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Processo de implementação de Agências e Comitês de Bacia: estudo etnográfico no Brasil, perspectiva histórica na França Patrick Laigneau (PPGAS/UFRGS) Engenheiro, Doutorando em Antropologia Social 1 [email protected] Resumo Esse trabalho apresenta algumas reflexões exploratórias sobre as possibilidades de comparação entre os processos de implementação de Agências e Comitês de Bacia no Brasil e na França, tendo como base o material recolhido para minha pesquisa de doutorado em antropologia social em andamento sobre esta temática. No caso do Brasil, estou realizando um estudo etnográfico na Região Hidrográfica no Guaíba (RS) e em algumas bacias federais. No caso da França, estou realizando um estudo histórico baseado em entrevistas e material bibliográfico, no período 1964-2012, com foco em três Agências de Água. Inicio minha reflexão com uma análise exploratória sobre a influência francesa no processo de elaboração das políticas de recursos hídricos no Brasil. Em seguida, apresento alguns dados sobre a criação e a evolução das Agências e dos Comitês de Bacia no Brasil e na França, enfatizando algumas questões que podem ser discutidas a partir do método comparativo. Por fim, abordo as escolhas metodológicas previstas para dar continuidade a minha pesquisa de doutorado. 1 Agradeço ao CNPq, pela bolsa de doutorado permitindo a realização dessa pesquisa.

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Processo de implementação de Agências e Comitês de Bacia: estudo etnográfico no Brasil, perspectiva histórica

na França

Patrick Laigneau (PPGAS/UFRGS)

Engenheiro, Doutorando em Antropologia Social1

[email protected]

Resumo Esse trabalho apresenta algumas reflexões exploratórias sobre as possibilidades de comparação entre os processos de implementação de Agências e Comitês de Bacia no Brasil e na França, tendo como base o material recolhido para minha pesquisa de doutorado em antropologia social em andamento sobre esta temática. No caso do Brasil, estou realizando um estudo etnográfico na Região Hidrográfica no Guaíba (RS) e em algumas bacias federais. No caso da França, estou realizando um estudo histórico baseado em entrevistas e material bibliográfico, no período 1964-2012, com foco em três Agências de Água. Inicio minha reflexão com uma análise exploratória sobre a influência francesa no processo de elaboração das políticas de recursos hídricos no Brasil. Em seguida, apresento alguns dados sobre a criação e a evolução das Agências e dos Comitês de Bacia no Brasil e na França, enfatizando algumas questões que podem ser discutidas a partir do método comparativo. Por fim, abordo as escolhas metodológicas previstas para dar continuidade a minha pesquisa de doutorado.

1 Agradeço ao CNPq, pela bolsa de doutorado permitindo a realização dessa pesquisa.

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Introdução

Esse trabalho apresenta algumas reflexões exploratórias sobre as possibilidades de comparação

entre os processos de implementação de Agências e Comitês de Bacia no Brasil e na França. Tem

como base o material recolhido para minha pesquisa de doutorado em antropologia social em

andamento sobre esta temática, em co-tutela entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS-UFRGS) e o Groupe Recherche en

Gestion sur les Territoires et l'Environnement da Universidade francesa AgroParisTech (UMR CIRED/

EHESS/ AgroParisTech).

No caso do Brasil, estou realizando um estudo etnográfico do processo de criação de uma Agência

de Região Hidrográfica no Rio Grande do Sul (ainda em fase preliminar) e do processo de criação de

Agências de Água e implementação de cobrança pelo uso da água em algumas bacias federais

(Paraíba do Sul, PCJ e São Francisco). No caso da França, estou realizando um estudo histórico

baseado em entrevistas e material bibliográfico, no período 1964-2012, com foco em três Agências de

Água (Rhône Méditerranée Corse, Seine Normandie e Loire Bretagne).

Inicio minha reflexão com uma análise exploratória sobre a influência francesa na elaboração das

políticas de recursos hídricos no Brasil, abordando a problemática nos termos propostos pela

antropóloga Patrice Schuch:

O maior desafio contemporâneo no campo da chamada “antropologia do direito” parece ser, assim, estudar os significados de lei e dos processos de disputa nos diversos contextos em que são produzidos e apropriados, sem isolá-los de outras influências diversas, restringindo a análise somente ao campo jurídico/legal ou aos processos que, por vezes, ultrapassam os domínios locais. Embora o contexto atual das pesquisas tenha se movido para além do nível local, no sentido de incluir também a circulação de idéias, conceitos e retóricas entre os níveis nacional e transnacional, tal circulação de alta ordem somente adquire significado quando é relacionada com níveis locais de apreensão e ressignificação. É exatamente na possibilidade de inscrição cultural diferenciada de fenômenos hegemônicos que reside a probabilidade de mudança social e de produção da diversidade, o que nos conduz à investigação dos fenômenos legais como artefatos culturais inteligíveis de serem apreendidos pela antropologia. Trata-se, assim, da possibilidade de analisar a construção da legalidade como um artefato cultural, simultaneamente configurado através de dinâmicas transnacionais (SCHUCH, 2009).

Em uma segunda parte do texto, apresento alguns dados sobre a criação e a evolução das Agências

e dos Comitês de Bacia no Brasil e na França, enfatizando algumas questões que podem ser

discutidas a partir do método comparativo.

Por fim, abordo as escolhas metodológicas previstas para dar continuidade a minha pesquisa de

doutorado, inspiradas na analise performática dos rituais.

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Influência francesa na elaboração e implementação das políticas de

recursos hídricos no Brasil

As influências na origem da legislação de recursos hídricos no Brasil podem ser analisadas tomando

como ponto de partida o relatório do Deputado Aroldo Cedraz sobre o projeto de Lei n°2.249 de 1991

que dispõe sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de

Gerenciamento de Recursos Hídricos, etc. Esse texto introduz o substitutivo do relator, que ia resultar

na Lei 9.433 de 1997. No capítulo referente aos antecedentes do projeto de Lei, o relator escreve:

O presente projeto de lei insere-se no processo de regulamentação dos recursos hídricos brasileiro iniciado, há 60 anos, com a promulgação do Código de Águas. Durante esse período, o País passou por profundas transformações. A população cresceu a taxas significativas, deixou o campo e migrou para a cidade; a industrialização alterou radicalmente a estrutura da economia; a sociedade deixou de ser predominantemente rural e agrária, tornando-se majoritariamente urbana e industrial. Essas mudanças resultaram em grande pressão sobre os recursos hídricos, tanto pelo aumento da demanda, quanto por novas modalidades de uso. O marco legal existente necessita ser aperfeiçoado, a fim de refletir as transformações por que passou a sociedade nacional.

Diversas iniciativas foram tomadas, ao longo dos últimos dez anos, no sentido da formulação de uma política nacional de recursos hídricos e de um modelo mais adequado de gestão da água. Dentre elas, cabe ressaltar o seminário Internacional sobre a Gestão de Recursos Hídricos, em março de 1983; a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados que, de setembro de 1983 a outubro de 1984, examinou “a utilização de recursos hídricos no Brasil”; os Encontros Nacionais de Órgãos Gestores de Recursos Hídricos, no triêno 1984/1986; e a Carta de Foz de Iguaçu, da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, em 1989 (CEDRAZ, 1996).

O Seminário Internacional de Gestão de Recursos Hídricos mencionado pelo deputado foi realizado

em Brasília, em março de 1983, por iniciativa do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica

(DNAEE) do Ministério de Minas e Energias. Segundo profissionais da área:

Este encontro, que contou com a presença de especialistas internacionais da Inglaterra, França e Alemanha (com profunda experiência em seus respectivos países), foi de extrema importância ao deflagrar, em escala nacional, um amplo debate sobre a modernização da gestão dos recursos hídricos. Em particular, no Rio Grande do Sul, sua repercussão foi muito grande entre todos aqueles que procuravam apreender e sistematizar a experiência internacional e suas possíveis lições em termos de aplicação à gestão de nossas águas (CÁNEPA et al, 2004).

Um agente de cooperação francês então baseado em Brasília, Vincent Frey, teve um papel de

destaque na organização deste seminário2, facilitando os contatos com universitários e funcionários

2 Inspirado nos trabalhos de Adriana Piscitelli (2008) e Claudia Fonseca (2009), apresento essa reflexão exploratória sobre a influência

francesa no processo de elaboração das leis brasileiras de gestão de recursos hídricos enfatizando a concretude desse processo através

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de Agências de Bacia francesas. Vincent Frey ia se tornar, vinte anos depois, Diretor da Agence de

l’Eau Adour-Garonne3. A influência da experiência francesa nesse processo se deu em grande parte

através de intercâmbios técnicos, que passam concretamente pelo deslocamento de pessoas: já em

1982, um engenheiro francês da Agence Seine-Normandie foi convidado pela Fundação Estadual de

Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA), no Rio de Janeiro, para estudar a eventualidade da criação

de uma Agência e um Comitê de Bacia no rio Paraíba do Sul. Em 1984, dois engenheiros franceses

(do Ministério do Meio Ambiente e da Agence Adour-Garonne) foram convidados para apresentar as

instituições francesas, e em particular as Agências de Bacia, para as autoridades brasileiras. No

mesmo período, houve várias visitas de profissionais brasileiros às Agências de Bacia francesas,

confirmando seu interesse no exemplo daquele país. Em 1988, atendendo a uma solicitação do

DNAEE, dois engenheiros franceses realizaram um estudo preliminar visando a implantação de uma

Agência de Bacia na bacia hidrográfica do rio Doce (BETURE-SETAME, 1988). No mesmo ano, um

engenheiro francês da Agence de l’Eau Rhin-Meuse (o qual tive a oportunidade de entrevistar e que

me entregou seus arquivos pessoais) fez uma visita institucional em Porto Alegre, propondo um

acordo de cooperação entre essa agência e a Secretaria de Saúde e Meio Ambiente o Rio Grande do

Sul. Esse acordo foi assinado em janeiro de 1989, durante uma visita à França do Secretário gaúcho

e três de seus colaboradores. No texto assinado consta o seguinte objetivo:

É previsto, de comum acordo, beneficiar o Estado do Rio Grande do Sul com a experiência adquirida pela Agence de l’Eau Rhin-Meuse no domínio do gerenciamento de recursos hídricos, em particular através do envolvimento dos principais atores da gestão da água, municípios, associações, industriais, em organismos de gestão e de planejamento, assim como em mecanismos financeiros e técnicos

4.

Em 1991, um funcionário da Fundação de Ciência e Tecnologia – CIENTEC do Rio Grande do Sul

realizou um estágio de cinco semanas na França, onde teve oportunidade de visitar três Agências de

Bacia, além do Ministério do Meio-Ambiente. Conclui seu relatório de viagem-estágio com uma

análise sobre a “aplicabilidade concreta do modelo francês” no Brasil (CÁNEPA, 1991). No mesmo

ano, no Estado de São Paulo, foi aprovada a Lei n° 7.663, prevendo, de maneira pioneira no Brasil, a

criação de Agências e Comitês de Bacia5.

Os intercâmbios se multiplicaram nos anos posteriores, no sentido dos participantes brasileiros

conhecerem a experiência francesa e se inspirarem nela para a elaboração (e posterior

da circulação de idéias e pessoas. 3 Tive a oportunidade de encontrar Vincent Frey em Porto Alegre em março de 2010, quando participou do I Fórum Internacional de Gestão

Ambiental, dando uma palestra no Painel: "Acordos institucionais para a gestão eficiente dos recursos hídricos". 4 Arquivos pessoais de Dominique Gros, ex-funcionário da Agence de l’Eau Rhin-Meuse.

5 As dinâmicas – inclusive em termos de intercâmbios internacionais – que levaram à elaboração desta Lei não puderam estar incluídas no

presente trabalho, o trabalho de campo correspondente estando em estágio inicial.

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implementação) de sua legislação. Do lado francês, as motivações para os intercâmbios são pelo

menos de dois tipos: primeiramente, o interesse pessoal de alguns técnicos em realizar trocas,

querendo partilhar sua paixão pelo sistema francês de gestão de recursos hídricos. É o caso de meu

entrevistado, que chegou, mais de uma vez, a pagar as viagens de seu próprio bolso. O segundo tipo

de motivação é de ordem comercial, o governo francês esperando, a longo prazo, um retorno para as

empresas francesas do setor de recursos hídricos e saneamento.

Em janeiro de 1997, o Congresso Nacional votou a Lei n º 9.433 definindo a Política Nacional de

Recursos Hídricos e criando o Sistema Nacional de Recursos Hídricos. A importância da experiência

francesa de gestão de recursos hídricos no processo de elaboração do texto definitivo é explícita no

voto do relator:

Apresentamos, a seguir, reflexões fruto de viagens que realizamos à França, aos Estados Unidos, ao México, à Argentina, ao Chile e à Alemanha [...].

Na França, tivemos a oportunidade de conhecer o funcionamento de um dos mais bem sucedidos sistemas de gestão de recursos hídricos existentes na face da Terra. Esse país criou, em 1964, um sistema nacional de gestão, com vistas a reverter o processo acentuado de degradação das águas de seus rios. O território nacional foi dividido em seis grandes bacias hidrográficas e em cada uma delas criados dois organismos: os comitês de bacia hidrográfica e as agências financeiras de bacia, atualmente denominadas agências da água. Após quase trinta anos de bons resultados, esse sistema foi aperfeiçoado em 1992 (CEDRAZ, 1996).

Segue então uma descrição detalhada do “sistema francês”:

Os princípios básicos do sistema francês são: gestão por bacia hidrográfica; participação ativa de todos os segmentos da sociedade interessados em recursos hídricos, como o poder público, os usuários das águas e a sociedade civil organizada; cobrança do lançamento de despejos líquidos em corpos de água, aplicando, na prática, o princípio do usuário-pagador; cobrança do uso de recursos hídricos em níveis que sustentem financeiramente o sistema e possibilitem alavancar os investimentos necessários em projetos e obras. Sua célula básica são os comitês de bacia hidrográfica, uma espécie de parlamento da bacia onde estão representados todos os segmentos sociais interessados. Essa organização possibilita que os habitantes da bacia atuem na formulação e na implementação de uma política para os seus recursos hídricos. A gestão desses recursos é realizada pelas agências de bacia, intimamente ligadas aos comitês. Elas realizam o planejamento da disponibilidade, do uso, da conservação e da recuperação dos recursos hídricos da bacia; executam a cobrança de seu uso; gerem os recursos financeiros arrecadados com a cobrança; atuam como bancos de fomento, financiando parte da implantação das obras que foram identificadas como necessárias; apóiam os trabalhos dos comitês, atuando como suas secretarias executivas (CEDRAZ, 1996).

Finalmente, o relator conclui sobre a pertinência de adotar um sistema similar, e aponta para algumas

expectativas dos autores da Lei:

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A experiência francesa consolidou nossa convicção sobre as vantagens da gestão de recursos hídricos por bacia hidrográfica, com ampla participação dos usuários da água e da sociedade em geral. Pudemos verificar não somente a sólida viabilidade financeira do sistema, como a possibilidade de o mesmo gerar os recursos financeiros essenciais para alavancagem dos investimentos necessários à garantia de disponibilidade e de melhoria de sua qualidade (CEDRAZ, 1996).

Alguns estados haviam se antecipado ao governo federal, elaborando suas políticas estaduais de

gestão de recursos hídricos a partir de 1991 (caso de São Paulo). Gradualmente, todos os estados

brasileiros adotaram políticas de gestão estaduais dos recursos hídricos, como apresentado nos

mapas e no gráfico da Figura 1.

Figura 1 – Evolução do número de estados com lei instituindo Política Estadual de Recursos Hídricos. Fonte: ANA, 2009.

Agências e Comitês de Bacia no Brasil

No Brasil, ao contrário da França, os Comitês de Bacia previstos na Lei federal e em todas as Leis

estaduais não foram criados de só uma vez, mas estão sendo instituídos pelos governos (federal ou

estaduais), por iniciativa própria ou a partir de uma mobilização dos atores locais. Os membros dos

Comitês são escolhidos segundo um processo qualificado como “de baixo para cima” por

pesquisadores e protagonistas do campo de recursos hídricos, em oposição ao caso francês onde “o

modo de representação é do tipo de cima para baixo: o Estado, como gestor das águas, estabeleceu

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a composição dos comitês, bem como os colégios eleitorais a partir dos quais os representantes

deveriam ser escolhidos” (CÁNEPA et al, 2004).

Em 2011, existem no Brasil 164 Comitês de Bacia estaduais e nove Comitês de Bacia interestaduais,

que podem ser localizados no mapa da esquerda na Figura 2. As Agências de Água, também

inspiradas no exemplo francês, são entidades executivas responsáveis por prestar apoio aos Comitês

de Bacia, arrecadar a cobrança pelo uso da água e administrar os recursos correspondentes. Uma

Agência de Água pode abranger o território de um ou mais Comitês de Bacia. Existem atualmente

seis Agências de Água no Brasil, abrangendo as bacias indicadas pelo mapa da direita na Figura 2.

Figura 2 – Comitês estaduais e interestaduais existentes (na esquerda) e territórios cobertos por uma Agência de Água (na direita) no Brasil em 2010. Fonte: ANA, 2011.

No Brasil, a maioria dos Comitês de Bacia não se beneficia do apoio de uma Agência de Água,

limitando muito sua atuação. Neste aspecto, o Sistema Nacional de Recursos Hídricos, quase 15

anos após a aprovação da Lei que o instituiu, encontra-se apenas parcialmente implementado.

Em 2000 foi criada a Agência Nacional de Águas (ANA), autarquia responsável pela implementação

da Política Nacional de Gestão de Recursos Hídricos, incluindo a cobrança pelo uso de recursos

hídricos de domínio da União. A Agência Nacional de Águas é financiada por receitas provenientes

da cobrança do setor hidrelétrico, num valor variável a cada ano (168,3 milhões de reais em 2010).

Ao contrário das demais Agências de Água, a ANA não está ligada a um Comitê de Bacia.

Ao mesmo tempo em que estão sendo criadas as Agências, a cobrança pelo uso da água e os

programas de intervenção associados estão sendo implementados gradualmente, por iniciativa de

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cada Comitê de Bacia (ao contrário do caso francês, onde a cobrança foi implementada na mesma

data em todo território):

Em 2002 foi criada a primeira Agência de Água do país, a AGEVAP - Associação Pró-

Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul; as primeiras cobranças

foram arrecadadas em março de 2003, no curso principal do Rio Paraíba do Sul (de

domínio federal).

No ano seguinte, a cobrança foi implementada em rios estaduais de todas as bacias

hidrográficas do estado do Rio de Janeiro.

Em 2005, o Consórcio PCJ - Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba e

Capivari, foi indicado para exercer funções da Agência de Águas dessas bacias, e em

janeiro de 2006, a cobrança foi implementada no curso principal dos Rios Piracicaba,

Capivari e Jundiaí (PCJ, de domínio federal);

No ano seguinte, a cobrança foi estendida a toda bacia hidrográfica dos Rios Piracicaba,

Capivari e Jundiaí (em rios de domínio estadual).

Em 2010, a cobrança foi implementada em várias bacias hidrográficas do estado de São

Paulo (Bacia do Rio Sorocaba e Bacia do Médio Tietê).

No mesmo ano, a AGB Peixe Vivo - Associação Executiva de Apoio à Gestão de Bacias

Hidrográficas Peixe Vivo e a ABHA - Associação Multissetorial de Usuários de Recursos

Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio Araguari foram habilitadas a exercer as funções de

Agências de Bacia e a cobrança foi implementada em bacias estaduais de Minas Gerais

(bacia do Rio das Velhas e bacia do Rio Araguari), bem como no curso principal do Rio

São Francisco (de domínio federal).

Em outubro de 2011, a cobrança foi implementada no curso principal do Rio Doce (de

domínio federal).

No Brasil, as receitas da cobrança têm aumentado de forma quase exponencial desde a sua

implantação em 2003, como ilustra o gráfico da Figura 36.

6 A cobrança do setor hidrelétrico, que não passa pelos Comitês de Bacia, não foi incluída nesse gráfico.

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Figura 3 – Receitas da cobrança no Brasil desde sua implantação 2003 (em milhões de reais). Fonte: gráfico do autor a partir de informações de diversas fontes.

Este aumento é devido principalmente ao número crescente de bacias nas quais é implementada a

cobrança. Em 2010, o total arrecadado através da cobrança pelo uso da água no Brasil em todas as

bacias mencionadas acima foi de 105 milhões de reais, equivalente a 42 milhões de euros (ANA,

2011), ou seja, 45 vezes menos do que o montante recolhido na França durante um período

equivalente.

Dessa situação resulta que o montante arrecadado através da cobrança, evidentemente, é

insuficiente para financiar os investimentos previstos nos Planos de Recursos Hídricos das bacias

consideradas, como mostra a Tabela 1.

Bacia Despesas anuais

previstas nos planos de recursos hídricos

Valores arrecadados em 2010

Relação cobrança/ despesas

Paraíba do Sul 330 21,50 6,52%

PCJ 290 35,30 12,18%

São Francisco 5206 18,20 0,35%

Tabela 1 – Comparação de despesas previstas e arrecadação com a cobrança nas Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, Paraíba do Sul e São Francisco (em milhões de reais). Fonte: ANA, 2011.

Uma avaliação mais abrangente, em todo o país, estima o total das despesas no setor da água em

R$ 21,4 bilhões em 2009 (ANA, 2011). A cobrança arrecadada no mesmo ano representa 53 milhões

de reais (ANA, 2010), ou seja, apenas 0,25% desse valor.

Incluindo o valor da cobrança do setor hidrelétrico destinado à ANA (149 milhões de reais em 2009),

chegamos a um valor de 202 milhões de reais, ou seja, 0,94% das despesas do setor. Incorporando

também os valores das compensações financeiras do setor hidrelétrico destinadas ao Ministério do

Meio Ambiente (49 milhões de reais em 2009), aos estados e municípios (743 milhões de reais em

0

20

40

60

80

100

120

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Receitas da cobrança no Brasil (em milhões de reais) Bacia do Rio Araguari

Bacia do Rio das Velhas (Minas Gerais)

Rio São Francisco (federal)

Outras bacias estaduais do estado de São Paulo

Bacias estaduais PCJ

Rios PCJ (federal)

Bacias estaduais do estado do Rio de Janeiro

Rio Paraíba do Sul (federal)

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20097, que não são totalmente afetados ao setor de recursos hídricos), chegamos a um valor total de

994 milhões de reais, ou seja, 4,64% das despesas no setor.

Em comparação, o custo total de implementação dos programas de ações para as bacias francesas

para o período 2009-2015 foi estimado em torno de 27 bilhões de euros (ONEMA, 2010). Os IX

Programas das Agências de Água, em comparação, representam um orçamento total de 13,8 bilhões

de euros para o período 2007-2012. A partir dessa estimativa, pode-se considerar que as Agências

de Água contribuam para o financiamento de quase metade dos custos da política da Água na

França.

No Brasil, além de seu montante ser insuficiente, existe certa dificuldade em aplicar o dinheiro

arrecadado através da cobrança, principalmente na bacia do Paraíba do Sul, embora a cobrança seja

arrecadada há sete anos. Neste caso, o principal motivo citado no relatório do Contrato de Gestão é a

dificuldade dos portadores de projeto (municípios) para elaborar e apresentar projetos a serem

financiados por recursos provenientes da cobrança. Outra dificuldade importante vem do fato dos

valores arrecadados com a cobrança não poderem ser distribuídos a agentes privados, exceto no

caso da cobrança estadual de São Paulo, onde a Lei nº12.183 de 29/12/2005 o autoriza

explicitamente. A Tabela 2 mostra a relação entre o valor das cobranças arrecadadas e o valor das

intervenções financiadas para os dois Comitês Federais onde existem alguns anos de experiência de

implementação desses instrumentos.

Bacia Paraíba do Sul (2003-2010) PCJ (2006-2010)

Valor total arrecadado 56,2 75,3

Rendimentos 10,4 11,4

Total disponível 66,6 86,7

Valor das intervenções Deliberações do Comitê 40,5 82,0

Licitado 23,0 68,4

Desembolso 11,4 ???

Custeio da Agência 6,6 6,5

Total das despesas 18,0 28,8

Tabela 2 – Aplicação dos valores arrecadados pela cobrança (em milhões de reais). Fonte: tabela do autor a partir de informações de origens diversas.

Nos casos citados, as intervenções previstas (deliberações do Comitê) representam 61% (Paraíba do

Sul) e 95% (PCJ) dos recursos. Os valores licitados são, por sua vez, de 35% (Paraíba do Sul) e 79%

(PCJ) dos recursos. Quanto às despesas efetivamente realizadas no final de 2010, eram de 27%

(Paraíba do Sul) e 33% (PCJ) dos recursos disponíveis.

Treze anos após a adoção da Lei 9.433/1997, esses resultados estão longe das expectativas

mencionadas na citação do deputado Aroldo Cedraz (sólida viabilidade financeira do sistema;

7 Fonte: SOARES NETO, P.; CANALI, 2010.

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possibilidade de o mesmo gerar os recursos financeiros essenciais para alavancagem dos

investimentos necessários à garantia de disponibilidade e de melhoria de sua qualidade). Mas a

cobrança ainda é um instrumento novo, que pode (ou não) chegar a cumprir um papel de destaque

na política da água, como é o caso hoje na França, após uma longa história.

Agências e Comitês de Bacia na França

Como descrito pelo relator da Lei 9.433/1997, o parlamento francês aprovou em 1964 uma lei criando

as Agências e os Comitês de Bacia Hidrográfica. Em cada uma das seis grandes bacias hidrográficas

dos pais, uma Agência Financeira de Bacia8 ficou responsável por implementar programas de ações

para diminuir a poluição.

Esses programas são financiados a partir de uma cobrança paga pelos usuários da água da bacia

(indústrias, agricultores, companhias de saneamento, etc.), em função da quantidade de água

utilizada ou da quantidade de poluição lançada nos corpos hídricos. Para administrar as Agências

foram criados os Comitês de Bacia, reunindo representantes do Estado nacional, dos municípios e

dos usuários de água, e cujo papel principal é decidir os valores da cobrança pelo uso da água e os

programas a serem financiados a partir dos valores arrecadados.

Figura 4 – Comitês e Agências de Bacia na França

Grande parte dos usuários, inicialmente reticente, acabou aderindo ao sistema. O valor da cobrança e

dos programas de intervenções foi aumentando gradativamente, até representar hoje, para as seis

8 A partir de 1992, as Agências Financeiras de Bacias passam a ser chamadas de Agências de Água.

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agências francesas, um valor total de dois bilhões de euros por ano. O gráfico da Figura 5 ilustra a

evolução dos valores de cobrança para o caso da Agência Rhône Mediterranée & Corse.

Figura 5 – Valores anuais de cobrança arrecadada pela Agence de l’Eau Rhône Mediterranée & Corse. Fonte: gráfico do autor a partir de informações sintetizadas por Guillaume Mattersdorf, estagiário na Agence de l”eau Rhône Méditerrané & Corse.

Em 1992, uma nova Lei modernizou a gestão de recursos hídricos na França, ampliando o papel dos

Comitês de Bacia em termos de gestão territorial, mas deixando inalterados os mecanismos de

cobrança, apesar de o contexto ter mudado completamente desde sua implantação, em particular no

que diz respeito à importância das considerações ambientais em relação aos usos econômicos da

água. No mesmo momento, houve uma duplicação dos valores das cobranças arrecadadas pelas

Agências de Água (como ilustra o gráfico acima no caso da Agência RMC), justificada pela

necessidade de financiar grandes investimentos para atender as exigências da Diretiva Européia de

21 de Maio de 1991, relativa às águas residuais urbanas (Eaux résiduaires urbaines - ERU): sob pena

de multa, todas as cidades deviam dispor de sistemas de coleta e tratamento de esgotos (no mínimo

em nível secundário) até 2000 ou 2005, dependendo de seu tamanho. A maior parte do aumento foi

concentrada na cobrança pela poluição doméstica, repercutindo quase integralmente nas contas de

água dos habitantes, e gerando, ao longo do tempo, um descontentamento ligado ao aumento do

preço da água como um todo (a parte da cobrança representando, no máximo, 15% desse preço).

Em 1997 (ano da aprovação da Lei 9.433/1997 no Brasil) foi publicado na França um relatório oficial

de avaliação das Agências de Água. O documento, encomendado pelo governo e elaborado com a

participação dos mais reconhecidos estudiosos do tema, concluía apresentando várias possibilidades

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Cobranças arrecadadas (milhões de euros atualizados no valor de 2006)

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de aprimoramento das Agências, no sentido de aumentar a eficiência de suas ações do ponto de vista

econômico (COMMISSARIAT AU PLAN, 1997). Entretanto, um ano depois, no conselho ministerial do

dia 22 de julho de 1998, Dominique Voynet, então Ministra do Meio Ambiente na França, anuncia a

criação de uma taxa ecológica. Batizada TGAP (Taxa Geral sobre as Atividades Poluentes), esse

novo imposto ia marcar o início de uma nova era de “tributação ecológica” no país. Este anúncio

significava o fim do sistema descentralizado e participativo de gestão da água, na medida em que as

cobranças, votadas ao nível das bacias hidrográficas pelos Comitês de Bacias, seriam substituídas

pela TGAP, um imposto decidido pelo parlamento ao nível nacional. Os recursos financeiros que

sustentavam as atividades das Agencias das Águas, até então financeiramente independentes,

seriam arrecadados pelo Ministério da Fazenda, sem atribuição determinada (e menos ainda garantia

de volta ao setor de meio ambiente). Nesta data, muitos dos responsáveis das Agências e membros

de Comitês de Bacia estavam de ferias. Muitos pensaram num primeiro momento que se tratava de

uma brincadeira, tão inesperado era o anuncio. Mas logo, todos se deram conta da seriedade e,

portanto, da gravidade da situação.

Esse projeto provocou um debate vigoroso entre os atores do sistema francês de gestão da água

sobre os pontos fortes e os pontos fracos do sistema das Agências e dos Comitês de Bacia. Por

exemplo, em outubro de 1998, um colóquio sobre o tema “A TGAP: Um questionamento radical da

política da água?” foi organizado no Senado (SENAT, 1998). Um mês mais tarde um encontro sobre o

tema “As instituições francesas à prova da teoria econômica e da ciência política”, foi organizado em

Paris pela Academia da Água (ACADEMIE DE L’EAU, 1998). Em ambas as ocasiões, dezenas de

palestrantes, entre os quais vários protagonistas da elaboração da Lei de 1964 e da criação das

Agências, apresentaram informações e reflexões sobre sua história e seu funcionamento, e

argumentaram a favor ou (principalmente) contra o projeto de TGAP.

A favor do projeto de TGAP, o principal argumento era o de que as Agências de Água não aplicavam

de maneira satisfatória o princípio poluidor-pagador. Em outras palavras, as cobranças não eram

incitativas, no sentido de levar a uma mudança de comportamento dos poluidores. Essa situação

resultava da própria lógica do sistema: os usuários, com o poder de decidir sobre os valores das

cobranças nos Comitês de Bacia, defendiam seus interesses imediatos em vez de defender o meio-

ambiente. Contra o projeto de TGAP, o principal argumento era que as Agências de Água não tinham

como objetivo aplicar o princípio poluidor-pagador no seu estrito sentido econômico, mas promover

uma gestão participativa e descentralizada dos recursos hídricos. Uma centralização, que resultaria

da TGAP, teria como efeito de substituir essa lógica de ação coletiva, com forte adesão dos usuários,

por uma lógica individualista, cujos resultados não seriam garantidos.

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De maneira independente do projeto de TGAP, grande parte dos funcionários das Agências e dos

membros dos Comitês de Bacia concordava com algumas críticas às Agências de Água já

apresentadas no relatório do Commissariat Général au Plan, em 1997. Uma delas dizia respeito ao

pagamento, pelos usuários domésticos, de cerca de 80% dos valores da cobrança, proporção sem

relação com sua participação no uso e na poluição dos recursos hídricos na França, enquanto o setor

agrícola, com impacto significativamente superior em termos de consumo e de poluição de água,

pagava uma parcela insignificante da cobrança. A composição e o funcionamento dos Comitês de

Bacia foram também objeto de muitas críticas por privilegiar os usuários econômicos (indústria e

agricultura) em detrimento dos representantes da população, e por carecer de transparência.

O projeto de substituição da cobrança pela TGAP foi rapidamente descartado, dando lugar a um novo

projeto de reforma das Agências de Água. As negociações e discussões se prolongaram até

dezembro de 2006, quando foi votada uma nova Lei de Recursos Hídricos, introduzindo um controle

dos valores das cobranças pelo Parlamento e uma reforma de seus mecanismos. Ao mesmo tempo,

a Diretiva-Quadro da Água (DQA), estabelecendo um quadro de ação comunitária no domínio da

política da água dos países da União Européia, foi adotada em 23 de outubro de 2000. Ambas as

evoluções institucionais, às quais se acrescentou recentemente o contexto sócio-econômico da crise

financeira na União Européia, resultaram em uma transformação profunda do funcionamento das

Agências e dos Comitês de Bacia na França.

Considerações finais

Na minha pesquisa de doutorado, considero o uso da experiência francesa de maneira dinâmica,

como uma referência mobilizada e atualizada pelos atores sociais em contextos determinados, a

partir da perspectiva da construção e atualização performática dos mitos (PEIRANO, 2001). Os

intercâmbios e os eventos citados no presente documento exploratório, portanto, constituirão o fio

condutor para analisar a concepção e a implementação de políticas públicas inovadoras em ambos

os lados do Oceano Atlântico.

Minha posição enquanto pesquisador merece alguns comentários, sobretudo devido à minha

interferência no objeto de pesquisa. Fui funcionário de uma Agência de Água na França entre 1995 e

2000, e, a partir de 1998, tive a oportunidade de coordenar um grupo de trabalho do SNE-CFDT,

órgão representativo dos funcionários das Agências da Água e do Ministério do Meio Ambiente, que

elaborou uma contra-proposta ao projeto de reforma da política da água na França (SNE-CFDT,

2000). Esta proposta foi discutida com os principais atores do debate, inclusive o próprio governo.

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Elaborei uma análise crítica da experiência francesa, que foi colocada em perspectiva com as visões

dos outros segmentos da sociedade (ver, por exemplo, CONSEIL ÉCONOMIQUE ET SOCIAL, 2000).

A partir dessa experiência, sou freqüentemente solicitado para participar de palestras ou discussões

no Brasil sobre o tema das Agências de Bacia ou da cobrança pelo uso da água. Como mais um

participante nos intercâmbios entre França e Brasil, apresento então uma visão do “sistema francês”

marcada por minha trajetória pessoal.

Na tese, inspirando-me no tratamento dado por Victor Turner (1974) ao caso do assassinato de

Thomas Becket, penso em abordar a “crise da TGAP” como um drama social, a partir do qual é

possível desenvolver uma análise antropológica das questões sociais em jogo na história das

agências de bacias. Segundo o modelo do autor, os “dramas sociais” se caracterizam por quatro

fases. A primeira é qualificada como fase de separação ou ruptura, e define-se pela quebra de algum

relacionamento considerado crucial por parte do grupo social considerado. A segunda é a

intensificação da crise, aumentando o antagonismo das posições. A terceira fase consiste, a partir de

uma ação remediadora, na tentativa de reconciliação ou ajuste entre os grupos envolvidos na crise.

Finalmente, a quarta etapa caracteriza-se, segundo os casos, pelo reforço da ordem inicial ou pela

instauração de uma nova ordem (TURNER, 1974). A repercussão dessa crise no Brasil, foco central

de minhas investigações no momento em que estou escrevendo essas linhas, oferece uma chave de

leitura interessante para pensar o futuro das Agências de Água em ambos os país.

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