
“raciais” do que uma possibilidade de aproximar esses dois anseios.
Vimos que ao longo do século XIX, o critério mais poderoso de
inclusão e exclusão (raça) sofreu definições e foi obejto de constantes
discussões entre intelectuais. A ideia de raça em si, no entanto, não
foi posta em questão. (HOFBAUER, 2002:198)
Recorte XVII
(a) A casa pertencera talvez a um oficial de Marinha, um chefe de esquadra. Havia ainda no teto do salão principal um Netuno com todos os atributos. O salão estava dividido ao meio por um tabique; os cavalos-marinhos e uma parte da concha ficaram de um lado e o deus do outro, com um pedaço do tridente, cercado de tritões e nereidas.
(b) Num cômodo (em alguns) moravam as vezes famílias inteiras e eu tive ali ocasião de observar de que maneira forte a miséria prende solidamente os homens.
(c) De longe, parece que toda essa gente pobre, que vemos por aí, vive separada, afastada pelas nacionalidades ou pela cor; no palacete, todos se misturavam e se confundiam. Talvez não se amassem, mas viviam juntos, trocando presentes, protegendo-se, prestando-se mútuos serviços. Bastava, entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte.
No recorte XVII, a descrição se volta a um espaço que foi tomado como
residência de muitos. Esse espaço é descrito como lugar, antes preenchido
com símbolos europeus de religião e arquitetura. Mas, agora, esse espaço,
podemos notar nos segmentos (b) e (c), está tomado por gente e, mais
especificamente no segmento (c), por gente pobre e negra. Além disso, o
enunciador descreve um estado de violência entre os moradores desse
ambiente, “Bastava, entretanto, que surgisse uma desinteligência para que os
tratamentos desprezíveis estalassem de parte a parte”. O extrínseco ao texto
faz emergir uma imagem de autor e revela uma sociedade em que o século XIX
e o século XX delineavam-se. Uma sociedade que considera os negros
biologicamente inferiores e, de tão intensas as distinções, discutia-se a
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hipótese de separar o Brasil por territórios, mais ou menos, avançados
racialmente (HOFBAUER, 2002). Os negros ficavam cada vez mais oprimidos
nos guetos, distantes dos centros e do acesso à educação e da cultura erudita,
por conseguinte, ao avanço econômico e, por esses meios, mais próximos à
marginalidade. Era um ciclo muito bem engendrado pela ideal branco de poder:
o negro marginalizado era biologicamente taxado assim; quando um ou outro
negro cometia um crime, um delito ou infração, a mídia noticiava isso como
expressão do traço biológico negativo do negro. Era um estado de pânico e
rejeição no qual a imagem de autor emerge na mesma medida em que se
projeta em uma cenografia.
a paratopia só é motor da criação quando implica a figura singular do
insustentável, que torna essa criação necessária. A enunciação
literária é menos a manifestação triunfante de um “eu” soberano do
que a negociação desse insustentável. Presente neste mundo e dele
ausente, condenado a perder para ganhar, vítima e carrasco, o
escritor não tem outra saída senão seguir em frente. É para escrever
que preserva sua paratopia, é escrevendo que pode se redimir desse
erro. (MAINGUENEAU, 2006:115)
Recorte XVIII
(a) O doutor Ricardo cumprimentou a alta autoridade e, a seu chamado, foi-lhe falar. Além do ministro, intermeteu-se uma nova personagem; um preto velho, quase centenário, de fisionomia simiesca e meio cego.
(b) Trazia na mão esquerda um caniço que distendia um arame de pescaria; com a direita, auxiliado por uma varinha, vibrava dolentemente a corda, enquanto balbaciava qualquer coisa. Ia de grupo em grupo, tangendo o seu monocórdio extravagante. Cantava talvez uma ária de uma extravagante beleza, certamente só percebida por ele e feita pela sua alma para a sua alma... Tocava e esperava esmolas. Em todas as fisionomias, havia decerto piedade, comiseração, e mais alguma coisa que não me foi dado perceber. Era constrangimento, era não sei o quê...
No recorte XVIII, um negro velho é descrito. Ele é apresentado pelo doutor
Ricardo, como um homem simples, com gestos simplórios e tranquilos.
Contudo, no final do segmento (b), o enunciador não consegue explicar o
motivo de ter por esse homem negro um sentimento de “constrangimento”. A
lacuna deixada pela narrativa pode ser preenchida pelo traço autoral. A
simplicidade do negro no fim da vida ao lado de um doutor causa, mesmo que
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não de maneira deteriorada, constrangimento. O “retrato” da simplicidade ao
lado do doutor possibilita a leitura sobre o “fracasso” dos planos iniciados na
infância, com a leitura de “o poder da vontade”, presente da professora
(OAKLEY,2011).
Recorte XIX
(a) Eu não quis dizer tudo isso ao poeta de Anelos. Era melhor mantê-lo na ilusão de que pudesse haver alguma independência e espontaneidade no julgamento dos jornais; e quando Floc chegou, com o seu grande queixo atirado para diante como um aríete e os seus bigodes de azeviche, dei-lhe o livro. Depois de manuseá-lo um instante, falou com azedume:
(b) — Que nome! Félix da Costa! Parece até enjeitado! É algum mulatinho?
— Não. É mais branco que o senhor. É louro e tem olhos azuis.
— Homem, você hoje está zangado...
Ele não compreendia, que eu também sentisse e sofresse.
No segmento (a) do Recorte XIX, o discurso reflete sobre o poder e o olhar da
imprensa sobre a literatura. O cuidado que a imprensa tinha em tratar um novo
“autor”, o que era bom, o que era ruim, o que seria lido e o que não seria. Esse
trato pelo qual sofreu pungencialmente o autor de Recordações e que, de certa
maneira, é denunciado como prática corriqueira pode ser visto, ainda no
segmento (a) e afirmado no (b), pelo tratamento que o interlocutor da narrativa
dá ao livro apresentado por Isaías a ele. Para Oakley, essa é uma temática
central em Recordações.
Lima Barreto, consciente de que sua obra ameaçava o poder político
brasileiro vigente e que este poder depende de uma retórica de
insinceridade literária, vai criando um cronista do Rio de Janeiro
republicano e, logicamente, conduzi-lo precisamente para o centro
desse mundo de ilusão linguística: a redação do jornal popular mais
influente de seu tempo. Eis, portanto, os fatores que conferem a
Recordações do Escrivão Isaías Caminha sua estrutura peculiar. A
força toda-poderosa no Brasil da época era a imprensa (2011:55).
No segmento (b), ainda se pode perceber que as condições enunciadas são as
próprias condições do autor. Isso corrobora com a emersão de uma imagem de
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autor que tem plenas condições de enunciar o que se propõe. O conhecimento
de causa, o traço de grande proximidade fez com que Recordações, em sua
época, fosse associado à produção autobiográfica. Contudo, a condição
paratópica, que inclusive se associa ao desejo autoral, norteia uma percepção
acerca da literatura que atualiza o discurso literário e que constrói as próprias
condições de sua enunciação, existindo na própria existência
Isaías- narrador, tentando evocar e definir marcos históricos através
da arte, defronta-se com a contradição que desafia frequentemente a
crítica literária e o escritor criativo: a arte tem capacidade de
comunicar poderosamente, mas não deixa, ao mesmo tempo, seu
próprio sistema retórico que pode ser usado e abusado (OAKLEY,
2011:56).
Recorte XX
(a) Perguntei então a mim mesmo por que não casara aquela rapariga, por que não vivera dentro dos costumes tidos por bons. Não achei resposta, mas julguei-me, não sei por quê, um pouco culpado pela sua desgraça.
(b) O carro chegou e eu saltei para ajudar Leda a apoiar-se. Paguei ao cocheiro e, na calçada, e a perguntou-me:
— Não entras?
— Não, obrigado.
Insistiu várias vezes, mas recusei. Vim vagamente a pé até ao Largo da Carioca, sem seguir um pensamento. Vinha triste e com a inteligência funcionando para todos os fados. (c) Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer. Tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco devido aos outros e um pouco devido a mim. Encontrei Loberant:
— Então? perguntou maliciosamente.
— Deixei-a em casa. — Pois se eu me tinha separado de vocês de propósito... Tolo! Vamos tomar cerveja... (d) Antes de entrar, olhei ainda o céu muito negro, muito estrelado, esquecido de que a nossa humanidade já não sabe ler nos astros os destinos e os acontecimentos. As cogitações não me passaram... Loberant, sorrindo e olhando-me com complacência, ainda repetiu:
— Tolo!
No recorte XX, final de Recordações, Isaías reflete sobre as condições da
própria vida, de maneira geral. Sente-se incomodado por não ter atingido o
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desejo de infância de ser doutor. E embora responsabilize os outros, notamos
no segmento (c), que também se responsabiliza a si mesmo. De maneira
desconfortável, percebe-se como incorporador das formações discursivas da
época e retoma o fato de que, aos poucos, foi simplesmente aceitando os
lugares e papeis sociais aos quais os negros e mulatos, como ele foi, estavam
condicionados, de acordo com as condições sócio históricas do Brasil no final
do século XIX e início do século XX.
Emerge, destes recortes, uma imagem de autor que invariavelmente constrói
cenografias sobre o homem negro. As práticas quotidianas vividas, descritas e
narradas revelam um submundo enunciativo, que só pode ser notado com base
em reflexões nos campos da Linguística, da História, da Filosofia e da Crítica
Literária. Assim, a cenografia, ponto de partida para essa análise, é a categoria
que liga a paratopia literária, porque nos dá condição de perceber no intrínseco
o extrínseco e que, ainda, nos possibilita enxergar uma imagem de autor, que
nos apresenta, a partir de um processo interdisciplinar, as condições sócio-
históricas daquela contemporaneidade, marcada por práticas de racismo,
permitidas apenas, na clandestinidade, que essa pesquisa, observando a
imagem de autor de Recordações se preocupou em examinar.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na empresa de estudar a imagem de Autor em Recordações do Escrivão
Isaías Caminha, de Lima Barreto, optamos pelo arcabouço teórico-
metodológico da Análise de Discurso, direcionada por Dominique
Maingueneau, porque acreditamos ser pela interdiscursividade, princípio de
discursividade, que se encontra a resposta sólida o suficiente, para responder
às questões geradas em nosso projeto de pesquisa, proposto há dois anos: a
imagem de autor emergente no discurso literário pode colaborar com uma
leitura e com a percepção de efeitos de sentido na enunciação literária, e,
ainda, como em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o diálogo
interdisciplinar pode contribuir com a percepção das unidades não tópicas,
marcadas de maneira clandestina nos discursos.
No percurso de fundamentação de nossa pesquisa, investigamos o discurso
literário de Recordações do Escrivão Isaías Caminha sobre o princípio dos
discursos constituintes. Os discursos constituintes, pela validação auto e
heteroconstituinte, possibilitou-nos responder à questão gerada por Lima
Barreto no ensaio “O destino da Literatura”. No ensaio, Lima Barreto discutia,
em certa medida, a relação do extrínseco com o intrínseco à enunciação
literária. O que no chamou atenção, além da descoberta de um autor envolvido
na teoria literária (fato inovador em se tratando de Lima Barreto), foi a
similaridade com a noção de paratopia, própria dos discursos constituintes.
Embora este trabalho não tenha se preocupado inicialmente com essa questão,
ela pôde ser suscitada e, no futuro, poderá gerar outros trabalhos de pesquisa
que se debrucem sobre um Lima Barreto.
Partimos do pressuposto teórico-metodológico para construir nosso método de
análise, referendado na Análise de Discurso, que considerasse a condição
paratópica dos discursos constituintes, pois a imagem de autor, no discurso
literário Recordações do Escrivão Isaías Caminha, emerge na confluência extra
e intra enunciativo-discursiva, o que Maingueneau (2010) optou chamar de
impossível lugar.
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Desta maneira, foi-nos necessário resgatar as condições sócio-históricas de
produção do discurso literário Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Isso
inclui o resgate do próprio autor enunciador, pois é a imagem de autor uma
condição de produção do discurso de nosso interesse. Fizemos uma pesquisa
que envolvia o repertório da História, Sociologia, Filosofia e Crítica Literária
para esse intento.
Nosso repertório de condições sócio-histórica identificou o que Munanga (1978)
chamou de discursos pseudo-justificadores, utilizados para normatizar a ideia
de que o homem negro e, por conseguinte, o mulato, eram inferiores ao
homem branco, estado social que é, de certa forma, denunciado em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, no final do século XIX e início do
século XX, período de libertação dos negros cativos, sob regime escravo,
quatro séculos depois do início da atroz exploração humana dos homens
negros.
O ambiente delineado nas condições sócio-históricas de produção de
Recordações do Escrivão Isaías Caminha era também o ambiente do autor
deste discurso, que, como o sujeito narrador sofreu, literalmente, na própria
pele, os discursos pseudo-justificadores, que resistem, até hoje, no submundo
da literatura e incrustados nas variadas relações sociais.
Construímos uma análise que considerou o interdiscurso na formação da
imagem de autor e, para identificar o “fio” interdiscursivo, selecionamos duas
unidades: as tópicas e as não tópicas.
Entendemos que as unidades tópicas são delineadas historicamente e que
possuem, no contato mais próximo da enunciação, uma construção
relativamente estável (BAKHTIN 2003), mas que não se podem confundir com
gêneros de discurso, pois se incrustam a eles, sendo a formatação pela qual os
enunciação acontece.
Entendemos, por conseguinte, que as unidades não tópicas, como as tópicas,
são construídas historicamente, mas que não possuem, para si, uma
formatação relativamente estável. Assim, parasitam discursos variados na
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enunciação. São negadas pelos enunciadores, mas confirmadas nas ações nas
quais se executam.
A análise, que tendeu por esse caminho, fez-nos perceber que a confluência de
unidades tópicas e não tópicas gerava, paratopicamente, a projeção de uma
imagem de autor altamente envolvida com as condições sócio-históricas de
produção de Recordações do Escrivão Isaías Caminha e de toda a parcela
negra e mulata em meados de 1900, no Brasil.
Por fim, acreditamos que a imagem de autor aparente em Recordações do
Escrivão Isaías Caminha, mais do que o autor que logra prestígio por uma
obra, mas aquele que, emergindo no espaço literário e da vida, tem autonomia
política, social, cultural muito a frente do próprio tempo. Assim, consideramos
que a imagem de autor em Recordações do Escrivão Isaías Caminha se torna
o canal interdiscursivo entre a literatura e a denúncia de, pelo menos, quatro
séculos de exploração e exclusão, por isso, fonte de produção acadêmica,
importante aspecto de discussão social e via de leitura e, no mais,
indispensável ponto de crescimento humano.
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