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PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial MAURÍCIO ZANOIDE DE MORAES PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial

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PRESUNO DE INOCNCIA

NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: anlise de sua estrutura normativa

para a elaborao legislativa

e para a deciso judicial

MAURCIO ZANOIDE DE MORAES

PRESUNO DE INOCNCIA

NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: anlise de sua estrutura normativa

para a elaborao legislativa

e para a deciso judicial

EDITORA LUMEN JURIS

Rio de Janeiro

2010 Copyright 2010 Maurcio Zanoide de Moraes

Categoria: Direito Processual Penal e Constitucional

PRODUO EDITORIAL

Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.

no se responsabiliza pela originalidade desta obra

e pelas opinies nela manifestadas por seu Autor.

proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer

meio ou processo, inclusive quanto s caractersticas

grficas e/ou editoriais. A violao de direitos autorais

constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei no 6.895,

de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreenso e

indenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

Todos os direitos desta edio reservados

Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil

Printed in Brazil Sumrio

Apresentao ......................................................................................................... xiii

Prefcio .................................................................................................................. xvii

Introduo.............................................................................................................. xxi

Captulo I Inexistncia de presuno de inocncia at sua inscrio na De-

clarao dos Direitos do Homem e do Cidado ........................................... 1

1.1. Consideraes iniciais: a imprescindibilidade da reconstruo histrica no

estudo da presuno de inocncia ................................................................ 1

1.2. Direito Romano ............................................................................................ 2

1.2.1. Perodo Comicial ................................................................................ 5

1.2.1.1. (segue): procedimento da cognitio ....................................... 5

1.2.1.2. (segue): o procedimento da anquisitio ................................. 9

1.2.2. Perodo Acusatrio: quaestiones perpetuae.................................... 12

1.2.3. Perodo Imperial: cognitio extra ordinem ...................................... 17

1.2.3.1. -(segue): reconstruo de um modelo inquisitivo baseado na

presuno de culpa ............................................................................... 19

1.2.3.1.1. (segue): priso provisria como pena antecipada .... 20

1.2.3.1.2. -(segue): insero da tortura como meio de obteno

da verdade e os poderes instrutrios do juiz ........................ 25

1.2.3.2. -Exigncia de fundamentao das decises: sua incipiente uti-

lizao como forma de mitigar os rigores da presuno de

culpa ...................................................................................................... 26

1.2.3.3. -(segue): disposies mitigadoras dos excessos repressivos do

sistema inquisitivo da cognitio extra ordinem ................................. 28

1.2.3.3.1. -(segue): preceitos romanos para se julgar em favor

do ru ........................................................................................ 29

1.2.3.3.2. -(segue): preceitos romanos para se julgar em favor

da liberdade .............................................................................. 33

1.2.3.3.3. (segue): preceitos romanos sobre nus da prova ..... 35

1.2.4. -Direito romano e presuno de inocncia: razes para uma impos-

svel convivncia .......................................................................................... 38

1.3. Direito na Alta Idade Mdia: aspectos processuais penais no direito br-

baro ............................................................................................................... 39

1.3.1. (segue): as ordlias e a presuno de culpa ........................................ 41

1.3.2. (segue): inexistncia de presuno de inocncia ............................... 47

1.4. Direito na Baixa Idade Mdia:149 a Inquisio ........................................... 47

1.4.1. -Inquisio: aspectos processuais penais relevantes ao tema da pre-

suno de inocncia ...................................................................................... 52

1.4.1.1. -A presuno de culpa inerente ao sistema inquisitivo can-

nico-romano ......................................................................................... 52

1.4.1.1.1. (segue): nus da prova e momento decisrio .......... 59

1.4.1.1.2. -(segue): priso provisria como pena antecipada e

como forma de transferncia de bens ...................................... 61

1.4.1.2. A lgica inquisitiva na busca da prova: prova legal e tortura 63

1.4.3. -Inexistncia de presuno de inocncia no modelo processual da Inquisio

....................................................................................................................... 68

1.5. Iluminismo: revoluo proporcionada pela inscrio legal da presuno

de inocncia ................................................................................................ 69

1.5.1. -Contexto socioeconmico propiciador das mudanas poltico-filo-

sficas ............................................................................................................ 73

1.5.2. Reflexos das idias iluministas no sistema criminal .......................... 75

1.5.3. -Incluso da presuno de inocncia na Declarao dos Direitos do Homem e do

Cidado (1789): revoluo processual penal ................................................ 77

1.5.3.1. Caractersticas do procedimento penal revolucionrio francs 80

1.5.4. -Presuno de inocncia: etimologia e razes poltico-filosficas

para a escolha da expresso na Revoluo Francesa ................................... 82

1.5.4.1. -Presuno: etimologia e uso jurdico do termo at o ilumi-

nismo ..................................................................................................... 83

1.5.4.2. -Inocncia: etimologia e proximidade com a concepo ilu-

minista de igualdade ............................................................................. 87

1.5.4.3. -Presuno de inocncia: razes poltico-filosficas e conse-

qncias jurdicas da escolha revolucionria ....................................... 90

Captulo II Razes para a eliminao da presuno de inocncia: da fase na-polenica ps-

iluminista promulgao do Cdigo de Processo Penal bra-

sileiro de 1941 ............................................................................................... 95

2.1. Consideraes iniciais .................................................................................. 95

2.2. Obstculos presuno de inocncia na Frana ps-iluminista ................. 99

2.2.1. -Guerras napolenicas: razes para a reverso do iderio iluminista

nas legislaes criminais europias .............................................................. 99

2.2.2. Surge o procedimento penal misto napolenico ............................... 102

2.3. Escola Positiva: a defesa social volta ao centro do processo penal ............. 106

2.3.1. -Breves consideraes sobre os fundamentos da Escola Positiva: co-

tejamento com a Escola Clssica .................................................................. 108

2.3.2. -Escola Positiva: rejeio da presuno de inocncia e do in dubio

pro reo .......................................................................................................... 113

2.4. Escola Tcnico-Jurdica italiana: sua influncia na formao dos cdigos

processuais penais italianos de 1913 e de 1930 ........................................... 117

2.4.1. Recrudescimento poltico italiano do incio do sculo XX ............... 118

2.4.2. Escola Tcnico-Jurdica: uso poltico do processo penal ................... 120

2.4.3. --Caractersticas do procedimento penal misto italiano de 1913 e sua tendncia

poltico-legislativa ........................................................................................ 123

2.4.3.1. -Escola Tcnico-Jurdica: rejeio da presuno de inocncia

e criao da presuno de no culpabilidade .................................... 125

2.4.4. -Recrudescimento jurdico do Cdigo de Processo Penal italiano de

1930 ............................................................................................................... 130

2.4.5. -Escola Tcnico-Jurdica: influncias sofridas da Scuola Positiva

para a rejeio da presuno de inocncia ................................................... 132

2.4.6. Aceitao do in dubio pro reo pela Escola Tcnico-Jurdica ......... 137

2.4.7. -Revelao e desconstruo dos fundamentos da crtica da Escola

Tcnico-Jurdica italiana presuno de inocncia .................................... 140

2.4.7.1. -(segue): a ideologia nazifascista sob a crtica tcnico-jurdica

do termo presuno ........................................................................... 142

2.4.7.2. -(segue): ao se negar a presuno de inocncia resta apenas

a presuno de culpa, no a presuno de no culpabili-

dade ...................................................................................................... 146

2.4.7.3. -(segue): do erro no argumento da absolutizao da presun-

o de inocncia .................................................................................... 152

2.5. Escola Tcnico-Jurdica italiana e Cdigo de Processo Penal italiano de

1930: influncias na formao do atual Cdigo de Processo Penal brasi-

leiro de 1941 ................................................................................................. 155

2.5.1. -Estado Novo: contexto poltico propcio para a reformulao da le-

gislao processual penal brasileira sob os influxos positivistas ................. 156

2.5.2. -Atual Cdigo de Processo Penal brasileiro: as influncias doutrin-

ria e legislativa do positivismo italiano reveladoras da rejeio da

presuno de inocncia ................................................................................ 157

2.5.2.1. -(segue): fase investigativa preliminar na forma inquisitiva

pura ....................................................................................................... 160

2.5.2.2. -(segue): a priso provisria obrigatria e o uso da expresso

ordem pblica .................................................................................... 162

2.5.2.3. (segue): interrogatrio e confisso .......................................... 166

2.5.2.4. -(segue): amplos poderes investigatrios judiciais e absolvio

por insuficincia de prova para condenar............................................ 168

Captulo III Presuno de Inocncia como Direito Fundamental .................... 173

3.1. Consideraes iniciais .................................................................................. 173

3.2. Sofrer para compreender: a Declarao Universal dos Direitos do Ho-

mem como fonte moderna da Presuno de Inocncia .............................. 174

3.3. Sistema internacional de proteo aos direitos humanos: importncia, ex-

tenso e fora vinculante.............................................................................. 179

3.3.1. -International Bill of Rights e Conveno Americana sobre Direi- tos Humanos: sistemas global e regional de proteo aos direitos

humanos ........................................................................................................ 182

3.3.2. -Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos e a Conveno Americana sobre

Direitos Humanos: mecanismos de vinculao dos Estados-partes aos direitos humanos neles

previstos ........................................................................................................ 184

3.4. Atual Constituio da Repblica e a insero dos direitos humanos inter-

nacionalmente consagrados ......................................................................... 187

3.4.1. -Revoluo Militar de 1964 como antecedente poltico interno moti-

vador da incorporao dos direitos humanos pela atual Constituio ....... 188

3.5. Estado democrtico de direito e dignidade da pessoa humana como fun-

damento da Constituio .............................................................................. 192

3.5.1. Estado Democrtico de Direito: algumas consideraes ................... 193

3.5.1.1. (segue): o cidado como sujeito de deveres ............................ 195

3.5.2. Dignidade da pessoa humana ............................................................. 200

3.6. Direitos fundamentais como incorporao legislativa interna dos direitos humanos:

consideraes sobre algumas de suas caractersticas ................................... 205

3.6.1. (segue): universalidade ....................................................................... 207

3.6.2. (segue): irrevogabilidade .................................................................... 209

3.6.3. (segue): complementaridade e interdependncia .............................. 210

3.7. Presuno de Inocncia como direito fundamental .................................... 212

3.7.1. -(segue): norma de direito fundamental e enunciado normativo de

direito fundamental ...................................................................................... 213

3.7.1.1. -Presuno de Inocncia e No Considerao Prvia de Culpabilidade:

escolhas material e formal do constituinte

de 1988 .................................................................................................. 215

3.7.1.1.1. -Anlise gentico-sistmica dos trabalhos da Assem-

blia Nacional Constituinte de 1988 ....................................... 216

3.7.1.2. -Anlise doutrinria brasileira e suas matrizes italianas: uma

uniformizao poltico-ideolgica para a presuno de ino-

cncia .................................................................................................... 221

3.8. Decorrncias da Presuno de Inocncia como direito fundamental: di-

menso subjetiva e dimenso objetiva ......................................................... 225

3.8.1. (segue): dimenso subjetiva ................................................................ 227

3.8.1.1. -(segue): fundamentao da presuno de inocncia em inte-

resses individuais e coletivos ................................................................ 232

3.8.2. (segue): dimenso objetiva ................................................................. 240

3.8.2.1. -(segue): finalidade expansiva dos direitos fundamentais e a

presuno de inocncia em sentido amplo ....................................... 243

3.8.2.2. (segue): desdobramentos da dimenso objetiva ...................... 248

3.8.2.2.1. (segue): efeitos irradiante e horizontal .................... 249

3.8.2.2.2. (segue): dever estatal de proteo ............................ 252

3.8.2.2.3. (segue): organizao e procedimento ...................... 257

Captulo IV Contedo Essencial da Presuno de Inocncia ........................... 263

4.1. Consideraes iniciais: contedo essencial de direito fundamental e esco-

lha metodolgica .......................................................................................... 263

4.2. Contedo essencial objetivo e contedo essencial subjetivo ...................... 266

4.3. Presuno de inocncia e sua estrutura normativa de princpio ................ 269

4.3.1. -Princpios so direitos prima facie e regras so direitos defini-

tivos ............................................................................................................. 270

4.4. Suporte ftico da norma fundamental ......................................................... 274

4.4.1. (segue): suporte ftico amplo ............................................................. 278

4.4.2. mbito de proteo da norma fundamental .................................. 282

4.4.3. -Interveno estatal no mbito de proteo da norma fundamental 284

4.4.3.1. Formas de restrio .................................................................. 288

4.4.3.1.1. -(segue): inrcia estatal na conformao da norma

fundamental.............................................................................. 289

4.4.3.1.2. (segue): reserva legal e clusula restritiva ............... 291

4.4.3.1.3. (segue): contradio normativa ................................ 297

4.4.3.1.3.1. (segue): conflito entre regras .................... 298

4.4.3.1.3.2. (segue): coliso entre princpios ............... 300

4.4.3.1.3.3. (segue): coliso entre princpio e regra .... 304

4.5. Limites das restries.................................................................................... 310

4.5.1. -Proporcionalidade: consideraes relevantes para seu exame no

processo penal ............................................................................................... 310

4.5.1.1. (segue): legalidade e justificao constitucional ..................... 315

4.5.1.2. (segue): judicialidade e motivao .......................................... 320

4.5.1.3. (seque): adequao ................................................................... 323

4.5.1.4. (segue): necessidade ................................................................. 326

4.5.1.5. (segue): proporcionalidade em sentido estrito ........................ 327

4.5.2. Contedo essencial do direito fundamental ...................................... 329

4.6. Consideraes finais: contedo essencial relativo como melhor forma de

proteo aos direitos fundamentais ............................................................. 330

Captulo V .............................................................................................................. 335

5.1. Legislao infraconstitucional e deciso judicial: nveis para efetivao da

presuno de inocncia ................................................................................ 335

5.2. Razes da pouca efetividade da presuno de inocncia ......................... 336

5.3. Suporte ftico amplo da presuno de inocncia ........................................ 344

5.3.1. -Direitos fundamentais justificadores da gnese da presuno de ino-

cncia ............................................................................................................ 345

5.3.2. -Presuno de inocncia e outros direitos fundamentais processuais

penais: complementaridade e interdependncia ......................................... 349

5.3.2.1. (segue): com o direito ao prazo razovel ................................. 350

5.3.2.2. (segue): com o direito liberdade ........................................... 351

5.3.3. Suporte ftico da presuno de inocncia: finalidade e funo ........ 354

5.3.3.1. (segue): finalidade .................................................................... 355

5.3.3.2 (segue): funo .......................................................................... 358

5.4. mbito de proteo amplo da presuno de inocncia ........................... 360

5.4.1. -Presuno de inocncia como norma de orientao legislativa e

judiciria: favor rei e in dubio pro reo ................................................... 363

5.4.1.1. -Favor rei e in dubio pro reo: diferenas entre os signifi-

cados e a relao de ambos com a presuno de inocncia ................. 364

5.4.1.2. -(segue): favor rei como significado da presuno de ino-

cncia .................................................................................................... 369

5.4.1.2.1. -Favor rei na elaborao de lei processual penal e

na orientao de deciso judicial: medidas de coa-

o no processo penal ............................................................... 370

5.4.1.2.1.1. -fumus delicti commissi e periculum li- bertatis: excepcionalidade de qualquer medida coativa ............................................................. 372

5.4.1.2.1.2. -Valores constitucionais orientadores da

escolha da medida coativa mas apropriada ................. 378

5.4.1.2.1.3. -Priso provisria por motivos materiais: a

priso por ordem pblica em um novo

modelo processual penal .............................................. 382

5.4.1.2.1.4. -Requisitos cumulativos para a aceitao do

conceito de ordem pblica ....................................... 390

5.4.1.2.1.5. -Reviso peridica da deciso judicial de-

terminadora de medida de coao ............................... 398

5.4.1.2.1.6. -Direito indenizao por indevida decre-

tao de medida de coao........................................... 399

5.4.1.3. -(segue): in dubio pro reo como significado da presuno de inocncia ............................................................................................................... 402

5.4.1.3.1. -Absolvio por insuficincia de prova para conde-

nar: violao presuno de inocncia ................................... 407

5.4.1.3.2. -In dubio pro societate: violao presuno de inocncia ................................................................................... 412

5.4.1.3.2.1. -(cont.): in dubio pro reo no recebimen- to da denncia (art. 395, CPP) e sua no incidncia na absolvio

sumria (art. 397,

CPP) .............................................................................. 418

5.4.1.3.2.2. -(cont.): in dubio pro reo na deciso de pronncia (art. 413, CPP) e sua no inci-

dncia na absolvio sumria (art. 415,

CPP) .............................................................................. 421

5.4.2. -Presuno de inocncia: norma de tratamento, norma probat-

ria e norma de juzo ................................................................................. 424

5.4.2.1. Presuno de inocncia como norma de tratamento .......... 427

5.4.2.1.1. -Vedao legal de concesso de liberdade provisria:

violao constitucional j no plano abstrato da lei

processual penal ....................................................................... 428

5.4.2.1.2. -(segue): incluso do nome do condenado provisrio

no rol dos culpados ................................................................... 440

5.4.2.1.3. -(segue): priso provisria decorrente de deciso ju-

dicial recorrvel ........................................................................ 441

5.4.2.1.3.1. -(segue): linhas argumentativas violadoras

da presuno de inocncia ........................................... 448

5.4.2.2. Presuno de inocncia como norma probatria ................ 461

5.4.2.3. Presuno de inocncia como norma de juzo .................... 468

5.4.2.3.1. -Mnima atividade probatria: in dubio pro reo e

favor rei ................................................................................. 469

5.4.2.3.2. -Motivao da deciso penal: verificao das razes

de decidir .................................................................................. 476

5.4.3. Extenso objetiva e subjetiva da presuno de inocncia .............. 481

5.4.3.1. (segue): extenso subjetiva ...................................................... 481

5.4.3.2. (segue): extenso objetiva ........................................................ 490

5.4.3.2.1. (segue): na investigao preliminar ......................... 491

5.4.3.2.2. (segue): na reviso criminal ..................................... 495

5.5. Restries da presuno de inocncia....................................................... 502

5.5.1. (segue): como norma de tratamento ............................................... 503

5.5.1.1. (segue): violao pelo abuso na exposio miditica .............. 509

5.5.2. (segue): como norma probatria ..................................................... 516

5.5.2.1. (segue): restries prova constitucionalmente lcita ........... 516

5.5.2.2. -(segue): da inexistncia de inverso do nus probatrio no

atual sistema processual penal brasileiro ............................................. 519

5.5.3. (segue): como norma de juzo ......................................................... 523

5.5.3.1. (segue): confisso ..................................................................... 523

5.5.3.2. (segue): transao penal ........................................................... 527

Concluso ............................................................................................................... 531

Referncias Bibliogrficas ..................................................................................... 541

Apresentao

Caro leitor.

Creio que temos reaes comuns quando entramos numa livraria jurdica. O que

nos atrai, de primeiro, para que se apanhe um livro da prateleira ou da mesa, o seu

ttulo, porque , por meio dele que se verifica se a matria se identifica com o nosso

interesse. Tomamos, ento, o livro nas mos; abrimos as primeiras e as ltimas pginas

para vermos o sumrio e a bibliografia, e depois, como procedimento derradeiro, antes da

compra ou da devoluo do livro ao lugar de onde foi retirado, corremos os olhos pela

apresentao que nada mais do que uma breve comunicao, feita guisa de

introduo, na qual o apresentador pe em evidncia o tema tratado e mostra as

qualidades do autor. J exerci, por incontveis vezes, esse papel. Os anos acumulados e

so tantos podem explicar o aparecimento de meu nome nesse ato introdutrio, mas

sempre procurei conter-me nas balizas recomendadas.

Aqui e agora, no pretendo ser fiel seguidor de regras; antes, quero s claras quebr-

las. Dei-me conta de que no serei capaz de conduzir-me como em outras apresentaes.

No me sinto acomodado posio de quem se coloca de permeio entre o autor e o leitor,

servindo de mera interface. Sinto-me bem melhor como quem se dirige diretamente ao

leitor para dar-lhe um testemunho. Por isso, desprendi-me das falas prprias de uma

apresentao para dar espao, em seu lugar, ao relato de quem teve o privilgio de

observar pari passu o projeto, o desenvolvimento, a concretizao e a defesa da tese de

livre-docncia de Maurcio Zanoide de Moraes, apresentada na Faculdade de Direito da

Universidade de So Paulo.

H muitos anos acompanho os passos de Maurcio na sua vida pessoal, no seu

desempenho profissional e na sua caminhada acadmica. Segui-o, de perto, nas vrias

etapas desses percursos. Participei de seus momentos de sucesso, mas o vi tambm, como

qualquer ser humano, mostrar-se vulnervel diante de emoes e de aflies. Tenho,

portanto, por ele, uma enorme estima pessoal, quase paternal. No vem a plo, no

presente contexto, relatar os vrios fatos que serviram para cimentar a amizade que

tenho por ele e que extensvel Fernanda e s suas duas filhas, Laura e Gabriela.

Proponho-me apenas a contar os bastidores de sua tese Presuno de Inocncia no

Processo Penal Brasileiro que, ora, se transforma no livro que o leitor apanhou para

exame.

L pelos idos de 2002, eu, Maurcio e um amigo, Mrcio Brtoli, alugamos, por

quinze dias, um pequeno apartamento, em Paris. Mauricio viajou antes pela Espanha e

pelo sul da Frana e quando chegou, relatou-me que, no trem entre Avignon e Paris,

tivera o insight de que, se algum dia viesse a escrever uma tese de livre-docncia, deveria

ela versar sobre a presuno de inocncia. E esta sbita luz lhe veio mente, com tal

clareza, que elaborou, no prprio trem, os tpicos que deveriam compor a obra. Lembro-

me, agora, nessa retrospectiva, que o estimulei a transformar em realidade tema to

complexo e, ao mesmo tempo, to pouco abordado no Brasil.

Em junho de 2003, Maurcio, aps concurso, ingressou, como Professor-Doutor

contratado, no quadro do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito

da Universidade de So Paulo e, nos anos de 2005 e 2006, presidiu o Instituto Brasileiro

de Cincias Criminais. Recordo-me bem que, pouco antes de terminar seu mandato, ou

seja, em fins de dezembro de 2006, contou-me ele, em seu prprio escritrio, que no

poderia dar-me o apoio desejvel eu o substitura na presidncia do IBCCRIM porque

resolvera dedicar aquele ano a duas tarefas: cuidar de sua primeira filha, que nasceria em

fins de janeiro, e iniciar a preparao de sua tese de livre-docncia. E de novo colocou,

na sua pauta de trabalho, a questo da presuno de inocncia. Confesso que lhe disse, na

ocasio, que deveria fazer uma opo entre essas tarefas, porque implement-las em

conjunto seria uma loucura, mxime porque seu escritrio de advocacia estava, ao

mesmo tempo, em plena ascenso. Mas Maurcio no me deu ouvidos. Felizmente!

O ano de 2007 comeou e terminou com percalos. Aps meses de pesquisas e

estudos sobre o tema escolhido, Maurcio sentiu um certo desalento, por volta de julho.

Tudo quanto lera e pensara sobre o assunto parecia-lhe insuficiente; a doutrina nacional

e estrangeira, objeto de leitura e de reflexo, no apontava nada capaz de atender, mesmo

de longe, ao desejo de remodelar a presuno de inocncia atravs de uma anlise que

transcendesse o direito processual penal, mas que tivesse o mesmo mbito como

destinao final. Para ele haveria a necessidade de romper com os padres e formas

anteriores para que pudesse oferecer o rejuvenescimento e a modernidade que o tema da

presuno de inocncia pedia para a sua maior incidncia e efetividade prticas. Os

caminhos j traados no atendiam ao seu sempre insatisfeito esprito de cientista e, a seu

critrio, no bastaria para escrever a tese de livre-docncia. Abandonou o estudo por trs

meses, at encontrar outros caminhos a trilhar. O novo horizonte que o fez avanar e

retornar, com empenho redobrado, ao tema que o espicaava h quase cinco anos, foi o

aprofundamento de seus estudos na rea constitucional e da teoria geral do direito,

sobretudo na interseco desses dois ramos na Teoria dos Direitos Fundamentais exposta,

principalmente, por Robert Alexy e por Ronald Dworkin no Exterior, e por Virgilio

Afonso da Silva e Humberto Dvila no Brasil. Efetivamente, Maurcio promoveu a

desconstruo de velhos mitos histricos; ps a descoberto ranos polticos dos regimes

autoritrios, que informaram a elaborao de nosso sistema processual penal de l940, e

partiu para uma anlise da estrutura normativo-constitucional da presuno de

inocncia, enfatizando como deve ela ser aplicada, de modo coerente para melhor

soluo de questes cotidianas da realidade forense.

A viso constitucional da presuno de inocncia e sua insero como direito

fundamental abriram largo espao para uma pesquisa em profundidade. Nos meses

subseqentes a agosto de 2007, Maurcio fez ampla investigao histrica sobre a matria

e teceu diversas consideraes sobre a presuno de inocncia como direito fundamental.

Terminados os trs captulos iniciais da tese, tratou, em seguida, no quarto captulo, de

propor a questo do contedo essencial da presuno de inocncia. A essa altura, foi

Maurcio surpreendido com a notcia de que a Universidade de So Paulo (USP) tinha

posto termo a todos os contratos trabalhistas com os professores-doutores de seus

Departamentos e abrira concurso para ingresso na carreira pblica em todas as

faculdades. Isso o obrigou a dar uma parada a fim de preparar-se para o concurso, pondo

de lado a tese em elaborao. Em fins de 2007, logrou sucesso no concurso e preencheu a

vaga aberta. Mal terminado o concurso, Maurcio deu seguimento feitura da tese. Por

volta de maro de 2008, ainda lhe restava fazer o quinto captulo e este representou um

conjunto de duzentas pginas no qual, de forma inovadora, objetivava evidenciar a

repercusso da estrutura normativa do princpio da presuno de inocncia tanto na

elaborao legislativa, quanto no cotidiano dos casos judiciais. E s lhe sobravam

quarenta e cinco dias para que pudesse terminar o trabalho ainda a tempo de rel-lo, de

fazer consertos formais, de reexaminar as notas de rodap e de conferir a correo da

bibliografia. Em fins de abril o trabalho estava pronto e impresso no aguardo da abertura

do concurso para a livre-docncia que, no ano de 2008, por exceo, teve sua inscrio

encerrada em 3 de junho de 2008. No dia 28 de maio, Maurcio depositou sua tese na

Faculdade de Direito e, na data do trmino da inscrio, ou seja 3 de junho, nasceu sua

segunda filha, Gabriela. Na primeira semana de novembro de 2008, houve a defesa de sua

tese de livre-docncia que culminou com ampla e consagradora aprovao.

Por que h de perguntar o leitor que folheia o livro devo estar a par de toda essa

estria? O que tem ela a ver com o ato de incorporar um novo livro na minha biblioteca?

Posso responder-lhe: tudo. No mundo atual, no qual os valores perdem a olhos vistos sua

solidez, tendendo liquefao, extremamente rduo e exige um esforo sobre-humano

a busca e a mantena desses valores. A estria relatada uma homenagem aos valores da

seriedade cientfica, da persistncia, do esforo desmedido de arrostar sacrifcios, do

poder de privar-se dos prazeres fceis e, sobretudo, da capacidade de destrinar

dificuldades e de controlar emoes. E, de acrscimo, tambm uma estria de amor.

Porque s Fernanda poderia, com a fora interior, compreenso e suavidade, que lhe so

prprias, dar a Maurcio duas filhas, em momentos to prximos, e ainda por cima, ter a

generosidade de conferir-lhe tempo livre para concluir sua tese.

Permita-me agora, caro leitor, no fecho desta apresentao, colocar-lhe uma

alternativa: ou saia da livraria sobraando o melhor livro que j se publicou na literatura

jurdica brasileira sobre o princpio da presuno de inocncia, ou o recoloque na

prateleira ou na mesa da livraria. Nesta ltima hiptese s me cabe lamentar o fracasso

do meu testemunho e pedir-lhe desculpas por ter me acompanhado at aqui.

Um abrao.

Alberto Silva Franco

Prefcio

O reconhecimento da presuno de inocncia do acusado marca a distino entre

dois modelos histricos de processo penal: no primeiro, que a rejeita, a simples existncia

de uma acusao faz recair sobre o suspeito j considerado inimigo pblico , as graves

conseqncias do reconhecimento da culpa; naquele que a acolhe, o processo dirigido,

antes, isenta verificao dos fatos, pressuposto essencial imposio de qualquer

medida punitiva.

Por isso, rebatendo as crticas dirigidas ao princpio com argumentos da tcnica

jurdica, Mario Pisani sublinhou o seu valor essencialmente poltico, que exprime na

verdade uma orientao de fundo do legislador, qual seja a garantia da posio de

liberdade do acusado diante do interesse coletivo represso penal. Da tambm a sua

necessria incidncia sobre todos os aspectos da atividade processual, desdobrando-se

numa srie de garantias que interagem e se complementam, tutelando o indivduo

submetido persecuo contra os eventuais desmandos do poder punitivo estatal.

A importncia e a atualidade do tema so mais do que evidentes, notadamente

quando se constata o sensvel alargamento da incidncia da lei penal sobre condutas

antes submetidas a outras formas de censura ou responsabilidade e, ainda, diante da

tendncia que se acentua cada vez mais , de transferir os julgamentos do espao dos

tribunais para o cenrio mais amplo dos meios de comunicao.

muito oportuna, assim, a publicao da tese apresentada pelo Professor Maurcio

Zanoide de Moraes em concurso pblico em que obteve, por unanimidade da Banca

Examinadora e com distino, o ttulo de livre-docente em Direito Processual Penal, pela

Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo.

Tratando da Presuno de inocncia no processo penal brasileiro, o Autor realiza

investigao minuciosa e praticamente completa sobre as origens e vicissitudes histricas

do princpio, para depois, em captulos subseqentes, aprofundar o exame da presuno

de inocncia como direito fundamental, fixar-lhe o contedo essencial e, no final,

extrair suas decorrncias tanto no mbito da legislao infraconstitucional como para a

deciso judicial.

Destaca-se no trabalho uma opo metodolgica original, consistente em dar

prioridade ao exame da estrutura normativa da presuno de inocncia como princpio

constitucional, para buscar as suas aplicaes no mbito do processo penal.

Sem pretender reproduzir desnecessariamente o pensamento do Autor, mas apenas

com o propsito de aguar o esprito do leitor para os pontos mais sugestivos e polmicos

da obra, cabe destacar a posio, correta e moderna, de que os direitos fundamentais

consagrados pela Constituio como ocorre com a presuno de inocncia no podem

ser vistos apenas pela tica individual, mas representam tambm direitos extrados de

uma conscientizao benfica e til para todos, pelo que uma persecuo penal mais justa

e equilibrada melhor coletividade. Por isso, adverte-se no trabalho que a no

efetivao daquele direito fundamental a um dos integrantes da comunidade coloca todos

os cidados em estado de insegurana, gerando a percepo de que os entes incumbidos

da persecuo no esto cumprindo o compromisso constitucional.

No tpico emblemtico das restries ao direito fundamental presuno de

inocncia, em especial quando se cuida da privao da liberdade, a obra d merecida

nfase ao critrio da proporcionalidade, examinando-o tanto nos seus elementos ditos

tradicionais adequao, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito , como nos

chamados requisitos extrnsecos: judicialidade e motivao. Em relao motivao,

indica o seu decisivo papel para a verificao da interferncia, na deciso restritiva, de

fatores criminolgicos ou de poltica criminal inconstitucionais, que implicam verdadeira

presuno de culpa, em contraposio com o princpio constitucional examinado.

Atualssima e oportuna tambm a preocupao do Autor com cotidiana violao

da presuno de inocncia nos noticirios da mdia. Basta acompanh-los para constatar

que muito antes de qualquer pronunciamento judicial quase sempre no limiar das

investigaes , o suspeito ou acusado j apontado como se fosse o autor certo do crime,

no sendo raro at mesmo o emprego de expresses ofensivas que nem mesmo a

condenao definitiva poderia autorizar. Como ressalta Ferrajoli, a funo infamante da

persecuo, que caracterizou o direito penal pr-moderno, hoje exercida pela exibio

do acusado nas pginas dos jornais ou na televiso, quando ele ainda presumido

inocente.

Por ltimo, mas no menos importante, outra instigante concluso do trabalho que

vale destacar a imperiosa necessidade da elaborao de um novo Cdigo de Processo

Penal, em substituio ao atual, de estrutura inquisitria, pois a simples interpretao de

suas disposies luz da Constituio tem sido insuficiente para suprir os pontos em que

a inrcia legislativa representa evidente violao da presuno de inocncia consagrada

pela Constituio.

Esses so apenas alguns exemplos que mostram a amplitude dada ao tratamento da

matria. Como verificar o leitor, trata-se de texto destinado a provocar proveitosas

discusses a respeito dos temas fundamentais do processo penal.

Sem favor algum, obra que d valiosa continuidade tradicional vocao da nossa

Faculdade de Direito para os estudos constitucionais do processo penal, inaugurados

pelos mestres Joo Mendes Jnior e Canuto Mendes de Almeida e, depois, enriquecidos

pelos trabalhos de Ada Pellegrini Grinover e Rogrio Lauria Tucci; particularmente, traz

grande satisfao para quem honrado com a incumbncia de apresent-la ao pblico

leitor.

So Paulo, fevereiro de 2010.

ANTONIO MAGALHES GOMES FILHO

Professor Titular de Processo Penal

da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

Introduo

Uma breve leitura dos peridicos dirios e semanais e uma pequena passada por

programas dirios de rdio e televiso levam o espectador leigo em nossas leis a indagar

se existe a presuno de inocncia. Esse mesmo espectador no teria sua indagao

respondida se fosse conhecer a nossa realidade forense. Em verdade, talvez a

perplexidade aumentasse ainda mais em sua mente, pois, de uma quase certeza de sua

inexistncia, propiciada pela mdia, verificaria que h juzes que a reconhecem em alguns

casos, e em outros no, e, pior, h juzes que no a reconhecem nunca. Notaria a falta de

critrio e segurana na jurisprudncia e, em no menor intensidade, na doutrina.

Se adentrasse ainda mais no sistema jurdico e lesse nosso vigente Cdigo de

Processo Penal tenderia a achar que ela ficou reduzida a raras e diminutas ocorrncias do

in dubio pro reo. Mas, ao ler o texto literal de nossa Constituio afirmaria haver uma

presuno de no culpabilidade, no encontrando qualquer referncia presuno de

inocncia. Tenderia a afirmar, aps esse priplo, que ela no existe. Porm, poderia ficar

perturbado e no compreenderia por que uma doutrina e uma jurisprudncia

minoritrias e insistentes continuam a afirmar que a presuno de inocncia existe no

Brasil.

Por fim, a perplexidade ficaria irresoluta se, consultando os Tratados e Convenes

Internacionais, em cujos textos encontra-se esse direito humano, verificar que o Brasil,

ao subscrev-los, prometeu dar-lhes cumprimento to inteiramente como eles se

apresentam.

Essa perplexidade, qual todo estudante de direito ou operador jurdico est

submetido, justifica o estudo mais detalhado da presuno de inocncia.

A justificativa para se estudar a presuno de inocncia reside no fato desse direito

fundamental no ter existido (formalmente), na histria do ordenamento jurdico

nacional, at o advento da Constituio da Repblica de 1988 e, aps sua vigncia, ainda

no ter atingido a esperada efetividade.

Essa baixa efetividade tem uma nica causa: a ausncia de uma perfeita

compreenso da prpria presuno de inocncia, o que , por que existe e para que

foi concebida e deve ser respeitada e cumprida por todos.

De fato, conquanto haja muitos e consistentes estudos sobre sua origem, sua fora

poltico-ideolgica e sua destinao humanitria, no so na mesma quantidade e

qualidade os trabalhos que procuram lhe desvendar o contedo normativo, os seus

efeitos e as suas conseqncias para o sistema processual penal. Necessrio se dar

consistncia quele sempre tido como o mais abstrato dos princpios constitucionais

dirigidos ao processo penal.

De ordinrio, os melhores trabalhos sobre a presuno de inocncia no so estudos

especficos em que ela analisada de forma isolada, mas trabalhos nos quais examinada

em face de outro instituto jurdico (p.ex., a priso provisria, os meios de prova ou de

obteno de prova, ou, ainda, a motivao judicial). O presente livro pretende contribuir

para aqueles primeiros estudos citados, quais sejam, os que examinam a presuno de

inocncia de modo individualizado.

Essa opo traz um benefcio ao tema e um encargo a mais ao trabalho. O benefcio

est em que muitos aspectos peculiares e essenciais compreenso da presuno de

inocncia podem ser examinados de forma mais aprofundada, permitindo com isso uma

mais consistente concluso sobre eles e seus desdobramentos. Como nenhum trabalho

cientfico realmente tem valor se no produzir efeitos prticos na vida cotidiana da

sociedade, o encargo est em ter de aplicar, de modo coerente, todo este exame

aprofundado da presuno de inocncia em vrios pontos do sistema processual penal,

notadamente os mais crticos.

Para dar cabo desse encargo necessrio trabalhar com os institutos processuais

penais mais diretamente ligados e, portanto, influenciados pela presuno de inocncia.

Todavia, como o trabalho est voltado para o estudo especfico desse direito

fundamental, os institutos processuais no so analisados de modo igualmente detido e

aprofundado, mas sempre h uma expressa e clara postura sobre como so entendidos,

utilizando-se, para isso, de doutrina e jurisprudncia de apoio a cada um deles.

O cerne do trabalho, como o prprio ttulo da obra indica, a anlise da presuno

de inocncia pela perspectiva de sua estrutura normativa e das conseqncias prticas

que isso propicia no processo penal, tanto em nvel legislativo quanto em nvel judicial.

Prope-se a fixao de bases constitucionais para sua mais coerente, efetiva e sistmica

aplicao.

Para empreender essa proposta no possvel iniciar o estudo da presuno de

inocncia por sua origem mais consistente e remota, qual seja, a Revoluo Francesa de

1789. imprescindvel iniciar a exposio antes, ou seja, em perodo em que ela no

existia. Isto para demonstrar quais os influxos juspolticos necessrios para se afirmar

quando um Estado oferece ou no condies mnimas para sua efetiva verificao.

Primeiro necessrio se entender as razes por que ela nunca existiu antes do

Iluminismo, para depois se compreender o que influi para seu surgimento exatamente

neste instante histrico. Isso permitir, ainda, compreender por que ela foi sendo

expungida, paulatinamente, dos sistemas processuais da Europa continental do sculo

XIX e incio do sculo XX e, tambm, por que emergiu revitalizada aps as duas Grandes

Guerras do sculo passado.

O estudo das instituies jurdicas pr-iluministas, notadamente do sistema romano

e da Inquisio, oferece ainda uma outra vantagem. A possibilidade de pr em ressalto

linhas argumentativas repressivas que, ainda hoje, alteradas e modernizadas em

insignificantes nuances, contando com o esquecimento provocado pelo tempo, so

utilizadas com ares de modernidade ou avano. Tudo como se muito pouco tivesse sido

alterado, no que toca presuno de inocncia, nas instituies juspolticas do sculo

XVIII at o sculo XXI.

Fixado o seu surgimento no Iluminismo, parte-se para a demonstrao das razes

que a fizeram to severamente combatida no sculo XIX, a ponto de ser expressamente

rejeitada em quase a totalidade dos sistemas jurdicos europeus do incio do sculo XX.

Para essa rejeio foram preponderantes a Escola Positiva e a Escola Tcnico-Jurdica

italianas, porquanto formaram a base ideolgica e tcnica para eliminar a presuno de

inocncia dos Cdigos de Processo Penal italianos de 1913 e 1930. Cedio que foi este

ltimo diploma processual peninsular a base legislativo-ideolgica de nosso (ainda) atual

Cdigo de Processo Penal, elaborado em 1941, inclusive com o ressalto de que tal

legislao foi forjada sob o empuxo do Estado Novo getulista, conclui-se que nossa

legislao infraconstitucional (processual penal) refratria e foi construda sobre base

avessa presuno de inocncia.

Se at esse ponto a anlise direciona-se apenas presuno de inocncia, a partir

dele inicia-se a apresentao da atual feio constitucional brasileira, que se ope

frontalmente quela ideologia nazifascista do incio do sculo XX, inserida em nossa

(ainda) vigente legislao processual penal.

O captulo III, destinado a demonstrar que a presuno de inocncia um direito

fundamental, um importante marco de transio entre todos os debates juspolticos

limitados ao campo processual penal e uma abordagem mais acentuadamente

constitucional do tema. Nele se revela o profundo e inconcilivel distanciamento entre a

Constituio e o Cdigo de Processo Penal vigentes. Revela-se, ainda, que essa dicotomia

sistmica somente comear a ser superada ao se notar que os direitos fundamentais tm

um contedo subjetivo/objetivo e que isso implica um dever estatal de proteo e de

estabelecimento de organizao e procedimento aptos a efetivar esses direitos.

Somente aps fixada essa base constitucional para o tema se pode adentrar ao estudo

de sua estrutura normativa, o que realizado no Captulo IV, conforme a teoria dos

princpios.

Pela falta de estudos constitucionais ou processuais penais preocupados em aplicar

essa teoria nesse ponto de interseco (presuno de inocncia) entre Constituio e

Processo Penal, esta obra tem um nus argumentativo a cumprir. Demonstrar no apenas

a estrutura normativa com a qual examina a presuno de inocncia no ltimo captulo,

mas tambm que essa forma de compreender os dispositivos constitucionais representa

uma maior garantia de seu contedo essencial e, de modo mais coerente, atende s

necessidades e resolve pontos crticos at ento existentes na rea processual penal.

Desenvolvem-se, assim, as concepes de suporte ftico, de mbito de proteo e de

interveno estatal, todos pela perspectiva ampla, inerente quela teoria. Na inter-

relao entre esses conceitos, expe-se por que e em que medida os direitos

fundamentais, que apresentam estrutura normativa de princpio, devem ser realizados na

maior extenso possvel e qual a diferena entre restrio e violao a esses direitos.

Essa abordagem, contudo, no obstante parea ser de cunho exclusivamente

constitucional, sempre est teleologicamente voltada ao mbito processual penal. A cada

passo da exposio, utilizam-se exemplos de sua incidncia prtica na rea criminal.

Fixados tais pressupostos lgico-argumentativos at aqui referidos, parte-se para sua

aplicao mais direta e de cunho mais prtico aos estudiosos e operadores da rea

criminal (penal e processual penal). Isso feito no ltimo captulo do livro.

Como no possvel tratar de maneira aprofundada, em um nico trabalho

cientfico, cada um dos institutos processuais penais que sofrem influncias da presuno

de inocncia, utilizou-se os que com ela guardam maior proximidade e, tambm,

apresentam questes mais crticas a serem resolvidas. Tudo a fim de colocar prova se as

escolhas at ento empreendidas e as inovaes trazidas no curso do presente estudo so

teis e coerentes.

Com esse desiderato e com a assuno expressa da perspectiva Constituio

Cdigo de Processo Penal, organiza-se de modo criterioso todos os aspectos e

significados atribudos presuno de inocncia. Assim, mostra-se como se inter-

relacionam com ela o in dubio pro reo e o favor rei e, ainda, como isso deve ocorrer

nos planos legislativo e judicial. Tambm, em ambos os planos (legislativo e judicirio),

analisa-se esse direito fundamental como norma de tratamento, norma probatria e

norma de juzo.

Para tanto, indispensvel examinar como a presuno de inocncia projeta efeitos

e se relaciona com os seguintes institutos processuais: as medidas coativas, notadamente a

priso provisria; a absolvio por insuficincia de prova para a condenao; o alegado

in dubio pro societate como critrio de decidir; a vedao legal de concesso de

liberdade provisria; a incluso do nome do imputado no rol dos condenados, no

obstante haja recurso pendente; a priso provisria decorrente de sentena condenatria

recorrvel, ou de pronncia; o nus probatrio, a inexistncia de sua inverso e a

mnima atividade probatria incriminadora; a motivao judicial de toda deciso penal

que implique reduo dos direitos do imputado; a reincidncia e os antecedentes

criminais; a investigao preliminar; a reviso criminal; o abuso na exposio miditica; a

confisso e a dita delao premiada; a transao penal; entre outros temas relevantes.

Todos esses institutos jurdicos, importantes para o processo penal, so analisados

por essa nova abordagem estrutural normativa aplicada presuno de inocncia. A

perspectiva constitucional implementada a esse direito fundamental sempre ser a

bssola orientadora de cada crtica ou nova compreenso que deve ser empreendida

tanto em nvel legislativo quanto em nvel judicial.

Nisso o trabalho renova uma crtica generalizada e assentada: a necessidade de se

elaborar um novo Cdigo de Processo Penal. Renova, em aspecto to remansado, na

medida em que no transcurso da exposio indica, a cada ponto, por que e para que

uma nova legislao imprescindvel. Rejeita, peremptoriamente, as tentativas de

adaptao judicial de parte do aparato legislativo existente e contaminado de

inconstitucionalidade, demonstrando como essa forma de julgar prejudica o sistema

processual penal e deslegitima a Constituio. O Judicirio pode interpretar o texto

normativo de modo conforme Constituio, mas no pode criar lei nos pontos em que a

inrcia legislativa constitui clara violao presuno de inocncia.

Para tudo o quanto j se disse, o presente livro busca fornecer um novo vis de cariz

constitucional ao analisar a estrutura normativa do direito fundamental da presuno de

inocncia e aplic-la tanto para uma maior efetivao no plano judicial

(interpretao/concreo), quanto para uma nova elaborao legal no plano legislativo.

Captulo I Inexistncia de presuno de inocncia at

sua inscrio na Declarao dos Direitos

do Homem e do Cidado

1.1. -Consideraes iniciais: a imprescindibilidade da reconstruo

histrica no estudo da presuno de inocncia

Um estudo das matrizes histricas de um instituto jurdico s se justifica se dele se

puder extrair razes reveladoras de sua atual importncia e dirimir confuses ou ampliar

seu mbito de incidncia por ventura suprimido ou abarcado por outro instituto

correlato. Ao se tratar da presuno de inocncia todos esses frutos da reconstruo

histrica podem ser hauridos. Alis, alm deles, somente com essa reconstruo que se

pode eliminar equvocos que, de to repetidos, tomaram ares de verdade e, outrossim,

minuciar debates doutrinrios e juspolticos que vm sendo deixados para trs ou

omitidos sob pseudotecnicismos.

Na medida em que a anlise histrica empreendida nos itens seguintes est

teleologicamente voltada aos institutos que revelem ou neguem a existncia da

presuno de inocncia no sistema processual examinado, pode-se demonstrar como as

bases romanas da presuno de culpa e do direito penal do inimigo surgiram, perpassam

todo o direito medieval e vo encontrar trmino apenas no iluminismo. S o

rompimento com aquelas bases ideolgicas e estruturantes do sistema criminal permitiu

e permitir a mudana dos modelos processuais at ento desenvolvidos e hoje ainda

encontrveis, dentre os quais se inclui o nosso atual cdigo de processo penal.1

Em paralelo com essa linha teleologicamente comprometida com o tema do

trabalho, o estudo histrico demonstra-se imprescindvel na medida em que por ele se

pode examinar, com vagar, institutos jurdicos que, a despeito de terem sido criados por

razes e com finalidades totalmente diversas de um iderio de presuno de inocncia,

ainda podem ser encontrados (com algumas diferenciaes e mitigaes) em nosso cdigo

de processo penal atual.

Assim, reveladas aquelas razes e finalidades, totalmente incompatveis com a

presuno de inocncia e, em paralelo, verificada a sua ocorrncia at nossos dias, pode-

se perceber que, ao menos em nvel infraconstitucional, temos uma legislao fundada na

presuno de culpa e na utilizao seletiva e marginalizante do direito e do processo

penal.

Demonstrar essa afirmao tarefa indeclinvel de quem se prope analisar a

presuno de inocncia em sua extenso e em suas intervenes (legtimas e ilegtimas).

Porm, para que ela possa ser compreendida nesses termos amplos, necessrio comear

dos pontos iniciais da histria e demonstrar todas as razes de sua evoluo e involuo.

1 J lugar-comum o reconhecimento de identidade tcnico-jurdica e

ideolgica entre o nosso atual cdigo processual penal, datado de 1941, e o Cdigo de Processo Penal italiano de 1930, denominado Cdigo Rocco e de matrizes ideolgicas nazifascistas. Sobre o tema, v. item 2.5 e seus subitens infra.

Os itens deste captulo permitem compreender e revelar uma significativa carga

histrico-jurdica existente em nosso sistema atual e da qual precisamos nos liberar, se

realmente quisermos afirmar que nosso sistema tem como um de seus pilares a presuno

de inocncia.

1.2. Direito Romano

O estudo histrico do direito romano, em regra, compreende o perodo desde a sua

fundao (754 a.C.) at o fim da Monarquia Absoluta, com a morte de Justiniano (565

d.C.). Fcil perceber que os institutos jurdicos do final desses mais de mil anos de

histria eram muito mais evoludos se comparados com a poca de sua fundao. Isso se

deveu no apenas s inegveis experincias jurdicas bem e mal sucedidas, mas tambm,

e principalmente, pelas conseqncias jurdicas decorrentes de enormes variaes

polticas, complexidades econmicas e extensa dominao territorial e temporal sobre

outros povos.

Curial, outrossim, que os registros mais fiis e numerosos refiram-se aos ltimos

tempos, notadamente pela compilao, capitaneada por Justiniano, de toda a legislao

at ento existente em um nico diploma legal, o Corpus Iuris Civilis.

No obstante a falta de registros histricos seguros tenha gerado dificuldades na

reconstruo ideal dos vrios sistemas criminais romanos, notadamente os de pocas mais

remotas, possvel se traar algumas consideraes que, com apoio na doutrina

especializada, em alguns pontos, j atingiram certo consenso.

Um dos lugares-comuns na descrio dos procedimentos penais no curso da histria

romana faz-la em paralelo com a evoluo dos regimes polticos daquele Estado.

ROGRIO LAURIA TUCCI, com apoio em qualificada doutrina romanista nacional e

estrangeira, identifica quatro fases do Direito Romano, tendo-se em vista o seu Direito

Constitucional, vale dizer, as vicissitudes dos rgos reveladores do direito (fontes do

direto) .2

2 Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos do processo penal romano, So

Paulo: Jos Bushatsky, 1976, notadamente, sobre o tema, v. seu cap. V.

Nessa diviso da evoluo histrica, considerada pela perspectiva externa, o autor

divide aquelas fases em: perodo rgio (de 754 a.C. at 510 a.C); perodo da Repblica (de

510 a.C. at 27 a.C); perodo do Principado, tambm denominado perodo do Alto

Imprio (de 27 a.C. at 284 d.C) e, por fim, perodo da Monarquia Absoluta, tambm

referido pela doutrina como perodo do Baixo Imprio ou do Dominato (de 284 d.C at

565 d.C).3

3 Para uma maior compreenso dos critrios usados pelos romanistas

adeptos dessa diviso em quatro fases, vale a referncia expressa dos fatos histricos que pontuaram essas fases. Leciona Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., pp. 35/36, in verbis: a) o perodo rgio, desde a data convencional da fundao de Roma (754 a.C.), at quando da expulso dos reis (510 a.C), e em que, monrquica e patriarcal a forma de governo, o rex era o magistrado nico, vitalcio, irresponsvel; b) o da Repblica, de 510 a.C. at a instaurao do Principado, por volta de Otaviano Augusto, em 27 a.C., sucedendo aos reis dois magistrados supremos e anuais os cnsules, e multiplicando-se as magistraturas, substancialmente colegiais, temporrias e responsveis; c) o do Principado, de 27 a.C. a 284 d.C., quando da asceno ao trono do Imperador Diocleciano, e em que o prncipe era o primus inter pares, dando-se realce, outrossim, obra dos juristas (ius respondendi ex auctoritate principis); e d) o da Monarquia Absoluta, de 284 d.C. at a morte de Justiniano, no ano de 565 d.C., fazendo-se o imperador, dominus et deus, o nico rgo revelador do direito, e burocratizando-se, no entanto, o estado, em todas as suas manifestaes. Concorde com essa diviso, apenas acrescentando uma outra fase, a Bizantina, v. Eduardo PESSOA, Histria do direito romano, So Paulo: Habeas, 2001, p. 21. Rogrio Lauria TUCCI, mais adiante, ao lado dessa diviso pela perspectiva externa, expe uma diviso do Direito Romano pela perspectiva interna, fundada nos significativos diplomas legais que caracterizaram importantes mudanas jurdicas naquele Estado. Com lastro na doutrina romanista mais especializada, Rogrio Lauria TUCCI (op. cit., pp. 39/41) divide a histria interna romana em direito antigo, quiritrio ou pr-clssico, da fundao de Roma at a poca da lex Aebutia, cuja data indicada, sem muita certeza, entre os anos de 149 e 126 a.C.; a do direito clssico, desde a edio desta lei, findando com o reinado do Imperador Diocleciano, no ano de 305 d.C.; e a do direito ps-clssico ou romano-helenico, a contar de ento, e at a morte de Justiniano, em 565 d.C.. Eduardo PESSOA (op. cit., p. 89), afirma que a Lex Aebutia foi promulgada entre 199 e 126 a.C. Refere-se ao direito judicirio e considerada como a lei que criou o processo formulrio.

Quanto s vrias fases do processo penal no curso de toda a histria romana h dois

consensos: o primeiro, sobre a ordem de surgimento e evoluo dos procedimentos

penais e, o segundo, que, no obstante essa ordem, os sistemas no desapareciam em data

certa e no instante exato do surgimento do seu sucessor ou do outro que melhor se

adaptava nova fase juspoltica do Estado Romano. Sempre houve uma fase de transio,

implementao e convivncia do sistema novo com o anterior.

Partindo-se do perodo rgio em direo ao perodo do Baixo Imprio, o

procedimento penal romano pode ser dividido, idealmente, em trs espcies de

procedimentos.

O primeiro, historicamente, o encontrado no perodo comicial e no qual se

identificaram dois procedimentos: a) o mais antigo, da cognitio, baseado na noo de

inquisitio e de imperium e, o mais recente, da anquisitio, caracterizada pela

provocatio ad populum, primeiro instituto jurdico a esboar uma proteo ao

imputado.4

No perodo republicano surge, como segunda espcie, o procedimento penal

denominado iudicium publicum, baseado na participao popular nas decises das

causas e na substituio do sistema da inquisitio pelo da accusatio; surge, neste

instante, o perodo das quaestiones.

Como terceira e ltima espcie de procedimento penal romano, no perodo da

ascenso dos Imperadores, no final da Repblica e incio do Imprio, surge a cognitio

extra ordinem. Sua denominao (cognitio extra ordinem) bem demonstra a

repristinao, pelo novo regime poltico autoritrio e centralizador dos Imperadores, das

noes rgias de inquisitio e de imperium, enfim, do julgamento baseado na

cognitio. Extra ordinem, por sua vez, origina-se do fato de que o sistema anterior do

iudicium publicum, baseado nas quaestiones, at ento era denominado, pelos

prprios romanos, como procedimento ordinrio. Logo, para suced-lo, uma vez que

no atendia mais s necessidades e anseios polticos do Estado Romano, preferiu-se

denominar o novo procedimento penal de extra ordinrio.

Expostos como se situam, cronolgica e dentro dos sistemas polticos, os modelos

procedimentais penais desenvolvidos por mais de 1.300 anos de histria romana, impe-

se analis-los, isolada e detalhadamente. Isto a fim de se poder extrair, de alguns de seus

matizes juspolticos, de alguns de seus institutos e seus mecanismos de funcionamento,

algumas concluses para o desenvolvimento do trabalho. Dentre esses institutos ser

dada nfase queles relacionados com a priso provisria, com a forma de tratamento do

imputado, com o nus probatrio, com alguns meios de prova e com a forma dos

julgadores decidirem.

1.2.1. Perodo Comicial

4 Para essa precisa diviso do perodo comicial do procedimento penal

romano em duas fases (cognitio e anquisitio), v. Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., captulos XIII a XV.

O perodo comicial abrange desde a fundao de Roma at o ltimo sculo da

Repblica.5 Esse longo perodo pode ser claramente dividido em duas fases, como j dito:

a cognitio, nascente no perodo rgio e com ele identificada, e a anquisitio, procedimento

penal surgido com a Repblica e no qual os cidados romanos iniciaram no apenas uma

participao direta no julgamento das causas penais, mas, principalmente, uma

estruturao de garantias aos imputados. Analisemos cada qual, comeando pelo

primeiro e mais antigo.

1.2.1.1. (segue): procedimento da cognitio A fase da cognitio, no perodo rgio, pela perspectiva do direito penal, caracterizou-

se pela estreita relao entre religio e direito na definio e punio de crimes.6

5 Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 59. 6 Nesse sentido, esclarecendo que nesta poca no se procurava punir

infratores, mas principalmente purificar a cidade, v. Bernardo SANTALUCIA, Processo penale: diritto romano, in ENCICLOPEDIA del diritto, Milano: Giuffr, 1971, v. 36, pp. 318/360. Sobre essa idia de definio e punio de ilcitos com base em forte influncia religiosa, vale transcrever a seguinte passagem de Franco GNOLI, Diritto penale nel diritto romano, in DIGESTO: discipline penalistiche, 4 ed., Torino: UTET, 2000, v. 4, pp. 43/64, em traduo livre: Por tal simplicidade da estrutura constitucional, acompanhada pela reduzida extenso territorial e pela determinante influncia das crenas religiosas tanto na vida cotidiana dos indivduos e dos grupos como na atividade pblica dos magistrados, senado e assemblia popular, surgem conexos trs aspectos relevantes na esfera penal: a) a maior parte dos ilcitos, que em seguida ingressaram na competncia das autoridades prepostas para a represso de polcia ou para jurisdio, foi deixada ao que se refere individualizao e reao s relaes entre famlias; b) somente os ilcitos que se acreditavam atinentes diretamente e irremediavelmente existncia estrutural da coletividade foram individualizados e reprimidos por esta ltima; c) tanto nos ilcitos de que trata a alnea a), quanto nos ilcitos de que trata a alnea b) se observa uma violao de ordem religiosa, que exige atos de expiao e de purificao, tanto pblicos quanto privados. Tambm ao lado das sanes religiosas, quando se tratava de crimes contra a estrutura ou segurana estatais (tais como desero, covardia, sedio e traio), a sano perdia seu carter religioso e passava a ser de natureza militar, punindo-se o infrator at com a pena de decapitao. Nesse sentido, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto e processo penale nellantica Roma, 2 ed., Milano: Giuffr, 1998, pp. 19 e ss. Ainda sobre a importncia da religio para o direito penal antigo, v. Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., cap. I.

Em sua perspectiva processual penal, essa fase ficou conhecida pelo exerccio

arbitrrio e desmedido do poder de imperium dos reis, ou de pessoas por eles delegadas

para perseguir e julgar infratores de modo inquisitivo (inquisitio), com punies sem

regras pr-definidas e sem limites, tudo sem procedimento previsto.

O direito penal, em um maior detalhamento, se dividia em direito penal privado e

direito penal pblico. Por direito penal privado deve-se entender os ilcitos penais que

atingiam apenas o indivduo ou, quando muito, seus familiares. Esses ilcitos,

denominados delicta, eram julgados perante tribunais civis7 e segundo as regras da

justia privada (ius civile). Diversamente, o ilcito penal pblico era a minoria das

infraes e tinha como caracterstica ser um comportamento que colocava em risco no

uma pessoa ou famlia, mas a comunidade, em sua segurana contra ataques externos, e o

poder institudo, contra ataques internos (v.g., sedies). Esse tipo de ilcito pblico

recebia o nome de crimina e era julgado pelo ius publicum,8 com participao

decisiva e imperiosa do rex.

7 Nesse sentido, v. Carlo GIOFFREDI, I principi del diritto penale romano,

Torino: Giappichelli, 1970, pp. 4 e ss. O autor, na passagem citada, ainda enumera, dentre os muitos ilcitos tidos como delicta e sujeitos a essa forma de julgamento, o furto, as leses corporais, as injrias, o dano injusto, etc.

8 Nesse sentido, v. Mrio Curtis GIORDANI, Direito penal romano, 2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1987, pp. 4 e ss. No obstante a insegurana das fontes, a afirmao de que era sempre o rex quem decidia as causas penais deve ser tomada com ressalvas. Isto porque, faz todo o sentido que, com a complexidade das relaes do Estado Romano com outros povos, um maior grau de ameaas internas e externas, houvesse um aumento das causas penais em nmero e em graus de dificuldade. Assim, afirma, p.ex., Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 21 e ss., que os julgadores no s nomeavam pessoas para agirem em seu nome e com o imperium que possuam, como tambm se utilizavam de assessores ou consultores jurdicos para orient-los. Nesse sentido, quando se referem aos julgamentos serem feitos todos pelos reis, significa dizer que ou eles ou pessoas por sua delegao julgavam. Sobre as vrias pessoas utilizadas nessa fase pelo rex, v., ainda, Joo Mendes de ALMEIDA JNIOR, O processo criminal brazileiro, 3 ed., Rio de Janeiro: Typ. Baptista de Souza, 1920, v. 1, p. 22.

Essa separao entre ilcitos privados (delicta) e pblicos (crimina) vai se manter

at o perodo monrquico, perpassando todo perodo rgio e a Repblica. Nesse sentido

que se pode entender a comum afirmao de que o processo civil romano foi construdo

sobre a concepo de direito penal; direito penal privado, no caso.9 Ilcitos penais que,

no obstante possussem uma tnue diferena com os ilcitos civis, recebiam o mesmo

tratamento legal para processamento e julgamento, por meio das vrias modalidades de

actio romana.10

Dessa convivncia, em juzo privado, do julgamento de causas cveis e penais

(direito penal privado) resulta que a palavra reus era utilizada, tambm at o perodo

do Baixo Imprio, tanto ao demandado em ao civil quanto ao acusado em ao de

ndole penal, mesmo de natureza pblica (iudicium publicorum). Essa mesma

expresso (reus) era usada para significar o objeto do processo (de res) e, para fora do

processo, para se referir ao obrigado civil.11

Nesse contexto incipiente do direito penal, marcado profundamente pela religio e

por um Estado de cariz autoritrio, derivando do rex todo o poder, o processo penal

praticamente inexistente em regras ou procedimentos, revelando, pela coercitio, um

amplo poder discricionrio dos magistrados. Podiam punir quando, do modo e com a

intensidade que entendessem oportunos.12

9 Carlo GIOFFREDI, I Principi cit., pp. 10 e ss., e Ugo BRASIELLO, Diritto

penale romano, in NUOVO digesto italiano, 2 ed., Torino: UTET, 1938, v. 16, p. 1139.

10 Para a demonstrao de que o direito romano se desenvolveu, neste instante mais antigo, no pela maior preocupao com o direito material, formulando uma legislao definidora de direitos civis, mas por uma angulao processual, por meio da criao de actio, a fim de buscar a tutela daquilo que, mais por sensibilidade que por definio legal, se entendia violado por ato de outrem, v. Ugo BRASIELLO, La repressione penale in diritto romano, Napoli: Jovene, 1937, item 4, e idem, Diritto penale romano cit., p. 1139.

11 Assim leciona Carlo GIOFFREDI, I principi cit., item 4, nota 25. No mesmo sentido, v., ainda, Santiago SENTS MELENDO, In dubio pro reo, Buenos Aires: EJEA, 1971, pp. 45/47, e Giuseppe SABATINI, In dubio pro reo, in NOVISSIMO digesto italiano, 3 ed., Torino: UTET, 1962, v. 8, p. 612.

12 Nesse passo, v., ainda, Carlo GIOFFREDI, I principi cit., pp. 14/16. As palavras de Ugo BRASIELLO, Diritto penale romano cit., p. 1139, so precisas, em vernculo: Nesta poca no existe processo, no existem verdadeiras penas, e no existe, por conseqncia, ainda um verdadeiro direito penal.

O procedimento da cognitio era fundado no sistema da inquisitio e se

desenvolvia de modo inquisitorial primitivo, pelo qual o rei, ou algum por ele

determinado, podia conhecer ex officio (cognio espontnea cognitio) da causa

penal e, sem qualquer formalidade legalmente estabelecida, apurar, julgar e condenar o

tido infrator. Nesse perodo, pela total falta de regramento e utilizao ilimitada do

imperium,13 a coercitio era empregada de modo amplo pelos julgadores (portadores

do imperium por delegao) para punir sem qualquer controle. Nessa perspectiva, esse

procedimento judicante no pode ser tido, ao menos nos moldes que hoje concebemos,

como verdadeiro procedimento penal. No se tratava, nessa fase primeva, de

dispositivos rigorosos e desumanos, mas da ausncia deles.14 O julgamento se dava com

base em costumes e no puro arbtrio do magistrado.15

13 Sobre a noo romana de imperium, v. Lucio BOVE, Imperium, in

NOVISSIMO digesto italiano, 3 ed., Torino: UTET, 1962, v. 8, p. 209. Para esse autor, o imperium era a mais ampla e irrefutvel manifestao do poder militar, poltico, religioso e jurdico exercido pelo rex. Ugo BRASIELLO, Processo penale romano, in NUOVO digesto italiano, 2 ed., Torino: UTET, 1939, v. 17, p. 636, ao tratar dos magistrados do perodo comicial da cognitio, assim descreve seus poderes, em vernculo: O magistrado republicano investido de cognitio, isto , de um poder ilimitado que ao mesmo tempo de preveno, de represso, de correo e de polcia, derivada do seu imperium ilimitado. Ele procede contra fatos que entende punveis por meio de investigaes que entende oportunas, aplicando a pena que entende adequada, salvo algumas disposies das Doze Tbuas.

14 Nesse sentido, so claras as palavras de Teodoro MOMMSEN, Derecho penal romano, traduo de P. Dorado, Bogot: Temis, 1976, p. 224, em vernculo: impossvel fazer um estudo cientfico-expositivo da cognio em sua forma pura, tal qual se verificava no procedimento primitivo em que s intervinha o magistrado, tal qual se verifica tambm no procedimento perante o imperador e seus mandatrios, procedimento que foi uma ressureio do anterior, e assim como se verificava durante o Principado no chamado procedimento extraordinrio, posto em prtica nesta poca ao lado do acusatrio. E impossvel dito estudo, porque a essncia da cognio consistia na carncia de formalidades estabelecidas legalmente. A lei no definia nenhuma forma fixa nem para o incio do juzo, nem em rigor tampouco para seu trmino - grifamos.

15 Nesse sentido, Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., cap. XIV. Salvatore DI MARZO, Storia della procedura criminale romana: la giurisdizione dalle origini alle XII tavole, Napoli: Jovene, 1986, pp. 661 e ss., afirma que cabiam ao rei os julgamentos dos atos mais graves e a pessoas com poderes por ele delegados os julgamentos de fatos menores, porm, reiteradamente, afirma o exerccio direto do poder arbitrrio do rei que, julgando sozinho, exercia um poder sem limites.

Do procedimento em cognitio, do perodo comicial, pode-se extrair, ao que nos

importa para o presente trabalho, as caractersticas que seguem.16

O procedimento comeava por iniciativa do rgo pblico responsvel (cognitio),

podia ser suspenso, encerrado e reaberto conforme entendesse melhor o magistrado

(rex). No havia a vedao do bis in idem, uma vez que a suspenso ou encerramento

do procedimento no implicava absolvio do imputado.17

O direito de defesa somente era exercido se e at onde o magistrado entendesse

conveniente.18 O interrogatrio do imputado era o momento mais importante da

instruo, no podendo o depoente se opor s indagaes ou manifestaes do magistrado

que lembre-se, por ser o prprio rex, ou algum por sua ordem , exercia a coercitio

por derivao direta do imperium que possua, no mais das vezes exercendo-o contra o

interrogado como bem entendesse. O magistrado podia ouvir qualquer pessoa como

testemunha por qualquer meio, inclusive em sigilo, o que permite supor, podendo

submet-la a torturas para obter a verdade.19

O infrator, tido sempre como pecador ou traidor, era preso e levado a julgamento

(em regra, sumrio) em que todo o procedimento resumia-se a aplicar a pena por uma

acusao e julgamento j realizado antes mesmo de sua apresentao ao magistrado. A

priso provisria era decretada quando o magistrado entendesse conveniente,20 sendo

cabvel supor que se realizasse, em alguns casos, at mesmo antes do acusado conhecer a

acusao. Conduta permitida em um sistema em que a certeza (ou quase ela) da culpa j

se formava antes do processo iniciar. Alis, ele se iniciava porque aquela convico j

existia, se no de modo definitivo, ao menos em alto grau.

16 Os aspectos a seguir destacados, e referentes cognitio do perodo

rgio, so os que, mais consensualmente, aparecem nas obras de: Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., pp. 224 e ss.; Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., cap. XIV; Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 18 e ss.; Mrio Curtis GIORDANI, Direito cit., pp. 95 e ss.; e Alessandro MALINVERNI, Lineamenti di storia del processo penale, Torino: Giappicheli, 1972, pp. 1/2.

17 Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 45. 18 Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., p. 224. 19 Essas caractersticas podem ser vistas na obra de Teodoro MOMMSEN,

Derecho cit., p. 225, sendo vlida a suposio da existncia de torturas pela referncia daquele autor a regras, no legais ou impositivas, surgidas aps muito tempo de existncia da cognitio, para se regular e limitar a tortura apenas aos escravos a fim de certificar seus depoimentos.

20 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 1/2.

O julgamento no era fundamentado e correspondia a pura manifestao de poder

(coercitio), no se exigia demonstrao de anlise e convencimento sobre a aplicao

ou no de uma norma jurdica (iudicatio).21 Da por que muitos autores afirmem que o

julgamento penal era apenas um iudicare (decidir a causa), diversamente do iudicium

privatum (para o direito no-penal ou para o direito penal privado), no qual ocorria um

ius dicere (dizer o direito pela aplicao de uma regra ius , a fim de formar uma

jurisprudncia para casos futuros e, assim, desenvolver o direito).22 Como no poderia

deixar de ser, diante do imperium dos julgadores no procedimento da cognitio, as

decises eram irrecorrveis.23

De todo o expendido se pode verificar que a precariedade dos institutos processuais

penais, para no se dizer sua inexistncia, aliada ao rigorismo punitivo da cognitio, no

s construram um sistema persecutrio fundado na presuno da culpa, como tambm

no tinham qualquer preocupao com a humanizao do tratamento do imputado.

Logo, em um sistema com esse cariz no se concebia qualquer referncia presuno de

inocncia.

1.2.1.2. (segue): o procedimento da anquisitio

A anquisitio, segunda fase do perodo comicial, surge paulatinamente como uma

evoluo natural e necessria do procedimento da cognitio em razo das instituies

republicanas que se consolidavam. No mbito processual penal a anquisitio vem com e

devido Repblica, regime sucessor da monarquia.

Nessa emergente conjuntura poltica, o cidado romano passa a assumir a conduo

da nao, diante do desaparecimento da figura onipotente do monarca. As novas leis e

transformaes poltico-sociais revelam uma preocupao em limitar e controlar o poder

dos governantes e de fazer com que ao povo romano sejam reconhecidas garantias frente

ao Estado. Dessa forma, no haver mais o exerccio do imperium, como antes se

conhecia, e o cidado romano comea tambm a determinar os destinos juspolticos de

Roma.

21 Nesse sentido, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 20/22. 22 Nesse sentido, v. Carlo GIOFFREDI, I principi cit., pp. 15/16, e Rogrio

Lauria TUCCI, Lineamentos cit., cap. VIII. 23 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 1/2.

O marco legislativo de incio da anquisitio a edio da Lei das XII Tbuas (450

a.C.).24 Esse diploma legal revela dois aspectos merecedores de destaque na evoluo dos

procedimentos criminais romanos: o primeiro, o surgimento de um novo procedimento

penal (anquisitio) realizado perante o povo reunido em comitia e nos quais ele exerce

o poder judicante;25 o segundo, a permanncia da diviso entre direito penal privado26 e

24 Antonio FERNNDEZ DE BUJN, Derecho pblico romano: recepcin,

jurisdiccin y arbitraje, 9 ed., Madrid: Thomson Civitas, 2006, pp. 85 e ss., informa que a Lei das XII Tbuas, tambm denominada Lex Decemviralis, Legis XII Tabularum ou apenas Lex, teve inicialmente redigidas, at o ano de 451 a.C., dez tbuas, sendo acrescentadas mais duas no ano seguinte (450 a.C.), sendo este o marco da edio dessa lei para a maior parte dos romanistas. Conforme consta do livro Cdigo de Hamurabi Cdigo de Manu Lei das XII Tbuas, Bauru, So Paulo: Edipro, 1994, p. 135, o inegvel e enorme valor dessa obra ter sido uma das primeiras leis que ditava normas eliminando as diferenas de classes, isto em funo de as leis do perodo monrquico no mais se adaptarem nova forma de governo, isto , Repblica; e ter sido a que deu origem ao Direito Civil e s aes da lei. Antonio FERNNDEZ DE BUJN, Derecho cit., p. 85, narra que o Colgio dos Tribunos props ao Senado Romano a criao de uma comisso mista de patrcios e plebeus que teria a misso de la confeccin por escritos de leyes tiles para ambas las partes y adecuadas para garantizar la libertad y la igualdad. O reconhecimento da fora do povo na determinao dos destinos da nao fica evidente quando se l na XI Tbua, inscrio 1: Que a ltima vontade do povo tenha fora de lei. Para comentrios quanto origem, contedo e crticas Lei das XII Tbuas, v. Alfonso CASTRO SENZ, Compendio histrico de derecho romano: historia, recepcin y fuentes, Madrid: Tbar, 2005, pp. 116 e ss. Isso bem demonstra as bases e o perfil juspoltico em que se concebia o novo sistema processual penal: o personagem principal como centro de poder deixa de ser o rei e passa a ser o cidado romano.

25 Conforme a IX Tbua, denominada Do Direito Pblico, segundo a inscrio 4, determina-se: Que os comcios por centrias sejam os nicos a decidir sobre o estado de um cidado (vida, liberdade, cidadania, famlia). Isso bem demonstra que em 450 a.C, data da edio da Lei das XII Tbuas, j se encetava o procedimento criminal da anquisitio que, paulatinamente, substitui o da inquisitio. Sobre a importncia da lei das XII Tbuas como marco para a insero do sistema procedimental perante o povo reunido em comcios (provocatio ad populum), v. Salvatore DI MARZO, Storia cit., pp. 139 e ss.

direito penal pblico, nos moldes do perodo primevo da cognitio, e que persistir, de

forma paulatinamente mitigada, at a fase imperial romana.27

Logo, ao lado do procedimento da cognitio, que se desenvolve pelo sistema

inquisitivo (inquisitio), com manifestao ilimitada e arbitrria da coercitio derivada

do imperium, surge, em progressivo avano, o procedimento da anquisitio. Por esse

ltimo sistema citado visava-se a limitao do poder dos magistrados que, para alguns

casos, viam-se submetidos a uma deciso final proferida pelo povo romano reunido em

comcios (comitia). Nesse novo sistema, surge como grande instituto jurdico

caracterstico a provocatio ad populum, considerado por muitos o primeiro instituto

processual assegurador de garantias aos cidados frente ao Estado.28

26 Toda a VII Tbua, de nomen iuris Dos delitos, traz boa demonstrao

da verdadeira proximidade romana entre ilcito civil (v., p.ex., inscrio 1: Se um quadrpede causa qualquer dano, que o seu proprietrio indenize o valor desse dano ou abandone o animal ao prejudicado, ou, ainda, na inscrio 9: Aquele que causar dano leve indenizar 25 asses) e ilcito penal privado, os denominados delicta (v., p.ex., inscrio 10: Se algum difama a outrem com palavras ou cnticos, que seja fustigado, ou, ainda, inscrio 11: Se algum fere a outrem, que sofra a pena de talio, salvo se houver acordo).

27 Nesse sentido, v. Antonio FERNNDEZ DE BUJN, Derecho cit., pp. 92/94.

28 Sobre a provocatio ad populum como o primeiro grande instituto voltado ao reconhecimento de garantias do cidado frente ao Estado, v. Giovanni PUGLIESE, As garantias do acusado na histria do processo penal romano, traduo de Jos Rogrio Cruz e Tucci, in Jos Rogrio CRUZ e TUCCI, Contribuio ao estudo histrico do direito processual penal: direito romano I, Rio de Janeiro: Forense, 1983, pp. 43/65. Nesse sentido, v., tambm, Rogrio Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 47. Entendendo a provocatio como limitao legal do poder jurisdicional dos magistrados, v. Antonio FERNNDEZ BUJN, Derecho cit., pp. 205 e ss. Bernardo SANTALUCIA, Processo cit., itens 2 e 3, explica que a provocatio fruto de uma sucesso de leis que lhe aperfeioam e ampliam o contedo, logo, h registros do julgamento pelo povo reunido desde antes da Lei das XII Tbuas (450 a.C) at o ano de 300 a.C, com a Lex Valeria de provocatione.

Em breves linhas, e ao que interessa no presente trabalho, a provocatio era uma

garantia conferida ao cidado romano de poder provocar o envio de seu julgamento ao

povo reunido em assemblia (comitia), porquanto somente ela poderia proferir deciso

de condenao pena capital ou pena de multa grave (multa maxima).29 O que

inicialmente muitos autores entenderam tratar-se de um instituto recursal (apelao ao

povo reunido), fixou-se na doutrina como uma fase necessria do julgamento penal

romano que implicasse qualquer daquelas penas.30

Essa opo republicana de um procedimento fundado em um incipiente sistema

acusatrio, limitador do poder dos magistrados, com inegvel tendncia de ampliar as

garantias dos cidados frente ao arbtrio (imperium) estatal, foi se espraiando pelos

vrios institutos processuais e redesenhando-os em face do cidado imputado.

29 Inicialmente, no surgimento da provocatio, apenas os cidados romanos

homens poderiam utilizar-se deste instituto, posteriormente, aps o ano de 300 a.