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Problemas no Paraíso, Slavoj Žižek

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Problemas no Paraíso: artigo de SlavojŽižek sobre as manifestações que

tomaram as ruas do BrasilPublicado em 05/07/2013 |

O Congresso Nacional, tomado pelas manifestações de 17 de junho de 2013 (Foto:

Mídia NINJA)

Por Slavoj Žižek. 

Confira abaixo artigo inédito enviado pelo autor para a Boitempo publicar no livroCidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, com

previsão de lançamento para o final de julho.

Tradução de Nathalia Gonzaga.

Em seus textos de juventude, Marx descreveu a situação alemã como aquela em que a

solução de problemas particulares só era possível através da solução universal(revolução global radical). Ali reside a fórmula mais resumida da diferença entre um

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período reformista e um revolucionário: em um período reformista, a revolução globalcontinua a ser um sonho que, na melhor das hipóteses, sustenta nossas tentativas paraaprovar alterações locais – e, no pior dos casos, impede-nos de concretizar mudançasreais –, ao passo que uma situação revolucionária surge quando se torna claro queapenas uma mudança global radical pode resolver os problemas particulares. Nesse

sentido puramente formal, 1990 foi um ano revolucionário: tornou-se claro que asreformas parciais dos Estados comunistas não seriam suficientes, que era necessáriouma ruptura global radical para resolver até mesmo problemas parciais (fornecimentoadequado de alimentos etc.).

Então onde é que estamos, hoje, em relação a essa diferença? Seriam os problemas eprotestos dos últimos anos sinais de uma crise global que está gradual einexoravelmente se aproximando, ou seriam estes apenas pequenos obstáculos quepodem ser contidos, se não resolvidos, por meio de intervenções precisas e específicas?A característica mais estranha e ameaçadora sobre eles é que não estão explodindoapenas (ou principalmente) nos pontos fracos do sistema, mas também em lugares que

eram até agora tidos como histórias de sucesso. Problemas no Inferno parecemcompreensíveis – sabemos por que as pessoas estão protestando na Grécia ou naEspanha, mas por que é que há problemas no Paraíso, em países prósperos ou que, aomenos, passam por um período de rápido desenvolvimento, como a Turquia, a Suécia eo Brasil? Com uma retrospectiva, podemos agora ver que o “problema no Paraíso”original foi a revolução de Khomeini, no Irã, um país considerado oficialmentepróspero, na via rápida da modernização pró-ocidental, e principal aliado do Ocidentena região. Talvez exista algo de errado com a nossa percepção de Paraíso.

Antes das contínuas ondas de protestos, a Turquia era quente: um modelo de economialiberal próspera combinado com um Islamismo moderado e de “rosto humano”. Aptapara a Europa, mostrou-se um contraste bem-vindo em relação a essa Grécia mais“europeia”, presa em um antigo pântano ideológico e destinada à autodestruiçãoeconômica. É verdade que ocorreram alguns sinais ameaçadores (a insistente negaçãodo holocausto armênio, a prisão e acusação de centenas de jornalistas, a situação nãoresolvida dos curdos, as exigências de uma grande Turquia que iria ressuscitar atradição do império Osman, a imposição ocasional da legislação religiosa etc.), mas queacabaram todos sendo considerados como pequenas manchas que não deveriam ter sidoautorizadas a borrar a imagem internacional de um país em que, aparentemente, a últimacoisa que se poderia esperar são protestos – eles simplesmente não deveriam teracontecido.

Então o inesperado aconteceu: explodiram os protestos da Praça Taksim, no centro deIstambul. E hoje todo mundo já sabe que a transformação do tal do parque que fazfronteira com a praça em um centro comercial não foi exatamente o motivo dosprotestos; um mal-estar mais profundo foi ganhando força sob a superfície. É o mesmocom os protestos que eclodiram no Brasil em meados de junho: foram simdesencadeados por um pequeno aumento no preço do transporte público, mascontinuaram mesmo após essa medida ser revogada. Mais uma vez, os protestosexplodiram em um país que, ao menos de acordo com os meios de comunicação,encontrava-se no seu ápice econômico, desfrutando da alta confiança depositada em seufuturo. Somou-se ao mistério o fato de que os protestos foram imediatamente apoiados

pela presidente Dilma Rousseff, que afirmou estar “encantada” por eles. Sendo assim,

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quem são os verdadeiros alvos de inquietação dos manifestantes sobre a corrupção edesintegração dos serviços públicos?

Em suma, a Turquia quente de repente se tornou uma fria. Então sobre o que foramrealmente os protestos? É crucial não limitá-los a uma sociedade civil secular impondo-

se contra um autoritário governo islâmico apoiado pela maioria muçulmana silenciosa:o que complica a situação é o caráter anticapitalista dos protestos (privatização doespaço público) – o eixo fundamental dos protestos turcos foi a ligação entre oislamismo autoritário e a privatização do espaço público de livre mercado. Essa ligaçãoé justamente o que torna o caso da Turquia tão interessante e de longo alcance: osmanifestantes intuitivamente sentiam que a liberdade de mercado e o fundamentalismoreligioso não são mutuamente exclusivos, que podem muito bem trabalhar lado a lado –um sinal claro de que o “eterno” casamento entre a democracia e o capitalismoaproxima-se do divórcio.

Devemos evitar o essencialismo aqui: não existe um único objetivo “real” perseguido

pelos manifestantes, algo capaz de, uma vez concretizado, reduzir a sensação geral demal-estar (“os protestos são realmente contra o capitalismo global, contra ofundamentalismo religioso, em defesa das liberdades civis e da democracia…”). O que amaioria das pessoas que participaram dos protestos compartilha é um sentimento fluidode desconforto e descontentamento que sustenta e une demandas particulares. Aqui,novamente, o velho lema de Hegel de que “os segredos dos antigos egípcios eramsegredos também para os próprios egípcios” mantém-se plenamente: a luta pelainterpretação dos protestos não é apenas “epistemológica”; a luta dos jornalistas eteóricos sobre o verdadeiro teor dos protestos é também uma luta “ontológica”, que dizrespeito à coisa em si, que ocorre no centro dos próprios protestos. Há uma batalhaacontecendo dentro dos protestos sobre o que eles representam em si: é apenas uma lutacontra a administração de uma cidade corrompida? Contra o regime islâmicoautoritário? Contra a privatização dos espaços públicos? O desfecho dessa situação estáem aberto, e será resultado do processo político atualmente em curso.

O mesmo vale para a dimensão espacial dos protestos. Já em 2011, quando uma onda demanifestações estava explodindo por toda a Europa e pelo Oriente Médio, muitoscomentaristas insistiam que não deveríamos tratá-los como momentos de um mesmomovimento de protestos globais, pois cada um deles reagia a uma situação específica:no Egito, os manifestantes exigiam aquilo que as sociedades contra as quais omovimento Occupy protestava já tinham (a liberdade e a democracia); até mesmo nos

países muçulmanos, a Primavera Árabe no Egito e a Revolução Verde no Irã eramfundamentalmente diferentes: enquanto o primeiro dirigia-se contra um autoritárioregime pró-ocidental e corrupto, o segundo condenava o autoritarismo islâmico). É fácilobservar como essa particularização de protestos ajuda os defensores da ordem mundialexistente: não há nenhuma ameaça contra a ordem global como tal, e sim problemaslocais específicos.

Aqui, no entanto, deve-se ressuscitar o bom e velho conceito marxista de totalidade –neste caso, da totalidade do capitalismo global. O capitalismo global é um processocomplexo que afeta diversos países de maneiras variadas, e o que unifica tantosprotestos em sua multiplicidade é que são todos reações contra as múltiplas facetas da

globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global atual é direcionada àexpansão do reino do mercado, combinada ao enclausuramento do espaço público, à

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diminuição de serviços públicos (saúde, educação, cultura) e ao aumento dofuncionamento autoritário do poder político. É dentro desse contexto que os gregosprotestam contra o reinado do capital financeiro internacional e contra seu próprioEstado clientelista, ineficiente e corrupto, cada vez menos capaz de fornecer serviçossociais básicos; que os turcos protestam contra a comercialização dos espaços públicos e

o autoritarismo religioso; que os egípcios protestaram contra o regime autoritáriocorrupto apoiado pelas potências ocidentais; que os iranianos protestaram contra ofundamentalismo religioso corrupto e ineficiente etc.

O que une esses protestos é o fato de que nenhum deles pode ser reduzido a uma únicaquestão, pois todos lidam com uma combinação específica de (pelo menos) duasquestões: uma econômica, de maior ou menor radicalidade (de temáticas que variam decorrupção e ineficiência até outras francamente anticapitalistas), e outra político-ideológica (que inclui desde demandas pela democracia até exigências para a superaçãoda democracia multipartidária usual). E será que o mesmo já não se aplica ao OccupyWall Street? Sob a profusão de (por vezes, confusas) declarações, o movimento Occupy

sugere duas ideias básicas: i) o descontentamento com o capitalismo como sistema – oproblema é o sistema capitalista em si, não a sua corrupção em particular –; e ii) aconsciência de que a forma institucionalizada de democracia multipartidáriarepresentativa não é suficiente para combater os excessos capitalistas, ou seja, que ademocracia tem de ser reinventada.

Isto, é claro, não significa que, uma vez que a verdadeira causa dos protestos é ocapitalismo global, a única solução seja sobrepor-se diretamente a ele. A alternativa denegociação pragmática com problemas particulares, esperando por uma transformaçãoradical, é falsa, pois ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamenteinconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos dadas com o fato de os EstadosUnidos apoiarem seus próprios agricultores com subsídios; pregar democracia anda demãos dadas com o apoio à Arábia Saudita. Tal inconsistência, essa necessidade dequebrar suas próprias regras, abre um espaço para intervenções políticas: quando ocapitalista global é forçado a violar suas próprias regras, abre-se uma oportunidade parainsistir que essas mesmas regras sejam obedecidas. Isto é, exigir coerência econsistência em pontos estrategicamente selecionados nos quais o sistema não conseguese manter coerente e consistente é uma forma de pressionar o sistema como um todo.Em outras palavras, a arte da política reside em insistir em uma determinada demandaque, embora completamente “realista”, perturba o cerne da ideologia hegemônica eimplica uma mudança muito mais radical, ou seja, que embora definitivamente viável e

legítima, é de fato impossível. Era este o caso do projeto de saúde universal de Obama,razão pela qual as reações contrárias foram tão violentas .

Um movimento político nasce de alguma ideia positiva em prol da qual ele se esforça,mas ao longo de seu próprio curso essa ideia passa por uma transformação profunda(não apenas uma acomodação tática, mas uma redefinição essencial), porque a ideia emsi é comprometida no processo, (sobre)determinada em suamaterialização [1]. Tomemos como exemplo uma revolta motivada por um pedido de

 justiça: uma vez que as pessoas tornam-se de fato envolvidas, percebem que énecessário muito mais para que seja feita a verdadeira justiça do que apenas as limitadassolicitações com que começaram (revogação de algumas leis etc.). O problema,

portanto, é: o que exatamente seria esse “muito mais”? A ideia liberal-pragmática é queos problemas podem ser resolvidos gradualmente, um por um (“as pessoas estão

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morrendo agora em Ruanda, então esqueçamos sobre a luta anti-imperialista e vamosapenas evitar esse massacre”, ou “temos de lutar contra a pobreza e o racismo aqui eagora, sem esperar o colapso da ordem capitalista global”). Recentemente, John Caputoescreveu:

“Eu ficaria imensamente feliz caso os políticos de extrema esquerda dos EstadosUnidos fossem capazes de reformar o sistema, oferecendo serviços de saúde universal,efetivamente redistribuindo a riqueza de forma equitativa e com um código tributáriorevisado, efetivamente restringindo o financiamento de campanha, garantindo osdireitos de todos os eleitores, tratando trabalhadores migrantes humanamente,efetuando uma política externa multilateral que integrasse o poder norte-americano noseio da comunidade internacional etc., ou seja, intervir sobre o capitalismo por meio dereformas sérias e de longo alcance. [...] Se depois de tudo isso, [Alain] Badiou e Zizek se queixassem de que um monstro chamado Capital ainda nos persegue, eu tenderia acumprimentar esse monstro com um bocejo.” [2] 

O problema aqui não é a conclusão de Caputo de que, se pudéssemos conseguir tudoisso dentro do capitalismo, não teríamos porque não permanecer onde estamos. Oproblema é a premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro docapitalismo global em sua forma atual. E se os problemas de funcionamento docapitalismo enumerados por Caputo não são apenas distúrbios acidentais, masestruturalmente necessários? E se o sonho de Caputo for um sonho de universalidade (aordem capitalista universal), sem sintomas, sem os pontos críticos nos quais sua“verdade reprimida” mostra a própria cara?

Os protestos e revoltas atuais são sustentados pela sobreposição de diferentes níveis, e éesta combinação de propostas que representa sua força: eles lutam pela democracia(“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários; contra o racismo e o sexismo,especialmente contra o ódio dirigido a imigrantes e refugiados; pelo estado de bem-estarsocial contra o neoliberalismo; contra a corrupção na política e na economia (empresasque poluem o meio ambiente etc.); por novas formas de democracia que avancem alémdos rituais multipartidários (participação etc.); e, finalmente, questionando o sistemacapitalista mundial como tal e tentando manter viva a ideia de uma sociedade nãocapitalista. Duas armadilhas existem aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o querealmente importa é a abolição do capitalismo liberal-parlamentar, todas as outras lutassão secundárias”) e o falso gradualismo (“no momento, temos de lutar contra a ditaduramilitar e por uma democracia básica; todos os sonhos socialistas devem ser postos de

lado por enquanto”). A situação é, portanto, devidamente sobredeterminada, e devemosinquestionavelmente mobilizar aqui as velhas distinções maoístas entre a contradiçãoprincipal e as contradições secundárias – isto é, os antagonismos –, entre os que maisinteressam no fim e os que dominam hoje. Por exemplo, há situações concretas em queinsistir sobre o antagonismo principal significa perder a oportunidade e, portanto,desferir um golpe à própria luta capital.

Somente a política que leva plenamente em conta a complexidade da sobredeterminaçãomerece o nome de estratégia política. Quando temos de lidar com uma luta específica, aquestão chave é: como nosso engajamento (ou a falta dele) nesta luta afetará as outras?A regra geral é que quando uma revolta começa contra um regime semidemocrático

opressivo (como foi o caso do Oriente Médio em 2011), é fácil mobilizar grandesmultidões com palavras de ordem que facilmente agradam (“pela democracia”, “contra

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a corrupção” etc.). Mas então aproximamo-nos gradualmente de escolhas mais difíceis:quando a nossa revolta é vitoriosa em seu objetivo direto, percebemos que o querealmente nos incomodou (a nosso falta de liberdade, a humilhação, a corrupção social,a falta de perspectiva de uma vida decente) toma uma nova forma e precisamos entãoadmitir que há uma falha em nosso objetivo em si (por exemplo, de que a democracia

“normal” também pode ser uma forma de falta de liberdade), ou que devemos exigirmais do que apenas a democracia política – pois a vida social e a economia tambémdevem ser democratizadas. Em suma, o que à primeira vista tomamos como um fracassoque só atingia um princípio nobre (a liberdade democrática) é afinal percebido comofracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que o princípio pelo quallutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande passo de pedagogia política.

A ideologia dominante mobiliza aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar aessa conclusão radical. Seus representantes nos dizem que a liberdade democrática trazconsigo sua própria responsabilidade e que esta tem um preço – logo, que é um sinal deimaturidade esperar tanto assim da democracia. Dessa forma, nos culpam por nosso

fracasso: segundo eles, em uma sociedade livre somos todos capitalistas investindo naprópria vida, quando decidimos, por exemplo, nos focar mais em nossa educação do queem diversão para que sejamos bem sucedidos. Em sentido político mais direto, osEstados Unidos perseguem coerentemente uma estratégia de controle de danos em suapolítica externa, por meio da recanalização de levantes populares para formascapitalistas-parlamentares aceitáveis: foi o bem sucedido caso da África do Sul, após aqueda do regime do apartheid ; nas Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia,após Suharto etc. É aqui que a política propriamente dita começa: a questão é comoseguir adiante depois de finda essa primeira e entusiasmada etapa, como dar o próximopasso sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária” – como ir além de Mandelasem se tornar Mugabe?

Então, o que significaria isso em um caso concreto? Vamos voltar aos protestos de doispaíses vizinhos, Grécia e Turquia. Numa primeira abordagem, eles podem parecertotalmente diferentes: a Grécia está enroscada nas políticas ruinosas da austeridade,enquanto a Turquia goza de um boom econômico e está emergindo como uma novasuperpotência regional. Mas se, no entanto, cada Turquia gera e contém sua própriaGrécia, suas próprias ilhas de miséria? Em uma de suas Elegias de Hollywood , Brechtescreveu sobre essa aldeia (como ele a chama):

 A aldeia de Hollywood foi planejada de acordo com a noção

Que as pessoas desse lugar fazem do Céu. Nesse lugar Elas chegaram à conclusão de que Deus, Necessitando de um Céu e de um Inferno, não precisouPlanejar dois estabelecimentos, mas

 Apenas um: o Céu. Que esse,Para os pobres e infortunados, funcionaComo Inferno. [3] 

Será que o mesmo não se aplica à aldeia global de hoje, como os casos exemplares doQatar ou de Dubai, onde há glamour  para os ricos e quase escravidão para ostrabalhadores imigrantes? Não é de se admirar, então, que um olhar mais atento revele a

semelhança subjacente entre a Turquia e a Grécia: privatizações, fechamento de espaçospúblicos, o desmantelamento dos serviços sociais, a ascensão da política autoritária

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(basta comparar a ameaça do fechamento da TV pública na Grécia com os sinais decensura na Turquia). Nesse nível elementar, os manifestantes gregos e turcos estãoengajados na mesma luta. O verdadeiro evento teria sido então para coordenar ambas,para rejeitar as tentações “patrióticas”, recusar-se a se preocupar com as preocupaçõesde outros (isto é, deixar de enxergar a Grécia e a Turquia como inimigos históricos) e

organizar manifestações comuns de solidariedade.

Talvez o próprio futuro dos protestos em curso dependa da capacidade de se organizaressa solidariedade global.

[1] Em seu famoso Prefácio à Contribuição à crítica da economia política (São Paulo,Expressão Popular, 2012), Marx escreveu que, em seu pior modo evolutivo, ahumanidade só apresenta a si mesma tarefas que ela é capaz de resolver. Somostentados a inverter essa declaração e afirmar que a humanidade só apresenta para si

tarefas que não pode resolver, desencadeando, assim, um processo imprevisível nodecurso do qual a própria tarefa (objetivo) é redefinida.

[2] John Caputo e Gianni Vattimo,  After the Death of God  (Nova York, ColumbiaUniversity Press, 2007), p. 124-5.

[3] Compostas por Bertold Brecht em 1942, as elegias podem ser ouvidas no álbumSupply and Demand , do músico alemão Dagmar Krause, gravado pela HannibalRecords em 1986. Fazem parte de um total de dezesseis canções, compostas por KurtWeill e Hanns Eisler, e interpretadas por Krause.

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Inspirado pelo discurso que Slavoj Žižek fez aos manifestantes do movimento OccupyWall Street, o quadrinista Pirikart articulou as manifestações brasileiras com os

protestos globais.