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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO POÉTICAS VISUAIS EM CONSTRUÇÃO: A METAMORFOSE EXPRESSIVA DA CRIANÇA E A EDUCAÇÃO (DO) SENSÍVEL DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Letícia Uhmann Schneider Santa Maria, RS, Brasil 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

POÉTICAS VISUAIS EM CONSTRUÇÃO: A

METAMORFOSE EXPRESSIVA DA CRIANÇA E A EDUCAÇÃO (DO) SENSÍVEL

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Letícia Uhmann Schneider

Santa Maria, RS, Brasil 2007

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POÉTICAS VISUAIS EM CONSTRUÇÃO: A METAMORFOSE

EXPRESSIVA DA CRIANÇA E A EDUCAÇÃO (DO) SENSÍVEL

por

Letícia Uhmann Schneider

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa Educação e Artes, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como

requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação

Orientadora: Profa. Dra. Ana Luiza Ruschel Nunes

Santa Maria, RS, Brasil 2007

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Universidade Federal de Santa Maria

Centro de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Projeto de Mestrado

POÉTICAS VISUAIS EM CONSTRUÇÃO: A METAMORFOSE EXPRESSIVA DA CRIANÇA E A EDUCAÇÃO (DO) SENSÍVEL

elaborada por Letícia Uhmann Schneider

Como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação

COMISSÃO EXAMINADORA:

_______________________________________ Ana Luiza Ruschel Nunes (Drª-UFSM)

(Presidente/Orientadora)

_______________________________________ Tânia Maria Esperon Porto ( Drª-UFPEL)

________________________________________

Ayrton Dutra Corrêa (PhD-UFSM)

_______________________________________ Mirian Celeste Ferreira Dias Martins (Drª-UNESP)

Santa Maria, 2007

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Às muitas companheiras e companheiros de navegação... meu muito obrigada... A toda a minha família, em especial a mãe, ao pai e a mana, por acreditarem no sonho; por me

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No aeroporto o menino perguntou:

- E se o avião tropicar num passarinho?

O pai ficou torto e não respondeu.

O menino perguntou de novo:

- E se o avião tropicar num passarinho triste?

A mãe teve ternuras e pensou:

Será que os absurdos não são as maiores

virtudes da poesia?

Será que os despropósitos não são mais

carregados de poesia do que o bom senso?

Ao sair do sufoco o pai refletiu:

Com certeza, a liberdade e a poesia a gente

aprende com as crianças.

E ficou sendo.

Manoel de Barros (2003)

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RESUMO

Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Educação

Universidade Federal de Santa Maria

POÉTICAS VISUAIS EM CONSTRUÇÃO: A METAMORFOSE EXPRESSIVA DA CRIANÇA E A EDUCAÇÃO (DO) SENSÍVEL

AUTORA: LETÍCIA UHMANN SCHNEIDER ORIENTADORA: Profa. Dra. ANA LUIZA RUSCHEL NUNES

Data e Local de defesa: Santa Maria, 17 de maio de 2007.

Esta pesquisa vinculada ao Curso de Pós-Graduação em Educação, Linha de Pesquisa em Educação e Artes, foi desenvolvida com uma turma de 3ª série da Escola Antônio Alves Ramos, na cidade de Santa Maria-RS. Objetivou conhecer e analisar o percurso criativo das poéticas visuais em construção de crianças dos Anos Iniciais, proporcionando tempo e espaço para experenciAÇÃO poética, na interação com a educação (do) sensível. Para tanto, articula um diálogo com as vozes e idéias de Bachelard (1988, 1989, 1994), Richter (2005), Duarte Jr.(2001), Martins(1998), Maturana e Varela (2002) e Barbosa (2001, 2002). A metodologia utilizada na pesquisa tem por base os princípios de natureza qualitativa através da pesquisa-ação. Apresenta-se como pesquisa participante, sustentada na experiência para poetizar e fruir arte no cotidiano escolar, enfatizando o imaginário, o processo poético e as dimensões de pessoalidade, e não apenas o resultado plástico obtido. Os instrumentos de coleta de dados utilizados nesta pesquisa foram: observação livre e participante, diário de campo e portfólio. Para tanto, nos percursos criadores das poéticas visuais das crianças, tornou-se evidente que o corpo traz uma história – um tempo corporalizado – e que não podemos “ensina-las” a ver e muito menos a imaginar, pensar e agir como nós adultos. Os fazeres exigiam tempos diferenciados, já que cada criança abordava o mundo de modo diferente, em sua inexperiência – outra temporalidade – o abordavam encantadas, admiradas, espantadas, instigantes. As poéticas visuais em construção permitiram prazerosamente, descobertas internas que nutrem a essência do sujeito de forma a poder sentir, tocar, misturar, agregar, colar, juntar, modelar, esculpir, traçar. Por isso, trabalhar com a arte é apostar na sintonia do prazer com o sentimento, o afeto e o pensamento para a construção de um mundo de significado e significantes. Um mundo de cores, palavras, pensamentos e ações, onde arte e cognição interagem no trabalho poético e colaboram significativamente na formação infantil.

Palavras-chaves: poéticas visuais em construção; metamorfose expressiva; educação (do) sensível.

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ABSTRACT

Master’s Degree Dissertation Post-Graduation on Education

Universidade Federal de Santa Maria

UNDER COSTRUCTION VISUAL POETICS: THE EXPRESSIVE METAMORPHOSIS OF THE CHILD AND THE EDUCATION OF SENSORIAL ASPECTS

AUTHOR: LETÍCIA UHMANN SCHNEIDER ADVISOR: Profa. Dra. ANA LUIZA RUSCHEL NUNES

Date and Place: Santa Maria, May 17th, 2007.

This research, linked to the Teaching Post-Graduating Course, Arts Educational field, has been developed in a third (3rd) grade class of the Antônio Alves Ramos school, at the city of Santa Maria, RS. Aimed to know and analyze the under constructing creative process of the Initial Years children, providing time and space to the poetic action-experience, in the interacting with the education of the sensorial aspects. For that, articulates a dialogue with voices and ideas of Bachelard (1988, 1989, 1994), Richter (2005), Duarte Jr. (2001), Martins(1998), Maturana and Varela (2002) and Barbosa (2001, 2002). The methodology used in the research was based in the qualitative nature principles by the action-research. Presents itself as participant research, sustained by experiences of art poetics and fruition of daily school experience, emphasizing the imaginary, the creative process and dimension of being a person, not just the final artistic product. The instruments used for gathering data for this research were participative and free observation, field diary and portfolio. For that, in the creative process of children visual poetics, became obvious that the body carries a history - body time - and we can not teach them how to see, imagine, think or act like the adults. The act of creation demanded differentiated times, since each child understood the world in a different way, in their inexperience - another time aspect - admired, enamored, wondered, curious. The under constructing visual poetics allow with pleasure, internal discoveries which feed the person essence in a way to be able to feel, touch, mix, stick together, shape, plot, collect. Therefore, work with art is to believe in the tuning between pleasure and feeling, emotion and thought to construct a world of significance and significants. A world of colors, words, thoughts and actions, where art and knowledge interact on the poetic work and collaborate significantly in childish formation. Key-words: under constructing visual poetics; expressive metamorphosis; education of the sensorial aspects.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Desenvolvimento gráfico-plástico da criança..............................................................21

Quadro 2 – Delineamento categorial da pesquisa...........................................................................59

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Escola Antonio Alves Ramos........................................................................................65 Figura 2 - Escola Antonio Alves Ramos........................................................................................65 Figura 3 - Laboratório de ciências da escola . Espaço de ateliê.....................................................66 Figura 4 - Laboratório de ciências da escola - Espaço de ateliê.....................................................66 Figura 5 - Laboratório de ciências da escola - Espaço de ateliê.....................................................66 Figura 6 - Desenho de Pedro - 1º Registro.....................................................................................78 Figura 7 - Desenho de Pedro - 2º Registro, “A casa de Deus”.......................................................78 Figura 8 - Desenho de Juliana -1º Registro....................................................................................79 Figura 9 - Desenho de Renato - 1º Registro...................................................................................80 Figura 10 - Desenho de Renato - 2º Registro.................................................................................80 Figura 11 - Desenho de Fernando...................................................................................................81 Figura 12 - Desenho de Lara...........................................................................................................81 Figura 13 -Desenho de Leila........................................................................................................81 Figura 14 - Desenho de Nádia........................................................................................................81 Figura 15 - Desenho de Abel.........................................................................................................81 Figura 16 - Desenho de Felipe.......................................................................................................81 Figura 17 - Desenho de Dara.........................................................................................................81 Figura 18 -Desenho de Estela......................................................................................................81 Figura 19 - Desenho de Bruno.......................................................................................................81 Figura 20 - Crianças explorando o ambiente de trabalho...............................................................82 Figura 21 - Crianças explorando o ambiente de trabalho...............................................................82 Figura 22 - Imagem da obra “Noitada Esnobe da Princesa”, de Miro...........................................83 Figura 23 - Imagem da obra “Crianças brincando”, de Kokoschka...............................................83 Figura 24 - Imagem da obra “Miss Bowles com seu cão”, de Velazquez......................................83 Figura 25 - Imagem da obra “George Deem - School of Velazquez.” 1987. Óleo sobre tela...................................................................................................................................................83Figura 26 - Momento de criação poética das crianças...................................................................86 Figura 27 - Momento de criação poética das crianças...................................................................86 Figura 28 - Pintura de Pedro, 1º Registro......................................................................................87 Figura 29 - Pintura de Pedro “A festa ao ar livre”........................................................................87 Figura 30 - Pintura de Pedro “A aventura ”..................................................................................88 Figura 31 - Pintura de Renato -1º Registro....................................................................................89 Figura 32 - Pintura de Renato, 2º Registro.....................................................................................89 Figura 33 - Pintura de Renato “O cemitério”.................................................................................90 Figura 34 - Pintura de Juliana, 1º Registro.....................................................................................92 Figura 35 - Pintura de Juliana, 2ºº Registro....................................................................................92

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Figura 36 - Pintura de Juliana “O tapete mágico”..........................................................................92 Figura 37 - O ninho na árvore........................................................................................................94 Figura 38 - Momento da discussão...............................................................................................95 Figura 39 - Momento de criação poética das crianças..................................................................96 Figura 40 - Poesia de Juliana e Renato...........................................................................................97 Figura 41 - Poesia de Fernando e Gabriel....................................................................................97 Figura 42 - Pintura de Pedro-!º Registro......................................................................................97 Figura 43 - Pintura de Pedro “Olhos de vulcão”..........................................................................97 Figura 44 - As crianças

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Figura 85 - Crianças recolhendo os materiais..............................................................................120 Figura 86 - Construção poética das crianças................................................................................121 Figura 87 - Construção poética das crianças................................................................................121 Figura 88 - Construção poética das crianças................................................................................121 Figura 89 - Construção poética das crianças................................................................................121 Figura 90 - Construção poética das crianças................................................................................121 Figura 91 - Construção poética das crianças................................................................................121 Figura 92 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 93 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 94 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 95 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 96 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 97 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 98 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 99 - Construção poética das crianças................................................................................122 Figura 100 - Construção poética das crianças..............................................................................122 Figura 101 - Alunos da escola interagindo com a instalação ......................................................123 Figura 102 - Alunos da escola interagindo com a instalação ......................................................123 Figura 103 - Processo de criação..................................................................................................123 Figura 104 - Processo de criação .................................................................................................123 Figura 105 - Processo de criação , “Cores da natureza” ..............................................................123 Figura 106 - Processo de criação poética.................................................................................... 124 Figura 107 - Processo de criação poética.....................................................................................124 Figura 108 - Trabalho plástico de Pedro, “Últimos Suspiros”.....................................................124 Figura 109 - Processo de criação poética.....................................................................................125 Figura 110 - Processo de criação poética.....................................................................................125 Figura 111 - Processo de criação poética.....................................................................................126 Figura 112 - Processo de criação poética, “Globo da morte”.......................................................126 Figura 113 - Processo de criação poética.....................................................................................127 Figura 114 - Processo de criação poética.....................................................................................127 Figura 115 - Processo de criação poética.....................................................................................127 Figura 116 - Processo de criação poética , “Resto”......................................................................128 Figura 117 - Cartaz de divulgação da exposição..........................................................................129 Figura 118 - Trabalhos das crianças na exposição.......................................................................130 Figura 119 - Trabalhos das crianças na exposição ......................................................................130 Figura 120 - Trabalhos das crianças na exposição.......................................................................130 Figura 121 - Trabalhos das crianças na exposição..............................................................131 Figura 122 - Trabalhos das crianças na exposição.......................................................................131 Figura 123 - Trabalhos das crianças na exposição.......................................................................131 Figura 124 - Trabalhos das crianças na exposição.......................................................................132 Figura 125 - Exposição , “Interior”.............................................................................................132 Figura 126 - Exposição - “Resto” ..............................................................................................132 Figura 127 - Exposição, “Casa de boneca”..................................................................................133 Figura 128 - Exposição, “Ondas” ................................................................................................133 Figura 129 - Exposição- “Memórias da natureza” ......................................................................133 Figura 130 - Exposição, “As torres” ...........................................................................................133 Figura 131 - Exposição, “Últimos Suspiros” ..............................................................................134 Figura 132 - Exposição, “Cores da natureza” ............................................................................134 Figura 133 - Exposição , “Medalhão” ........................................................................................134 Figura 134 - Exposição , “Globo da morte” ...............................................................................134

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Figura 135 - Exposição, “A cidade” ...........................................................................................135 Figura 136 - Exposição, “Natureza corrompida” .......................................................................135 Figura 137 - Exposição, “Requinte da destruição” ....................................................................135 Figura 138 - Exposição, “Arapucas” e “ Resto” ........................................................................135 Figura 139 - Exposição, Instalação.............................................................................................135 Figura 140 - Exposição, “Renault” ............................................................................................135 Figura 141 - Exposição ,“Salve-me”............................................................................................136 Figura 142 - Exposição , “Encruzilhada”.....................................................................................136 Figura 143 - Exposição,“Ninho”..................................................................................................136 Figura 144 - Espaço da Exposição ............................................................................................136 Figura 145 - Espaço da Exposição .............................................................................................136 Figura 146 - Espaço da Exposição .............................................................................................136 Figura 147 - Visitação da Exposição...........................................................................................137 Figura 148 - Visitação da Exposição...........................................................................................137 Figura 149 - Visitação da Exposição...........................................................................................138 Figura 150 - Visitação da Exposição...........................................................................................138 Figura 151 - Visitação da Exposição...........................................................................................138 Figura 152 - Visitação da Exposição...........................................................................................138 Figura 153 - Visitação da Exposição............................................................................................138 Figura 154 - Visitação da Exposição............................................................................................138 Figura 155 - Visitação da Exposição............................................................................................139 Figura 156 - Visitação da Exposição............................................................................................139 Figura 157 - Visitação da Exposição............................................................................................139 Figura 158 - Visitação da Exposição............................................................................................139 Figura 159 - Visitação da Exposição............................................................................................139 Figura 160 - Visitação da Exposição............................................................................................139 Figura 161 - Visitação da Exposição............................................................................................139

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LISTA DE ANEXOS

Anexo A – Convite para a Exposição “Metamorfose”...............................................................147 Anexo B – Carta de Cessão dos pais ..........................................................................................148

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O ROTEIRO DA VIAGEM

RESUMO.......................................................................................................................................05

ABSTRACT..................................................................................................................................06

LISTA DE QUADROS.................................................................................................................07

LISTA DE FIGURAS...................................................................................................................08

LISTA DE ANEXOS....................................................................................................................12

CONVITE AOS NAVEGANTES: INTRODUZINDO O PERCURSO DA VIAGEM.........15

1. NAVEGAR É PRECISO: REVISITANDO O APORTE TEÓRICO................................19

1.1 Conhecer arte: os fundamentos para a construção de poéticas visuais com crianças.....19

1.2 Caminhos desenhantes para o desvelar das poéticas visuais..............................................34

1.3 O processo criativo e a educação (do) sensível desvelando poéticas visuais......................44

1.3.1 Tempo e espaço das poéticas visuais em construção.............................................................44

1.3.2 Do sensível ao inteligível: poetizar e conhecer arte..............................................................49

1.3.3 Desenvolvimento da capacidade criadora da criança e a construção de poéticas

visuais.............................................................................................................................................53

2 . ROTA E O ITINERÁRIO DA VIAGEM.............................................................................58

2.1 Metodologia da pesquisa .....................................................................................................58

3. EM PORTOS INFANTIS: ANALISANDO OS TESOUROS ENCONTRADOS ............72

3.1 Tempo e espaço da arte na escola..........................................................................................72

3.2 Tesouros encontrados: os percursos das poéticas visuais em construção.........................74

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................140

5. LOCALIZANDO O FAROL: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................143

6. ANEXOS..................................................................................................................................147

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CONVITE AOS NAVEGANTES: INTRODUZINDO

O PERCURSO DA VIAGEM

No começo era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo

O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ela delira.

E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de

fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio.

(Manoel de Barros)

Como o poeta e as crianças, gostaria de garatujar os verbos, chegar ao criançamento das

palavras, para, então, apresentá-las a vocês, leitoras e leitores. Abrir espaços para o delírio.

Apresentar um trabalho, comunicá-lo, é fazê-lo presente, como bem nos ensina Larrosa (2004), é

dar-lhe presença, é compartilhá-lo. Compartilhar este estudo é narrar a viagem, a aventura, que

foi lançar-se a esta pesquisa. Esta viajante, ao concluir a rota, não é mais a viajante do início

deste trabalho; muitas foram as mudanças de rota; as marés me levaram a outros mares, saio

transformada: o que penso, o que sei, o que sou, minha sensibilidade, meu jeito de ser, já não é

mais o mesmo; fui tocada, tocada pelas coisas do mundo, que estão aí para serem fruídas,

desveladas, re-inventadas, como bem sabem também as crianças e os poetas. Eis o que faltava, a

experiência - encontro com os outros.

Difícil precisar onde começa esta viagem. Começou em muitos lugares. Lugares que me

fizeram buscar, na memória, experiências já vividas. Experiências que me constituíram como

sujeito, que me tornaram o que sou hoje e que, portanto, qualificam a forma como entendo o ser

humano, a educação, a própria vida. Para falar desta viagem é preciso primeiro me apresentar.

Voltar no tempo e resgatar o primeiro começo. Nasci em Roque Gonzales, uma cidadezinha de

interior, localizada na região das missões, desse Rio Grande do Sul. Família humilde, sou filha de

pais amorosos, porém nem sempre presentes. Várias são as imagens que trago em minha

memória daquele tempo. Infância feliz, com quintal grande para brincar, muitos amigos,

piqueniques, acampamentos, banhos no rio, casinha na árvore, jogos, danças e monólogos. Conta

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sempre minha mãe que, ao chegar visita em nossa casa perguntavam: Quem está brincando com

a Letícia? Ninguém. Respondia minha mãe. Com meus pais aprendi a sonhar e a lutar pelo meu

desejo. “É do sonho que nasce a dança e nasce a luta. Melhor guerreiro é o que sonha mais”

(Alves, 2002b, p. 38).

Na escola, durante a Educação Básica, aprendi a reproduzir. Cópias e mais cópias. Corpo

negado. Disciplinado. Todos ao mesmo tempo, no mesmo ritmo, nas mesmas atividades, sob o

mesmo comando. Aprendo a não falar, a não questionar, a negar o corpo, a respeitar (pelo medo)

a professora e os adultos, a guardar na cabeça a resposta às perguntas da prova – os depósitos

efetuados pela professora, como diria Paulo Freire. Ganhei uma bolsa de estudos num colégio de

irmãs. Fui então cursar o magistério. Algo moveu-se em mim - com a escola desaprendi sobre o

corpo, enchi-me de informações, mas foi nela que aprendi que ela mesma precisa e pode ser

muito melhor do que é.

Buscando uma formação de Nível Superior, ingressei no Curso de Pedagogia na

Universidade Federal de Santa Maria. Nela, tive a oportunidade de engajar-me em um projeto de

pesquisa1 vinculado ao Laboratório de Artes Visuais, como bolsista de iniciação científica. A

vivência nesse contexto de pesquisa foi de fundamental importância para a minha formação e

pelo encantamento que cultivo em pesquisar na linha de Educação e Artes Visuais. Neste

período, encontrei muitos parceiros, que me inquietaram, me tranqüilizaram, me emocionaram,

que me levaram a conhecer outras paisagens; paisagens mais esperançosas, mais brincantes.

Desconstruções, construções, desencantos, encantos; amor e dor. Paixão.

Posto isto, convido a todas e todos a navegar por estas páginas e, junto comigo, delirar

com as palavras, com as escritas e também com aquelas que não foram escritas mas, que, sem

dúvida, como diz Machado (2004, p. 11) emergem da experiência de vida de cada leitor e leitora.

Repensar a educação, a partir da compreensão da linguagem das artes visuais, é mais uma

vez ressaltar e defender a sua importância, mesmo reconhecendo-se que a sociedade capitalista a

vê como elemento ilustrativo, como adorno na grade curricular e não como uma aliada na

construção dos elementos que compõem o mundo contemporâneo.

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte (1997, p.20 -21):

O conhecimento da arte abre perspectivas para que o aluno tenha uma compreensão do mundo no qual a dimensão poética esteja presente: a arte ensina que nossas experiências geram um movimento de transformação permanente, que é preciso

1Projeto de Pesquisa intitulado: História da Arte: da formação de professores ao desenvolvimento do pensamento da criança dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Período de participação no projeto: 04/2000 a 07/ 2003. Período como Bolsista PIBIC/CNPq: 08/2001 a 07/2003.

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reordenar referências a todo momento, ser flexível. Isso significa que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é a condição fundamental para aprender.

Os estudos realizados na pesquisa, referendada anteriormente, sobre a linguagem

expressiva da criança e os espaços e tempos de poiésis (laboral) no contexto escolar, apontaram

para uma crescente perda de sua poesia, principalmente quando as crianças ingressam nos Anos

Iniciais, em que a experenciAÇÃO criativa cede lugar ao conteudismo e ao enciclopedismo,

permanecendo o aluno como um fragmento, um apêndice do seu corpo, não visando a formação e

ao desenvolvimento como um todo desse ser humano, que está sob responsabilidade do educador

para crescer, desenvolver e integrar-se ao mundo, ao contexto onde vive. Não existe sensibilidade

para estas questões, radicalizando-se a forma de vivenciar o espaço escolar como se nele não

houvesse troca, fluídos, relações sócio-afetivas, apenas cognitivas e raramente sensíveis.

A opção de investigar um tema tateando um não-saber, ainda, talvez, advenha da

imperiosa busca daquilo que nos falta, daquilo que me falta. O não-saber, aqui no sentido da

fenomenologia bachelardiana2 do poético, não é uma ignorância, mas um ato difícil de superação

do conhecimento. Como diz Larrosa (2004, p.314), “não se trata de converter o desconhecido em

conhecido, mas que o gesto é, bem mais, converter um desconhecido em misterioso, em

problemático, em obscuro, isso que cremos saber”.

Assim, os termos como educação (do) sensível ou educação da sensibilidade,

experiênciAÇÃO criativa, metamorfose expressiva, instante poético e tempo e espaço de

construções poéticas visuais – são aspectos estruturais e fundamentais nesta pesquisa, sobretudo

as anestesias as quais sofre o homem contemporâneo, ao omitir-se até negar-se ao estasiamento, à

beleza do mundo.

Desse modo, o roteiro dessa viagem possui três itinerários: o primeiro se constitui no

capítulo 1 NAVEGAR É PRECISO: REVISITANDO O APORTE TEÓRICO, e subdivide-se

em três partes. A primeira, intitulada Conhecer arte: os fundamentos para a construção de

poéticas visuais com crianças, está voltada para a arte-conhecimento como área de saber, em

que foram vividos e revividos os conhecimentos específicos das artes visuais para o desvelar da

construção do conhecimento, tendo em vista o despertar da poiésis enquanto meio expressivo

laboral particular de compreensão plástica do mundo na plenitude do processo criador. Na

segunda parte, Caminhos desenhantes para o desvelar das poéticas visuais, se retomou os

caminhos desenhantes para o processo de criação, resgatando percursos e possibilidades de

aprendizagem em arte brasileira, seus caminhos e conquistas na configuração de uma prática 2 Para Bachelard (1989b, p. 16), o saber acompanhado de um igual esquecimento do saber é a condição que faz da criação um puro começo, uma abertura de linguagem.

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educativa significativa em arte. Na terceira parte, intitulada O processo criativo e a educação

(do) sensível desvelando poéticas visuais, descreve-se sobre a capacidade criadora da criança, a

configuração do tempo e espaço de criação poética, em interação com a educação (do) sensível.

No capítulo 2, ROTA E O ITINERÁRIO DA VIAGEM, são definidos os percursos

desta viagem. Procura-se descrever os caminhos percorridos e o contexto de pesquisa, buscando

e procurando compreender como se desenvolveu esta pesquisa dentro do espaço institucional - a

escola, com crianças dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

No capítulo 3, EM PORTOS INFANTIS: ANALISANDO OS TESOUROS

ENCONTRADOS, procura-se mostrar como ocorreu a metamorfose expressiva das crianças no

processo de construção de poéticas visuais, em interação com a educação (do) sensível.

Não poderíamos, também, deixar de apresentar as várias interlocutoras e interlocutores

desta viagem; deste modo, em LOCALIZANDO O FAROL: REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS, trago a bibliografia citada.

Assim, apresenta-se o roteiro de viagem. Queiram por favor embarcar e BOA VIAGEM !

Mas lembrem-se: “não te apresses nunca na viagem”, deixe sua vida profissional e pessoal fluir

e fruir como uma eterna viagem de idas e voltas, descobrindo os portos e os itinerários, mas

também marcando o instante desses percursos poéticos na metamorfose do deixar-se ser em

poética. Seguimos viajando ...

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crianças visando o desenvolvimento de sua aprendizagem criativa em arte. Logo, o referencial

bibliográfico a cerca das fases do desenvolvimento gráfico-plástico e social da criança que

fundamenta esta pesquisa, tem por base os estudos e contribuições de Edith Derdyk (1989),

Georges-Henri Luquet (1969), Lev Vygotsky (1982), Martins (et al.,1998) e Henri Wallon

(1975).

O quadro aqui traçado, traz os estágios do desenvolvimento infantil segundo os autores

acima citados, exceto Derdyk (1989) que não nomeou as fases do desenvolvimento gráfico

infantil, mas seus estudos sobre o processo de pensar o desenho, vêm a contribuir de forma

significativa nesta pesquisa. Vale ressaltar que Martins (1998) organiza a trajetória expressiva da

criança em movimentos, afirmando que cada movimento tem uma beleza e uma significação

própria, sendo necessária a compreensão de tudo o que ele envolve. Para Martins (et al.,1998,

p.95),

A melhor imagem que se pode fazer desses movimentos é uma diagonal, na qual as características de cada um deles é focalizada, mas a sua presença não só deixará marcas para as ações futuras, como também já se apresentou embora de forma mais rudimentar nos movimentos anteriores.

No entanto, seria enganoso compreender o processo gráfico-plástico infantil como uma

rude e estanque sucessão de estágios, ele se dá como uma mudança de ênfase, passando de um

tipo de representação a outro, dependendo do que a criança considera importante e das condições

sociais a ela possibilitadas.

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Luquet

(1969)

- realismo fortuito; - realismo fracassado; - realismo intelectual; - realismo visual.

Vygotsky

(1982)

- fase esquemática; - fase radiográfica ou esquemática-formalista; - fase realista; - fase naturalista.

Martins

(1998)

- 1º movimento: - ação - pesquisa - exercício - - 2º movimento: - ação - pesquisa - exercício - intenção - símbolo - - 3º movimento: - ação - pesquisa - exercício - intenção - símbolo - organização - regra - - 4º movimento: - ação – pesquisa - exercício - intenção - símbolo - organização - regra - poética pessoal

Wallon

(1975).

- estágio impulsivo; - estágio emocional; - estágio sensório-motor; - estágio do personalismo; - estágio categorial.

Quadro 1 – desenvolvimento gráfico-plástico da criança

Na primeira infância, aproximadamente até os oito anos de idade, Derdyk (1989) defende

ser o tempo em que as crianças estão mais preocupadas com os objetos que desenham e que estes

sejam claramente reconhecíveis, do que estejam ‘corretamente’ desenhadas sob determinado

ponto de vista. Por volta dos oito ou nove anos, as expectativas das crianças se tornam muito

mais amplas. As crianças querem que seus desenhos não sejam apenas identificáveis, mas

também visualmente realistas.

Luquet (1969) acredita que o repertório gráfico da criança, assim como sua experiência

gráfica visual, está condicionada pelo meio em que vive. Wallon (1975) acrescenta, afirmando

que a pessoa deve ser vista integrada ao meio do qual é parte constitutiva e no qual, ao mesmo

tempo, se constitui.

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A criança interage desde cedo com o conhecimento social que é fundamental para o

trabalho educacional, portanto é necessário observar como a criança interage com esse

conhecimento e como ela consegue estruturar seu desenvolvimento plástico. Por outro lado,

podemos levar em conta seus reais interesses e necessidades frente aos objetos da cultura, e por

outro destacar o valor da intervenção pedagógica numa área onde predomina a crença no

conhecimento espontâneo. E o espontâneo, como se sabe, costuma ser compreendido como

natural e alienado da cultura.

Os conceitos representativos se desenvolvem num processo de diferenciação gradual. Os

primeiros rabiscos ou garatuja descontrolada da criança não têm intenção de representação.

Constituem um exercício da coordenação de ações motoras, de prazer sensorial.

De acordo com Derdyk (1989), o que encontramos no traço é conseqüência do movimento

do braço, do temperamento e do estado de espírito da criança. As qualidades mentais refletem-se

constantemente na velocidade, no ritmo, na regularidade ou irregularidade e configuração dos

movimentos do corpo marcados pelo traço do lápis, giz, pincel ou mouse. A produção gráfico-

plástica da criança, nesta etapa, possui uma natureza muito mais descritiva e expressiva do que

semiótica ou simbólica. Assim, descreve a autora (ibid., p.63):

Mesmo sendo indecifrável para nós, seus rabiscos provêm de uma intensa atividade do imaginário. O corpo inteiro está presente na ação, concentrado na pontinha do lápis. (...) A pontinha é o instrumento mediador da manifestação física e vivencial da criança, espelho de sua ebulição interna.

Observa-se também que as marcas inscritas pela criança, nesta fase, configuram-se como

‘descargas’ motoras incontroladas que geram rabiscos e “zigue-zagues” empregados com muita

força ou, ao contrário, ter havido pouquíssima pressão, geralmente ultrapassando o limite do

suporte. Neste primeiro momento o espaço gráfico da criança é o espaço do próprio corpo e do

meio em que vive. O uso das cores se define pelo simples prazer de experimentá-las, sem

intenções.

No estágio seguinte, os rabiscos incontrolados dão lugar às formas circulares que se

repetem freqüentemente como se houvesse uma espécie de proliferação de círculos, uma

“produção em série” de muitas bolinhas que vão sendo aperfeiçoadas num maior controle sobre

os movimentos da mão. Neste período as linhas “retas” (traços longos) se multiplicam e são

aprimoradas pelo sujeito. O espaço gráfico infantil vai se configurando e sendo construído de

acordo com uma percepção topológica do mundo e a cor ainda é utilizada com base emocional.

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Este tempo, cuja manifestação se dá na intensa utilização de linhas, emaranhados e traços

desordenados, é conhecido por Luquet (1969) como realismo fortuito. Martins (et al.,1998)

descreve como sendo o 1º movimento (- ação - pesquisa - exercício -) em que a criança num

processo de ações, experimentações e exercícios, joga com as coisas do mundo, consigo mesma e

com os outros. Em relação a socialização e o desenvolvimento emocional da criança, Wallon

(1975) caracteriza como estágio sensório-motor, no qual a criança aprende a conhecer os outros

como pessoas em oposição à sua própria existência, mas ainda vive sua relação com o outro de

maneira bastante sincrética, sem se diferenciar claramente dele.

Mais ou menos aos quatro anos de idade, se configura, segundo Wallon (1975) o estágio

do personalismo, no qual a criança já consegue realmente se diferenciar do outro, tomando

consciência de sua autonomia frente aos demais. Ela já percebe as relações de papéis e passa da

abstração à figuração. Começa a representar figuras e objetos. As imagens revelam a

continuidade existente entre o mundo interno e externo. Tudo está sendo caracterizado ao mesmo

tempo por aspectos físicos e psíquicos: formas, cores, texturas, prazer, medo e ansiedade. Cada

atividade torna-se simbólico-cultural no resultado final, também como no fazer. Esta trajetória

expressiva pela qual a criança se movimenta, se configura de acordo com Martins (et al.,1998)

no segundo movimento ( - intenção - símbolo -) em que a representação centra-se no manejar e

construir o símbolo em si.

Esta fase é denominada por Vygotsky (1982) de esquemática, e por Luquet (1969) de

realismo fracassado, estendendo-se aproximadamente até os sete anos de idade. As

representações da criança caracterizam-se neste período muito longe de sua forma original. Ela

desenha de memória, representando o que sabe das coisas, ou o que lhe parece importante ou

ainda o que imaginam das coisas. Por mais simples que possam ser suas produções, o desenho

resulta de uma ação intencional. Consciente desta “faculdade gráfica” Luquet (1969, p. 143)

considera que:

A criança exercita-a voluntariamente anuncia o desenho que vai fazer, antes de o executar. Porém, a intenção realista, de ordem gráfica, de saber o que quer representar, apresenta um obstáculo de caráter psíquico: ela pensa e tem a intenção de representar todos os elementos que pensa, mas a sua representação mental nem sempre se traduz graficamente completa.

Ainda em seus estudos sobre este período infantil, Luquet (1969) cita as crianças como

“visualizadoras”- que desenham cenas completas, com vários elementos que “dizem tudo” ... e as

crianças “verbalizadoras” onde o desenho é acompanhado da narrativa e sem esta história, pouco

representa graficamente. Para Derdyk (1989, p. 95 ) “(...) muitas vezes, a interpretação verbal

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efetuada pela criança é mais rica e criativa que o próprio desenho”. A autora (ibid., p.97)

continua afirmando que “a palavra evoca imagens, resgata fatos esquecidos, projeta idéias para o

futuro”.

As cenas retratadas nos desenhos podem referir-se a temas de vivência, de televisão, de

personagens ou ídolos, de animais de estimação e de histórias infantis. Há crianças que

desenham, preferencialmente, figuras humanas, outras desenham objetos de seu meio e da

natureza.

Adiantando na idade, dos oito e novo anos, tempo em que se configura o realismo

intelectual para Luquet (1969); e as fases radiográfica ou esquemática-formalista e a fase realista

de Vygotsky (1982), a criança passa a adotar um aspecto realista no contorno de suas

representações. Martins (et al.,1998, p.111) corrobora com esta concepção, afirmando que nesse

terceiro movimento ( - organização - regra -) expressivo a criança “busca uma representação mais

realista muitas vezes traz o medo, a preocupação com o fazer bem-feito (...)”. As cenas

representadas são mais completas, já que sua sociabilidade está ampliada, sendo que a criança

agora, se vê capaz de participar de vários grupos com graus e classificações diferentes segundo as

atividades de que participa. A representação gráfica dos objetos apresenta uma disposição mais

organizada quanto ao espaço, surgindo o conceito definido do espaço, "linha de base" e "linha do

horizonte". A linha de base exprime: base, terreno, os objetos são desenhados perpendiculares a

esta linha. A linha do horizonte exprime o céu.

Elementos da realidade vivida misturam-se com o aspecto imaginário. Aqui, é pertinente a

contribuição de Pillar (1996) sobre a expressividade do desenho e o uso da cor. No uso das cores,

segundo a autora (Ibid., p.48), as crianças procuram ser realistas, mas usam também a cor

decorativa como forma expressiva, “a cor realista traduz fidelidade à cor do objeto ou à cor de

uma categoria de objetos”. Para ela, as expressões poéticas em construção das crianças

comunicam alegria, tristeza, força, vivacidade, medo, ou seja, no instante poético a criança libera

e registra em suas criações, suas emoções e sentimentos.

Ainda neste período verifica-se também o curioso fenômeno da transparência ou “desenho

radiográfico” ao qual se refere Vygotsky (1982). Isto é: a revelação de objetos que não seriam

visíveis a olho nu por trás de uma superfície opaca do desenho, por exemplo, a criança ao

desenhar uma casa mostra os móveis e objetos que supostamente estariam em seu interior. Além

da transparência, outro fenômeno pode ocorrer: o rebatimento. O rebatimento é uma modalidade

de representação do espaço tridimensional em que as indicações de profundidade e perspectiva

encontram-se desenhadas num único plano, por exemplo: ao desenhar uma estrada entre árvores a

criança representa as árvores como se estivessem “deitadas” ao lado do caminho.

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Para Wallon (1975), na faixa etária dos 10 aos 12 anos, a criança prefere trabalhar em

grupo, em que a troca de experiências possibilita a interação social e, é nesta fase, que descobrem

que a menina possui aspirações diferentes do menino. Martins (et al., 1998), diz que no quarto

movimento ( - poética pessoal -) há um refinamento do pensamento mais abstrato e metafórico.

Na representação simbólica do objeto, de acordo com sua aparência visual e na procura do

real, a criança caminha para a fase do realismo visual, assim denominado por Luquet (1969) e

fase naturalista por Vygotsky (1982). A criança não mais se satisfaz com a expressão gráfico-

plástica pura e simplesmente, ele busca adquirir novos hábitos representacionais e diferentes

técnicas gráficas. Mas a superação dos esquemas, comuns na fase anterior, só pode ocorrer se, e

quando, o sujeito for submetido a uma intervenção pedagógica que o desafie a experimentar

novas possibilidades para suas representações gráfico-plásticas através do desenho e da pintura.

Este período pode ser marcado também pela descoberta da perspectiva e submissão às

suas leis. Surge daí, na abordagem luquetiana, um empobrecimento, um enxugamento

progressivo do grafismo, que perde seu humor e tende a ajustar-se às produções gráficas dos

adultos. Neste sentido, Moreira (1999, p.51) vem a contribuir, relatando que “não é natural do

desenvolvimento gráfico infantil, a atrofia de uma linguagem tão viva como é o desenho para a

criança, pois o desenho da criança é uma linguagem e também sua primeira escrita”.

Esta mesma autora vê a interrupção do desenvolvimento do desenho como sintoma de

uma escolarização que precisa mudar o seu modo de ensino, para que a criança não perca a

confiança de sua capacidade de expressar, pois o desenho, é uma linguagem que precisa

conquistar um vocabulário cada vez mais amplo, sem contudo, perder a intensidade e a certeza de

seu traço. Mas o que ocorre realmente para Moreira (Op. cit) é que “muito depressa o desenho-

fala se cala, e do desenho-certeza se passa à certeza de não saber desenhar”. Este fato, segundo

ela, é o que ocorre no processo de escolarização, em que a criança perde a espontaneidade de

criar e passa a acreditar que não sabe desenhar, dependendo cada vez mais do adulto para

autorizar seu espaço lúdico. O problema da perda do ato de desenhar é apenas um reflexo de um

problema geral de falta de expressão dentro da escola. O tempo da escola é preenchido pela fala

do adulto e a criança escuta abdicando da sua fala. E, quando o adulto se cala, ele se ausenta e

não tem quem acolha a palavra da criança. Então, para a criança só resta a cópia e o silêncio.

É grande a responsabilidade do professor na construção de um ambiente favorável ao

desenvolvimento do desenho infantil. É certo que o prazer encontrado pela criança no desenho

deixará de existir se não forem permitidas a exploração de sua função expressiva e a realização

de seu potencial criativo. Precisamos repensar as expectativas que temos do desenho da criança,

assim como o diálogo que estabelecemos com ela a respeito da sua produção gráfica.

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Para grande parte dos psicólogos do final do século passado e início deste, o sentimento

do belo, o sentimento estético, não existia nas crianças. Hoje sabemos que a compreensão que as

crianças têm da arte passa por processos e é passível de desenvolver-se. A apreciação estético-

visual se desloca do tema e do colorido, para a expressão e depois para o meio de expressão até

chegar ao juízo de valor, como bem demonstra a pesquisa de Michael Parsons (1992).

O autor (Ibid., p. 29) faz referência às concepções que norteiam as artes expondo que:

A primeira é a de que a arte não se limita a ser um conjunto de objetos bonitos, constituindo antes uma das formas de que dispomos para articular nossa vida interior. (...) O segundo pressuposto é o de que a arte exprime mais do que um indivíduo tem em mente num determinado momento.

Parsons (1992) diz que geralmente nosso desenvolvimento estético consiste na apreensão

e compreensão cada vez mais perfeita da beleza, expressividade, estilo e qualidades formais. Este

conhecimento estético-visual a ser desenvolvido nos Anos Iniciais deve ter por objetivo ampliar o

repertório das crianças a fim de estimular suas potencialidades perceptivas e criadoras.

Assim, para este autor, o pensamento estético se desenvolve perpassando por cinco

estágios, sendo que quanto maior for o contato com a arte, maior será o desenvolvimento

artístico-cognitivo, e quanto mais formos avançando nos estágios maior será a facilidade em

apreender outros conhecimentos, de outras áreas que estão interconectadas. Neste sentido,

Parsons (1992, p. 27) explicita seu pensamento dizendo,

(...) basicamente, que os estágios são aglomerados de idéias, e não propriedades desta ou daquela pessoa. Cada aglomerado é uma configuração, ou estrutura, de pressupostos relacionados entre si que tendem a associar-se no espírito das pessoas precisamente por estarem interna, ou logicamente ligados.

Os estágios do desenvolvimento estético descrito por Parsons (Ibid., p.39-43) apresentam-

se compreendidos da seguinte forma:

Num primeiro estágio, este caracterizado inicialmente pelo pensamento ainda egocêntrico,

onde a criança não está bem integrada ao social. Ela não possui consciência do ponto de vista de

outras pessoas, pois não percebe bem a distinção entre si própria e os outros. O gosto é intuitivo

com forte atração pelas cores e pelo tema. Cada cor chama muito a atenção, principalmente as

cores vivas, quentes e brilhantes. As crianças podem reagir à cor e ao tema numa série de

associações livres, que podem não ter relação com a imagem observada e/ou o fato relacionado.

Quanto ao tema, ocorre o desenvolvimento da imaginação aonde o nível de complexidade vai

crescendo à medida que vai se aproximando das operações concretas.

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No segundo estágio, para Parsons (1992), a idéia se organiza em torno da representação,

predominando a idéia do tema. O estilo é apreciado sob o ponto de vista do realismo. O juízo

estético considera a beleza, o realismo e a habilidade do artista, o progresso está em considerar o

ponto de vista dos outros; o que sentem, ou vêem num quadro não necessariamente outra pessoa

sente ou vê.

A seguir, em outro estágio, é superada a idéia organizada em torno da representação para

dar vazão às idéias que tem a ver com expressividade, apresentando uma nova consciência da

interioridade da experiência dos outros e também da nossa própria experiência como algo íntimo

e único, abrindo mão da relevância da beleza do tema, do realismo estilístico e da habilidade do

artista. Aqui, o abstrato torna-se presente em forma de sentimento, intenção e se deseja que a arte

diga algo.

Entretanto, o autor já citado acima, sinaliza um quarto estágio fazendo referência neste

momento, a significação de uma obra, destacando que essa é mais social que individual e consiste

naquilo que o grupo consegue dizer discursivamente sobre a obra. Apresenta avanço ao adotar a

perspectiva da tradição considerada em conjunto e ao considerar relevantes o meio de expressão,

estilo, forma, textura, cor, espaços e as relações estilísticas, estabelecendo uma distinção entre

atração literária do tema e do sentimento e aquilo que a obra em si consegue realizar.

Parsons (1992), ainda se refere a um quinto estágio, o da autonomia, no qual se julga os

conceitos e valores presentes nas obras de arte, analisando-as a partir de uma consciência atenta

da natureza na nossa experiência pessoal, um questionar das influências que a condicionam, um

interrogar-se sobre se realmente vemos aquilo que pensamos ver. Os valores que usamos para

julgar, embora tenham origem na tradição, só podem ser confirmados ou corrigidos à luz do

maior ou menor valor que lhe damos. Visto que a leitura de imagens não é igual para todos,

atenta-se pressupor que a visão estética está relacionada aos valores e conceituações sociais, bem

como estágios de desenvolvimento humano, estes suscitados pelas vivências individuais e

coletivas.

Esses estágios não têm idade definida para começar, são etapas pelas quais a criança

“caminha” na progressão de uma melhor percepção e compreensão da arte. O que contribuirá

para o desenvolvimento estético-expressivo, no caso deste estudo sobre as poéticas visuais em

construção, a educação (do) sensível e o processo criativo de crianças, é o contato e as

experiências que as crianças têm com a arte, assim como a construção de seus pensamentos.

Então, é possível atingir um conhecimento mais aprofundado em arte, incorporando ações

pedagógicas no cotidiano de sala de aula, as quais possibilitem a criança ver, ouvir, mover-se,

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sentir, pensar, descobrir, exprimir e criar a partir dos elementos da natureza e da cultura,

analisando-os, refletindo e transformando-os.

Os elementos da linguagem visual, constituem um dos saberes específicos que

interligados e interconectados aos demais conhecimentos da área das artes visuais e seu ensino,

oferecem subsídios para a experenciAÇÃO e criação poética, tendo em vista à organização

harmoniosa dos elementos que a compõem.

Uma composição plástica requer um conjunto de elementos que podem ser caracterizados

como estruturais e intelectuais, que organizados, materializados e articulados no plano

expressivo, constituem a substância básica daquilo que vemos.

Caracterizado como elemento primário, o ponto é a menor unidade da comunicação visual.

Qualquer ponto tem uma força visual de grande atração sobre o olho. Diversos pontos conectados

são capazes de dirigir a visão. Quanto mais próximos entre si, maior a capacidade de guiar o

olho. Em grande quantidade e justapostos, dão efeitos e formas e criam a ilusão de tom ou cor,

sendo um recurso muito usado pelos pintores impressionistas em suas obras de arte. O ponto

configura-se em: Geométrico e Representativo. O geométrico em sua essência é invisível e

adimensional. Kandinsky (1997, p. 17) diz que este ponto é a “união do silêncio e da palavra”,

sendo que a sua primeira forma de representação material se deu na escrita, “ele pertence a

linguagem e significa silêncio”(Op. Cit.). No mundo da pintura o ponto começa “viver como um

ser autônomo” (Ibid., p. 20), libertando-se de sua posição utilitária e prática, ganhando em clareza

e força nesta nova dimensão de sua compreensão, podendo aí ser caracterizado como figurativo

ou não figurativo. O ponto representativo se configura por uma diversidade de formas e

dimensões. Em sua forma mais comum, o ponto é igualmente pequeno e circular, podendo

adquirir em sua manifestação real uma infinidade de formas, adotando dimensões quadradas,

ovais, triangulares, pontiagudas ou de qualquer formato um pouco irregular.

A linha é definida pela trajetória de um ponto em movimento, formando uma cadeia de

pontos tão próximos que não se pode distingui-los. Dondis (2000, p. 55) coloca que “quando os

pontos estão tão próximos entre si que se torna impossível identificá-los individualmente,

aumenta a sensação de direção e a cadeia de pontos se transforma em outro elemento visual

distinto: a linha”.

Nas artes visuais, a linha é o elemento visual por excelência. Ela define posição e direção.

Ostrower (1987, p.66) diz que a linha “vai configurar um espaço linear, de uma dimensão.

Através dela aprendemos um espaço direcional”. Ao movimentar o ponto numa só direção e

invariavelmente, sofrendo a ação de uma só força, surge a linha reta. Quando houver “uma luta

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apaixonada de duas forças” (Kandinsky, 1997, p.76) exercidas em alternância, surge a linha curva

e, a partir de movimentos simultâneos de forças diversas, resulta as linhas mistas.

Ela pode adotar formas muito distintas para expressar intenções diferentes, sendo observada

pelo ponto de vista geométrico e representativo. Do ponto de vista gráfico e geométrico, a linha

apresenta-se sob três aspectos: a sua posição pode ser horizontal, vertical e diagonal, as demais

linhas são variantes destas três primeiras (diagonal, paralela, perpendicular, inclinada,

convergente e divergente); quanto a sua forma, pode ser reta, poligonal, sinuosa e mista; quanto

ao seu uso pode ser de traço de força, interrompida, pontilhada e mista.

Sob o ponto de vista representativo, a linha pode ser formal quando a composição é

geométrica ou acompanham o modelo; mista quando as partes geométricas são combinadas com

outras livremente; e pode ainda ser livre quando se compõe espontaneamente sem se

comprometer com o desenho geométrico.

Quando uma linha se fecha, ela abandona a sua primeira função, dando origem a um novo

elemento denominado forma. Wong (2001, p. 152) coloca que a forma é a parte mais evidente em

uma composição. E, Arnheim (2001, p.130-131) complementa afirmando que a forma deve

provir do meio específico no qual a imagem é criada, acrescentando que “a forma não é

determinada apenas pelas propriedades físicas do material, mas também pelo estilo de

representação de uma cultura ou de um artista individual”.

Este elemento visual, também se apresenta de forma geométrica e representativa.

Geometricamente sua forma é definida como regular, que possui lados e ângulos respectivamente

iguais, e irregular com lados e ângulos diferentes.

Em relação a sua forma representativa, é estruturada em figurativa e não-figurativa. É

figurativa aquela imagem que contém objetos e temas reconhecíveis pelo observador; uma forma

não-figurativa constitui-se em uma imagem abstrata, expressa pelo artista.

As formas possuem diferentes texturas, podendo ser lisas – rugosas – ásperas – macias

dentre outras aparências, e expressam-se em diferentes mundos, assim compreendidos por Wong

(2001) como: o mundo bidimensional e o mundo tridimensional. “O mundo bidimensional é

essencialmente uma criação humana”. (Ibid, p. 237) Uma expressão plástica no plano

bidimensional é criada por meio de esforços conscientes e organização de vários elementos,

tendo como principal objetivo estabelecer harmonia e ordem visual. “Todavia é pelo olhar

humano que o mundo bidimensional ganha significado”. (Op. cit.) O mundo tridimensional é o

mundo em que vivemos. “O que vemos à nossa frente não é uma imagem plana, tendo somente

comprimento e largura, mas um espaço com profundidade física, a terceira dimensão”. (Op. cit.)

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A expressão plástica neste plano também se preocupa em estabelecer uma harmonia e ordem

visual. No entanto Wong (Ibid, p. 238) complementa:

(...) É mais complicado que o desenho bidimensional porque vistas de ângulos diferentes têm de ser consideradas simultaneamente e muitas das relações espaciais são complexas, não podendo ser facilmente visualizadas no papel. Por outro lado, é menos complicado que o bidimensional porque lida com formas e materiais tangíveis no espaço real (...).

A percepção do espaço está ligada a nossa ambiência visual. Estamos contidos num

espaço, inseridos num ambiente de vivência, de experenciAÇÃO cotidiana. Somos parte

integrante e ocupante de um espaço. De acordo com os estudos de Ostrower (1987, p. 30):

Descobrir o espaço e descobri-se nele, representa para cada indivíduo uma experiência a um só tempo pessoal e universal. A partir dos primeiros movimentos físicos do corpo, a criança começa a ensaiar o espaço, a discerni-lo e a conhecê-lo, a vivenciá-lo, vivenciando a si mesma, consciente e inconscientemente. (p. 30)

O conceito e a percepção de espaço estão intrinsecamente ligados às nossas ações diárias

desde os nossos primeiros movimentos de locomoção e na organização dos objetos do quarto, do

material escolar, dos brinquedos, e do nosso espaço de vivência como um todo.

Nas representações visuais, o espaço é compreendido por duas concepções distintas: a

bidimensional e a tridimensional. O espaço tridimensional é o que chamamos de real, nosso

espaço de vivência e convivência - o ambiente criado e modificado pelo homem. O espaço

tridimensional oferece uma liberdade de movimentos, no qual podemos caminhar, ver e percebê-

lo de diferentes ângulos e distâncias. Nas representações visuais é expresso através do volume, o

que exige que se tenha um espaço livre para existir, possuindo três dimensões: a altura,

comprimento e profundidade. A representação de terceira dimensão depende da ilusão. Porque

em nenhuma representação bidimensional da realidade, sejam desenhos, pinturas, fotografias,

emissões de televisão, existe um volume real, ele está somente implícito. A ilusão se reforça de

muitas maneiras, mas o artifício fundamental para simular a dimensão é a convenção técnica da

luz e sombra. Uma concepção bidimensional também é considerada como uma criação humana,

com o objetivo de comunicação e expressão de sentimentos e emoções. As representações

bidimensionais não possuem profundidade e são constituídas por duas dimensões: a altura e o

comprimento sobre uma superfície plana.

A cor é um fenômeno que pode ser percebido através de diversos aspectos e sob diferentes

experiências visuais. Dentre as múltiplas concepções que abordam esta temática, destaco aqui a

compreensão de Richter (2004, p. 44) que constitui seu entendimento a partir das idéias de

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Goethe, destacando a cor “como uma experiência subjetiva, abrindo as portas da fisiologia e da

psicologia como campos legítimos de averiguação dos efeitos da cor”.

O que a autora defende, é a idéia, de que a compreensão das cores pertence ao sujeito, é

construída pelo cérebro, e não como uma radiação eletromagnética ou uma composição

molecular assim como defendia a teoria clássica.

A cor é o elemento que tem mais afinidade com as emoções e é cultural. Nas artes

visuais, a cor não é apenas um elemento decorativo ou estético, é o fundamento da expressão. Ela

exerce uma ação tríplice sobre o indivíduo que recebe a comunicação visual: ela impressiona a

retina quando é vista; provoca uma emoção, é sentida; e é construtiva, pois, tem um significado

próprio, tem valor de símbolo e capacidade de construir uma linguagem que comunique uma

idéia. Para Richter (2004) a cor constitui o elemento primordial de qualquer elaboração pictórica,

mas muito pouco se estudou sobre a qualidade do colorido como um meio de organização do

raciocínio plástico visual da criança.

Se refletirmos sobre o significado de uma cor ou outra na escolha da criança, de acordo

com Richter (ibid, p.61) “compreendemos que ele consiste, sobretudo, numa intensa reelaboração

de gestos e imagens ao dinamizar visão, sentimento, imaginação pensamento e vontade no

mesmo ato” . A autora (ibid, p.65 ) continua afirmando que:

importa é a necessidade, o impulso lúdico de abrir espaços, criar situações de exercício de um pensamento que integra emoção e razão como estratégia para agir e conhecer. O importa e justifica esse ato é o re-criar-se através da experiência pictórica, exercitando experimentalmente sua liberdade de criar mundos a partir do mundo.

O que muitas vezes se percebe, é que a eleição de tons realizada pela criança através da

procura progressiva de representações reconhecidas ou a observação precisa. Cabe ao professor,

oportunizar tempo e espaço de construções e criação em sala de aula, para superar este

conformismo gráfico escolar e as pressões sociopedagógicas, que priorizam a representação sobre

a significação.

A composição é a organização dinâmica dos elementos estruturais de forma a ordenar e

compor um todo harmônico. Para Arnheim (2001, p. 424) “A dinâmica de uma composição terá

sucesso somente quando o ‘movimento’ de cada detalhe se adaptar logicamente ao movimento do

todo”. No entanto, compor é equilibrar, é a concordância das formas, dos espaços, das cores, dos

contrastes de luz e sombra, que consciente ou inconscientemente o artista ordena de forma a criar

variedade e unidade. Para constituir uma boa composição necessita-se de alguns elementos

intelectuais básicos: o equilíbrio, o movimento, o ritmo, a harmonia e a unidade.

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Dessa maneira, os conhecimentos sobre os elementos estruturais e compositivos, numa

experenciAÇÃO criativa em arte, possibilitam as crianças construir mais sentido e significado em

suas aprendizagens, tendo maior compreensão da arte, do contexto cultural e principalmente das

suas construções poéticas visuais.

Oportunizar o conhecimento da história da arte para a criança também é interessante

desde que alcancemos significações para ela. Num contexto facilitador, oportunizar a criança

pensar a arte em sua dimensão sócio –histórico- cultural é fazer com que a arte se torne tocante à

sensibilidade e à atuação criadora. Neste sentido, uma conversação que incita dar um tratamento

de narratividade e amostragem a arte como acontecimento histórico e experiência estética de um

determinado tempo sócio-histórico, não pode ser concebida como um mero resgate de fatos

passados.

Este resgate da história da arte se caracteriza por um processo contínuo, vivo, orgânico e

dialético, que focaliza em dado momento histórico o registro do sentimento estético e da visão do

artista diante dos acontecimentos que o envolvem ou o envolveram. De acordo com Barbosa

(1991, p.37), “nenhuma forma de arte existe no vácuo: parte do significado de qualquer obra

depende do entendimento do seu contexto”.

Conhecendo a história da arte, a criança pode estabelecer relações mais profundas entre os

fatos passados, ligando ao presente na projeção ao futuro. Martins (et al.,1998, p.75) ressalta

que:

Ao apreciarmos obras de arte, nós a ressignificamos, as atualizamos, interpretamos de acordo com nossa sensibilidade atual. Se as significações de produções artísticas mudam de pessoa para pessoa e até para a mesma pessoa, fica evidente que obras produzidas no passado provavelmente não tinham, na época, a mesma significação que a elas atribuímos hoje (...) Quando estamos diante de uma obra de arte, a recriamos em nós. A contemplação de uma produção artística nunca é passiva, algo de nós penetra na obra ao mesmo tempo que somos por ela invadidos e despertados para novas sensibilidades.

Ao contextualizar estamos operando no domínio da história da arte e, sobretudo, na

construção da identidade cultural, assim como nos conhecimentos que envolvem outras áreas do

saber, estabelecendo conexões, relações e inter-relações, num processo dinâmico e

interdisciplinar.

Vivemos rodeados e imersos em um mundo repleto de imagens. Nas palavras de Frange

(s/d., p. 109) “não somos virgens de imagens, muito pelo contrário, elas nos contaminam e nos

invadem”. A palavra leitura, normalmente, nos remete à palavra escrita, e nos lembra livros,

jornais e revistas. Porém, o ato de ler não significa somente decifrar palavras e textos, mas

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também gestos, expressões, comportamentos, atitudes, imagens. Desde o nascimento passamos

por processos de leitura, isto é, buscamos compreender e dar sentido a tudo que nos rodeia.

Quanto à leitura de imagem, Pillar (1999, p.12) defende o uso do termo leitura

argumentando a favor de que “a leitura de uma imagem seria a leitura de um texto, de uma trama,

de algo tecido com formas, cores, texturas e volumes”. A autora remete a Paulo Freire para

estruturar a idéia de que a leitura de mundo, nossa experiência concreta e vivida, é parte fundante

e precede a leitura da palavra.

Para Rizzi (apud BARBOSA, 2002, p.67) “a leitura da obra de arte envolve o

questionamento, a busca, a descoberta e o despertar da capacidade crítica dos alunos”. Não cabe

julgar ou definir se uma leitura está certa ou errada, não se prima pela devolução e reprodução

dentro de um paradigma copista, de adivinhações, fragmentações, se transformando, na prática,

em autópsia. O que é relevante nesse processo é a des-construção e a re-significação da

percepção entre texto e contexto numa relação dinâmica, vinculando os aspectos singulares da

linguagem estética e poética com o a realidade.

A leitura implica em uma interpretação, uma leitura subjetiva do objeto lido, dos códigos

apresentados, das entrelinhas, dos silêncios e intervalos, das relações dinâmicas entre o objeto de

leitura e nossas experiências de leitor. O olho/olhar/ver não possui uma dimensão neutra, nem

inocente. Goodman (apud PILLAR, 1999, p.13) afirma que:

O olho seleciona, organiza, discrimina, associa, classifica, analisa, constrói. Não atua como um espelho que, tal como capta, reflete; o que capta já não o vê como tal e qual, como dados sem atributo algum, senão como coisas, alimentos, gentes, inimigos, estrelas, armas. Nada se vê despido ou despidamente. Os mitos do olho inocente e do dado absoluto são cúmplices terríveis.

Pillar (1999, p.13), corrobora com as idéias de Goodman defendendo que “o olhar de cada

um está impregnado com experiências anteriores, associações, lembranças, fantasias,

interpretações etc. O que se vê não é o dado real, mas aquilo que se consegue captar e interpretar

acerca do visto, o que nos é significativo”. Assim como temos diferenciações básicas na forma

pela qual respondemos a um estímulo, a imagem também é construída e percebida segundo a

individualidade de cada ser. Ainda Goulemot (apud CHARTIER, 1996) traz contribuições

colocando que toda leitura sempre será produção de significados, não aqueles desejados pelo

autor, mas sim, constituir um sentido próprio, fazendo emergir a biblioteca vivida, ou seja, a

memória de leituras anteriores e de dados culturais.

Então, ler uma obra é perceber, compreender e interpretar, vinculado a dimensões do

conhecimento a cerca dos conteúdos da arte, e também, a dimensões socioculturais como ser

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inventivo de si e do mundo. Não se pode esquecer de outra dimensão, a dimensão do sensível.

Para Frange (s/d., p. 110), ao lermos imagens e as ressemantizar, interligamos, duas dimensões: a

sensível e a inteligível. Essas duas dimensões dizem respeito ao “sentido sentido, um sentido

compreendido, apropriado e apreendido pelas construções de significação, quer dizer, uma pessoa

um corpo sentido e construindo o sentido sentido”.

Este sentido sentido, salientado pela pesquisadora acima, diz respeito a significação que

lhe é atribuída, A leitura de uma imagem, se constitui num momento em que o sentir, ver, olhar,

perceber, descobrir, discutir, interpretar se integram e inter-relacionam numa interlocução e, no

embricamento da objetividade e da subjetividade, em que cognição e sensibilidade se

interpenetram em busca de significados.

Todas estas dimensões - a sensível, a inteligível e a sociocultural- podem partir de uma

construção coletiva, em que o professor poderá ser um provocador de inquietudes e um aguçador

de curiosidades, num trabalho colaborativo3, entendendo assim como Frange (s/d., p. 113), que

“os saberes são tessituras de uns e de outros em ‘co-gestação’”. A leitura de uma imagem - obra

de arte - é uma aventura em que cognição e sensibilidade se interprenetram em busca de

significados.

1.2 Caminhos desenhantes para o desvelar das poéticas visuais

As aprendizagens da arte requerem uma especificidade de tratamento pedagógico que

incidam sobre o modo sensível, criador e crítico para articular-se em experiências poéticas. O

compromisso com tal projeto educativo exige um competente trabalho docente, em que o

professor ou professora, em sua práxis pedagógica, necessita saber arte e também saber ser

professor de arte junto a crianças.

O ensino das artes visuais para crianças, segue o percurso das repercussões, influências e

desdobramentos da Educação Artística/Arte-Educação/Ensino de Arte ou ainda

Ensino/Aprendizagem em Arte. Historicamente as mudanças/transformações que ocorreram com

a arte e com a educação em arte, não aconteceram no vazio, nem desenraizadas das práticas 3 O trabalho colaborativo que se define aqui, vem ao encontro das idéias de Pérez Gómez (2001, p.199), que o compreende como “a participação de grupos que vão se integrando, no processo de indagação e de diálogo dos participantes e os observadores do processo, (...) ao exigir um processo de reflexão cooperativa mais que privada; ao enfocar a análise conjunta de meios e fins na prática; ao se propor a transformação da realidade mediante a compreensão prévia e a participação dos agentes no planejamento, no desenvolvimento e na avaliação das estratégias de mudança; (...); ao propiciar, enfim, um clima de aprendizagem baseado na compreensão e orientado para facilitá-la.

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sociais vividas pela sociedade como um todo. No entanto, cabe dissertar de forma sintética, a

trajetória seguida pela arte e o seu ensino nos diferentes momentos históricos.

No Brasil, de acordo com Ferraz e Fusari (1992) foram importantes os movimentos

culturais que marcaram o ensino das artes, que inicialmente seguia os modelos europeus, os quais

visavam atender à demanda de preparação e habilidades técnicas e gráficas, consideradas

fundamentais à expansão da indústria, tendo o desenho como a base da Educação Artística.

Desde o século XIX, eventos culturais e artísticos, como a criação da Escola de Belas Artes no

Rio de Janeiro e a presença da Missão Francesa e de artistas europeus de renome, definiram nesse

século a formação de profissionais de arte. No século XX, a Semana de Arte Moderna de 1922, a

criação de universidades (anos 30), o surgimento das Bienais de São Paulo a partir de 1951, os

movimentos universitários ligados à cultura popular (anos 50/60), da contracultura (anos 70), a

constituição da pós-graduação em ensino de arte e a mobilização profissional (anos 80), entre

outros, vêm delineando a introdução, expansão e transição do ensino da arte.

Nas últimas décadas do século XIX, e se estendendo por quase todo o século XX, o

ensino da arte se caracterizava predominantemente tradicional, tendo como princípio o ensino

mecanizado do desenho, num sentido utilitário de preparação técnica para o trabalho. Os

conteúdos selecionados se caracterizam como verdades absolutas repassadas ao aluno numa

perspectiva de educação bancária4, desvinculando da realidade social e das diferenças –

individuais, abrangendo noções de esquemas de luz e sombra, composições, traço, proporções e

contornos de formas. Do ponto de vista metodológico, os professores, encaminhavam os

conteúdos através de atividades que seriam fixadas pela repetição e tinham por finalidade

exercitar a vista, a mão, a inteligência, a memorização, o gosto e o senso moral. O ensino

tradicional está interessado principalmente no produto do trabalho escolar e a relação professor e

aluno mostra-se bem mais autoritária.

Uma das mais importantes iniciativas do século XX referente ao ensino de arte foi a

criação da Bauhaus5 em 1919, por Walter Groupius, na Alemanha. O movimento Bauhaus, cujo

nome significa Casa de Construção representou além da construção de formas estéticas, um novo

4 Compreende-se por educação bancária, àquela denominada por “Paulo Freire” em sua obra Pedagogia do Oprimido (1987), enquanto uma prática antidialógica, por essência sem comunicação, em que o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele. 5 A Bauhaus tinha como propósito declarado, o desenvolvimento da pesquisa a cerca da arquitetura moderna e promover a junção da criação estética com a linha de montagem das indústrias. Em seu âmbito foram desenvolvidos também os fundamentos do desenho industrial (design), que visava, através dos trabalhos de artistas plásticos, a produção de objetos de uso do cotidiano (móveis como mesas e cadeiras...) com preocupações estéticas.

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modo de aprendizado das artes, que ocorria por meio da integração entre os processos industriais,

artesanatos e expressões artísticas.

No cenário internacional, principalmente na Europa e os Estados Unidos, em meio às

inovações da educação frente à preocupação com as características psíquicas das crianças e com

uma educação mais criativa, opondo-se veementemente aos ideais da escola tradicional, surge o

Movimento da Escola Nova tendo como Viktor Lowenfeld , Herbert Read e John Dewey.

Com os estudos da Psicologia e da Biologia na descoberta e investimento da criança como

um ser autônomo, é que Lowenfeld (1970) propõe e defende a humanização do fazer artístico

com ênfase na expressão e na liberdade criadora, tendo como base a pedagogia da livre-

expressão6.

Influenciado pelas teorias de Lowenfeld e Herbert Read, Augusto Rodrigues liderou no

Brasil, em 1948, o Movimento das Escolinhas de Arte, que propunha o ensino de arte para

crianças e adolescentes, nos moldes e princípios do desenvolvimento da auto-expressão.

John Dewey teceu argumentações consistentes e pertinentes para a educação de um modo

geral e particularmente para o ensino de arte. Para ele a finalidade educativa da arte está na sua

compreensão enquanto caminho para a experiência estética vivenciada naturalmente e integrada

aos processos pessoais e coletivos numa cultura dada. Barbosa (2001) ao pontuar a trajetória e

influência dos estudos de Dewey no Brasil, afirma que, infelizmente, interpretações equivocadas

fizeram com que sua proposta de pedagogia da experiência fosse confundida com a livre-

expressão, contradizendo a sua luta para que o conhecimento fosse valorizado e melhor

assimilado, através da experiência, da vivência.

Dewey buscava a interação e um possível diálogo entre os pressupostos da escola nova e

da escola tradicional, propondo um redirecionamento entre essas duas pedagogias. Com relação

ao escolanovismo, não concordava com os defensores da livre-expressão, que priorizavam o

deixar fazer e o espontaneísmo, em que os alunos se encontram simplesmente cercados de

materiais e instrumentos, aos quais devem responder segundo seus desejos, sem sugestão de

plano de trabalho ou atividade, sem direcionamento ou proposta alguma de criação

contextualizada. Ainda defendiam a não mediação e orientação (método não-diretivo) no

processo de ensino e aprendizagem pelo professor, percebendo de forma negativa qualquer

intervenção, pois poderia embotar os processos mentais dos alunos, ou mesmo, destruir e/ou

comprometer sua individualidade expressiva. O professor se caracteriza como um facilitador e ao

aluno caberia a tarefa de aprender a aprender.

6 Tendência caracterizada pelo deixar fazer arte, sem nenhuma intervenção; termo usado aqui com tom pejorativo porque não se compactua do laissez-faire – o deixar fazer livre, solto, descontextualizado.

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Quanto à corrente tradicionalista, Dewey opunha-se a posição autoritária que assumiam os

professores como se fossem os donos da verdade única e absoluta e a rigidez do ensino do

desenho através de uma metodologia imitativa e repetitiva. Enfim, o ensino da arte viveu na

primeira metade do século XX duas realidades opostas: por um lado, a proposta que priorizava o

conteúdo e a atuação do professor, e por outro, o currículo centrado na criança. Na tentativa de

equilibrar estas duas tentativas, ainda surgiram novos métodos causando interpretações

equivocadas, contribuindo para a banalização da livre-expressão, assim como demonstra Osinski

(2002, p. 101.):

A generalização do laissez-faire como prática de sala de aula, com a conseqüente omissão do professor de suas responsabilidades de educador, resultaram num decréscimo considerável do nível qualitativo das atividades pedagógicas em arte, implicando num desprestígio desta disciplina frente às demais do currículo escolar e a desvalorização do professor como um profissional encarregado de uma tarefa não séria.

Não resta dúvida de que durante todo o seu trajeto, a livre expressão deixou suspeitas

quanto a sua contribuição para a formação de apreciadores de arte mais capazes e mais críticos. É

evidente que ela contribuiu para a liberdade expressiva e criatividade, “mas não garantiu a

apropriação do saber elaborado nem da instrumentalização necessária para a formação de uma

nova hegemonia, pois, o conteúdo fica relegado a planos secundários” (Nunes,1990, p. 22). É

pertinente esta colocação de Nunes (1990), pois se tornava necessário aí, a inclusão de conteúdos

teóricos numa abordagem mais racional, tendo em mente que a pluralidade expressiva das

crianças é fruto de uma série de solicitações e experiências, não se constituindo em algo que

“brota”. O que Nunes (1990) reforça, não é somente a questão de espontaneidade, mas de

oportunidade, encorajamento a se soltar, ir além, transbordar. Encorajar passa pela técnica e sua

observação – um dos pontos chaves desse processo. A vivência / experiência são também parte

fundamental do processo criativo/produtivo da criança. As construções e produções poéticas

visuais são tão mais elaboradas, variadas, com qualidade estética, quanto mais rica for sua

trajetória.

Indo mais além, na década de 50, um grupo de artistas desenvolveu uma metodologia

com bases teórico-práticas, procurando associar o fazer artístico com os conhecimentos da

estética e da história da arte, dando ênfase aos elementos formais e compositivos. Baseados

nestes conceitos é que se estruturou o programa da Discipline-Based-Art-Education (DBAE), em

1960, repercutindo no Brasil quase dois decênios depois. Na concepção de Osinski (2002) as

propostas do programa/metodologiana da DBAE buscam o equilíbrio entre a expressão e o

conhecimento. Assim pontua a autora (ibid, p.110):

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A produção artística não deve ser apenas uma manipulação mecânica de matérias e apreensão de técnicas, mas estar estritamente vinculada a uma consciência cultural e histórica, onde a expressão se manifesta com propriedade. A história da arte e da cultura deve ser algo vivo e ágil, onde o importante não é um estudo cronológico, mas uma perspectiva inter-relacionada com as produções artísticas, com os conceitos estéticos das diferentes épocas e com o próprio meio social em que determinada expressão artística se dá. Por estética, entende-se tanto a filosofia da arte como o estudo dos fundamentos de sua construção, devendo essa disciplina abranger tanto a visão estética dos diferentes teóricos e das diferentes épocas como o desenvolvimento do próprio senso estético de cada aluno. A crítica concernente ao julgamento que se faz sobre determinada expressão artística, tem como base as três demais disciplinas (história da arte, estética e produção artística), gerando discussões em que as opiniões surgem com o suporte do conhecimentos adquiridos. A criança é encorajada não só a expressar por intermédio da arte, mas também a compreendê-la, absorver seus conteúdos e criticá-la tornando-se uma participante ativa de seus processos.

O ensino de Arte só se tornou obrigatório no currículo escolar das escolas brasileiras, a

partir da Lei 5692/71, que exigia a polivalência, pois o ensino de arte era constituído em três

conteúdos específicos: Artes Plásticas, Música e Artes Cênicas. Ferraz e Fusari (1992)

denunciam que a formação do profissional para atender às necessidades destas três linguagens

específicas, era considerada insuficiente frente ao mundo tecnológico em expansão. Essa lei foi

assinada concomitantemente com ao enraizamento da metodologia tecnicista, que teve suas

origens a partir da segunda metade do século XX, no mundo, e a partir de 1970, no Brasil.

Frente à expansão tecnológica vivenciada neste período, o da “modernização” do ensino,

os professores eram orientados por uma concepção mais mecanicista, na qual aluno e professor

ocupam uma posição secundária, porque o elemento principal é o sistema técnico de organização

da aula. Os professores entendiam seus planejamentos e planos de aulas centrados apenas nos

objetivos que eram operacionalizados de forma minuciosa.

Nas aulas de Arte, os professores enfatizam um "saber construir" reduzido aos seus

aspectos técnicos, voltando a trabalhar com o desenho geométrico e a cópia, de forma a atender o

mercado de trabalho; e um "saber exprimir-se" espontaneístico, na maioria dos casos

caracterizando poucos compromissos com o conhecimento de linguagens artísticas. Devido à

ausência de bases teóricas mais fundamentadas, muitos valorizam propostas e atividades dos

livros didáticos e de recursos audiovisuais para o aprimoramento dos conceitos de arte. A

avaliação era realizada de forma objetiva, tendo em vista a retenção de informações, através de

atividades cronometradas, pois de certa forma estava-se treinando o aluno.

Conjuntamente com as tendências metodológicas tradicional, escolanovista e tecnicista,

surge no Brasil, entre 1961/1964, um importante trabalho desenvolvido por Paulo Freire, que

repercutiu, politicamente, pelo seu método revolucionário de alfabetização de adultos. Voltado

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para o diálogo educador-educando e visando à consciência crítica, influencia principalmente

movimentos populares e a educação não formal. Retomado a partir de 1971, é considerado nos

dias de hoje como uma "Pedagogia Libertadora", em uma perspectiva de consciência crítica da

sociedade.

Nesta pedagogia, baseada numa teoria crítica de educação, todo o conteúdo a ser

trabalhado, parte da cultura, do saber e das experiênciações do povo e de sua condição social.

Mizukami (apud NUNES, 1990, p.22) tendo como referência aos estudos de Paulo Freire coloca

que:

(...) é a partir da consciência que se tenha da realidade que se irá buscar o conteúdo programático da educação. O diálogo na educação, como prática da liberdade é inaugurado no momento em que é realizado o que Paulo Freire denomina de universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores.

Freire (1980, p.30) esclarece o que seriam os temas geradores:

Os temas geradores podem situar-se em círculos concêntricos que vão do geral ao particular. A unidade histórica mais ampla compreende um conjunto diversificado de unidades (continentais, regionais, nacionais, etc.) e comporta temas do tipo universal. Eu, considero que o tema fundamental de nossa época é o da dominação, que supõe o seu reverso, o tema da libertação, como objetivo que deve ser alcançado.

Percebo o método desenvolvido por Paulo Freire, não como uma técnica de alfabetização,

e sim como uma teoria do conhecimento. Nesse sentido é que trago as grandes contribuições

deste pensador a cerca da educação. Dentro desta perspectiva o ensino de arte abrange aspectos

contextualizados na busca da conscientização e identidade cultural. Os conteúdos em arte são

traduzidos e organizados em “temas geradores”, constituídos a partir da situação real vivenciada

pela comunidade como um todo, numa relação e inter-relação dialógica, integrarão as disciplinas

num processo interdisciplinar.

A partir dos anos 80, o sistema escolar começa a se identificar por um engajamento maior

e de forma mais específica, nas transformações das ações sociais, culturais e educacionais como

um todo. Educadores brasileiros mergulham em um esforço de conceber e discutir práticas e

teorias de educação escolar para essa realidade. Nos convidam a discutir as ações e as idéias que

queremos modificar na educação em arte, lutando e assegurando esta, não mais como um adereço

ou alegoria do currículo, mas sim, como herança cultural, merecedora de respeito, assim como as

demais disciplinas do currículo.

Começa a se delinear uma proposta de ensino, baseada num redirecionamento

metodológico que pretende ser mais realista e crítico, possibilitando a todos os estudantes o

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acesso e contato com os conhecimentos culturais básicos e necessários para uma prática social

viva e transformadora, sem deixar de considerar as contribuições das outras perspectivas

metodológicas.

Tem-se buscado elaborar, discutir e explicitar então, uma pedagogia, denominada por

Saviani de "Pedagogia-Histórico-Crítica", a qual valoriza o diálogo com a cultura acumulada

historicamente. Tendo-se a perspectiva de uma educação crítica, os conteúdos estabelecem uma

relação de vida, metamorfose e significação. Para Nunes (1990) não basta que os conteúdos

apenas sejam ensinados, é preciso que se liguem de forma indissociável à sua significação

humana e social. Diante da preocupação com o ensino de arte, a autora (ibid, p.167) diz que os

conteúdos a serem ensinados devem “ir além de métodos e técnicas de ensino, procurando inserir

a dimensão política na ação artística cotidiana, visando suas relações com o movimento histórico

concreto”.

No que diz respeito aos métodos de ensino, estes não partem de um saber espontâneo, mas

de uma relação direta com a experiência do aluno confrontada com o saber trazido de fora. O

professor é mediador da relação pedagógica - um elemento insubstituível. É pela presença do

professor que se torna possível uma "ruptura" entre a experiência pouco elaborada e dispersa dos

alunos, rumo aos conteúdos culturais universais, permanentemente reavaliados face às realidades

sociais, observando sempre os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o

desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos

conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de construção e assimilação

dos conteúdos cognitivos tendo em vista seu reconhecimento como ser no mundo e com o

mundo.

Baseados na consciência histórica e na reflexão crítica sobre os conceitos, as idéias e as

ações educativas em arte é que o movimento de arte-educadores começa a conquistar espaço no

sistema escolar na década de 80. Nessa perspectiva, Fayga Ostrower, em seu livro Universos da

Arte de 1987, traz contribuições significativas ao ensino das artes visuais com a Abordagem dos

Conteúdos da Linguagem Artística. A proposta da autora foi trabalhar a linguagem visual, seu

conteúdo expressivo e seus significados, analisando as imagens de forma contextualizada, sempre

levando em consideração que o interlocutor, como qualquer outra pessoa tem um saber próprio

que é importante privilegiar. Assim, relata Ostrower (1987, p.17):

Estabeleci uma determinada seqüência de problemas, desdobrando-os do simples ao complexo (sem perder de vista que a complexidade já existe no mais “simples”). Em cada aula procurei retomar, de alguma maneira, os conhecimentos já ganhos sobre a linguagem artística, ampliando e enriquecendo-os, por vezes analisando a mesma obra seguidamente sob diversos ângulos.

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Percebendo a relevância de conhecer o processo histórico do ensino de arte e nele saber

interferir com consciência, Ana Mae, pioneira e desencadeadora de trabalhos e pesquisas no

Brasil, cujo foco é a leitura de imagem, nos convida a discutir e encontrar formas de ação na

atualidade. Ao conceber os estudos e proposições da autora, de antemão se afirma que houve

interpretações equivocadas, inclusive com distorções nos princípios que norteiam suas

concepções em arte.

Um dos estudos de Ana Mae, que sem dúvida, trouxe grandes e significativas

contribuições para o ensino da arte foi a Abordagem Triangular7. Nesta abordagem, a autora se

posiciona, colocando-a como uma possível proposta de ensino e aprendizagem, apontando três

vértices norteadores para desenvolver a competência estética nas linguagens da arte:

• a fruição (Leitura de imagem) - envolve questionamentos, buscas, descobertas, através

da apreciação significativa da arte e do universo a ela relacionado, desenvolvendo no aluno um

maior senso crítico e avaliativo de tudo que lhe cerca.

• a reflexão sobre a arte enquanto produto da história e multiplicidade de culturas

humanas (História da Arte) - ao contextualizar as produções artísticas, permitindo que o aluno

faça relações de suas produções com outras de diferentes períodos históricos comparando

comportamentos, estilos, pensamentos, objetivos perseguidos pela arte, situando-o historicamente

com ênfase na formação cultivada do cidadão. Barbosa (1991, p.37) deixa claro que “nenhuma

forma de arte existe no vácuo: parte do significado que qualquer obra depende do entendimento

do seu contexto”. O contextualizar opera no domínio da História da arte e outras áreas do

conhecimento implicando na interdisciplinaridade para a prática de um processo ensino-

aprendizagem direcionado à multiculturalidade, entendendo-a como educação para a competência

em múltiplas culturas e accessível a todos os aprendizes.

• a produção em arte (o Fazer Artístico) – vivenciar experiências estéticas, permitindo ao

aluno interpretá-las numa linguagem plástica, propiciando experimentações, comparações,

reflexões acerca dos resultados e das soluções encontradas que surgem somente após a

experiência do fazer, do seu poetizar arte. Barbosa (1991) chama a atenção para o fato da obra ou

imagem não ser um modelo a ser copiado fielmente, ela se configura apenas como um “suporte

interpretativo”, o qual sugere transformação, interpretação e criação de novas poéticas visuais.

7 Os fundamentos e pressupostos desta proposta/abordagem estão baseados no projeto DBAE ( Discipline Based Art Education), desenvolvido nos Estados Unidos desde o final da década de 80. Postula a educação/ensino da arte através da articulação/diálogo entre três momentos educativos: a leitura de imagem, a história da arte e o fazer artístico. Para maior aprofundamento ver a obra - A imagem no ensino da arte -, na qual Barbosa descreve na íntegra esta abordagem de sua autoria.

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Meira (2006) diz que ver imagens é também des-ver e trans-ver o visualizado.

Frente as diversas interpretações da proposta triangular, sente-se a necessidade de trazer o

pensamento de alguns autores sobre a questão de leitura/releitura em arte. Porém, antes disso, é

pertinente lembrar que as práxis educativas que envolvem os três vértices: fazer, a leitura e

contextualização, não possuem uma seqüência única, ordenada, a ser seguida. Para tanto Rizzi

(apud BARBOSA, 2002, p.69) afirma que:

A Proposta Triangular não indica um procedimento dominante ou hierárquico na combinação das várias ações e seus conteúdos. Ao contrário, aponta para o conceito da pertinência na escolha de determinada ação e conteúdos, enfatizando, sempre, a coerência entre os objetivos e os métodos.

O termo releitura no contexto da arte e seu ensino incorporou, no Brasil, uma conotação

de cópia, o que desvela muitas críticas quanto ao seu uso. Daí a opção por recepção de obra e

suas possíveis e infinitas interpretações. Nesse sentido, segundo Buoro (2002, p.23):

Por releitura entende-se aqui a tradução da significação do objeto como fundamento para uma nova construção, buscando-se nessa ação a re-significação do mesmo objeto: re-ler para aprofundar significados, re-semantizando-os. Dessa forma, considera-se que toda nova produção oriunda de uma linguagem referente é construção de um novo texto, no qual o sujeito produtor elabora uma interpretação, podendo até mesmo partir para a criação.

Ainda sobre esse enfoque Pillar (1999, p.18-20) coloca que:

Há uma grande distância entre releitura e cópia. A cópia diz respeito ao aprimoramento técnico, sem transformação, sem interpretação, sem criação. Já na releitura há transformação, interpretação, criação com base num referencial, num contexto visual que pode estar explícito ou implícito na obra final. Aqui o que se busca é a criação e não a reprodução de uma imagem.

(...) não há uma leitura, mas leituras, onde cada um precisa encontrar modos múltiplos de melhor saborear a imagem. Já na releitura, entendida como um diálogo entre textos visuais, intertextos, podemos nos valer ou não de dados objetivos que a obra referente contém ao criarmos. Considero, portanto, que leitura e releitura são criações, produções de sentido onde buscamos explicitar relações de um texto com o nosso contexto.

O processo de leitura/releitura em arte, a recepção da obra propriamente dita, está

diretamente relacionada ao ato de conhecer a produção de um determinado artista e, a partir dela,

criar novas interpretações e significações, experenciando um trabalho com um olhar interior e

ímpar, imprimindo um tônus próprio, tendo como referência o diálogo estabelecido entre a obra e

o espectador, o qual se torna leitor, re-significando o objeto apreciado/fruído a partir dos seus

conhecimentos incorporados, processando-se num espaço e tempo específico.

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A arte como uma prática de pensamento em imagens e/ou obras, se propõe como uma

forma diferenciada de estabelecer relações com a experiência real. Não podemos simplificar ou

restringir o ato de ler e interpretar a simples leitura dos olhos num processo mecânico e

adivinhativo. É preciso unir olhos, mente, coração e as vivências, tendo como recursos o domínio

do pensamento, a imaginação e a fantasia em nossos devires, buscando a construção objetiva e

subjetiva da concepção de mundo, à pluralidade de leituras a serem saboreadas, oportunizando

diferentes possibilidades de leitura, releituras, criações/construções e desconstruções de poéticas

visuais.

No entanto, a tarefa de ler uma imagem, exige do leitor/contemplador/interlocutor uma

permanente re-construção: desacomodando as percepções, realinhando as partes, ressignificando

o todo. Assim, mais do que uma questão semântica, o ler/re-ler uma imagem pressupõe apropriar-

se de outras chaves de significação, de outras perceptivas, novas formas de viver a metamorfose.

Inclui o deleite, a visão flutuante, a aproximação e o distanciamento, a interconexão, a fantasia, a

memória, a experiência vivida. Inclui também e sobretudo o deixar-se ver, o deixar-se construir,

o deixar-se olhar.

Na contemporaneidade despontam novas pesquisas como as de Anamélia Buoro (2002) e

Analice Dutra Pillar (1999) que defendem a idéia de que para uma verdadeira aprendizagem em

arte propõem a construção de um olhar intenso e vivo através da alfabetização visual. Destaca-se

a inserção do trabalho com a estética do cotidiano no ensino das artes visuais, proposta por Ivone

Mendes Richter (2003), supondo ampliar o conceito de arte para a amplitude da experiência

estética ao trazer a educação multicultural para o contexto escolar, assim como o alerta de

Francisco Duarte Jr.(2001), quando chama a atenção e convida os educadores para uma educação

da sensibilidade como forma de romper/estancar a crise da modernidade, crise dos sentidos pela

qual passa o mundo contemporâneo, propondo transformar essas anestesias em estesias, em saber

sensível com sabores mais apurados.

Para tanto, busco assim, construir múltiplos significados e expressões que possam tentar

dar conta daquilo que pretendo estudar. Num processo de construção, des-construção e re-

construção, é que impregno-me de idéias e conceitos de campos diversos, numa perspectiva da

diferença. Desta forma, as leituras crítico-teóricas que faço dos diferentes autores aqui presentes,

viabilizam a experiência da mutação e levam-me a estabelecer opções que, necessariamente, a

partir do meu universo/recorte teórico, carregam marcas ideológicas e culturais.

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1.3 O processo criativo e a educação (do) sensível: desvelando poéticas visuais

A arte não se restringe ao desenvolvimento do potencial criador e nem o tem com

exclusividade, pois hoje transita pelo enfoque da construção do conhecimento da arte-cognição

(caminho para a aprendizagem estética e artística, rumo à educação da sensibilidade). Nessa

direção, Richter (2004), acredita que os meios artísticos gráfico-plasticos, na educação, tornam-se

estratégias de um fazer infantil que integra imaginação e sensibilidade, razão e desejo, produção e

invenção, imagem e palavra, como modo poético de conhecer a si, aos outros e ao mundo,

permitindo à criança exercitar com prazer sua humana condição de criar sentidos através das

diferentes linguagens visuais.

Nessa óptica, Buoro (2002, p. 41), entende que:

Se a arte é produção sensível, se é relação de sensibilidade com a existência e com experiências humanas capaz de gerar um conhecimento de natureza diverso daquele que a ciência propõe, é na valorização dessa sensibilidade, na tentativa de desenvolvê-la no mundo e para o mundo desenvolvê-la, que poderemos contribuir de forma inegável com um projeto educacional no qual o ensino de arte desempenhe um papel preponderante e não apenas participe como coadjuvante.

A função da arte na escola, deve situar-se no tempo/espaço da imaginação e da criação,

numa expressão/explosão metamorfoseante de idéias, percepções, pensamentos, emoções,

sentimentos e conhecimentos, tendo em vista uma verdadeira educação dos sentidos, pois, é

importante sentir e prestar atenção ao que se sente, percebendo-se como parte de uma realidade

sócio-cultural que inter-relaciona consigo e com uma multiplicidade de culturas.

1.3.1 Tempo e espaço das poéticas visuais em construção

A imaginação sempre foi ato imanente à arte. Bachelard ao tratar da imaginação, rompe

com a tradição filosófica da ciência, estabelecendo um conceito que propicia categorias estéticas

inteiramente novas para nossa compreensão da arte: a imaginação material. A imaginação

material é o conceito central nos estudos do autor e nos interessa na investigação com poéticas

visuais em construções, principalmente porque encontra eco em anseios contemporâneos que

buscam um outro tipo de pensamento e sensibilidade com extrema vinculação a processos vitais.

A noção de imaginação desde o início de suas obras aparece vinculada à poética, pois

interessa à sua epistemologia negar a noção de imagem-reflexo do real para afirmar a imaginação

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estamos diante do poético. Quando – passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo – o poeta é o fio condutor e trasformador da corrente poética, estamos na presença de algo radicalmente distinto: uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é ciação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. (...) O poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem”.

Para Morin (1999, p. 35-43),

“ cada cultura produz duas linguagens a partir de sua língua: uma racional, empírica, prática, técnica; outra, simbólica, mítica, mágica (...)a cada uma delas correspondem dois estados: o prosaico e o poético. O estado poético pode ser produzido pela dança, pelo canto, pelo culto, pelas cerimônias e evidentemente, pelo poema. (...) Poesia-prosa constitem o tecido de nossa vida. (...) O fim da poesia é de nos colocar em estado poético”.

Bachelard (1989, p.20) acredita que o destino do humano é poético e portanto “ é preciso

ter algo mais que imagens reais diante os olhos. É preciso seguir essas imagens que nascem em

nós mesmos, que vivem em nossos sonhos. O que Bachelard não aceita é a concepção clássica da

imagem emergir de comparações e associações, ou seja, cópia do real percebido. Para ele a

imagem advém de correspondências, aproximações de realidades separadas, e quanto mais essas

realidades aproximadas forem distantes do sentido habitual, mais intenso seu poder de realidade

poética. É a partir da noção de imagem como encontro, “ligação” ou encadeamento de imagens, e

não de idéias, que passa a conceber a imaginação como produtora e não reprodutora.

Bachelard após intenso estudo sobre a imaginação material, abre no seio de sua obra

epistemológica um grande parênteses para a imaginação poética, simultaneamente uma filosofia

da alma e um anúncio sobre outros modos de pensar. A imaginação poética é dada pela força

existencial do devaneio8, que instaura a função irreal, tão necessária à vida do pensamento

quanto a função do real pois é ela que impõe o realismo da irrealidade”.

O devaneio não se dá a qualquer momento, desagredado, solto e livre. Os devaneios

vinculam-se à familiaridade que as coisas que sonhamos nos têm. Bachelard (1988, p.160)

acredita que os devaneios,

(...) fazem-se na concordância entre os nossos órgãos oníricos e o nosso coisário. Assim, nosso coisário nos é precioso, oniricamente precioso, pois nos oferece os benefícios dos devaneios ligados. Que prova de ser, reencontrar numa fidelidade do devaneio tanto o seu eu sonhador como o próprio objeto que acolhe o nosso devaneio. São ligações de existências que não poderíamos encontrar na meditação do sonho

8 No conjunto de sua obra, Bachelard distinguiu diversos tipos de devaneio: o devaneio poético, os devaneios materiais, o devaneio dinâmico, o devaneio cósmico, o devaneio operante, os devaneios da vontade, devaneios da infância. Diferentes devaneios que podem combinar-se, acrescentar-se e misturar-se. Bachelard passa seguidamente de um a outro pois todos promovem a abertura – ou estado de alma nascente – para uma feliz adesão ao mundo.

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noturno. O cogito difuso do sonhador de devaneios recebe dos objetos de seu devaneio uma serena confirmação de sua existência.

O devaneio, diferentemente do sonho, não se pode contar. Podemos apenas escrevê-lo,

desenhá-lo, pintá-lo, com emoção, com gosto, revivendo-o melhor ao transcrevê-lo. Seguindo a

concepção de Bachelard, no entanto, Richter (2006, s.p) compreende o devaneio como “o

dinamismo criador da imaginação tornando-se linguagem”. E segue afirmando que:

a imaginação assume o dinamismo projetivo sobre o mundo: a imagem vai ao real, penetra, pensa, sonha e vive a matéria, enfim, materializa o imaginário através do devaneio operante, aquele que ordena as forças da produção que tira de si mesma suas convicções para animar as coisas e emprestar-lhes uma existência poética.

Abordar a relação de tempo e espaço nos processos de criação de poéticas visuais na

vivência da criança, exige acolher a imaginação poética como ato alimentado pelo corpo operante

no instante da ação no mundo.

Bachelard (1989 a, p. 2) anuncia que a imaginação está sempre em ato enquanto “produto

direto do coração, da alma, do ser tomado em sua atualidade”. Assim, o passado não é relevante,

o que conta é a sua atualização. Para o autor, a imaginação – os nossos devaneios - nos faz criar

aquilo que vemos e, portanto, a imagem vai ao real e não parte dele. Significa que são das nossas

ficções, nossas fabulações, que extraímos nossas configurações de mundo, nosso “real”.

No entanto, o tempo e o espaço do ato criador / instante poético que se pretende definir

aqui, é o tempo e o espaço do próprio momento da ação criativa, do instante realizador da poética

em construção, é o próprio ato de aprender a iniciar um gesto no mundo para dar outro curso as

coisas, para sair da contemplação do mesmo para buscar o outro, para dialetizar a experiência. A

questão temporal em Bachelard (1994, p.24), é dar conta dos atos que começam, ou seja, da

tensão de um pensamento que engendra um ato: “para o comportamento temporal o que importa é

começar o gesto – ou melhor, permitir-lhe que comece. Toda ação é nossa graças a esse

consentimento”.

O devaneio trabalhado poeticamente possuiu uma temporalidade. O tempo deve ser

concebido como uma série de instantes decisivos (ou notáveis), sem preocupação com o tempo

que dura a execução, pois a decisão cresce ao afirmar-se no realizado. De acordo com Richter

(2006, s.p), esse devaneio que nasce do trabalho sobre a plasticidade material do mundo, “é um

trabalho que se pode fechar os olhos para bem ver, porque é ritmado, duramente ritmado, num

ritmo que toma o corpo inteiro: é, portanto, vital”.

A criação, entendida como a utilização plena dos sentidos, das emoções e da inteligência,

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concentração exigida pelo prazer do gesto significador, que age sobre a materialidade do mundo

para produzir e inventar formas. No entendimento de Richter (2006), formar é fazer e, em arte,

dizer e fazer não se separam: o fazer é um dizer na medida que toda forma significa-se.

Nesta perspectiva, Martins (et al.,1998, p.8) enfatiza que quanto mais o aprendiz tiver

oportunidade de re-significar o mundo por meio da especificidade da linguagem da arte, mais

poder de percepção sensível, memória significativa e imaginação criadora terá para formar

consciência de si mesmo e do mundo. Desvelar/ampliar, como termos interligados, “são ações

que se auto-impulsionam, como pólos instigadores para poetizar, fruir, conceituar e conhecer arte

elaborando sempre novas relações com o já sabido”.

1.3.2 Do sensível ao inteligível: poetizar e conhecer arte

Há muito tempo a sensibilidade perdeu espaço para a tecnologia e a escola parece investir

mais no adestramento de sua clientela do que em aprendizado, evidenciando a distância entre

razão, emoção e sentimentos. Estimulada a se manter como se o seu espaço institucional fosse

destinado a um “esquartejamento mental” precoce, assim denominado por Duarte Jr. (1983), o

espaço escolar prima pelo saber objetivo e a racionalidade técnica, em que a aprendizagem não se

mostra significativa e a vivência vem perdendo espaço para a mecanização.

A crença de um conhecimento está no palpável, no comprovável, no real, na verdade

absoluta das ciências maiores, relegando as ciências humanas e as artes a um plano inferior,

chegando a arte, ocupar um tempo e espaço ínfimo na grade curricular e até mesmo ser esquecida

e invalidade no seu percurso, independente de ser a disciplina capaz de exprimir sentidos,

concretizar o sentir humano e se presentificar em todas as culturas. Na compreensão de Duarte Jr.

(1983, p.32), “a ciência tornou-se a pedra fundamental do saber e do agir humano, e sobre este

conhecimento científico repousam nossos critérios de verdade”.

A escola, no papel de formadora, pouco ou nada trabalha com o aspecto sensorial na

aprendizagem, desvalorizando a sensibilidade e a imaginação criadora, fazendo-o, portanto,

adormecer em berço esplêndido. É como se os educadores não soubessem que a experiência

criadora designada pela capacidade humana de construir, afirmar, extrair, relacionar, fabricar,

imanta o mundo de sentidos para serem sentidos, metamorfoseando distintas maneiras de

interagir com os múltiplos universos e com outros seres.

Na trajetória, rumo a contemporaneidade, todavia, em algum ponto do caminho muitos

perderam a consciência plena dos sentidos, faz-se referência aqui aos sentidos básicos que

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descobrimos ao nascer e desenvolvidos por toda a existência: a visão, a audição, o tato, o olfato e

o paladar. Duarte Jr (Op. Cit., p. 72) acredita que vivemos uma crise dos sentidos, e assim

explicita:

A crise que ora acomete nosso estilo moderno de viver precisa ser vista como diretamente vinculada a uma maneira de se compreender o mundo e de sobre ele agir, maneira que se veio identificando como tributária dessa forma específica de atuação da razão humana: a forma instrumental, calculante, tecnicista de se pensar o real. Se há uma crise, esta deve ser primordialmente debitada àquele modelo do conhecimento que, originário das esferas científicas (nas quais, deixa-se claro, que ele cumpre seu papel) com rapidez se espalhou por todos os interstícios de nossa vida diária, respaldando a economia, a produção industrial e mesmo a educação e a maioria de nossos atos cotidianos. Tal conhecimento, tendo (epistemologicamente) negado desde os primórdios o acesso sensível do ser humano ao mundo, veio, num crescendo, desumanizando o nosso planeta e as nossas relações sociais ao generalizar-se de modo indiscriminado.

No entanto há uma regressão sensível principada já na infância e se estendendo para a

vida adulta, desvelando uma cegueira absurda no ato de fechar-se à tamanha beleza universal, em

detrimento das questões impostas e às regras paradigmáticas, o que deflagra/inaugura

concretamente a regressão humana contemporânea: a negação do sensível, a impossibilidade ou

capacidade de sentir, a anestesia (an - estesia: não sentir, anestesia da qual sofre o homem

contemporâneo) assim denominada por Duarte Jr (2001, p. 71). Então, uma ponderação é

necessária aqui, acentuadamente forte nos dizeres de Rubem Alves (apud DUARTE Jr., 2001,

p.104) “(...) como se a língua, o nariz, os olhos, os ouvidos e o tato tivessem sido amortecidos ou

castrados”.

Assim, os nossos sentidos foram tornando-se obscuros, embotados e nebulosos, dando a

impressão de operarem automaticamente, de forma independente a autônoma. É como se o ser

humano fosse apenas cabeças pensantes para atos de análise, julgamento, imaginação,

lembranças, fantasias, apreensão, adivinhação, censura, acomodando-se frente às realidades

impostas pela vida, sem desafios, sem oportunidades de crescimento. Restrepo (1998) coloca que

os sentimentos, as manifestações e significações íntimas de cada corpo, não podem continuar

confinados ao terreno do inefável, do inexprimível, do não deixa-se sentir. É como se nossos

corpos vivessem um analfabetismo afetivo.

É válido afirmar aqui, que o intelecto é uma parte importante do todo que o ser humano é,

responsável pela comunicação, pelo estabelecimento de relações, atitudes e escolhas. Porém, a

mente é uma parte do organismo humano que precisa ser cuidada e cultivada, receitando-a

fundamentalmente porque traz o poder e sabedoria e é o veículo com o qual se apreende o mundo

e o universo circundante.

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Uma ampliação operada por Maturana e Varela (2002) em relação à cognição é feita ao

afirmarem que a vida é um processo de conhecimento. Sua abordagem autopoiética9 propõe a

fórmula: ser = fazer = conhecer. Nesta perspectiva a cognição não se restringe à solução de

problemas, mas se amplia e complexifica como uma ação produtiva que engendra, ao mesmo

tempo, sujeito e mundo. Os seres vivos se caracterizam por serem uma organização autopoiética,

ou seja, por produzirem continuamente a si próprios (MATURANA; VARELA, 2002). Neste tipo

de organização o produtor é também o produto e o ser e o fazer são inseparáveis. É pela ação no

mundo que o sujeito inventa a si mesmo permanentemente.

O que há de mais importante a ser destacado acerca das abordagens da cognição – da

autopoiese de Maturana e Varela (2002) e da enação10 de Varela (1997) - é que, a enação desloca

o papel da representação ao considerar que o conhecimento é incorporado, isto é, enfatiza a

dimensão existencial do conhecer, emergindo da corporeidade. A cognição depende da

experiência que acontece na ação corporal, não sendo mais possível considerar a cognição como

simples representação mental do mundo. Estamos num mundo, fazemos parte dele, mas o que

apreendemos não é uma cópia correspondente a algo que está no mundo. Tudo que percebemos

está marcado por nossa própria estrutura. E é pela ação que o sujeito engendra um mundo.

Construímos um mundo e, ao mesmo tempo, somos construídos por ele.

Em segundo lugar, temos o conceito de autopoiese, de auto-produção, que afirma que os

seres vivos são uma organização autopoiética autônoma, por produzirem a si mesmos

continuamente, ao interagir com o meio (MATURANA; VARELA, 2002). O processo

autopoiético é circular, todo e parte entrelaçam-se. Por exemplo, a célula e suas membranas

realizam um jogo dinâmico, flexível, plástico, de troca contínua com o meio, mas sem perder a

sua constituição interna, sua identidade (Maturana e Varela, 2002). Desta forma, a cognição se

abre para a imprevisibilidade e para a transformação constante. Permitindo a invenção de

problemas, a invenção de si e de mundo (KASTRUP, 1999).

Segundo Virgínia Kastrup (1999) a partir das abordagens de Maturana e Varela a

cognição surge como invenção. Isso significa uma ampliação, na medida em que a cognição não

é mais vista apenas como recognição, passando a ser percebida também em sua dimensão de

invenção de problemas e de invenção de si e do mundo. Kastrup (1999) introduz o tempo e o 9O termo autopoiese é um neologismo que nos remete à idéia de autoprodução. O dicionário apresenta poiese-poese do seguinte modo: “[...] el. Comp. Pospositivo, do gr. Poíesis, eos, ‘criação, fabricação, confecção; obra poética, poema, poesia’” (HOUAISS, 2001, p. 2246). 10O termo enação inspira-se no neologismo criado por Varela (Maturana e Varela, 1997): do espanhol enacção e do inglês enaction, traduzido por Assmann (1996) como "fazer emergir". O termo relaciona-se diretamente com a compreensão da cognição defendida por Varela (Op. Cit).

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coletivo no estudo da cognição, e insiste na importância da abertura para o presente como aspecto

essencial para o entendimento da competência ética. Essa atenção ao presente configura-se uma

cognição viva, corporificada. Uma forma de ser e de viver que permite a criação de problemas e a

expansão dos limites do si e do domínio cognitivo anteriormente constituído. Segundo ela, “a

cognição surge então ampliada, incluindo a dimensão ética, tornando patente sua aproximação

com a noção de subjetividade”. (ibid., p.91)

“Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe

quanto és, no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”

(PESSOA, 1976, p. 146). O poema de Fernando Pessoa é ilustrativo. Se quisermos uma educação

(do) sensível, precisamos compreendê-la de tal modo que os sujeitos envolvidos sejam inteiros,

possam se colocar na relação, não como máquinas reprodutoras, repetidoras, mas como seres

autopoiéticos.

Mas de que educação (do) sensível estamos falando? São relevantes as colocações de

Duarte Jr (2001, p. 181):

Uma educação do sensível, da sensibilidade inerente à vida humana, por certo, constitui o lastro suficiente para que as naus do conhecimento possam singrar os mares mais distantes de nossas terras cotidianas, como os oceanos da matemática e da mecânica quântica.

O autor segue afirmando (ibid, p. 204-5):

A educação do sensível significa muito mais que o simples treino dos sentidos humanos para um maior deleite face às qualidades do mundo. Consiste, também e principalmente, no estabelecimento de bases mais amplas e robustas para a criação de saberes abrangentes e organicamente integrados, que se estendam desde a vida cotidiana até os sofisticados laboratórios de pesquisas.

Para Duarte Jr a educação do sensível e o ensino de arte constituem instâncias do mesmo

processo, ou seja, a educação estésica e a estética devem se complementar, perseguindo as

conexões existentes entre os conhecimentos e saberes, num enfoque plural do sensitivo. Derdyk

corrobora com esta concepção, acreditando a educação estética deveria estar presente nas

situações pedagógicas desenvolvidas em arte porque:

(...) cada sensação, cada sentimento, cada gesto, cada som, cada imagem que agarrar, fixar, inventar sua forma. Cada impulso do corpo é enlaçamento de si na exterioridade do mundo. Cada célula compõe a narrativa singular de um fazer. Cada inspiração ocupa um espaço, se estende no tempo, se conserva até seu esfacelamento: um pulmão que infla, esvazia e expira, inspirando novamente. Cada atuação do corpo é movida pelo

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imaginário dos sentidos que vêm e que vão, trocando fluídos vazantes, ruminando experiência ao vivo.

A esse raciocínio, Frange (apud BARBOSA (Org.), 2002, p.42) acrescenta a

argumentação de que falta ainda muito aprofundamento na estética e na estesia, destacando-se

assim, não só as constatações, mas as sensações e os sentimentos enquanto operações

significativas, traçando a seguinte definição: “a estesia é a busca do sentido – sentido, um sentido

percebido e re-operado porque toca a pessoa e nela adentra, inquietando-a”.

Pensando, pois, na sensibilidade enquanto processo, Meira ( apud PILLAR (Org.) 1999,

p. 131) coloca que:

O desafio da educação Estética é fazer com que a arte deixe de ser uma disciplina do currículo e se torne algo incorporado à vida do sujeito, que o faça buscar a presença da arte como uma necessidade e um prazer, como fruição ou como produção, porque em ambas a arte promove a experiência criadora da sensibilização.

Neste aspecto, concorda-se que é preciso mudar a forma de ver o mundo e estar nele,

valorizando o que de melhor há em cada ser, suas emoções, suas habilidades, suas intuições, bem

como respeitá-lo em suas limitações para possibilitar as conexões intuitivas e atos criativos,

buscando-se sempre a auto-transcedência ao conhecer o homem como um ser criativo, inventivo,

sonhador e que desperta o mundo com suas criações.

Romper cristalizações, partilhar contradições, re-significar o olhar, proporcionando a

procura de novas formas ou vias de colocação em um novo modo de ser, ou em um novo campo,

sugerindo-se aqui a educação do sensível nos moldes propostos por Duarte Jr ou seja, acreditar na

arte como promotora de sentidos, sensibilidades, saberes e sabores, em possibilidades de

mudança para a descoberta de algo novo em um novo contexto, gestando e colapsando

possibilidades, percebendo outros significados, saltando criativamente de forma perceptiva e

consciente para dar qualidade à existência.

1.3.3 Desenvolvimento da capacidade criadora da criança e a construção de poéticas visuais

Realizamos atos criativos, em maior ou menor grau, desde a infância, modificando a

realidade interna e externa, pois na criação o homem transforma seu contexto e ao mesmo tempo

é transformado por esse seu modo de agir no mundo. Suzana Langer (apud GARDNER, 1987,

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p. 71.) afirma que “o ser humano tem uma necessidade básica e intensa de simbolizar, de inventar

significados e investir de sentido o próprio mundo”.

Segundo Vygotsky (1982, p. 10-11) a criação implica numa mudança e esta tem origem

na realidade vivenciada e na memória anterior do homem. Todo criador, por mais genial que seja,

é sempre produto de seu ambiente sócio-cultural. É através da memória e da imaginação que o

homem cria seus instrumentos culturais.

Abordando a natureza criativa do homem, Ostrower (1991, p. 05) contribui afirmando

que:

(...) a natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural. Todo o indivíduo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam aos próprios valores da vida. No indivíduo confrontam-se, por assim dizer, dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de determinada cultura.

No processo criativo a atividade reprodutora antecede o ato criador. Vygotsky (1982) fala

que a atividade reprodutora é a própria memória, é atividade da psique com a qual reproduzimos,

na consciência, uma série de imagens que vivem, mas que não se relacionam com o motivo

imediato para sua reprodução (a imaginação).

Estudos sobre o desenho infantil realizado Brent & Marjorie Wilson (apud BARBOSA,

2001.) evidenciaram como a cópia (ou imitação conforme Derdyk ou ainda reprodução conforme

Vygotsky) é primordial na constituição da expressão gráfica e criadora das crianças.

A expressão artística infantil não se restringe ao ato de pura reprodução ou cópia de

objetos, idéias ou conceitos. Ela cria algo novo, pois a percepção se encarrega de reinterpretar,

construir ou representar simbolicamente podendo ser visual, corporal, sonoro ou gestual,

resultando em uma complexa leitura e elaboração de novos conceitos, presentes agora em uma

nova realidade, sob um outro ponto de vista.

A criança ao fazer sua leitura de mundo, dá significado e expressa simbolicamente através

do desenho e pintura suas experiências vividas e sentidas, tornando o real em imaginação

criativa, na representação do real e não do real propriamente dito. Ao representar um objeto da

natureza, a criança representará os objetos que são significativos para ela. Enquanto desenham

estabelecem relações, relembram cenas e incorporam sentimentos, de modo geral, misturam

sonhos e realidade, desenvolvendo seu potencial criador, conquistando assim uma nova visão de

mundo.

Seguindo este pensamento, para Derdyk (1989, p. 112):

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O desenho não é mera cópia, reprodução mecânica do original. É sempre uma interpretação, elaborando correspondências, relacionando, simbolizando, significando, atribuindo novas configurações ao original. O desenho traduz uma visão, porque traduz um pensamento, revela um conceito.

Gombrich (1986) segue esta idéia afirmando que a criança imita, representa, recria e não

apenas faz cópia do real visualizado, cita um exemplo que ao expressar o real, o que prevalecerá

é o modelo interno de cada pessoa, o reencontro em si de modelos sobre o mundo.

Derdyk (1989) concebe o significado da imitação diferente do significado da cópia. A

imitação é decurso da experiência pessoal, orientada pela seleção natural que a criança efetua dos

objetos, para então se apropriar do conteúdo. A capacidade de imitar só se tornará possível no

momento em que a criança estiver apta a reproduzir e simbolizar imagens mentais internas. “A

imitação representa estas imagens mentais sob forma de linguagem, ampliando o repertório

gráfico através da repetição”. (Ibid., p. 110) A repetição é a incorporação de gestos, de elementos

gráficos, de conteúdos que vão se acrescentando ao repertório infantil, por livre escolha e vontade

própria. O ato de copiar, ao contrário da imitação, revela-se por um distanciar-se de si mesmo,

tornando-se vazio de conteúdo, pois é resultado de uma mera reprodução impessoal, inibindo

toda e qualquer manifestação expressiva e original. “Ensinar a criança a copiar é ensinar a

estereotipia, é esvaziar o sentido da pesquisa natural”.( Ibid., p. 111)

A atividade criadora infantil nasce da discrepância entre o real e o possível via

imaginação. O caminho entre o imaginário e o real se organiza um movimento de construção do

psiquismo de valor fundamental: recriar o real (atividade reprodutora) e generalizar, via

abstração, um outro mundo (atividade criadora).

A função imaginativa tem como mola precursora a necessidade e o desejo e é influenciada

por alguns fatores como: os interesses, as capacidades de dar forma ao resultado da imaginação,

os conceitos técnicos, as tradições, os modelos de criação que influenciam o ser humano e o

contexto social no qual está inserido.

Vygotsky (1982) destaca três momentos no processo de imaginação criadora. No primeiro

momento considera a imaginação criadora como resultante da reformulação de experiências

vividas, combinadas com outros elementos constituintes do mundo real. No segundo momento

inclui a participação da afetividade e dos elementos sociais que envolvem o indivíduo. O terceiro

momento tem por objetivo a criação como resultado de um processo que interfere na

transformação do mundo. Assim, o sujeito poderá viver criativamente em todos os espaços nos

quais se encontrar, pois o cérebro não se limita a conservar ou reproduzir experiências passadas;

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é, também, um órgão combinador e criador, capaz de reelaborar e ressignificar as experiências

passadas, modificando-as em novas significações e envolvendo no processo criativo uma mistura

de fatores subjetivos e objetivos, superando a distinção entre a afetividade, a percepção, a

imaginação, a cognição e experiências acumuladas.

Na infância a criatividade se manifesta em todo seu fazer solto e descompromissado,

espontâneo, imaginativo, no brincar, no sonhar, no associar, no simbolizar, no fingir a realidade.

Educar a criança para a criatividade significa ajudá-la descobrir-se e descobrir formas de explorar

vários aspectos que interferem seu meio social. Sobretudo, é preciso educá-la para não temer o

fluir incessante de seu potencial criador. Para tanto é possível propiciar processos de criação

conscientes pela educação em Artes Visuais nos Anos Iniciais, não como mera repetição de

atividades mecânicas (técnica pela técnica, a cópia pela cópia ou releitura por releitura), mas sim

através de atividades pedagógicas que permitam vivenciar, experimentar e sentir de forma

imaginativa, reflexiva e prazerosa o processo de criação.

Por meio de uma metamorfose de uma forma e outra, a criança experimenta a criação no

processo plástico, seja no desenho, pintura, escultura, em que o instante criativo artístico se

constitui como um elemento mediador na elaboração de novos conceitos para a vida. No

entendimento de Ostrower (1991, p. 143) “ao criar procuramos atingir uma realidade mais

profunda do conhecimento das coisas. Ganhamos concomitantemente um sentimento de

estruturação interior maior; sentimos que estamos desenvolvendo algo de essencial para o nosso

ser”.

Para tanto, o que se prioriza é o desenvolvimento do processo de criação da criança e não

o produto final de uma mera liberação de emoções. Diante disso, Ana Mae (2002, p.21) denuncia

que:

(...) aqueles que defendem a Arte na escola meramente para liberar a emoção devem lembrar que podemos aprender muito pouco sobre essas emoções se não formos capazes de refletir sobre elas. Na educação, o subjetivo interior e a vida emocional devem progredir, mas não ao acaso. Se a Arte não é tratada como um conhecimento, mas somente como um ‘grito da alma’, não estaremos oferecendo uma educação nem no sentido cognitivo, nem no sentido emocional. Por ambas a escola deve se responsabilizar.

A arte enquanto processualidade criativa e expressiva exige uma elaboração mental, a

construção do repertório individual, procurando desenvolver ao máximo os conceitos que

expressam seus sentimentos, suas emoções e sua sensibilidade, já que vivemos numa sociedade

de massa, em que as relações sensíveis do indivíduo são progressivamente suprimidas. Desta

maneira, a importância do processo criativo em arte enquanto expressividade, concretude física e

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material, se deve a um corpo complexo de oportunidades, possibilidades e encantamentos frente a

manifestação imaginativa, cognição, comunicação e cultura. Usando as palavras de DerdyK

( 2001, p.40):

(...) se a criatividade é cúmplice de uma razão histórica, o ato criador salta à tessitura histórica. Se a criatividade expressa um jogo combinatório irradiante – tal como os círculos concêntricos que se abrem na água quando uma pedra é jogada contra a superfície, aos poucos, vão perdendo seus vincos - , a criação acontece em outro raio de reflexão, esparramando-se pelas brechas – tal como a água incontrolável que vai penetrando pelas fendas fundas da pedra.

Diante dessas colocações, torna-se imprescindível repensar o processo criativo da criança

na construção de poéticas visuais, buscando o seu real objetivo – o de interligar sensação e

inteligência -, não abstraindo de devanear, mergulhar em situações imaginárias capazes de

acessar e processar a sensibilidade em seus vários níveis de intensidade afetiva. Lowenfeld e

Brittain (1970, p. 17) acreditam que “(...) quanto maior for a oportunidade para desenvolver uma

crescente sensibilidade e maior a conscientização de todos os sentidos, maior será também a

oportunidade de aprendizagem”.

Neste sentido, Duarte Jr (1983, p. 66-7) contribui ressaltando que:

(...) educar os sentidos, as emoções, não significa reprimi-los para que se mostrem apenas naqueles (poucos) momentos em que nosso mundo de negócios lhes permite. Antes, significa estimulá-los a se expressarem, a vibrarem frente a símbolos que lhes sejam significativos. Conhecer as próprias emoções e ver nelas os fundamentos de nosso próprio eu é a tarefa básica que toda escola deveria propor, se elas não estivessem voltadas somente para a preparação de mão-de-obra para a sociedade industrial.

Precisa-se respeitar o trabalho que se desenvolve em arte no contexto escolar, por tudo

que se pode realizar a partir dele. Sobretudo, o processo criativo infantil precisa transcender a

livre – criação, tendo o professor o papel de mediador, reconhecendo-se flexível o suficiente para

perceber o interesse do aprendiz e potencializá-lo. Torna-se necessário e imprescindível trabalhar

a sensibilidade, o espírito de grupo, a troca de experiências à luz da História da Arte como pano

de fundo/referência para o desenvolvimento de sujeitos ativos, pensantes, fruidores e criativos em

potencial. Precisa-se respeitar o tempo/espaço de expressividade artística da criança, suas

poéticas visuais construídas e compreendidas na própria medida em que constituem a extensão do

eu e a organização das relações com o mundo, e não na proporção em que objetiva a construção

de belas obras. O que se busca é uma aprendizagem que produza uma melhoria da qualidade do

viver, com novos modos de ver, sentir, pensar e agir, suscitados por novas formas de viver as

metamorfoses.

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CAPÍTULO 2

ROTA E O ITINERÁRIO DA VIAGEM

2.1 Metodologia da pesquisa

A temática desta investigação delimitou-se em conhecer os percursos das poéticas

visuais em construção de crianças dos Anos Iniciais, identificando como se dá a metamorfose

expressiva da criança em interação com a educação (do) sensível.

Motivada por um não saber ainda, esta pesquisa objetivou conhecer o percurso criativo

das poéticas visuais em construção das crianças, proporcionando tempo e espaço para

experenciAÇÃO poética, na interação com a educação (do) sensível. Para tanto buscou-se:

Identificar que tempo e espaço são esses, em que se dá o processo criativo de poéticas visuais em

construção no cotidiano de sala de aula; Construir poéticas visuais , estabelecendo relações entre

o processo de criação e a educação (do) sensível; Analisar percursos criativos experenciados nas

poéticas visuais em construção.

As questões que nortearam esta pesquisa foram: Que espaços e tempos são viabilizados

para a experenciAÇÃO criativa e construção de poéticas visuais da criança no cotidiano de sala

de aula? Como se dá a metamorfose expressiva da criança a partir de poéticas visuais em

construção e da educação (do) sensível?

A partir do tema apresentado, as categorias de análise que nortearam esta pesquisa,

tendo em vista uma melhor organização e apresentação dos dados, surgiram durante o processo

de investigação, em seu percurso de continuidade e ruptura, numa articulação harmoniosa, na

procura de responder as questões norteadoras da pesquisa. Assim sendo, apresenta-se a descrição

de cada uma delas.

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POÉTICAS VISUAIS EM CONSTRUÇÃO

Quadro 2- Delineamento categorial da pesquisa

POÉTICAS VISUAIS EM CONSTRUÇÃO – Categoria geral

Pesquisar a experienciAÇÃO criativa de crianças no espaço escolar em sua dimensão

poética, possibilitou relacionar e configurar o vivido em outros domínios, não apenas o do real,

mas o da ficção plasmada no processo imaginário. Significou sublinhar a sutileza dos laços entre

a vida cotidiana e o imaginário, despertando a autonomia da imaginação criadora frente da

percepção visual.

Por poiésis, entende-se uma vontade autoral, constituída no instante poético, ou seja, a

poesia desvelando a produção, a ação, a práxis em arte através de técnicas, procedimentos e

elementos da linguagem visual no espaço escolar, presentificando-se um repertório pessoal.

Tempo e espaço de poéticas visuais em construção

Educação (do) sensível

Metamorfose expressiva da criança

-Transformações no percurso criativo - Marcas deixadas na matéria - Percurso: movimentos, alterações e mudanças estabelecidas na comple- xidade da materialização do poético

-Ritmos -Repetições -Recomeços

-Instante criador -Olhar com as crianças

-Devaneio

-Corpo sensível

-Emoção -Percepção

-Relação entre os corpos

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As poéticas visuais em construção se constituem de processos e seu inacabamento, nas

possibilidades das relações vividas e narradas pelas crianças nos diferentes tempos e espaços da

experienciAÇÃO do corpo/gesto sobre a matéria – inseparável do ato de apreciar e contextualizar

o estar fazendo imagens. Cada marca riscada, pincelada, manchada, esculpida, vincula-se a outras

marcas – visíveis e invisíveis – passando a habitar um discurso sobre o feito-fazendo: a

interpretação do gesto.

Aqui, torna-se necessário prestar atenção ao que há para além da marca, do risco, da

pincelada, dos volumes, do traço: o corpo, o gesto, o toque que as instaura. Ato que funde corpo e

matéria fornecendo nosso coeficiente de ação. Observar modos de imaginar e perceber implica

acompanhar modos de agir e conviver, implica o tempo e o ritmo da escuta sensível para abarcar,

assim como Richter (2005) a formação e não a forma; a palavra que emerge e não a

explicação/descrição do “visto”; enfim reter a relação rítmica entre corpos, isto é, o que emerge

da relação/encontro entre as mãos, as imagens e as palavras.

Tempo e espaço de poéticas visuais em construção – categoria específica

Configurar e transformar imagem, por ser experiência de si com os outros, não são

passíveis de “transmissão” mas enquanto intencionalidade pedagógica dependem profundamente

das materialidades disponibilizadas e dos tempos e espaços planejados e organizados para tal

acontecimento. Nesta perspectiva, a mediação pedagógica em artes plásticas exige aprender a ver

e olhar com as crianças. Exige o olhar sensível para acolher as diferenças nas repetições, as

novidades que emergem dos gestos conhecidos, a beleza nas marcas que este envolvimento

deixou. Implica acolher as tentativas, as frustrações e os recomeços, os tempos de fruição quando

o olhar se ergue para distanciar-se dali e lentamente reiniciar os devaneios do corpo em ação.

Implica em ser sensível aos tempos de euforia e fala intensa, de silêncios, de confusão

generalizada, de reorganização. Exige, em suma, acatar os rituais e os ritmos que cada corpo

possui e compartilha com outro: o ritmo do grupo. O que se tornou fundamental nesta experiência

são os tempos – os ritmos- de cada criança, que não são os do adulto e muito menos os da escola.

No instante da ação, o corpo operante se põe como um todo, e esse se pôr enquanto o Eu

poético, no ato criador, se constitui num corpo que se lança a territórios espaciais não fixos, numa

descontinuidade de ações, plenas de instantes notáveis que nascem vontade autoral de

transformar das coisas, em que o ritmo é a duração vital. De acordo com Bachelard (1999) a vida

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rítmica está ligada a dialética temporal dos repousos e das ações, das possibilidades de repetições,

da liberdade dos começos e deslocamentos dos instantes realizadores.

Metamorfose expressiva da criança- categoria específica

Observar as transformações no percurso criativo das crianças supõe adentrar no

movimento de suas imagens. Significa um andar junto, um olhar atento a todas as alterações de

ritmos e de espaços, significa envolver-se com a complexidade de acompanhar o devanear da

criança, seu modo singular de transformar o poético em materialidade, assim como a forma de

inscrever-se no grupo, seu modo particular de interagir coletivamente em sua cultura ao poetizar

o vivido e o possível de ser vivido com outros. Na infância, o poético emerge como ato de

aprender a interrogar, traduzir e valorar o vivido, como modo gradativo (multitemporal) do corpo

traduzir experiências de um estar presente em linguagens ao interagir ludicamente com o mundo.

Abordar a experiência de instaurar, transformar e transfigurar imagens na infância é

predispor-se a abarcar os modos como as crianças plasmam experiências com a materialidade de

e no mundo para configurar e transformar sentidos com outros através de suas narrativas icônicas.

Não é ainda da criação ou produção artística, antes é experiência de si , de modo como o corpo

aprende a estabelecer relações com os outros corpos a partir dos ritmos singulares de cada gesto

que deixa marcas no mundo. Nesse sentido, a experiência de desenhar, pintar, esculpir, enfim

transformar a materialidade, não é ver algo e representa-lo, mas é o modo como vejo e narro algo:

é pensamento em ato.

Educação do sensível- categoria específica

O desafio quase instransponível aqui, é compreender o corpo sensível e operante como

fonte primeira de percepções e significações que vamos constituindo com o mundo ao imantá-lo

com nossos devaneios, nossas interpretações, nossas hesitações, produzindo sentidos encarnados

a partir da exploração inesgotável que o real oferece.

A corporeidade se constitui não como ponto de partida e de chegada, mas como o corpo e

seu poder de ser afetado pelo sensível, compreendido na própria essência daquilo que a criança

sente, que lhe é perceptível, tocante em suas manifestações, que o impressiona com facilidade. A

sensibilidade ao mundo e ao outro é nosso primeiro elo com o mundo. Em Merleau – Ponty

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(1999a) o corpo deixa de estar na dependência do poder soberano da consciência (eu penso) para

exercer a mediação com o mundo, marcando sua presença em nós. O mesmo autor insiste em

destacar a relação entre as coisas e meu corpo para afirmar que não há coincidência perceptiva. A

experiência perceptiva e sensitiva é única, imprevisível e compartilhada: “é ela a responsável de

que, às vezes, eu permaneça na aparência, e outras, atinja as próprias coisas; ela produz o zumbir

das aparências, é ainda ela quem o emudece e me lança em pleno mundo” (apud RICHTER 2005,

p.160). É o corpo encenando o mundo: vivificando-o.

O sociólogo / educador Francisco Duarte Jr ( 2001), corrobora com a idéia de que longo

da vida aprendemos sempre com o “mundo vivido”, através de nossa sensibilidade e de nossa

percepção, que nos permitem “alimentarmos dessas espantosas qualidades do real que nos cerca:

sons, cores, sabores, texturas e odores, numa miríade de impressões que o corpo ordena, na

construção do sentido primeiro.”(p. 14) Nesta perspectiva o autor defende a educação (dos)

sentidos, que nada mais significa do que dirigir a nossa atenção de educadores para desenvolver e

refinar os sentidos. Eis a tarefa, tanto mais urgente quanto mais o mundo contemporâneo parece

mergulhar num anestesiamento dos sentidos, característico dos tempos modernos.

O mundo antes de ser tomado como matéria inteligível surge a nós como objeto sensível.

A reversibilidade faz as coisas mais profundas e coloca o corpo, não como um suporte de uma

consciência cognoscente, sempre referendada por um sujeito, daí a necessidade da compreensão

de um corpo-sujeito, mas sim, apresenta o corpo reflexionante, ou seja, o corpo na experiência do

movimento, na comunicação entre os sentidos. É, por fim, uma tentativa de abordar a

corporeidade não como algo abstrato, é recusar as dicotomias, é ensaiar atitudes complexas para

compreender o humano e sua condição de ser corpóreo em incessante movimento e sintonia,

admitindo diferentes ritmos, pautados na vivência de cada indivíduo.

A abordagem metodológica utilizada nesta pesquisa, teve por base os princípios de

natureza qualitativa, por entender, como Gil (1999), que a pesquisa qualitativa favorece a

compreensão do universo pesquisado, ampliando as possibilidades de captar mais intensamente

os fenômenos e suas mudanças, dentro do processo educacional e social.

A pesquisa qualitativa foi um processo que se construiu no cotidiano investigativo.

Ludke & André (1986, p.18) fazem referência à abordagem qualitativa como aquela que “se

desenvolve numa situação natural, é rica em dados descritivos e tem um plano aberto e flexível e

focaliza a realidade de forma complexa e contextualizada”. Esta compreensão permitiu não seguir

um caminho duro, estático, mas flexível em relação aos objetivos e questões de pesquisa e sua

delimitação.

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O enfoque qualitativo possibilitou uma imersão no universo pesquisado. Chizzoti (1998,

p.81) nos auxilia a esclarecer que:

A identificação do problema e sua delimitação pressupõe uma imersão do pesquisador na vida e no contexto, no passado e nas circunstâncias presentes que condicionam o problema. Pressupõe, também, uma partilha prática nas experiências e percepções que os sujeitos possuem desses problemas, para descobrir os fenômenos além de suas aparências imediatas.

Assim, este tipo de pesquisa abriu espaços para aspectos mais subjetivos e reflexivos,

bem como permitiu uma maior interação entre a pesquisadora e as crianças envolvidas na

pesquisa, assim como propiciou uma inter-relação entre a própria criança e sua realidade. Ludke

& André (1986) acrescentam que, esta abordagem proporciona maior nível de profundidade na

análise das respostas, propiciando um olhar nas entrelinhas evidenciadas nos discursos.

Neste sentido, como pesquisadora, apresentei-me como parte integrante do contexto

investigativo, desenvolvendo uma conduta participante, na partilha do mundo da cultura, das

práticas, das percepções e experiências das crianças envolvidas neste estudo, propondo

compreender a significação sócio-educativa por eles atribuída às ações que realizaram tocados

por mim e eu por eles - o nós.

Este tipo de pesquisa não se preocupou com representatividade numérica, ultrapassando,

portanto, a dimensão da simples quantificação de dados, opondo-se a uma visão empirista da

ciência, já que procurei buscar a interpretação, a reflexão e a criação, em vez apenas da

mensuração e constatação, valorizando fenômenos e situações que estão intimamente

relacionadas com a realidade da pesquisa. Na minha situação de pesquisadora adotei a abordagem

qualitativa por ser oposta ao pressuposto que defende um modelo único de pesquisa, para todas as

ciências, já que as ciências sociais têm sua especificidade, o que pressupõe uma metodologia

própria.

Para Chizzotti (1998, p.79), na investigação qualitativa,

O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa, o sujeito-observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro; está possuído de significações e reações que sujeitos concretos criam em suas ações.

Assim, como pesquisadora voltada à abordagem qualitativas, busquei explicar o porquê

das coisas, exprimindo o que convém ser feito, mas não quantifiquei os valores e as trocas

simbólicas nem submeti à prova de fatos, pois os dados analisados são não-métricos (suscitados e

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de interação) e se valem de diferentes possibilidades de construção a partir dos dados da

pesquisa.

Em se tratando do pesquisador ao mesmo tempo conhecer e desempenhar uma conduta

participante, é que este estudo com base qualitativa, delineou-se para uma pesquisa-ação. A

origem desta investigação está localizada nos trabalhos de Lewin, em que pode se perceber os

primeiros passos da construção de uma nova concepção de investigação. De acordo com

Thiollent (1996, p. 15) “uma pesquisa pode ser qualificada como uma pesquisa-ação quando

houver realmente uma ação por parte das pessoas implicadas no problema sob observação”.

Brandão (1984) afirma que quando o outro se transforma em uma convivência, a relação obriga a

que o pesquisador participe de sua vida, de sua cultura. Quando o outro me transforma em um

compromisso, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua história.

Enquanto pesquisadora desempenhei um papel ativo durante o processo, da busca de

produção de explicações e significados aos fenômenos - em processo – sendo este último um

aspecto tão ou mais importante quanto os seus resultados. Ao invés de entender os participantes

como uma fonte central para o fornecimento de significações sobre o mundo, cada participante

ocupou diferentes lugares numa mesma configuração. Toma-se como base fundamental para a

pesquisa-ação a perspectiva da transformação – através da tomada de decisão – superando dessa

forma a dicotomia teoria e prática, sujeito e objeto, cognição e emoção, podendo ser recriadas

formas próprias de viver, fazer e saber ser.

Desenvolvida no contexto escolar, esta pesquisa compreende, assim como expressa Porto

(2003, p.27) “a escola como um espaço de socialização, de embates, encontros, convivência e

disputa/colaboração com os outros”. Sendo assim o percurso também se deu pelas tensões e

contradições apresentadas durante a investigação, na busca de ações afirmativas na solução de

problemas apresentados no percurso. A Escola Antônio Alves Ramos (Figuras 1 e 2), onde esta

pesquisa foi desenvolvida, fica localizada na cidade de Santa Maria/RS, sendo mantida pela

Sociedade Vicente Pallotti, que teve sua origem em 1927, iniciando as atividades educacionais

em 1929, tendo como fundador o Pe. Caetano Pagliuca e o grande colaborador o Sr. Antônio

Alves Ramos. Inicialmente atendia alunos provenientes de famílias carentes ou órfãos, com uma

formação e instrução para o ofício agrícola, sendo mantidos pela caridade comunitária. Mais

tarde em 1934, lançaram-se em vários setores da vida industrial, com o objetivo de carrear

recursos financeiros. Assim surgiram a olaria, a serralheria, a mecânica geral, a fundição e a

gráfica. Com a necessidade de aprimorar os jovens para o mercado de trabalho, em 1961 foi

criado o Ginásio Industrial que previa aulas de cultura e de técnicas, com oficinas de: Marcenaria,

Mecânica Geral, Eletricidade e Tipografia. Hoje a escola atende mais de 1000 alunos,

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distribuídos na Educação Infantil, nos Anos Inicias e Finais da Educação Básica, e nos cursos

técnicos, tendo atualmente também o Curso Técnico em Computação.

Figura 1 – Escola Antonio Alves Ramos Figura 2 – Escola Antonio Alves Ramos

É importante caracterizar a escola, para obter uma melhor compreensão do espaço onde

esta pesquisa aconteceu. É uma escola Católica, que desenvolve seu trabalho sob orientação do

projeto de vida de São Vicente Pallotti. O objetivo da proposta pedagógica da escola é educar

para uma cultura de solidariedade e paz, valorizando a vida, promovendo a cidadania, em busca

da transformação social.

A pesquisa foi desenvolvida com uma turma de 3ª série dos Anos Iniciais, composta por

25 alunos, sendo 12 meninos e 13 meninas, entre 8 e 9 anos de idade. O primeiro encontro com

os alunos aconteceu no espaço de sala de aula, e já iniciei a abertura de conquistar outros espaços

para a experienciAÇÃO.

Percebendo que seria muito complicado observar e acompanhar as poéticas visuais em

construção das crianças, inicialmente pelo número de alunos e posteriormente pelo espaço de sala

de aula, fui novamente falar com a coordenação da escola para verificar se não dispunham de um

lugar onde eu pudesse realizar os encontros. Anteriormente eu já havia conversado com as

coordenadoras para definir um lugar para a realização das atividades. Fui informada que a escola

possui uma sala de artes, mas que era destinada aos alunos de 4ª a 8ª séries, e como estava cheia

de trabalhos, dificultaria minhas atividades. As coordenadoras estavam atarefadas neste dia e

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pediram para que eu realizasse o primeiro encontro na sala de aula e que fosse em outro momento

procurá-las. Foi o que eu fiz. No dia seguinte, ao conversar com elas, se mostraram

compreensivas, colocando todos os espaços ‘livres’ da escola a inteira disposição para a

realização desta pesquisa. Levaram-me para conhecer a sala de dança, a sala de apoio e o

laboratório de Ciências Físicas e Biológicas, pelo qual me encantei. O laboratório de Ciências

parecia o espaço perfeito para se tornar em “um ateliê”. ( Figuras 3, 4 e 5) E foi o que fiz,

conquistando e transformando o laboratório em um Ateliê.

Figura 3 – Laboratório de ciências da escola . Espaço de ateliê.

Figura 4 – Laboratório de ciências da escola Figura 5– Laboratório de ciências da escola. Espaço de ateliê. Espaço de ateliê

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Após definir o espaço interno para as atividades poéticas, fui falar com a professora

Sonia, professora titular da turma, da possibilidade de dividir a turma em dois grupos. A

professora sugeriu que eu atendesse a metade da turma antes do recreio, e a outra metade depois.

Achei que não seria bom, pois a turma que participaria do trabalho após o recreio sairia

prejudicada. Então conversamos bastante, e ficou definido que os encontros se dariam às

segundas e as terças –feira, da 1:30 ás 16 horas. Ou seja, a metade da turma participaria das

atividades na segunda-feira desde o início da aula até a hora do recreio, e na terça-feira a outra

metade. Essa idéia partiu da professora Sônia, justificando que assim seria melhor porque poderia

desenvolver trabalhos diferenciados com os dois grupos, já que havia crianças, que nas palavras

dela estavam precisando de reforço. No entanto a turma foi dividida pela professora em dois

grupos: aqueles que não tinham problemas de aprendizagem iriam me acompanhar na segunda-

feira e os que necessitariam de reforço na terça-feira.

Até o mês de outubro nossos encontros estavam acontecendo nesses dias da semana,

porém em muitos destes dias, houve atividades gerais na escola: palestras apresentações e

comemorações. Na necessidade de proporcionar mais tempo e espaço para a experienciAÇÃO

poética das crianças, tendo em vista uma maior produção para que eu pudesse acompanhar o

percurso criativo e as poéticas visuais em construção das crianças. Foi então que procurei a

coordenação da escola, com a proposta de realizar atividades também em um turno da manhã,

para as crianças da 3ª série que teriam disponibilidade de vir até a escola.

De início, não aprovaram a idéia, justificando que não poderiam ser responsáveis pelas

crianças neste turno e que o laboratório era usado pelas turmas que tinham aula neste turno.

Porém, depois de muito diálogo e da minha justificativa frente a importância em intensificar a

produção plástica das crianças, e do meu comprometimento de permanecer até o horário que

fossem embora, fez com que elas concordassem. Porém o único impasse era o uso do laboratório,

mas que segundo elas como estava no final do ano letivo e em época de provas, provavelmente

estaria sendo usado muito pouco. Então, ficou acordado que todas as quintas-feiras pelo turno da

manhã, eu também estaria desenvolvendo a pesquisa com as crianças.

Essa notícia foi recebida com muita alegria pelas crianças. Todos queriam vir. Neste

momento começaram a relatar as justificativas do porque que não poderiam vir ou como viriam.

Aí iniciou o contato com a família e tendo credibilidade, a proposta permitiram os filhos virem

em outro turno. Aí outra tensão. Como dividir a turma em dois grupos? Convencê-los a se

dividirem foi duro, mas pelo argumento, foi aceito. Como a intenção de todos era participar,

dividimos os encontros das quintas-feiras de manhã também em grupos: numa quinta-feira

viriam, os do grupo de segunda-feira e, na outra quinta, os de terça. Assim ficou definido.

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Foi enviado um bilhete para os pais ou responsáveis, explicando a proposta e agradecendo

sua colaboração. Como as crianças não abriam mão de vir nos encontros, mobilizaram toda sua

família. Os pais ou responsáveis mudavam sua rotina para trazer e buscar as crianças na escola.

Me recordo da uma fala de uma mãe: Meu deus se eu não trouxesse ela. Ela foi me acordar de

manhã, para ver se não estávamos atrasadas. Isso revelou a intensa participação,

comprometimento e o prazer que as crianças sentiam em criar, em se expressar através das artes

visuais.

As crianças não tinham horário para chegar. Algumas chegam às 7: 30 porque vinham

com seus irmãos, outras às 8:00, antes de seus pais irem trabalhar, outras se organizavam em

função do horário que os avós, tios, primos ou vizinhos poderiam traze-las e busca-las. Nestes

dias de encontro pela manhã, eu chegava na escola às 7: 30 na escola e espera até que todas as

crianças tinham ido embora, sendo que algumas iam somente após seus pais deixarem o trabalho

e passarem para pega-los.

Com essa mobilização da família, houve uma maior integração por parte dos pais ou

responsáveis. Era freqüente os comentários dos pais, sobre a satisfação e o prazer que as crianças

chegavam em casa contando o que fizeram e até mesmo o entusiasmo e a ansiedade que tinham

um dia antes dos encontros. Muitos pais que iam levar ou buscar as crianças até a porta do

laboratório, acabavam entrando e interagindo com o espaço. As crianças queriam mostrar todas

suas produções, tudo que fizeram. Era visível a satisfação dos pais. Nesta hora me vinha em

mente: Onde está o espaço escolar aberto as experiências poéticas das crianças? Elas estavam o

tempo todo envolvidas e comprometidas com o trabalho, era perceptível a seriedade com que se

envolveram no processo.

A experienciAÇÃO criativa foi desenvolvida com as 25 crianças da 3ª série. Dentre os 25

participantes, delimitei 4 crianças para fazer a análise aprofundada, uma menina e três meninos,

já que se torna impossível contemplar todos nesta análise processual. A definição por estas

crianças se deu por um único critério, o de terem participado de todos os encontros, o que

considerei justo como critério, possibilitando um maior acompanhamento do processo de

produção poética.

É valido ressaltar que os nomes das crianças assim como o da professora, devido a ética

da pesquisa, foram mantidos em sigilo, utilizando então nomes fictícios.

Tendo claro que todos os dados coletados na pesquisa não são coisas isoladas e sim

fenômenos que se dão em um contexto fluente de relações, manifestando-se em uma

complexidade de oposições, revelações e de ocultamento, estes se apresentam na pesquisa como

um todo, embora referidos em determinados momentos. Os instrumentos de coleta de dados

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utilizados nesta pesquisa foram: observação livre, observação participante, diário de campo e

portfólio.

A observação livre foi realizada no contexto de sala de aula, de atuação da professora

titular da turma, tendo como foco identificar e analisar o tempo e espaço de experiência em que

se dá o processo criativo de poéticas visuais das crianças envolvidas na pesquisa. O período das

observações em sala de aula foi de 20 de abril a 2 de julho de 2006, totalizando 53 dias de

observações, registradas no diário de bordo. Além do espaço de sala de aula participei também

das reuniões pedagógicas da escola e dos planejamentos conjunto das professoras das 3ª séries. O

tempo de observação em sala de aula foi um tempo definido, pois não queria fazer uma

observação periférica, marginal e desprovida de dados concretos.

A observação livre foi um instrumento que auxiliou quando se quis destacar, pontuar ao

longo do processo, manifestações do particular para alcançar a compreensão do movimento

acontecido. Implicou em averiguar os modos de acontecer para destacar relações que permitiam o

necessário movimento de interpretação e re-interpretação, tanto da teoria quanto da prática, não

reduzindo o acontecimento à esfera da evidência fixa e concluída. Para Triviños (1987, p. 154)

“todas as observações e reflexões que realizamos sobre expressões verbais e ações dos sujeitos,

descrevendo-as, primeiro, e fazendo os comentários críticos, em seguida sobre as mesmas”.

Posteriormente, na observação participante, compreendida por Minayo (1994, p.59),

como aquela que “se realiza através do contato direto do observador com o fenômeno observado

para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos”, foi onde

tive a oportunidade interagir diretamente e permanentemente com as crianças possibilitando a

experenciAÇÃO criativa, tendo como foco a metamorfose expressiva da criança a partir de

poéticas visuais em construção e da educação (do) sensível. Para Ludke & André (1986, p.33) a

observação participante é uma técnica “considerada básica para a coleta de dados nas pesquisas

qualitativas, favorecendo uma maior aproximação entre o investigador e os sujeitos da pesquisa”.

Com o intuito de não perder nenhuma informação valiosa e relevante à pesquisa, fui

utilizando o diário de campo, no sentido de identificar, registrar e discutir os comportamentos e

maneiras de como as crianças se conduziam frente ao fenômeno em estudo, anotando os dados

para melhor qualificar a investigação pretendida. Assim, fui captando detalhe por detalhe do

processo criativo das crianças, e registrando minuciosamente no diário de campo, que

sendo este pessoal e intransferível, me debrucei sobre ele exaustivamente, o que ajudou muito

para analisar das poéticas em construção.

Para Neto (apud MYNAIO, 2000. p.63-64), o diário de campo é:

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(...) é pessoal e intransferível. Sobre ele o pesquisador se debruça no intuito de construir detalhes que no seu somatório vai sonegar os diferentes momentos da pesquisa. Demanda um uso sistemático que se estende desde o primeiro momento de ida ao campo até a fase final da investigação. (...) é um instrumento ao qual recorremos em qualquer momento da rotina do trabalho que estamos realizando. Ele, na verdade, é um “amigo silencioso” que não pode ser subestimado quanto à sua importância. Nele diariamente podemos colocar nossas concepções, angústias, questionamentos e informações que não são obtidas através da utilização de outras técnicas.

Assim, o diário de campo proporcionou uma maior confiabilidade no conjunto das

informações obtidas. Estão incluídos os registros dos diálogos que mantive com as crianças, as

conversas entre eles, os comentários, a descrição dos percursos das, minhas preocupações,

surpresas encantos e desencantos, enfim todas as informações relacionadas com a pesquisa.

Além do diário de campo, foram utilizados o registro fotográfico e o gravador, a fim de

facilitar o registro do espaço de trabalho e a metamorfose expressiva da criança, tendo em vista as

poéticas visuais em construção. Neto (apud MYNAIO, 2000, p.63) diz que “esse registro visual

amplia o conhecimento do estudo porque nos proporciona documentar momentos ou situações

que ilustram o cotidiano vivenciado”. Este foi fundamental não só para registrar o instante

poético, mas para analisar o percurso metamorfoseante da criação poética e seus instantes

próprios, únicos e autoral.

Para tanto, foi constituído o portfólio de cada criança, organizado individualmente,

contendo as criações plásticas das crianças, os diálogos significativos, registros periódicos de

avaliação e de auto-avaliação e o registro fotográfico do processo de criação, oportunizando uma

reflexão do percurso formativo, identificando os progressos experimentados e as principais

dificuldades encontradas. Também compõe o portfólio individual, o processofólio, que são os

registros escritos que cada criança fez, seja de suas percepções, produções, intenções e devaneios.

Esse instrumento visou o registro das imagens e representações visuais e, proporcionou a

interação com diferentes tipos de documentos, visto que, de acordo com Hernandez (2000,

p.166):

Poderíamos definir o portifólio como um continente de diferentes tipos de documento (...) que proporciona evidências do conhecimento que foram sendo construídas, as estratégias utilizadas para aprender e a disposição de quem o elabora para continuar aprendendo.

Assim, de acordo com Shores e Grace (2001, p. 43) “o portfófio é definido como uma

coleção de itens que revela, conforme o tempo passa, os diferentes aspectos do crescimento e do

desenvolvimento de cada criança”. Portanto, estes registros foram um processo permanente que

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foi aos poucos assumido pelas crianças, para que pudessem acompanhar criticamente seus

próprios percursos.

Destaco o quanto estes instrumentos foram importantíssimos para a pesquisa o que sem

eles seria impossível ter os dados registrados aqui e nomeados no corpo da análise e seus

resultados, tendo clareza da pesquisa pretendida e agora materializada dentro do possível pelo

plano de exposição aqui apresentado.

Desta forma, segue-se a análise dos dados, cujos procedimentos não surgindo no

processo de análise e discussão a seguir.

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CAPÍTULO 3

EM PORTOS INFANTIS: ANALISANDO OS

TESOUROS ENCONTRADOS

3.1 Tempo e espaço da arte na escola

A partir das observações livres realizadas na escola, especificamente no contexto de sala

de aula, na busca de identificar em que tempo e espaço se dava o processo criativo de poéticas

visuais em construção, pode-se afirmar, aqui, que o tempo possível para a imaginação criativa

praticamente inexistiu.

No primeiro dia de observação, conversando com a professora Sônia, professora titular da

turma, ela informou que as 3ªs séries da escola tinham duas professoras, que cada uma era

responsável pelo ensino e aprendizagem de determinados conteúdos. Assim falou: Eu dou aula

de matemática, ciências e estudos sociais. A outra professora dá português e trabalha com

redação. Após sua explicação, perguntei: E a arte? Quem trabalha a disciplina de arte?

Envergonhada, respondeu: Ah! A arte? Nós duas! A arte vem de acordo com o que cada uma

trabalha.

Percebe-se que a arte é compreendida pela professora como uma atividade e não como

disciplina obrigatória na proposta curricular, contemplando temas e técnicas que ocupam o lugar

de conteúdos e objetivos, reduzindo o ensino da arte a uma sucessão de exercícios e fazeres

artísticos, um laissez-faire contínuo de composições livres, espontâneas, sem nenhuma mediação

pedagógica.

A arte, na escola, ainda funciona como adereço, disciplina decorativa no currículo e até

como relações públicas, orientando eventos, enfeitando o espaço físico, organizando festividades

nas datas comemorativas; ou seja, um apêndice da programação curricular e pedagógica.

Houve um descaso pedagógico em promover situações e ambientes, tempos e espaços,

que favoreçam o ato de compartilhar experiências sensíveis de estranhamento e surpresa no

encontro entre os corpos e mundo. Na maior parte do tempo escolar, tais acontecimentos eram

deixados ou a métodos de ensino no espaço e tempo de sala de aula ou ao acaso do tempo e

espaço do pátio, quando as crianças brincam longe da mediação adulta, mas não do olhar

vigilante ao movimento dos corpos.

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Poucas foram as atividades que presenciei. Em algumas ocasiões, as crianças desenharam,

recortaram e colaram imagens de revistas ou objetos de sucata. Geralmente, estes momentos eram

proporcionados na intenção de introduzir um determinado conteúdo, tema ou data comemorativa

ou, ainda, a aconselhar atitudes. Após os comentários sobre um determinado assunto, a professora

solicitava a realização de um desenho livre no caderno, limitando a criatividade das crianças que,

só por serem crianças, necessitavam antes “ver” e “nomear” o visto, para aprender a realizar

imagens das coisas através do desenho.

Ainda vigora a crença pedagógica do primeiro aprender a ouvir e olhar um “tema” ou

objeto, para depois ter idéias espontâneas que possam ser transpostas ao desenho/imagem. Uma

confiança no poder criador de uma imaginação confinada à seriedade – ou tédio- “das atividades

pedagógicas”, das folhas impressas que reproduzem modelos para colorir, riscar, recortar e colar.

Aprender a desenhar é aprender a espelhar o mundo tangível, aprender a nomear para identificar

as coisas do mundo, reconhecer imagens reflexos. É aprender a relegar as fabulações ao tédio da

ilustração que clareia e racionaliza (compreende) primeiro para sentir depois.

Diante das “atividades” artísticas sempre pobres, em que as

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gerava facilitações e simplificações que, por sua vez geravam valorações nos corpos das crianças,

que iam gradualmente aprendendo atitudes de extrema dependência em qualquer situação.

Aprendiam muito rápido o não sei fazer e o não posso fazer!

3.2 Tesouros encontrados: os percursos das poéticas visuais em construção

O início da experienciAÇÃO criativa das crianças foi desafiadora, diante da

complexidade da realidade observada, conhecida e vivenciada tendo em vista o tempo e espaço

das experenciações criativas na escola. Então, por onde começar? Esta era a preocupação.

A proposta do primeiro encontro11 foi constituída a partir da temática “Ser criança”, que já

havia sido trabalhada pela professora regente da turma e retomada, na intenção de realizar um

aprofundamento da forma como as crianças desenvolviam a linguagem plástica e poética.

Mesmo já se conhecendo, apresentamo-nos nominalmente uns aos outros, expressando

através da voz (tom, intensidade, ritmo – falando, cantarolando) e do corpo (movimentos

expressivos: leve, brusco, tenso, relaxado, contente) nosso estado de espírito naquele momento,

nosso sentimento, emoção, ao dizer o nome.

Iniciamos apresentando-se. Para minha surpresa a maioria das crianças não conseguiu se

expressar, extravasar, deixar transparecer sua emoção. Toda aquela vontade, alegria e

expectativa, no início do encontro, agora se misturava a uma ansiedade, uma preocupação em

definir a maneira como iriam se expressar, havendo algumas crianças que solicitavam para

“passar a vez,” enquanto pensavam uma forma para se apresentar ao grupo. Assim, no momento

da expressão se materializar, a ação se reprimia.

Desta maneira, o corpo-próprio encontrou dificuldade em manifestar sensivelmente a

intenção da criança; e o corpo “sensível exemplar” das vivências e significações, revelou-se neste

momento “corpo-máquina”, apenas um suporte da consciência, negligenciado como “fonte

primeira do saber e da significação” (Duarte Jr., 2001, p. 216).

11 Este primeiro encontro, realizado na sexta–feira, 06/10/2006, no espaço da sala de aula da professora Nádia. Inicialmente ficou-se um pouco constrangida e indignada, pois a professora, ao ceder seu turno para a atuação, solicitou a utilização de parte do horário a correção dos temas e para a realização de algumas atividades, sendo que o acordado conjuntamente, era que se realizaria as atividades durante todo o turno. Os alunos ficaram angustiados por esta situação e aguardavam com ansiedade o início das atividades, assim como nós. Os olhares, os sorrisos revelavam toda a expectativa diante e curiosidade sobre o iríamos fazer naquela tarde. Ao iniciar a aula, a professora desejou que eu ficasse à vontade com a turma. Inicialmente, dialogou-se sobre como seria o andamento das atividades: e de forma colaborativa decidiu-se elencar critérios para a organização do material, os espaços escolares, a divisão da turma em dois grupos e sobre as relações interpessoais. (Letícia, diário de campo, 1º encontro – dia 06/10/2006).

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A dificuldade em se manifestar sensivelmente e se pôr como um Ser complexo, fez com

que as crianças compreendessem que o corpo é capaz de saber coisas que não sabemos que ele

sabe ou virá a saber, pois ao término da apresentação as crianças demonstraram satisfação diante

de seus desempenhos na apresentação aos colegas e, numa relação de autoconfiança continuaram,

por algum tempo, se apresentando de diferentes formas, uns aos outros, exteriorizando suas

emoções. Nesta relação de sentir-se, sentir o outro e o mundo, o corpo se pôs ao mesmo tempo

tocante e tocado. Nossa ignorância pedagógica está em negligenciar a paixão e a lucidez, que

intensificam a complexidade do viver. Está em negligenciar a beleza que pode emergir na

inseparabilidade da imaginação e da razão, encarnadas nos movimentos dos corpos. Como diz

Serres apud Richter (2003, p. 09), “quem não se mexe não aprende nada: aprender provoca

errância. Nenhuma aprendizagem evita a viagem”. Partir para se lançar no incerto exige tal

coragem que, sobretudo na infância, não é capaz de oferecer e, portanto, é preciso seduzi-la para

enfrentar o exterior e explodir em vários.

Na oportunidade de exteriorizar e compartilhar um pouco mais sobre cada um, dialogou-

se sobre “Ser criança”, em que buscou-se um direcionamento mais sensível, solicitando que

falassem sobre: Como se sentem enquanto crianças? O que os deixa feliz? Nesse momento fomos

abarcadas por uma avalanche de respostas: A paz! A solidariedade! A união das pessoas! A

justiça! A partilha! O amor! Todos falavam ao mesmo tempo e repetidamente as mesmas

palavras. Solicitou-se, então, para que pensassem um pouco e depois respondessem. Assim

manifestaram-se as crianças:

“Ai Profe, o que me deixa feliz é a paz”. “O que me deixa triste são as brigas”. “A solidariedade me deixa feliz. Sabe, profe, um dia eu vi um homem, assim, tudo sujo, um mendigo, deitado no chão, no chão assim, puro, ele tava com fome, daí a minha mãe deu um pão e um suco pra ele”. “A violência me deixa muito triste, as pessoas brigam muito, brigam de se bater e machucar de ir no hospital e tudo. Uns até morrem”. “A injustiça me deixa muito triste, porque o outro é igual a mim. Deus fez todos iguaizinhos, né”!

As falas revelam as mais diversas situações vivenciadas pelas crianças no seu cotidiano;

porém, se evidencia grande influência da proposta religiosa seguida pela escola. Durante as

observações livres realizadas, já se havia percebido que era comum e rotineiro este tipo de

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narrativa, configurando-se em respostas pré-definidas e estigmatizadas12, reproduzindo os valores

da escola. Não satisfeita com as narrativas das crianças, a intenção era a de que eles pudessem

trazer à tona aquilo que havia de mais pessoal e significativo nas suas vivências, que lhes tocava

o coração. Então, me expus a turma narrando uma situação pela qual eu estava passando no

momento. Não contive as lágrimas! Dialogou-se com eles também, sobre as vivências da

infância, deixando aflorar as emoções. Alguns alunos pareciam surpresos com as narrativas,

outros tiveram um envolvimento tão grande que se emocionaram também; já alguns se mostraram

ansiosos para relatar aos colegas momentos de significação particular e íntima.

Juliana assim se manifestou:

“Ai profe, sabe o que me deixou muito triste? Mas muito mesmo! Eu lembrei disso agora e fiquei triste. Foi quando minha cadelinha morreu. Ela tinha câncer de mama. O veterinário que disse. Fizeram tudo o que podiam, mas a cadelinha não resistiu. Eu brincava muito com ela desde que eu era pequenina assim. Com ela eu ficava muito feliz. O nome dela era Kika. Ela me adorava e até me conhecia. Depois nós pegamos outra cadelinha, mas que não era a mesma coisa”.

Neste relato, Juliana demonstra a relação de carinho que tinha com sua cadelinha. Neste

instante, seu corpo se tornou agente daquela memória; o corpo sensível decifrava toda sua

emoção ao dizer: Fizeram tudo o que podiam, mas a cadelinha não resistiu. Seu olhar, seu ritmo

respiratório, seu tom de voz, estavam embarcados de sentidos ao re-viver aquela história,

revelando sua tristeza diante da perda da cadelinha e o espaço carinhoso reservado a ela em sua

memória, quando afirma: Depois nós pegamos outra cadelinha, mas que não era a mesma coisa.

Pedro ouvia atento o relato da colega mas, ao mesmo tempo, seu olhar parecia distante e,

logo que Juliana concluiu, Pedro solicitou a palavra: “Eu também fiquei triste quando eu perdi

meu avô. Após algum tempo cabisbaixo, continuou: Ele morreu! Ele morava lá em casa. Quer

dizer, eu e minha mãe morava na casa dele, porque minha vó não existe. É que ela já morreu faz

tempo, eu nem conheci ela”. A figura do avô pareceu muito significativa nas vivências de Pedro.

Era a referência masculina dentro de casa e isso se evidencia quando diz: eu e minha mãe morava

na casa dele! A “não existência” da avó, mesmo que também já havia morrido, não lhe causou

12 Penso que as falas das crianças estão carregadas de religiosidade, como se falassem só as respostas que a escola quer ouvir. Eram respostas “prontas”. Eles não pensaram em alguma situação, apenas falaram aquilo que veio primeiro em sua mente. Por que a escola não deixa aflorar os sentimentos das crianças em vez de moldar seus pensamentos aos seus propósitos? Mais perigoso ainda, a escola não seria um espaço em que as crianças pudessem liberar e vivenciar suas próprias emoções? Percebe-se a grande dificuldade que encontraram aquelas tristezas e alegrias íntimas de cada um; quem sabe a razão disso seja não estarmos habituados a falar de nós mesmos, ainda mais no espaço escolar (Letícia, diário de campo, 1º encontro dia 06/10/2006).

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dor alguma, já que não a conheceu. Tomado por uma tristeza que se fazia perceptível na imagem

de seu corpo, Pedro se ajeitava na cadeira e mexia em seus materiais, temendo não resistir aos

olhares de solidariedade da turma e chorar. Neste momento, o olhar de muitas das crianças estava

estático, como se tivessem lembrando de alguma situação de perda pela qual passaram.

Quebrando com o silencio, Eduardo explode:

“Hei! Esses tempos eu caí um tombão, mas um tombão mesmo. Me arrebentei. Foi de bicicleta. A minha mãe disse: - Não corre desse jeito, um dia tu não vai consegui fazer a volta! E foi bem isso que aconteceu, bati na parede e me esborrachei. Nossa isso doeu. Fiquei todo machucado. Hei, doeu uns quantos dias”.

Logo, toda a euforia transmitida por Eduardo, enquanto contava sua façanha, contagiou a

turma, fazendo com que relembrassem agora suas peripécias infantis. Perguntou-se a Eduardo se

ele havia chorado, já que o tombo doeu muito. Com um sorriso nos lábios, lançou um olhar

constrangido para os meninos e disse: Claro que eu chorei né, profe! Mas chorei de dor. Então,

questionou-se o mesmo na intenção de saber em quais outras situações ele também havia

chorado. Ah! Eu choro por outras coisas também. Homem também chora profe! Neste instante,

muitos meninos reafirmavam a colocação de Eduardo. Mas o que se pode sentir em sua fala, foi

como se ele estivesse também nos questionando - até parece que tu não sabe que homem também

pode chorar - . Então ele foi parabenizado, concordou-se com sua afirmação e acrescentou-se que

tanto a masculinidade como a feminilidade não são definidas pelo “controle” emocional, que os

sentimentos, as percepções e emoções são comuns a todos seres humanos.

Vamos desenhar! Gritou Bia. E antes de qualquer orientação, fui interrompida com frases

do tipo:

“AAAhhh! o Guilherme desenha bem. Desenha perfeito. Ele sabe mesmo”. “Eu não sei desenhar e pintar. Vai sair feio!” “Eu gosto de desenhar, mas meus desenhos ficam tudo feio”.

Propôs-se que desenhassem aquilo que era de maior significação para eles, naquele

momento. A intenção aqui, foi de proporcionar tempo e espaço para a criação plástica e a

possibilidade de construção poética das crianças. Neste primeiro encontro, ficou muito difícil

acompanhar o processo das vinte e cinco (25) crianças. Encontrou-se muita dificuldade em

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observar o momento espontâneo do gesto criativo pois, além de ser uma experiência pouco

rotineira para as crianças, a solicitação era tamanha, com o desejo de atenção imediata. Foi

praticamente ao término da criação de cada um que se pôde dialogar, buscando trazer à tona os

devaneios/imaginários presentes nas poéticas visuais construídas.

Sendo assim, ao iniciarem as produções e receberem o suporte para a criação, Pedro disse:

Já tá na minha cabeça o que eu vou desenhar. Vou desenhar uma paisagem. Em meio a muitas

solicitações das crianças, se pôde acompanhar um diálogo estabelecido entre Pedro e seu colega

Bruno, o qual lhe pergunta o que estava desenhando (Figura 6) e Pedro responde: Gosto de

inventar, fazer umas coisas meio loucas, que não dá pra ver direito o que que é. Mas eu sei! A

tonalidade e a intensidade da voz de Pedro ao afirmar: “Mas eu sei!”, deixa claro sua

compreensão diante do que pretende criar, demonstra que houve uma construção laboral mental,

uma intenção de manifestar, mesmo que de forma não compreensiva para os outros, mas que para

si está carregada de sentido. Ao finalizar seu trabalho, Pedro veio em nossa direção, com um

sorriso de satisfação estampado no rosto comentando: Agora tá pronto. É bem assim que eu

queria. Uma paisagem com uma montanha feliz olhando pra ela (Figura 7). Nomeou sua

produção artística - A casa de Deus – e, num de nossos últimos encontros, Pedro fez referência a

esse trabalho como sendo o que mais havia gostado, dentre todos que produziu.

Figura 6 – Desenho de Pedro – 1º Registro Figura 7 – Desenho de Pedro - 2º Registro. “A casa de Deus”

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Juliana logo lançou-se em movimentos insaciáveis, no ato de transformar em marcas e

figurações seu relato anterior (Figura 8). A experiência sensível do corpo e o movimento

efetivo de suas mãos desvelavam a complexidade de conflagrar visões no ato de instaurar

gestos e ritmos sobre o papel, na materialização do vivido, revivendo-o. Para Sans (1995, p.

76), a criança, “ao criar plasticamente, necessita que a idéia inicial se desenvolva

continuamente, perdurando todo o momento da execução de sua obra. O fazer deve estar

coligado ao senso ideativo, numa sincronia entre o pensamento e a ação.”

Figura 8 – Desenho de Juliana - 1º Registro

O nome da minha pintura é ‘Dois em Um!’ diz Renato, segurando seu trabalho e

saltitando em minha frente. É ‘Dois em Um’, porque são duas paisagens em uma folha. Sua

explicação vem antes mesmo de se voltar o olhar para seu trabalho (Figuras 9 e 10). Ao

atender seu chamado, ele explica:

“Aqui é uma cachoeira e tem uns arbustos de galhos secos. Daí se tu olha assim de cima, parece uma árvore, e daí se tu vira a folha, tu vê as nuvens e um lago refletindo a árvore. Por isso é ‘Dois em Um’, porque são três paisagens em uma folha”

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Figura 9 – Desenho de Renato - 1º Registro

Figura 10 - Desenho de Renato - 2º Registro

Os signos que compõem o trabalho de Renato (Figura 9) são por ele descritos,

identificando que no lado esquerdo e inferior desenhou uma cachoeira, no centro arbustos

com um tronco de uma árvore e na parte superior as nuvens. Num giro de 360º (Figura 10) fez

outra descrição, agora identificando os mesmo signos como sendo uma árvore com sua copa e

tronco bem definidos, localizada na parte superior da folha; e na parte superior eram as folhas

refletidas no lago. Como se percebe, Renato desconstrói a imagem e a reconstrói no plano da

expressão, destacando os elementos plásticos que criaram a imagem, com o sentido forma,

localização espacial, identificando as figuras e, portanto, narrando em detalhes e adjetivando o

que expressou criativamente.

Durante o processo de criação, as crianças relataram sua paixão pela natureza e a

opção de sempre representá-la em seus desenhos. Essa predisposição pode ser percebida de

forma significativa neste primeiro encontro, de acordo com as Figuras 11 a 19. As imagens

mostram a expressão autoral e mesclam fantasia com memória visual, num tributo aos

arquivos construídos com a invenção/descoberta de novas formas visuais, culminando em

imagens que remetem ao repertório cognitivo e ao poder de criação e expressão enquanto

poética. No entanto, no ato de construir imagens, a representação idealista e estereotipada do

mundo faz-se presente na maioria das produções da turma.

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Figura 11-Desenho de Fernando

Figura 14- Desenho de Nádia

Figura 17- Desenho de Dara

Figura 12- Desenho de Lara

Figura 15- Desenho de Abel

Figura 18- Desenho de Estela

Figura 13- Desenho de Leila

Figura 16- Desenho de Felipe

Figura 19- Desenho de Bruno

As imagens desenhadas ou pintadas modificam nossa relação com as coisas, com o

mundo, com o corpo. O mundo laborioso, que envolve o ato de desenhar, pintar e construir

objetos, não é apenas um passatempo que promove a evasão do mundo real a partir da livre

imaginação; tampouco reduz-se a um meio para “adquirir” conhecimentos escolares ou do

mundo-realidade. Implica numa experiência de aprendizagem, no sentido que Bachelard

(1990) lhe dá: um trabalho simultâneo sobre o mundo e sobre si, onde ambos transformam-se,

portanto, no sentido de formação.

Em um outro momento, com a turma já dividida, dirigiu-se até o Ateliê, espaço

reservado para a realização das atividades. Ao entrar, foi uma agitação só. Então, o primeiro

instante foi para que as crianças pudessem se movimentar no ambiente de trabalho. Alguns

foram rapidamente em busca dos materiais, pegando e recolhendo para si tudo o que viam

(Figura 20); outros se mostravam mais interessados em explorar o espaço de trabalho (Figura

21), que apresentava várias imagens inusitadas para as crianças, além de ser o primeiro

contato deles com o local. Após o momento de euforia e a solicitação daqueles que ficaram

sem material, retomou-se a conversa sobre a disponibilização do material, a limpeza e

higienização do mesmo, assim como a do espaço de trabalho. Havia materiais para todas as

crianças, porém eram de uso coletivo.

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Figura 20 – Crianças explorando o ambiente de trabalho Figura 21 – Crianças explorando o ambiente de trabalho

Após o momento de euforia intensa, foi oportunizado o contato e a interação das

crianças com imagens de obras de arte, tendo-as como suporte para re-leitura, re-criação e re-

construção; ou seja, para uma interpretação expressiva, acreditando na interação do sujeito

enquanto produtor do seu próprio conhecimento e protagonista da sua história pessoal/herança

cultural. As obras ficaram em aberto para interpretar, pois a intenção foi de selecionar

imagens de obras de arte de Miro, Kokoschova e Velazquez, com temáticas próximas de suas

vidas infantis.

Divididos em trios, cada grupo escolheu uma imagem de obra de arte para

conjuntamente dialogar sobre ela. (Figuras 22, 23, 24 e 25.) Propôs-se um tempo para a

observação da imagem, registros escritos do que mais chamava a atenção e um diálogo para a

troca de opiniões sobre os diferentes olhares que cada aluno havia capturado da imagem, suas

impressões, opiniões e curiosidades.

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Figura 22 – Imagem da obra “Noitada Esnobe da Princesa”, de Miro.

Figura 23 – Imagem da obra “Crianças brincando”, de Kokoschka

Figura 24 – Imagem da obra “Miss Bowles com seu cão”, de Velazquez

Figura 25 – Imagem da obra “George Deem – School of Velazquez.” 1987. Óleo sobre tela.

Na escuta atenta das falas dos alunos, foi-se percebendo como abordavam a imagem:

que referências tinham sobre ela e sobre a Arte; o que já sabiam a respeito do assunto ou o

que gostariam de saber; o que os inquietava diante daquela imagem e como eram tocados por

ela, naquele “tempo e espaço” do nosso encontro.

Pedro e seus dois colegas escolheram a imagem “Noitada Esnobe da Princesa”, de

Miro (Figura 22) e, num primeiro olhar, este disse: Até parece que tão comemorando alguma

coisa. Abel completou: É mesmo, tá todo mundo alegre e tem até música. Olha aqui oh!,

apontando para os asteriscos e outros três símbolos, relacionando-os com notas musicais.

Não, isso aqui são fogos de artifício, contesta Pedro, referindo-se aos asteriscos. E continua:

Isso parece uma festa mesmo, aqui estão as pessoas. Apontando para as representações

humanas. Isso aqui é uma pessoa? Pergunta Felipe, apontando com o dedo no signo

localizado na parte inferior e do lado esquerdo da imagem. Parece um monumento, diz Abel.

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Pedro concorda com o colega e completa: É um monumento do presidente. Tudo isso é uma

festa para a chegada do presidente.

No outro grupo, percebe-se a iniciativa de Juliana que diz: Vamos pegar essa.

Referindo-se a imagem “Crianças brincando”, de Kokoschka (Figura 23). Antes de

decidirem, Eduardo leu o nome da obra e aceitou: São duas crianças brincando. O diálogo

entre eles rendeu boas discordâncias. Eduardo e Gabriel acreditavam que: as crianças estão

felizes brincando na grama. Uma brincadeira inédita. Porém, Juliana acreditava que: Elas

estão brincando e imaginando que estão voando. Isso aqui não é grama, é um tapete voador.

Percebe-se aqui que a leitura é muito mais de conteúdo do que dos elementos plásticos e,

portanto, predomina o plano do conteúdo ali expresso e não como foi produzida a imagem.

Não fazem referência à cor, forma, texturas e espaços; apenas dão visibilidade ao que vêem,

pois a narrativa se centrou no tema ali expresso.

A imagem “Miss Bowles com seu cão”, de Velazquez (Figura 24), foi a escolhida

pelo trio Fernando, Renato a e Bia. Queremos essa!, disse Bia. Renato acrescentou: Parece

uma fotografia! Fernando contesta a colega: Não, né! Só parece uma fotografia, mas isso é

uma pintura. Isso aqui foi feito antes de existir a foto. É uma pintura né, profe? Respondeu-se

afirmativamente com a cabeça e Fernando continuou: Quando não existia máquina

fotográfica, isso há muito tempo, muito tempo mesmo, as pessoas mandavam pintar sua foto.

Tu nunca viu gente que desenha os outros? As duas colegas ficaram em silêncio e, sob o

comando de Fernando, foram observar melhor a imagem: Venham. Vamos ver o que está

escrito aqui. E foram verificar o título da obra. É uma Miss, fala contente, Bia. Mas só que

ela se perdeu na floresta. Que tristeza!, contrapõe Renato. Então travaram um diálogo sobre o

que estaria acontecendo nesta imagem. Segue o registro do grupo:

Era uma menina que se chamava Miss, filha de um imperador da Roma. Certo dia, Miss foi passear com o imperador e foi reparar a beleza da mata para pintar seus quadros. O imperador não percebeu que perdeu sua filha. Um cachorro a encontrou olhando o pôr-do-sol e ficou ao seu colo, mas Miss acordou e percebeu que isso foi tudo um sonho.

O trio Alice, Carol e Débora, foi o último a escolher, restando para elas a imagem

“George Deem – School of Velazquez”, 1987 - Óleo sobre tela (Figura 25). Ah! Essa é a

mais difícil. Reclama Alice. Não dá pra ver nada aqui. Ta tudo escuro! Desanimadas, as três

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começam a dialogar: Ui! Que triste! diz Carol. Mas é uma aula de Artes. Olha aqui!, consola

Débora. Agora, mais animadas elas começaram a identificar e descrever o que viam: É uma

sala de aula. Tem um pintor aqui no fundo, tem um professor também. Aqui nessa parede do

fundo está pendurado um quadro de um pintor famoso. Mas que coisa mais apagada! Só

usaram marrom, bege, preto, azul-escuro e um pouco de vermelho. Eu gosto de cores fortes,

bem alegres, que têm vida.

Vamos contar para os nossos colegas o que descobrimos sobre a imagem que

escolhemos? Fez-se a pergunta com a intenção de socializar com todo o grupo a compreensão

de cada trio. Sim. Gritaram. Nós não vamos desenhar, profe? Perguntou Renato? Vamos

conhecer primeiro o que cada trio descobriu sobre sua imagem. Foi dito. Todos

concordaram. Mas Renato ressaltou: Depois disso vamos desenhar? Sim. Respondeu-se.

Falamos sobre muitos assuntos: fotografia, efeitos de cores e luzes, pinceladas, diferentes

modos de expressão, história e história da arte, beleza, tristeza, ser criança. Conforme os

assuntos surgiam, em torno dos diferentes olhares e pontos de vista sobre as imagens, fazia-se

inferências, pontuando os itens mais essenciais sobre os elementos da composição visual, o

contexto histórico das obras em discussão, um pouco da história dos artistas e outras

informações que os alunos solicitavam.

Olhar, perceber, pensar, sentir e manifestar idéias e sentimentos foi um movimento

desenvolvido com os alunos, pouco a pouco, conquistando a confiança deles para

manifestarem suas impressões, leituras das imagens artísticas, sem receios de se expor ou

errarem. Daí a importância do estudo, da pesquisa, da troca de informações, do espaço Escola,

de um professor mediador, para encaminhar um processo de troca entre o aprendiz e o

‘ensinante’, oferecendo mais elementos, possibilidades, subsídios para ler melhor as

linguagens do mundo.

Novamente a frase: Não vamos desenhar e pintar hoje, profe? Perguntou Eduardo.

Vamos. Respondeu-se. Em coro gritaram: Oba! As crianças se mostravam ansiosas diante

daquele mundo a ser experimentado e explorado. Tocavam insistentemente nos pincéis; no

suporte; abriam e cheiravam as tintas. Partiu-se, então, para a expressão plástica. Cada criança

escolheu livremente a imagem da obra a qual mais se identificou, que mais a tocou e que tem

a ver com suas experiências de vida.

Para a pesquisadora, olhar as imagens realizadas por crianças pequenas, desde as

poéticas da imagem, do corpo e da ação, exige o distanciamento do cotidiano familiar para

reter o detalhe poético, o significante que se coloca diante de uma novidade. Distanciamento

capaz de promover o encontro ou confronto, com estranhas sutilezas que emergem do

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mistério da formação, do movimento de tornar-se operador fabuloso de linguagens, desde as

primeiras tentativas de expressão.

O que os primeiros movimentos do corpo, os primeiros traços e manchas, lançados e

plasmados pelos primeiros gestos das crianças (Figuras, 26 e 27), nos fazem ou nos forçam a

constatar é o complexo processo de formação do ato de aprender a desvendar os segredos das

linguagens, a partir de pequenos detalhes que remetem a uma sensibilidade extrema, para

significações íntimas das coisas que pensamos serem insignificantes; a valoração infantil do

detalhe que impele, mobiliza, impulsiona, o ato de aprender, a ação poética de trazer à tona

linguagens que permitam experenciar o que no real se oculta.

Figura 26 – Momento de criação poética das Figura 27 – Momento de criação poética das crianças crianças

Desenhando e pintando, segundo a memória visual que ficou da imagem da obra

escolhida, a imaginação se torna o embate das forças humanas e das forças naturais, do

trabalho operante e criativo das crianças às resistências da matéria. As formas prontas querem

seduzir, mas, para além das seduções da imaginação das formas, as crianças pensaram,

sonharam, viveram a matéria, materializando o imaginário. Para Bachelard, “as imagens

materiais transcendem, portanto, as sensações transformadas. As imagens materiais nos

envolvem numa intimidade mais profunda.” (1990, p.3)

Pedro traz à tona, em sua criação, o imaginário de uma festa, definida por ele como a

festa da chegada do presidente. Ao iniciar sua criação ele diz: “Ahh, essa festa do presidente

tá muito animada. Vou fazer ela” (Figura 28). Inicia sua produção pela linha de base, a qual

demora algum tempo para definir, ficando em silêncio e pensativo, demonstrando dúvidas a

respeito de como iria organizar sua composição. Ao iniciar a pintura da árvore falou: “Vou

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deixar tudo ao ar livre. Quero que a festa seja fora, porque é bem melhor e eu não gostei do

lugar que aconteceu a festa, é esquisito. Vou fazer ao ar livre que é mais feliz.”

Figura 29 – Pintura de Pedro “ A festa ao ar livre”.

Na pintura realizada por Pedro, intitulada: “A festa ao ar livre” (Figura 29), o

presidente ocupa uma posição central no suporte, lembrando a imagem de um rei, pois Pedro

desenhou uma coroa sobre a cabeça “do presidente”. Apesar de sua idéia de representação ser

organizada em torno dos estereótipos, a terra, a árvore de tronco marrom e copa verde e o céu,

não estão ali só pra preencher o espaço do suporte; eles configuram a vontade autoral de

Pedro, dando forma ao conteúdo e espaço expressivo de que a festa fosse ao ar livre porque

“é mais feliz”.

O processo de criação plástica de Fernando foi silencioso. Numa tentativa de dialogar

com ele, assim manifestou-se: Agora não posso falar! Quero fazer Miss na floresta com seu

cãozinho. Fernando permaneceu em silêncio até o fim de sua criação (Figura 30); porém, seu

corpo agia na tentativa de figurar seu imaginário, através dos ritmos, dos gestos,

procedimentos, processos que independem da palavra para acontecer. Assim que terminou

disse: Pronto. Adorei! Não pensava que iria ficar tão bonito.

Fernando estava entregue à sua produção. Seu pensamento em ato desvendava aquele

imaginário poético da menina que se perdeu na floresta e que, por ventura, um cachorro a

encontrou e, diante desta angústia e desolação de ficar sozinha, a menina acordou e percebeu

que tudo não passou de um sonho. Cada pincelada, marca e gesto, tonalizavam emoções que

se configuravam no modo como Fernando percebia a imagem. Sua composição se apresenta

Figura 28 – Pintura de Pedro 1º Registro

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de forma dinâmica, numa relação mais íntima com as cores, as formas e os materiais. Pôde-se

observar o uso de todo o espaço e a preocupação de Fernando em representar a luminosidade,

a claridade (luz e sombra), existente na imagem de Velazquez (Figura 25). Quando desenha

um sol, mesmo que ainda estereotipado, com seus raios cortando o céu e se projetando entre

as árvores, dá uma demonstração plástica significativa, pois apresenta a noção de perspectiva

e o sol tomando conta de irradiar seus raios em toda a ambiência, expressado na penetração

dos raios em todo o espaço. Conseguiu organizar o ritmo pela repetição do símbolo árvore e,

para além disso, de poetizar um imaginário criativo, tanto na expressão plástica como no tema

nomeado.

Figura 30 – Pintura de Pedro “ A aventura ”.

Renato foi o único da turma que teve como referência e inspiração para sua criação

uma outra imagem a não ser a escolhida pelo seu grupo. Durante o diálogo que estabeleceu-se

sobre as diferentes percepções e compreensões acerca das imagens de obras de arte, ele

mostrou-se sensibilizado ao olhar a imagem de George Deem (School of Velazquez, 1987)

(Figura 25). Com um olhar fixo e tenso, Renato viajava em seus pensamentos como se

estivesse “saindo de si”, no devanear de outros mundos possíveis. Esse sair de si até às coisas

exige do corpo/ação entregar-se para inaugurar sentido.

É o que pode ser percebido através da Figura 31, quando Renato, ao iniciar sua

criação, buscou fazer uma base na cor verde e logo cobriu todo o suporte com tinta preta. Esse

gesto mostra que, não se deixando seduzir, Renato tratou de manifestar aquilo que de mais

intenso lhe era significativo naquele momento. Foi então que começou a cobrir o suporte,

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pintando um fundo preto. Ao iniciar este gesto, falou: “Eu quero fazer tipo um cemitério. É

que pra mim a arte é uma coisa alegre sabe, colorida. Não é igual aquela gravura, fazendo

referencia aqui à imagem da obra de arte. Enquanto fazia um fundo preto com a utilização do

rolinho de pintura, continuou: É que pra mim a arte é uma coisa alegre sabe, colorida. Olha

só que coisa mais apagada, tá tudo cinza! Eu gosto de arte, a minha avó pinta e pinto com

ela. Eu adoro! Uma aula de arte não é assim. Ela tem vida.”

Figura 31 – Pintura de Renato -1º Registro Figura 32 – Pintura de Renato -2º Registro

Renato busca representar seu sentimento e subjetividade, criando novas interpretações

e significações mas que, no entanto, são influenciadas pelo real. As novas interpretações e

significações emanam de sua vontade individual de exprimir as sensações e percepções que a

obra lhe causou, principalmente referente à cor, as quais não o agradaram, despertando um

sentimento de tristeza, remetendo a um imaginário poético relacionado à morte, na intenção

de “fazer um cemitério”. Renato contestava todo tempo, ao visualizar a imagem da obra de

arte: Isso é uma sala de aula? E os alunos com essas roupas. Coitados! Não conseguem nem

se mexer. Neste instante, contextualizou-se o momento histórico em que foi produzida a obra

e as relações com a época. Compreendendo, disse: Ainda bem que eu não estava vivo nesta

época. A sala de aula tem que ser igual esta aqui. Sua resposta foi tão significativa que a

ambiência representada na obra lhe trouxe associação com o imaginário de um cemitério. Sua

criação também foi influenciada pelo real, já que a pintura faz parte do seu cotidiano, quando

diz que pinta com a sua avó, se constituindo numa atividade prazerosa e também quando

relaciona o espaço de sala de aula com o espaço do Ateliê de Artes.

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Na organização da composição, Renato mostrou-se atento aos detalhes, ao questionar

sobre como poderia fazer uma “neblina de cemitério”, nunca perdendo o caráter de deixar

levar-se pela imaginação. Foi direto ao ponto ( Figura32):

Eu quero fazer tipo um quadro aqui, pra mim marcar, e pintar um pouco de branco que é pra ficar a neblina do cemitério. Vou marcar de lápis pra depois eu pintar, mas é só pra mim ver. Vou preferir fazer os pontinhos com o lápis.

Ao representar a neblina através da cor branca sobre o fundo preto, Renato pegou o

pincel e, utilizando a tinta de cor marrom, começou a espalhar símbolos, neste caso as cruzes;

ao mesmo tempo em que ele ia definindo a composição no espaço (Figura 33), continuava-se

dialogando: O cemitério está cheio de cruzes e um caminho. Diz ele. Caminho? Mas que

caminho? Perguntou-se. O caminho é um caminho. Respondeu ele. Se tu tá na escuridão, tu

vai por esse caminho pra tentar sair. Entendeu? Mas no caminho vai ter obstáculos que eu

vou tentar fazer agora. E nesse instante imprime sobre a linha pontos pretos, como

representação dos obstáculos a serem enfrentados.

Figura 33 – Pintura de Renato - “O cemitério”.

Experenciando um trabalho com um olhar interior e ímpar, Renato imprime um tônus

próprio, tendo como ponto de partida o diálogo estabelecido entre ele e a imagem da obra de

arte, se pondo como leitor, re-significando o objeto apreciado/fruído, a partir dos seus

conhecimentos incorporados e de seus devaneios, processando-se num espaço e tempo

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específico – o instante poético. Os devaneios de Renato preparam e sustentam a coragem de

iniciar um ato, de criar/realizar a imagem, enfrentando mundos possíveis, superando a

experiência contemplativa de visualizar e registrar aparências primeiras. Ele foi além da

leitura apenas periférica, pois buscava os pormenores, dizendo: Olha como são as mesas e as

cadeiras. Cabe dois e até três em cada uma. Devia ser ruim. Imagina pintar apertado. Por

isso que tem pouco aluno. Quem vai querer estudar aí? Tudo é triste, até os alunos estão

tristes. São muitas observações e interpretações que fez Renato. Foi dito a ele que, na próxima

oportunidade, se continuaria falando da obra e sugeriu-se que levasse para sua avó e

dialogasse com ela. Aceitou e levou.

Juliana, em sua criação plástica, representou seu imaginário poético desenhando as

crianças voando em um tapete mágico. Seu corpo lançou-se á imagens de seu depósito

mental, do já visto ou sentido, num tempo e espaço de intimidade, numa fusão com a fantasia.

Neste instante, sua memória foi reimaginada, ou seja, re-contada no instante realizador. Ah eu

também queria voar num tapete!, comenta ela, enquanto organiza seu material. E continua:

Tem aquele desenho lá, eu não lembro qual, de um filme que eu assisti, um casal voava num

tapete. O que me pareceu não ser visível na obra foi o que mais impressionou Juliana, pois a

forma plástica deixava possibilidades de realmente parecer estar voando, pois o pintor lança a

pincelada eliminando as linhas de contorno dando a impressão de suspenso para o aluno. Isto

foi interessante. Dizia Juliana: É um tapete voador! Seu imaginário mental trocava relações

com outras visualidades já percebidas, como no caso do filme. Assim, sua poética tinha

relação com as experiências já vividas, ou seja, com suporte na realidade vivida.

Juliana organizou sua composição iniciando pela pintura do fundo (Figura 34),

utilizando a cor laranja e, mais tarde, o marrom e o vermelho, deixando evidente a influência

das cores quentes da obra de Kokoschka (Figura 23) em sua composição. Desenhou, então,

duas figuras humanas ainda não muito expressivas (Figura 35), num retângulo azul - o tapete

(Figura 36).

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Figura 34 – Pintura de Juliana 1º Registro

Figura 35 – Pintura de Juliana 2ºº Registro

Na especificidade da linguagem plástica, a figuração temporalizada pelo ritmo do

corpo emerge como valoração da experiência, no instante realizador da mão que traça e tinge

superfícies, na emergência da fala e da fabulação que acompanham a repetição dos gestos e

das marcas nas quais, nas palavras de Bachelard (1989, p. 200), “imitando se inventa.

Acredita-se seguir o real e o traduz-se humanamente”. Aqui, o “imitar” é ritmar o gesto e não

representação ou cópia do real. Ritmar o gesto do corpo implica uma experiência que envolve

a fusão de dois sentidos do processo de produzir imagens plásticas: o do gesto na

materialidade e o da marca nela configurada, cicatrizada na superfície do suporte pela ação do

corpo que realizou – isto é, da essência da produção poética em artes visuais.

Profe! Eu preciso do rosa. Mas não tem rosa! Questionamentos como esses ocorreram

ao longo de todo o processo. As crianças necessitavam de outras tantas cores além daquelas

disponibilizadas. Foi então que se iniciou uma pesquisa em busca de “descobrir” “novas”

cores. Mistura daqui, mistura dali, houve vários “descobrimentos”:

Eu descobri o cinza. Eu descobri o azul forte. Eu descobri o roxo.

Figura 36 – Pintura de Juliana “O tapete mágico”

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Eu o cor da pele. Fiz o amarelo queimado. Consegui fazer o rosa.

Era o tempo e o espaço criativo num movimento do vibrar, do criar, do pesquisar,

refazendo, refletindo e tencionando o cognitivo e o sensível, em devaneios operantes de

poéticas infindáveis.

Combinou-se de registrar todas as misturas e a respectiva cor encontrada, no quadro

do Ateliê e depois de guardá-lo no portfólio. Este ficou cheio de registros. Foram muitas as

misturas e cores encontradas. Vibravam a cada descoberta. Expliquei a eles que a cor pode ser

utilizada em várias tonalidades e que pode-se classificá-las em cores altas (aquelas onde

utilizamos mais luz, ou seja, com o acréscimo do branco) e cores baixas (em que o preto serve

para deixá-las mais escuras). Para pintar não há a necessidade de obedecere a “cartela” das

corres tal qual elas se apresentam na realidade; mas se esta for a intenção, devemos ficar

atentos e observar como as cores são mutáveis, dependendo da luminosidade que insere sobre

os objetos de interesse.

Foi-se então experenciar. Dirigimo-nos para o pátio da escola e começamos a andar. A

turma foi guiada para um local que havia chamado à atenção. Um espaço lindo, com árvores e

bancos, mas que, curiosamente, nunca tinha sido visto alguém ali. Este local fica atrás da sala

dos professores. Hei, Profe! Eu nunca tinha vindo aqui! Sempre quis entrar aqui, mas achei

que não podia. Muito massa esse lugar. Outras crianças reafirmaram a colocação de Renato.

Surpreendeu-se, então, pelos cantos dos pássaros. Profe, tem que ter um ninho por aqui.

Quando cantam assim é porque estão cuidando do ninho. Eu conheço, afirmou Eduardo.

Logo saíram em direção às árvores para verificar a existência ou não de um ninho. Achei! Tá

aqui. Venham olhar, gritou Nádia (Figura 37). Eu não disse que tinha um ninho por aqui!

Eles devem ter se assustado com a nossa presença, reafirmou Eduardo.

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Figura 37 – O ninho na árvore.

Essa mesma árvore onde se encontrava o ninho foi nosso “objeto” de experiência. As

folhas desta árvore têm verde fraco e verde forte, observa Nádia. Solicitei, então, para que ela

fosse e arrancasse uma folha da árvore de cor verde fraco. Dirigindo-se para o lado em que a

incidência de luz solar era maior, trouxe-me uma folha e, ao chegar próximo de onde

estávamos disse: Opa! Mas era verde fraco. Era diferente dessas que estão deste lado. Então

perguntei: Por que será? Logo surgiram respostas, explicações e exemplos daqueles que já

haviam compreendido. Observaram os galhos das árvores, o poste e até as réstias de luz que

se projetavam entre as folhas sobre suas roupas, que foram citados como exemplo,

confirmando a compreensão sobre as diferentes tonalidades das cores em relação à luz que

incidia sobre os objetos e a natureza.

Ampliando nossa discussão, Fernando falou: Antes de existir as tintas, lá no tempo dos

homens das cavernas, eles pintavam com a cor que saia das folhas e flores. Patrícia

colaborou, dizendo: Ah! A minha avó também já fez isso. Uma vez eu vi ela colocando umas

folhas e umas sementes de molho pra extrair a cor e depois tingir uns negócios. E deu certo!

Porque um ficou verde e o outro marrom. Eduardo também expôs seu conhecimento: Os

índios também! Eles utilizavam as cores que eles extraíam da natureza: das árvores, do solo,

das pedras e das sementes para pintar o corpo.

Durante o diálogo (Figura 38), explicou-se a eles que esse período “dos homens das

cavernas” é conhecido como história primitiva. Nesta época, a arte assumia um papel muito

importante na luta pela existência, pois a escrita ainda não existia. A história do uso das cores

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e da pintura se confunde com a própria história da humanidade. Os homens pré-históricos,

assim como os índios, faziam uso de vários materiais de origem vegetal em suas pinturas e

cosméticos, além dos minerais retirados de rios e lagos; neste período, algumas pinturas já

possuíam boa durabilidade.

Figura 38 –Momento da discussão.

Depois de explorar tudo o que foi possível, voltou-se, então, para o Ateliê. Solicitou-se

que se dividissem em dois grupos. A cada grupo, entregou-se um livro de História da Arte13,

para que pesquisassem um pouco mais sobre este período. As crianças então, observaram as

imagens do Bisonte e de outras representações da pintura rupestre encontradas nas cavernas,

as quais mostravam cenas de danças coletivas e outras ligadas ao trabalho e a agricultura. O

deixar ler e pesquisar foi surpreendente. A compreensão foi uma surpresa, até para eles, que

diziam: Nossa! Eu nunca tinha olhado e lido um livro que conta a história da arte. A surpresa

foi era maior, pois livros de História da Arte são excluídos da literatura infantil. Entende-se

que devem ser utilizados, e muito, tendo por base a recepção causada pelos alunos. 13 GOMBRICH, Hernest H. A arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

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Podemos fazer uma poesia? Eu e a Juliana queremos fazer uma, solicitou Bia.

Respondeu-se afirmativamente para as meninas. Neste momento, outras crianças

representaram o desejo de escrever uma poesia e outros decidiram por pintar (Figura 39).

Figura 39 – Momento de criação poética das crianças

Pela figura acima, pode-se observar como cada um, por si só, buscava o melhor espaço

e, de forma autônoma, se propunham a criar, dando vazão ao seu processo de autoria

subjetiva, de suas poéticas.

As duplas Juliana e Renato, Fernando e Gabriel, resolveram escrever poesias. Esse

processo de registro por escrito, da imaginação criadora das crianças, foi permeado por um

grande entusiasmo. Ambas revelaram, em suas construções poéticas, seus conhecimentos

acerca das cores e da natureza (Figuras 40 e 41). O agir divertido foi engendrando caminhos

inusitados, palavras inesperadas, as quais expandiam o campo de ação, indo além do que é

visível, ultrapassando a realidade. Tal expansão tornou as crianças flexíveis ao mundo,

fazendo com que ultrapassassem a realidade, entrando num outro movimento. Movimento

este que procura dar outro curso às coisas. A escrita se revelou uma atitude, uma disposição,

um modo de fazer as coisas, através de uma poética do desperdício, da tensão, do excesso, do

exagero, da fantasia, que desarranjam a ordem colocando-os a inventar outra ordem.

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Figura 40 – Poesia de Juliana e Renato Figura 41 – Poesia de Fernando e Gabriel.

Observando a produção das crianças, acompanhou-se o diálogo entre Pedro e seu

colega: Aí deu errado! Não era pra ser assim, disse Pedro. Gabriel, seu colega, perguntou: O

que foi, o que tu fez? Pedro então respondeu: Sabe aquelas pirâmides do Egito que a gente viu

nos livros antes? Pensei que eram vulcões. Queria fazer um, mas deu errado. Cabisbaixo,

permaneceu um tempo olhando para seu trabalho (Figura 42), depois, retomou novamente o

pincel e continuou a produção. Neste momento, aproximou-se dele na intenção de saber como

tinha resolvido o problema de não ter aprovado sua criação. Ao se aproximar, logo falou: Tô

conseguindo fazer os olhos de vulcão. Porque os olhos tudo vêem.

Figura 42- Pintura de Pedro- !º Registro Figura 43- Pintura de Pedro “ Olhos de vulcão”

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Como sua intenção primeira não tinha sido materializada da forma desejada, isso se

tornou um problema para Pedro. Ao retomar o pincel, ele já havia resolvido esse impasse

interno. Continuou o processo de criação sem se desviar de sua proposta inicial, que era pintar

os vulcões (Figura 43). A imaginação poética exige uma abordagem sempre aberta. Bachelard

adverte para os perigos de se fixar em hábitos de pensamento. O percurso é reformador.

Dinamiza-se dizendo não a pensamentos anteriores, reestruturando-os.

Pôde-se perceber que os encontros eram esperados com uma dose de ansiedade pelos

alunos. Existia vontade e empolgação entre eles, que vibravam com a idéia de que agora havia

a possibilidade de estar em contato mais próximo com a linguagem da arte, o que antes lhes

parecia tão distante e inacessível. Na medida em que as crianças sentiam-se acolhidas para

expressar seus pontos de vista, suas leituras, as conversas ganhavam mais sentidos e

significados. O espaço garantido para a palavra deles, sempre respeitando suas diferenças e

experiências de vida, proporcionava um crescimento do grupo, um aprendizado prazeroso, um

elo verdadeiro entre a professora, eles e a arte, em que todos ali eram aprendizes da Arte.

A professora Sonia e a professora Clara iniciaram uma discussão com as crianças

sobre o lixo, explicando que lixo é resíduo na forma líquida, sólida ou semi-sólida e que não

possui qualquer utilidade. Discorreram ainda sobre os tipos de lixo (orgânico e inorgânico), o

tempo de decomposição dos mesmos, que muitas vezes podem transmitir doenças através de

vetores (mosquitos), bem como a importância de se tratar o lixo, para que a saúde dos

moradores das comunidades não fosse prejudicada, assim como da importância de separar o

lixo no ambiente escolar, podendo este servir como fonte de renda.

Logo as crianças se manifestaram, dizendo que gostariam de trabalhar com o lixo, isto

é, de trabalhar com a reciclagem do lixo em nossos encontros. Perguntou-se então o que eles

gostariam de fazer e foram logo citando: jarros, porta-lápis, vasos de planta, porta-escovas,

porta-retratos e outros. Direcionou-se a proposta de acordo com o interesse das crianças.

Porém, pensando não apenas em reproduzir os objetos citados acima pelas crianças.

No próximo encontro, ao se dirigir a sala de áudio e de vídeo, Carol perguntou: Onde

a gente ta indo, Profe? Ah não. Nós não vamos pintar hoje? Não vamos pro Ateliê fazer

trabalhos? Suas dúvidas eram as mesmas do restante do grupo, que passaram a indagar

durante todo o caminho o que iria se fazer. Eles ficavam eufóricos e ansiosos, pois tudo era

novidade. Não se antecipou nada, esperou-se que chegassem à sala para explicar a proposta

do dia.

Quando todos estavam acomodados, foi dito a eles que iriam assistir um vídeo e que

se gostaria que todos prestassem atenção e lessem as legendas. O vídeo, intitulado “Infância

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Roubada”, era uma apresentação em slide, que objetivava fazer uma reflexão acerca das

condições de sobrevivências de muitas crianças de diversos lugares do mundo. O slide é de

um autor desconhecido e possuía imagens chocantes como, por exemplo: mostrava crianças

numa disputa de migalhas de carvão que caiam dos sacos transportados por caminhões da

Cruz Vermelha, para garantir seu sustento e de sua família no Afeganistão; no Paquistão,

mostrava as crianças trabalhando nas fábricas de tijolos com longa jornada de trabalho; em

Honduras, mostrava as crianças disputando as sobras do lixo com os abutres; na Índia,

quebrando pedras com as mãos calejadas; na Colômbia e no Brasil, a exploração sexual; o

cotidiano das crianças no Brasil, pedindo esmolas e usando drogas; a desnutrição na África; a

insanidade das Guerras na Faixa de Gaza - Palestina e as crianças feridas fugindo da polícia,

dos bombardeios e crianças brincando em meio a tanques de guerra. Pensava-se em aliar as

questões do lixo e a vida humana, inclusive do trabalho infantil.

Reações diversas acometeram as crianças diante do vídeo, seja pelo conteúdo tratado

ou emoções despertadas. Isso é de verdade, Profe? Existe mesmo? Indagavam perplexos.

Diante da imagem das crianças disputando alimento junto aos abutres num lixão, algumas

criança fecharam o nariz com os dedos como se estivessem sentindo o odor exalado pelo lixo

e franziam a testa demonstrando nojo; ao mostrar imagens de crianças feridas com a guerra,

eles franziam os olhos e mordiam os lábios como se estivessem sentindo dor e alguns se

arrepiaram. Várias foram as sensações manifestadas pelas crianças: angústia, nojo, medo,

solidariedade, tensão, perplexidade. Após terminar o vídeo, todos permaneceram em silêncio.

O próprio silêncio estava povoado de significações. Os saberes e os fazeres do corpo

sintetizavam o estranhamento do novo, metamorfoseavam sentidos no ato de compreender

outros mundos. Passa de novo, Profe! Quebrou-se o silêncio. Assistiu-se ao vídeo mais duas

vezes e a cada nova apresentação demonstravam-se mais fascinados, perplexos e se

deslocavam até a frente da televisão, para confirmar o que estavam vendo (Figura 44).

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Figura 44- As crianças assistindo ao vídeo

Nossa, Profe! Quantas vezes a gente briga em casa porque a mãe não quer dar um

salgadinho, mas eu nunca passei fome! Estela fez esse comentário com os olhos cheios de

lágrimas. Naquele momento, estavam todos com a sensibilidade à flor da pele. Era perceptível

a cada instante que as crianças ‘viviam’ aquelas imagens, as sensações que tinham eram como

se elas fossem aquelas crianças do vídeo, alternando seu sistema vital integrando-se ao outro.

Vários foram os relatos de indignação diante das condições de vida de algumas crianças e

várias foram as manifestações de conscientização e de agradecimentos de suas próprias

condições e vivências enquanto crianças. Surgiram vários grupos de discussões e a solicitação

por parte deles para fazerem poesia (Figuras 45 e 46).

Figura 45- As crianças assistindo ao vídeo Figura 46- As crianças escrevendo poesias

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Vejam, as crianças estão embebidas pela emoção, os corpos “falam” e “dizem” isso.

Demonstram o instante do ato criador, centrado de forma sensível e inteligível, em que

imaginação, fantasia e realidade se mesclavam. É no excesso de complexidade que surge o

estado poético, o qual pode emergir em diferentes linguagens: poesia, pintura, dança,

modelagem. Percebi que, neste momento, o excesso causado pela ampliação do existir, pelo

estado afetivo, colocou as crianças em estado poético, forçou o pensamento a agir (Figuras 47,

48 e 49).

Figura 47 – Poesia de Renato e Alice

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Figura 48 – Poesia de Fernando e Pedro

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Figura 49 – Poesia de Juliana e Lara

Abarcar a sensibilidade como condição de aprendizagens pois, ao aprendermos algo

não sabemos mais, mas sabemos de outro jeito o já vivido, supõe realizar o doido exercício de

distanciar-se dos conceitos e idéias estabelecidos culturalmente e historicamente em nosso

corpo, para imaginar e aprender outros modos corporais de sentir e agir. Trata-se de um

mergulho intencional no não sabido ainda, no não visível em nós, no impensado que

ocultamos em nosso corpo.

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Tocou o sinal para a hora do recreio. Houve surpresa, pois sempre vinte minutos antes

eram encerradas as atividades para organizar o Ateliê e para que as crianças pudessem

lanchar. Neste dia perdeu-se a hora. Meu, profe! Já! Como passou rápido. Sem se importarem

de ter que lanchar durante a hora do recreio, foi se organizando para sair da sala. Foi neste

instante que Malu disse: Como foi boa a aula hoje, nem senti falta de pintar.

No próximo encontro, ao entrarem no Ateliê novamente o espanto: Ai, de novo esta

imagem triste! Colou-se um cartaz com a imagem das crianças e os abutres disputando

comida no lixão. Procurou-se saber o que haviam descoberto e aprendido sobre a reciclagem

do lixo na última semana com a Sonia. Então relataram várias questões: que o lixo é sinônimo

de doença e poluição; que a reciclagem é uma questão fundamental para a espécie humana,

visto ser este o segundo maior problema ambiental hoje, em caráter mundial; contaram

também que eles estavam separando o lixo para a coleta, na sala de aula e em casa também.

Direcionou-se o diálogo para o fato dos objetos encontrados no lixo perderem seu

valor e utilidade, mas que, de certo ponto de vista, podem gerar através da ciência, arte e da

criatividade, empregos alternativos, contribuindo também para a preservação do meio

ambiente, pois servirão como fonte de matéria-prima.

Na oportunidade, apresentou-se a eles o trabalho realizado pelo escultor Washington

Santana, que busca realizar toda a dimensão humana, social e estética do resíduo urbano,

transformando a sucata em mensagem e a mensagem em obra de arte. Colocou-se as imagens

no retroprojetor. A admiração das crianças era evidente. Meu Deus, como ele faz isso? Muito

legal a arte que ele faz! Eram os comentários. Profe, nós vamos fazer também? Quis saber

Renato. Respondeu-se que se poderia fazer, mas que precisavam se organizar para coletar

material. Cada um ficou com a responsabilidade de coletar e trazer o material.

Conseguiu-se um espaço na escola para que se pudesse armazenar o material reciclado

trazido pelas crianças. Cada uma delas tinha uma idéia do que gostaria de fazer; porém com o

passar do tempo, foram percebendo que precisariam de muito mais material. Sugeriu-se a

eles então, que se fizesse uma instalação. O que é isso, profe? Perguntaram as crianças. Então

explicou-se que instalação era um lugar, um espaço. O espaço é incorporado ao conceito do

trabalho. Este espaço pode ser construído. Espaços externos também são apropriados e

transformados em instalações que repensam o espaço real. A instalação é efêmera. Neste

instante, todos foram ao dicionário procurar o significado desta palavra. Diziam: Ah! Então,

essa obra não dura para sempre? Nós vamos perder ela? Dura pouco? Respondeu-se

afirmativamente a elas. Então, trouxe-se o conceito de instalação para as crianças. Porém, em

todas as situações o que se deve ter em conta é que um espaço está sendo apropriado e que se

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está pensando um lugar que será habitado pelo corpo em movimento. A instalação remete à

escultura ou à arte objeto pelo uso do espaço tridimensional, mas deles se distingue bastante.

Isto porque o corpo do espectador de uma escultura apreende suas possibilidades numa

dinâmica sujeito/objeto/espaço/tempo sem penetrar no interior da área ocupada pela escultura.

A escultura usa o espaço tridimensional, mas raramente oferece um espaço para ser habitado,

numa relação de se estar dentro ou fora. Portanto, a instalação expande as questões da

escultura. Não se trata somente de ocupar uma determinada área do espaço como as peças

escultóricas, mas de se apropriar de uma arquitetura chamando a atenção para o lugar que é

transformado, habitado pelos receptores que se aproximam e com ela interagem.

Renato teve uma idéia: Ah! Então, porque a gente não faz alguma coisa todo mundo

junto? Cada um traz material e depois a gente faz. Então perguntou-se: Em que lugar vocês

gostariam de fazer? Espontaneamente veio a resposta: Aqui dentro que não dá. Vamos fazer

lá fora. Vamos fazer o que? Indagou-se. Juliana foi quem primeiro sugeriu: Ah! eu já

imaginei uma coisa, um lugar assim cheio de lixo, tipo uma caixa que as pessoas ficam em

baixo daí a gente enche tudo de lixo dos lados em cima tudo tudo.

Foi se trabalhando a idéia inicial da colega Juliana. Chegou-se ao consenso de

construir o “Recanto das emoções”, nome sugerido por Pablo. Fiquei responsável em falar

com o diretor da escola para ver o lugar, o espaço escolar, em que se poderia fazer a

instalação.

O diretor deixou livre para que se escolhesse o local. Sugeriu-se que fosse no pátio da

escola, perto da entrada, para que todos pudessem ver e interagir com a produção. As crianças

logo aceitaram. Então, iniciou-se o trabalho de preparação do material. Buscou-se ajuda com

o pessoal da marcenaria para que construíssem a estrutura de sustentação do trabalho.

Prontamente, o professor responsável se dispôs a construir.

Como os alunos da marcenaria tinham bastante trabalho para fazer, demoraram 10 dias

para construir a base de sustentação. Enquanto isso, iniciou-se o trabalho de preparação do

material (Figuras 50, 51,52 e 53). As crianças traziam diariamente lixo reciclado, catavam em

casa, nos vizinhos, nos avós. A maioria estava empenhada no trabalho.

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Figura 50 – Material coletado Figura 51 – Material coletado

Figura 52 – Preparação do material coletado Figura 53 – Preparação do material coletado

Após a base estrutural do “Recanto das Emoções” ser montada (Figuras 54 e 55), o

trabalho ganhou mais força, entusiasmo e empenho por parte das crianças. Elas trabalharam

arduamente na construção dessa instalação. Durante a preparação do lixo, seus corpos se

mostravam cansados, retraídos, se manifestavam a cada corte com a tesoura em uma caixa de

leite, pois o odor era tanto que em alguns causou um mal-estar. Foi um trabalho em que os

dedos e as costas doíam, a exaustão era perceptível, mas esta se misturava com uma ansiedade

em ver o trabalho concluído, no qual percurso de criação foi intensamente vivido.

Figura 54 – Construção da estrutura de sustentação Figura 55 – Construção da estrutura de sustentação do “Recanto das emoções” do “Recanto das emoções”

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Figura 60-Processo de construção Figura 61-Processo de construção do “Recanto das emoções” do “Recanto das emoções”

Levou-se todo o material já coletado e preparado

para o espaço onde iria ser construída a instalação (Figura

56). O trabalho foi em equipe. Cada uma ficou

responsável por fixar os materiais em alguma parte da

estrutura, de forma aleatória (Figuras 57, 58 e 59).

Durante o processo, ouviu-se comentários do tipo:

Ah! Mas, essa quantidade de lixo não vai chegar para

preencher tudo. Olha só! Foi quase tudo só pra fechar a

parte de cima. Neste momento, as crianças perceberam

que o material que havia sido coletado era insuficiente

para terminar o trabalho. Isso causou um certo desconforto

e desânimo. Pareciam frustrados, mas alguns ainda tinham

a esperança de conseguir completar a criação. E agora!.

Já colocamos tudo. Olha aí, só fechou em cima, ainda tem

todos os lados. Na minha casa não tem mais nada pra

trazer, indagou Pablo (Figuras 60e 61). A reação foi de

concordância com aqueles que acreditam que

conseguiríamos mais material para terminar o trabalho.

Sugeriu-se a eles, então, que se mobilizasse toda a

escola na coleta do material. Essa idéia reafirmou os

ânimos da turma e foram divididos em grupo para passar

em cada sala de aula, explicar a proposta e pedir que

trouxessem o “lixo” para ajudar na construção do

“Recanto das Emoções”.

Figura 56-Processo de construção do “Recanto das emoções”

Figura 57-Processo de construção do “Recanto das emoções”

Figura 58-Processo de construção do “Recanto das emoções”

Figura 59-Processo de construção do “Recanto das emoções”

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Houve muita colaboração e toda a escola se inseriu na proposta. A instalação causou

um impacto e uma interação muito grade. Primeiramente, por estar em um local onde muitas

pessoas transitavam. Todos os dias, antes de iniciar a aula e principalmente na hora do

recreio, havia muitas crianças das outras turmas, que traziam o lixo reciclado e amarravam

junto a estrutura ( Figura 62), participando de sua construção.

Figura 62-Processo de construção do “Recanto das emoções”

Figura 63- Algumas crianças de outras turmas interagindo e dialogando sobre a Instalação.-“Recanto das emoções”.

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A cada dia que passava, a satisfação era maior em ver o “Recanto das emoções” se

materializando. O estado de euforia das crianças era perceptível. Estavam orgulhosos em ser

criadores e produtores da instalação. Na verdade, esta intenção nunca ficaria pronta, estaria

concluída, estava em permanente processo, pois sempre teria um espaço para acrescentar mais

material. Ela estava em constante construção e reconstrução. As Figuras 64, 65 e 66 mostram

os últimos registros fotográficos que foram realizados antes do ano letivo terminar.

Figura 64-- “Recanto das emoções” Figura 65- “Recanto das emoções”

Figura 66- “Recanto das emoções”

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110

Aqui, muitos diálogos foram realizados entre a turma da 3ª série e as demais turmas da

escola, envolvendo todo o corpo docente e discente nesta proposta. Os professores diziam:

Muito significativo! Os alunos das outras turmas comentavam: Como começou isso daquele

jeito e agora já está assim? Nós também queremos fazer Arte. Aí, vinha a pergunta inicial:

Onde estão os tempos e os espaços para construções de poéticas visuais na escola? Esta turma

envolvida na pesquisa estava sendo privilegiada? Ou não seria esta uma forma natural das

artes visuais na educação? Não só ler imagens, mas também oportunizar poéticas visuais em

construção permanente, constitui uma das funções da Arte na escola, é sua responsabilidade.

Paralelamente a esta instalação, outras experienciAÇÕES criativas e construções

poéticas vinham sendo realizadas pelas crianças. Como os encontros não se davam só no

ambiente do Ateliê, as crianças tiveram a oportunidade de interagir e expandir suas

possibilidades de criação.

Na intenção de trabalhar a dimensão tridimensional na construção de poéticas visuais,

oportunizou-se às crianças o contato com diferentes materiais. Nossa que legal. O que a gente

vai fazer hoje? Perguntam incessantemente, ao entrar no Ateliê e se deparar com restos de

madeiras, de diferentes formatos e tamanhos.

Neste momento, ocorreu uma provocação à imaginação das crianças, que foram

desafiadas a estabelecer outras relações, outros nexos, outras conexões, a viver outras

sensações – se pôr em outros movimentos de imagens e palavras. Pôde-se observar que, deste

ato, emergiu a surpresa, a alegria, o riso desmedido, a agitação do e no corpo, a excitação, o

contágio do movimento do outro. A alegria se tornava contagiante, era impossível permanecer

imóvel. O mais espantoso – a beleza do momento – foi observar a emergência do riso e da

alegria acontecer como modo de compartilhar um pensamento desafiado a pensar! Como

urgência de comungar o esforço do enfrentamento do desconhecido.

Richter (2005, p. 250) afirma que a alegria e o riso emergem do inusitado, do

estranhamento, do contraste entre o dar-se conta do ainda “não vivido deste modo”. Emergem

justamente da novidade do inusitado que é “fazer acontecer de outro modo o mesmo - o já

vivido”. A dimensão poética só acontece na descontração, na alegria, no prazer, por estar

afastada de momentos de ansiedade e angústia, diante do certo e do errado.

A gente vai trabalhar com isso mesmo? Perguntou Estela. Vamos. Respondeu-se.

Então, orientou-se o grupo para que cada um escolhesse um formato para realizar o trabalho,

dizendo que podiam pegar a quantidade que necessitassem. Na interação com o material,

foram se formando alguns grupos, pois ao tocarem a matéria já foram constituindo repertórios

imagéticos, dando sentido à mesma. O próprio objeto gerava imaginação. Juliana, Fernando e

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Pedro foram logo manipulando a matéria, mexendo, revirando, na tentativa de transformá-la

em alguma coisa ( Figura 67).

Figura 67- Momento de criação poética das crianças

Cara! Dá pra fazer uma arapuca! Disse Fernando. É mesmo, né? Vamos escolher este

material então. Concorda Pedro. Eu também posso fazer com vocês? Eu vi meu pai fazer um

dia. Ele me ensinou e eu quero fazer, solicita Juliana. Os meninos se entreolharam,

permanecendo em silêncio, como forma de reprovação à colega; porém, no final

concordaram.

Iniciou-se então a construção plástica. Cada um fez a sua “arapuca”. Terminei, gritou

Juliana. Esperei que Fernando e Pedro também terminassem e reuni os três. Perguntei a eles

qual era a intenção de suas produções, porque eles escolheram fazer arapucas. Pedro logo se

manifestou: Eu fiz porque comecei a olhar os tipos de madeiras que estavam espalhadas aqui

e, quando coloquei o olho nessas, lembrei que meu pai fez uma. Daí quis fazer. Fernando

completou:

É que nós somos vizinhos, né. Eu e o Pedro. Uma vez o pai dele queria pegar uma raposa. Então uma tarde ele foi fazer uma arapuca e nós tava por lá e ajudamos. Daí a gente armô uma lá nos fundos da casa do Pedro pra pegar a raposa. Mas não pegamos.

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Juliana, em uma manifestação de repressão a atitude do pai dos colegas, disse:

Ah! A minha história é bem triste. Um dia, né, meu pai fez uma arapuca porque queria pegar ... sei lá que bicho era. Ele fez e colocou na área lá atrás de casa. Isso era uma sexta-feira. Daí foi viajar. Não lembro direito, mas era férias. Daí quando chegamos em casa tinha um gato morto dentro dela. Imagina só! A arapuca nem era pra ele, mas ele caiu e ficou preso. Morreu de fome. .Eu fiquei muito triste. Imagina só o dono do gatinho, como não ficou? Depois disso eu nunca mais quis que meu pai armasse uma de novo.

Estas falas são reveladoras. Vejam como o vivido - o real - tem a ver com o

imaginário, pois a poética tem reflexo da realidade e também, sem dúvida, tem reflexo do

devaneio, o qual torna-se operante em seu percurso laboral/autoral. Solicitou-se que falassem

sobre suas produções para identificar o que os motivou a construírem as arapucas, o que havia

vindo à tona em seus corpos naquele instante. Como se percebe, a intenção se realizou a partir

das memórias, das percepções e afetos do mundo do qual fazem parte. Continuando nossa

conversa, abordou-se o assunto a caça de animais, assim como o aprisionamento dos mesmos.

No instante em que Fernando falou a palavra “prisão”, Juliana disse: Já sei! E no mesmo

momento fez sinal para que o colega terminasse sua colocação.

Tive uma idéia ótima, disse Juliana. E continuou: Nós três podíamos fazer mais um

monte de arapucas. Aí a gente podia deixar elas assim, todas viradas para cima. Sei lá.

Colocar elas de um jeito que nenhum animal possa ficar preso. Com o consentimento dos

colegas e a colaboração de Fernando e Pedro, os três reiniciaram a produção.

No instante em que estavam construindo as arapucas (Figuras 68, 69 e 70), eles

estavam re-vivendo as experiências pelas quais haviam passado. Mas, a partir da idéia de

Juliana, as arapucas haviam tomado um outro sentido. Os três trabalharam na construção das

arapucas durante dois encontros. Foi um trabalho que exigiu muita dedicação, pois as ripinhas

de madeira daquele tamanho haviam terminado e então eles tinham que quebrar outras para

que ficassem mais ou menos no tamanho desejado. O desejo deles era que as arapucas

tivessem o mesmo número de ripinhas.

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Figura 69- Construção das “Arapucas”

Figura 68- Construção das “Arapucas” Figura 70- Construção das “Arapucas”

A Figura 71 mostra o grupo estudando uma maneira de como iriam amarrar as

arapucas, sendo que a intenção deles era deixar o trabalho suspenso no ar.

No final, as arapucas deixaram de ter o sentido primeiro e tomaram outra dimensão,

outros sentidos. Viraram arte a partir de uma construção em 3ª dimensão ( Figura 72). Assim,

organizavam sua criação: São formas que depende o jeito que colocamos parece uma

escultura. Vira uma para cá e bota a outra ao contrário, orientava Fernando (Figura 71).

Isso mesmo! Desse jeito não fica uma arapuca. Ainda bem! Agora a gente fez uma arte, disse

Juliana, feliz. Dessa maneira o grupo ia resolvendo não só problemas na produção, mas

também problemas de concepções e entendimento de percurso e da expressão que se

metamorfoseava no processo.

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Figura 71- Construção das “Arapucas” Figura 72- “Arapucas”

Durante o processo de criação de Renato e Pablo, vários foram os recomeços e as

repetições, na tentativa da organização e composição do trabalho criador. Inicialmente, como

mostra a Figura 73, eles dispersaram os cubos de forma aleatória, mas não estavam convictos

de que era aquilo que queriam fazer. Enquanto manipulavam a matéria, Renato visualizou em

um dos cubos uma imagem e, mostrando para o colega, disse: Pablo, Pablo! Olha aqui. Isso

aqui parece dois barcos e parece que está iniciando uma guerra. O colega olha para as

impressões no cubo e reafirma: É mesmo! Parece o desenho de dois barcos. Renato

continuou: Ah então tu entendeu a idéia. Vamos fazer um quartel.

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Figura 73- Momento de criação poética das crianças

Bachelard diz que as crianças gostam e necessitam mexer e mexer-se nas coisas. Não é

o verbo que mobiliza ações e pensamentos na infância. É a experiência sensível do corpo e o

movimento efetivo das mãos que tocam a materialidade do mundo, para daí extrair uma

abstração pertinente aos recursos e procedimentos que especificam o ato de pensar: a

interrogação, o espanto, a admiração.

As Figuras 74 e 75 mostram o momento em decidiram recomeçar o trabalho, mas

agora de outra forma, dando outro significado à matéria na tentativa de “fazer um quartel”.

Explicando seu plano de organização mental para o colega, Renato falou: A gente podia

colocar um quadrado desses em cima outro e fazer uma coisa bem alta. Ir amontoando um

em cima do outro, tudo atrapalhado e colocamos esta peça com os navios de guerra bem em

cima. Pablo, que ouvia atentamente o pensamento do colega, após concordar com a intenção,

sugeriu: Mas então, em vez de colocar em cima porque a gente não coloca bem no meio.

Podemos deixar um buraco aqui pra espiar. Assim continuaram o trabalho, no qual observa-

se que as crianças fizeram uma base de sustentação e somente depois distribuíram os cubinhos

de forma aleatória, um sobre o outro, como mostra a Figura 76.

Figura 74- Momento de criação poética das crianças Figura 75- Momento de criação poética das crianças

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Figura 76 - Momento de criação poética das crianças

Em vários encontros, as crianças retomavam este trabalho para fazer alguns reparos,

como recolar um cubo e pintá-los. Num desses momentos, Renato chama e diz: A senhora

sabe qual é o nome dessa escultura? Pediu-se, então, para que ele dissesse. Assim falou: O

nome é medalhão. Se tu olhar aqui por esse buraquinho, tu vai ver um barco. Isso significa

que está acontecendo uma guerra. Perguntou-se então: Por que medalhão? Ele explicou

dizendo:

Tem um jogo que o nome é “Medalha da Morte”, que quer dizer medalha de honra. Aqui em baixo, por esse buraco, tu vê dois barcos, são barcos da guerra, porque estava iniciando uma guerra. Eu não sei que guerra era. Esse barco já é da madeira, E por isso que é o nome medalhão.

Durante o processo da experienciAÇÃO criativa, os dois se encontravam em estado

poético. Para Bachelard (1988), a passagem do estado poético ao ato de decidir fazer algo,

implica a passagem da desordem interna (espanto, maravilhamento, perplexidade) à execução

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de algo (objetivo, exterior), onde a desordem é a condição de sua fecundidade: ela contém a

promessa, já que essa fecundidade depende mais do inesperado que do esperado. E isso é

perceptível no percurso criativo desse trabalho. O que os motivou a iniciarem o ato foi a

desordem interna, o devaneio surgido a partir de um cubo de maneira, onde enxergaram

impresso neste dois navios, que para eles são navios de guerra, desencadeando, assim,

movimentos ritmados, intensos, carregados de emoção e de sentido numa íntima interlocução

ou colaboração, de certo modo confusa ou misturada, entre mundo, corpo e pensamento.

Tenho uma novidade. Hoje eu descobri uma coisa, disse Renato! Ele relatou que havia

assistido, naquela manhã, ao programa de televisão “Mais você”, apresentado por Ana Maria

Braga e exibido pela emissora de TV Rede Goblo. Assim relatou:

Ela recebeu um artista. Um artista que é famoso no Brasil e também no exterior. Ele faz arte com a natureza. Só utiliza o que já está sem vida, ele não destrói nada. Ele usa as folhas secas das árvores, cascas de árvores, sementes, tronco de árvores queimadas. Eu não lembro o nome dele.

Perguntou-se então se o nome do artista não era Frans Krajcberg. Logo Renato

lembrou e de forma afirmativa concordou. Por coincidência, no domingo anterior a este

encontro, assistiu-se uma reportagem sobre a vida e a obra deste artista, no telejornal

“Fantástico”, também exibido pela Rede Globo.

A minha avó fez um quadro. Eu vi. Ela pegou uma casca de árvore e ralou no ralador.

Com aquele pozinho ela fez o quadro que ta a sala da casa da minha tia. Contou Gabriel.

Carol também relatou sua vivência: Quando eu estava no Pré eu fiz um trabalho com folhas

de árvores, era bem legal. Nós podíamos fazer, né, professora? Assim, vários foram os

desejos de trabalhar com os elementos da natureza morta.

No outro encontro, foi-se novamente para a sala de vídeo. Levou-se muitas

curiosidades sobre a vida e a produção do artista Frans Krajcberg, dentre imagens de sua

produção, assim como do processo de sua produção. A tarde foi marcada por muita pesquisa,

grandes descobertas e inúmeras idéias para a criação (Figuras 77, 78 e 79).

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Figura 77- Crianças na sala de vídeo Figura 78- Crianças na sala de vídeo

Figura 79- Crianças na sala de vídeo

Em outra oportunidade, conduziu-se as crianças por espaços ainda não conhecidos por

elas na escola. Andou-se pelas dependências existentes ao redor da escola (a marcenaria, o

espaço onde funciona o curso técnico de jardinagem e seus arredores). Neste ambiente, as

crianças encontraram grande gama de possibilidades. Eu queria fazer um trabalho com esse

toco aqui, solicitou Pedro. Eu com essas cascas de árvores e essas tiras aqui, apontou Bia.

Assim, sucessivos pedidos foram surgindo. Então, foi dito a eles que já havia sido conversado

com os responsáveis por este espaço e que todos os restos de materiais, assim como os

fragmentos da natureza morta, podiam ser pegos e utilizados na construção criativa de suas

experiências poéticas.

As crianças recolheram aquilo que as tocava profundamente, aquilo que se remetia a

seus íntimos pensamentos (Figuras, 80 à 84). Neste instante, os restos e os fragmentos que

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recolhiam já haviam tomado outra dimensão, adquirido outros sentidos, pelo devaneio das

mãos de quem os tocava.

Figura 80- Crianças recolhendo os materiais

Figura 81- Crianças recolhendo os materiais

Figura 82- Restos e fragmentos da natureza morta

Figura 83- Restos e fragmentos da natureza morta

Figura 84- Restos e fragmentos da natureza morta

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Esse sair de si até o mundo colocou as crianças diante de um mundo também por

fazer. O mundo não é dado e acabado: o mundo está dentro de nós. Nos tornamos na

simultaneidade que o mundo torna-se para nós e para os outros. Movimento que vai

configurando mundos, na medida que se vai transformando-o, ou seja, recomeçando-o. O

mundo não permanece quieto: in-quieto nos inquieta, nos força a tocá-lo, a movimentá-lo, a

fazer mundos em nós. Esse sair de si até às coisas exigiu do corpo das crianças ação: agir é

entregar-se para inaugurar um sentido. Neste processo, a subjetividade tornou-se experiência

inseparável de si mesma, uma única coesão de vida. O envolvimento transcendeu a dimensão

formal da escola.

Observou-se um grupo de crianças, que recolheram vários tocos cada uma e estavam

indo em direção ao pátio da escola. Começaram a distribuir os tocos de forma dispersa e

aleatória pela grama (Figura 85). Foi-se em direção a eles para descobrir qual era a intenção

do grupo. Perguntou-se: Porque vocês trouxeram os tocos pra cá? E Estela, justificando-se,

respondeu: A idéia foi do Pedro! Então, deixou-se claro que não se estava reprovando o ato

deles. Pelo contrário. Apenas se gostaria de saber o porquê trouxeram todos os tocos para

aquele espaço. Então Pedro respondeu:

É que enquanto a gente vinha trazendo os tocos, nós pensamos em colocar aqui, para que mundo pudesse ver, porque ninguém vai lá atrás para olhar a quantia de árvores mortas que tem. Ninguém vê aquela natureza toda cortada. Então os outros gostaram da minha idéia. Daí a gente trouxe pra cá.

Figura 85- Crianças recolhendo os materiais

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Parabenizou-se o grupo e problematizou-se algumas questões acerca da degradação da

natureza, as quais estavam sendo trabalhadas pela Professora Sônia no contexto de sala de

aula. Iniciou-se um diálogo sobre a destruição da natureza, seus agentes e suas implicações no

meio ambiente. As outras crianças, que vinham trazendo seus materiais, se aproximaram e

participaram da discussão, que aconteceu ali mesmo, na grama. Elas também quiseram

participar da construção do grupo e foram, também, buscar tocos para colocar sobre a grama.

Enquanto estas crianças tinham ido buscar os tocos, Pedro lançou uma sugestão para o

restante do grupo: E se a gente escrevesse alguma coisa em cima? Com a sugestão aceita, ele

e seu colega foram até o ateliê buscar tinta e pincéis. Cada um expressou aquilo que estava

incorporado em si mesmo, num sensível em si, deixando na matéria sua marca (Figuras 86 à

100)

Figura 86- Construção poética das crianças

Figura 87- Construção poética das crianças

Figura 88- Construção poética das crianças

Figura 91- Construção poética das crianças

Figura 89- Construção poética Figura 90- Construção poética das crianças das crianças

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Figura 92-Construção poética Figura 93- Construção poética das crianças das crianças

Figura 95-Construção poética Figura 96- Construção poética das crianças das crianças

Figura 98- Construção poética Figura 99- Construção poética das crianças das crianças

Eduardo trouxe um saco de maravalha da marcenaria e sugeriu que fosse colocado ao

redor de cada toco. A sugestão foi aceita. Mesmo sem se darem conta, o grupo havia

construído outra instalação que, da mesma forma que a do “O recanto das emoções”, causou

impacto na escola como um todo. As Figuras 101 e 102 mostram os alunos em interação com

e na instalação. As crianças ligadas à natureza circundante da escola e seus entornos se

envolveram com o objeto natural morto para dar-lhe vida outra vez, como já foi o caso dos

tocos de árvores tirados de trás da escola, já mortos pela ação do homem sobre a natureza.

Figura 97- Construção poética das crianças

Figura 100- Construção poética das crianças

Figura 94- Construção poética das crianças

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Figura 101- Alunos da escola interagindo com Figura 102- Alunos da escola interagindo com a instalação a instalação

Juliana, num outro momento, decidiu escrever sua poesia “As cores do meio

ambiente” (Figura 40), em um pedaço do tronco de uma árvore, encontrado por ela na

marcenaria. Dirigindo-se a pesquisadora, disse: Lembra da minha poesia? Aquela que eu fiz

sobre as cores. Tem tudo a ver. Quando vi este pedaço de tronco, logo lembrei da minha

poesia. Vou escrever ela aqui.

Fernando sugeriu que Juliana passasse verniz para que a madeira não estragasse

facilmente. O cheiro forte do verniz causou mal-estar em Juliana, que teve a ajuda do colega

para finalizar esta tarefa. (Figuras 103 e 104) Durante o processo, ela quase desistiu. Seu

corpo chegou à exaustão. Se dizia cansada e que não queria mais escrever, porque era muito

demorado. Motivou-se para que ela continuasse. A cada encontro, ela registrava uma parte da

poesia.

Agora tenho que pôr ela em cima de alguma coisa. Já sei! Pode ser um toco daqueles,

pra fazer de conta que ela está nascendo. (Figura 105)

Figura 103- Processo de criação Figura 104- Processo de criação

Figura 105- Processo de criação – “Cores da natureza”

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Pedro, em sua construção poética, segue seus

devaneios da vontade no ato de criação, no ato de estar em

linguagens, fazendo seu corpo lançar-se e expor-se em

imagens e palavras. Eu adorei este material que eu

encontrei. Mas ainda não sei o que eu vou fazer, Falou

Pedro. Foi dito a ele que ele poderia trabalhar com qualquer

outra coisa; mas, neste dia, Pedro passou o encontro inteiro

ajudando os colegas. Nos intervalos, realizava algumas

tentativas, mas depois de algum tempo desistia novamente.

No final da tarde, Pedro disse: Professora, eu vou fazer

alguma coisa com esse material. Se alguém quiser usar, diz

para irem buscar lá na marcenaria, porque lá que tem

mais. Eu vou ocupar isso tudo.

O corpo sensível é um corpo teimoso. No próximo

encontro, Pedro ficou novamente manipulando o material,

em instantes ritmados por repetições e recomeços. Foi

quando começou a enrolar uma das pontas da madeira em

palha. (Figura 106) Tendo a matéria em suas mãos e a

sentindo, despertou nele o desejo de transformá-la. O gesto

plástico é ato de estar presente, fazer-se real, viver que

remete ao futuro, constante reformulação das próprias

intenções. As marcas na matéria mostram-se sempre

inacabadas, sempre atuais em suas repetições. Cada marca

contém a gestão de outra, o germe da outra marca,

engendrando um encadeamento.

Continuou o processo de transfigurar imagens, de

fazer ser o que não é, dizendo: Preciso fazer uns quantos

rolinhos igual a esses, porque são muitos os gritos! Gritos?

(Figura 107) Espontaneamente perguntou-se. Em silêncio

por algum tempo, na busca de dar uma explicação, e a

pesquisadora, arrependida de ter indagado sobre algo que

não era possível traduzir em palavras, me olhou e disse: A

natureza está pedindo socorro. Grita por cuidados. É

Figura 106- Processo de criação poética

Figura 107- Processo de criação poética

Figura 108- Trabalho plástico de Pedro- “Últimos Suspiros”

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preciso preservar! O título escolhido por ele para esse trabalho criativo foi “Últimos

suspiros”. ( Figura 108)

A imaginação poética, no processo de criação de Fernando, emergiu no instante do

interesse, do entusiasmo, do seu encantamento pelas possibilidades maiores da materialidade

escolhida para o trabalho, assim como sua capacidade de se relacionar com ela.

Um pneu atirado em meio a outros escombros foi o que provocou espanto, admiração

e indagações em Fernando. Iniciou o processo de construção, imprimindo suas marcas na

matéria. Ele pegou um arame e começou a enrolá-lo ao redor do pneu (Figura 109). Queria

prender o arame de forma que ficasse bem firme. Solicitou ajuda (Figura 110). O trabalho foi

silencioso. Fernando apenas me dizia a maneira como queria que segurasse e o ajudasse a

enrolar o arame.

Figura 109- Processo de criação poética Figura 110- Processo de criação poética

Instantes depois, Fernando disse: Preciso colocar bastante arame, enrolar direitinho

para que não caia nada. Cair o quê? Perguntou-se. Ele respondeu: Cair o lixo que eu vou pôr

aqui dentro.

É o contato dotado de todos os devaneios do tato imaginante que dá vida às qualidades

adormecidas nas coisas, cujo efeito dura por todo o tempo que durar o toque. Assim,

Fernando preencheu todos os espaços com lixo reciclável (Figura 111). Com o trabalho

concluído (Figura 112), sorriu e disse: Ficou como eu queria. Bem assim. Até parece um

globo. O nome vai ser “Globo da morte”. Perguntou-se por que ele tinha escolhido este

nome. Olha e pensa. Disse ele. Era a resposta que se merecia, pela situação em que havia

sido colocado, querendo que traduzisse em palavras suas emoções, seus devaneios mais

profundos, seus sentimentos.

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Figura 111- Processo de criação poética

Figura 112- Processo de criação poética – “Globo da morte”

A experiência poética é ato comprometido com a sensibilidade lúdica de investigar o

mundo, de recriá-lo através de ritmos, procedimentos e gestos, num processo que independe

da palavra para acontecer. Os pensamentos não precisam ser verbalizados - nem sequer

escritos/pensados. Basta o corpo agir. As decisões, e também as hesitações, são formuladas no

devir do fazer sobre o mundo de um permanente processo reflexivo.

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Olha que eu trouxe professora! Chama a atenção, Renato. Ele estava com um saco de

lixo enorme, cheio de cascas de árvores. Vou fazer meu trabalho com essas cascas, disse ele.

No ateliê, escolheu os dois maiores fragmentos e ficou por muito tempo os tocando, ajeitando,

virava de um lado, depois de outro, na tentativa de encaixá-los. (Figuras 113 e 114)

Figura 113- Processo de criação poética Figura 114- Processo de criação poética

Momentos depois falou: Eu preciso prender isso aqui desse jeito como tá agora. Vou

colar. Então sugeriu-se: a cola para madeira não vai segurar assim como tu organizou. E se

você amarrasse as cascas com arame. A sugestão não foi aceita por ele. Não! Não pode ter

arame. Passou algum tempo andarilhando pelo ateliê, pensativo. Dirigiu-se a pesquisadora

novamente e disse: A senhora me ajuda? Vou experimentar prender com arame para ver

como fica (Figura 115).

Figura 115- Processo de criação poética

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Enquanto prendia-se, Renato contou entusiasmado sobre a origem das cascas: Sabia

que esta casa é de uma árvore, de uma Timbaúva? Eu achei ela lá fora, na chácara do meu

tio. Sabe como foi? Eles estavam esperando que o caminhão de lixo viesse e recolhesse elas.

Aí quando eu vi, eu pedi e me deram. E continua explicando:

Na chácara tem bastante árvores e a Timbaúva está em extinção. Eu não quis arrancar de nenhuma árvore. Então peguei essas que já estavam no chão. A árvore que eu peguei as cascas era uma árvore que ficava perto da casa. Daí tiveram que cortar, porque ela era muito velha, a mais velha que tinha e estava perigando cair nem cima da casa. Então tiveram que cortar. Daí eu peguei pro meu trabalho de arte.

As experienciAÇÕES poéticas, configuradas pela ação de Renato e materializadas

visivelmente pelas cascas da árvore, num fazer e trans-formar, foi pensado a partir de

produções culturais vivenciadas numa razão sensível e geradora de significações. Ao finalizar

sua criação (Figura 116), disse: Até que deu um “tchan” esse arame. Logo eu não queria pôr,

pensei que não ficaria legal. Mas agora adorei. Até parece que está ali para remendar a

natureza de todas as destruições.

Figura 116- Processo de criação poética – “Resto”

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Considera-se esse o exercício experimental da liberdade que toda criança realiza ao

transformar, mesmo brincando, a materialidade do mundo com o corpo e a linguagem, pois é

nessa experiência que funda imagens para construir uma imaginação criadora que a permite

dialogar com outros. Experiência sensível que, ao encontrar sua especificidade no imaginar,

perceber, intuir, relacionar, dinamiza todo o imaginário e o sistema de afetos, ampliando

repertórios corporais que repercutem em sua cultura e em sua expressão/produção poética.

O ponto culminante de toda essa experenciAÇÃO com as crianças da 3ª série foi a

realização de uma exposição na escola. O espaço escolhido para a realização foi o Hall da

Biblioteca, por ser um espaço fechado e por acolher diariamente um grande número de

estudantes, professores e funcionários. O trabalho para a organização da exposição foi árduo.

O transporte de todas s produções criativas do ateliê até o Hall e a organização do espaço

exigiu um trabalho em equipe, além de envolver outras pessoas, como as funcionárias da

escola, que ajudaram a transportar os trabalhos e os alunos da marcenaria, que furaram as

paredes e fixaram aos trabalhos. As crianças decidiram levar todos os trabalhos, até mesmo a

instalação dos tocos.

Paralelamente a preparação da exposição, as crianças se envolveram na elaboração do

convite (convite da amostra em Anexo A) e cartazes (Figura 117) para a divulgação da mostra

de arte. Foram, novamente, de sala em sala convidar os estudantes, convidaram todos os

segmentos da escola, assim como os alunos do Curso Técnico em Marcenaria e Jardinagem,

para prestigiar a exposição que se realizaria entre os dias 14/12/2006 a 19/12/2006. As

Figuras 118 a 143 mostram a organização e os trabalhos da exposição “Metamorfose”.

Figura 117 – Cartaz de divulgação da exposição

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Figura 118- Trabalhos das crianças na exposição

Figura 119- Trabalhos das crianças na exposição

Figura 120- Trabalhos das crianças na exposição

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Figura 121- Trabalhos das crianças na exposição

Figura 122- Trabalhos das crianças na exposição

Figura 123- Trabalhos das crianças na exposição

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Figura 124- Trabalhos das crianças na exposição

Figura 125- Exposição – “Interior” Figura 126- Exposição - “Resto”

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Figura 127- Exposição - “Casa de boneca” Figura 128- Exposição - “Ondas”

Figura 129- Exposição- “Memórias da natureza” Figura 130- Exposição - “As torres”

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Figura 131- Exposição - “Últimos Suspiros” Figura 132- Exposição- “Cores da natureza”

Figura 133- Exposição - “Medalhão” Figura 134- Exposição - “Globo da morte”

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Figura 135- Exposição- “A cidade” Figura 136- Exposição - “Natureza corrompida”

Figura 137- Exposição - “Requinte da destruição” Figura 138- Exposição- “Arapucas” e “ Resto”

Figura 139- Exposição - Instalação Figura 140- Exposição-“Renault”

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Figura 141- Exposição - “Salve-me” Figura 142- Exposição - “Encruzilhada”

Figura 143- Exposição - “Ninho” Figura 144- Espaço da Exposição

Figura 145- Espaço da Exposição Figura 146- Espaço da Exposição

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A abertura foi realizada no dia 14 de dezembro de 2006, às 14 horas, comparecendo

aproximadamente 60 pessoas. O diretor da escola abriu a mostra de arte com uma fala, na

qual parabenizou pela intenção e pelas marcas que haviam sido deixadas na escola, falando

sobre a dimensão que este trabalho havia tomado e a reflexão que estava repercutindo entre os

professores em relação à aprendizagem em arte nos Anos Inicias. Orgulhosa após os

comentários, emocionada, a pesquisadora agradeceu pelo espaço disponibilizado e toda a

atenção e dedicação que, na medida do possível, foi desempenhada pela escola. Agradeceu-se

em especial a professora Sonia, regente da turma, por possibilitar o espaço para essa

experiência; e às crianças, por tudo que se pôde aprender com elas, pelas lições de

sensibilidade, por ensinarem a enxergar aquilo que não é perceptível aos nossos olhos e

pensamentos, dando outro sentido às coisas do mundo, tornando-o mais belo e prazeroso.

Algumas crianças choraram durante a fala, estavam orgulhosas e eufóricas, porém em clima

de despedida. A emoção contagiou a todos.

Muitos pais não puderam comparecer na abertura, mas no decorrer dos seis dias de

exposição vieram para prestigiar. De acordo com o livro de registros de presenças, quinhentos

e trinta e seis (536) visitantes, dentre os estudantes do turno da tarde e da manhã das várias

séries, professores, funcionários e familiares, visitaram a amostra, estimulando a todos, o que

foi gratificante, porque, para o grupo envolvido, o ato criador ultrapassou o momento da

criação, indo ao encontro de outros olhares. As Figuras 147 a 161 mostram s visitação à

Exposição “Metamorfose”.

Figura 147- Abertura da Exposição Figura 148- Visitação da Exposição

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Figura 149- Visitação da Exposição Figura 150- Visitação da Exposição

Figura 151- Visitação da Exposição Figura 152- Visitação da Exposição

Figura 153- Visitação da Exposição Figura 154- Visitação da Exposição

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Figura 155- Visitação da Exposição Figura 156- Visitação da Exposição

Figura 157- Visitação da Exposição Figura 158- Visitação da Exposição

Figura 159- Visitação da Exposição

Figura 160- Visitação da Exposição

Figura 161- Visitação da Exposição

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A viagem continua, mas o percurso parece infindável e parece que não se quer mudar

a rota, onde cada um segue um rumo. Foram muitas trocas e acima de tudo vivências em ação,

na ação e numa investiga-ação. É um tempo de pesquisa concreto, e agora? Separar-se de

todas essas empreitadas coletivas e compartilhadas que a viagem proporcionou é difícil.

Como pesquisadora, envolvidíssima, choro. E eles também choram. Choramos. Sensíveis à

flor da pele, mas também nas profundezas da alma. Foi triste nos separar. Olhos atentos,

vibrantes a pedir para que eu ficasse. Volta professora! Agora não vamos mais fazer tudo

isso? Professora vem depois das férias? Promete? Tudo isso cortava a alma. A sensibilidade

de todos parecia anunciar que tudo terminaria neste dia. Um aperto em cada um, em que o

afago dos corpos transformava naquele instante uma nova viagem. Agora, cada um em sua

rota. Sentia-se neste momento culpada por ter ocupado ou invadido um espaço para investigar

aquilo que a escola negava para aquelas crianças, participantes da pesquisa. Entretanto,

levava-se a certeza de que algo na escola mudou, mudou também na pesquisadora e nas

crianças.

Nesta direção começa-se a tecer algumas considerações frente à pesquisa realizada,

tendo em vista os objetivos e as questões de pesquisa, ainda que sensivelmente afetada pela

convivência investigada e afetando as crianças pela presença/ausência na hora de rever e tecer

algumas questões:

Conhecer o percurso criativo das poéticas visuais, num processo sempre em

construção pelas crianças, não teria sentido se não houvesse proporcionado o tempo e o

espaço para as experiências em ação poética, detectando, no percurso da pesquisa, todas as

metamorfoses expressivas que iam se engendrando, sem dissociar os encontros dos afetos na

educação do sensível. Criar em arte é tão envolvente que se perdia o freio do tempo no

instante do trabalho operante, o cotidiano que se reproduzia na vida de todos.

A escola e o professor, ainda que com formação privilegiada, colocavam as poéticas

em planos secundários pois, pela primeira vez estas crianças se envolveram em poéticas e

ainda não vivenciaram na escola e na sala de aula o tempo possível para seu envolvimento

com a ação criativa e imaginativa, frente às experiências artísticas/poéticas; e, muito menos,

do saber e construir espaços alternativos para a criação. O que a pesquisa pontuou foi que é

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141

possível abrir espaços físicos e espaços alternativos abertos e não apenas os

institucionalizados burocraticamente (sala de aula), para que a criança, de fato, tenha a

oportunidade de criar com liberdade, imaginação e cognição em suas experienciAÇÕES

poéticas.

Infere-se ainda que o espaço, que se constitui nas possibilidades criativas em

ambientes alternativos, inexistia na ação educativa da professora, pois cinqüenta e três (53)

dias de observação permitem afirmar que a arte e as poéticas visuais expressivas eram

ausentes na sala de aula. Da mesma forma, o tempo do instante criador era negado, ou melhor,

ocultado. O que podemos inferir é que as crianças, cheias de imaginação, fantasia,

experiências vividas e marcadas pelas suas histórias, eram negligenciadas no cotidiano de sala

de aula. Assim, o tempo e o espaço se constituíam apenas ou predominantemente sob a visão

da racionalidade instrumental, pois as disciplinas ditas duras é que sustentavam as práticas

educativas da professora, enquanto que a experiência da arte e seu tempo e espaço eram

negados.

Portanto, construir poéticas visuais foi uma possibilidade envolvente e envolvedora

dos participantes. Enquanto pesquisadora, estava-se atenta às relações entre o percurso de

criação que foi altamente processado em sua forma operante nas poéticas visuais pelas

crianças, umas manifestando no plano da expressão plástica, minado de processos afetivos e

sensíveis ritmados permanentemente e continuamente no corpo sensível, sem dissociar-se em

momentos de cognição/sensibilidade, mas num envolver-se por um corpo que é vital.

As análises dão visibilidade aos percursos criativos experenciados nas poéticas visuais

em construção, gerando instantes e espaços diversos de metamorfoses expressivas criativas,

onde o sonho, o imaginário, a realidade, a sensibilidade e as reflexões eram um todo em

construção, materializados na produção poética.

Pode-se ainda destacar que, enquanto pesquisadora, houve o envolvimento em

investigar as metamorfoses com as crianças, num existir compartilhado, não havendo um

distanciamento de quem investiga e de quem produz sendo, portanto, pesquisador e

pesquisados uma via de mão única.

Assim, os espaços e tempos das poéticas e de suas metamorfoses são o tempo da

criança e seus percursos autorais na criação e produção poética, às vezes silencioso, mas

sempre ritmado pelo corpo, através das marcas que as crianças imprimiam na matéria.

O estudo sobre a dimensão poética da arte fez compreender o quanto podemos nos

retificar com as crianças quando nos dispomos, com elas, a investigar o mundo para re-

aprender a eterna novidade contida nos detalhes, nas íntimas coisas que amplificam o existir

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142

compartilhado. As experiências vivenciadas não implicaram apenas e explorar, mas conseguir

transfigurar o vivido no ato de transformar em marcas e figurações, em algo que queremos

compartilhar, tomando outras dimensões, dando outro curso as coisas. No entanto, nesse

processo investigativo, houve aprendizagens enquanto repertórios de um corpo sensível

constituído (multi) temporalmente com outros no mundo.

Convém também ressaltar a beleza do processo criativo, as condições ímpares que

foram oferecidas na espontaneidade, na sensibilidade, na cumplicidade do gesto criador

inacabado e na construção de poéticas visuais tão únicas e significativas, as quais assumiram

um papel de intenso valor na transformação do cotidiano do com-viver.

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