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PREFÁCIO Habitar Humano (Portugues)

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Prefácio ao libro de Humberto Maturana y Ximena Dávila: Habitar Humano em seis enaios de Biología-Cultural. 2009.

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PREFÁCIO

Este livro fala do fim de uma era e do avistamento das fronteiras de uma nova. Uma nova era que não é uma invenção dos autores, muito pelo contrário, dado que os sinais da aproximação de sua chegada surgem com facilidade ao olhar o presente cultural que vivemos em praticamente todo o nosso planeta. De fato, existe hoje uma consciência generalizada que surge e se amplia de ver, sentir e ser parte da dor e sofrimento manifesto no mundo humano e natural que vivemos. Consciência que surge com mais força ainda ao ver que nós mesmos temos gerado e conservado o mal-estar que nos aprisiona.

Boa parte, então, da riqueza deste livro radica em nos mostrar como somos, como temos sido, como nos temos enredado no histórico-cultural e no pessoal, e como podemos liberar-nos também a partir do pessoal e da deriva histórica que temos vivido enquanto humanidade. E faz isto num convite reflexivo profundo que ressoa em nossso viver cotidiano, fazendo isto além do mais sempre de um modo que na leitura possibilita constatar que tudo o que é distinguido sempre tem a ver com cada um de nós, devolvendo-nos, assim, a possibilidade da responsabilidade pelo próprio mundo que cada qual gera com seu viver e conviver, para daí, na conservação de um fazer ético, devolver-nos a possiblidade de ser livres.

Cabe também dizer que o livro que o leitor tem nas mãos alcança uma especial importância em dois âmbitos fundamentais. É relevante no espaço social, porque entrega divulgação científica de primeira mão ao recolher os diversos ensaios que o compõem, distinções fundamentais sobre a natureza humana tanto no aspecto biológico como no cultural, de um modo que convida a ver e constatar nas diversas dimensões do viver e conviver cotidiano as consequências deste entendimento a respeito de como é que somos como somos enquanto seres humanos e seres vivos.

Por outro lado, também é importante no espaço do afazer do próprio Instituto Matríztico co-fundado pelos autores, já que constitui, após oito anos de reflexão, investigação e práxis, o primeiro livro que esta instituição publica e que relata uma história que entrelaça a arte e a ciência do viver e conviver humano, como um trabalho reflexivo-operativo que tem seu fundamento na explicação biológico-cultural da existência humana da qual se toma consciência no livro em diversas dimensões, de modo rigoroso e extenso.

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No ensaio As Eras Psíquicas da Humanidade se projeta com grande potência reflexiva o convite que nos é feito a lançar um olhar sobre nossa história de transformações culturais a partir do suceder de nossos espaços ou dinâmicas emocionais e de sentires relacionais íntimos que guiam tais transformações num sentido ou noutro. Uma evocação histórica que vivemos como válida a partir da experiência de nossas próprias histórias individuais nas quais tais transformações podem ocorrer na conservação de nossos sentires relacionais configurando os diferentes nichos psíquicos que de fato vivemos em nossa existência.

Neste ensaio nos reconhecemos como comunidade humana global a começar de nossa localidade pessoal e entendemos que é neste jogo sistêmico entre nossa condição individual e social que repousa a gênese das transformações culturais e sociais que temos vivido e vivemos em nosso presente. Não se trata, pois, de fazer uma mera inspeção histórica linear, e sim, de entender a circularidade de nossa existência humana e cósmica através de um olhar que nos leva, em última instância, a nos perguntar o que desejamos conservar em nosso viver, conscientes de que tudo o mais pode mudar em torno disso.

O texto Biologia do Tao: O Caminho do Amar é uma obra excepcional onde a ciência e a experiência mística despidas de todo dogma se dão as mãos num ato reflexivo cuja potência radica em mostrar o indizível (o Tao) como algo básico em nossa experiência humana cotidiana, para mostrá-lo desde as coerências dessa mesma vida cotidiana nas experiências do viver que se entrelaçam para explicar o viver. E ao fazer isso, traz à baila tanto a origem cultural de toda dor e sofrimento, como a saída deles, através do desapego reflexivo que constitui o Caminho do Amar na Biologia do Amar.

É, além disso, um texto em que ecoa o transitar cultural que estamos vivendo em nosso planeta ao convidar a ver as diferenças culturais como diferentes orientações de nosso viver guiadas por nosso sentir e pela maneira como vivemos nosso viver. Convida, assim, a soltar a certeza de querer passar por cima do viver na cegueira de não ver que não vemos, crendo que o que vemos é o que é. E a encontrar-nos, então, com o fato de que o sentido de nosso viver é um não ser de todo ser no fazer que acontece em cada momento.

O ensaio sobre As Leis Sistêmicas e Meta-sistêmicas constitui, num corpo multidimensionalmente denso e sintético, uma impressionante abstração sistêmica recursiva das regularidades e coerências experienciais mais gerais

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do viver e conviver humano, cuja presença e pertinência é constatável em cada âmbito da corporalidade e do habitar humano.

Se a constituição de um país é formada pelas abstrações fundamentais que orientam os propósitos de conviência e o projeto-país que guia a deriva de uma comunidade nacional qualquer, as Leis Sistêmicas e Meta-sistêmicas, por seu lado, se constituem de abstrações fundamentais do viver e conviver humano que podem ajudar a orientar o modo de vida implicado no convite à comprensão dos fundamentos biológico-culturais de nossa natureza humana. Por conseguinte, é um escrito fundante em relação à possibilidade de gerar uma plataforma epistemológica e operacional em nível planetário a partir de onde seria possível a práxis da unidade social em escala humana se assim desejássemos.

A seguir deparamos com um ensaio Reflexões sobre Terapia e Minhas Conversções com Ximena Dávila sobre a Liberação da Dor Cultural, que convida todas as pessoas honestamente interessadas na dor humana a considerar através da reflexão que o afazer das conversações liberadoras revela aos olhos de um observador as dinâmicas relacionais e operacionais que de fato estão em jogo nas diferentes conversações orientadas para a cura ou dissol\ução da dor e do sofrimento.

E este convite não é ingênuo, embora requeira candura para ser escutado: é na Biologia do Amar que devemos buscar a resposta, Biologia do Amar que durante milhões de anos nos acompanhou em nosso transitar humano, surgindo como a base fundamental de nossa arquitetura dinâmica humana e ecológica natural. Daí sua potência curativa e liberadora.

No ensaio sobre a Matriz Biológica Cultural da Existência Humana e o Conversar Liberador se alcança, por outro lado, uma profundidade tal, que dança entre a cotidianidade do viver e nossa cofiguração histórica enquanto a classe de seres que somos, convidando-nos com audácia a reconhecer que vivemos um presente cultural em que não são nada triviais as perguntas que nos fazemos e os caminhos que escolhemos para buscar respostas a elas. Convida-nos a tomarmos consciência de que toda dor para que se pede ajuda relacional sempre é de origem cultural.

E nos propõe com rigor e desenvoltura uma reflexão a partir do suceder da dor que nos pode liberar das armadilhas culturais que vivemos, se nos apercebermos de que nosso viver se entrelaça com o cosmos que habitamos,

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ao nos encontrarmos respeitando a nós mesmos, o outro, a outra e o Outro, desde o aceitar a legitimidade do suceder espontâneo de nossa existência humana e do curso que segue, orientada por nossos desejos, ganas e preferências, como dinâmicas relacionais operacioinais que abrem ou ampliam o bem-estar em nosso viver e conviver. Convida-nos, em última análise, a nos darmos conta de que o que está em jogo é o habitar biológico-cultural de nossos filhos e filhas e dos filhos e filhas deles e delas, no surgimento de uma linhagem ética natural que nos guie para uma nova era psíquica de co-inspiração e colaboração.

Por último, podemos apreciar no ensaio Sistemas Dinâmicos Fechados uma rigorosa reflexão sobre nossa arquitetura dinâmica como seres vivos e sobre como, desde nossa condição de observadores no observar, não é de modo algum trivial de onde olhamos e compreendemos os fenômenos biológicos e sua relação gerativa do sentir relacional que surge no viver e conviver.

Contribui este ensaio a entender de maneira completa as diferentes dimensionalidades envolvidas no reflexionar sobre nossos fundamentos biológico-culturais, e a compreender a maravilhosa dança de vaivém entre o suceder do viver e o suceder do conviver que já tivera início aí por volta de quatro mil milhões de anos e da qual somos seu presente cambiante.

Sem dúvida, todos e cada um destes ensaios evocam diferentes dimensões de nosso habitar humano. E embora sua leitura possa não ser simples, podemos reconhecer em cada um dos textos uma profunda reflexão que repercute em nosso viver cotidiano a partir das perguntas que nos fizemos alguma vez, seja desde a curiosidade, seja desde a dor de nosso viver.

É responsável dizer que existe uma dificuldade epistemológico-cultural ao se chegar próximo de um pensar-escrever e ler-circular como o que todos e cada um desses textos revelam. Além disso, temos certeza de que cada um escuta a partir de si, e também lê a partir de si, razão pela qual os autores são responsáveis pelo que dizem ao escrever, não, porém, pelo que o leitor escuta em sua leitura. Não obstante, na medida em que estes textos correspondem a uma dinâmica reflexiva que como tal implica aceitar a legitimidade de toda circunstância objeto da observação rflexiva, é um convite a ser entendida por toda e qualquer pessoa que estiver dispost a a ver e considerar a partir de sua própria autonomia reflexiva os critérios a partir dos quais se diz o que se diz neste livro.

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Neste sentido, este livro, o primeiro de uma coleção que o Instituto Matríztico oferece à comunidade, se propõe a convidar a olhar desde nossas próprias experiências cotidianas, sem teorias explicativas, os mundos que geramos em nosso habitar os diversos viveres que vivemos. Vale a pena enfatizar que este convite é também um convite a não acreditar que estes ensaios podem ser lidos pensando que a biologia-cutural surge como um construto linear a partir de seus fundamentos na biologia do conhecer e na biologia do amar. A expressão biologia-cutural intenciona designar e evocar a dinâmica sistêmica recursiva do conviver que dá origem, realiza e conserva nosso viver humano, e só é compreensível a partir de um olhar que toma a si o entrelaçamento constitutivo da dinâmica biológica e da dinâmica cultural que faz a unidade do existir humano.

A partir do giro epistemológico que realiza aquele que distingue a biologia-cultural, inclusive se pode compreender como as principais reflexões que tais domínios trazem consigo podem ter sido mal entendidas ou distorcidas a partir dos habitares particulares dos que porventura acreditaram ver nelas tanto o fundamento de suas próprias proposições ou compreensões, como dos que acreditaram ver em suas palavras incoerências e contradições que são vistas e entendidas a partir de matrizes compreensivas alheias à geração dos critérios de validade dos quais surgem os convites fundamentais que contém.

Por isso esperamos que este primeiro livro que o Instituto Matríztico oferece às pessoas que desejem reflexionar sobre os fundamentos biológico-culturais de seu operar como seres humanos, constitua em sua consciência uma preparação da boa terra psíquica em que hão de cair as sementes reflexivas que aparecem ao se olhar a dinâmica de nosso viver biológico-cultural. Ainda mais, este livro que o leitor ou leitora tem entre as mãos oferece um olhar sistêmico recursivo que convida quem tiver reflexionado sobre as distintas dimensões de seu viver biológico-cultural, a re-considerar sua compreensão do viver humano assumindo os aspectos éticos que a consciência de habitar numa cultura patriarcal-matriarcal como a que habitamos em nosso viver e conviver atual faz surgir. Coisa que nos parece haverá de ocorrer com os que estiverem dispostos a mudar em seu viver a pergunta sobre o ser pela pergunta sobre o fazer.

Nesta era psíquica pós-moderna em que o apego à valorização da ciência, do conhecimento e da tecnologia nos levou a crer que podemos

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conseguir tudo o que desejamos se respeitarmos as coerências operacionais implicadas por esses desejos, vamos percebendo que as consequências de nosso modo de viver estão gerando mais dor e sofrimento do que desejamos ou podemos acdeitar.

Uma tíbia consciência ética começou a despertar nos corações e mentes das pessoas ao redor do mundo. E é uma consciência que parece surgir sobre o caminho percorrido por outras tantas pessoas, em outras tantas comunidades, algumas atuais, algumas ancestrais, orientadas todas elas pelo bem-estar que surge de nossa condição de homo sapiens-amans-amans.

É assim que, neste presente cultural de transição para uma nova era psíquica da humanidade pós-pós-moderna, que parece surgir uma matriz cultural que como rede de conversações gera uma consciência ética natural que pode abrir as portas para um viver humano que possa recuperar ou alcançar o viver em um habitar que surgirá como uma nova arquitetura dinâmica humana e ecológica pelo conservar em nosso viver e conviver uma consciência reflexiva recursiva ou sistêmica-sistêmica.

Patrício García Ascenci Ignacio Muñoz Cristi

Instituto MatrízticoSantiago de Chile

2008

Traduçao: Edson Cabral