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dor partilhadaA DOR NUNCA É FÁCIL E QUANDO ATINGE UMA CRIANÇA TORNA-SE
ESPECIALMENTE DOLOROSA. PARA QUEM É VÍTIMA E PARA QUEM A TESTEMUNHA.
PERCEBER DE QUE FORMA É SENTIDA, COMUNICADA E GERIDA É MEIO CAMINHO
ANDADO PARA AJUDAR.
Texto de Elsa Páscoa Fotografia de Pedro Lopes
depois... e depois... e depois... eu ia a
correr e o canteiro das flores apareceu. . .
e depois. . . depois. . .»
«Depois, pumba! O canteiro pregou-teuma rasteira, tu caíste e só paraste quando a cabeça bateu
com toda a força no cimento. Foi ou não foi?»«Foi!»
«Raça do canteiro, para o que lhe havia de dar!»Lá fora, uma tarde abrasadora quem nem parece de outo-
no lança raios de Sol nas salas de espera das urgências de
pediatria do Hospital da Luz, em Lisboa. Gustavo é um dos
meninos que aguarda para ser atendido. E nem o golpe quetem na testa diminui o entusiasmo com que fala. De vez em
quando, o pai, preocupado com a exuberância de quem temum enorme galo na testa, tenta colocar água na fervura.«Gustavo, atenção, calma, não te estiques...» Mas o meni-no só quer explicar a situação ao primeiro médico que lhe
apareceu à frente desde que chegou: o dr. Giraço.Não é um 'doutor' qualquer. Tem uma touca branca às
pintinhas, um relógio cor-de-laranja em forma de botão e
um nariz grande e encarnado. Depois, logo que chega pedepara ver as «amigas» da garganta e saca de uma lupa. E nem
saúde
se preocupa em escrever nada ou a passar receitas. Ao seu
lado está a dr. a Rita Catita. Também ela foge ao habitual,com a sua bandolete de pompons e espanador à laia de este-
toscópio. E também ela quer ver as «amigas» - para os mais
distraídos, as amígdalas - a uma menina acabrunhada, quenão só não larga as mãos do pai e da mãe como nem sequer
quer dizer o nome. «Ela está um bocadinho aflita. . .», diz a
mãe, com um olhar preocupado. «Não faz mal, não somos
os únicos 'dótores' daqui. Daqui a nada vai estar boa. Boa
não, muito boa!»
Pois é. Pergunte-se a qualquer mãe ou pai qual é a situaçãomais angustiante em que imaginam os filhos e a respostaarrisca-se a ser unânime: sofrimento e dor. E se apenas a
perspetiva perturba, quando todos os receios se tornam reais,
a aflição multiplica-se por dez, cem, mil. Se, tantas e tantas
vezes, não está no poder dos pais aliviarem os filhos da formaimediata que desejam, perceber a experiência da dor, ou seja,de que forma é vivida, comunicada e gerida pode ser uma
ajuda preciosa para quem sofre e para a família.«A dor infantil põe à prova a competência emocional dos
pais. Eles têm de reconhecer, em primeiro lugar, que são o
elo entre o seu filho e o mundo em todas as circunstâncias e
a circunstância do sofrimento não é exceção», afirma a psicó-
loga clínica Cristina Catana, especialista da Unidade da Dordo Hospital Garcia de Orta, em Almada. «Para além disso,
a dor não pode ser considerada nunca uma inevitabilidade e
há que aceitar que circunstâncias diferentes levam a reaçõesdiferentes. E não existe ninguém mais competente para 'ler'essas atitudes da criança que os adultos mais próximos.»
PARENTE POBRENas últimas duas décadas, a dor - crónica ou aguda - nos
adultos tem vindo a conquistar o interesse de médicos e
investigadores e, desde 2003, é mesmo classificada como o
«quinto sinal vital» a que os profissionais de saúde devem
prestar especial atenção aquando de um processo de diagnós-tico. Ou seja, a dor deixou de ser entendida apenas como umsinal ligado a uma qualquer patologia (e que seria afastado
quando a cura acontecesse) mas sim como uma doença em si
mesma, em especial quando tem características crónicas.No entanto, refere Cristina Catana, o mesmo ainda não
acontece com a dor pediátrica. «Criou-se o mito de que a
criança não tem o mesmo limiar de dor que o adulto e quenão sabe relatar de forma eficaz o que sente e a intensidade do
que sente. Mais. Acreditou-se durante muito tempo que esta
experiência, especialmente em idades precoces, não deixava
recordações. Isso não é verdade. Não só fica registada como
pode ter consequências não só no desenvolvimento futuroda criança como nas dinâmicas familiares.»
«Criou-se o mito de que a criançanão tem o mesmo limiar de dor
que o adulto. Isso não é verdade»,afirma a psicóloga Cristina Catana.
Recentemente, o Grupo de Interesse sobre a Dor Pediátricada Associação Internacional para o Estudo da Dor publicouuma carta de princípios em que coloca a tónica nas especi-ficidades do sofrimento físico nas crianças. «A dor experi-mentada cedo pode causar efeitos profundos e duradouros
no desenvolvimento físico e social e alterações no sistema
nervoso que afetam a capacidade posterior de gerir estados
dolorosos». Para além disso, defende o mesmo organismo,«quando as crianças sofrem, o mesmo acontece aos pais,restante família e cuidadores», com destaque para as situa-
ções crónicas. Desta forma «os profissionais de saúde devemreceber formação sobre avaliação e gestão da dor pediátricae aplicarem técnicas específicas para estes pacientes», em
prol de presente mais facilitado e um futuro mais sólido.
Por tudo isto, torna-se essencial «quebrar o círculo vicioso
da menorização da dor infantil - que muitos adultos usam
como mecanismo de defesa contra uma alegada incompetên-cia para ajudar quem mais amam - e aliviar a culpabilidadeda família», considera Cristina Catana. O círculo só se
desfaz, acrescenta «com um trabalho em conjunto dos paise dos profissionais de saúde que promova segurança nos
primeiros e lhes permita passar essa segurança aos filhos.
O pai e a mãe fazem parte da equipa anti-álgica (anti-dor)em todas as circunstâncias».
REMÉDIOS A RIRO dr. Giraço e a dr. a Rita Catita fazem parte dos «Curativos
de Humor», um grupo ultra-especializado em risos, balões,
cócegas, piadas e nonsense. São doutores-palhaços que, desde
há meses, visitam regularmente os serviços pediátricos de
urgência, internamento e ambulatório do Hospital da Luz
para tentar levar algum alívio às crianças que estão a passarum mau bocado e, à boleia, diminuir a ansiedade dos adultos
que as acompanham. Quando despe a roupa de palhaço e
desfaz a maquilhagem, o dr. Giraço transforma-se no ani-mador Alberto Brito, que criou os Curativos a pensar não
apenas nas crianças, mas também nos pais. «O facto de irmos
ao hospital propositadamente para brincar com as famílias,faz com que estas se sintam acarinhadas. Há alguém que se
lembra deles quando estão doentes e isso é reconfortante,
pois estão numa fase muito mais fragilizada.»
Na sala de espera do serviço ambulatório, Mafalda empurrao carrinho da filha, Sofia, que acabou de ter alta médica
para uma questão respiratória que durava há mais de meio
ano, com internamentos e intervenções à mistura. Os 'dó-
tores' aproximam-se da menina de dois anos que, primeiroestranha e depois abre um sorriso aberto, à semelhança damãe. «É a primeira vez na última semana que me apetecerir e os culpados são vocês!» «Es culpada, és culpada? Eu
cá não sou culpado de nada!», guincha o dr. Giraço para a
'colega', enquanto mãe e filha continuam a sorrir: «já nos
fizeram ganhar o dia, obrigada», despede-se Mafalda, a
caminho de casa.
BRINCAR A DOERParte da dificuldade de enfrentar a dor pediátrica baseia-
se nas mensagens aparentemente contraditórias emitidas
pela criança. «Elas podem dormir, estar calmas ou mesmobrincar ao mesmo tempo que passam por sofrimento signifi-cativo, que assim não é identificado», pode ler-se no mesmodocumento da Associação Internacional para o Estudo da
Dor. A análise fica muito mais difícil nos casos em que a
criança ainda não tem ferramentas verbais para exteriorizaro que está a sentir e como reage às intervenções clínicas e
tratamentos que causam dor (ver caixa).Mais uma vez, a família torna-se um fator determinante
para incrementar a comunicação. «Todas as mães conhecem
os vários choros e posturas corporais dos seus filhos e sabem
que o afeto e o tato são das melhores medidas anti-álgicas queexistem», recorda Cristina Catana. «Muito frequentemente,é difícil para os adultos enfrentar o cenário de dor — tanto
a própria como a alheia — mas vale a pena procurar fazê-10.
Quando isso acontece e a força é transmitida para a crian-
ça, abrem-se novos caminhos que ajudam toda a família aenfrentar esta dificuldade», frisa a psicóloga clínica.
Outro desafio que se coloca às famílias e aos profissio-nais de saúde diz respeito à forma como a criança utilizaas experiências prévias ou as expectativas. «No processode desenvolvimento físico, mental e emocional, o corpo é
um dos lugares privilegiados do imaginário. Assim, tudo o
Uma frase como «o meu bebé tem
dói-dói, eu sei. A mãe (pais) está
aqui e pediu ajuda», pode fazer toda
a diferença.
que lhe diga respeito é muito importante», adianta CristinaCatana. Perante um cenário de internamento ou de interven-
ções invasivas é de esperar que a criança imagine o que lheirá acontecer e ter medo de sofrer, tal como todos nós. «Aexperiência da dor é uma aprendizagem feita com os adultosde referência. Se estes não a gerirem com tranquilidade, pior,se adotarem um tipo de comunicação paradoxal, a criança emcausa vão experimentar mais dor do que outra nas mesmascircunstâncias.» Mas o que é a comunicação paradoxal?«Por exemplo, dizer que a agulha não dói nada e mostrarsinais de angústia quando ela vai ser utilizada e acaba porcausar dor. Ou garantir que os dias de internamento vão
passar num instante e desabafar mais tarde que nunca mais
acabam», pormenoriza.Para a psicóloga clínica, muitas instituições e equipas de
saúde continuam a «repetir os modelos clínicos em que a
criança não é ouvida» o que, muitas vezes, leva a que esta
«tenha de aumentar os decibéis para fazer valer a sua opiniãoe para participar no processo». Tudo isto faz aumentar os
«níveis de ansiedade, tanto no momento como por anteci-
pação, nos casos de tratamentos invasivos ou intervençõescirúrgicas». Nesses momentos, dizer uma frase aparente-
mente tão simples como «o meu bebé tem dói-dói, eu sei.
A mãe (ou o pai) está aqui e pediu ajuda ao senhor doutor e
às senhoras enfermeiras. Elas vão ajudar-nos», pode fazertoda a diferença.
Mais do que fingir que nada de incomum e assustador se
passa ou vai passar com a criança, o importante é ajudar a
preparar a experiência e explicar o que está a acontecer, à
medida que acontece. «A criança com dor sente-se diferentedas outras e pode mesmo achar que está a ser castigada. Há
que combater esses sentimentos com tranquilidade e tentar
equipar esta experiência à vida quotidiana. Por exemplo,classificando as sensações físicas como 'formigueiros' ou
'ardor', algo que que ela conhece previamente e que a po-derá ajudar a enfrentar e ultrapassar esta situação», concluiCristina Catana. ¦