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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP
Matheus Barbosa Emérito
O fake fotográfico: simulações paródicas
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO - PUC-SP
Matheus Barbosa Emérito
O fake nas mídias: simulações irônicas
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica, área de
concentração: Signo e significações na
mídia, sob orientação do Prof. Doutor
Arlindo Ribeiro Machado Neto.
SÃO PAULO
2012
BANCA EXAMINADORA
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPQ, por mais um auxílio concedido.
Agradeço as orientações e incentivo do Professor Doutor Arlindo Machado, a
atenção do professor Eric Landowski, das professoras Ana Cláudia, Cecília Salles,
Jerusa Ferreira e aos demais membros que prontamente, aceitaram o convite para
compor a banca examinadora.
Ofereço, também o meu agradecimento a Raoul Djukanovic, Nelito Fernandes,
Gabrielle Pfeiffer e Gerardo Panichi, por fornecerem informações e material para a
análise do corpus.
Sou eternamente grato a minha família, especificamente, a minha mãe, por o
amor que me tem, a Francisca com a sua dedicação, a minha irmã pela torcida de
coração e ao meu pai que me ajudou a escrever cada palavra neste texto.
Agradeço ao companheirismo e estímulo de Ana Maria, ao auxílio do "Seu
Miranda", a paciência do Erick Gomes .
Sou grato aos amigos Ocílio Lago, Charles Silveira, Mateus da Silveira, Lucas e
José Camilo, Yuri Jivago, Danielle Pini Galvão e aos professores do departamento de
Comunicação e Semiótica e a Cida pela prontidão em nos informar.
"El buen fotógrafo es el que
miente bien la verdad." - Joan
Fontcuberta
RESUMO
Esta pesquisa traz um estudo sobre fake fotográfico, cada dia mais presente na imprensa e na publicidade mundiais. O termo fake é utilizado por abranger das produções falsas até aquelas que apenas simulam, sem ter como prioridade a intenção de enganar. Com o objetivo de comprovar o potencial do fake fotográfico, como elemento de crítica ao suporte midiático em que também está inserido, este trabalho fez uma distinção entre os conceitos de falsificação e simulação. As fotografias falsificadas ou produzidas como simulações são consideradas dispositivos para reflexão, seja a respeito do processo de produção em si ou de sua representação como elemento da cultura. Por meio da consideração dos estudos de Hans Tietze e Nelson Goodman, observou-se que a falsificação é uma prática cultural que data da Idade Média. Esta prática, bastante comum no comportamento social humano, está diretamente relacionada com os conceitos de identidade, originalidade e autenticidade, conceitos estes tratados por Umberto Eco, e que guiaram a abordagem do falso nesta pesquisa. Todavia, o fake, como simulação, utiliza a paródia para promover a crítica. Por meio dos estudos de Linda Hutcheon, que conferem à paródia uma característica essencialmente irônica, este trabalho define um primeiro aspecto do fake como simulação paródica irônica. Foi examinado, então, a título de corpus, um conjunto de modelos paródicos: Not the Financial Times, impresso que critica o tradicional The Financial Times através da imitação; B.C. Byte Series, trabalho arqueológico ficcional que relaciona a obra de arte com o artefato; a revista Esquire, que divulga notícias ficcionais, entre outros. Ao selecionar um grupo tão diversificado, verificou-se que alguns exemplos apresentam, de forma velada, as pistas responsáveis pela construção do sentido paródico. Assim, uma paródia torna-se trote e determina a simulação paródica radical. Ainda examinando o diverso material fotográfico escolhido, observou-se que as manipulações são recorrentes, como falsificações, simulações paródicas irônicas ou radicais. A fotografia simulativa paródica radical é destacada através da análise dos trabalhos do fotógrafo Joan Fontcuberta, que compõe fotos fictícias, como as de animais, vegetais e até fotobiografias. Percebe-se, assim, a existência de uma reflexão crítica ao processo criativo e ao caráter de verdade que, tradicionalmente, constitui o ethos fotográfico. Os conceitos e a classificação que apresentamos, juntamente com as análises, buscam evidenciar a devida relevância do fake como paródia irônica reflexiva dos meios, dando continuidade à dissertação de mestrado O falso documentário, pesquisa previamente realizada por este autor.
PALAVRAS-CHAVE: falsificação, simulação, paródia, ironia, fotografia, artes visuais.
ABSTRACT
This research deals with a study about photographic fake that have increasingly present in the media and advertising world of the XXI century. The term fake is used both to define false objects the really try to mistake people, and others which only simulate and have no intention to deceive as a priority. In order to prove the potential of the photographic fake as a critical element of media, even being part of it, so this work made a distinction between the concepts of forgery and simulation. The fake photographs or the ones produced as simulations are considered as devices for reflection elements of the production process itself or its representation as an element of culture. Through consideration of the studies of Hans Tietze and Nelson Goodman, it was observed that faking is a cultural practice that exists since the middle age. This practice is quite common in human social behavior, is directly related to the concepts of identity, originality and authenticity, concepts treated by Umberto Eco, who guided the approach about the false in this thesis. On the other side, there is the fake as simulation that uses the parody to promote critics. Through the studies of Linda Hutcheon, who gives the parody an ironic characteristic, this work defines one side of the fake as a parodic and ironic simulation. It was considered then as a corpus, a set of parody models: Not the Financial Times, which criticizes the traditional printed The Financial Times through imitation; BC Byte Series, archaeological work that relates the fictional work of art with the artefact; Esquire magazine, which publishes fiction news, among others. By selecting a diverse group, we verified that some examples present the hints that are responsible by the construction of the parodic sense in a concealed mode. So, a parody becomes a mock and determines the parodic and radical simulation. While examining the diverse photographic material chosen, it was observed that the manipulations are applied as forgeries, ironic or radical parodic simulations. The parodic radical simulative photography is pointed out through the analysis of photographer Joan Fontcuberta’s works, who designs faked photographs of animals, vegetables and even photo biographies. It is clear, therefore, the existence of a critical reflection on the creative process and the nature of truth that, traditionally, is the ethos of photography. The concepts and the classification presented, together with the analysis, seek to highlight the importance of proper fake as ironic parody of reflective media, continuing dissertation The fake documentary, previous research by this author.
KEYWORDS: counterfeiting, simulation, parody, irony, photography, visual arts.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: A St. Eustage - Albrecht Dürer, 1498. A St. Eustage
,Johann Georg Fischer, 1614...............................................
23
Figura 02: Knight, Ritter, Tod und Teufel, Albrecht Dürer, 1513………. 23
Figura 03: Caritas - Lucas Cranach, the elder....................................... 24
Figura 04: Albrecht Dürer. 1484/ Falsificação de um suposto
autorretrato de Dürer 10 anos depois, 1494.........................................
29
Figura 05: Duke Antoine the Good of Lorraine (Hans Holbein, 1543)
Unknown Young Man at his Office Desk (Hans Holbein, 1541) e
falsificação sem data………………………………………………………………
32
Figura 06: L.H.O.O.Q. , Marcel Duchamp, 1919................................... 35
Figura 07: Recortes das páginas da Revista Esquire Julho/2011........ 42
Figura 08: Perspective: Madame Récamier by David, René
Magritte,1951/ Portrait of Madame Récamier, de Jacques-Louis
David, 1800...........................................................................................
52
Figura 09: La Meridienne de Jean-François Millet, 1866 / La Siesta,
de Vincent Van Gogh, 1890.................................................................
54
Figura 10: Les quatre ages, Daumier, 1862/ Les Buveurs, Van gogh,
1890....................................................................................................
55
Figura 11: Thirty Are Better Than One, Andy Warhol, 1963…….......... 57
Figura 12: Le Dance Class, 1874, Edgar Degas/ Le Dance Lesson,
1999, Sophie Matisse………………………………………………………………
64
Figura 13: Sensacionalista, 13 de março de 2012................................. 72
Figura 14: Le Monde, 13 de março de 2012..........................................
Figura 15: Logomarcas do site G17 e G1..............................................
73
76 Figura 16 Folha capa do jornal Financial Times.................................... 78
Figura 17: Folha capa do jornal Not the Financial Times...................... 80
Figura 18: Anúncio da E-on, Not the Financial Times........................... 82
Figura 19: Reconstruction of an Aazudian Temple ……………………… 84
Figura 20: Imagem de cilindro e chip da exposição B.C. Byte Series.. 85
Figura 21: Palimpsestos exposição B.C. Byte Series............................. 86
Figura 22: B.C. Byte Series no SESC POMPÉIA / SP........................... 88
Figura 23: Capa da Revista Esquire, de novembro de 1996.................. 89
Figura 24: Figura 1 – Campanha Benneton....................................... 101
Figura 25: Raising the Flag on Iwo Jima, de Rosenthal, 1945./Mother Cat stops stops traffic, de Harry Warnecke, 1927……………………………………………………………………..
103
Figura 26: Jornal Meio Norte de 01 de Junho de 2000........................ 105
Figura 27: Henry Peach , Fading Away, 1958………………………………. 107
Figura 28: As fadas de Cottingley,1917............................................... 107
Figura 29: Self Portrait as a Drowned Man, 1840…………………………. 108
Figura 30: Partido Comunista , 1920, em Petrograd........................... 109
Figura 31: A fotografia foi recortada - Partido Comunista , 1920....... 110
Figura 32: A fotografia foi recortada - Partido Comunista , 1920......... 110 Figura 33: 05 de maio, Moscou, Lenin discursa ..................................
Figura 34: Lenin e Stalin, no ano de 1992, em Gorky...........................
111
112
Figura 35: Lenin e Stalin, foto composição de 1938............................. 112
Figura 36: 27 de janeiro de 1936, Guelia com Stalin em Moscou......... 113
Figura 37: Hitler, 1925........................................................................ 114
Figura 38: Berlim, 1937 - Versões alterada e original......................... 114
Figura 39: Franqui e Fidel 1962, 1973, em Cuba.................................
Figura 40: La chine, 1977/La chine, 1981............................................
115
115
Figura 41: Foto registra cerimônia em memória a Mao. ....................... 117
Figura 42: Fotografia de Wu Yinxiam, Yan'an, 1942 ........................... 117
Figura 43: Painel de Dong Wiwen de 1955........................................... 118
Figura 44: Jornal egípcio, setembro de 2010........................................ 119
Figura 45: Foto oficial da captura de Bin Laden cedida pelo Governo
americano..............................................................................................
120
Figura 46: Heaven to hell, 2006, David Lachapelle……………………….. 123
Figura 47: American Jesus, Lachapelle, 2010....................................... 124
Figura 48: A ultima ceia na coletânea Jesus is my homeboy, 2003,
David Lachapelle................................................................................... 125
Figura 49: Amanda Lapore como Marlyn Monroe de Andy Warhol....... 125
Figura 50: Deluge , David Lachapelle, 2006.......................................... 125
Figura 51: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia..... 127
Figura 52: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia..... 128
Figura 53: Marcelo do Campo 1969-1975, 2003, Dora Longo Bahia..... 129
Figura 54: Foto da planta Flor Miguera, Herbarium, Fontcuberta........ 134
Figura 55: Figura 55: Instalação Herbarium no Musée-Château.......... 134
Figura 56: Braohypoda frustrata.......................................................... 134
Figura 57: Astrophythu dicotiledoneus ...............................................
Figura 58: Lavandula angustifólia .......................................................
135
136
Figura 58: Lavandula angustifolia, ......................................................
Figura 59: Vampyroteuthis infernalis, por Louis Bec............................
136
138
Figura 60: Prof. Ameisenhaufen, Fauna, Fontcuberta e Formiguera..... 139
Figura 61: Foto da "radiografia"da Solenoglypha Polipodida..............
Figura 62: Solenoglypha Polipodida, Fontcuberta e Formiguera.........
140
141
Figura 63: Solenoglypha Polipodida, Fontcuberta e Formiguera......... 141
Figura 64: Prof. Ameisenhaufen com o Centaurus Neandertalensis..... 141
Figura 65: Descrição e esboço do Thresquelonia Atis.......................... 142
Figura 66: Prof. Ameisenhaufen com sua irmã Elke, 1907.................. 142
Figura 67: Instalação Fauna no Museu-Châteu Annecy....................... 143
Figura 68: El gran guardiá del Bé Total................................................. 145
Figura 69: Cercophitecus Icarocornu/ "Macacos Alados" da obra "O
maravilhoso mágico de Oz"..................................................................
145
Figura 70: Aerofants de Fauna Secreta / Dumbo, de Walt Disney....... 145
Figura 71: Sirenas, Joan Fontcuberta................................................... 149
Figura 72: vitrine de Sirenas, Digne-les-Bains, 2000........................... 150
Figura 73: Sirenas, Joan Fontcuberta................................................... 150
Figura 74: Centauro, Beuvais Lyon....................................................... 152
Figura 75: The association for creative zoology, Beuvais Lyon......... 153
Figura 76: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 154
Figura 77: Vladimir komarov, 1961...................................................... 154
Figura 78: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 155
Figura 79: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 155
Figura 80: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 156
Figura 81: Sputnik, no Photo Art Festival, Maio, 2000........................ 157
Figura 82: Sputnik, Joan Fontcuberta ............................................. 157
Figura 83: Miracle &CO, Joan Fontcuberta ,milagre da Criofloração. 159
Figura 84: Miracle &CO, milagre da lacrimação sanguínea................ 160
Figura 85: Miracle &CO ,milagre da levitação/ da ubiquidade............ 161
Figura 86: Miracle &CO, Joan Fontcuberta........................................ 161
Figura 87: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 163
Figura 88: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 164
Figura 89: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 164
Figura 90: Material de imprensa Deconstructing Osama...................... 165
Figura 91: Deconstructing Osama, Foncuberta..................................... 165
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................ 12
1 FAKE: FALSIFICAÇÕES ...................................................................... 13
1.1 As falsificações históricas............................................................... 13
1.2 Coleção ........................................................................................... 18
1.3 Falsificação vs simulações ............................................................. 19
1.4 Rumo a classificação ...................................................................... 26
2. FAKE: SIMULAÇÕES .......................................................................... 33
2.1 A classificação ................................................................................. 33
2.2 A simulação ..................................................................................... 37
2.2.1 A simulação criativa ..................................................................... 41
2.2.2 A simulação e os simulacros ....................................................... 45
2.2.3 A simulação criativa e a intertextualidade................................... 48
2.2.4 Simulação de co-presença: tradução, citação e paródia ............. 51
2.3 Simulação paródica ......................................................................... 58
2.3.1 Simulação paródia irônica............................................................ 65
2.3.2 Simulação paródica radical........................................................... 82
3 O FAKE FOTOGRÁFICO...................................................................... 93
3.1 A autoridade realista da fotografia ................................................ 93
3.2 A ficção no fotojornalismo.............................................................. 102
3.3 A intervenção fotográfica nos regimes ditatoriais ........................ 106
3.4 Simulação fotográfica paródica irônica ......................................... 121
3.5 Simulação fotográfica paródica radical ......................................... 126
3.5.1 Fontcuberta e as simulações.......................................................
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................
131
166
REFERÊNCIAS ....................................................................................... 168
ANEXOS ................................................................................................ 176
12
INTRODUÇÃO
Um dos termos utilizados na língua portuguesa para caracterizar um elemento
como falso é a expressão "forjado". A princípio, essa palavra tinha apenas o
significado de algo que foi produzido na forja, que é o ambiente de trabalho de um
ferreiro, contendo fornalha, bigorna, etc. O objeto forjado era algo fabricado,
produzido, criado. A partir da objetividade da Renascença até o movimento do
realismo, o termo "forjado" era citado para apontar alguma obra que não fosse fiel à
natureza. "Então, antes o que era considerado um ato de valor criativo para
sociedade, se tornou bastardo ou uma produção espúria" (HAYWOOD, 1987).
Portanto, a expressão falso tem relação estreita com a fabricação e esta, por sua
vez, com a criação. Pode-se afirmar que a falsificação, como iremos constatar, é uma
atividade presente no desenvolvimento histórico do comportamento e da criação
humana.
[...] se soubermos ser menos dramáticos e mais flexíveis, se nos guiarmos por critérios de funcionalidade e não por dogmas de fé, veremos que a “cultura de contrafação” é mais rica que se supõe [...] (MACHADO, 1993, p. 200)
A palavra falso é demasiadamente genérica, podendo confundir-se com
abordagens fora do contexto da comunicação como "falso alarme", "degrau em
falso". Dessa forma, este trabalho optou pelo emprego da palavra fake, no exame de
elementos fotográficos fake na mídia.
O termo fake será utilizado de forma a abranger dois polos de classificação
que se distinguem por meio da intencionalidade: a falsificação, a que nos referimos
até agora, tem o propósito de enganar; as simulações, que procuram promover a
crítica ao processo de criação, ao intertexto ou ainda ao contexto cultural. As
simulações utilizam a paródia, que permite um olhar avaliador sobre um outro texto,
focando a polêmica dos valores projetados pelo criador da obra. O objeto paródico
faz uso da ironia, que, embora seja vista como ferramenta, é, na verdade, um
processo comunicativo que promove esta paródia sancionadora. A ironia é simulativa
13
e põe em desacordo a enunciação e o enunciado, para destacar uma segunda
enunciação. As semelhanças entre o texto-base e o texto parodiado serve de
picadeiro para a ironia destacar as diferenças, de forma que o enunciatário
compreenda e reconheça a estratégia discursiva.
A fotografia, desde os primórdios de sua criação, é uma atividade de caráter
objetivo. As pessoas queriam tirar retratos para poderem imortalizar o momento, ou
seja, a foto oferecia a possibilidade de guardar a memória no papel. Esse valor de
verdadeiro que a fotografia herda tradicionalmente, faz dela uma ferramenta muito
útil para aqueles que fabricam o fato e forjam a notícia diária. Desse modo,
culturalmente, o homem é vítima da fé que deposita em sua própria criação.
Essa perspectiva de crédito demasiado da fotografia é uma das várias
questões apontadas pelo artista Joan Fontcuberta. Por meio da ironia de suas
fotografias simulativas paródicas, tenta polemizar o assunto em exposições que
simulam o processo fotográfico. Como na exibição Fauna Secreta, que apresenta
fotos inéditas (manipuladas) de animais desconhecidos pela ciência como um
macaco com chifre de unicórnio e asas de coruja. O fotógrafo ironiza a credibilidade
fotográfica, expondo simulações complexas, em cenários científicos que fazem o
conteúdo subverter o formato. Ele utiliza a paródia como crítica irônica ao revelar
fotos de referentes que não existem de forma palpável. O confronto faz-se e as
simulações, assim como as falsificações, estão situadas de forma importante e
necessária na história do homem.
1 FAKE: FALSIFICAÇÕES
1.1 As falsificações históricas
Como todo adjetivo, a palavra falso tem a função sintática de caracterização
de um substantivo. Esse efeito de retratar um objeto como falso implica apontá-lo
como um elemento oposto ao original, ou seja, não autêntico. Existem variados
14
sinônimos para o falso: contrafação, engodo, fraude. A sua forma mais comum de
caracterizar um objeto como falso é o confronto com outro item considerado original.
Na cidade de Nashville (Tennessee, EUA), foi construída uma réplica em
escala 1/1 do Partenon de Atenas. A intenção era possibilitar ao visitante a
oportunidade de entender como se dava a arquitetura do edifício grego sem as
alterações naturais do tempo. Estátuas que contornam sua fachada são reproduzidas
com semelhanças em cores e formas assim como foram criadas, séculos atrás. O
prédio de Nashville, por oferecer uma arquitetura sem as avarias do tempo, com
cores fortes, estátuas em bom estado, tenta recriar a exuberância do edifício
ateniense. Surge, então, a questão: o templo de Nashville é falso? Ele exibe uma
arquitetura semelhante ao original quando foi construído, e não como é visto
atualmente em Atenas, sem cores, deteriorado, cercado por ruínas. A experiência do
visitante do Partenon americano é de deslocamento no tempo e espaço. Na verdade,
o sujeito participa de uma simulação que o "leva" à Grécia de mais de dois mil anos
atrás. O Partenon ateniense é reapresentado como terá sido um dia. A experiência é
uma simulação e não uma falsificação. O prédio de Nashville é uma recriação.
Exemplos de falsificações permeiam a história do homem. Por outro lado, as
simulações também desempenham papel importante no desenvolvimento. São duas
formas distintas do fake, ambas relevantes como parte evolutiva da criação humana,
apesar de que as falsificações sejam uma prática mais condenável.
O artista italiano Michelangelo, com apenas 21 anos de idade, esculpiu um
cupido de acordo com antigos moldes de produção e logo em seguida o enterrou.
Algum tempo depois, a peça foi desenterrada e negociada como antiguidade.
Michelangelo não tirou vantagem financeira da situação, mas sentiu-se orgulhoso por
ter seu trabalho confundido com os de seus ancestrais (TIETZE, 1948).
Obras consagradas da literatura ou artes visuais recebem, ao longo do tempo,
a atenção de estudiosos que, cada um em sua época, pode abordar e oferecer
diversas possibilidades de pontos de vista a respeito de forma, estética, regra, estilo,
ou seja, aspectos e abordagens diferentes. A atividade criativa que permanecer em
seu momento de criação e não ultrapassar as barreiras do tempo, admitindo novos
significados, acaba por "desaparecer". Muitos trabalhos, como os de Shakespeare,
15
são reconhecidos de forma diferente a cada período, desde sua produção. A
intensidade semântica na obra de Van Gogh ainda não foi totalmente descoberta e
estudada. Este mesmo pintor, que vendeu pouco em vida, tendo sua obra não
reconhecida pelos seus contemporâneos, é considerado um dos maiores das artes
visuais. Mas será que seus quadros obtiveram novas cores e formas para motivar
essa mudança de perspectiva? De certa forma, o trabalho de Van Gogh não é o
mesmo de sua época. Foram-lhe atribuídos novos sentidos e abordagens a respeito
de sua intencionalidade, processo criativo e outros aspectos inerentes a qualquer
elemento autoral. A respeito da eternidade mutante de alguns produtos culturais,
Mikhail Bakhtin (1986, p. 05) diz que 'no processo da sua "vida póstuma" eles são
enriquecidos com novos significados, nova significância: é como se esses trabalhos
superassem o que eles foram na época de sua criação'.
A produção de falsos objetos baseiam-se em um original, reproduzindo suas
propriedades visíveis ou não. Podem manifestar-se de acordo com as regras
normativas de uma escola e, até mesmo, sugerir que é fruto de uma produção de
determinado autor. Em alguns casos, o próprio criador nem toma conhecimento de
que sua obra foi atribuída a outro, mais famoso, resultando em maior valor
financeiro ao negociador da venda do "objeto de coleção". Exemplos como o do
escultor italiano Giovanni Bastianini - que teve um busto, produzido por ele em 1866,
exposto no Louvre como uma obra da Renascença - ilustram como o falso objeto
pode ser tomado como autêntico e fazer parte da história como tal.
Nas artes visuais, era comum artistas já conceituados serem auxiliados por
iniciantes que não só complementavam ou finalizavam suas obras, mas também
produziam réplicas. Era bem aceito o comércio de réplicas fabricadas por talentos
devidamente treinados. "A oficina desses grandes artistas foi considerada - desde o
século XIX - como uma organização de comércio e não um santuário de um artista
solitário" (TIETZE, 1948). Essa relação "pupilo/mestre", quando muito longa,
tornava-se uma ocasião fértil para duplicações. Em 1937, durante a exibição de
Chefs d`ouvre de l`art français, uma das mais cuidadosas seleções de obras
francesas do século, uma pintura de Emile Bernard, foi exibida como obra de seu
companheiro Paul Gauguin (TIETZE, 1948).
16
Mas a falsificação criminosa, o falso mercadológico, não é apenas praticada
nas artes visuais e, muito menos, uma atividade recente. Sua origem deu-se a partir
da comercialização de pedras preciosas, há cinco mil anos. Atualmente, guardado no
Museu de Estocolmo, um papiro egípcio contém amplas instruções sobre como imitar
pedras preciosas coloridas à base de vidro. Sabe-se, através de escritos de Sênecas,
que na Roma de César, havia diversas oficinas destinadas à falsificação de pedras
preciosas. À vista disso, as contrafações "habitam" na trajetória do homem desde o
surgimento da prática da troca, da atribuição de valores a objetos da natureza.
Pois, para se dizer a verdade, as profanações, as alterações, as falsificações de produtos culturais têm a mesma história do homem. Os copistas interferiam deliberadamente no texto, abreviando ou censurando o texto copiado, tudo, é claro, em nome da preservação da “verdadeira” mensagem. Livros raros e antigos têm sido modificados, através de enxertos e montagens, para esconder páginas faltantes. Pinturas e estátuas foram sistematicamente censuradas e modificadas[...] (MACHADO, 1993, p. 195).
Escrituras e textos da antiguidade também sofreram modificações ou foram
totalmente fabricados e disseminados como verdadeiros ao longo da história. No ano
de 391 D.C., a religião cristã foi adotada como a única religião do Império Romano.
A partir dessa data, a Igreja Católica estabeleceu forte influência nas decisões na
política, no poder jurídico e no consenso do que seria "bom costume" na sociedade.
O domínio da Igreja proporcionou uma manifestação adversa da falsificação, que não
era apenas voltada para acréscimos financeiros, mas também para efeitos
doutrinários.
Donatio Constantini foi um suposto decreto de lei do imperador Constantino
que, como um ato de fé, doa à Igreja territórios e edifícios sob seu domínio, dentro e
fora da Europa. O documento foi questionado por diferentes líderes romanos. Desde
então, sabe-se que, durante muito tempo, o escrito foi considerado como genuíno e
contribuiu para o domínio da Igreja Católica. Não só a falsificação, propriamente dita,
mas a omissão de alguns textos, livros, obras artísticas faziam parte da prática da
Igreja para exercer o catequismo autoritário (LAMBERTINI, 1987). O
desenvolvimento intelectual do homem é povoado por situações que apontam para
falsificações, que, de alguma maneira, subvertem aspectos importantes.
Em 1859, o britânico Charles Darwin publica a primeira edição do seu tratado
17
A origem das espécies, que revolucionou a biologia com a Teoria das espécies. O
polêmico livro ultrapassou o ambiente acadêmico, tornou-se popular e provocou o
surgimento de diversas relíquias arqueológicas falsas visando ao ganho financeiro
oferecido por museus e colecionadores. Um dos mais famosos exemplos de fraude
foi o Homem de Piltdown (The Piltdownman). Em 1912, durante um encontro entre
profissionais da área, dois geólogos britânicos, Arthur Woodward e Charles Dawson,
anunciaram a importante descoberta do elo perdido entre a raça humana e os
macacos, de acordo com a teoria da evolução darwiniana. Os achados resumiam-se
a um crânio (semelhante ao humano), um fragmento de mandíbula de macaco e
dentes de outros animais - veados, castores e hipopótamos. Os anos seguintes foram
marcados pelo surgimento de inúmeras supostos descobertas relacionadas1 ao
Homem de Piltdown. No entanto, após a morte de Dawson, todas as tentativas
arqueológicas realizadas no local foram mal sucedidas, e nada mais foi encontrado.
O desenvolvimento da técnica de determinação da idade dos ossos por meio do
flúor, permitiu que os fósseis de Piltdown não fossem mais levados a sério como
achados da Era do Gelo, e sim restos de animais semelhantes ao homem. A farsa
durou 40 anos, principalmente porque o British Museum a considerava tão valiosa
que os especialistas não tinham a permissão para uma análise mais profunda (KOHN,
1986, p.140). Os fósseis permaneciam guardados, enquanto réplicas eram oferecidas
para exibição. Apesar de eventos como esses proporcionarem maior status na
carreira de um cientista através do reconhecimento de grandes descobertas, a
falsificação surgiu e continua a ser praticada com o objetivo de ganho financeiro.
1 Em 1913, o padre católico Pierre Teilhard de Chardin, que era paleontólogo amador, encontrou no mesmo local um dente que se encaixava na mandíbula. Em 1914, um operário encontrou uma ferramenta feita de um dente de elefante. Três anos depois da descoberta, Dawson afirmou ter encontrado outro Piltdownman.
18
1.2 Coleção
Na esfera das obras de arte, quanto mais colacionável é a peça, maior a
possibilidade da contrafação. Ao considerar uma tela ou escultura como um elemento
de estimável valor para colecionadores, o seu valor aumenta, e, com isso, a
possibilidade de ser falsificada cresce na mesma proporção. Mas não é preciso
necessariamente ser uma obra de arte para ter valor de coleção. No século XXI, a
prática de leilão tornou-se mais popular com o ambiente virtual. Pessoas podem
participar e dar seus lances a qualquer momento, de qualquer lugar e, o principal,
sem mediador. Desde o surgimento da reprodução da imagem relacionada à religião,
o culto ao ícone tornou-se comum. Todavia, os "deuses" do passado tornaram-se os
atores, cantores, atletas, políticos e até elementos ficcionais da TV, que têm sua
imagem cultivada e adorada no presente. O ciberespaço, que é um ambiente
interativo de informações, prolifera com a rapidez necessária para que, em instantes,
promova qualquer pessoa à celebridade. E, assim, quanto mais famosos, mais
elementos colecionáveis vão surgindo e as falsificações em crescimento lateral.
Fortunas são despendidas em busca de objetos "valiosos" como os óculos utilizados
pelo cantor John Lennon, que, nas primeiras 24 horas de leilão via internet, chegou a
quase 750 mil libras (aprox. dois milhões e oitocentos reais). Objetos considerados
por muitos como "fúteis" ou de pouca importância podem chegar a um preço
oneroso tendo em vista o interesse de poucos colecionadores. A fascinação pelo
hábito de colecionar fez com que a falsificação surgisse e se desenvolvesse ao longo
dos anos, principalmente nas obras de arte. "Coleciona-se por motivo de beleza, por
status, para acumular capital e por outros inúmeros motivos, entre os quais, figuram
também e não em último lugar, a vaidade e a ambição[...]" (ARNAU, 1961, p. 20).
A atividade de colecionar é tão primitiva que, possivelmente, originou-se com
as técnicas de conservação de alimentos ("item de valor" na Idade da Pedra),
passando pela obsessão das civilizações grega e romana em reproduzir imagens dos
oligarcas em esculturas e pinturas, que logo se tornaram elementos de alta estima.
Os artistas produziam estátuas ou figuras em série e inseriam apenas as cabeças de
19
acordo com cada cliente.
Cosme de Médicis pôs a base de uma coleção que, em 1492, constituía provavelmente a maior coleção de arte de primeira[...]O palácio da família, as quintas e os jardins pareciam na realidade tesouros próprios de museu. Com pinturas, mosaicos de Bizâncio, retalhos, tapeçarias, mobiliários suntuosos, preciosas esculturas de pedra, marfim, madeira ou metal, cristais ou vidros, manuscritos ou quadros, moedas, jóias de todas as classe, correntes, pedras preciosas, obras de ourives e ourivesaria em Florença. (ARNAU, 1961, p. 24)2.
A partir do Quattrocento, famílias investiam boa quantidade de capital para ter
em casa obras da antiguidade romana e grega. Mas a demanda era muito grande e
as obras de arte "originais" estavam-se tornando item raro no mercado. Então, surge
a perfeita oportunidade para a falsificação. Muitos artistas criavam peças que
reproduziam os efeitos "danificados" do tempo para fazer da obra originalmente
antiga, como o cupido criado por Michelangelo. Quanto mais pessoas procuravam
por prestígio e status com a compra de itens cada vez mais raros e antigos para
colecionar, mais obras falsificadas eram vendidas. Naquela época, havia mais
dificuldade na identificação de fraudes; portanto, muitas famílias podem ter obtido
certa deferência devido a obras que não eram originais - a falsificação atuando na
relação e comportamento social.
1.3 Falsificações vs simulações
Constantemente, um objeto cultural pode ser definido como falsificação, mas,
na verdade, é uma simulação resultante de avanços tecnológicos ou inovações no
processo de criação. Um bom exemplo é a tecnologia da representação
cinematográfica. No título Moonraker (1979), da série de filmes do personagem 007,
o espião luta com seu inimigo sobre os cabos que seguram os bondes do Pão de
Açúcar, no Rio de Janeiro. A cena é produzida com o efeito de estúdio denominado
2 Tradução livre.
20
de chroma keying. A técnica insere qualquer fundo ao objeto em primeiro plano. O
ator grava a cena com um fundo verde, azul ou vermelho e, com a computação
gráfica, esse fundo é substituído por outra imagem. No filme, o ator nunca esteve a
dar golpes no topo do bonde, no Rio de Janeiro. É aceitável a hipótese de que todos
os espectadores do nosso século não duvidassem da utilização de um artifício
tecnológico para construir a cena. Sob outro ângulo, por ocasião de uma época em
que a técnica ainda não era tão popular, espectadores poderiam achar que o ator
quebrou o cabo do bonde realmente com os dentes como o filme mostra. Dessa
forma, a simulação é reconhecida ou não por meio dos padrões da linguagem
cinematográfica de cada momento na história. Por outro lado, ocasionalmente, a
simulação, os avanços tecnológicos são confundidos como elementos tão falsos
como uma cópia de um quadro produzido para fins lucrativos.
Há, em alguns casos, a "paranóia do original" (MACHADO, 1993), que
exatamente permite dar a todo objeto que foge das convenções, o significado de
falso, por meio de uma abordagem pejorativa.
O gosto da autenticidade a todo preço é o produto ideológico de uma sociedade mercantil, e, quando uma reprodução de uma escultura é absolutamente perfeita, privilegiar o original equivale a privilegiar a primeira edição numerada de um livro, em vez da segunda edição[...] (ECO, 1991, p.159).
Faz-se importante acrescentar que, em muitos casos, grande parte de uma
sociedade não possui conhecimento técnico suficiente para poder perceber as
propriedades que realmente distinguem dois objetos "semelhantes" e, por
conseguinte, reconhecem-nas como idênticos. O cinema documental, ainda hoje, em
meio a tantas provas de manipulações3, há quem defenda a câmera como artifício
para capturar a realidade. A grande plateia, quando não “alfabetizada” da linguagem
utilizada, não distingue os artifícios ficcionais nessa construção.
O objeto falso também não deve ser confundido com a réplica. A réplica é um
idêntico do seu original? O termo "idêntico" sugere a ideia de equivalência, que, nas
3 A manipulação inicia no momento da captura até a edição do filme, passando pela "negociação" da entrevista entre realizador e personagem. Além de outros aspectos como tomada encenada, atores contratados fazendo parte do circo de um filme documentário que é denominado, ingenuamente, como "registro do real".
21
ciências exatas, é algo absolutamente igual que reproduz as propriedades mais
intrínsecas e incontroláveis do original. Esses absolutos são utópicos, haja vista sua
dificuldade de reprodução. Os objetos que duplicam o original, copiando o mesmo
procedimento de criação, refazendo-o nas mesmas condições, são denominados
"duplos" - produção em série de um mesmo modelo (ECO, 1991). Todavia, do ponto
de vista semiótico, denomina-se réplica todo objeto que é produzido com apenas um
percentual das propriedades do objeto-modelo - um aeromodelo, por exemplo.
De acordo com Daniele Barbieri (1987, p.44), um objeto é semelhante a outro
quando compartilha pelo menos uma propriedade. Quando o objeto não tiver uma só
propriedade diferente do outro, ambos são idênticos4.
Na fotografia, por exemplo, a cópia produzida em série pode perder no
aspecto autoral. A essa prática, Walter Benjamin (1994) denomina "reprodutibilidade
técnica" - reprodução sistemática, automática, seriada de uma obra de arte. Com a
reprodução técnica a obra tem o seu valor de autoria fragilizado, mas, por outro
lado, ganha no domínio da tradição histórica, devido à popularização. A réplica
substitui a manifestação única da obra por uma manifestação em série.
A reprodução técnica refaz o processo de produção parcialmente e, portanto,
pode interferir para fornecer diferentes resultados. Esse procedimento se encontra
mais voltada para artes visuais, principalmente, escultura, pintura, fotografia e
cinema.
Alguns anos atrás, com o desenvolvimento da tecnologia digital, tornou-se
possível colorizar obras cinematográficas em grande escala. Filmes clássicos como
Casablanca (Michael Curtiz, 1942) ou Suddenly (Lewis Allen, 1954) receberam cores
para exibição na TV ou para serem comercializados em fitas cassetes, tendo maior
apelo mercadológico. Na época, ocorreu certa polêmica porque muitos cinéfilos
confrontavam a prática de colorizar como uma intervenção radical que modificava o
conteúdo da obra, fazia do original uma fraude. O assunto, definido como "síndrome
da colorização" (MACHADO, 1993) e chegou aos congressos americano e inglês. No
entanto, a colorização no cinema era rotina de realizadores como Georges Méliès,
que possuía uma equipe para inserir cores em seus filmes, quadro por quadro. 4 Tal afirmação poder até ser duvidosa, mas é suficiente para compreender a réplica.
22
É fato, ao que se percebe com alguns exemplos de adulterações citados até
agora, que a história é composta também por fraudes. Por outro lado, o culto
prescindível ao original, mesmo definido superficialmente como o "primeiro", pode
permitir uma intransigência quanto a novas formas de manifestação artística. O
fetiche pela originalidade, a moralização conservadora dos meios culturais estavam
por interromper uma práxis comum na história da criação artística: o retoque.
Normalmente, quando ocorre uma variação no original de uma pintura que
não seja para causar-lhe maior interesse com propósito financeiro, isso se dá por
meio de ajustes ao "gosto", à "moda" da época ou até mesmo para privilegiar alguns
dos envolvidos: autor original, retocador ou proprietário da peça.
Em 1498, um artista da Bavária, Albrecht Dürer, pintou a imagem de um
membro da família Paumgartner (que encomendou a obra) como se fosse um
personagem sagrado. Cerca de 120 anos depois, o duque da Bavária adquiriu a peça
e solicitou ao pintor da corte, Johann Georg Fischer, que a restaurasse (Figura 1). O
artista substituiu a bandeira por uma lança, inseriu uma espécie de capacete no
personagem, colocou um cavalo em um cenário sombrio com uma colina ao fundo. O
pintor acrescentou à obra de Dürer elementos com o interesse de afastar o
personagem principal do caráter de "santo" para aproximá-lo à função de cavaleiro,
fazendo referência ao comportamento do duque, recém-proprietário da obra. Faz-se
necessário apontar que, neste caso, o retocador com sua intervenção, fez do painel
uma criação de dois autores. Ainda há outro detalhe importante no trabalho de
Fischer: o cavalo, a mata, a colina, o castelo são itens de outra obra de Albrecht
Dürer, de 1513, considerada uma de suas obras primas: Ritter, Tod und Teufel. Esse
é um tipo de episódio que dá a entender a obra artística como uma constante em
desenvolvimento, com compreensões diferentes ao longo do tempo, de acordo com
Bakhtin (1986). Os diversificados entendimentos são relacionados à perspectiva e ao
comportamento de cada época, incluindo retoques ou inserções numa obra de arte.
Não há dúvida de que o painel de Dürer foi modificado, provocando outra
interpretação. Todavia, não faz da obra uma falsificação.
23
Figura 1 À esquerda: St. Eustage - Albrecht Dürer, 1498. À direita: a mesma obra alterada por Johann Georg Fischer, 1614.
Figura 2 Knight, Ritter, Tod und Teufel, Albrecht Dürer, 1513.
24
Assim como obras que foram alteradas para corresponder ao gosto do seu
proprietário, outras tiveram suas telas modificadas com o objetivo de reajuste à
maneira mais apreciável de determinado momento cultural. Nos séculos XVII e XVIII
diversas criações sofreram intervenções plásticas para alinhar sua estética a
convenções como a sobreposição de ilustrações de roupas e tecidos aos detalhes em
nu.
A pintura a óleo produzida em 1536, por Lucas Cranach ("o mais novo"), foi
modificada anos depois, de acordo com o conservadorismo da época. O restaurador,
além de cobrir as pinceladas anteriores com o dever de reaver, renovar a obra,
decide por alterá-la, vestindo a virgem com roupas e modificando a curvatura do seu
braço esquerdo, que segura a criança. Particularmente, a autoria dos trabalhos com
a assinatura de Lucas Cranach é confusa porque, em sua oficina, trabalhavam juntos
o pai e o filho com o mesmo nome. Não obstante, algumas produções do filho eram
reproduções temáticas do pai e vice-versa. A relação pupilo e mestre promove um
processo criativo em conjunto.
Figura 3 - À esquerda: reprodução em preto e branco e recortada da versão modificada de Caritas - Lucas Cranach, the elder. A direita: quadro restaurado, sem a camada de tinta utilizada anteriormente, para encobrir o personagem.
25
Muitas galerias, em outras épocas, chegavam a cortar as telas ou alongá-las
para produzir em o efeito decorativo desejado - obra de arte como bem de
decoração. Na verdade, é difícil para qualquer sujeito, sem conhecimentos
especificamente técnicos, reconhecer uma obra alterada ou retocada. Desse modo,
dizer que essas pinturas são falsificações aponta para a velha tradição da adoração
ao original. As falsificações são objetos forjados para substituir o original, que
caracterize o crime como objetivo da venda. Além de que o exercício da restauração
é um bem ao patrimônio histórico da arte.
A restauração não tem na sua essência a intencionalidade de falsear. "A
restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte [...]
sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo"(BRANDI, 2004,
p.33). Esse "traços" não são nada mais que marcas, indícios da existência da obra ao
longo do tempo, que comprovam sua história. Mas, durante muitos séculos, os
especialistas e negociadores de obras de arte ofereciam bustos, estátuas e pinturas
"magicamente" (TIETZE, 1948, p.14) semelhantes ao original. Peças eram
restauradas a ponto de aniquilar qualquer traço histórico. Entretanto, os
compradores, por efeito do hábito de colecionar, começaram a exigir a presença dos
traços que comprovassem o valor histórico da obra. E, então, os falsificadores
voltaram-se a produzir peças novas com esses indícios e convencionadas à moda
antiga, como o cupido de Michelangelo, citado anteriormente. Talvez, com o
propósito de evitar a eliminação desses traços históricos, alguns cinéfilos defenderam
a não colorização dos clássicos do cinema. A valorização da obra fílmica reduziu-se a
sua materialidade e não à artisticidade. Talvez, na concepção dos opositores da
colorização cinematográfica, o filme Casablanca perderia sua qualidade artística. As
cores na tela da televisão, com certeza, não iriam mudar diálogos ou a trama do
filme, mas promoviam uma nova versão. E, sendo uma versão, entende-se a
existência de um antecessor, eliminando o processo de um passar-se por outro. É
comum encontrar inúmeras versões de filmes, ou melhor, refilmagens, termo mais
comumente utilizado para denominar a produção cinematográfica que se baseia em
outra, considerando em parte ou completo o roteiro original. Essa prática não faz da
26
versão anterior um trabalho mais ou menos admirável. Ao contrário, se uma história
é refilmada, entende-se como uma referência, no sentido de respeito e autoridade.
É evidente a existência, desde a literatura clássica, da paródia irônica, que,
muitas vezes de forma jocosa, tenta provocar um desconforto visando à crítica. Mas,
na maioria dos casos, especialmente no cinema blockbuster5, as refilmagens buscam
o sucesso obtido pela versão anterior. A adaptação de um livro ou peça de teatro é,
como a colorização, também uma manifestação criativa, comum na prática
cinematográfica. A peça Romeo e Juliet, escrita há mais de quatro séculos por
William Shakespeare, foi inúmeras vezes retratada no cinema. Depois das versões
que mais se destacaram - Romeo and Julieta (Franco Zeffirelli, 1968) e Romeo and
Juliet (George Cukor, 1936) - a adaptação Romeo + Juliet (Baz Luhrmann, 1996) foi
a mais ousada. Apesar de seguir as falas dos personagens escritas por Shakespeare,
o drama passa-se na década de 1990, inserindo gírias, músicas modernas e
elementos novos. Os cavalos são substituídos por carros, as espadas cedem lugar
para as pistolas de fogo e até os efeitos da comunicação de massa sobre a sociedade
moderna são retratados com inserção da televisão como locutora da história de
Romeu e Julieta. Assim como a colorização, o efeito em três dimensões são
desenvolvimentos tecnológicos que oferecem versões que destacam o valor artístico
do texto-base e não falsificações.
1.4 Rumo à classificação
As atividades humanas sofreram mudanças resultantes do capitalismo. O
trabalho artístico passa a ser considerado mercadoria. Como uma obra de arte
precisa da criatividade para se destacar, a demanda vem a ser maior que a oferta.
Desse modo, os preços aumentam e as fraudes são mais praticadas. Verifica-se
também que a falsificação está ligada a outros aspectos sociais como a religião. Os
5 Jargão que se refere aos filmes de maior apelo comercial, destinados à venda em massa. Termo baseado no nome de uma das maiores cadeias de video locadoras do mundo.
27
apócrifos são exemplos de documentos fraudados ou apenas "omitidos". Vê-se
claramente que o falsear é uma prática comum há muito tempo. Esculturas de
pedra, madeira, marfim, metal, com ou sem pedras preciosas, ainda são "fabricadas"
para se passar por antiguidades. Falsificavam-se moedas facilmente, e a descoberta
do ato criminoso fica mais distante por conta do seu uso massificado. Acontece o
oposto com os colecionadores de selo postal, que, devido ao seu conhecimento
técnico, são eventualmente capazes de identificar falhas na reprodução ilegal. Por
outro lado, os criminosos especializam-se na produção de carimbos, tendo em vista
que selos carimbados são mais valiosos. Criam-se até instrumentos musicais aos
moldes dos clássicos e não se vendem como réplicas, mas como os originais. Enfim,
contam-se inúmeros exemplos das falsificações criminosas, seja no âmbito artístico
ou não. A princípio, a classificação do falso pode-se dar por meio de uma simples
dicotomia: Falso histórico e Falso artístico (BRANDI, 2004). O falso histórico, oposto
ao falso artístico, seria a prática da falsificação fora do âmbito das obras de arte.
Documentos, mapas, registros, objetos industrializados, todos os elementos não
considerados um trabalho artístico, quando falsificados podem ser definidos na
categoria de falso histórico. A formulação de Celso Brandi é geral o suficiente para
reduzir o estudo do falso numa análise apenas do produto final. Não observa a
intencionalidade do falso e a sua potencialidade de interpretação.
Há de se observar, com todos os exemplos, que as falsificações são formas de
expressão deliberadamente enganosas. Para tanto, seus modos de operação devem
ser complexos e assim seus efeitos de sentido. Por conseguinte, uma classificação
mais apurada do falso pode ser esboçada.
Para Umberto Eco (1987), o objeto só é falso quando identificado como tal.
Para que uma escultura seja considerada uma fraude, ela deve ser reconhecida
dessa forma. Não importa se a tela é adulterada, o que interessa é se as pessoas
acreditam ou não na sua autenticidade. Portanto, a sua classificação é baseada nas
ações do "pretendente", aquele que está no exercício de identificar a obra. Dessa
forma, o estudioso propõe uma tipologia da falsa identificação: a contrafação radical,
a contrafação moderada e a contrafação ex nihilo.
Quando dois objetos, "Original A" e "Original B", intentam a ser um só, ou
28
seja, idênticos, ocorre a contrafação radical ou moderada. Pode ser praticada por
meio da Falsa identificação deliberada, Falsa identificação ingênua, Cópias de Autor e
Alteração do Original.
A falsa identificação deliberada ocorre quando o pretendente identifica o Oa
diferente de Ob, mas declara, com objetivo de enganar, que Ob é o original (Oa). Na
falsa identificação ingênua, os destinatários do pretendente acreditam que Ob é o
original Oa, mesmo sem que o pretendente o tenha declarado como tal. É o caso de
pessoas que confundem a réplica exposta no corredor de uma exibição como sendo
o original, guardado em cofre. Outra forma de contrafação radical são as cópias de
autor. Ao finalizar uma obra, o artista efetua um duplo, que aparentemente é igual
ao original e possui os mesmos valores estético e histórico. Por outro lado, os
adeptos do fetichismo do original não permitem a coexistência dos dois e
obrigatoriamente, aponta Ob como falso. Uma prática muito comum, como foi citado
anteriormente, a alteração do original pode fazer de Ob original (Oa). Todavia, sabe-
se que Ob é Oa alterado.
Outro processo de falsa identificação formulada por Eco é a contrafação
moderada. Nesse tipo, o falso é operacionalizado de duas formas. Em uma delas o
pretendente não é sensível a questões de autenticidade e aponta como original tanto
o Ob como Oa. A essa postura o teórico define como "entusiasmo gerador de
confusão", pois, ao nivelar, ambos se tornam o mesmo objeto, ou seja, dois originais
possuem a mesma identidade. A intercambialidade é o que rege a contrafação
moderada, e assim a tradução e, em alguns casos, a restauração é apontada como
adulteração, tendo em vista o embasamento na "paranóia do original". A
comparação da atividade de traduzir com a falsificação será retomada
posteriormente.
Por fim, a classificação proposta por Umberto Eco descreve também um tipo
de contrafação que surge sem ter um original (Oa) como referência, provinda "do
nada". O Ob é fruto de reprodução de traços de autores ou estilo. É denominada
contrafação ex nihilo a que se opõe à produção ex materia, que significa a
preexistência da matéria.
Em 1484, Albrechet Dürer pintou seu primeiro autorretrato na idade dos treze
29
anos. Algum tempo depois, não se sabe exatamente quando, surgiu uma falsificação
datada de 1494 de outro autorretrato de Dürer. O falsificador não copiou exatamente
outra obra, não se utilizou de uma matéria preexistente por completo. Na verdade, o
autor criou uma imagem de Dúrer mais velho, utilizando o personagem do quadro de
1484, inclusive, manteve o chapéu e os cabelos longos. Além disso, criou fissuras na
tela para parecer uma obra antiga.
O falso diplomático e o falso histórico são algumas das formas de
manifestação da contrafação ex nihilo. O primeiro refere-se a documentos falsos com
informações verdadeiras. Como uma fotomontagem do momento em que a princesa
Isabel assina a Lei Áurea. O falso histórico ocorre quando o documento é
formalmente autêntico, mas a informação é falsa - uma notícia de jornal sobre um
fato fictício.
A contrafação ex nihilo deliberada faz-se quando o autor de Ob é o mesmo
pretendente e assim produz o falso à maneira de outro autor ou período, como
Michelangelo fez ao enterrar o cupido. Ainda como na classe do ex nihilo, Eco cita a
falsa atribuição quando o pretendente não é o autor de B e o objeto Ob se passa por
uma data e autoria deturpada.
FALSA IDENTIFICAÇÃO DELIBERADA CONTRAFAÇÃO RADICAL
FALSA IDENTIFICAÇÃO INGÊNUA
Figura 4.1 - À esquerda, autorretrato aos 13 anos, Albrecht Dürer. 1484. À direita, falsificação de um suposto autorretrato de Dürer 10 anos depois, 1494.
30
CÓPIAS DE AUTOR ALTERAÇÃO DO ORIGINAL ENTUSIASMO GERADOR DE CONFUSÃO CONTRAFAÇÃO MODERADA PRETENSA DESCOBERTA DE INTERCAMBIALIDADE FALSO DIPLOMÁTICO CONTRAFAÇÃO EX NIHILO DELIBERADA
CONTRAFAÇÃO EX NIHILO
FALSA ATRIBUIÇÃO INVOLUNTÁRIA Quadro 1- Classificação proposta por Umberto Eco (2010). Percebe-se um termo em comum nas classificações descritas - o falso
histórico. Trata-se de um registro que contraria a eventualidade dos fatos. Em 1813,
a Revista do Instituto Histórico e Georgráfico Brasileiro publicou um documento
sobre a conquista do território dos índios goitacás no século XVII. O registro sendo
genuíno, consistiria em grande valor para o estudo da história indígena do país.
Todavia, por meio do confronto entre o estilo da escrita do documento e o estilo
praticado no século que o data, concluiu-se que a escritura é uma falsificação do
século XIX (MARTINS, 1996, p.146). De acordo com Eco, o falso histórico é aquele
que faz do acontecimento verídico algo enganoso, "uma simples mentira"(ECO, 2010,
p.140). Mas nem sempre o contrário de verídico é enganoso. Basta citar o cinema
ficcional, no qual estórias que de fato nunca aconteceram são exibidas na tela, mas
sem a pretensão de enganar. O docudrama, por exemplo, é uma ficção pontuada por
elementos que realmente existiram e compõe a história. O filme Cidade de Deus
(Fernando Meirelles, 2002) apresenta uma narrativa que retrata a violência em uma
das maiores favelas do Rio de Janeiro. Além disso, inclui personagens que fizeram
parte dos acontecimentos da época reportada na película. Na literatura há casos
como esse. O livro The life and strange surprizing adventures of Robinson Crusoe, de
Daniel Defoe, publicado em 1719 e inspira inúmeras obras da cultura atual,
fundamentou-se na aventura do marinheiro Alexander Selkirk. O jovem escocês foi
abandonado numa ilha, no arquipélago de Juan Fernandez, na América do Sul, de
outubro de 1704 a fevereiro de 1709. Selkirk, retornando ao Reino Unido, tornou-se
famoso o suficiente para servir de inspiração para Defoe.
Na verdade, tanto Cidade de Deus como o livro de Robinson Crusoé são obras
que contam fábulas as quais, de acordo com a definição de Eco podem ser
consideradas falsas. Entretanto, há um acordo entre os polos da relação
31
comunicacional de uma narrativa fictícia. Eco (1991) define como "pacto ficcional"
esse acerto em que o criador deixa marcas para o destinatário perceber e não tomar
como verdadeiros os episódios narrados.
Na semiótica greimasiana (GREIMAS, 2008), esse pacto é denominado
contrato de veridicção (GREIMAS, 2008), o qual indica que a verdade depende de
estratégias de linguagem. Há uma partilha entre o “crer-verdadeiro” do enunciador
com o do enunciatário. E é através desse equilíbrio tênue que se forma ou não a
verdade no discurso. Como afirma Fiorin (1996): “Esses contratos determinam a
atribuição de estatutos veridictórios distintos aos dois tipos de discurso. Trata-se,
com efeito, de um jogo que se estabelece entre o ser (dizer) e o parecer (dito)”. Na
verdade, não interessa muito se o enunciador está a criar discursos verdadeiros, e
sim a produção de efeitos de sentido de verdade junto ao enunciatário. O "fazer
parecer verdadeiro" é praticar a verdade. Da mesma forma, os romances literários e
filmes "baseados em fatos reais" também firmam acordo com o destinatário
objetivando não "parecer verdadeiro" e assim se tornar um trabalho assumidamente
ficcional.
Na classificação de Eco (2001), apesar de ser verificada a distinção da prática
de forjar pela ótica da origem da produção: a contrafação ex nihilo. Há o descuido de
não citar casos em que se mesclam duas obras genuínas. Como exemplo dois
trabalhos de Hans Holbein (Figura 4) que foram montados em um só: Duke Antoine
the Good of Lorraine de 1543 com Unknown Young Man at his Office Desk de 1541.
O criador do terceiro quadro utiliza a cabeça do duque Antoine e o corpo do homem
da tela de 1541. Alguns poucos aspectos são modificados como o rosto do duque,
que é rejuvenescido, o ouro do seu chapéu é removido e os anéis retocados em
outro dedo.
32
Figura 5 Da esquerda para direita: Duke Antoine the Good of Lorraine (Hans Holbein, 1543) Unknown Young Man at his Office Desk (Hans Holbein, 1541) e falsificação sem data.
Outro detalhe excluído no arranjo de Eco são as "contrafações criativas",
como o próprio autor cita (ECO, 2010, p.145), mas não as desenvolve. Tendo em
vista que o fetiche pelo original já está enraizado na cultura, qualquer manifestação
que propõe uma simulação de fatos, objetos, situações do cotidiano pode ser
considerada como contrafação. Na verdade, faz-se necessário definir uma
conceituação por meio de expressão menos pejorativa para, assim, abranger
exemplos6 "criativos" que ironicamente sugerem uma crítica ou reflexão e não o
engano criminoso.
As categorias a que este trabalho visa estão embasadas na intenção do
destinador, em suas estratégias para gerar o contrato entre as partes que envolve o
processo comunicacional e manter esse pacto com o objetivo do humor ou provocar
reflexão sobre algum aspecto do homem, da sua manifestação cultural ou até
mesmo da própria mídia. Desde então, há uma clara divisão entre dois
comportamentos: o enganoso, aqui denominado falsificação, e a simulação, definida
como ação de crítica. À vista disso, percebe-se que a intencionalidade move a
distinção. O interesse maior não é a busca interminável de definir, claramente,
termos como autenticidade, originalidade, verdade e mentira (o esclarecimento nas
6 Esses objetos irão compor o tema principal deste trabalho.
33
primeiras páginas é suficiente para o nosso propósito). Mas entender como a
"paranóia do original" permite a manifestação criativa que se voltam contra esse
dogma e utiliza-o como ferramenta para promover a reflexão através da crítica.
2 FAKE: SIMULAÇÕES
2.1 A classificação
Com a evolução do comércio e a valorização dos objetos, houve um
desenvolvimento da atividade da falsificação. Ao longo da história, livros foram
modificados; pinturas, adulteradas; moedas replicadas; esculturas, forjadas. Os
diversos exemplos certificam que o fetiche do falso/original deve ser cuidadosamente
ponderado, tendo em vista que o adjetivo "falso" trata de forma pejorativa
elementos que possuem importante valor cultural. As falsificações vêm há muito
tempo retratando, assim como as consideradas "autênticas", o comportamento
humano. Réplicas fraudulentas de quadros de séculos atrás permitem o estudo da
forma de produção criativa do autor copiado. Falsas esculturas antigas que recriaram
traços de artistas da era romana impulsionam a análise de características peculiares
dessas elaborações de época. As falsificações têm valor cultural porque carregam
consigo uma dupla história: a do seu tempo de criação e a do tempo que reportam.
O cupido que Michelangelo enterrou fornece informações do procedimento de criação
dos antepassados do artista e, ao mesmo tempo, das predileções da época em que a
escultura foi produzida.
Porém é de maior valia para esta pesquisa em desenvolvimento um outro tipo
de elemento que subverte linguagens e padrões de modelos em diversas mídias, a
simulação. Sua intencionalidade não é a de enganar ou o ganho financeiro. Está mais
voltado para provocar reflexão por meio da polêmica ou humor. Dentro da
semelhança, a implícita diferença destaca o objetivo do autor da obra.
Na metade da década de 1990, o físico Alan Sokal interessou-se pelos estudos
pós-modernos das ciências sociais e considerou que muitos dos textos criticavam
34
incoerentemente outras ciências. Ao se inteirar, escreveu um dossiê que refletia a
respeito de estudos de filósofos como Lacan, Deleuze, Derrida por utilizarem um
relativismo exagerado por "esquerdistas radicais". Dessa forma, no ano de 1996, o
cientista resolveu inscrever um artigo para seleção na revista de "estudos culturais",
a Social Text editada pela New York University. A revista estava por lançar uma linha
editorial chamada de "Guerra nas Ciências", que justamente criticava a intervenção
de teóricos das Ciências Exatas no âmbito das Humanas e Sociais. O texto
Transgressing the boundaries: toward a transformative hermeneutics of quantum
gravity (Transgredindo Fronteiras: Em direção a uma Hermenêutica Transformativa
da Gravidade Quântica), de Sokal, foi aprovado e publicado. Todavia, tratava-se de
um arranjo de citações longas de diversos filósofos, argumentações sem
fundamentos e incoerente relação com a matemática e a física. O seu objetivo era
provocar uma polêmica a respeito da conexão comumente feita entre teorias
científicas e estudos sociais, além de criticar o processo impreciso da seleção por
parte dos editores da revista. No mesmo ano, Alan Sokal publica o artigo A Physicist
experiments with cultural studies ("Experiências de um físico com os estudos
culturais") na revista Língua Franca, em que o autor aponta todos os aspectos
desconexos e discrepâncias do artigo anterior. Ele utilizou artigos científicos da área
(ditos como "modelos"), produziu uma paródia e criticou intelectuais e suas teorias,
sem precisar citá-los diretamente. Percebe-se que é uma manifestação do falso, mas
diferente da falsificação criminosa. Em outras palavras, Sokal fez uso do padrão do
recipiente (expressão) para subverter o teor (conteúdo), comumente utilizado. A
atitude ganhou destaque nos principais periódicos do mundo como New York Times,
The Observer e Le Monde.
Pensei que seria mais divertido e mais útil, ao invés de criticar, escrever um artigo elogiando esses textos. Então, tive a idéia de escrever uma paródia, que fosse, ao mesmo tempo, um experimento - ainda que não científico - e um embuste. Pensei que a sátira e o humor poderiam ser armas mais potentes que um artigo normal para desbloquear um debate que há muito tempo estava bloqueado. (SOKAL, 1998).
Para ilustrar melhor esse tipo nas artes visuais, cita-se a obra dadaísta
"L.H.O.O.Q.", de Marcel Duchamp, 1919. Trata-se de uma reprodução da pintura
35
Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, mas com alguns detalhes que se destacam.
Duchamp desenhou a lápis um bigode, barbicha na personagem e ainda escreveu no
inferior da canvas as inicias "L.H.O.O.Q", que, lendo-se em frânces, é Elle a chaud au
cul ("Ela tem um cu excitante"). O dadaísmo tinha como objetivo a surpresa, o
escândalo para protestar contra problemas sociais e atitudes hostis das grandes
nações. Todavia, existia o interesse em corromper as convenções, em
descaracterizar normas e qualquer referência ao clássico e padrão. Sendo assim,
entende-se que "L.H.O.O.Q" é um exemplo que desperta a atenção para algo oposto
e contrário ao habitual. Através de uma perspectiva formal, o "L.H.O.O.Q" seria uma
falsificação grosseira da obra de Da Vinci. Mas Duchamp assina a pintura,
fornecendo ao espectador uma prova de que não há a intenção de enganar, e sim de
sugerir um efeito diferente. Dessa forma, o trabalho faz referência a outra e
inaugura um significado paralelo, ou seja, parodiando.
À vista disso, está clara a distinção: enquanto a falsificação visa ao engano, os
exemplos citados anteriormente priorizam a crítica exatamente por sinalizarem que o
Figura 6 - L.H.O.O.Q. , Marcel Duchamp, 1919.
36
objeto em questão não é o original. Desse modo, sugere-se uma classificação do
falso, posicionando, de um lado, as falsificações que tentam passar-se por original à
procura apenas de iludir, e, do outro, as simulações que assumem o papel de
mimese para depreciar ou aplaudir.
A falsificação seria ato ou efeito de falsificar ou falsear, isto é, de tornar falso.
O termo falso, ao passo que é muito próximo a falsificação, distancia-se do conceito
de simulação e paródia, que será discutido posteriormente. Faz-se necessário, a
propósito de uma nova classificação, emprestar da língua inglesa a expressão fake. O
fake possui um significado menos pejorativo do falso, mais afastado do efeito
criminoso, com o objetivo de fingir ou simular. Atualmente, o termo fake tem sido
muito utilizado na língua portuguesa por consequência das identidades suspeitas na
internet, assumindo avatares7 de outras pessoas. Em redes sociais, como o twitter
ou facebook, muitos são os usuários fakes - pessoas que se passam por e assumem
identidade de artistas ou celebridades antes que estes o façam ou criem sua própria
representação no ambiente virtual. De forma sensível, por ser mais moderado e por
estar fora da língua portuguesa, o termo fake aplica-se bem para englobar as duas
vertentes: engano e crítica. Então, o fake divide-se em falsificação e simulação.
7 Um personagem inteiramente virtual que é controlado por um sujeito através do computador.
FAKE
FALSIFICAÇÃO SIMULAÇÃO
37
2.2 A simulação
Assim como a falsificação, a simulação consiste no efeito de fingir o que não
é. Mas a simulação não se restringe apenas a semelhança visual, mas a aspectos
funcionais. O piloto de aviões caça do exército de países desenvolvidos passam por
testes que simulam as situações de decolagem, pouso, aterrissagem forçada, ou
seja, procura oferecer ao sujeito dificuldades que possivelmente encontrará, mas de
forma segura por meio de máquinas - simuladores em terra. Astronautas, antes de
seguirem em missão no espaço, passam por diversos exames que simulam o
ambiente que enfrentarão, como o da gravidade zero. O exercício simulativo auxilia
no desenvolvimento de projetos que ainda não foram postos em prática, prevendo
possíveis erros a serem corrigidos. A cada dia, os computadores são capazes de
ilustrar situações que ainda nem saíram do papel e, por conseguinte, determinam se
devem ou não ser executadas.
Há casos em que o "sistema-objeto", elemento a ser experimentado, não pode
ser testado porque ainda não existe. Na engenharia civil, simulações ajudam no
processo de desenvolvimento de grandes construções como a capacidade de
sustentação de uma ponte ou a quantidade de pessoas que estádios de futebol
suportarão numa final de campeonato.
Na teoria dos sistemas de jogos, a simulação é "a execução ou manipulação
dinâmica de um modelo de um sistema-objeto com um objetivo qualquer" (BARTON,
1973). São diversos os propósitos da simulação aplicada cientificamente:
compreensão funcional, auxiliar no treinamento de controle e tomada de decisões do
sistema-objeto.
Nos consultórios médicos, a simulação também é utilizada. Uma cirurgia
estética pode ser ilustrada na tela do computador para que o paciente verifique os
possíveis resultados a serem obtidos. O procedimento, a grosso modo, não difere
muito de um projeto de construção civil. As informações são fornecidas pelo
paciente, e o médico as transforma em coordenadas e simula o resultado. E, assim,
ambos determinam como deve ser desenvolvido o esboço.
38
Além da aplicação científica e estética, os procedimentos simulativos são
utilizados de forma lúdica no entretenimento. O ilusionismo de Mèliès com projeções
em vidros para reprodução em três dimensões foram as primeiras convincentes
experiências simulativas da imagem. Com o passar do tempo, o cinema foi o maior
responsável por simulações para entreter. Técnicas de efeitos visuais eram
empregadas com o objetivo de exibir formas que não existem além de fornecer mais
possibilidades para os roteiristas. Personagens que realmente nunca habitaram a
terra, como o gorila King Kong, eram mostrados "vivos" na tela. Com o
desenvolvimento da infografia ou computação gráfica, modelos de "sistemas-
objetos" podem ser criados, reproduzindo detalhes como estrutura óssea, textura de
pele, suor, respiração. Há casos em que essas imagens sintéticas passam a substituir
o seu referente, a se tornarem a imagem real do sistema-objeto. Jurassic Park
(Steven Spilberg, 1993) foi um dos primeiros filmes da infografia contemporânea
capaz de recriar imagens críveis. As cenas de dinossauros, simulando diversos
detalhes do animal, tornaram-se as mais realistas imagens da raça. Principalmente,
levando-se em conta que não há, nem seriam possíveis fotografias analógicas ou
digitais dos animais vivos. Atualmente, é comum a produção de documentários
recheados de efeitos de computação gráfica com o propósito didático de retratar
espécies extintas da Era do Gelo. Tratam-se de simulações avançadas, mas que
mantêm explícito o caráter ficcional. Tais reproduções artificiais não se limitam
apenas a dinossauros ou a outros animais do gênero. Recentemente, filmes têm
resgatado personagens de outras produções, mais antigas, nas quais os atores
apresentam a mesma aparência (mais jovem) da época. O ator Arnold
Schwarzenegger protagonizou três dos filmes da série "Exterminador do futuro".
Devido ao seu cargo político, estava impedido de participar do último trabalho da
sequência. Contudo, a produção, por meio de alta tecnologia gráfica digital, pôde
inserir o ator "virtualmente". No filme Exterminador do futuro 4: a Salvação
(Terminator Salvation, Mcg, 2009), o andróide T-800, personagem interpretado por
Schwarzenegger pela primeira vez em 1984, participa de uma cena. O que causa
surpresa é a simulação digital da imagem, reproduzindo detalhes como o corte de
cabelo, porte físico e a semelhança visual do ator 25 anos antes. O método
39
desenvolveu-se a certo ponto que um mesmo ator contracenou "consigo mesmo". No
filme Tron: Legacy(Joseph Kosinski, 2010) - sequência do filme Tron (Steven
Lisberger, 1982), o ator Jeff Bridges interage em cena com o mesmo personagem
que interpretou anos atrás. A imagem do ator foi reproduzida digitalmente, assim
como era: 28 anos mais jovem. Ao analisar o avanço, rapidamente descrito, da
computação gráfica, é possível imaginar que, brevemente, personagens
interpretados por atores já falecidos8 voltem às telas do cinema9.
A face lúdica do modo de operação simulativo não se restringe apenas ao
cinema, também os games estão inseridos. Por outro lado, diferentemente do
ambiente cinematográfico, nos games o usuário interfere no processo de construção
ficcional. Os filmes, com exceção de poucos, oferecem ao espectador uma história
pronta, que cabe ao indivíduo apenas assistir a ela, sem mudar qualquer desfecho.
Neste caso, o destinatário não participa do processo de desenvolvimento da
narrativa. Nos primeiros jogos de videogame, as possibilidades eram limitadas e
impostas pelo destinador (manipulador) e não criadas pelo destinatário, mas
escolhidas por ele. A simulação lúdica dos games dava-se de forma organizada e
fechada. Com o passar dos anos, pode-se dizer que a evolução dos jogos permitem
que o sujeito seja responsável pela narrativa. Variados usuários oferecem
divergentes percursos do personagem inserido no game. Então, diferentemente de
meios como cinema ou fotografia, o usuário interage e torna-se uma espécie de
enunciador de segundo grau.
Quanto mais possibilidades, mais único se torna o percurso narrativo. Em
determinados jogos de complexidade avançada, o trajeto de um personagem
realizado por um usuário "X" será diferente do personagem controlado pelo usuário
"Y". Tendo em vista as diversas variáveis que compõem um sistema de probabilidade
8O filme Transformers: The dark side of the moon (Michael Bay, 2011) exibe o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, durante o início da década de 60, autorizando o inicio do programa espacial americano a Lua. Evidentemente que isso nunca fora registrado, o diálogo foi construído digitalmente. 9 No dia 15 de abril de 2012, durante uma apresentação do rapper Snoop Dogg, a imagem de Tupac Shakur, morto em 1996, aparece no palco e canta para mais de 100.000 pessoas. O efeito foi provocado pela projeção da imagem em um vidro instalado no palco. Entretanto, a novidade está na criação digital de Tupac cantando musicas novas e dançando. Uma empresa especializada em efeitos visuais para o cinema recriou a imagem do rapper e o projetou. Essa inovação criou alvoroço na indústria musical com promessas de show de Michael Jackson para 2013.
40
remota de repetição, o "herói de X" pode atravessar o rio (obstáculo) a nado,
enquanto o "herói de Y", por ter tido uma performance melhor na fase anterior , o
jogo oferece-lhe uma lancha para a tarefa. Esse simples exemplo empírico ilustra as
diferentes experiências entre jogadores num mesmo aparato simulativo. Ao contrário
das simulações científicas como as do exército ou do esporte, os gamers10 têm
sensações e escolhas adversas, aproximando-se assim do cotidiano, que promove
essa diversidade de "vivência". Todavia, vale ressaltar que a "vivência" nos games é
diferente da experiência real. Um garoto que se torna quase imbatível nos jogos de
games que simulam carros de corrida, não é hábil necessariamente para pilotar um
Fórmula 1. Da mesma forma, aqueles que ganham facilmente jogos de guerra on-
line não estão prontos para batalha. Há características importantes que a simulação
não reproduz, como o peso da arma, o choque provocado pelo disparo, a dor de um
eventual ferimento, etc. De fato, não seria mais simulação se operacionalizasse todos
os aspectos.
Até este ponto, demonstraram-se várias funções da simulação: científica,
estética e lúdica. No entanto, tal prática não tem como propósito enganar. As
simulações dispostas aqui são, assumidamente, ficção. Não têm a intenção de
suplantar quaisquer referentes, como acontece com um quadro falsificado ou uma
moeda falsa. Os elementos simulativos não são algo oposto à verdade, inexato,
infundado, enganação ou até mesmo fraude criminal. Têm como objetivo promover
maior experiência científica, treinamento ou entretenimento.
Mas será para um tipo específico de simulação que este estudo irá voltar-se:
um modelo que procura expor os dispositivos midiáticos para, através da paródia,
propor uma reflexão crítica. Operam de forma implícita as suas reais intenções,
porém não objetivam apenas a indução ao erro ou mesmo iludir, burlar
criminosamente, como os autores de elementos falsos. Este formato será
denominado por hora simulações criativas, apenas para o efeito de diferenciar-se das
diversas definições citadas até o momento.
10 Denominação aos usuários da prática do games.
41
2.2.1 A simulação criativa
A revista masculina norte-americana Esquire publicou, em julho de 2001,
matéria (Figura 06). a respeito da vida do humorista Jon Stewart Trata-se de uma
biografia, um profile, apresentado de uma forma bem peculiar. O texto está repleto
de rabiscos e comentários em post-it11. O artigo pretende ser uma espécie de
esboço, em que o próprio comediante interage com o profissional que escreveu.
Logo de início, a assinatura da matéria - "por A.J. Jacobs"12 - possui uma retificação
escrita a punho: "anotada por Jon Stewart" (JACOBS,2011). Ao decorrer das linhas, o
jornalista descreve a carreira de Stewart, enquanto este faz comentários corrigindo
particularidades como a sua idade, altura e detalhes de sua infância. É bastante
comum o profile como formato jornalístico que apresenta resumidamente a biografia
de alguém. Todavia, neste caso, utilizou-se uma manobra criativa ao exibir um
diálogo indireto entre Stewart e Jacobs. Na matéria, o humorista expõe sua opinião a
respeito da mediação proposta pela revista, parecendo estar realmente reparando os
erros do profissional que produziu o texto. Ao publicar um artigo como "esboço",
além de oferecer ao leitor certa descontração provocada pelas linhas do comediante,
a Esquire, rompe as características normativas. Esse artifício de desfamiliarização que
causa estranhamento ao leitor é uma das bases pragmáticas da paródia, que utiliza
um original ou regras de estilo apenas como protótipo a ser subvertido, dando-lhe
novo significado. De acordo com formalistas russos (Tomachevski, 1965), na
literatura, a paródia, por meio desse confronto de padrões, é vista como um
mecanismo de reformulação do antigo ao promover novas formas. A matéria da
revista americana é uma simulação criativa, diferenciada, ao imprimir um profile
formal completamente rabiscado. De certa forma, também sugere aos leitores uma
reflexão quanto a suspeitar da exatidão das palavras de um jornalista ou biógrafo. O
texto apresenta fatos que são "contestados" pelo próprio objeto da matéria de modo
11 Pequenos recortes de papéis em cores fortes para servirem de lembretes. 12 Tradução livre.
42
a implicitamente promover suspeitas sobre a objetividade do trabalho jornalístico. A
crítica é um dos principais dispositivos da paródia.
Figura 7 : Recortes das páginas da Revista Esquire Julho/2011.
Outro exemplo interessante de simulação criativa é a matéria (TADDEO, 2011)
da Esquire de abril de 2008, chamada "The last days of Heath Ledger" ("Os últimos
dias de Heath Ledger"), que consiste em um artigo que diz trazer a público o diário
inédito do ator falecido naquele ano.
A matéria tem uma breve introdução do ator explicando como é estranho
descrever os últimos dias de sua vida. Dias que outrora foram banais, mas que a
morte os transformou nos mais importantes. Todo o texto é dividido em capítulos
com datas, horas e títulos. "19/01/08 - Dois Coringas - 10:47 pm13" intitula a
primeira página do diário fake, que se refere ao personagem de gibi, Coringa, que foi
interpretado por Ledger e também por Jack Nickolson em filmes diferentes, os quais
contavam as aventuras do herói de quadrinhos, Batman. A jornalista insere na
13 Tradução livre.
43
crônica episódios que considera oportunos em relação à carreira e à personalidade
do ator. Neste "primeiro dia", após uma longa filmagem do seu último filme, The
Imaginarium of Doctor Parnassus (Terry Gilliam, 2009), Ledger recebe, via
mensagem de celular, um inesperado convite de Jack Nickolson para um jantar que
termina numa noite de conselhos de como o ator deve levar o seu trabalho menos a
sério e se "manter fora das drogas de pílulas". No dia seguinte - título de "Até a
minha máscara se dá bem" -, Heath conta que seguiu os conselhos do "velho
Coringa" e sai à noite em busca de aventuras. Usando máscara de ski, o ator
comprova que mesmo com algo tão inusitado escondendo seu rosto, ele, como
celebridade, poderia ser reconhecido e ir para cama com alguma modelo. Então,
narra como uma modelo da Tailândia termina a noite em sua cama com a sua
máscara no rosto. Consiste em um conto fantasioso de momentos banais dos
"últimos" dias do ator.
A morte do ator foi cercada por notícias especulativas, porque sua causa fora
desconhecida até 15 dias depois do ocorrido. Dessa forma, muitas pessoas não
sabiam ao certo o motivo que levou o jovem a falecer14. A escritora soube explorar
esse cenário de mistério para suprir com um conto criativo os ainda curiosos. O texto
é narrado em detalhes pelo ator falecido, em primeira pessoa. Tendo em vista que
um morto não seria capaz de falar, e muito menos de escrever para uma revista, o
acordo está firmado: enunciador direciona o enunciatário a perceber, facilmente
neste caso, o caráter ficcional, comprovando a sua intenção de parodiar o estilo
investigativo jornalístico.
Torna-se teatralmente importante, depois que você morrer, de como seus últimos dias se dão. Para mim, foi como qualquer outro fim de semana na minha vida. Eu não comi uma última refeição, eu não me masturbei, eu não escalei uma montanha [...] Mas, de repente é importante exatamente o que eu fiz, porque eles são os últimos dias, e o que você faz no últimos dias, até o seu último almoço, torna-se um conto de fadas.(TADDEO, 2008).
Outros personagens, além de Jack Nickolson, surgiram na estória. Health
relata que conversou rapidamente com Mary-Kate Olsen, atriz apontada por vários
14 Apenas duas semanas depois, os responsáveis pelo serviço de medicina forense da cidade de Nova York divulgaram que Heath Ledger morreu devido ao uso abusivo acidental de drogas prescritas.
44
jornais como sua última namorada. O ator ainda descreve que, no dia de sua morte,
acordou escutando músicas do cantor britânico Nick Drake, morto em 1974 por
ingestão indevida de pílulas para dormir. De acordo com o ator, eles tiveram uma
pequena conversa sobre a morte. Percebe-se a relação da ficção com os fatos da
vida real. Conexões como seu trabalho com o ator Jack Nickolson, a vida amorosa
com Mary-Kate, a causa da morte com Nick Drake são passagens que
implicitamente, interagem com o conteúdo noticiado pela imprensa. A escritora, Lisa
Taddeo, aproximou a narrativa da realidade dos jornais, utilizando os personagens,
mas envolvidos em acontecimentos fantasiosos que sugerem figuras temáticas como
arte, sexo e morte.
Enfim, Health assume sua personalidade fantasmagórica, assim como a ficção
do texto - "Eu, Nick, Mary-Kate, Jack. Nós somos todos fantasmas"-, e faz um
pedido: "Não investigue meus últimos dias, porque esses dias poderiam ser os seus
últimos dias. Interprete o seu próprio papel". A esse ponto, o destinador, em acordo
com a destinatária, não entende o texto como verdadeiro ou falso diário de Heath,
mas como uma interpretação, uma construção. Na última linha, há ruptura: frase em
itálico, tendo a revista Esquire como locutora, orienta o leitor a voltar à página 30
para mais informações sobre o diário. Como voz fora da narrativa, a simulação
criativa é revelada.
Para escrever uma crônica concebível dos últimos dias de Heath Ledger, a escritora Lisa Taddeo visitou bairro do ator, conversou com os proprietários das lojas e bartenders que podem tê-lo visto durante sua última semana e leu incontáveis contos e rumores sobre os acontecimentos que envolveram a sua morte como possível. Ela preencheu o resto com sua imaginação. O resultado é o que chamamos de ficção relatada. Alguns dos elementos são verdadeiros. (Ledger estava em Londres. Ele era um regular no Inn Beatrice e no Café Miro. E ele estava encantado com Nick Drake.) Outros não são. (ESQUIRE, 2009, p.30).
Em vez de seguir a linha editorial da época, que formava um conjunto de
especulações a respeito da morte e dos últimos momentos do ator, Lisa Taddeo criou
a sua versão destacando aspectos da personalidade do ator através de personagens
ligados à sua trajetória. A esse artifício criativo, formato diferenciado fora do padrão,
assumidamente fake, encontra-se uma simulação que, por meio da paródia, permite
nova forma a partir da antiga. Há dois momentos da paródia que promovem a crítica
45
da postura da imprensa da época. O primeiro deles é a realidade criada por Lisa
sugerindo que de tudo pode ser feito na imprensa, incluindo diários escritos por
defuntos para trazer notícia de acontecimentos enigmáticos. Em seguida, o próprio
narrador, Heath Ledger, afirma que sua história era uma fantasia e que, assim como
seus personagens, ele era um fantasma que precisou voltar à vida, e pede a todos
que deixem de investigar sobre seus últimos momentos.
A matéria da revista Esquire difere o bastante de outras obras que misturaram
elementos do mundo real com fantasia. Como o caso do livro An historical and
geograpgical description of Formoza de George Psalmanazar. Tratava-se de um
diário de viagem a uma terra com costumes e idioma ainda desconhecidos pela
civilização que, na verdade, era fruto da imaginação do seu criador. No entanto,
Psalmanazar tornou-se famoso o suficiente para acumular riqueza com palestras a
universidades e grupos de interesse. Seu objetivo era ganhar fama, não ofereceu
nenhuma pista inferencial aos leitores. Pelo contrário, em entrevistas sempre
atestava os fatos com detalhes cada vez mais curiosos. Essa ausência de marcas que
apontam para outro (oposto ou não) texto não permite o reconhecimento da
paródia. Esta só pode ser identificada caso o enunciatário tenha competência para
reconhecer a dupla voz do texto.
2.2.2 A simulação e simulacros
As manifestações apontadas até agora, assumidamente simulações, diferem
das definições exercidas por uma corrente radical que afirma que as relações sociais
e de comunicação se distanciam do real por serem compostas apenas de simulacros,
como é o caso do trabalho de Jean Baudrillard. Para este autor, ao passo que a
simulação é apontada como falsa representação, ela engloba todo o tipo de
representação (BAUDRILLARD, 1991, p.08). As simulações seriam as expressões
humanas compostas por simulacros, imagens falsas. O autor dedica-se à crítica das
artes visuais por meio da relação entre imagem e simulacros. Para Baudrillard (1991,
46
p.13), o conteúdo imagético teve sucessivas fases: "imagem como reflexo de uma
realidade profunda", "como máscara que deforma uma realidade profunda",
"mascara a ausência de realidade profunda". Em outras palavras, a imagem,
primeiramente, teve a "boa aparência" do sagrado. Depois surge como algo de má
aparência, maléfica. Finalmente, finge ser uma aparência e, ao fingir, torna-se
simulação. O autor generaliza como um conjunto de simulacros toda e qualquer
produção - abordagem por demais cética e iconoclasta. Baudrillard, possivelmente,
inspirou-se nos textos platônicos como O Sofista ou O político, que citam as artes
como simulacros, produções não verdadeiras.
Entretanto, a simulação criativa é defendida neste trabalho como uma
construção reflexiva. Não há uma aproximação ao conceito de Baudrillard, visto que
o objeto a ser estudado possui uma relação com o real, como mediação. Sendo
assim, não exerce papel de “simulacro puro”, “signos vazios” ou qualquer termo
radical que possa sugerir uma realidade artificial vivida.
Ao longo dos anos, o termo simulacro adquiriu conotações diversas, mas,
principalmente, por meio de um tratamento pejorativo, associado ao "irreal" ou
oposto à verdade. Platão, por exemplo, apontava os simulacros como imitações
grosseiras, erros da mimese (DELEUZE, 1998). No texto "Platão e o simulacro", Gilles
Deleuze rebate a tipologia platônica, a fim de elevar os simulacros às instâncias de
ícones ou cópias. O filósofo grego, quanto à idolatria estética, dividia as imagens
(eikons) em "cópias-ícones" e "simulacros-fantasmas" (DELEUZE, 1998, p.262). Em
outras palavras, seria uma dicotomia entre uma cópia bem produzida e outra mais
grosseira. Os simulacros sempre posicionados no nível mais baixo da potência do
falso - como se a semelhança do simulacro não tivesse valor histórico ou moral.
Deleuze discorda, afirmando que os simulacros possuem uma identidade própria e
que fazem parte do processo de produção e formulação da verdade.
O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. [...] Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma dessemelhança interiorizada (DELEUZE, 1998, p.263).
47
O mesmo faz-se com as simulações criativas, porque são ricas manifestações
construídas para agir de acordo ou não com o outro, tendo o objetivo de reflexão da
própria identidade da matéria, suporte ou da forma.
Na semiótica greimasiana, assim como a posição defendida por Deleuze, o
simulacro possui funções linguísticas complexas o suficiente para não serem
apontados como "signos vazios". Baudrillard, ao sugerir um mundo "irreal", tem
como referente principal as mensagens publicitárias. Na publicidade, por diversas
vezes, ocorre uma construção de representações. A situação da narrativa, assim
como em um filme de ficção, é construída para se fazer mecanismo da
argumentação textual, um sistema articulado de manipulação (volição, sedução,
tentação, provocação). Na propaganda, muitos dos sentidos que o ator da
enunciação pretende provocar são atualizados por meio de manobras que remetem a
uma mensagem promissora visando ao desejo capaz de acionar o fazer do
destinatário. Por construírem uma realidade ao gozo do seu destino, os simulacros
que "fingem ser" são considerados "vazios" de realidade para Baudrillard. Todavia,
essas imagens simuladas promovem efeitos de sentido que modificam o estado de
quem as apreendem. A "encenação publicitária nos faz olhar os simulacros que
constrói e o que ela nos faz ser ao contemplá-los" (LANDOWSKI , 2002, p.129).
Desse modo, são elementos de significado na expressão e no conteúdo capazes de
manipular o destinatário.
Mas o termo simulacro também é utilizado por outra perspectiva na semiótica
greimasiana. Além de serem denominados como imagens construídas para iludir,
prometer e seduzir por meio de sua função representativa, o simulacro pode ser
definido como a presença do enunciador no discurso. São modelos virtuais,
compostos por traços de permanência capazes até de presentificar atores no
discurso. Ao analisar trabalhos de um mesmo autor, o estudioso é capaz de apontar
alguns aspectos recorrentes que caracterizam a produção. Seria o mesmo que, no
senso comum, "estilo" do realizador. O pesquisador pode afirmar que os filmes de
Woody Allen costuma trazer temas de relações afetuosas como a traição. Essas
marcas são traços de permanência que instauram no enunciado o autor da
enunciação por meio do simulacro. Sendo assim, ao verificar a traição em um filme
48
de Woody Allen, pode-se dizer que essa característica é a presença, virtual, do
diretor no enunciado.
Verificaram-se, até aqui, algumas definições para o simulacro. A simulação
criativa, como qualquer simulação, opera por meio de simulacros. Porém, estes não
são "fantasmas", de acordo com Platão, ou "vazios" como Baudrillard tanto
descreveu. A paródia é composta por simulacros no enunciado que permitem a
apreensão de outro ator da enunciação. A presença do outro, seja por ela traços do
autor ou até de outro texto (intertextualidade), é uma das formas de produção de
sentido da simulação paródica.
2.2.3 A simulação criativa e a intertextualidade
O conceito de intertextualidade introduzido por Kristeva (1974) foi,
possivelmente, desenvolvido tendo como base a teoria da polifonia de Bahktin
(2002) - várias vozes coexistindo no mesmo texto. A expressão "vozes" seriam as
diversificadas falas contidas no enunciado, ou seja, os discursos, caso a abordagem
diferencie texto de discurso.
O intertexto de uma obra, seja ela pintura, fotografia, cinema, literatura,
consiste nas referências a textos anteriormente produzidos ou estilos e convenções
normativas de gênero. Tais pontuações podem ser das mais "amigáveis" a polêmicas
como o bigode na Monaliza de "L.H.O.O.Q.", de Marcel Duchamp, 1919.
A intertextualidade visa à retomada de outro texto - do mesmo autor ou não -,
seja para promover crítica ou exaltação da obra (intertexto). Também oferece
debates quanto a valores morais ou até mesmo do procedimento de criação, como
também sugere novas formas estéticas. Tal retomada se realizada por meio de
inferências, marcas deixadas pelo enunciador de acordo com o repertório que
presume conhecer do enunciatário. Este último, reconhece as pistas e processa os
mecanismos de enunciação até chegar a temas e figuras. Os indícios de semelhança
ou diferença são deliberados segundo a intenção do autor. A ponta do vestido
49
(semelhança) da Madame Récamier, de Magritte (Figura 07), sob o caixão
(diferença), desenvolve a ideia de fim a algo de valor como a beleza.
Desde a década de 1960, diversos autores elaboraram classificações com
abordagens diferentes para a intertextualidade na literatura. Quanto ao plano da
expressão, pode ser classificada (KOCH, I.G.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M.
2008) como temática, estilística, explícita ou implícita. Quando textos compartilham
do mesmo tema, como portais de notícias que exibem a mesma pauta ou obras
literárias de uma mesma escola, por remeterem ao mesmo assunto, executam a
intertextualidade temática. Em dois textos que compartilham o mesmo estilo criativo,
seja por meio da paródia ou da simples imitação, a relação intertextual pode ser
definida como estilística. A intertextualidade explícita acontece no momento em que
um texto cita a fonte do outro texto, indica a origem do outro. Seria o caso dos
resumos, resenhas,citações etc. Entende-se como intertextualidade implícita a obra
que faz referência a outro trabalho de forma mais indireta, seja para usá-la como
argumento ou para confrontá-la - incluem-se aí os enunciados paródicos ou
paráfrases.
A autoria seria outro enfoque ao categorizar. O intertexto alheio (KOCH, I.G.;
BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M. 2008) pode ser definido diante do empréstimo de
um texto de outro autor. Quando tal empréstimo for de um trabalho do mesmo
autor, caracteriza-se o intertexto próprio. Ao elaborar as marcas a partir de textos
considerados de repertório coletivo, denomina-se a intertextualidade de enunciador
alheio.
Quanto à função argumentativa, Affonso Sant`anna (2004, p.28) arranjou-a
em dois tipos: a intertextualidade das semelhanças - quando um texto capta e
reproduz a mesma "ideia" de outro - e a intertextualidade das diferenças - quando o
texto subverte o conceito ou os valores do alheio.
O interesse deste estudo está na forma como o segmento textual é "colhido",
retomado e não se a matéria é do autor ou alheia. Para tratar das simulações
descritas neste texto, é necessário entender a intertextualidade como procedimento
que aproxima e trabalha com dois ou mais textos e pontua as diferenças para
50
confrontar os valores morais, criticar processo de produção ou apenas inovar o
antigo.
Partindo dessa perspectiva, a divisão categórica mais oportuna (porém ainda
questionável) para o que está sendo tratado é de Nathalie Piègay-Gros (apud KOCH,
I.G.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M. 2008). Primeiramente, ela divide a
intertextualidade em dois polos: copresença e derivação. O primeiro reporta-se as
relações que destacam dois textos, e o segundo ocorre quando um texto descende
de outro. No polo da copresença, estão inclusos citação, referência, alusão e plágio,
respectivamente ordenados em ordem crescente, de acordo com a implicitude das
marcações no enunciado.
A citação ocorre quando o texto simplesmente cita a sua fonte - "Segundo o
livro Tratado da Semiótica...". Ao descrever personagens do texto fonte, a
intertextualidade pode ser caracterizada como referência - "Nenhum Mickey irá
comer desse queijo". A alusão é assinalada pela implicitude da sua referência. Trata-
se de uma remissão indireta - o texto é indiretamente mencionado; o leitor deve
entender as "entrelinhas". Quando o autor se apropria do texto do outro para que
este seja considerado como seu, ocorre o plágio. Nesse caso, o enunciador não tem
a intenção de fazer com que o enunciatário decodifique até encontrar outro texto de
outra autoria.
Na derivação, Piégay-Gros inclue o pastiche como imitação do estilo do autor
e não pela repetição normativa do gênero; o travestimento burlesco é a modificação
do estilo, enquanto se conserva o conteúdo; a paródia repete as normas formais do
gênero e dá-lhe um novo sentido.
Talvez no ambiente literário, seja mais fácil perceber e destacar a diferença
entre derivação e copresença, assim permitindo a classificação sugerida acima. Mas,
ao ampliar para outras mídias, torna-se mais pertinente entender que todo texto que
deriva outro é um fenômeno de copresença. O processo descrito por Piégay é
decorrência da teoria de hipertextualidade (derivação) de Gerárd Gennete (1989). No
entanto, Genette inclui dois tipos de textos nesse processo, que seriam o hipertexto
(texto derivado) e o hipotexto (texto). Dessa forma, percebe-se a dualidade que faz
da derivação uma copresença. Ao evocar outro texto, a obra derivada desaparece?
51
Evidente que não e, pelo contrário, ela aparece com um efeito de sentido diferente.
A derivação e copresença podem significar a mesma forma de expressão: ao derivar,
não estou excluindo o texto derivado e muito menos o novo texto.
Para efeito de tornar mais claro o objeto de estudo, é momento de converter
o termo simulação criativa em simulação de copresença, que trabalha sempre com a
interação de dois ou mais textos.
2.2.4 A simulação de copresença: tradução, citação e paródia
Em 1800, o pintor neoclássico francês Jacques-Louis David pintou a figura de
Madame Récamier. Tratava-se de uma mulher com ideias contrárias ao império de
Napoleão Bonaparte, mas que, ironicamente, foi retratada com a elegância de uma
monarca. Aparte da polêmica imposta pelo autor, um século e meio depois, o
surrealista René Magritte pintou a tela Perspective: Madame Récamier by David
(Figura 07), que promovia uma outra (nova) ótica ao retrato da francesa. Pode-se
afirmar que o surrealismo primava por uma perspectiva de liberdade quanto a
qualquer objetividade. Na tela de Jacques-Louis, Récameir era um símbolo da beleza
ideal e juventude da época, que, pelas mãos de Magritte, torna-se nada mais que
um mórbido caixão. O pintor recria o cenário em seus detalhes como o sofá, as cores
das almofadas, o candeeiro, mas a figura da bela moça é substituída pelo caixote
que não é construído da forma usual. Ele possui uma curvatura, imitando o corpo
humano que descansa no divã. Não se faz uma tarefa difícil para o espectador
entender que Magritte quer falar da morte. Os temas beleza, juventude, riqueza são,
imediatamente, postos em relação com o fúnebre e o misterioso. É importante
apontar para o pedaço da vestimenta da moça retratada por David. O pintor
surrealista não a deixa de fora de sua obra, a ponta da camisola cai do sofá e é
coberta pelo caixote. À primeira vista, o examinador pode achar que o objeto
funéreo caiu sobre a moça, e lhe dar fim. No entanto, a curvatura do caixão
52
aproxima-o da aparência humana, e assim permite a leitura de que a personagem
sofreu uma metamorfose "kafkiana" e sobrevive na figura de uma caixa.
Magritte resgata a bela pintura de Jacques-Louis, mas insere na diferença a
mensagem central que quer transmitir. O enunciador utiliza o texto de outrem para
destacar que a beleza da juventude não é eterna. O empréstimo de outra obra se faz
como um ato irônico e polêmico, e não é nocivo ou enganoso. Em momento algum,
o pintor tenta passar-se por Jacques-Louis para um fim lucrativo. Pelo contrário, o
nome da obra oferece pistas de que o quadro é uma perspectiva, um intertexto, uma
outra compreensão da obra de David. Dessa forma, não há o aspecto criminal do
fake como falsificação e sim, uma simulação.
O quadro de Magritte recria o Portrait of Madame Récamier com um novo
significado. O antigo é retomado, renovado e são-lhe inseridas diferenças que ditam
o novo sentido. Assim, percebe-se uma interação entre textos, e o espectador
necessariamente, para entender a obra, deve "enxergar" as diferenças. E para que
isso aconteça, precisa decodificar o trabalho em duas vozes e compará-las. Caso não
ocorra esse reconhecimento, o leitor irá neutralizar a correspondência e assim verá
apenas uma obra. Faz parte da estratégia do enunciador supor a competência do
enunciatário em entender o dispositivo. Como também, o enunciatário não é passivo
e, a partir de inferências contidas na mensagem, desenvolve a compreensão
sugerida.
Figura 8- A esquerda, Perspective: Madame Récamier by David, René Magritte,1951. A direita, Portrait of Madame Récamier, de Jacques-Louis David, 1800.
53
O leitor que não conhece a obra de Jacques-Louis David não fará a relação
necessária entre as duas obras e, portanto, possivelmente não percorrerá mais a
fundo a amplitude de possibilidades de interpretação - entre elas a "beleza finita".
O dispositivo de simulação faz-se pela intertextualidade, com a copresença de
dois textos. Porém, observa-se um elemento disfórico, um confronto de ideias.
Ocorre efeito alusivo que indica, sem citar exatamente, a origem. Faz-se a retomada
indireta de uma obra anterior, mas, de forma irônica, entra em contraste com as
normas ou princípios que a produção quer expressar.
Por outro lado, há algumas simulações de copresença que são caracterizadas
pela sua ampla proximidade com a obra fonte. Elas podem ser denominadas
simulações de copresença por tradução.
Na segunda metade do século XVII, o poeta e crítico John Dryden discutia as
primeiras questões sobre a teoria da tradução na literatura. Ele classificou (apud
MILTON, 1998, p. 49) como metáfrase a "tradução de um autor palavra por palavra",
como paráfrase, a "tradução com latitude" - quando o tradutor muda algumas
palavras, mas mantém o sentido -, e imitação quando ele abandona as palavras e o
sentido, mas mantém a ideia geral do original.
O tipo de simulação a ser discutido neste parágrafo recebe o nome de
tradução, porque os seus exemplos são reafirmações de outras obras, são versões
que mudam no enunciado, mas procuram manter o sentido e a ideia do trabalho
original. Eles se aproximam do conceito de paráfrase na retórica, que seria a
recriação textual com um desvio mínimo que não é capaz de mudar o juízo da obra.
O termo tradução aqui empregado pode (por alguns) ser confundido com
versão. Na verdade, a prática de traduzir é definida de várias maneiras, por diversos
autores, desde Dryden a Walter Benjamim. Para melhor explicar a aplicação do nome
tradução às simulações midiáticas, pode-se tomar como exemplo o conto de Jorge
Luis Borges, "Pierre Menard, autor de Quixote" (BORGES, 1999, p. 18). A narração
de Borges fala de um homem que pretendia escrever o Quixote de Cervantes com as
mesmas palavras, mas sem reescrever ou copiar. Ele pretendia criar novamente a
mesma obra. Para tornar o desafio possível, Menard procurou aproximar-se o
bastante da personalidade do romancista espanhol para assim poder escrever
54
Quixote. No entanto, foi exatamente ai, na individualidade dos autores, que os
Quixotes se diferenciam. O autor fictício de Borges, situado no século XX, tem a sua
obra com significado distinto da redigida por Cervantes no século XVII. Como afirma
Borges (1999, p.22) : "O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente
idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico (Mais ambíguo, dirão seus
detratores; mas a ambiguidade é uma riqueza.)". Na simulação por tradução o
objetivo é exatamente o contrário, manter o sentido sem precisar ser verbalmente
idêntico. Se Menard fosse apenas traduzir a obra, por meio do gesto da paráfrase,
iria preservar a ideia original e poderia modificar o enunciado. Desse modo, a
simulação por tradução aproxima as mensagens significativas dos textos, mantém os
enunciados divergentes entre os textos relacionados na copresença.
Em 1866, o pintor realista Jean-François Millet desenhou com lápis em papel
vergê uma cena de camponeses descansando após o trabalho (Figura 08). Anos
depois, Vicent Van Gogh visitou uma exposição de Millet, tornou-se obcecado pelo
trabalho do pintor e decidiu fazer a sua simulação de copresença por tradução. Duas
décadas depois da criação de "La Méridienne", de Millet, Van Gogh produziu um
painel em tinta óleo (Figura 08). Percebe-se a preservação da mensagem e ideia do
descanso, mas o estilo de Van Gogh destaca-se com suas pinceladas circulares,
criando uma trama em movimento, sem preocupação em deixar a superfície lisa
como a do original em lápis. Essa diferença de procedimentos, em outras palavras,
estilo, escreve de forma constante a mesma ideia. Trata-se de uma celebração de
um texto por outro.
Figura 9 - A esquerda: La Meridienne de Jean-Franc ̧ois Millet, 1866. A direita: La Siesta, de Vincent Van Gogh, 1890,
55
O mesmo acontece com o Honoré Daumier, que teve sua obra traduzida por,
também, seu admirador Vincent Van Gogh (Figura 09). Assim como no exemplo
anterior, percebe-se a diferença entre a forma de "escrever" o texto em Les buveurs
do pintor impressionista que parafraseia a ilustração em lápis preto, Les quatre ages
de Daumier. Mais uma vez, os contornos circulares das pinceladas reafirmam e não
modificam, por inteiro, o significado do trabalho anterior.
Entretanto, uma questão deve ser destacada nesse contexto: a obra de Van
Gogh não caracteriza um plágio? Assim como no exemplo anterior, sua obra pode ser
confundida com o plágio. O pintor apropria-se do texto do outro e assina seu nome.
Particularmente, nas artes visuais a assinatura do criador é o contrato de
autenticidade da obra. Fora a genialidade estética, a rubrica de um célebre pintor é o
que valoriza qualquer rascunho. Desse modo, o trabalho de Van Gogh pode ser visto
como plágio. Por outro lado, o seu traço vibrante é uma marca deliberada da
dualidade da tradução. Normalmente, na paráfrase, o texto original é coletivamente
conhecido a ponto de a reescritura não ser confundida com a sua fonte.
Evidentemente, que por esse motivo, o enunciatário, conhecendo a obra de Daumier,
não irá entender como plágio, mas como uma versão ao estilo de pinceladas
inquietantes de Van Gogh.
Figura 10 - À esquerda: Les quatre ages, Daumier, 1862. À direita: Les Buveurs, Van gogh, 1890.
56
O plágio seria um tipo particular de intertextualidade implícita, com valor de captação, mas no qual, ao contrário dos demais, o produtor do texto espera (ou deseja) que o interlocutor não tenha na memória o intertexto e sua fonte (ou não venha proceder à sua ativação), procurando, para tanto, camuflá-lo por meio de operações de ordem linguística, em sua maioria de pequena monta (apagamentos, substituição de termos, alterações de ordem sintática, transposições etc). (KOCH, I.G.; BENTES, A. C.; CAVALCANTE M. M., 2008).
O plágio pretende não ser descoberto como apropriação, característica que o
difere da tradução, que tem a intenção que o observador/leitor compreenda a
dualidade da obra, relembre e celebre a homenagem que está sendo prestada. A
literalidade é o que difere a simulação por tradução do plágio. A tradução é um
empréstimo parcial pró-estilo, pró-texto. Não se apropria literalmente e também não
subverte ou confronta.
Um outro tipo de simulação ocorre quando um texto apresenta a sua fonte de
forma mais explícita, como a simples reprodução. A simulação por citação exibe as
marcas de copresença mais acentuadas das demais descritas até o momento. As
obras indicam o original, expondo-o de forma explícita, revelando os créditos do
criador. A autoria é um aspecto importante para citação, que tem exatamente como
objetivo não correr riscos de o enunciatário deixar de reconhecer a obra citada. Vale
ressaltar também que a citação pode ser confrontante, como também a favor dos
valores que a obra original expressa. Um bom exemplo é a obra, de 1963, produzida
pelo artista pop Andy Warhol, denominada Thirty Are Better Than One (Figura 10).
Apesar de que o nome da obra ("trinta é melhor que um") seja um pouco agressivo,
nada tem de conflito ou disputa. Pelo contrário, Warhol reproduziu a Mona Lisa
(Leonardo Da Vinci) trinta vezes em silkscreen numa tela de quase sete metros
quadrados. Isso quer dizer que está celebrando a obra e não a combatendo. É
evidente que pretende provocar um choque com a técnica de silk comparada à da
pintura renascentista, mas nada de polêmica. Desse modo, Andy cita a obra de Da
Vinci de forma harmônica.
57
Foram discutidos aqui três processos de copresença que não se manifestam,
necessariamente, isolados. O que celebra a obra - como Van Gogh para Millet,
denominado de simulação de copresença por tradução, que é baseada nos conceitos
retóricos da paráfrase. Há também a simulação de copresença por citação, que,
explicitamente, indica e apresenta sua fonte original de empréstimo. E a simulação
que utiliza a alusão irônica para entrar em choque com a obra original anterior -
como o exemplo de Magritte. Esse efeito de crítica e retomada é característica da
paródia, que é amplamente estudada na literatura. Ela resgata obras do passado e
confere-lhes um novo sentido, renova-as. A simulação por tradução e a por citação
repousam no procedimento em que as semelhanças as caracteriza. Não ocorre um
desvio capaz de causar a polêmica. Ambas, normalmente, fazem-se estruturas que
celebram as demais.
Este trabalho assume maior interesse nos discursos polêmicos, nos quais as
diferenças fazem as marcações, e irá deixar de lado as citações e traduções para
focar-se nas simulações paródicas, porque justamente elas retomam e renovam pelo
artifício paródico crítico.
Figura 11 - Thirty Are Better Than One, Andy Warhol, 1963.
58
2.3 Simulação paródica
A grosso modo, a paródia é tão polêmica que a descrição da sua origem
etimológica é contraditória entre alguns autores - Sant'anna (2004), Fiorin (2003) e
Hutcheon (1985). O sufixo ode, que provém de odos, em grego, significa "canto". No
entanto, o prefixo para possui dois significados: o de "oposição" e o "paralelo".
Enquanto alguns estudos apontam apenas para o "canto paralelo", outros procuram
salientar que a paródia trabalha na concordância dos dois textos, tendo em vista que
"paralelo" pode indicar oposição. Durante anos, na literatura, a paródia tem sido
definida como uma técnica para ridicularizar o texto parodiado. Linda Hutcheon
(1985) é uma dessas teóricas, que, preocupada com a aproximação conceitual da
paródia com o burlesco, defende-a como um "canto" que vai além do oposto, pois
pode posicionar-se "de acordo".
Na realidade, este estudo, assim como outros - Sant'anna (2004), Fiorin
(2003) -, trata a definição com outra perspectiva. Os textos em "paralelo" devem
situar-se como numa estrada de mão dupla: duas linhas paralelas em sentidos
contrários. A paródia envolve uma crítica ao texto origem ou aos códigos do gênero.
Ela trabalha por meio do destaque da diferença, contradizendo valores da obra
parodiada - uma dessacralização do original.
Ao longo do tempo, principalmente nas artes visuais, a valorização demasiada
da individualidade do autor sobrepõe-se, por vezes, à criatividade mais abstrata na
tela. Percebe-se que a paródia, como uma reflexão crítica, tem sido submetida
apenas a uma técnica menor, que utiliza o trabalho de terceiros para obter destaque.
Entretanto, as formas criativas do mundo moderno têm, cada vez mais, retomado o
passado, promovendo um novo sentido a esses textos anteriores. Desse modo, a
paródia é uma atualização dos textos clássicos e códigos mais tradicionais.
A autoreflexividade das formas de arte modernas toma muitas vezes a forma de paródia e, quando o faz, fornece um novo modelo para os processos artísticos. Num esforço para desmitificar o “nome sacrossanto do autor” e para “dessacralizar a origem do texto” [...] (HUTCHEON, 1985, p.16)
59
A simulação de copresença paródica é uma forma criativa séria, embora seja
ainda questionada por utilizar, muitas vezes, do humor ao desdenhar do original -
um bom exemplo, já citado, é o "L.H.O.O.Q." (Figura 05), de Marcel Duchamp, 1919.
Apesar da prática do jocoso, a paródia, ao remeter a outro texto, presta-lhe um bem
que é a sua atualização, com significado novo. Uma obra como Mona Liza, que está
há tempos nos livros de história da arte moderna como um ícone da pintura
renascentista, recebe novo sentido, seja ele contrário ou a favor dos valores
estéticos ou morais que o artista procurou expressar.
A intertextualidade, a princípio, foi definida como apenas uma interação entre
dois textos. A partir dos estudos da linguística e semiótica (KRISTEVA, 1969) , o
processo intertextual envolve o autor, leitor e os textos. Para que o texto
referenciado seja apreendido como intertexto, é necessário que o enunciador trace
marcações que permitam ao enunciatário decodificá-las e o guiam à enunciação. A
teórica Linda Hutcheon (1985), ao conceituar a paródia, não tinha em vista o
desenvolvimento dos estudos da intertextualidade e, desse modo, destacou a
paródia como gênero que não poderia ser reduzido apenas à prática intertextual.
Ocorre que, como descrito acima, é conhecido por todos que o processo intertextual
não se limita a dois textos relacionando-se, como indicava Hutcheon (1985, p.54). O
que a autora de Uma teoria da paródia utilizou para distinguir a intertextualidade da
paródia foi exatamente o que faz dela uma estratégia intertextual, as inferências. As
diferenças no bojo das semelhanças em uma paródia são regidas por marcações
deliberadas para o propósito da compreensão da enunciação, a grosso modo, do que
o autor quer realmente "dizer" no seu discurso. O espectador da Madame Récamier,
de Magritte, percebe na semelhança a intertextualidade e descobre pela diferença a
paródia. O caixão é a formação da marca que é deliberadamente posta em destaque
para que ocorra o percurso gerativo de sentido proposto pelo enunciador. Essa
intenção, além de procurar garantir a compreensão do significado intertextual, coloca
em evidência o sujeito da enunciação.
Por outro lado, uma simulação de copresença pode pedir empréstimos a
vários textos para subverter um gênero por inteiro, como acontece com os falsos
documentários que são filmes ficcionais que se utilizam de artifícios próprios do tipo
60
como entrevistas, voz-over, registros in loco, mas com conteúdo de ficção.
Normalmente, os falsos documentários parodiam não o estilo de um autor, mas os
códigos habituais do gênero, que, por si, promovem uma credibilidade,
culturalmente, já compartilhada (EMERITO, 2008). Desse modo, aqui pode surgir,
por meio de uma compreensão apressada do que se tem tratado até o momento,
uma confusão que rompe a paródia da intertextualidade. O próprio nome "intertexto"
é capaz de limitar o processo apenas à relação entre textos, deixando de fora
interações entre texto e gênero como no falso documentário. Na verdade, a
simulação paródica, como uma intertextualidade, pode refletir sobre um texto
parodiado ou por convenções normativas de um tipo de manifestação
comunicacional. Sendo assim, em alguns casos, o espectador até não identifica com
exatidão o texto-base, mas percebe que se trata de uma paródia através de outras
estratégias enunciativas que não seja o empréstimo de um enunciado específico,
mas a alusão ao gênero de outro texto ou o emprego do humor. Não há paródia sem
a intertextualidade, pois se trata de um formato de interação não só entre textos
produzidos anteriormente, mas entre estilos e convenções normativas de classe. A
intertextualidade está presente no conceito da simulação, porque, tanto na
copresença por tradução como na citação ou paródia, há a referência a outro texto
ou classe, dentro de um grau de implicitude divergente que as separa, como foi
descrito anteriormente.
Uma das características da paródia é o efeito contrário ao sentido do texto
base. Para simplificar, toma-se de Maingueneau (apud DISCINI, 2004, p. 26) os
termos opostos "subversão" e "captação". A simulação por tradução e a por citação,
em sua maioria, não se manifesta em contraste com a enunciação; desse modo,
ocorre mais um efeito de "captação". Por outro lado, a estratégia da simulação
paródica é conduzida pelos valores enunciativos do texto fonte, porque reafirma os
seus códigos com o objetivo de corromper seus valores enunciativos. Por meio do
apego a um texto ou gênero, a paródia tem o objetivo de subversão para construir
uma reflexão crítica ao próprio texto como para a sua categoria.
Na verdade, a paródia contém uma diferença em relação ao texto-base, na medida em que subverte seu enunciado e desqualifica sua enunciação,
61
propondo uma outra enunciação substituta, contrária, diferente. No entanto, essa diferença articula-se sobre uma semelhança. (DISCINI, 2004, p.26)
O conceito de paródia, eventualmente, é incorporado ao da estilização. De
acordo com Fiorin (1996, p.31), a “estilização é a reprodução do conjunto dos
procedimentos dos ‘discurso de outrem’, isto é, do estilo de outrem". Os estilos são
as recorrências formais do autor em outras obras. Alguns teóricos, como Tynianov
(apud SANT'ANNA, 2004, p.35), apontam a estilização como procedimento que
trabalha sempre com a concordância entre os textos. Desse modo, qualquer efeito
contrário ao texto estaria fora da estilização, ou seja, a estilização e a paródia
estariam em oposição. É mais apropriado afirmar que a paródia, assim como a
paráfrase, é resultado da técnica estilística. Há dois polos, o contraestilo (paródia) e
pró-estilo (paráfrase). Em outras palavras, a paródia é o efeito negativo de uma
estilização, porque se manifesta por meio do contraste das diferenças em um
"ambiente" semelhante ao usual. Bom exemplo da paródia como perspectiva de
estilização negativa é a matéria de Lisa Taddeo, The last days of Heath Ledger,
publicada na revista americana Esquire. Como já descrita, o texto apropria-se de um
sistema formal de construção própria da escrita de um diário para propor uma
inversão, através da ficção, no noticiário. Desse modo, o estilo, recorrência
normativa, é utilizado para destacar, como diferença, o ficcional inserido em um
cenário próprio de elementos não-ficcionais. A estratégia da paródia, mais uma vez,
foi a do contraste que subverte.
Possivelmente, o principal motivo de ser a paródia mais utilizada para crítica
irônica ou humor é o seu potencial de continuidade. Enquanto, as simulações por
tradução estacionam nas semelhanças, "correndo" a favor do texto, as paródicas
estão sempre provocando evolução da linguagem, trazendo o novo através do velho,
já conhecido.
Algumas formas da retórica foram tão discutidas ao longo do tempo que os
diversos conceitos se fundem causando distorções. A paródia e o pastiche, por
exemplo, podem-se manifestar, ambos como imitações textuais, mas o primeiro tem
como resultado a crítica transformadora (GENETTE, 1989, p.34). O plágio e a paródia
também, muitas vezes confundidos, são distintos porque este último não tem a
62
intenção de enganar, mas de provocar reflexão crítica. Entre vários termos como
citação, tradução, travestimento burlesco, a sátira e a alusão, erroneamente, podem
ser consideradas sinônimos da paródia.
O nome sátira surgiu de uma escola cênica (entre o séc. III e I a.C.) em que
seus escritores, para terem a liberdade de desprezar e caçoar as convenções que
detestavam, optaram por não conviver com outros da arte. Ao serem ignorados,
tinham como hábito ridicularizar os trabalhos por meio do cômico (FIORIN, 2003,
p.52). Desse modo, está claro o aspecto de escárnio da sátira. Por outro lado, a
paródia pode ser ativada também por meio do ridículo. Então, há diferença entre os
termos? Na verdade, a sátira é um efeito que resulta da crítica aplicada pela
intertextualidade da paródia. Linda Hutcheon (1985, p.28) afirma que a atividade de
satirizar está no mesmo nível da paródia e o que as difere, mais uma vez, é a
intenção. A paródia critica o procedimento, gênero, ou dimensão "intramural", e a
sátira critica fatos sociais ou valores morais - "extramurais". "[...]como podem então
chegarem a confundir-se a paródia com a sátira, que é extramural (social, moral) no
seu objetivo aperfeiçoador de ridicularizar os vícios e loucuras da humanidade, tendo
em vista a sua correção?" (HUTCHEON, 1985, p.61). A estudiosa ainda acrescenta
que a distinção se encontra na ausência do julgamento negativo por meio da obra
paródica. Tal perspectiva limita a paródia a paráfrases que apenas celebram o
intertexto. A este tipo de atividade, no presente estudo, denomina-se traduções,
como as citadas telas Les Buveurs e La Siesta, ambas de Van gogh. Não há nenhum
juízo de valor opositor aparente, e a obra original não sofre ataques de cunhos
"intra" ou "extramurais". Na verdade, a paródia moderna é um gênero avaliador das
diversas formas midiáticas atuais e, desse modo, pratica uma sanção negativa,
positiva sobre o processo ou a respeito do contexto em que a obra ou o texto base
está inserido. Assim como em Perpective - Madame Récamier, com a tela Perpective
II - Le Balcon de Manet (1950), Magritte faz uma paródia criticando a cultura
retrógrada da elite, propondo o seu fim através da figura do caixão. O quadro Le
Balcon (1869), de Manet, exibe três personalidades francesas da época olhando para
a rua, sobre um balcão. Na obra de Magritte, não há apenas uma alusão para
homenagear um colega de profissão, mas os valores são invertidos e criticados
63
ironicamente. Ao contrário, Warhol, ao duplicar a Mona Lisa, fez uso da ironia por
meio da paródia para censurar a sociedade consumista "ávida" por quantidade à
qualidade, mas não subverte o texto-base, por isso não sendo paródia, mas citação.
É importante ressaltar que a paródia como é definida neste estudo não
pretende abranger os diversos trabalhos que procuram unicamente fazer uma
correspondência com outros, sem imprimir uma reflexão. A paródia praticada pelas
simulações de copresença paródicas descritas até o momento utiliza a alusão para
repreender algum aspecto do processo de produção da obra (texto-base) ou mesmo
temas do contexto histórico. Fica claro que o texto singularmente alusivo está mais
para a paráfrase ou simulação por tradução que, como dito anteriormente, recria
textualmente com um desvio mínimo, procurando manter-se mais próximo possível
do efeito semântico proposto originalmente.
A simulação paródica tem o propósito de acentuar a diferença, o oposto da
tradução. A artista contemporânea Sophie Matisse pintou, em 1999, o quadro Le
Dance Lesson (Figura 11), que faz alusão clara à obra de Degas, Le Dance Class
(1874). Contudo, não há no discurso uma tendência de oposição ao processo
criativo. O famoso quadro de Degas exibe um professor conduzindo uma aula de
balé para várias alunas e suas mães a esperar ao fundo. A dessemelhança entre as
telas está no grande vazio provocado pela ausência dos personagens. A substituição
das figuras por caixões (em Magritte) é um contraste bem mais acentuado que a
retirada de elementos. No trabalho de Sophie, pode-se ter o efeito de continuidade
de uma narrativa em que os personagens não estão mais na aula, apenas foram
para outro lugar. O desaparecimento das alunas, professor e mães causa um
estranhamento, mas não há uma evidente crítica revelada, com a inserção de outras
figuras como caixões, que, necessariamente, consistiriam em uma simulação
paródica. Desse modo, Le Dance Lesson é mais uma tradução que recria com
mínimo transvio capaz de oferecer ao espectador uma nova perspectiva e revigora o
texto base.
64
De fato, o que difere a simulação de copresença paródica das demais é o
efeito irônico provocado pela alusão que pode ou não resultar em sátira. A principal
forma de reconhecimento das marcações da paródia é a ironia. O enunciatário
desperta para a duplicidade por meio da alusão irônica. Apesar da alusão manifestar-
se, normalmente, mais pela similitude do que por meio da diferença crítica, a alusão
irônica ativa dois textos concomitantemente e provoca um conflito que tem a
reflexão como efeito. A alusão não pega empréstimo literal do enunciado do texto-
base, procedimento da citação. Por outro lado, procura uma referência implícita que
seja reconhecida pelo enunciador, e este retoma, pela memória, o texto de origem e
constrói o significado sugerido pelo enunciador. Desse modo, o enunciatário é um
coenunciador, pois partilha da construção da enunciação.
A paródia é, pois, na sua ironia "transcontextualização", inversão, repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto por ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva. (HUTCHEON, 1985, P.48)
Figura 12- A esquerda Le Dance Class, 1874, Edgar Degas. A direita, Le Dance Lesson, 1999, Sophie Matisse.
65
2.3.1 Simulação paródica irônica
A palavra ironia surgiu da expressão grega eironeia. Aristóteles, considerando o
primeiro registro dessa palavra na República, de Sócrates (MUECKE, 1995, p.31),
instituiu dois significados: o de comportamento dissimulativo e o uso enganoso da
linguagem. O conceito da ironia aprimorou-se muito lentamente, durante os anos. O
termo não aparece no inglês até 1502 e não consta na literatura geral até o início do
século XVIII, e sempre houve dificuldade de se desenvolver uma forma específica
para caracterizar a ironia.
[...] porque geralmente é aceito que existem duas formas básicas de ironia, diferentes mas aparentadas e não facilmente separáveis, e quase-mitológica porque "ironia" é apenas um conceito, um elemento num sistema conceitual que, por sua vez, é apenas um acordo temporário quanto ao instrumento e compreensão do mundo. (MUECKE, 1995, p. 27).
De acordo com Knox (apud SEIXAS, 2006), até o século XVIII, o fenômeno
irônico possuía, basicamente, quatro funções: dizer o contrário do que significa; dizer
coisa diferente do que significa; crítica com falso elogio e elogiar por meio da
simulação e zombar ("mocking") ou caçoar. A partir de então, a ironia evoluiu além
da linguagem estritamente verbal e apenas observada pela ótica de quem a pratica.
O evento irônico pode ser não-intencional, que aconteceu com alguém (perspectiva
da vítima) ou que se tornou alguém. Desse modo, fez-se mais complexo o estudo e
análise de objetos irônicos, e surgiram ao longo dos anos, diversas abordagens
teóricas.
Seixas (2006) destacou e descreveu diversas perspectivas: perspectiva
filosófica, psicanalítica, retórica, pragmáticas e cognitivistas. A abordagem filosófica
abrange duas perspectivas da atividade irônica. A ironia socrática, como o próprio
nome aponta, provém da argumentação em que o locutor finge ser humilde para
que, moderadamente, coloque em contradição os demais envolvidos no diálogo. Esse
aspecto em que o sujeito ou a situação podem ser irônico e não apenas o texto, faz
da ironia algo mais que figura da linguagem, um princípio filosófico. O outro tipo
irônico da abordagem filosófica destacada pela autora é a romântica, que se baseia
no princípio de que somente a atividade irônica oferece a liberdade absoluta ao
66
poeta. A partir desse ponto de vista, a ironia passa de situacional para os textos
literários. Houve uma "rebeldia do subjetivismo contra a objetividade [...] o autor
passa a assumir voz na narrativa, representando-se através de um narrador
implicado no texto" (DUARTE, 1994, p. 09). A partir do Romantismo literário, o
autor assume o "eu" e divide com o receptor a responsabilidade da construção do
texto, tendo em vista o reconhecimento da ironia. De acordo com Duarte (1994), o
artifício irônico passa a produzir efeitos de crítica e denúncia.
A perspectiva retórica aponta a ironia como tropo ou figura. O tropo, de
acordo com Quintiliano (apud SEIXAS, 2006), seria um "modo de falar descolado do
natural e primeira significação". Propriamente, a ironia seria a forma de trabalhar por
antífrases. Este é o formato mais simples e coloquial de manifestação da ironia, em
que, basicamente, é limitada a um procedimento textual verbal. Por outro lado,
assim como a sátira, o efeito irônico surgiu não por meio da literatura, mas por meio
de situações irônicas.
Retornando às perspectivas citadas em Seixas (2006), a abordagem
pragmática baseia-se na retórica. No entanto, reconhece a interação enunciador e
enunciatário coenunciador. Quanto à semântica, a ironia pode ser identificada como
tropo, mas pode exercer funções como a objeção de valores argumentativos e como
estratégia defensiva. É impróprio afirmar que a mera contradição, o "dizer o
contrário do que se pensa", é característica específica da ironia. Segundo
Berrendomer (apud SEIXAS, 2006, p.61), a oposição de valores argumentativos é o
que monta a distinção da ironia entre outras formas antifrásicas. Os princípios da
argumentação são postos em desacordo.
Como eu já deixei entender, há, então, um paradoxo argumentativo: o enunciado comenta, sobre o modo representacional, sua enunciação como um argumento a favor de r, enquanto que a enunciação se comenta sobre o modo sintomático como um argumento em favor de não-r. (BERRENDONNER apud SEIXAS, 2006, p. 64).
A alusão irônica na paródia inverte o significado, simulando, para promover o
julgamento do seu alvo. Normalmente, possui uma abordagem de escárnio e ridículo,
que, assim como um desenho caricato, exagera no destaque de forma a distorcer e
sinalizar as marcações. Esses pontos de ressalto devem ser inferidos pelo
67
decodificador como estratégia de crítica a outro texto, autor, gênero, código. Um
simples exemplo de ironia é a inversão de significado que esconde a real intenção do
autor. A Perspective: Madame Récamier by David, de Magritte, assim como Le
Balcons, são obras que ironizam o tema tratado no texto-base: morte contraposta à
vitalidade e beleza. Magritte expõe uma mensagem "X", mas nas "entrelinhas" fala
de outra coisa, oposta, "Y". Esse implicitude empregada pela inversão aciona a
função avaliadora da alusão irônica da paródia como simulação e intertextualidade.
Esse contraste de "dizeres" se dá por meio do conflito entre enunciação
enunciada e enunciado enunciado. A lógica pressuposta do enunciado é negada pelo
enunciado enunciado. Em outras palavras, o que é dito, escrito, exibido, pintado,
fotografado não está de acordo com o que o autor quer "transmitir". Na verdade, a
enunciação é oposta à enunciação enunciada. O confronto, a contrariedade de
isotopias têm como propósito a tematização do protesto, censura ou humor. O texto
ou gênero parodiado é refutado implicitamente, pois é reproduzido pelo enunciado
de forma que desloca do ridículo ao cômico.
Subjacente ao dito há o dizer que também se manifesta. O enunciador pode, em função de suas estratégias para fazer crer, construir discursos em que haja um desacordo entre essas duas instâncias [...] No caso de um acordo entre enunciado e enunciação, ele explicita-se como "enunciado X deve ser lido como X"; no caso oposto, como "o enunciado X deve ser interpretado como não-X” (FIORIN, 1996, p.39).
A ironia não é apenas uma ferramenta, mas um processo comunicativo que,
de acordo com Hutcheon (1995, p.56), possui três características semânticas:
relacional, inclusiva e diferencial. "A ironia seria uma estratégia relacional por operar
entre significados (ditos e não ditos) e também entre pessoas (ironistas,
interpretadores, alvos)". Dessa forma, a prática irônica opera entre a dinâmica da
interação dos textos, contexto, interpretador e, por vezes, ironista.
A ironia é inclusiva, porque não precisa trabalhar com antífrase
necessariamente, substituindo um significado pelo outro. Esses significados podem e,
muitas vezes, coexistem no mesmo discurso. Como atua por meio da diferença
dentro do universo da semelhança, Hutcheon (1995,p.56) denomina como diferencial
uma característica da ironia.
68
Foi discutido, ao longo deste capítulo, o dispositivo da paródia como "canto
paralelo" de textos coexistindo de forma inclusiva. Falou-se das marcações no bojo
das semelhanças (diferencial) que constrói, deliberadamente, um efeito que promove
a interação entre texto e intertexto, enunciatários e enunciadores (relacional). Sendo
assim, verifica-se a evidente proximidade da ironia com a paródia. A simulação de
copresença paródica é ativada pela alusão irônica, promovendo a sátira como crítica
social e moral, além do humor.
Ironia, raramente envolve uma simples decodificação de uma mensagem invertida; é mais comumente um processo complexo de relação, diferenciação e combinação do dito com o não dito.(HUTCHEON, 1995, p.85)15
Faz-se necessário deixar claro que, como foi dito anteriormente, a ironia é
uma ato intencional como outros em um processo comunicativo. Porém, deve-se
entender que um aspecto a distingue além da intencionalidade: a inferência. A
atividade paródica irônica tem como intenção o confronto de valores do texto-base, o
protesto social, a crítica ao processo produtivo do gênero, e até mesmo, o humor.
Para que esse propósito seja alcançado, devem ser reconhecidas na obra, as
marcações inferenciais deixadas pelo enunciador. Por conseguinte, o enunciatário,
como coenunciador, constrói o discurso proposto.
Neste trabalho, pretende-se examinar a intenção do enunciador em
caracterizar mais acentuadamente ou não a alusão irônica da paródia. O material a
ser analisado posteriormente, está elencado para dar formato a uma classificação
que destaque a intensidade das marcações relacionada com a competência
inferencial do enunciatário. O grau de implicitudade, desde o início da cadeia da
tipologia proposta, é a característica mais relevante porque é o que define o objeto
como simulação de potencial trote ou não. Os sinais devem estar à mostra para que
o decodificador os perceba e seja capaz de inferir o efeito crítico do texto.
O termo "copresença" assinala, necessariamente, a existência de dois textos.
Entretanto, em alguns casos, a paródia não se refere a um texto específico, mas a
15 Tradução livre.
69
um gênero. Como os falsos documentários, que inserem a ficção em um suporte que
hipoteticamente deveria ser não ficcional. Não há um texto base único, mas uma
classe que é parodiada. Os códigos próprios do tipo são utilizados de forma
distorcida para efetuar a marcação e assim resultar na ironia.
O site brasileiro Sensacionalista16, criado em 2010, simula o modo de
funcionamento de um portal de notícias, mas com o conteúdo fictício, como eles
mesmos se definem em um dos tópicos do portal: "um site de humor com notícias
fictícias, baseadas ou não na realidade". Trata-se de uma simulação pelo fingimento
de ser objetivo nas matérias assim como em um jornal. Pelo aspecto de estar
tomando empréstimo de códigos de uma categoria (portal de notícias), deve ser
definido como copresença. Quanto à paródia, fica claro o tom irônico, ao inserir a
ficção em uma mídia essencialmente voltada para dar suporte a notícia.
A informação noticiosa, ao longo dos anos, desenvolveu-se como mercadoria
por meio da padronização em negar o subjetivismo. Aspectos do acontecimento
como tempo, lugar, modo, causa, finalidade e instrumento devem compor a
informação de forma a não ser opinativa. Com o desenvolvimento industrial, a
criação de agências de notícias e publicidade levou o jornalismo para uma prática
mercadológica da informação. Com a dinâmica do ambiente virtual, quanto a esse
aspecto de venda da notícia, quase nada mudou. Entretanto, a prática jornalística é
pautada por fatos que acontecem quase ao mesmo tempo em que são divulgados.
Os portais de notícias na internet têm modificado a prática do jornalismo. Os
acontecimentos de "ontem" são substituídos por acontecimentos de hoje. Houve, de
acordo com essa perspectiva, um retrocesso tendo em vista que, no início do século
XX, o jornalismo era demasiadamente sensacionalista visando à venda de jornais
impressos. A notícia é, cada vez mais, resultado do seu atributo monetário, que é
diretamente relacionado com imediaticidade do fato.
Existe uma profunda ironia na fabricação de notícias. A credibilidade de uma imagem política repousa, não numa verificação independente sobre sua precisão, mas no seu sucesso passado como uma fórmula noticiosa. Neste mundo de realidade dos media, a noticiabilidade se torna um substituto da validade, e a credibilidade é reduzida a uma formúla sobre quem aplica que
16 www.sensacionalista.com.br
70
imagens a quais eventos e sob que circunstâncias. (LANCE BENNET apud MORETZSOHN, 2002).
O conteúdo jornalístico informativo, além de ter, a priori, isenção da
subjetividade, deve adequar-se a todos os padrões que o meio social exige para que
a informação, como mercadoria que é, seja valorizada. A notícia, para ser
considerada atual, deve submeter-se ao imediatismo da publicação instantânea
factual provocada pelos portais, blogs noticiosos na internet. Por razões de economia
de tempo com o propósito de noticiar primeiro, o jornal submete a critérios
inconsistentes a coleta e seleção dos fatos a serem investigados.
O jornalismo não é apenas a venda da informação, deve-se dispor de tempo
para exame e seleção do conteúdo factual. Todavia, o jornalista não desfruta do
tempo necessário para análise de um acontecimento ou entrevistas, e, assim, a
matéria torna-se mais superficial. A informação sempre foi tratada como mercadoria,
mas a demanda exige mais informações por hora do que no século passado. De
certo modo, esse novo processo desenvolvido ao longo da adaptação e criação do
jornalismo na internet teve como consequência a propagação de temas jornalísticos
mais evasivos, porém mais fáceis de captar e padronizar e até o surgimento de
notícias parcial ou inteiramente falsas. As redações sempre tiveram que lidar com a
verificação contínua dos fatos; no entanto, atualmente, esse processo está, a cada
dia, mais apressado e frágil. O portal Sensacionalista, por meio do humor,
desenvolve uma reflexão implícita da notícia fútil e, por muitas vezes, dos males
sociais.
"Neymar joga últimos 15 minutos de partida com iPod no ouvido para escolher
música para o Fantástico"17 - é a frase de uma das manchetes do Sensacionalista
em oito de março de 2012. No dia anterior, o jogador de futebol Neymar fez dois
gols no jogo em que seu time bateu o adversário por três a um. As manchetes de
esporte, em sete de março, nos principais portais, foram a respeito do garoto.
"Ovacionado na Vila, Neymar marca três, repete gol de placa, e Santos vence o
17 MARCELO Z. Neymar joga últimos 15 minutos da partida com Iphone no ouvido para escolher música para o fantástico. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 set. 1998. Disponível em: <http://www.sensacionalista.com.br/2012/03/07/neymar-joga-ultimos-15-minutos-da-partida-com-iphone-no-ouvido-para-escolher-musica-para-o-fantastico/> Acesso em: 07 mar. 2012.
71
Internacional", foi a manchete do UOL. O portal Terra destacou: 'Neymar faz dois
golaços e revive dia de "carrasco" de Dorival'. Percebe-se que o Sensacionalista
trabalha em conformidade com as pautas dos principais sites de notícias do país.
"Em geral vemos o que está acontecendo nos sites de notícia e nos trending topics
do Twitter. Trocamos alguns emails com ideias e fazemos as notícias" - afirma Nelito
Fernandes (JÚNIOR, 2012), fundador do jornal. Porém, as informações que elenca
são fictícias. É duvidoso que o jogador Neymar jogou com Ipod nos ouvidos e, muito
menos, com o objetivo de escolher uma música para um quadro do programa de TV,
Fantástico. Ao tomar empréstimo de códigos da linguagem verbal e visual de um site
de notícias, o Sensacionalista simulou e parodiou um tipo: jornalístico. Sendo
jornalismo, as matérias teriam que ser, precisamente, de acordo com os fatos. Não
há credibilidade em que o conteúdo é fictício. Então, o Sensacionalista é um fake de
falsificação ou simulação?
No site18, a equipe adverte que o objetivo "é um só: fazer rir...o
Sensacionalista não se dedica a espalhar boatos e nem notícias falsas na internet".
Além da declaração que afirma a política do jornal, o humor é a marcação mais
evidente da paródia simulativa do Sensacionalista. A ironia ocorre quando toma a
pauta do dia dos principais meios de comunicação do país e elabora pequenos textos
fictícios como notícias. As manchetes do Sensacionalista, comparadas com os dados
do que realmente aconteceu, revela o quão absurdas e fantasiosas são suas
matérias. O que inverte a objetividade do jornalismo em um artefato lúdico, faz do
site um portal de humor. O valor moral da credibilidade é invertido para o escárnio e
anarquia da alusão irônica da paródia. Essa contrariedade, por sua vez, embora o
jornal assuma que tem o propósito apenas humorístico, tem implícito o protesto.
No dia 12 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu autorizar o
aborto voluntário em casos da gravidez com fetos anencéfalos. Como se configura
um tema polêmico (tramita na Corte desde 2004), tornou-se manchete e um assunto
bastante discutido nas redes sociais. Head Lines, como "Supremo aprova
18 http://www.sensacionalista.com.br/about/
72
antecipação de parto de feto anencéfalo" do portal UOL19 e " STF julga
descriminalização de aborto de anencéfalos nesta quarta" do Terra,20 abordaram o
acontecimento com destaque. O Sensacionalista utiliza a pauta do dia e publica uma
matéria com a seguinte frase (Figura 12): "Pessoas que têm o cérebro perfeito, mas
não usam, entram na mira do STF". A "notícia", com humor, fala que a Corte deve
"liberar a eutanásia ou não de pessoas que têm cérebro completo e perfeitamente
normal, mas não o usam", como os "motoristas que dirigem bêbados". Embora
alguns autores (DISCINI, 2004, p. 60) sustentem que apenas a ironia sem o humor
configura o protesto, percebemos, no Sensacionalista, um tipo de protesto cômico
avaliador. "O humor serve para fazer cócegas tocando nas feridas também." - diz
Nelito (JÚNIOR, 2012) quando perguntado se o jornal promove uma crítica a
questões do comportamento social.
Figura 13- Captura de tela do site Sensacionalista acessado em 13 de março de 2012. O portal possui semelhança com outros sites de notícias, mas com uma
primordial diferença, que é a ficção. A aparência da logomarca, com um tipo de fonte
(Old English Text MT) utilizada em jornais antigos, organiza um sistema gráfico que
19 http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2012/04/12/supremo-aprova-antecipacao-de-parto-de-feto-anencefalo.htm 20 http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5712617-EI306,00-STF+julga+descriminalizacao+de+aborto+de+anencefalos+nesta.html
73
não oferece marcas de que se trata de uma paródia. No plano da expressão, as
isotopias figurativas "dialogam" com as de outros objetos, como o portal do jornal
francês Le Monde (Figura 13), com as cores do fundo em branco em contraste com a
logomarca em preto, usando a mesma tipologia. A diagramação também se
assemelha quando o menu está no sentido horizontal e localizado no topo. A
manchete principal, em ambos os sites, localiza-se na lateral esquerda e destaca-se
por foto, deixando livre o lado direito para publicidade. Essas são algumas das
características que o Sensacionalista toma emprestado para se camuflar no âmago
de modelos de um gênero.
Figura 14 - Captura de tela do site (http://www.lemonde.fr/) do jornal Le Monde,
acessado em 13 de março de 2012.
O Sensacionalista em 2011, além da internet, passou a tomar a televisão
como suporte. Diferente da versão virtual, o telejornal que é transmitido via TV
fechada uma vez por semana não aborda, necessariamente, os principais temas
discutidos nos últimos dias pelos programas jornalísticos do país. Mas sempre de
forma irônica, busca a chacota e o cômico como ferramentas de humor e crítica a
aspectos do comportamento social. Reportagens como "Rapaz morre depois de
encolher a barriga por 5h em primeiro encontro na praia", além de ter o objetivo de
provocar o riso, também toca em assuntos polêmicos como a busca exagerada à
forma física ideal.
74
"O Sensacionalista não visa a crítica da imprensa" - afirma Nelito (JÚNIOR,
2012), ao ser perguntado se o Sensacionalista poderia depreciar a prática
jornalística de alguma forma. Apesar do jornal não ter como o objetivo primário
promover uma reflexão a respeito do jornalismo atual, em alguns casos, a
interpretação pode voltar-se para isso. O contraste entre o plano da expressão,
semelhante a outros telejornais, e o plano do conteúdo, com notícias fantasiosas,
gera uma comicidade que subverte os valores representados pela figura do âncora
de um jornal na televisão. Os temas figurativos como seriedade, imparcialidade,
objetividade, oriundos das características da postura do apresentador, de sua forma
de vestir, falar, interpretar a notícia, juntamente com aspectos decorativos do
cenário, entre outros, são ridicularizados com a exposição de matérias como a de:
"Saci nasce com duas pernas e deixa os pais arrasados". Antes da reportagem21 ser
exibida, um dos âncoras (homem) diz: "A família do pequeno Saci vive um drama na
floresta". Em seguida, a outra apresentadora completa: "O Saci nasceu com duas
pernas e está sendo considerado uma aberração entre os coleguinhas". Além do
humor deliberado, a notícia ficcional, por ser exibida de forma tão formal e por meio
de códigos já reconhecidos pelo público como de um telejornal, pode promover uma
crítica ao gênero. Todas as características normativas de um jornal para televisão
foram desenvolvidas para a paródia. Todavia, ao passo que um telejornal, com a
mesma "aparência", dialoga através de um discurso fantasioso, põe em questão os
valores de credibilidade e imparcialidade. Embora a produção do Sensacionalista não
admita a intenção de criticar a imprensa, isso acontece em alguns casos em que a
notícia atinge um perfil lúdico mais acentuado ao tratar um personagem folclórico,
Saci Pererê, como um cidadão comum.
Da mesma forma que não tem o objetivo de reflexão a respeito do jornalismo,
o Sensacionalista não pretende enganar. Porém, isso também acontece quando o
dispositivo é a apropriação de regras de um sistema já assimilado por um público
vasto. No dia 04 de maio de 201022, referido portal publicou a seguinte manchete:
21 Reportagem disponível no canal de videos You Tube através do link: http://www.youtube.com/watch?v=cH-zuLeXv9o&feature=relmfu 22 Reportagem disponível no site do Sensacionalista por meio do link: http://www.sensacionalista.com.br/2010/05/04/mulher-engravidou-vendo-filme-porno-3d/
75
"Mulher engravidou vendo filme pornô 3D". A matéria descreve que "um casal
branco americano teve um bebê negro e a mulher diz que engravidou assistindo a
um filme pornô 3D". Na mesma semana, mais de 100 sites (brasileiros e
internacionais) publicaram a notícia como verdadeira. É evidente que nenhuma
mulher pode engravidar por meio da televisão, mas as pessoas habituadas a
acreditar em qualquer notícia de portais jornalísticos fazem o engano não ser tão
surpreendente.
Atualmente, o portal possui o alcance de mais de 76 mil pessoas relacionadas
com sua página no Facebook23 e cerca de 115 mil seguidores no Twitter24. Esses
números comprovam que o fake se tem tornado, a cada dia, uma espécie comum na
mídia contemporânea. A ironia paródica era processo de criação utilizado apenas na
literatura. Todavia, mostrou-se um modelo tão eficaz de reflexão que se manifesta
em outras mídias como cinema (falso documentário), fotografia e internet.
É no contexto geral desta interrogação moderna acerca da natureza da auto-referência e da autolegitimação que surge o interesse contemporâneo pela paródia, gênero, que foi descrito simultaneamente como sintoma e como ferramenta critica do epistema modernista (HUTCHEON, 1985, p.12).
Um bom exemplo é o portal de notícias fictícias denominado G1725. O site
também procura, por meio da ironia, promover o humor. Assim como o
Sensacionalista, o G17 simula uma interface virtual semelhante aos sites noticiosos
para exibir matérias irônicas, subvertendo os valores do jornalismo. O slogan do
portal é "Sem compromisso com a verdade". Então, está evidente a mesma fórmula
controvertida do exemplo anterior. O humor é o objetivo priorizado nos dispositivos
de ambos; no entanto, a crítica está presente no seu conteúdo, seja a respeito do
bojo social ou do próprio processo de produção da notícia. Vale ressaltar que o G17
possui uma apropriação menos difusa que o Sensacionalista. Há, de fato, um texto-
base especificamente parodiado (Figura 14): o site de notícias do portal da Globo,
g1.com.br. Os nomes são parecidos, as logomarcas possuem a mesma cor
(vermelha), as tipologias são semelhantes (sem serifa) entre os dois veículos. A 23 Fonte: http://www.facebook.com/sensacionalista 24 Fonte: https://twitter.com/#!/sensacionalista 25 www.g17.com.br
76
equivalência faz parte da estratégia enunciativa. O texto parodiado figura em um dos
portais mais acessados no Brasil26. Desse modo, a credibilidade de um é confrontada
com o slogan do outro. A contradição, artifício tão comum na ironia, permite ao
leitor, logo no início do processo, perceber que o G17 não é um portal de notícias
como vários outros.
Figura 15 - Logomarcas do site G17 e G1. As manchetes abordam, principalmente, nomes de personalidades que são
assunto de pauta de outros sites com alto número de acesso. E, assim, a matéria é
vendida como uma piada.
O Sensacionalista e o G17 operam de forma a apropriar-se de códigos do
jornalismo virtual para fazerem do humor seu principal objetivo. Ambos são
simulações, porque não têm como finalidade enganar. As marcações para que isso
não aconteça são evidentes como a mensagem na logomarca do G17. Os dois sites
podem ser definidos como dispositivos de copresença, porque oferecem interação
entre textos, caracterizada pela paródia; vide os elementos que se assemelham. E
podem ser chamados de irônicos por promoverem "dessacralização do discurso
oficial ou desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como
neutros" (BRAIT, 2004, p.16).
O humor, não necessariamente, deve ser inserido no conceito da paródia,
como meio de manifestação. A paródia, por muitas vezes, pode-se caracterizar
simplesmente como crítica, sem a intenção da comicidade. Entretanto, o vigor da
paródia moderna está centralizado na ironia. A atividade irônica é o que distingue a
paródia avaliadora da citação e tradução discutidas anteriormente, como formatos
que não contestam aspectos do texto-base. Por conseguinte, a contraposição de
valores sugerida pela ironia é um dispositivo comum em elementos que visam ao
humor. Em suma, a oposição de isotopias do objeto irônico é o que o aproxima do
26 Fonte: http://www.alexa.com/topsites/countries/BR
77
humor. Como afirma DISCINI (2004, p.60), "[...] o humor, intertextualmente,
reconhecido como prerrogativa da paródia, constitui um fenômeno de contrariedade
de isotopias.”
Há autores como BERGSON (apud BRAIT, 2004, p. 41) que insistem em
abordar o humor como o "inverso da ironia". Na verdade, o humor pode ser um
fenômeno isolado da ironia, como a ironia pode ser praticada sem o humor. Por
outro lado, os dois juntos em um processo criativo desperta interesse na simulação
de copresença paródica, seja pelo caráter cômico ou de reflexão.
Linda Hutcheon (1995, p.45) defende que a ironia pode ser bem humorada
como também depreciativa ou transgressora. Ela organiza em um diagrama as
formas que a ironia pode-se manifestar de acordo com a sua intensidade. Entende-
se como intensidade a "carga máxima exercida" de ironia em um discurso, ou seja, o
quanto irônico é o texto. De acordo com o esquema de Hutcheon (Anexo A), a ironia
pode ser da reforçadora a agregadora, passando por outras funções como
"opositiva", "de ataque", etc. O que, de fato, é relevante a esta tese não é elencar
ou reafirmar as diversas finalidades da ironia. No entanto, faz parte do raciocínio
desenvolver análises de objetos do corpus para verificar seu efeito simulativo de
copresença de paródia por meio da ironia. Evidentemente, as funções de Hutcheon
irão compor esses exames, não como a base de orientação, e sim consequência.
No dia 27 de março de 2009, vésperas do "Dia da Mentira", um jornal foi
distribuído em Londres, em algumas estações do metrô. O impresso assemelhava-se
ao tradicional jornal de finanças Financial Times (Figura 15). Aparentemente, a
principal diferença está no nome, pois a publicação se chamava Not the Financial
Times (Figura 16). Mas ao ler o texto, percebe-se que o impresso é composto de
notícias fictícias. Um grupo de jornalistas ativistas publicaram este fake que parodia o
Financial Times.
78
Figura 16 - Folha capa do jornal Financial Times. O jornal Financial Times (Figura 15) teve a sua primeira publicação no ano de
1888 e é um dos mais tradicionais periódicos britânicos, vendido a executivos do
mundo todo. Já o Not the Financial Times é um único número, com cerca de 15.000
impressões, distribuídas gratuitamente nas bancas de jornais ou mão a mão. A
grosso modo, o jornal satiriza e critica os temas tratados no Financial Times.
Diferente do Sensacionalista, o Not the Financial Times não pretende despertar o
humor, mas a crítica ao sistema político e econômico praticado por governos e
grandes corporações. Desse modo, suas "matérias" são centralizadas em temas
como autoridades de países influentes, empresas, organizações multinacionais e
práticas não ecológicas.
A estratégia de oposição por meio das semelhanças pode ser verificada com
as características topológicas em comum entre os dois textos. O Not the Financial
Times é composto por três lâminas de um tipo conhecido de off-set que é o papel
jornal. A sua dimensão é a mesma das mídias impressas convencionais: 57,5cm por
73,5 cm. Cada lâmina possui apenas uma dobra, tendo o aspecto de um "grande
livro" de 12 páginas, assim como o Financial Times. A primeira característica que
aproxima os dois objetos é a cor do papel. Como o off-set comum é um produto
sujo, o jornal Financial Times adota um tipo que é mais limpo e de cor avermelhada.
Trata-se de um insumo mais caro, que eleva o preço de cada publicação e, assim,
coloca o produto em posicionamento privilegiado para um público de maior renda
como a classe de executivos que se interessam por assuntos de finanças. Com
79
exceção do FT (Financial Times), nenhum jornal conhecido internacionalmente utiliza
tal papel. Desse modo, a cor avermelhada destaca-o e faz dele um objeto fácil de ser
parodiado. O título “Financial Times” centralizado no topo da página usa a mesma
fonte e compõe igual logomarca do texto-base. Porém, ao lado, em caixa alta e
corpo 12, está escrito "Not the". Essa negação serve como a primeira marcação
estratégica para o enunciatário compreender o texto como de copresença, ou seja,
como algo que se refere a outro. Mas a cor do papel e o título vão na contramão do
"Not the" e podem fazer com que esta "pista" seja ignorada. O leitor, levado pela
semelhança estética, talvez inicie todo o processo não interpretando o Not the
Financial Times como simulação. Logo abaixo do título, há uma segunda marca da
simulação. O jornal é datado como sendo do futuro: Wednesday April 1 2020/free
(Quarta-feira, 1º de abril de 2020/Grátis)27. Com isso o enunciatário poderá, então,
compreender que se trata de ficção, porque as notícias "são" do futuro.
Normalmente, em um material jornalístico, o texto dá-se no pretérito perfeito do
modo indicativo, ou até no presente, quando o acontecimento ainda está em
andamento. A data de um jornal sempre é atual e nunca no futuro, pelo simples fato
de ser impossível a coleta de informações do "amanhã". No caso do Not the Financial
Times, o tempo é futuro, o enunciatário é levado ao ano de 2020, e esta fratura
promove um estranhamento capaz de despertar a dúvida sobre o valor de verdadeiro
do impresso.
27 Tradução livre
80
Figura 17 - Folha capa do jornal Not the Financial Times.
Frequentemente, o Financial Times apresenta, logo abaixo da logomarca e
data, manchetes de matérias que são de grande apelo, incluindo, muitas vezes, fotos
de autoridades e executivos. Esse destaque é copiado no Not the Financial Times,
mas de forma irônica. Ao contrário de fotos de pessoas populares no meio das
finanças, o fake jornal reproduz a imagem do personagem de desenho animado de
comédia, Homer Simpson. Vale ressaltar que, de acordo com o programa seriado, a
figura de Homer é a de um irresponsável, fanfarrão, desequilibrado, personalidade
que não é relacionado em nada com o mundo das finanças e produz um efeito
irônico.
Ainda nessa sessão de "evidência", o jornal simulativo acrescenta: All the fun
of the future, without the pain of living there (“Toda a diversão do futuro, sem a dor
de viver nele”). Esta frase é mais uma pista de que o conteúdo do jornal é
diferenciado, o destinador manipulador alerta ao destinatário que irá diverti-lo com
as notícias do desastroso futuro.
Manchetes questionam política, economia e comportamento social. Uma
matéria afirma que com a criação, em 2018, de Kanaan, novo país que "incorpora
todo o território anteriormente conhecido como Israel", houve um declínio do
antissemitismo. Blair pilgrimage continues ("A penegrinação de Blair continua") é a
manchete do texto dando conta de que o ex-primeiro ministro britânico Tony Blair se
converteu ao catolicismo e mostra-se, "moralmente perturbado por muitos aspectos
81
de seu governo, principalmente seu papel na invasão norte-americana do Iraque em
2003". Por causa desses acontecimentos, como uma forma de expiação, Blair decidiu
fazer uma peregrinação descalço de Londres ao Vaticano. As notícias do futuro estão
sempre relacionadas com o presente, porque os fatos atuais são os objetos da crítica
proposta pela paródia do Not the Financial Times.
Ainda no ano de 2020, uma "corte do clima" julgou executivos de grandes
corporações com a acusação de "envenenar a atmosfera"; o presidente da
"Confederação das Indústrias Britânicas" recebeu o prêmio Nobel da Paz por guiar o
país a práticas transparentes e ecologicamente responsáveis. Tal modelo de notícia
fictícia promove uma reflexão dos atos desses personagens em seu tempo. O Not the
Financial Times diferencia-se, essencialmente, do Sensacionalista, porque não há
uma organização voltada para o humor. A ironia sem o riso produz um efeito mais
intenso de protesto.
Como uma paródia de um jornal inteiro, o Not the Financial Times possui
anúncios fakes também. Vale destacar o da empresa americana Ford, que diz no
título: I want my SUV... ("eu quero meu SUV"). A propaganda possui um imagem de
um carro se movendo entre montanhas rochosas, sem neve e a seguinte frase
complementa a chamada: Who needs Himalayan snow? ("Quem precisa de neve do
Himalaia?"). Fica evidente, o protesto ao aquecimento global provocado pela ação do
homem.
Outro anúncio publicitário fictício que se configura como protesto é o da
empresa energética E-on. A chamada Always responsible ("sempre responsável")
está em corpo 36, logo acima da figura do diretor da empresa, que está sorrindo.
Abaixo da chamada, inicia-se com to our interests ("ao nosso interesse") uma cadeia
de frases (em tamanho menor) que provoca uma ruptura no valor de "confiança"
que a leitura da chamada sugere. A cadeia continua com “... to our directors”, “... to
shareholders”, “... and to the planet”, “In that order”. De acordo com o jornal, a
responsabilidade da empresa está, na verdade, voltada para seus interesses,
diretores, acionistas e, por fim, para o planeta.
82
Figura 18 - – Anúncio da E-on, recortado da página 04 do jornal Not the Financial Times
Ao longo do impresso, várias matérias discorrem sobre meio-ambiente,
disputa por fontes energéticas, guerra, temas que permite a reflexão de como seria
sobreviver em um mundo com tantas notícias desastrosas. Esse dispositivo propõe
reflexões sobre o próprio comportamento humano, objetivo central dos seus
criadores.
O Not the Financial Times, como simulação de copresença paródica irônica,
retoma um texto que é reelaborado com o propósito de crítica social. Esse mesmo
mecanismo é utilizado pelo Sensacionalista para promover o humor e até a reflexão.
A diferença entre as semelhanças do texto e do texto-base é o que permite à ironia
exercer tais funções como a dessacralização dos valores contidos no objeto
parodiado. A paródia renova por meio do seu canto paralelo e "é, ao mesmo tempo,
duplicação textual (unifica e reconcilia) e diferenciação que coloca em primeiro plano
a oposição irreconciliável entre textos e o mundo" (HUTCHEON, 1985, p.129).
2.3.2 Simulação paródica radical
Para que a ironia resulte em humor, crítica, protesto, subversão ou qualquer
de suas funções, é necessário que seja apreendida pelo enunciatário como tal. Uma
paródia literária irônica, por exemplo, pode utilizar-se da alusão para definir as
marcas que o leitor deve seguir e compreender o sentido do discurso paralelo.
83
Todavia, percebe-se que há uma gradação da implicitude dessas pistas
deliberadamente expostas. Alguns trabalhos optam por se concentrar apenas nos
sujeitos com repertórios suficientemente adequados para constatar e entender o
efeito irônico, pressupostamente adotado pelo enunciador. O jornal Not the Financial
Times destaca suas marcas para que grande parte dos leitores verifique o protesto
sugerido. Porém, em alguns casos, a paródia irônica, estrategicamente, não acentua
os vestígios que possibilitam o seu reconhecimento, correndo o risco de tornar-se
trote. A esse tipo "arriscado" de fake denominamos simulação paródica radical. O
radicalismo está caracterizado pela implicitude das marcações empregadas na ironia.
A obra simulativa paródica radical não deixa de praticar o efeito irônico, mas o
camufla, de forma que os mais habituados com o repertório ou linguagem do
discurso específico podem deduzir a presença desse efeito polêmico. "Aceitamos que
há ironias como contrários, aceitamos que há marcas menos ou mais explícitas de
ironia, mas aceitamos também haver casos em que isso não parece tão claro assim."
(SEIXAS, 2006, p. 109).
A teórica Linda Hutcheon, em seu livro Irony's Edge: The Theory and Politics
of Irony (HUTCHEON, 1995), descreve alguns trabalhos que se encaixam na prática
radical da ironia. Beauvais Lyons, professor de artes da Universidade do Tennessee,
produziu uma série de simulações que, gradualmente, a cada exibição criada, desafia
mais ainda o expectador a entender o efeito da ironia implícita. O seu primeiro
projeto foi a invenção de uma civilização antiga do norte da Turquia, denominada de
Arenot. O nome que remete à negação é a primeira marca da ironia. Lyons exibiu
restos arqueológicos e documentações como vasos de cerâmica feitos à mão, pratos
litografados, etc. Para Hutcheon (1995, p. 161), o segundo projeto de Lyons foi
menos evidente quanto as marcações. Na exposição The excavation of the Apasht
(1980-83), Lyons teve ainda mais cuidado em camuflar qualquer evidência de ficção
para que a exposição fosse entendida como ironia apenas por aqueles que têm
conhecimento técnico suficiente para isso.
O elaborado processo de imaginar e, em seguida, fabricar e documentar uma cultura imaginária em toda a sua complexidade através de uma ampla variedade de mídias depende da menção de reais achados arqueológicos e sua exibição para acionar a atribuição da ironia. Mas, para que isto ocorra, o
84
estado ficcional do Apasht deve primeiro reconhecido pelo intérprete. Para mim, as complicações (ou sutileza) ocorre quando precisamente o que fornece as documentações com a sua aparência de autenticidade é o que desencadeia a atribuição de ironia. (HUTCHEON, 1995, p. 162).28
Uma exposição arqueológica é um palco em que os objetos devam ser
factuais, representem acontecimentos, características da cultura, comportamento de
um povo. Em outras palavras, são artefatos e, por pressiposição, não devem conter
ficcionalidade. Quando a ficção é inserida de forma demasiadamente camuflada, os
observadores não percebem a ironia, e não atentam que os objetos são forjados,
fabricados para compor uma instalação irônica.
As principais formas de marcar a ficção no trabalho de Lyons são os exageros
nos dados históricos ("Apasht é a civilização mais antiga de todas") e as contradições
deliberadas (os glifos são caracterizados como "indecifráveis"; no entanto,
apresentam imagens claras de rostos, genitais e mãos com dedos cruzados). Nessa
arqueologia ficcional, o que Lyons procura destacar como ponto de reflexão é o
"conflito entre arte e artefato, ficção e fato" (HUTCHEON, 1995, p.165). Trata-se de
um debate a respeito da prática da arqueologia e a sua autenticidade que é posta
sob suspeita, tendo em vista que o modo de manifestação (exibições, por exemplo) é
um discurso já habitual; portanto, assim como o jornal, solo fértil para o fake. "Será
que este vaso da civilização Apasht é realmente autêntico?" - eis um dos
questionamentos que, de modo provável, Lyons quer que o público faça diante das
suas exposições.
Figura 19 - Afresco em relevo que representa a luta da deusa Tamoot contra uma peste. Peça da exposição Reconstruction of an Aazudian Temple (1993) de Lyons.
28 Tradução livre.
85
Vários outros artistas fabricam objetos como se fossem achados arqueológicos
para promover em uma simulação paródica. Inês Raphaelian, desde ano de 1993,
vemm trabalhando com exposições forjadas. O projeto é denominado de B.C. Byte
Series. As siglas "B.C" datam um período de "antes de Cristo" (Before Christ), como
uma suposição de que o material a ser exibido é antigo, mais de 1993 anos. Por
outro lado, há uma fratura no percurso, quando ler-se o restante do nome. A palavra
"byte" é utilizada como unidade para medir o tamanho (espaço virtual) de um dado
numa seção de armazenamento, como um HD (Hard Disc) dentro de um
computador. Então, há esta discordância: em se tratando de uma exibição
arqueológica antiga, como poderia ter alguma relação com os bytes computacionais?
É nesse elo que está concentrada a ironia proposta por Raphaelian. Variados
componentes do CPU (Central Processing Unit) de um computador ou, até mesmo,
ícones utilizados na composição gráfica do ambiente virtual dos sistemas
operacionais mais populares (Windows) são representados como glifos ou símbolos
de uma civilização do passado. Afrescos apresentam, em baixo relevo, o formato de
conectores eletrônicos. Cilindros apresentam códigos binários (Figura 19),
assemelhando-se aos discos utilizados para armazenar dados, como DVD e os
próprios HDs. Peças de cerâmica recriam a forma do mouse, instrumento essencial
para o acesso a qualquer sistema computacional. Chips em resinas reproduzem a
aparência de âmbar (Figura 19). Placas deterioradas representam pedaços de
murais, contendo comandos de softwares. Percebe-se que as peças foram
produzidas para aparentar ser de outra época. Elas se mostram quebradas (Figura
20), sem cor, como se estivessem comprometidas pelo tempo, assim como fósseis
ou vestígios de um passado distante.
Figura 20 - À esquerda, imagem de cilindro com códigos binários (esquerda). À direita, imagem de chip em resina, imitando o âmbar.
86
Figura 21 - Pedaços de parede que formam palimpsestos que escondiam uma linguagem de software.
A obra B.C. Byte Series procura produzir também um contexto para alimentar
a ironia criada em volta das peças arqueológicas do "futuro". A instalação, além de
exibir todos os objetos em vitrines (Figura 21) , com título e descrição, assim como
nos museus tradicionais, fornece informações da expedição em que se encontrou tais
"restos arqueológicos". Numa das paredes foi colocado um quadro que exibe um
texto, supostamente da agência de notícia Reuters, que conta a história da
descoberta dessas peças. A redação diz que tudo aconteceu em Itaparica, na Bahia,
quando uma mulher, que catava conchas, quebrou o seu dedo numa placa
enterrada na praia. Na sala de emergência do hospital, a mulher contou o ocorrido
para o médico Raimundo Santo "Zé" da Silva, que fazia parte do Conselho de
Turismo e Desenvolvimento. Dr. Raimundo chamou a diretora do Museu de
Arqueologia de Salvador, Dr. Andreia Gardenia Maia, que, percebendo a importância
da peça, tratou de entrar em contato com o professor Vincent Agustinovich ,
pertencente a Universidade de Nova York, e que liderou a expedição. O docente
ainda acrescenta: "É uma ameaça a tudo o que sabemos [...] Esta é claramente uma
87
civilização muito avançada"29. Na verdade, todos esses personagens foram
produzidos para criar uma narrativa ficcional que recebe o aval da veracidade a que
os museus aspiram. Há, de fato, uma simulação porque parodia um formato usual na
arqueologia para promover uma ironia situacional que, embora apresente marcas
definidas, também constrói um sistema organizado de índices para certificar a
veracidade do material colhido. Desse modo, o conjunto de estratégias para atestar
os fatos (aparentemente não ficcionais) põe em risco a manifestação da ironia,
caracterizando a simulação paródica radical.
Construo uma falsa realidade a partir de objetos reais que são falsos, de situações reais que são ficcionais estabelece o discurso, as pessoas olham, vêem e não param para analisar se aquilo é verdade ou mentira. Então, a gente tem uma falsa ilusão de que aquilo é uma realidade, porque o discurso já está estabelecido. O discurso já existe como uma forma, um formato que nós absorvemos com maior facilidade: a construção de um museu, de um espaço sacralizado que dá veracidade ao fato, constrói a história [...]. (RAPHAELIAN, 2011)30
A ironia de B.C. Byte Series relaciona a obra de arte com o artefato. Os
objetos "apresentando" marcas do tempo fazem parte desse jogo que aponta a arte
como objeto científico. Por outro lado, é evidente que Raphaelian busca uma
reflexão sobre como o museu sacraliza os objetos que exibe. A ironia provocada pela
inserção de produtos da recente história humana na linguagem arqueológica
promove uma reflexão que insinua a fantasia dentro de um ambiente científico. B.C.
Byte Series e instala questionamentos sobre os fatos históricos citados pelos
museus.
"O museu estabelece a história ou o discurso a partir da interpretação dos objetos.
Então eu também me apropriei da forma do museu de apresentar esses objetos e
torná-los de uma certa maneira, verídicos, aceitos como reais." - afirma Inês
Raphaelian (2011). Desse modo, por meio da contradição ao posicionar produtos
tecnológicos como artefatos, destaca ao público sua ironia que subverte o próprio
formato parodiado. Outra crítica que pode ser percebida no trabalho de Raphaelian é 29 Todas as fotos, textos referentes às exposições de Inês Raphaelian não foram tirados de nenhum livro ou material bibliográfico. Mas foi coletado através de um informal CD-ROM portfólio, concedido pela própria autora. 30 Fragmento de transcrição de depoimento em vídeo on-line.
88
a respeito de conceitos sobre a cultura. A rápida mudança, atualização, substituição
dos aparatos tecnológicos, juntamente com a velocidade da informação pelo meio
virtual, provocam questionamentos sobre o que é novo e velho na relação humana.
Raphaelian embalsama o recente (chips foram criados em 1971) dentro de uma
"forma" característica de restos arqueológicos, vestígios de civilização do passado.
A organização dos objetos, sua produção semelhante a peças da arqueologia,
textos que embasam todo o processo comprovam que a obra tem como vítima de
sua ironia um público seleto, aquele que frequenta museus e tem contato com a
informática. Esse target tem um repertório capaz de reconhecer a ironia, e tal
reconhecimento é ao mesmo tempo sua causa e origem. Por outro lado, nem todos
serão capazes de ignorar a complexidade deliberadamente montada para promover o
efeito irônico e podem enganar-se, ao não entender os artefatos como arte recém-
fabricada, uma simulação. Sendo assim, a polêmica que põe em questão o processo
de autenticidade provocado pela prática museográfica só alcança a alguns, o
restante é vítima de um trote. A ironia não é destacada o suficiente para, em geral,
ser percebida, caracterizando o que denominamos de simulação paródica radical.
A ironia radical não é apenas aplicada de forma situacional, como os exemplos
descritos anteriormente. A revista americana Esquire, embora tenha sido fundada no
Figura 22 - Imagem da B.C. Byte Series no SESC POMPÉIA / SP. Objetos e peças são expostos assim como nos museus.
89
ano de 1933, não segue muito a linha tradicional, procura utilizar o ficcional no
jornalismo de forma criativa para contar os fatos. Em novembro de 1996, a Esquire
estampa na sua capa a foto de uma atriz e coloca a seguinte manchete: "Esqueça
Gwyneth...esqueça Mira...Aqui está a próxima garota do sonhos de Hollywood"
(SHERILL, 1996). Dentro, a matéria de seis páginas, com muitas fotos posadas ou de
paparazzi exibindo a agitada vida de celebridade da atriz. A revista conta sua história
de vida como os países em que morou após o pai divorciar-se da mãe. Escreve seus
casos românticos com atores e produtores famosos (David Schimmer e Quentin
Tarantino) e ainda revela sua agenda de filmes com diretores consagrados, como
Woody Allen e Bernado Bertolucci. Entre outros detalhes do seu profile não há
indicações da ficção. Assim como o jornal Not the Financial Times, a matéria de
Martha Sherrill na revista Esquire insere dentro de um discurso voltado para a não
ficção, um conteúdo fantasioso. A diferença entre os dois objetos de estudo é que o
primeiramente citado oferece indícios de que se trata de uma ironia.
Figura 23 - Capa da Revista Esquire, de novembro de 1996. Allegra Coleman, a suposta nova estrela do cinema, é interpretada por Ali
Larter, uma atriz e modelo ainda pouco conhecida na época. O texto não apresenta
qualquer pista de que se trata de ironia. Os poucos que conhecem bem o perfil e
90
trabalho das celebridades envolvidas na matéria podem desconfiar. Caso contrário, o
efeito irônico passa despercebido. A ironia é suplantada pelo radicalismo do trote,
que se revela de forma indireta, com acontecimentos extratexto. Depois de
receberem ligações de agências de atores à procura de Coleman, o editor da revista
relatou que a matéria era ficcional e estava destinada a criticar diversas revistas que
se concentravam apenas em descrever a vida de celebridades. De acordo com
Edward Kosner, editor chefe, a matéria é " uma brilhante paródia de celebridades
inúteis sem cérebro que preenchem a mídia atualmente"31 (“a brilliant parody of the
brainless celebrity fluff that fills the media these days.”).
Diferente do Sensacionalista, a matéria de Sherrill teve apenas um objetivo,
que foi a crítica da própria mídia. Nas categorias funcionais dispostas por Hutcheon
(1995, p.45), seria "atacante" ou de "oposição", porque é corretiva e transgressora
ou mesmo auto-reflexisiva.
Depois do sucesso que Allegra fez, a atriz Ali Larte participou de filmes
importantes de Hollywood (House on Haunted Hill , American Outlaws , and Legally
Blonde) e séries de impacto na televisão (Heroes). A sua criadora, Martha Sherill,
deu continuidade à ironia radical e escreveu um livro em que Allegra é a
protagonista: My Last Movie Star (2003).
Na verdade, as bordas que separam os dois gêneros aqui descritos, a
simulação paródica irônica e a simulação paródica radical são tênues; por muitas
vezes, nem podem ser consideradas isoladas, por mias radical que seja, a simulação
também se manifesta irônica. Uma peça que possa parecer de fácil reconhecimento
irônico, torna-se radical como resultado do repertório limitado de quem vai
interpretar o determinado tema abordado. Talvez um bom exemplo seria a matéria
Senna Vive, redigida por Reginaldo Leme, em abril de 2012. O texto discorre sobre a
vida do piloto de automobilismo que é ídolo no Brasil desde a década de 1980. No
entanto, a biografia ignora sua morte em 1994 e prossegue como se ele ainda
estivesse vivo.
31 Trecho de matéria disponível em http://meredithmagstudies.wordpress.com/2010/02/10/notorious-magazines/. Acessado em: 08 jun. 2012.
91
A matéria foi publicada na revista Alfa com doze páginas, sendo que as duas
primeiras compõem uma pintura32 em que se exibe o carro destroçado pelo acidente
que vitimou o piloto, mas, ao contrário do que aconteceu, Senna está em pé, ileso,
escapando com vida. No canto inferior direito, a clara pista do trabalho ficcional:
"Senna vive: E se ele saísse daquele carro sem um arranhão? ALFA pediu a
REGINALDO LEME que imaginasse Ayrton hoje. E o resultado é uma história que
adoraríamos ter visto" (LEME, 2012). Apesar desta primeira marcação, o
reconhecimento se dá por meio da popularidade do protagonista, por se tratar de
uma celebridade (mais 250 mil pessoas acompanharam seu velório). Informações da
carreira do piloto são imaginadas como se estivesse em vida: conquistou 100 poles,
70 vitórias e seis mundiais33. Aposentou-se em 1999, foi presidente da Federação de
Automobilismo Mundial, comprou uma equipe de Fórmula-1, constituiu família,
escreveu livros, etc. Alguns depoimentos na matéria foram realmente ditos pelo
piloto e outros, criados, como aquele no qual ele mesmo comenta o acidente de
1994, que na realidade o matou: "E pensar que passei por aquilo sem um mísero
arranhão". O texto continua detalhando momentos de campeonatos que Senna
conquistou apenas nessa narrativa ficcional. No ano em que citada matéria foi
publicada, celebraram-se os 18 anos da morte de Ayrton Senna. Eventos e
homenagens ocorreram não apenas no ambiente editorial. Senna vive é mais uma
paródia que homenageia. A ironia está na inclusão da ficção em um suporte
tradicionalmente restrito ao não ficcional. De fato, ao longo das 12 páginas, com
exceção das primeiras frases que contam da solicitação feita ao autor da matéria,
apenas uma nota de rodapé, em corpo de letra inferior a 10, diz: "As declarações de
Senna foram inspiradas em entrevistas reais". Apesar de existir essas duas
marcações, o enunciado esconde, como um trote, a ficção. Percebe-se a estratégia
de não manifestar ou destacar no longo texto, a ironia como numa simulação
paródica radical. Por outro lado, a popularidade do personagem, faz com que os
dados e informações produzidas, forjadas pelo enunciado, sejam contestadas. Desse
32 Alone, Oleg Konin, 1995. 33 Ayrton Senna conquistou 65 poles, 41 vitórias e 03 campeonatos.
92
modo, a diferença entre simulação paródica irônica ou radical não se faz tão
claramente.
Vale ressaltar que a ironia, apesar de não ser contestadora quanto ao tema, é
transgressora quanto ao suporte jornalístico, pois oferece uma perspectiva ficcional.
A simulação radical como o trote são tipos que se aproximam e confundem-se
com a falsificação, discutida no primeiro capítulo. O projeto Assina: do texto ao
contexto, que fez parte da tese de doutorado de Cícero da Silva (2006), examina
aspectos do direito à propriedade, assinatura, autoria relacionado com a
autenticidade. O dispositivo do trabalho consiste na disseminação de homepages
ficctícias com conteúdo supostamente científico. Os textos de pessoas famosas como
Deleuze, são publicados com e sem seus nomes (assinaturas). O objetivo é atestar a
hipótese de que o "nome" se está tornando uma "marca" duvidosa na internet. O
projeto possui mais de 50 endereços de sites, com quase 20 institutos de pesquisa
científica fake (BEIGUELMAN, 2004). Os textos são gerados a esmo e
automaticamente traduzidos para o espanhol, com o objetivo de promover mais
credibilidade. Em algumas dessas "revistas" existe até a chancela ISSN, que, no
entanto, em nada se relaciona com o cadastro de obras, mas apenas o nome
fantasia: Interstellar Synchronism Setup Noise. Pessoas enviam textos para serem
publicados por conta dessa marca. Assim como Alan Sokal (1996), que forjou um
artigo publicado numa revista científica, Cícero não tem nenhuma intenção em
revelar sua ironia. Desse modo, não permite pistas ou marcações. Pelo contrário, seu
projeto consiste em provocar uma confusão por meio do engano para alertar o meio
científico do comportamento da citação inconsequente de publicações irresponsáveis
sem referência promovida frequentemente, pela internet. Cícero (apud BEIGUELMAN,
2004) confirma que “as pessoas não lêem as informações ou os detalhes. Ficam
imersas nesse mundo cheio de textos e mais textos e somente se apropriam daquilo
que ‘serve’ para elas em determinado momento. Não há mais pensamento ou
reflexão sobre o dito no escrito”.
E, assim, por ter como objetivo de enganar, o projeto de Cícero é um fake de
falsificação e não uma simulação paródica irônica.
93
O fake foi classificado em dois extremos: falsificações e simulações. Esta
tipologia, produzida a partir de exemplos que vão da arqueologia até as artes visuais,
serão as bases para o estudo da produção fotográfica forjada, fabricada, ou seja, o
fake fotográfico.
3 O FAKE FOTOGRÁFICO
3.1 A autoridade realista da fotografia
Na Grécia antiga, Platão dizia (LICHTENSTEIN,2004, p.17) que a pintura está
afastada da verdade porque o pintor imita um objeto que já é, por sua vez, uma
imitação, uma imagem da ideia. Para o filósofo, a pintura era apenas uma imitação e
o seu realizador um impostor porque "imita a aparência das coisas, sem conhecer a
verdade delas e sem ter a ciência que as explica" (MACHADO, 2001, p.09). As
imagens seriam simulacros-fantasmas, representações vazias, falsas. "[...] a imitação
está longe da verdade e, se modela todos os objetos, é porque respeita apenas a
uma pequena parte de cada um, a qual, por seu lado, não passa de uma sombra" - A
república (Platão, 2000, p.5).
Por outro lado, anos depois, Aristóteles (2003, p.30), em defesa da imitação,
afirma que esta faz parte da natureza humana. O homem, por instinto, imita para
poder ter o prazer de obter novo conhecimento, distingue-se dos outros animais
também pela sua aptidão ao desenvolvimento da imitação. Desse modo, a
iconoclastia platônica é contrariada por Aristóteles ao assumir que o procedimento
criativo artístico é realizado de acordo com a mimese, que busca a reprodução do
real. Para o filósofo, os pintores têm como ofício recriar a realidade e sua imitação
não os distancia da natureza. Pelo contrário, ao imitar, a pintura torna-se
instrumento de conhecimento e prazer.
Outros filósofos (LICHTENSTEIN,2004, p.82) apontaram a pintura como
reprodução de algo verdadeiro ou real. Tertuliano, em sua obra Contra Hermógenes,
94
afirma que "se existem figuras, elas provêm, necessariamente, de objetos reais e
não de objetos sem consistência[...]". Sócrates conclui que "uma pintura é a
representação do que vemos". Desse modo, inicia-se um processo de emprego de
valor realista à imagem, como reprodução da natureza: "pintura deve ser a imagem
do que existe ou do que pode existir", disse Vitrúvio (apud LICHTENSTEIN,2004,
p.83). Então, as imagens, desde o início da sua prática, carregam consigo a tarefa de
corresponder ao mundo natural. O artista, ao criar a imagem, também está imitando
os traços dos objetos ao seu redor, do seu contexto e espaço. O ato de imitar, no
sentido de reproduzir, está relacionado ao de criar. " A imitação deliberada, humana,
da natureza, implica sempre desejo de criação concomitante ao desejo de
reprodução (e que frequentemente o procede)" (AUMONT, 1990, p.199). Durante
sua história, o homem procurou, por meio das atividades artísticas, promover essa
reprodução e, ao mesmo tempo, desenvolver sua necessidade de expressão (BAZIN
apud AUMONT, 1990, p.200). Entretanto, em determinado momento, essa
necessidade foi suprimida pelo desejo de uma correspondência absoluta do objeto
representado.
No século XV, na Itália, os artistas voltaram-se mais para as doutrinas
clássicas, das ideias realistas dos filosóficos gregos. Foi nesse período que a imagem
tendem a definir-se como icônica, ou seja, mais semelhante possível da realidade. O
iconismo na pintura – isto é, o efeito de objetividade – depende de técnicas
coincidentes com um máximo de abstração (teorias geométricas, teorias de cores,
etc.). Quanto mais se buscava o efeito de verossimilhança, mais se recorria a um
artifício que requeresse forte adestramento técnico.
Nessa época, deu-se a prática da perspectiva artificialis, que consistia em um
sistema que visava a fiel reprodução do espaço visto pelo homem. O objetivo
científico, de certo modo, era suplantar a representação para que esse "analogon"
passasse pelo próprio real (MACHADO, 1984, p.27). A pintura formada pela
perspectiva continha linhas imaginárias, perpendiculares à tela, que convergiam a
um ponto central, coincidindo com o próprio observador. Desse modo, certifica-se o
homem como centro, característica do humanismo tão difundido no período.
95
A necessidade humana da analogia absoluta começa a ser saciada com a
prática da perspectiva. O pintor, ao inserir a técnica, tem o propósito de tornar a
imagem mais próxima do real. No entanto, a perspectiva artificialis não passa de
uma ilusão especular, em que a realidade passa a ser compreendida mais ainda
através da imagem e sua profundidade.
Essa gênese automática desmantelou radicalmente a psicologia da imagem. A objetividade da fotografia lhe confere um poder de credibilidade ausente de toda obra pictórica. Sejam quais forem as objeções de nosso espírito crítico nós somos obrigados a acreditar na existência do objeto representado, efetivamente re-presentado, isto é, tornado presente no tempo e no espaço. (BAZIN apud MACHADO, 1984, p.36)
Com o surgimento da fotografia, a pintura, de certo modo, tornou-se livre do
fetiche do real. A atividade fotográfica promoveu uma objetividade que satisfez o
desejo da ilusão analógica. A semelhança do referente da imagem fotográfica e o
objeto retratado é próxima o suficiente para fazê-la mais crível que a pintura. Essa
similitude é tão eficaz que o ato fotográfico, particularmente, provoca efeitos
subjetivos diferenciados. Ao ter em mãos uma fotografia, o sujeito toma posse do
momento. De pronto, a primeira experiência tentadora da fotografia, em sua
popularização, foi o efeito de "embalsamar" pessoas, lugares, objetos e eventos. Por
meio das fotos, tudo ao redor pôde, de certa forma, ser objeto de consumo. Esta
impressão de imortalidade é resultante da eficácia de potencializar uma das
competências mais complexas e, ao mesmo tempo, comuns do ser humano, que é a
imaginação. Essencialmente, o homem é capaz de armazenar momentos por meio da
memorização e assim compor imagens em sua mente. A fotografia, por sua vez,
oferece esse resgate na folha de papel ou screen.
A semelhança da fotografia provoca uma ilusão de uma réplica exata, que
copia todas as propriedades do objeto retrato. Essa imitação criou um hábito de
analogia que está arraigado no comportamento social. Há muitos espectadores que
consideram qualquer imagem do cinema documental, por exemplo, como um
fragmento do real. Fotógrafos ainda defendem suas obras como registros da
realidade, sem mediação. E, assim, qualquer manifestação artística que não procura
reproduzir os traços dos elementos é considerada pela maioria dos observadores
96
como deturpação (AUMONT, 1990). É evidente que a objetividade da fotografia faz
dela mais crível que a pintura, mas esse valor é herança, ao longo da história da
arte, do desejo da ilusão representativa ideal. A necessidade de analogia faz da
imagem fotográfica um perfeito instrumento para captar elementos da realidade
visível de acordo com uma perspectiva ingênua de que essa captura fosse possível, o
puro iconismo.
Uma fotografia é considerada realista quando produz informações pertinentes
do objeto retratado. O problema está no critério de que somente a mais semelhante
obra fornece tal pertinência. Por exemplo, uma tela cubista pode oferecer tantas
informações sobre pedofilia que uma foto. Desse modo, as aparências não indicam
necessariamente quão realista é a obra. A característica do realismo em uma
fotografia difere do aspecto realista que ela possa ter. O realismo fotográfico de que
tratamos aqui faz parte de uma ilusão de que a imagem possui as mesmas
expectativas do objeto registrado. A apreensão desse realismo se faz por meio da
"probabilidade de confundir a representação com o objeto representado"
(GOODMAN, 1976, p. 34).
Entretanto, o realismo deveria ser entendido não como analogia absoluta, mas
consoante com o potencial simbólico da imagem. Uma figura é realista quando
oferece informações pertinentes de acordo com o "sistema padrão" adotado em
determinado período. Uma representação realista, a grosso modo, é uma questão de
convenção.
Uma imagem que, sob um sistema (desconhecido) é uma representação
correta, mas altamente irrealista de um objeto pode, em outro sistema (o
padrão) ser uma representação realista, [...]. Só no caso de informações
precisas produzidas sob um sistema padrão, a imagem representará o
objeto corretamente e literalmente. (GOODMAN, 1976, p.38)
A produção de imagens buscou, durante muito tempo, por meio de avanços
tecnológicos do daguerreótipo até as câmeras de celulares, uma conexão ideal entre
signo e designado. Desde a antiguidade, teoricamente, a linha que distingue a
97
imagem da coisa real é tênue. Povos primitivos consideravam a figura e seu objeto
como o mesmo elemento, apenas se manifestavam de formas diversas, mas
compartilhavam da mesma força de espírito. Talvez surgisse daí a crença nas
imagens religiosas.
A máquina fotográfica desde a sua invenção, levou adiante a ideia da
"captura", seja do real "tal como ele é", seja por meio de uma perspectiva. A
verdade é que a prática fotográfica com isso, se torna uma reprodução automática
da realidade, um aperfeiçoamento para o propósito de mímese tão cobiçado na
história da arte e para os que acreditam na analogia perfeita. E como é um recorte
"automático", significa dizer que é dispensada a intervenção crítica do homem, como
diria Bazin (1991). A foto seria um resultado natural, sem a intencionalidade ou
estilização pessoal do operador. E é essa ideologia que se sobressai, tendo em vista
que a pintura levou anos para adquirir sua legitimidade, enquanto a fotografia, desde
sua criação até os dias de hoje, não sofre com críticas severas.
De fato, está na tradição fotográfica o efeito de verdade, mesmo diante de
diferentes abordagens sobre o aparato, operador ou referente. Arlindo Machado
(1984) dá o exemplo de antropólogos que fazem uso da fotografia para registrar a
vida de certas comunidades, "crentes de que a câmera favorece uma abordagem do
primitivo muito mais imparcial e isenta". Na verdade, há diversas características
desse processo que já intervêm no comportamento de quem está diante das
câmeras. Essa polêmica é muito comum no cinema documental, mais precisamente
no denominado cinema direto. Dito como o formato imparcial, no documentário, ao
passo que o cinegrafista enquadra e dá um close em determinado movimento do
objeto, ele está escolhendo e julgando os mais importantes. O tipo de lente utilizado,
também é uma maneira de intromissão, por exemplo. O que acontece, tratando-se,
principalmente, de imagem documental34, é que se propaga a ideia de filmar "tal
como o objeto é". Contudo, deveria ser capturar "um aspecto do mundo tão normal
quanto possível, visto por um olho inocente" (GOODMAN apud AUMONT, 1990,
p.202).
34 A câmera como olho que registra o real é propaganda de muitos documentaristas. Um bom exemplo é nome do tradicional festival internacional de Documentários que ocorre no Brasil: "É tudo verdade".
98
Faz-se necessário ao espectador deixar de lado essa postura ingênua,
distanciar-se, promover uma reflexão para entender a foto não como algo
automático, sem presença e intenção do operador. Na verdade, a fotografia é um
produto deliberadamente pensado, desde o tipo de lente até o filtro,
enquadramento, ângulo, tema, etc. Embora seja uma linguagem bastante comum,
tecnologicamente desenvolvida, a imagem fotográfica não é uma fatia da realidade.
Esta é e sempre será mediada. Com efeito o real é modificado, recriado, reciclado
não só nos meios fotográficos e cinematográficos. E a simulação paródica está
inserida nessa construção do real.
Por outro lado, há sempre a questão tão discutida do índice.
Enquanto uma pintura, mesmo quando se equipara aos padrões fotográficos de semelhança, nunca é mais do que manifestação de uma interpretação, uma foto nunca é menos do que o registro de uma emanação (ondas de luz refletidas pelos objetos) - um vestígio material do seu tema, de um modo que nenhuma pintura pode ser (SONTAG, 2004, p.170).
Apesar de o ato fotográfico ser mais difundido como reprodução da realidade,
também é defendido como um vestígio, uma marca, indicação de que aquilo
fotografado existe ou existiu. A teoria de Charles Sanders Peirce (DUBOIS, 1994)
aponta a fotografia como índice, ou seja, possui uma conexão física por conta do seu
processo, que compreende a exposição de luz sobre as chapas de sais de prata. De
certo modo, Peirce defende que um retrato, por exemplo, carrega consigo um pouco
da natureza. Vale abrir parêntese para os que não compartilham a ideia de que a
fotografia é o elemento mais indicial das artes visuais. O artista e teórico Joan
Fontcuberta (2001) afirma que a classificação de Peirce é excessiva e superficial,
tendo em vista que, através do procedimento de produção, pode-se indicar outros
fenômenos artísticos que se manifestam como índice, assim ou mais que a
fotografia. Ele dá o exemplo de um desenho qualquer feito com a fricção de um
objeto sujo de pó de grafite com papel - "O traço seria uma unidade linguística cuja
articulação nos permitirá criar estruturas de ordem muito mais complexa mas que
carecia de intenção de representação por si só." (FONTCUBERTA, 2001, p.80). O que
Fontcuberta ignora é que, mesmo tendo o processo quase a mesma intensidade de
99
conexão física com a natureza, a fotografia fornece traços mais semelhantes com o
objeto imitado que a xilografia.
Por outro lado, há outros teóricos (Dubois, Metz) que afirmam ser a foto um
índice além do vínculo químico. Defendem que ela possui um a continuidade física e
indica a existência atemporal do seu referente - a fotografia carrega o referente e
também o contexto histórico do período em que foi retratada. Assim como a pintura,
a prática da fotografia oferece dados do comportamento de uma cultura de outra
época. Vários estudos de moda são feitos por meio da análise fotográfica do
passado.
Roland Barthes escreveu um livro, A câmara clara (1984), em que busca a
"essência" da fotografia por meio da análise de vários retratos do seu tempo ou
mesmo do passado. Barthes destaca a presença de um referente que impregna a
fotografia. Explica que os raios luminosos rebatidos do objeto são revelados na
película. “A foto é literalmente uma emanação do referente" (BARTHES, 1980,p.121).
Acrescenta que a essência da fotografia está no noema "isso foi", que toda foto
possui um referente e é a prova de que este, realmente, existiu.
[...] na fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado. E já que essa coerção, só existe para ela, devemos tê-la, por redução, como a própria essência, o noema da Fotografia. (BARTHES, 1980,p.115).
Barthes, como diria Dubois (1994, p.49), cai na armadilha tentadora do culto
da referência pela referência, não admitindo um referente metafórico, que muitas
vezes não foi nem precisa ser fotografado para compor uma fotografia. Com tantos
avanços tecnológicos, a tal representação do referente, verificada pela caracterização
do índice por meio da conexão química, é polemizada com a criação dessa realidade.
As simulações estão mais presentes nas manifestações midiáticas a cada dia. Assim,
a questão do referente, como algo que existiu, "esteve lá", pode ser questionada.
Martin Lefebvre, atento às possíveis críticas à fotografia como índice, discorre
sobre o equívoco de certas abordagens sobre a semiótica peirceana que descarta o
valor indicial da produção digital de imagens. Lefebvre (2007) contesta, definindo
100
dois tipos de índices: índice direto e índice indireto.35 O índice direto manifesta-se, ao
passo que o objeto se mostra como “causa eficiente” do signo. Por exemplo: a
dilatação do mercúrio por força do calor exercido sobre eles. No índice indireto, a
causa é denominada como “formal”. O objeto é apresentado indiretamente através
da “causa eficiente”. Um exemplo no cinema, encontra-se no trabalho produzido pelo
canal de televisão Discovery Channel chamado Vôo 1907 (Alan Tomlinson,2007), a
respeito de um desastre aéreo ocorrido no Brasil. Uma das cenas do filme foi
construída virtualmente através da modelagem em 3d. A sequência é resultado da
mediação do operador digital, o qual reconstituiu o cenário (como um pintor a uma
pintura). Dessa forma, o objeto (a cena) manifesta-se através de uma “causa
eficiente”, ou seja, indiretamente. A dúvida quanto ao caráter de índice dessas
imagens é provida de sua existência como fato real. Lefebvre, baseado na teoria de
Peirce, explica que a fotografia, por si só, implica uma direta ou genuína relação
existencial com o objeto original.
Goodman (1976) também defende o referente por meio de uma simples
distinção em que denomina as imagens inexistentes no mundo real como fictions;
por exemplo, a figura de um unicórnio. As imagens fictions possuem referente, mas
o processo não envolve a representação diante da presença desse referente. Sabe-se
que o unicórnio é um cavalo com único chifre. Então, mesmo sem ter o referente
para ser representado em sua presença, a imagem do animal pode ser realizada por
meio de referentes secundários. Em outro caso, "uma figura pode denotar um
homem para representá-lo, mas não precisa denotar nada para ser representação de
um homem" (GOODMAN, 1976, p.24). Desse modo, um homem que nunca existiu,
por meio de traços já convencionados como os de um humano do sexo masculino,
representa um homem. Sendo assim, uma escultura de bailarina pode ser apenas
uma obra que exibe uma bailarina, indefinida, não específica como personagem, mas
tem como referente a figura de mulheres bailarinas existentes. Ainda assim, dentro
da possibilidade da pintura, pode-se dizer que o cubismo seria um forma de
35 Charles Peirce distinguiu dois tipos de índices: designators e reagents. Ambos correspondem, respectivamente, a índice indireto e índice direto de acordo com Lefevbre. Tal distinção de Peirce pode ser encontrada em Collected Papers of Charles Sanders Peirce, 8. 369, n.23 (Cambridge: Harvard University Press, 1931-1935)
101
metaforizar a imagem. De certo modo (ignorando as possibilidades de manipulação),
pode até ser que não haja “fotografia sem que um referente pose diante da câmera
para refletir para a lente os raios de luz que incidem sobre ele" (MACHADO, 1984,
p.158), e, como presumia Barthes, "a presença do objeto fotografado nunca é
metafórica" (MACHADO, 1984, p.158). Entretanto, com os avanços tecnológicos, as
simulações fotográficas oferecem as mesmas expectativas da pintura, como de uma
paisagem ou monstro, ou seja, referentes não reais no mundo natural, originados do
imaginário. Há casos interessantes de manipulação fotográfica que têm como
referente um evento que não aconteceu, mas com pessoas (referentes secundários)
reais. Como é o caso da propaganda da marca de roupas Benetton.
Depois de onze anos sem fazer grandes campanhas, a empresa Benetton
optou por uma estratégia pouco comum nos meios publicitários, mas recorrente da
marca, que é a polêmica. Para chamar atenção do público mais jovem, criou
situações (simulações) em que líderes mundiais se beijam na boca: Barack Obama
beija Hugo Chávez e o presidente chinês Hu Jintao; o premiê israelense Binyamin
Netanyahu beija o líder palestino Mahmoud Abbas; o papa Bento XVI beija o egípicio
Ahmed el Tayeb. Desconsiderando todo o choque causado com beijos de
autoridades, algumas inimigas, observa-se que a manipulação teve seu uso como
uma forma de propaganda. O fato, como referente, não existiu, mas as pessoas da
narrativa ficcional estão inseridas na realidade. A chamada do anúncio, distribuído
primeiramente nas redes sociais, era : "Unhate", que significa "não ódio". Ao exibir
líderes aos beijos, a mensagem foi bem clara e a simulação, eficaz.
Figura 24 - À esquerda imagem exibindo o líder americano, Barack Obama, beijando o venezuelano, Hugo Chávez. À direita, a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, beija Nicolas Sarkozy, da França.
102
3.2 A ficção no fotojornalismo
No início da prática fotográfica, devido à pouca sensibilidade à luz das placas
de prata iodada, o objeto fotografado deveria ficar imóvel por muito tempo. Então,
para fotografar era necessário todo um preparo do modelo, uma verdadeira
fabricação de um cenário. Foi desse modo que surgiu o hábito da pose. Todo
material fotográfico era resultado de um trabalho anterior de encenação. A partir do
desenvolvimento de lentes mais rápidas, a espontaneidade e registro de inesperado
tornou-se possível. Entretanto, a pose continua presente na prática fotográfica, com
exceção do fotojornalismo, que evita a encenação como parte do contrato de
verdade que propõe. Mesmo evitando a ficção da pose, a fotografia nunca poderá
fornecer uma realidade sem mediação, intacta da intervenção. Para acionar o
disparador, há um sujeito que toma decisões, interferindo a partir do conteúdo até a
estética. Nenhuma câmera, com exceção daquelas de tamanho reduzido (como
canetas de uso investigativo), deixará de ser indiscreta. O fotografado, ao perceber a
presença do aparato, logo muda, de alguma forma, o seu comportamento.
O jornalismo, como prática de relato dos fatos, imparcial, tem a sua
objetividade ainda mais acentuada. Partindo da assertiva de que o propósito da
fotografia jornalística é informar através de imagens, sobre acontecimentos reais, há
de se considerar qualquer artifício utilizado para alterar essa realidade uma forma de
manipulação da informação? Porque, de acordo com a crença que o grande público
deposita nas imagens fotográficas, qualquer nuance nesse sistema de codificação de
crédulo aponta para algo forjado. A fabricação de eventos no jornal não é
profissionalmente aceita. A imprensa, seja ela impressa ou virtual, não permite (ou
busca não permitir) qualquer prática que fuja da retratação objetiva situacional. A
espontaneidade do imediatismo de um fato é a principal característica
fotojornalística. Desse modo, ao contrário do passado, a pose como qualquer
encenação é, portanto, considerada por muitos ficção.
103
A foto de Joe Rosenthal, vencedora do Pulitzer Prize, que retrata a vitória americana
em uma batalha, na ilha japonesa de Iwo Jima (Figura 24), em 1945, é celebrada em
livros, revistas, jornais e até monumentos.
Figura 25 - À esquerda, foto Raising the Flag on Iwo Jima, de Rosenthal, 1945. À direita, Mother Cat stops stops traffic, de Harry Warnecke, 1927. Um sargento, minutos antes da famosa foto, tirou fotografias do mesmo
grupo de soldados levantando uma bandeira menor. O que se conta é que Rosenthal
estava a subir no pico quando os soldados decidiram tirar abaixo a pequena bandeira
e colocar uma maior para a fotografia (BRUGIONI, 1999). No entanto, são muitos os
que criticam, suspeitando de uma encenação, perdendo seu potencial valor
documental. Na verdade, a foto de Rosenthal é um registro histórico que simboliza o
patriotismo, a união, a vitória por meio das imagens desses soldados. Por mais
encenada que fosse, a fotografia consegue transmitir ao espectador, na medida do
possível, características e perspectivas do cenário que se formou em determinado
lugar e tempo. O problema está no potencial documental da imagem, que, como em
qualquer documento, é exigido para certificar a verdade do fato. Assim, repousa
uma questão: a encenação faz da fotografia uma ficção por total? De forma radical,
pode-se dizer que a fotografia não tem valor histórico, porque o operador negociou
uma pose, bem como um diretor de cinema consegue uma entrevista para
documentário?
104
Grande número de fotos pode ter sido posado e, mesmo assim, não perde sua
importância. A foto Mother Cat stops traffic (Figura 24), de 1927, por exemplo. Uma
gatinha atravessava a avenida quando um guarda de trânsito para os carros para o
animal passar com sua cria. No momento, o fotógrafo Harry Warnecke conseguiu
fotografar. Mas insatisfeito com seu primeiro disparo, solicitou a todos cooperarem
com nova fotografia. E assim foi feito, percebam que as pessoas estão paradas ao
lado esquerdo. Prova de que o acontecido não foi tão inesperado como a foto quer
mostrar, mas a qualidade não se perde por isso.
A pose, por ser encenada, ensaiada e refeita, está mais próxima do processo
de produção ficcional que os considerados não-ficcionais, como o fotojornalismo e o
cinema documentário. A constatação da produção de cenário numa fotojornalística
pode ser interpretada até como manipulação.
No ano de 2000, o jornal Meio Norte, impresso veiculado no estado do Piauí,
publicou uma foto (nas páginas "policiais") de presos numa delegacia de polícia. Um
dos detentos aciona a justiça, alegando que foi forçado a posar para fotografia, e
pediu indenização por danos morais. Claro que é dever do jornalismo fornecer
informações de interesse público, como os crimes praticados pelo sujeito. Entretanto,
os delitos, em si, não foram o principal da questão, mas sim se a foto foi encenada
ou não. Observa-se (Figura 25) que os prisioneiros estão encurralados numa parede,
dentro da delegacia, sem indícios de movimento e ainda há alguns agachados ao
chão, de forma a comprovar a pose como em foto de time de futebol antes de iniciar
a partida. A decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí considerou que houve
encenação e, portanto, coação para que a fotografia fosse realizada, compondo a
violação do direito civil da imagem. Apesar do sujeito ter realmente cometido delitos
naquela madrugada, afirma que participou da foto por intimidação da força policial e,
desse modo,vai receber do jornal a quantia corrigida de 30 salários mínimos.
Em decorrência disto, verifico que não houve espontaneidade para retratação do fato jornalístico, já que a imagem não foi obtida no momento do flagrante em cenário público, motivo pelo qual houve manipulação da imagem pelo veículo de comunicação (PIAUÍ,TJ, Ap.2009.0001.0031166-8, Relator: Des. Francisco Antônio Paes Landim Filho, 2011).
105
Figura 26 - Fotografia da publicação do Jornal Meio Norte de 01 de Junho de 2000, objeto da ação judicial. No jornalismo, a objetividade, a imparcialidade ditam a forma de registro dos
fatos para o bem público. O fotógrafo não mentiu ao posicionar os presos. A pose
não tornou o relato uma ficção. Os detentos cometeram crimes e foram pegos pela
polícia. Por outro lado, justamente a pose denuncia o abuso das autoridades e com o
aval da equipe jornalística.
Decorridos 180 anos da sua popularização, a fotografia ainda possui a
credibilidade que lhe é natural pelo efeito da analogia. Apesar de estarmos hoje um
pouco mais treinados a suspeitar desse "reflexo" do real. Ainda é necessário que as
pessoas compreendam o processo de criação para assim poder em desconfiar dessa
característica factual que o elemento fotográfico carrega.
Na época da foto de Warnecke, a fotografia ainda estava no início da sua
popularização. Desse modo, os espectadores eram pouco "alfabetizados" com a
linguagem fotográfica para perceber em a encenação da foto da gata levando seu
filhote. Dificilmente tinham conjunto de informações colaterais suficiente para
duvidar daquilo. A foto em um suporte documental como o jornalismo, numa era
106
digital, apresenta as possibilidades de criação, de forja, fabricação de cenários bem
maiores e exige ainda mais das pessoas uma educação36 de leitura visual.
3.3 A intervenção fotográfica nos regimes ditatoriais No início da fotografia, quando não era possível a impressão automática em
papel da imagem capturada, pintores eram os que fotografavam. Não existia prática
de fotografia para fotografia. As fotos eram mapas, auxílio para uma pintura realista
em busca da "ilusão espetacular". Dessa forma, misturou-se um aparato objetivo,
como a câmera, com prática de possibilidades mais abstratas que é a pintura. Como
resultado, tendo em vista o caráter de crédulo da fotografia, as primeiras
manipulações, consideradas fotomontagens, foram surgindo.
Em 1857, Oscar Gustav Rejlander destacou-se nesse meio com a alegórica
foto The two ways fo life feita com 30 negativos sobrepostos. Um ano depois, Henry
Peach utilizou 5 negativos para compor Fading Away (Figura 26). As junções das
imagens foram perfeitamente camufladas. Ambas as fotos se aproximam da pintura
pela estética clássica (Romana/Grega e Vitoriana) que adotam. E devido à difundida
e ingênua perspectiva da captura automática da realidade, esses processos foram,
de acordo com o seu desenvolvimento, rotulados como manipulações porque alteram
o resultado da operação fotográfica. Mas na verdade, são formas criativas e
alternativas de produção no mesmo suporte.
36 Um bom exemplo de que as pessoas devem compreender melhor os códigos da imagem, assim como o seu alfabeto, são as capas da revista Veja, que ,vez ou outra, promove manipulação de fotos para fornecer uma capa de acordo com um tema. Seria quase uma caricatura fotográfica.
107
Figura 27 - Henry Peach , Fading Away, 1958. Esses formatos distintos de produção, denominados como manipulações ou
até falsificações, devido à prática da alteração, podem ser classificados (BRUGIONI,
1999, p.20) como: fotomontagens, colagem e composição. As fotomontagens são
fotografias que, rearranjadas, formam um novo trabalho fotográfico. Como em
Fading Away. Por outro lado, na colagem, pedaços de elementos fotográficos (ou
não) são adicionados ou subtraídos e formam uma nova imagem. Alguns estão mais
para uma mistura de pintura e desenho com fotografia. Ainda no século XIX, a
fotografia, por vezes, como um atrativo para sua popularização, oferecia
características lúdicas, como desenhos de arabescos, personagens fantasiosos. Um
bom exemplo de colagem é As fadas de Cottingley (Figura 27), uma fotografia tirada
por duas jovens (Elsie Wright and Frances Griffiths) e que exibe uma delas
"interagindo" com fadas. A imagem, na época, enganou a muitos no Reino Unido.
Figura 28 - As fadas de Cottingley,1917.
108
As alterações no processo fotográfico surgiram de acordo com o
desenvolvimento da técnica. Na verdade, um ano após o surgimento da invenção,
houve a primeira foto composição. Tipo que certamente se denomina falsificação se
levar a cabo a suposta fidelidade ao real da fotografia. O francês Hippolyte Bayard,
independentemente de Daguerre, descobriu um processo viável de fotografia.
Quando seus primeiros esforços não foram reconhecidos, ele fez um autorretrato,
supostamente do seu suicídio como protesto pela falta de reconhecimento do público
e autoridades do governo. A foto é conhecida como Self Portrait as a Drowned Man
("Homem afogado") (Figura 28).
Figura 29 - Self Portrait as a Drowned Man, 1840. A composição seria um nível mais baixo de manipulação, por não haver
recortes. O trabalho não sofre alterações plásticas, mas trata-se de uma foto
montada, encenada, posicionada, com modelos; portanto, considerada amiúde,
ficcional. Deve-se entender que tais alterações são classificadas como manipulações,
devido à crença difundida de absoluta verdade no resultado fotográfico. Todavia, de
fato, são processos criativos que até estimularam a popularização e o comércio da
prática fotográfica. Desse modo, não se deve pensar que fogem da realidade, tendo
em vista que esta é mediada por fenômenos como a própria fotografia.
Retomando a Idade Média, no Império Romano, aqueles considerados,
politicamente, traidores, tinham as suas imagens apagadas das esculturas e
monumentos. Essa punição era denominada de damnatio memoriae. Em outras
palavras, eles eram eliminados da memória histórica e social. De igual forma, os
109
regimes autoritários como os dos bolcheviques, Mao Tse Tung, Hitler faziam com
seus oponentes. Ao longo da história há exemplos, recentemente revelados, de
manipulações fotográficas reproduzidas como propaganda de seus regimes.
A política da "cultura da personalidade" fazia do líder uma celebridade, e,
dessa forma, não havia o interesse de colocá-lo junto a outras pessoas com menos
respaldo ou com pensamentos doutrinários opostos. Assim, as imagens eram
alteradas de acordo com os objetivos políticos. Companheiros, em outro tempo ao se
tornarem desafetos tinham suas imagens apagadas e até perderam a vida.
Na década de 1920, o Partido Comunista Russo, com o propósito de fazer
propaganda de seus ideais, fez uso da imagem de Lenin em fachadas, selos, cartões
postais e pôsteres. Embora o próprio Lenin (JAUBERT, 1989) não estimulasse essa
idolatria, motivo pelo qual, a partir de sua morte, a exploração da sua imagem foi
bem maior, transformando-o em mito. Entretanto, a figura estava sendo cultivada
como o único grande líder da revolução. Esse processo de sacralização não permitia
a exibição de Lenin com outros menos importantes ou que perderam o interesse
pelos ideais do partido. Como é o caso desta foto (Figura 29), realizada durante o
Segundo Congresso Internacional Comunista, em julho de 1920. Vários partidários e
participantes do evento se juntam a Lenin para o registro. Ao longo dos anos, esta
imagem foi modificada várias vezes.
Figura 30 - Foto original de Viktor Bulla, 1920, em Petrograd.
110
Primeiramente, a foto (Figura 30) limitou-se a Lenin e Gorky (escritor),
porque, alguns dos demais, como a irmã de Lenin, foram assassinados durante o
período stalinista. Posteriormente, foram feitos retoques. Percebe-se (Figura 31) a
intervenção dos degraus cobertos de tinta, os sapatos tirados da grama e pintados,
o dedo da mão, que estava à amostra, é escondido no bolso.
Leon Trotsky, um dos fundadores do Exército Vermelho, após a morte de
Lenin se tornou o principal adversário de Stalin no comando do Partido Comunista da
União Soviética e, consequentemente, decidiu por exílio. No decorrer dos anos, teve
sua imagem retirada de qualquer foto que acompanhasse Lenin. No exemplo
destacado (Figura 32), Lenin discursa, motivando as tropas do Exército Vermelho
para combater os soldados poloneses. A foto, ícone da cultura revolucionária
(JAUBERT, 1989), permanece ainda em pôsteres, capas de livros, selos, estátuas,
mosaicos, etc. Dois disparos foram feitos (segundos os separam) e um detalhe os
difere: as imagens de Trotsky e de outro homem foram retiradas da fotografia.
A técnica de manipulação fotográfica, nos estúdios de antigamente, era
simples e assemelhava-se às utilizadas nas restaurações das telas. Normalmente, são
feitos recortes, colagens, retoques com grafite e tintas. Novas imagens são
processadas para compor as emendas, remendos e para sobrepor alguma figura
indesejada. Esse trabalho está mais para colagem, porque adiciona ou subtrai
Figura 31- A fotografia foi recortada por volta de 1930. Foi exibida desta forma no Grand Palais, Paris, 1970.
Figura 32 - Fotografia retocada e exposta nos trabalhos de Maxim Gorky, Moscou, 1979.
111
elementos, mas não rearranja fotos para compor em nova imagem como uma
montagem fotográfica: fotomontagem.
Outro exemplo radical de manipulação fotográfica utilizada para fins políticos
ocorreu em 1922, durante um encontro de Stalin com Lenin. Em 1921, Lenin estava
doente e foi procurar repouso na casa de sua irmã. Stalin, então, foi fazer-lhe uma
visita. Na fotografia original (Figura 33), os dois mostram-se sentados, posados de
forma semelhante. Anos depois, sob o regime de Stalin, outra versão surgiu. Lenin
aparece quase deitado na cadeira como se estivesse moribundo, e Stalin ao seu lado,
de forma descontraída, para sugerir a ideia de superioridade pela sua forma física
saudável. Esse contraste de forte vs frágil denota uma relação de pai e filho. E,
assim, considerando que Lenin já era um grande mito na Rússia, Stalin passa a
propor sua figura como sucessora de todas as realizações.
Ao contrário do que mostra a foto, Lenin era contra Stalin se tornar o
Secretário-Geral: "Camarada Stalin, se tornando o Secretário-Geral, terá concentrado
em suas mãos grande poder que acredito não será utilizado com sabedoria"
(JAUBERT, 1989).
Figura 33 - 05 de maio, Moscou, Lenin discursa para tropas do exército vermelho. Duas fotografias foram disparadas consecutivamente, o que certifica a manipulação.
112
Após se tornar Secretário-Geral, Stalin perseguia os que, de alguma forma,
manifestavam oposição às suas atitudes ou ideias, mesmo aqueles que outrora
estavam ao seu lado. O tirano é acusado de mandar matar até os mais próximos,
como sua mulher e irmão. Essas pessoas eram eliminadas e esquecidas da vida
política e da história, porque também havia perseguição às imagens dos
considerados traidores.
O recente documentário de Gabrielle Pfeiffer, Facing the dead (2005), relata
como esses inimigos do Estado sofreram o damnatio memoriae: famílias eram
obrigadas a cortar fotos em que suas imagens apareciam; antigos livros de escola,
"reformulados" de modo a não exibir figuras de inimigos, como Trotsky. Um caso
interessante foi o de Guelia Markizova. Em 1930, a garota de apenas 6 anos de idade
ofereceu um buquê de flores e recebeu presentes de Stalin, durante solenidade. O
momento foi registrado (Figura 35) por um fotógrafo. Essa imagem correu o país
como símbolo da benevolência do líder e ditador.
Algum tempo depois, o pai da menina foi preso e morto com mais alguns
líderes do partido. A mãe, enviada a um campo de concentração na Turquia,
cometeu suicídio. Guelia cresceu sem nenhuma foto dos pais, mas tinha a imagem
de Stalin abraçando-a. Como na Roma antiga, os infiéis deveriam ser esquecidos,
Figura 34 - Foto de Maria Ulianova, irmã de Lenin, no ano de 1992, em Gorky.
Figura 35- Foto composição de 1938.
113
sua memória tinha que ser apagada. Então, quem possuísse fotos dessas pessoas
também era considerado traidor e poderia morrer.
Figura 36 - 27 de janeiro de 1936, Guelia com Stalin em Moscou.
A prática do culto à personalidade, como forma de preservar o líder, foi um
modelo logo difundido entre os regimes totalitários do mundo inteiro. Fotografias
eram manipuladas em vários governos de ditadores, comprovando o Fake na
história.
Hitler ordenava censura a todo material fotográfico que o exibiam em
momentos de descontração (Figura 36), mas também tinha suas fotografias
modificadas de acordo com o interesse político e como forma de evitar
constrangimentos; assim, alterar qualquer aspecto na construção de um mito. No
ano de 1937, Hitler é retratado em um jardim de Berlim acompanhado da atriz e
cineasta oficial do regime, Leni Riefenstahl, do ministro da propaganda, Joseph
Goebbels, entre outros. Anos depois foi encontrada uma cópia da fotografia em que
Goebbels tinha sido apagado (Figura 37). O motivo (JAUBERT, 1989), acredita-se, foi
o possível envolvimento do ministro com a atriz, em anos anteriores considerados,
na imprensa alemã, a noiva do Fuhrer.
114
Figura 37 - Foto datada de 1925
Figura 38 - Berlim, 1937 - Versões alterada e original, da esquerda para direita.
115
Na Itália, Mussolini, antes mesmo de Stalin ou Hitler, fundou um instituto para
produzir filmes e fotografias a favor do seu regime totalitário. A propaganda, além de
utilizar o cinema, fazia uso dos artifícios de pós-produção do estúdio fotográfico para
remodelar imagens, com o objetivo de fazê-las despertar mais interesse do público
ou mascarar qualquer evento ou pessoa indesejada. Como o caso de Carlos Franqui,
em Cuba, um dos principais ativistas da revolução da década de 1960. Mas rompeu
com o partido porque se manifestou contra a ocupação da Tchecoslováquia por parte
da USSR. Ao contrário, Fidel Castro apoiou a invasão, e logo Franqui tornou-se um
dos maiores críticos de Castro ao longo dos anos, resultando, obviamente, na
censura à exposição de sua imagem, principalmente durante a sua participação na
revolução ao lado de Fidel.
Figura 39 - À esquerda Franqui aparece na fotografia de 1962, em Cuba. À direita, Franqui foi apagado numa montagem de 1973. Após governar a Républica da China por quase cinquenta anos, Mao Tse-tung,
possivelmente, foi o líder que mais fez uso da fotografia e das possibilidades desta
como forma de incentivo à idolatria de sua imagem. O culto da personalidade
realizou-se através de reprodução maciça da figura de Mao, a isolação de sua
imagem, a remoção dos rivais, a reposição de sua figura em cenas atuais e até a
invenção de situações ou cenários que preenchem livros, telas, enormes painéis dos
museus chineses. A intervenção fora tão praticada na China, durante o governo de
Mao, que, anos após, as fotografias continuam em constante mutação. Ao contrário
da antiga União Soviética, na China os renegados e eliminados das fotos, por vezes,
têm sua imagem recolocada. A atividade de iconografia chinesa foi tão difundida que
perdeu o controle e podem-se encontrar inúmeras versões de uma mesma imagem.
Aparentemente, o fetiche pela objetividade fotográfica, a suposta capacidade de
116
absorver a realidade foram aspectos ignorados pelos chineses. Tendo em vista que a
fotografia não perdia o seu prestígio, porque nela se inseria a imagem de um líder.
Liu Shaoqi, um membro do Comitê Central, em 1959 sucedeu a presidência de
Mao. No entanto, em 1968, foi deposto e durante a Revolução Chinesa tornou-se
uma das principais vítimas da censura e tortura do regime. Teve sua imagem (Figura
39) apagada, como na foto abaixo, por meio de um retoque grosseiro.
Figura 40 - Esquerda, foto publicada na revista La chine, 1977. Direita, foto com Shaoqi ao fundo, publicada na revista La chine, 1981. Entre vários exemplos ,um grupo de seguidores das ideias de Mao foi
considerado traidor do regime posterior à morte do líder. Esse grupo denominou-se
Camarilha dos Quatro (Figura 40). Quatro políticos e teóricos, incluindo-se a ex-
mulher de Mao, tiveram suas imagens eliminadas dos livros, pôsteres e quadros. Mao
Tse-tung faleceu em setembro de 1976, e houve uma grande cerimônia em sua
homenagem. As fotos oficiais distribuídas à imprensa do mundo inteiro foram
retocadas com o objetivo de apagar a presença da "gangue dos quatro". Os quatro
tiveram sua imagem retirada como uma forma de demonstração de controle do
regime atual.
117
Figura 41 - Foto registra cerimônia em memória a Mao. Na imagem acima, os Camarilha dos Quatro fazem parte dos líderes no palco. Na versão, logo abaixo, suas imagens são retiradas.
Figura 42 - Fotografia de Wu Yinxiam, Yan'an, 1942. A imagem da direita foi publicada em 1976.
118
Figura 43 - Painel de Dong Wiwen de 1955.
Verifica-se que o fetichismo pela realidade conferida à fotografia torna-a
instrumento de manipulação. E, na era digital com o contínuo avanço técnico,
computadores sofisticados e programas como o photoshop, qualquer jornalista ou
fotógrafo, em segundos, pode mudar o sacralizado referente da foto. Os softwares
não só recortam ou retocam, eles criam elementos baseados na realidade. Coletam
informações de textura, cores, sombras de seres naturais e oferecem ferramentas
que permitem a recriação. Essas possibilidades são difundidas com a mesma rapidez
em que são desenvolvidas. Com a internet, que penetra em todos os domínios da
vida social e transforma-os, surge uma nova configuração - a sociedade em rede - e,
dessa forma, as mudanças e nuances nos processos de criação vão-se propagando
muito rápido. Os profissionais estão aptos cada vez mais a intervenções no material
fotografado e, ao mesmo tempo, mais dependentes dessa mesma tecnologia digital.
A prática de manipulação na imprensa ou mesmo na política não ficou no passado.
119
Dois casos interessantes do uso da intervenção deliberada na imprensa chamou a
atenção. No ano de 2010, durante encontro para tratar do acordo de paz entre
israelitas e palestinos, foi fotografado (Figura 43) um grupo de autoridades
caminhando sobre um tapete vermelho, liderados pelo então presidente dos Estados
Unidos, Barack Obama. Porém, o jornal egípcio Al-Ahram decidiu reposicionar a
ordem dos chefes de governo, especificamente um que estava no final da fila. Na
foto original, o presidente do Egito, Hosni Mubarak, está ao fundo, mas na
publicação do Al-Ahram ele é colocado à frente de todos, como se fosse o líder mais
importante dos que estavam ali. Esse fato ocorreu antes de Mubarak renunciar ao
cargo depois de 30 anos, por pressões da população. Na verdade, assim como na
antiga União Soviética, o Egito, nos últimos 50 anos, não usufrui de uma democracia.
O regime é autoritário e, por conseguinte, utiliza o controle da mídia para promover
o seu chefe de Estado.
Figura 44 - Foto original acima e foto alterada pelo jornal egípcio abaixo, setembro de 2010.
120
Outro caso interessante aconteceu em 2011 (Figura 44), nos Estados Unidos,
quando o presidente americano Barack Obama, a secretária de Estado, Hilary
Clinton, e outros assessores foram fotografados enquanto assistiam, na íntegra, à
famosa operação que resultou no assassinato de Osama Bin Laden. Entretanto, um
jornal ortodoxo judeu, chamado Hasidic, publicou a foto sem a imagem de Clinton e
de outra mulher que se encontrava ao fundo. Como a foto foi divulgada amplamente
pela importância do fato, a manipulação virou manchete nos principais jornais e
portais do mundo. O jornal, em sua defesa, fez um pronunciamento que dizia que
por conta de suas "leis de modéstia"37, não era permitido publicar fotos de
mulheres.
Figura 45 - À esquerda foto manipulada. À direita, imagem divulgada pelo Governo americano. O fato é que, assim como o desenvolvimento da técnica fotográfica, a sua
popularização, a sua evolução para era digital, a manipulação é praticada
paralelamente e também apresenta seu avanço e características específicas de
manifestação como a simulação paródica irônica.
Ainda hoje, nos domínios da vida cotidiana e no âmbito estreito da criação artística, a imagem aparece como uma tecnologia para a verdade. A câmera testemunha o que aconteceu, o filme fotossensível pretende ser um suporte
37 Matéria do portal Foxnews.com Disponível em:<http://www.foxnews.com/politics/2011/05/09/hassidic-newspaper-edits-clinton-iconic-situation-room-photo/> Acesso 12 de jun. 2012.
121
de provas. Mas isso é só aparência, é uma convenção que por força de ser aceito sem reservas termina na nossa consciência. A fotografia serve como o beijo de Judas: um carinho falso vendido por trinta moedas. (FONTCUBERTA, 1997, p.17)38
3.4 Simulação fotográfica paródica irônica
Como afirmado anteriormente, toda simulação, por ter sua produção orientada
pelo dispositivo de um outro objeto, refere-se a um terceiro e caracteriza o
fenômeno da copresença, principal atributo da intertextualidade. Essa retomada de
outro texto ou autor se dá por meio de pistas, marcações criadas pelo enunciador
para que o enunciatário as identifique e processe os mecanismos da enunciação. O
enunciatário não é passivo, ele é convocado para construir a enunciação de acordo
com o seu repertório e torna-se uma espécie de coenunciador. O sujeito, ao ler o
intertexto, divide com o outro a competência de construção do sentido no discurso.
“Ler uma variante intertextual é compartilhar o prazer de desvendar o outro no um,
esse outro que se mostra, mas não se circunscreve, não se marca; é seguir pistas
dadas pelo texto para, numa negociação enunciativa sutil,[...]" (DISCINI, 2003 p.
227-228).
A paródia, como canto paralelo, possui referências a outros textos. A atividade
paródica é um tipo de intertextualidade que constrói um outro sentido para a mesma
"história" do texto base. Essa contrariedade simula que aceita o texto parodiado,
mas cria polêmica para provocar uma crítica ou comicidade. É por meio da ironia que
a paródia é avaliadora e contesta o texto referencial. O fake Not the Financial Times
representa um modelo de simulação paródica irônica porque simula ao se apropriar
de códigos, parodia ao apontar para um jornal específico (Financial Times) e é
irônico ao passo que insere a ficção num suporte originalmente criado para exibir
fatos, não ficção.
38 Tradução livre para o português.
122
Assim como o jornal, a fotografia oferece possibilidades criativas para
promover a ironia reflexiva ou mesmo o humor. O fotógrafo David Lachapelle é um
dos artistas que utilizam a alusão para promover a ironia paródica dos valores entre
os textos. Em alguns casos, a ironia manifesta-se através do escárnio porque procura
distorcer o significado do texto parodiado. Na verdade, é uma estratégia crítica a
valores sociais promovidos pela obra base. As diferenças são acentuadas para que a
manobra seja apreendida.
Em 2006, Lachapelle criou Heaven to hell: paródia de uma das esculturas mais
famosas de Michelangelo, Piéta, que exibe Jesus morto no colo da virgem Maria. A
imagem produzida por Lachapelle explora a figura de Courtney Love, polêmica
cantora que ganhou fama por ser a viúva de um dos mais celebrados músicos de
rock, Kurt Cobain. A foto (Figura 45) tráz Courtney no papel de "Maria" e Kurt como
"Jesus", na escultura, paródia de Pietá. Cobain morreu nos anos 90, vítima do uso de
drogas, quando Courtney ganhou mais ainda destaque na mídia. Lachapelle procura
a polêmica ao comparar a figura religiosamente sagrada com a de um músico
conturbado e viciado em drogas. Essa oposição é, exatamente, a estratégia que
Lachapelle utiliza para criticar a idolatria à pop music ou à sacralização de Jesus
Cristo. Todavia, quando Lachapelle coloca, na mesma posição, a viúva39 chorando
pelo marido e a mãe (também sagrada pela religião) velando seu filho, ele
"canoniza" Courtney e lhe tira o pecado. Por outro lado, o autor promove reflexão
quanto à iconografia religiosa que sacraliza seu personagem e a idolatria
sensacionalista da mídia. O texto provoca a ideia de que Maria e Jesus são
celebridades assim como Courtney e Kurt. Os valores são invertidos ou convertidos
para polemizar.
39 No contexto midiático e social, muitos podem considerar que a viúva se aproveita da fama do ex-marido para poder se tornar celebridade.
123
Em 2010, Lachapelle volta (Figura 46) a criar uma simulação paródica irônica,
relacionando celebridades a figuras religiosas. O mesmo texto-base, Pietá, é usado
para promover e relativizar o valor do que é sagrado. Um ano após a morte de
Michael Jackson, o cantor é retratado morto no colo de um Jesus com roupas, como
uma espécie de Cristo atual, com aparência de mendigo. Diferente da obra anterior,
Lachapelle não traz uma mãe para segurar o filho, Michael Jackson. Mas o próprio
Jesus o segura, lamentando a sua morte. Neste caso, especificamente, a intenção
não é de questionar ícones religiosos, mas de sacralizar, assim como Courtney, a
imagem da celebridade em questão. Michael Jackson foi muito censurado pela
imprensa por conta de acusações de pedofilia. Lachapelle quis demonstrar que ele foi
acusado injustamente assim como Jesus, no passado.
Figura 46 - Heaven to hell, 2006, David Lachapelle.
124
O enunciatário é convidado a buscar, no seu repertório, a obra de
Michelangelo e, ao mesmo tempo, considerar Michel Jackson tão sagrado quanto
Jesus, já que este lhe está dando o colo. O enunciatário torna-se ator da enunciação,
mas de forma ativa, como co-produtor. O enunciador tem como estratégia a
reorganização dos elementos de um contexto alheio ao texto-base, para promover a
reflexão moral junto ao enunciatário. Em entrevista, David Lachapelle revela sua
intenção de preservar ou até sacralizar a figura do cantor americano na simulação:
Eu acredito que Michael em um sentido é um mártir americano. Mártires são perseguidos e Michael foi perseguido. Michael era inocente e mártires são inocentes. Se você vai no YouTube e assistir entrevistas com Michael, você não vê uma rachadura na fachada. Há essa pureza e essa inocência que continuou. (FITZSIMONS, 2010)
Figura 47 - Imagem da exibição American Jesus, Lachapelle, 2010.
125
Figura 48 - A ultima ceia na coletânea Jesus is my homeboy, 2003, David Lachapelle
Figura 49 - Clara referência a série de retratos de Marilyn Moroe, por Andy Warhol.
Figura 50 - Deluge , David Lachapelle, 2006 que faz referência ao "O dilúvio" de Michelangelo na Capela Sistina.
126
A simulação paródica irônica é também uma forma criativa de manifestação
porque se diferencia ao utilizar outros textos e inverte, ironicamente, os seus valores
para propor uma mensagem, seja de crítica, reflexão ou, ainda, humor. Lachapelle
utiliza-se de outras obras, além dessas citadas para trazer o enunciatário a
construção da enunciação. A apropriação de outro texto serve de convite ao
enunciatário para resgatar esta outra obra e seguir os aspectos difusos de destaque
que causam o estranhamento, despertando um novo significado para a obra, e, mais
uma vez, a paródia renova a arte. Nesse sentindo, Lachapelle revigora Pietá com
isotopias figurativas decorrentes de temáticas da mídia do presente.
3.5 Simulação fotográfica paródica radical
A tipologia fake, formulada neste trabalho, divide-a em dois polos:
falsificações e simulações. Foram abordadas, neste capítulo, as manipulações
fotográficas que, de acordo com crença demasiada na objetividade fotográfica,
podem ser denominadas como falsificações. Também foi discutido o outro lado da
classificação, que é a simulação (copresença) fotográfica paródica irônica. Desse
modo, resta-nos analisar a manifestação "arriscada" do efeito da ironia paródica na
fotografia, que são as simulações fotográficas paródicas radicais.
Foi discutido (item 2.3.2) que, para existir a ironia em um texto, faz-se
necessário seu reconhecimento. No entanto, percebe-se uma forma de expressão
simulativa que, mesmo visando ao humor, crítica, protesto, subversão ou qualquer
outra função irônica, limita a compreensão da polifonia aos que possuem uma
experiência colateral mais profunda do tema ou assunto. De fato, objetos como o
projeto Assina: do texto ao contexto (Cícero da Silva, 2006) ou a matéria de Allegra
Coleman , na revista Esquire, são ironias mais camufladas e assumem o risco de não
serem entendidas como tal; portanto, denominadas radicais.
A fotografia, tendo em vista a tradicional fé como espelho do real, faz-se um
campo fértil para a manipulação (como descrito nos regimes militares), para a
127
simulação irônica (Lachapelle, por exemplo) e, consequentemente, para o protesto
ou autorreflexão mais mascarada como a simulação paródica radical .
No ano de 2003, a pesquisadora Dora Bahia publicou a dissertação titulada
Marcelo do Campo 1969-1975. De acordo com a autora (BAHIA apud ITAU
CULTURAL, 2006, p.02) a "pesquisa recupera a obra do artista Marcelo do Campo
(1951-?) elaborada entre 1969 e 1975". Através do seu trabalho, Dora Bahia
questiona alguns pontos fundamentais da arte. Qual a importância da produção para
a interpretação? Quais os limites de uma obra efêmera ou documentação? Até que
ponto a existência do objeto interfere na concretização da obra de arte? E, para isso,
criou um personagem, esse Marcelo do Campo, uma homenagem a Marcel
Duchamp, que, segunda ela, questionava o valor de autor que a obra carrega.
Então, a autora descreve o seu trabalho de investigação sobre Marcelo, sem
apontá-lo como aquilo que de fato é, um personagem fictício. Afirma que tudo
começou quando ela, pesquisando o projeto de Vilanova Artigas para o prédio da
FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), no campus da USP, encontrou
desenhos de Marcelo do Campo, que eram verdadeiros devaneios que rompiam com
qualquer norma da arquitetura. Interessada por esse tipo de trabalho, de artistas
que testavam as fronteiras entre arte e arquitetura, Dora Bahia seguiu em frente e
produziu o texto sobre a vida e obra desse desconhecido artista.
Ela, assim, discorre sobre a biografia dele, descreve sua trajetória: local de
nascimento; colégio; a vida como estudante de arte em Genebra;
Figura 51 - Cenário produzido na Galeria Luisa Strina, em 2001, mas que foi exibida como sendo material registrado de 26 de outubro de 1976.
128
o engajamento no protesto político por meio da arte, ainda jovem; o ingresso na FAU
da USP; a participação em um movimento terrorista; até o seu abandono das
manifestações artísticas para dedicar-se ao surfe e à criação de abelhas. O estudo,
que também se tornou exposição, descreve tais acontecimentos exibindo fotos das
obras desenvolvidas pelo artista.Tais obras, na verdade, são produções da década de
2000, coordenada por Dora Bahia.
Marcelo do Campo, era ativista político que se engajava e, portanto, em 1971
integrou o Movimento Terrorista Andy Warhol (MTAW), formado por estudantes da
FAU e de outras faculdades. E assim, é exibida uma fotografia como se fosse da
década de 70, em preto e branco, com pessoas encapuzadas e armas como martelo,
serra elétrica, foice, enxadas, num lugar que parece um esconderijo, para que seja
entendido como uma quadrilha revolucionária. Uma produção voltada para criar um
cenário que dê mais legitimidade ao enunciado do texto-verbal.
Em determinado período de sua "vida", Marcelo do Campo volta-se contra a
alienação da sociedade brasileira a respeito da atual (regime militar) realidade
política do país e cria uma série de intervenções. Numa delas, denominada
Acontecimento 2 (Figura 51), com uma arma de fogo, o artista atira contra um disco
de LP da trilha sonora da Copa do Mundo de Futebol de 1970. Dora expõe
detalhadamente o material produzido como se fossem raros achados, em estado de
degradação ou apenas em parte.
O trabalho de Dora Longo Bahia sobre Marcelo do Campo, divide-se em dois
momentos: um conto ficcional acerca de um artista e seu trabalho desenvolvido
entre os anos de 1969 e 1975 e outro sobre como essa criação pode dar conta dos
aspectos da arte contemporânea questionados por ela. Nessa primeira fase, não há
Figura 52 - Foto encenada em 2006, São Paulo.
129
marcações claras para que o enunciador entenda a simulação proposta pela autora.
O livreto que acompanha a exposição demonstra todo o processo investigativo sem
revelar que o personagem é fictício, com exceção de suas últimas páginas, que são
direcionadas a tratar das problemáticas propostas pela pesquisadora.
Durante toda a ficção, raramente é dada uma pista de que poderia tratar-se
de simulação: quando Marcelo se apropria de um vaso (mictório) para propor uma
de suas ações artísticas. Um observador dotado de repertório suficiente sobre a
história da arte fará a devida correspondência com a obra "L.H.O.O.Q.", de Marcel
Duchamp (1919). E, de certo modo, traduzindo literalmente o nome "Marcel
Duchamp", chegando a Marcelo do Campo, o que poderia promover leve suspeita da
ficcionalidade do projeto. No entanto, como essas marcas são frágeis, mascaradas,
elas limitam o número daqueles que poderiam compreender (antes de chegar ao
final) a exposição como simulação, tornando-a uma ironia do tipo radical, porque
arrisca sua manifestação como tal.
Dora Bahia questiona-se a respeito dos limites de uma obra efêmera e a sua
documentação. Ela afirma que a realidade mediada pela fotografia resulta em outra
realidade. Que não há como analisar ao certo todas as qualidades de um fenômeno
Figura 53- Encenado e fotografado em São Paulo, em 2003. Mas pretende passar-se por uma fotografia de 1972.
130
quando ele é investigado via instrumento, como a câmera. Ocorre sempre a
intervenção do instrumento e/ou do operador. Desse modo, a simulação de Marcelo
do Campo vem trazer à tona a problemática criada pelo tradicional dogma de
registro do real que a fotografia cultivou pela sua objetividade. A ficção de Marcelo
do Campo, inserida numa linguagem de registro documental, pôde comprovar
àqueles que não perceberam a ironia de início, que podem ser facilmente enganados
com manipulações midiáticas. Na verdade, como defende a semiótica greimasiana, o
que leva a verdade depende das estratégias de linguagem defendidas pelo
enunciador. Deve haver um pacto, contrato de veridicção (GREIMAS, 2008), entre
enunciador e enunciatário para que haja o compartilhamento do “crer-verdadeiro”.
Dora Bahia foi muito eficaz na sua produção quando inseriu na narrativa ficcional
características de um contexto real. A biografia de Marcelo do Campo pode ser
entendida como possibilidade pois, naquele momento histórico, vários artistas
seguiram caminhos semelhantes: o de corromper barreiras interdisciplinares de
utilizar a arte como arma contra o regime em questão, contrária a inércia da
população brasileira em geral, naquele período. Então, tais características, baseadas
talvez em outros artistas reais, fazem da trajetória de Marcelo do Campo algo
genuíno e, portanto, de fácil teor crível. Ainda mais, utilizando uma linguagem
científica embasada numa dissertação de mestrado, aliado a um vasto material que
não aparenta ser fabricado ou encenado. A simulação fotográfica paródica radica,l
além de provocar reflexão quanto à realidade fotográfica, também é uma forma
criativa de produção, tendo em vista que Marcelo do Campo, ironicamente, é um
sujeito ambíguo, porque sua obra faz parte do passado dos anos 70 e do recente
presente dos anos 2000. Talvez, os outros questionamentos que Bahia fez quanto à
importância da produção para a interpretação e sobre a que ponto a existência do
objeto interfere na concretização da obra de arte foram respondidos na medida em
que percebe-se que a produção recente, imitando obras do passado, está
diretamente ligada à interpretação do observador se o resultado é atual ou não. E o
objeto não precisa existir para que haja uma arte concreta. Marcelo do Campo é real
até que a autora revele que é "uma criação imaginária" (BAHIA apud ITAU
CULTURAL, 2006) e questionadora, com a sua ironia.
131
De forma gradativa, há trabalhos que se arriscam mais ainda em ocultar as
características que, provavelmente, denunciem a ficção e, por conseguinte, a ironia,
fazendo-os deles ainda mais radicais. O fotógrafo e teórico Joan Fontcuberta vem
desenvolvendo trabalhos que rompem a forte ligação da fotografia com o objeto,
procurando questionar sempre o falso realismo. A prática fotográfica, como evidência
do mundo material, é o seu principal alvo. No livro El beso de Judas (1997), de sua
autoria, Fontcuberta comenta o dispositivo do fotógrafo Keith Cottingham, que
produziu uma série de retratados fictícios de jovens que personificam o ideal da
beleza masculina:
O falso realismo em seu trabalho funciona como um espelho que aponta não a nós mesmos, mas para as nossas invenções, e que nos dá primeiro, um fascínio e depois, náuseas. Rompe-se o cordão umbilical entre imagem e objeto. O mito modernista do espelho termina escasso. (FONTCUBERTA, 1997, p.50)
3.5.1 Fontcuberta e as simulações
Em seu trabalho, Fontcuberta promove simulações camufladas para que a
ironia promova essa crítica à fotografia como registro documental da realidade. Seus
projetos, ao longo dos anos, vão além e não se resumem apenas a fotografias, mas
também a esculturas, objetos científicos, textos e desenhos que servem para
legitimar a sua ficção. Assim como Raphaelian, com B.C. Byte Series, Fontcuberta
expõe suas obras inseridas em uma linguagem acadêmica para impressionar o
público em geral ou mesmo seleto, como o dos cientistas.
Desde o início dos anos 80, Fontcuberta vem realizando experiências que
antecipam as variadas formas de manipulação digital, comum com o avanço
tecnológico contínuo, cada vez mais, esgotando o valor indicial impregnado na
cultura da fotografia. Entre a vasta produção do artista, foram selecionados seis
trabalhos que tratam essencialmente da credibilidade fotográfica como um processo
de aprendizado por meio da ironia. Em outras palavras, os projetos visam, por meio
da ironia, questionar a fotografia como captura da realidade e, dessa forma, aguçar
132
o senso crítico dos espectadores. Dividiu-se a análise40 em dois grupos definidos
como: 1) Contranatureza - Herbarium e Fauna Secreta: exposições fotográficas que,
além de ironizar o efeito audiovisual, oferecem apropriações da linguagem científica,
especificamente de cada tema, com desenhos, mapas, esculturas e esquemas que
tratam da criação artificial de plantas e animais, respectivamente. 2) Avatar -
Sirenas, Sputnik, Miracles & Co. e Deconstructing Osama: com tema e linguagem
mais informais, porém ainda expondo objetos, fotos e textos no formato de museu
com o objetivo de convencer mais pessoas. Vale ressaltar um ponto que os
diferencia do grupo anterior, que é a participação do autor em frente à câmera,
representando personagens ou apenas a si mesmo.
Karl Blossfeldt publicou, em seu livro Urformen der Kunst (1928), um processo
bastante rigoroso de documentação botânica, procurando demonstrar a origem da
inspiração humana para a criação de elementos arquitetônicos art nouveau. No ano
de 1984, Fontcuberta criou Herbarium, uma exposição (também catálogo) que
seguiu exatamente o rumo contrário, ao exibir, através de detalhes rigorosos e
sistemáticos, por diversas fotos e desenhos de plantas falsas, "construídas", assim
como uma arte decorativa. "Blossfeldt provava que o imaginário provinha da
natureza, enquanto Fontcuberta parte efetivamente de imagens, quer dizer, do
imaginário do seu predecessor." (CHEVRIER, 1998, p.57). De certa forma, o que era
uma fonte de inspiração para Blossfeldt é um resultado para Fontcuberta. O artista
espanhol repensou o trabalho de Blossfeldt e retratou plantas falsas. São esculturas
construídas, basicamente, com restos industriais, ossos, raízes e membros de
animais. Foram fabricadas, ou seja, forjadas para servir como material fotográfico.
Apesar de não serem seres vivos, possuem vida na película a ponto de se fazerem
crer.
40 A análise não segue ordem cronológica, mas uma orientação temática que vai da exploração vegetal, animal, animal/homem, pessoal biográfica. A ordem cronológica dos trabalhos especificamente selecionados é: Herbarium (1984), Fauna (1987), Sputnik (1997), Sirens (2000), Miracles & Co. (2002), Deconstructing Osama (2007).
133
Em Herbarium, Fontcuberta assume o papel de um criador genético de espécies da
natureza, de certa forma antecipando-se ao crescente investimento da ciência na
manipulação genética em alimentos e animais41. De acordo com Flusser, em
Herbarium pode parecer que "o conceito de 'informação' coincidiu tanto no seu
significado biológico como na foto. Fontcuberta parece capaz de lidar com
informação biológica por procedimentos fotográficos" (FLUSSER, 1998).
Como estratégia para dar mais credibilidade às fotos, Fontcuberta insere na
exibição textos (ficcionais) que explicam como ele descobriu tamanha coleção de
plantas "desconhecidas". O autor conta42 que em um vale, no norte de Honduras,
denominado de Lancetilla, foi cultivado um exemplar de uma rara planta. A Flor-
cadáver, como afirma Fontcuberta, tem esse nome porque possui um cheiro muito
forte decorrente da carne putreficada e outros excrementos. Além de rara, ela é
única, porque é a maior do mundo e tem um processo de polinização peculiar. Desse
modo, Fontcuberta interessou-se pelo objeto, já que estava escrevendo um livro em
homenagem a Blossfedt e decidiu investigar e fotografar a planta, durante sua
floração, que é um fenômeno raro. Porém, Fontcuberta não conseguiu chegar a
tempo, mas como consolo foi levado a conhecer essas outras fascinantes espécimes
como a Flor Miguera (Figura 53), que, de acordo com Fontcuberta, trata-se de uma
planta em formato de bacia que os franceses chamavam de "herbe du diable". O
nome é devido ao forte odor que exala e vem da frase "Osti le Diable", do Príncipe
da Rochegalant, quando entrou em contato com uma empregada que usou o cheiro
da planta para afastar soldados. A estratégia, além de exibir as fotos das plantas,
recheia a série com textos que atestem a existência dessas espécies. O uso de
nomes reais, como Lancetilla, é deliberadamente manobra para tornar mais crível o
objeto.
41 Cerca de 13 anos depois é anunciada a clonagem do primeiro mamífero. 42 Fotos e textos de todos os projetos estão disponíveis em www.fontcuberta.com.
134
Figura 54 - Foto da planta Flor Miguera, exposta como verdadeira em Herbarium.
Figura 55 - Instalação no Musée-Château, Annecy, maio de 2008.
Figura 56 - Braohypoda frustrata
135
Figura 57 - Astrophythu dicotiledoneus
Por meio de um vasto material sistematicamente detalhado e apresentado
(Figura 54) de forma científica, a ironia de Fontcuberta toma corpo ao passo que o
espectador começa a processar as poucas marcações. O trabalho é desenvolvido
dentro de uma estrutura com nomes em latim e negrito, fotos incolores, resgatando
uma linguagem de catálogo. Outra forma de manipulação de Fontcuberta foi inserir
na exposição desenhos e fotografias de plantas realizadas por cientistas como Karl
Blossfeldt. O espectador observa a série de imagens e compreende a exibição como
um estudo geral de botânica, com uma coleta minuciosa de materiais de diversos
estudiosos como Fontcuberta, sem perceber de imediato que trata-se de uma
simulação paródica radical.
136
Figura 58 - Lavandula angustifolia, produção de Fontcuberta. O conjunto de ornamentos de Herbarium resulta em um questionamento
sobre, mais uma vez, a ontologia da imagem fotográfica. A apresentação de uma
série de aberrações, no fim das contas, tenta provocar a desconfiança sobre a
perspectiva dos objetos como documento. Há alguns exemplos que ultrapassam a
descrição aplicada por meio do modelo científico como a Lavandula angustifolia
(Figura 57), que é um arranjo de folhas de repolho com uma cabeça de tartaruga ao
meio. Esse destaque alegórico pode resultar na marca mais evidente da ironia
praticada. O espectador, ao percorrer a exibição, aos poucos, vai percebendo que
tudo o que apreciou até então como um relato documental pode ser uma ficção e, a
partir dai compreende a ironia avaliadora: a realidade que as fotografias sugere pode
fazer parte de um mundo fantasioso. Por meio do efeito irônico, Joan Fontcuberta
pretende produzir uma crítica que se opõe ao que a fotografia permite acreditar.
Essa crítica utiliza exatamente os códigos da linguagem fotográfica para promover a
reflexão através da experiência reveladora do efeito simulativo. A problemática
envolve, então, o discurso fotográfico com a produção de registro documental
histórico.
Herbarium quer propor um discurso alternativo de negar qualquer realismo, confiança acrítica, desacreditar e negar a possibilidade da objetividade [...] ironicamente faz com que o espectador, envenene suas certezas e estimula a liberação dos anticorpos correspondentes. (FONTCUBERTA, 1998, p. 54)
137
Por outro lado, ao contrapor o mimetismo fotográfico, o artista protege as
manifestações não objetivas, ficcionais e, principalmente, abstratas. Ao longo dos
anos, a fotografia auxiliou no desenvolvimento científico, como na botânica,
oferecendo artifícios visuais que o olho não permite observar. Assim, detalhes da
flora foram sendo revelados ao passo do avanço tecnológico do aparato. E,
paralelamente ao registro fotográfico, os modelos de catálogo, necessários para um
estudo como o da botânica, também foram aprimorados. Portanto, Fontcuberta
reinvidica e convoca a fotografia para promover a "liberdade" do abstrato.
Herbarium propõe um exercício de jogo e liberdade: a capacidade de ultrapassar os limites da realidade e voltar a um estágio primitivo, em que é possível redesenhar nossa conexão emocional, estética e política com o mundo. (FONTCUBERTA, 1998, p. 55)
As fotografias de Joan Fontcuberta, por tentarem abandonar a cientificidade
do retrato objetivo, situam-se em um formato mais "puro" (FLUSSER, 1998), em que
o fotógrafo se aproxima do trabalho do pintor. O projeto Herbarium mostra-se real,
científico, preso a uma nomenclatura, supondo um retrato sério, documental da flora
de Honduras. Todavia, revela-se uma paródia simulativa, livre da ciência, propondo
uma ironia crítica aos meios científicos e de registro.
Em 1987, o biologista Louis Bec juntou-se a Vilém Flusser para realizar o
projeto Vampyroteuthis infernalis (FLUSSER;BEC, 2011), que é uma ficção
organizada numa linguagem científica. Nesse texto fantasioso, são ilustrados vários
tipos de uma mesma raça de Vampyroteuthis infernalis, que seria um molusco de 30
centímetros que supostamente viveria nas profundezas do oceano. Enquanto Flusser
aborda questões filosóficas, políticas e até religiosas, Bec descreve as variadas
formas do animal. Assim como em Herbarium, o imaginário é inserido num domínio
da ciência, fazendo o conteúdo subverter o formato. As gravuras são organizadas
como um catálogo descritivo de classificação científica: taxonomia, prodótica,
zootipia, taxiopsie, espécie. O desenho (Figura 58) é detalhado com legendas de
cada parte dos membros do animal. E, na mesma página, há a descrição completa
138
da espécie, além de um suposto selo do Institut Scientifique de Recherche
Paranaturalist, como uma forma de legitimar a ilustração fantasiosa de Bec.
Coincidentemente, no mesmo ano (1987), Joan Fontcuberta e o fotógrafo
Pere Formiguera produziram outro trabalho que teve como foco principal na
discussão entre do limite entre a realidade e a ficção. Eles propugnavam, assim
como em Herbarium, a crítica da "convicção fotográfica"(FONTCUBERTA, 1998).
Primeiramente, os artistas levaram quatro anos para criar o personagem do
professor Peter Ameisenhaufen (Figura 59). De acordo com a narrativa de sua
biografia, que era exibida em todas as instalações do projeto, Ameisenhaufen nasceu
em Munique, no ano de 1895, teve pai caçador e mãe irlandesa e, aos 10 anos, foi
morar na África, quando começou interessar-se pela zoologia. "Quando morriam
alguns daqueles animaizinhos - conta sua irmã - Peter os dissecava e estudava seu
interior"(ARAMATA apud FONTCUBERTA, 1998, p.189). Peter formou-se pela
Figura 59 - Ilustração de uma das supostas espécies, por Louis Bec.
139
Universidade Ludwig Maximilian, de Munique, e tornou-se professor na mesma
instituição. Entre os anos de 1933 e 1950, dedicou-se a viagens ao redor do mundo,
catalogando animais menos conhecidos ou em busca daqueles que fazem parte do
imaginário coletivo, como uma cobra com patas e macacos que voam. Até ficar
doente, e decidiu morar em Glasgow, Escócia, com a esposa. Desde então, passou a
organizar todo o material de animais fantásticos coletado em suas expedições. Até
que em 1955, após excursão solitária, foi dado como desaparecido. Algum tempo
depois, sua casa sofreu incêndio, o que fez perder alguma uma parte do seu
material, mas foi depois reconstruída, permitindo o contato de Fontcuberta com o
estudo que restou. Toda a história é descrita com detalhes. Os acontecimentos,
assim como em um filme, relacionam-se de forma a fazer sentido com o conflito
principal, que é a revelação desse material supostamente esquecido pela ciência.
E para comprovar a suposta existência do acervo de animais peculiares, foi
produzido uma variedade de material. São simulações como: fotografias pessoais e
de animais, mapas, radiografia, textos, vídeos, áudios, instrumentos de laboratório,
correspondências, fichas zoológicas e animais dessecados. Cada objeto é reproduzido
de forma a convencer sobre a existência de Ameisenhaufen. O conjunto é organizado
como uma paródia elaborada dos museus e exposições de centros de ciência natural.
Ao modo de B.C. Byte Series, Fauna Secreta é uma produção que se apropria das
características da investigação científica para expor a ficção. O rigor de detalhes e a
variedade do material são ferramentas utilizadas para compor a estratégia do
Figura 60 - Fotografia produzida por Fontcuberta e Formiguera do Prof. Ameisenhaufen, que, na verdade, é um modelo argentino, amigo dos artistas.
140
contrato de veridicção (GREIMAS, 2008), ou seja, para construir uma verdade. A
descrição recorre às formalidades científicas, como Bec fez em Vampyroteuthis
infernalis. Para cada criatura é fornecida a informação de taxonomia, a forma de
captura, morfologia e hábitos, como em um zoológico. Uma das legendas diz:
"Solenoglypha Polipodida. Morfologia: uma mistura entre um réptil e um pássaro que não voa. Hábitos: extremamente agressiva e venenosa. Caça para alimentar-se, mas também por prazer. Quando se depara com a presa, se ergue completamente, imóvel e emite um som agudo paralisando o inimigo. Diferente de outros répteis, Solenoglypha Polipodida não descansa após comer. Ao contrário, ela prossegue na caça até defecar."(PANICHI, 2005)
As fotografias, em sua maioria, não são manipulações como a fotomontagem.
Desse modo, para produzirem o seu referente, que são animais inusitados, os
artistas fizeram uso da contribuição de um profissional em taxidermia. Membros de
animais dissecados eram colados a outros de forma a compor uma nova criatura. A
partir daí, são fotografados e o resultado sofre mais alguns efeitos estéticos para que
pareçam envelhecidos ou que exibam marcas de uso contínuo. Como é o caso da
Solenoglypha Polipodida (Figura 61), uma serpente com patas de ave; seria uma
mistura de réptil com pássaro. Com a fotografia do animal in loco, é exibida uma
radiografia (Figura 60), com anotações e desenhos (à mão) do Prof. Ameisenhaufen
com as características do animal.
Figura 61 - Foto da "radiografia"da serpente com patas.
141
Figura 63 - Desenho que apresenta detalhes anatômicos da criatura.
Figura 62 - Solenoglypha Polipodida
Figura 64 - Prof. Ameisenhaufen com o Centaurus Neandertalensis.
142
Figura 65 - Descrição e esboço do Thresquelonia Atis.
Figura 66 - Prof. Ameisenhaufen com sua irmã Elke, 1907.
143
Figura 67 - Instalação no Museu-Châteu Annecy, 2008.
A fim de provocar uma discussão sobre os conceitos de ciência e arte,
questionar as fontes de conhecimento como a investigação científica e retomar a
crítica à fotografia como registro do real, Fontcuberta e Formiguera produziram uma
simulação paródica radical por meio da criação de um personagem; de vários
elementos para compor uma cenário habitual das ciências naturais e comprovar a
realidade criada. Desse modo, os indícios absorvidos pelos espectadores são
contrariados pela decepção irônica, estimulando a crítica.
No conjunto fabricado de animais para servir de evidências da pesquisa do
Prof. Ameisenhaufen, percebe-se a divisão em três grupos: criaturas produzidas a
partir de seres mitológicos ou do imaginário; criaturas resultantes de deformações de
animais existentes; seres compostos da junção de animais.
O primeiro grupo de animais, decorrentes estas de manifestações folclóricas,
mitos ou até seres da produção fictícia popular, resulta nas marcas mais evidentes
da ironia. "A morfologia de alguns de nossas criaturas foram tiradas dos modelos de
figuras mitológicas clássicas ou extraordinárias quimeras" - afirma Joan Fontcuberta
(1998, p.110). Um dos animais estudados por Ameisenhaufen foi o El gran guardiá
del Bé Total (Figura 67), que é um unicórnio, personagem mitológico tão retratado
no Renascimento. Pelo fato de ser facilmente reconhecido como um personagem
ficcional, traz dúvidas com relação à veracidade das peças apresentadas. Outros dois
animais do material revelado fazem referência a personagens do imaginário coletivo,
que já tiveram a sua imagem demasiadamente popularizada como criação
144
fantasiosa: Cercophitecus Icarocornu (Figura 68) e Aerofants (Figura 69). Trata-se o
primeiro de um macaco com chifre de unicórnio e asas com penas. A sua figura é
semelhante, portanto alusiva, aos "Macacos Alados" que fazem parte da novela "O
maravilhoso mágico de Oz", tão conhecida mundialmente. O Aerofants, incrível
elefante voador, inicia o processo de suspeita da ironia. Todavia, também há um
personagem popular, o Dumbo, um elefante que voa. A diferença está nas asas. O
Dumbo, criação de Walt Disney, voa devido às suas enormes orelhas. A verdade é
que a semelhança faz com que o espectador, mesmo inserido num ambiente de
museu, com todos os materiais científicos expostos, consiga fazer a relação com a
ficção, que logo poderá perceber a ironia proposta pela paródia simulativa. Outra
pista da simulação consiste no toque de humor como a descrição do Pirafagus
Catalanae, que é uma espécie de dragão, mas com características únicas. Ele pode
cozinhar sua comida com seu fogo, inala e expira as chamas, emite gases gástricos
que inflamam em contato com a atmosfera e, às vezes, até perde o controle das
mesmas: "[...] em situações extremas, ele perde todo o controle de seu fogo oral,
corre para o rio ou lago mais próximo submerge completamente para abafar as
chamas " (FONTCUBERTA, 1998, p.125). Essas marcações são limitadas se
comparadas ao grande cenário com fotos, vídeos, registros sonoros, documentos
montados para comprovarem a veracidade do estudo. Desse modo, a simulação é
radical, porque não permite uma apreensão da ironia logo de início43.
43 Joan Fontcuberta, em entrevista (disponível em:< http://www.youtube.com/watch?v=TGQ-00vkXzA>) diz que seu trabalho funciona como um despertador que em dado momento dispara e o espectador percebe o truque. No entanto, há o risco de não percebê-lo. Um exemplo, que ele mesmo conta, é o livro que produziu para Fauna Secreta. Trata-se de uma produção que "imita os livros acadêmicos, os livros de edições universitárias, deliberadamente composto de um papel barato, desenho pobre, baixa qualidade de impressão...Estes livros em nenhum momento explicam que se trata de um objeto artístico e se apresenta dentro de um âmbito biólogico em qualquer caso científico. Muitos desses livros foram parar em universidades e centros culturais. E me causa grande satisfação quando os vejo não numa área de arte ou fotografia, mas numa área de ciências, morfologia."
145
Figura 68 - El gran guardiá del Bé Total
Figura 69 - À esquerda, a forja de um macaco com chifres, o Cercophitecus Icarocornu. À direita, representação (Anton Loeb) dos "Macacos Alados" da obra "O maravilhoso mágico de Oz", que se assemelham aos macacos de Fauna Secreta.
Figura 70 - À esquerda, Aerofants de Fauna Secreta. À direita, o popular elefante voador, Dumbo, de Walt Disney.
146
O objetivo de Fontcuberta e Formiguera é propor, por meio da ironia ativada
pela simulação, uma reflexão sobre a credibilidade fotográfica assim como em
Herbarium. No entanto, considerando a longa lista de material que teve que forjar
(radiografias, objetos de laboratórios, animais dessecados, fotos, vídeos, áudios,
etc), Fauna Secreta é uma produção mais complexa e, portanto, tem objetivos mais
audaciosos que envolvem o questionamento da ciência como conhecimento. É muito
provável que o espectador que se descobre manipulado pela ironia de Fauna Secreta
perceba como é frágil a fonte de informação, mesmo quando ela é, habitualmente,
crível como nos museus onde a exposição se instalou. Toda suposição que o
observador tem de fenômenos, como animais desconhecidos, é fruto da autoridade
de livros, professores e instituições como a escola e o museu. Os dados agrupados
num formato característico de zoológicos e museus de ciência natural são elementos
que fazem o "crer verdadeiro" (GREIMAS, 2008) se consumar. Os animais expostos
em Fauna Secreta tornam-se reais porque foram fotografados, tendo em vista a
habitual crença da fotografia como análogo absoluto. Essa condição histórica da
fotografia move trabalhos como Fauna Secreta a praticar a crítica de simulação
paródica radical.
Fontcuberta, como teórico, explica que o indivíduo já não pode receber
informação alguma sem a mediação de um canal ou de um código e que todos estão
à mercê das características dessas mídias. "Se as expectativas referentes à 'verdade'
e 'realidade' são condicionadas em aceitar uma mídia específica, teremos que reduzir
nossa geral habilidade para diferenciar 'realidade' e 'código de
comunicação'".(FONTCUBERTA, 1998, p.208). A mídia específica, neste caso, é a
fotografia. E, ao tirar o véu da analogia por meio da ironia, o indivíduo tem mais
competência para questionar a própria mídia.
Nossa proposta era confrontar o espectador com o poder das fontes emissoras de informação e a influência dos recursos utilizados. Problematizar, em suma, tanto a fotografia e o museu, que se originou em ambos os casos a satisfazer os desejos de descrição empírica, registro da natureza e das taxonomias incontáveis de sua diversidade (FONTCUBERTA, 1998, p.137).
Como foi explicado anteriormente, a simulação irônica pode envolver o
147
confronto de valores do texto-base, o protesto social, a crítica ao processo produtivo
do gênero e até o humor. Fauna Secreta contraria os valores da fotografia a ponto
de colocar sob suspeita sua posição de registro crível. O enunciatário, mais uma vez,
é ativo ao compreender a ironia e construir o discurso secundário. A grande
diferença a destacar é que o dispositivo simulativo paródico irônico de Fauna Secreta
é arriscado por não deixar evidente o efeito irônico.
Por outro lado, apesar de Fontcuberta afirmar que Fauna Secreta se mostra
"claramente ficcional", ele mesmo fornece dados que comprovam o "risco". Em
outubro de 1989, um membro do Departamento de Educación del Museo de Zoologia
concluiu que, durante o mês de férias escolares (ou seja, a maioria dos visitantes
eram adultos interessados e habituados a museus), 28% dos visitantes não
entenderam a ironia, acreditaram no cenário exposto (FONTCUBERTA, 1998, p.230).
Sendo assim, mesmo com fotos de elefantes voadores, macacos alados, Fauna
Secreta é radical porque é audaciosa ao não deixar tão claras as marcações. Porém,
essa forte camuflagem, proporcionalmente, provoca mais surpresa naqueles que
entendem a ficção da obra e, assim, "envenena suas certezas" e origens das suas
suposições. "Nesse cenário definido historicamente e politicamente, a fotografia nos
distrai com sua aparência e objetivas. E esconde a operação mecânica do seu
potencial infinito para a invenção" - afirma Fontcuberta (2012).
Pode-se afirmar que a principal estratégia do dispositivo utilizada por
Fontcuberta para tornar suas peças críveis era a fidelidade ao modelo utilizado em
botânica, zoologia e museologia. A proposta de reproduzir a técnica de catalogar
vegetais criada e amplamente difundida por uma corrente alemã (Blossfeldt), usar a
linguagem dos museus de história natural e a taxidermia tornou seus objetos mais
fiéis ao que tentavam representar, e isso é essencial ao ato de promover a ironia.
A reprodução ou mesmo a atribuição de características palpáveis faz da
ficção algo mais fácil de ser entendido como real. Seria pôr em prática o dito popular
de que, "para mentir, seria necessário falar um pouco de verdade". Bom exemplo foi
o do americano Phineas T. Barnum. Ele era um showman bem sucedido e, embora o
tema de "sereias" já houvesse sido bastante explorado em Vaudevilles, conseguiu
destacar-se exatamente por exibir uma realidade mais "provável". A sereia de
148
Barnum sugeria uma espécie de metade múmia e outra de peixe. Foi montada com
ossos, peles e escamas reais e com o cuidado de não deixar à mostra os remendos.
O cartaz que anunciava a "Siren do Fidji" (HISPANO, 2001), exibia, como usual,
mulheres-peixes com seios fartos, rostos bonitos e cabelos longos. Todavia, o objeto
em si era uma massa de pele e osso, distorcida, como uma múmia. A maioria das
pessoas ficaram horrorizadas com sua feiúra. Por outro lado, ele causou polêmica
porque ter aparência de cadáver, parecia mais real, e até os mais céticos se
deixaram enganar. Essa estratégia garantiu um outro viés para a exibição seres
incomuns: o debate sobre se elas existem ou não.
Depois de forjar vegetais e sua aplicação científica, tornar reais animais
naturalmente impossíveis, Fontcuberta voltou-se para uma produção mais específica,
porém não menos popular no imaginário coletivo, que dragões. Em Sirenas, o artista
promove uma simulação que expõe, ficção em forma de fotos e desenhos a pesquisa
do paleontólogo jesuíta Jean Fontana, que descobriu fósseis de uma espécie que
pode ser considerada o elo perdido da cadeia evolutiva do homem. Jean Fontana
(interpretado por Fontcuberta), encontrou, pela primeira vez esqueletos do que
denominou Hydropithecus ("macaco água") dos Alpes. Depois de vários anos, foi
chamado para dirigir escavações em Cerro de San Vicente (Salamanca, Espanha),
onde foram encontrados mais fósseis do "macaco água". Na verdade, por se tratar
de um animal metade macaco e metade peixe, foi comparado às místicas sereias. A
descoberta projetou novas perspectivas à teoria da evolução, tendo em vista que os
ossos datam do período Mioceno (23 a 5 milhões de anos atrás).
Fontana dedicou-se a estudar e catalogar os fósseis de Salamanca, com o
objetivo de provar a existência da Hydropithecus fêmea e seus hábitos como dar à
luz nas praias ou água calmas, de forma isolada do grupo. Toda a polêmica da
fraude do Homem de Piltdown (Cap. 01) e suspeitas sobre o trabalho de cientistas
de ordens religiosas católicas fizeram com que referidos fósseis fossem esquecidos.
Até que a Reserva Geológica de Haute Provence incluiu na sua área de visitas os
achados de "sereias".
Fontcuberta utiliza-se de fotografias, desenhos e até uma imagem de uma
revista especializada que trás na capa os restos do Hydropithecus. Assim como em
149
Fauna Secreta, há o personagem do cientista que, coincidentemente, morreu em
circunstâncias misteriosas. Repete-se também a ideia do importante registro que o
trabalho se propõe tendo em vista a "revelação" de uma pesquisa esquecida como os
animais de Ameisenhaufen.
Novamente, Joan Fontcuberta insere a linguagem científica como forma de
autenticar o material fotografado.
Várias hipóteses são consideradas para tentar explicar a condição excepcional do presente esqueleto. A posição da coluna arqueada, a abordagem das patas dianteiras e da posição de perfil do crânio vislumbram que este Hydropithecus foi rapidamente enterrado enquanto dormia. Isso também explicaria a ausência de espalhamento dos ossos, apesar do desaparecimento do tecido macio (músculos, ligamentos, etc). Um deslizamento poderia ter causado a morte e revestimento posterior da amostra. (FONTCUBERTA, 2008, 181)
Mais uma vez, a fotografia encontra-se no centro da crítica irônica de
Fontcuberta. Ele pretende expor que a câmera, de fato, é capaz de ser realista, mas
na medida em que a realidade se deixa ser capturada. Dizer que a fotografia é
registro do real, "é não entender que o realismo, como qualquer invenção humana, é
relativo, histórico, condicionados pela ideia que os homens fazem do mundo e de si
mesmos" (FONTCUBERTA, 1998, P.37). Além de voltar a inserir a fotografia no
debate real versus ficção, Sirenas, por apropriar-se de discursos científicos como a
paleontologia, traz a ciência como obra de arte. Nesse caso, o artefato, literalmente,
Figura 71 - À esquerda, imagem do esqueleto de uma sereia à margem do rio Tormes. À direita, esboço de sereia realizado por Jean Fontana.
150
mescla a arte com o fato para promover uma reflexão a respeito da fácil aceitação
de informação perante elementos institucionais da autoridade científica, como o
museu.
Na mesma orientação, o artista e professor da Universidade do Tennessee
(Estados Unidos) Lyon Beuvais. Assim como Inês Raphaelian e Fontcuberta, ele cria
elementos fotográficos, esculturas, cerâmica e xilografias como simulações
paródicas irônicas. Alguns trabalhos de Beuvais reproduzem os mesmos temas
Figura 72 - A esquerda, Sereia de Tormes. A direita, vitrine da instalação no CAIRN, Digne-les-Bains, 2000.
Figura 73 - A esquerda, Sereia de Tanaron. A direita, simulação de uma capa de revista especializada que "abordou"o assunto.
151
abordados por Fontcuberta e Raphaelian. Na exibição The Centaur Exacavations at
Volos, Beuvais questiona a autoridade institucional do museu ao mostrar uma ficção
como artefato. Em uma vitrine (Figura 73), localizada numa das bibliotecas da
Universidade do Tennessee, foi exposta uma combinação de ossos de pônei com um
esqueleto humano em decomposição, com tábuas de argila inscritas. Todo o
conjunto para simular um achado arqueológico de um Centauro, mito grego, metade
homem, metade animal. A descrição indicada na simulação: "um dos três enterros de
Centauro descobertos, em 1980, pela Sociedade de Arqueologia de Argos Orestiko a
oito quilômetros a nordeste de Volos, na Grécia". Beuvais incluiu ainda gravuras de
Centauros, explicando a morfologia do animal. O dispositivo é o mesmo de
Fontcuberta, ao apropriar-se de uma linguagem objetiva, como a utilizada nas
descrições em museus de ciência natural. O Centauro de Volos é uma simulação
paródica de arqueologia que reflete sobre os meios de informação, os quais, por
vezes, não são observados com uma visão crítica."Esse trabalho de paródia das
funções acadêmicas trabalha como uma forma consciente de auto-crítica,
desconstruindo a autoridade da biblioteca em si." (BEUVAIS, 2012).
Embora seja simulação paródica, pode ser classificada como radical, porque a
ironia é intensamente camuflada, com exceção do título da descrição: "Você acredita
em Centauros? (Do you believe in centaurs?)". Embora a frase destaque o sentido de
credibilidade, pondo sob suspeita o artefato, pode ser interpretada apenas como
provocativa, não induzindo a percepção da ironia de expor uma montagem como
sendo um cadáver de Centauro.
Além da semelhança visual do objeto artístico de Beuvais com as sereias de
Sirenas (Fontcuberta), ambos levam até o limite a ficção ao inserir dois elementos
místicos, que sempre foram considerados lendas ou folclore, num formato de estudo
histórico. Tanto os centauros como as sereias são personagens presentes na
fantasiosa dos contos e fábulas e que, de repente, surgem "provas"da sua existência.
Mais uma vez, o conteúdo é autenticado pelo formato e, após a compreensão do
efeito subversivo irônico, o formato é atualizado como suspeito e frágil. Este é um
dos principais objetivos de Beuvais.
152
Outro trabalho de Lyon Beuvais que desperta interesse por trabalhar a ficção
dentro da formalidade da ciência é The association for creative zoology. Beuvais
simula uma exposição móvel (um quiosque) que apresenta um vasto material de
litografia e taxidermia de animais ficcionais. Mas o seu registro comprova uma
abordagem religiosa que contraria a teoria da evolução: zoomorphic juncture. De
forma similar, a Fauna Secreta, o zoológico criativo de Beauvais, fornece um material
de criaturas inusitadas, resultado de uma pesquisa na Ilha de Tallilumbae, realizada
por um professor (Nichols) - uma ficção para legitimar as imagens expostas. Os dois
trabalhos resultam numa crítica à legitimação documental científica.
Diferente de Herbarium e Fauna Secreta, alguns trabalhos de Fontcuberta
priorizam o jornalismo investigativo, em virtude de não tratar mais de animais ou
plantas, mas de pessoas que, supostamente, fazem parte da história política e
cultural. Um trabalho tão elaborado quanto Fauna foi Sputnik.
Fontcuberta não faz mais uso de modelos científicos, mas prossegue com o
formato de museu dotado de uma diversidade de material suficiente para autenticar
a sua ficção e utilizar a sua imagem para produzir o personagem. Como nos
trabalhos anteriores, neste há uma história ficcional que tem como ferramentas de
autenticidade
Figura 74 - Fotografia da simulação arqueológica do Centauro, da biblioteca da Universidade do Tennessee.
153
fotografias manipuladas, documentos, uniformes, máquinas fotográficas e livro. A
ficção conta que, em 25 de outubro de 1968, o astronauta russo Ivan Istochnikov e
Kloka, uma cadela treinada, embarcaram na aeronave Soyuz 2 para uma missão de
manobras com a Soyuz 344. Ao tentar realizar o acoplamento orbital, houve
problemas, e quando a Soyuz 2 foi encontrada, o astronauta e a cadela tinham
desaparecido. Em meio à corrida espacial com os Estados Unidos, a Rússia não
permitiu o revelar ao público a perda de um astronauta. Desse modo, decidiram
esconder que teriam perdido Istochnikov no espaço, e as autoridades do estado
chantagearam seus colegas, enviaram sua família para a Sibéria, além de manipular
fotos para apagar sua imagem. Com a Perestróica, foi criada a Fundação Sputnik,
exatamente para procurar esclarecer casos como esse. E, assim, surgiu a exposição
Sputnik, que descreve como Istochnikov foi apagado da história.
Ainda para autenticar a ficção, acontecimentos da história entram como base
para o enredo. A simulação exibe fotos que foram manipuladas para apagar a
imagem do astronauta. Uma prática realmente comum dos governos autoritários
para eliminar da história política líderes que tentaram desenvolver ideias contrárias.
O uso do damnatio memoriae, abordado anteriormente como padrão na China,
Rússia, Alemanha e até em Cuba, são pontuações reais que servem para agregar
mais credibilidade à ficção de Sputnik. Um bom exemplo desse link entre realidade e 44 Com o propósito de tornar a história ainda mais convincente, Fontcuberta faz uso de fatos concretos. A aeronave Soyuz 3 realmente existiu e tinha como missão encaixar-se com a Soyuz 2.
Figura 75- Imagem de animais empalhados e montados com membros de outros. Xilografia de animais exóticos ficcionais.
154
fantasia é a foto (Fotografia 59) que, de acordo com a história de Fontcuberta, foi
descoberta por um jornalista americano, que a comparou com uma réplica adquirida
em leilão, percebendo que fora alterada. A fotografia, originalmente de 1967, exibe
os astronautas Leonov, Nikolayev, Rozhdestvensky, Berezovoy e Shatalov com
Istochnikov, o que não acontece com a réplica de 1993. Vale ressaltar que o retrato
desses astronautas é autêntico e que Fontcuberta apenas acrescentou sua imagem,
ou melhor, a do personagem Istochnikov.
A Rússia (Figura 77) tinha como hábito apagar imagens de astronautas
mortos. Era muito importante para o governo manter a ideia de que os russos eram
melhores que os americanos, que não cometiam falhas.
Figura 76 - À direita, foto que sofreu manipulação digital e resultou na foto "oficial"de Ivan Istochnikov (à esquerda).
Figura 77 - À esquerda, foto (1961) dos astronautas russos: Sentados: Andrian Nikolaev, Yuri Gagarin, Sergei Korolev, Boris Yegorov, Vladimir Shatalov/ Em pé: Pavel Popovich, Vladimir Komarov, German Titov, and Valery Bykovsky. A direita (1971), foto sem a imagem de Vladimir komarov, que morreu em 1967.
155
O russo Vladimir Komarov, foi o primeiro astronauta a morrer em uma missão (Soyuz
1). Na foto com outros colegas, de 1961, (Figura 77) ele teve sua imagem apagada.
Istochnikov seria uma paródia de Komarov?
Sputnik é um trabalho que, além de exibir réplicas de foguetes, capacetes,
objetos de astronautas, é sistematicamente organizado para formar uma biografia
por meio de fotos. Naquela época, devido à importância que o governo soviético
dava aos avanços na conquista do espaço, a imagem dos astronautas era explorada
ao máximo por meio de fotografias e até selos postais. Desse modo, Sputnik
desenvolve sua paródia produzindo grande diversidade de fotografias de Istochnikov,
em sua infância, ingresso no exército, casamento, discursos públicos e antes de
embarcar para o espaço.
Figura 78 - À esquerda, foto com Istochnikov (manipulação digital). À direita, foto sem o personagem desaparecido.
Figura 79 - Imagens manipuladas para Sputnik.
156
Mais uma vez, Fontcuberta promove o debate a respeito da realidade
fotográfica. Ao trabalhar com a ironia, o artista procura orientar o espectador a
duvidar dos suportes midiáticos, como um todo. Da mesma forma que surpreende ao
revelar a ficção nesse ambiente de museu e põe em dúvida a mídia como registro
documental. Dentro de um cenário essencialmente voltado para exibir documentos, a
ficção é exposta como evento factual. A ironia de Sputnik é avaliadora porque, ao
mostrar uma instalação que parece exibir eventos verídicos, denuncia como são
frágeis os critérios que resultam na credibilidade de um documento. Tanto a
autoridade da fotografia, quanto a do museu, como meios de informação
documental, são postos sob suspeita. E, assim, a paródia irônica que Fontcuberta
constrói com o desacordo entre ficção e não ficção, pode promover, no espectador, o
exercício de desafiar a crença acrítica na fotografia como documento histórico.
Sputnik consiste em um procedimento didático que confronta o potencial que um
recipiente (museu) tem ao agregar valor "sacramental" de credibilidade em um
objeto como o Centauro de Beuvais ou as cerâmicas do futuro de Raphaelian.
De modo geral, o espectador vê-se numa instalação, tendo ao seu redor vasto
material documental inédito e de grande importância na história da exploração
espacial. Todavia, em dado momento, ele desperta para a ironia e desconfia que
tudo aquilo é ficção. Na Fauna, um desses pontos que estimulam o despertar é a
foto dos elefantes voadores, porque seria um fenômeno bem improvável de
acontecer. Em Sputnik, a fotografia que mostra uma garrafa de vodka com um
bilhete dentro, vagando pelo espaço, é a pista necessária para que o visitante da
exposição seja motivado a descobrir a ironia que se passou, possivelmente
despercebida até o momento. Mesmo com esses pontos de "disparo", Sputnik
mostra-se um modelo de simulação paródica radical, porque assume a possibilidade
de a ironia não ser reconhecida45.
45 O programa de tv Cuarto Milenio en Cuatro exibiu fotos de Sputnik como sendo provas da existência de um astronauta desaparecido, ou seja, não observaram a ironia e "cairam" no trote. Eles convidam um "especialista" para falar do assunto, que afirma que Istochnikov foi um astronauta que teve sua história apagada. Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=EXZTVDkL2JM>. Acesso em: 28 Jan. 2012.
157
Figura 82 - Imagem de uma garrafa de vodka que vaga pelo espaço com, supostamente, uma carta de despedida de Ivan
Figura 81 - Instalação no Photo Art Festival, Maio, 2000.
Figura 80 - A esquerda, Ivan Istochnikov se despedindo antes do embarque. A direita, Ivan é agraciado com o "pañuelo de pionero"em Moscou.
158
Outros dois trabalhos de Fontcuberta seguem o mesmo propósito de motivar o
senso crítico de seus espectadores. Todavia, questionam, especificamente, o
jornalismo investigativo que oferece comprovações por meio do registro documental,
seja fotografia ou vídeos.
Em Miracle & Co. Fontcuberta retorna ao início da prática fotográfica, quando
era amplamente utilizada como verificação de eventos sobrenaturais. De fato, alguns
acreditavam que a fotografia era capaz de capturar a alma e imprimi-la no papel46.
Desse modo, como uma forma de explorar o aparato de revelação, fotógrafos
começaram a vender a ideia de que podiam registrar a aparição da alma dos
parentes falecidos do seus clientes. Esta prática deu origem a uma das primeiras
formas de manipulação fotográfica. Os profissionais conseguiam alguma foto dos
falecidos e mesclavam partes com novos negativos por meio de exposições
repetidas em laboratório (BRUGIONI, 1999, p.157). Este tipo de atividade também é
utilizada por fanáticos religiosos para comprovar milagres de aparições de figuras
sagradas. Retomando o propósito de apontar a fotografia como uma plataforma
documental frágil, Fontcuberta mostra que a manipulação é uma prática ativa,
principalmente com as possibilidades digitais.
A narrativa ficcional, desta vez, conta que Fontcuberta, em viagem à
Finlândia, deparou-se com um anúncio inusitado nos classificados do principal jornal
da cidade: que um monastério de Valhamönde oferecia curso para as pessoas
aprenderem a produzir milagres. Então, Fontcuberta, percebendo o enigma, decidiu
ir ao local para investigar e fazer registros documentais fotográficos das práticas que
lá sucediam. E, assim, o artista seguiu para a região de Karelia. Vale acrescentar
que, diferentemente de Sputnik, a imagem de Fontcuberta representa ele mesmo e
não algum personagem fictício.
Na exposição, são exibidos vídeos e fotografias dos diversos milagres que
Fontcuberta aprendeu com os monges: milagre da eletrogênese (controle da
eletricidade dos raios), milagre do espelho (espelho errante que reflete sem
46 "Alguns povos ditos “primitivos” acreditam que a fotografia lhes rouba o espírito e resistem a ser fotografados, temendo que alguma parte de si mesmos seja fixada no celulóide" (MACHADO, 1984, p.33)
159
reverter), da ubiquidade (multiplicação da pessoa), da criofloração (floresce uma
árvore), da invisibilidade, levitação, etc. Todos têm sua descrição, jornalística, e
alguns são baseados em eventos "sobrenaturais" como o milagre do pensamento
fotográfico. Na década de 50, Ted Serious, um sensitivo de Chicago, afirmou que
podia imprimir fotos com imagens originadas do seu pensamento. O caso foi
popularmente divulgado. Fontcuberta afirma que Serious assinou contrato de ensinar
apenas aos monges de Valhamönde o segredo do seu dom.
Outros milagres são baseados na crença religiosa como o milagre da
lacrimação sanguínea, da divisão das águas e da ressurreição. Em Miracle & Co.
Fontcuberta focaliza sua produção em astúcias da manipulação fotográfica digital. A
maioria das peças não são tão críveis mesmo porque é sabido que o realizador de
tantos milagres não é uma figura bíblica, mas um fotógrafo. De fato, o ilusionismo de
Miracle & Co. promove uma retomada dos primórdios da prática fotográfica para
poder demonstrar as artimanhas do Photoshop.
Figura 83 - Fontcuberta "realizando"o milagre da Criofloração.
160
O trabalho não configura um a simulação radical, porque se percebe o
propósito maior do humor do que fazer o espectador acreditar no que vê. Em outras
palavras, a ironia produzida pela paródia de Miracle & Co. tem mais um efeito
humorístico do que avaliador. Em Fauna Secreta e Herbarium, os referentes das
fotografias poderiam existir se considerarmos o número de animais e plantas
existentes e que ainda não foram catalogados pela ciência. Por outro lado, em
Miracle & Co., a imagem do fotógrafo realizando milagres é bem mais duvidosa e,
assim, não permite o firmamento do "crer verdadeiro" para que depois o espectador
descubra a ironia. Na verdade, a ironia está dada por meio da paródia. Sendo de tal
modo, Miracle & Co diferencia-se dos demais por ser uma simulação paródica irônica,
ou seja, não é radical porque não é arriscada.
Figura 84 - Fontcuberta "fazendo" o milagre da lacrimação sanguínea.
161
Figura 86 - A esquerda, Fontcuberta em o milagre da feminilidade. A direita, carta de Tarot utilizada como material didático.
Figura 85 - A esquerda, Fontcuberta realizando o milagre da levitação. A direita, o milagre da ubiquidade.
162
Em 2002, o diretor de cinema William Karel produziu o falso documentário
Operátion Lune, que afirmava (e exibia provas como arquivos de imagem e
entrevistas) que o homem nunca pisou na Lua e que a exibição ao vivo foi uma
farsa, que, na verdade, era um filme dirigido por Stanley Kubrick. Ao final, nos
créditos, aparecem os erros dos atores que se passaram por pessoas envolvidas na
farsa e, assim, é definida uma das poucas evidências da simulação. Operátion Lune é
uma obra que aborda um tema polêmico, tendo em vista que muitas pessoas ainda
duvidam da façanha dos americanos em 1969.
Fontcuberta também se aproveita de uma "conspiração" para criar uma
simulação paródica radical. De acordo com o artista (FONTCUBERTA, 2007), depois
dos atentados de 11 de setembro, as autoridades norte-americanas precisavam
encontrar um culpado e produziram a imagem de Osama Bin Laden. A partir daí,
criou-se a ficção que orienta todo o trabalho de Deconstructing Osama.
Assim que os vídeos e fotos do terrorista foram-se espalhando pela internet,
grupos antiguerra acusaram o governo de que Bin Laden, na verdade, era um ator e
cantor chamado Mohamed Bin Yousuff, que teria sido contratado para interpretar o
papel desse "vilão". Então, para obter mais informações sobre o verdadeiro líder da
Al-Qaeda, Dr. Fasqiyta Ul-Junat, os jornalistas Mohammen ben Kalish Ezab e Omar
ben Salaad investigaram o caso e descobriram que este também era um terrorista
falso, interpretado por um ator de novela e comerciais chamado Manbaa Mokfhi, que
desapareceu em circunstâncias misteriosas.
Deconstructing Osama não é uma paródia tão complexa como Fauna Secreta.
Porém, observa-se uma simulação dentro de outra. Fontcuberta interpreta Mokfhi,
que, dentro da ficção, interpreta Ul-Junat. Esse desdobramento representa a
possibilidade de sermos manipulados pela mídia. Deconstructing Osama é constituída
de fotografias e vídeos que comprovam a existência de Mokfhi, interpretado pelo
fotógrafo. O processo de ironia de Fontcuberta, no entanto, é o mesmo: cria-se uma
ilusão que, no percurso da experimentação, o espectador vai desvendando a ironia.
Por outro lado, essa compreensão é o que se espera da maioria, exatamente para
que a simulação não seja um trote, e sim uma ironia que avalia, questiona e educa
as pessoas quanto à sua própria ingenuidade, tradicionalmente apreendida, a
163
respeito da fotografia. Mas assim como em Miracle & Co., Fontcuberta pôs em pauta
a fotomontagem para uso religioso. Em Deconstructing Osama, ao buscar a reflexão
da manipulação midiática não somente no substrato fotográfico, mas na criação
situacional: como seria se Osama Bin Laden fosse um ator ou se toda a crença do
homem na Lua se resumisse a mais um filme de Kubrick.
Figura 87 - Manbaa Mokfhi interpretando o personagem Dr. Fasqiyta Ul-Junat.
Fontcuberta busca, numa manifestação, trazer a arte e o fato. Este último se
apresenta como paródia dos discursos jornalísticos ou científicos, com o objetivo
principal de propor a reflexão crítica sobre a fotografia como realidade. A ficção é
inserida e legitimada por meio de cenários com fotos, vídeos, objetos. Embora ocorra
que algumas pessoas não observem a ironia, não é intenção de Fontcuberta a
indução ao erro ou iludir por iludir. Ele pretende a ilusão a priori, para depois
resgatar esse espectador inserido na ficção visando para mostrar-lhe como é fácil a
manipulação da fotografia. Com efeito, Fontcuberta não só questiona a fotografia,
164
mas todo sistema de informação, todo suporte midiático como cinema, televisão,
jornal impresso, internet, etc.
Figura 88 - Manbaa Mokfhi numa campanha internacional do Mecca Cola, 1986.
Figura 89 - Manbaa Mokfi numa foto promocional da comédia O sorriso de Sherezade.
165
Figura 90 - Material de imprensa relacionado com Dr. Fasqiyta-Ui Junat, terrorista falso interpretado pelo ator Manbaa Mokfhi
Figura 91 - Dr. Fasqiyta-Ui Junat no Iraque, 2004.
166
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para o propósito de verificar o fake fotográfico como elemento de crítica, foi
necessário discutir, primeiramente, os motivos que levam o homem a fabricar
elementos falsos que, por meio de diversos exemplos, podemos observar que estão
inseridos na nossa história. Examinamos essa causa a ponto de entenderemos que
as falsificações fazem-se capazes de fornecer informações do seu processo de
produção, que, por vezes, nem a análise do elemento imitado em si é capaz de
oferecer. Desse modo, foi fundamental assumir a historicidade das falsificações,
como mediadora da identidade cultural do homem. Por outro lado, entre esses
motivos, encontramos o engano, o lucro e a vantagem financeira, mas não a reflexão
sobre o suporte midiático, a estética ou, até mesmo, o estilo do autor. A
contemplação do questionamento crítico como objetivo fundamental só foi possível
experimentar (de tal forma) em trabalhos que têm o dispositivo de reportar-se a
outros textos, as simulações. Todavia, o paralelo não é uma simples paródia, mas
um processo que promove o confronto de valores, seja ele do formato, do conteúdo
parodiado ou mesmo de outro aspecto extramural (contexto histórico, autoria, etc).
O fake fotográfico destaca-se porque a sua falsificação não tem o ganho
financeiro e as suas simulações paródicas; são ironias que subvertem a própria
prática. No século XXI, com o avanço tecnológico, as câmeras fotográficas estão
mais acessíveis. Os celulares smartphones trazem lentes com resoluções altas e
aplicativos que manipulam essas fotografias. Há softwares que oferecem de filtros
até colagens. Como sempre foi, o desenvolvimento técnico promove a popularização
do aparato, que, por conseguinte, disponibiliza maior facilidade em manipular o
resultado, principalmente quando é digital. As simulações, como as de Fontcuberta,
pretendem, exatamente, eliminar as convicções que a imagem produz para colocá-
las sob suspeita devido às possibilidades de intervenções.
No Sensacionalista, vimos uma crítica velada ao jornalismo como mercadoria.
O Not the Financial Times censura o capitalismo e as práticas não sustentáveis. Já
Fauna Secreta, por meio de um conjunto de elementos, produz o efeito ilusório,
167
que, quando revelado, visa apontar para a confiança acrítica depositada no meios
institucionais de informação como a mídia e os museus.
Na dissertação de mestrado (EMÉRITO, 2008), depois de examinar o falso
documentário e classificá-lo, foi observada a complexidade do falso e que era
necessário abordá-lo em outros suportes para poder verificar a crítica como propósito
comum. Para isso, esta pesquisa pôde examinar o falso e chamá-lo de fake, porque
nem tudo é falsear. Percorremos, então, a rota desde as falsificações até as
simulações. A variedade de trabalhos pesquisados ofereceu características
suficientes no sentido de apontar para a simulação irônica e a simulação radical,
sendo as duas, formas de prática irônica que se diferenciam por intensidade das
marcas reveladoras. Quanto menos marcações, o enunciado aponta ao enunciatário,
mais ele poderá não seguir o percurso narrativo que leva à enunciação proposta.
Nesses casos arriscados, estão as simulações radicais como Sputnik. Vale ressaltar
que a distinção da simulação radical é questionável, haja vista que não há formas
seguramente mensuráveis para os níveis de exposição das marcas que revelam a
ironia. Desse modo, a classificação como radical está na comparação com outras
mídias mais sutis.
As simulações paródicas irônicas apresentam uma encenação para, depois,
causarem uma ruptura com a revelação da ironia. Com tal fim, a estratégia de iludir
está em fazer verdadeira a ficção por meio da construção de elementos que
compõem o cenário autoritário de credibilidade, como uma exposição em museu. Os
códigos dessa linguagem científica, nas simulações fotográficas de Fontcuberta,
comprovam que a apropriação, ou melhor, a paródia produz um efeito que agrega o
valor crível necessário para posteriormente, ao revelar-se como desacordo, produzir
a ironia. As diversas relações questionadas pelos elementos que compõem as
análises, de fato, comprovam o fake como uma das formas de auto-reflexividade dos
regimes midiáticos do nosso tempo.
168
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ANEXO A - Diagrama de funções da Ironia - Linda Hutcheon
ANEXO B - Transcrições de comentários recolhidos durante a exposição de Fauna Secreta pelo Departamento de Educação do Museu de Zoologia de Barcelona: “Essa exposição de fotografia relacionada à combinação de espécies distintas me assombrou verdadeiramente já que as fotografias têm um realismo que embora sejam antigas, manifestam as realizações da ciência.” Anônimo (4/6/1989) "Agradecido por essa amostra tão maravilhosa que nos deixou a equipe do professor Ameisenhaufen. Espero o reconhecimento das próximas gerações”. Maria Eugenia Ramos, Marisa, Maria Elena Ramos, Gonzalo, Laura B. (4/6/1989) “É algo que não se pode descrever com palavras, é um mundo que jamais havia pensado que existia”. Francisco Fernández (28/7/1989) “Acho que só 4 animais. Eu acho que esse cientista teve a sorte de descobrir alguma espécie nova, e depois, com o desejo de obter fama, começou a fazer experiências genéticas, acrescentando clara montagem fotográfica, criou esta série de exposições para o mundo". Juan Andrés (23/7/1989) “Exposição sobre animais muito pouco críveis. Se esses animais tivessem existido haveria algum exemplar vivo”. Jaume R. (3/6/89) “Não sei...a natureza é muito sábia e misteriosa mas o homem é muito desonesto...tenho as minhas dúvidas se não estão trapaceando” Javier (10/7/1989) “Eu gosto de ver como as pessoas crêem naquilo que vêem fotografado” Assinatura ilegível (18/6/89) “A exposição demonstra como algo que é surreal pode parecer real por causa das técnicas visuais, etc.; o que nos leva à conclusão de como o uso indevido dos meios de comunicação podem chegar a exercer uma manipulação e controle sobre a população”. Anônimo (15/7/89) “A fraude total. Completamente ficcional, lixo. Absurdo, nós devemos olhar para a verdadeira beleza natural, seu homem doente”. Ecologista de Londres (29/8/89) “Espero não ter pesadelos. Algum dia serei veterinária” - Andrea (14/9/89)