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PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL
(PARTE II)
Apostila para aula de filosofia medieval
Prof. Marcos Aurélio Fernandes
Fil-UnB
2017.1
A ESCOLÁSTICA
A filosofia antiga e a patrística são fontes para a filosofia medieval escolástica. A
escolástica se difere da patrística por uma maior distinção entre fé e saber, filosofia e
teologia. A “escolástica” é a forma mais amadurecida do pensamento medieval no
mundo latino. Os períodos da escolástica são:
1. A pré-escolástica: a filosofia da época do renascimento carolíngio (séc. IX);
2. A escolástica nascente, que se desenvolve da primeira metade do século XI
até o fim do século XII;
3. A alta escolástica, que vai de 1200 até cerca de 1340 – o ápice da filosofia e
da teologia na idade média latina;
4. A escolástica tardia, de 1340 até o início do renascimento – um tempo de
estarrecimento do pensamento escolástico, de demolição, e de passagem
para o pensamento moderno.
Escolástica é o título que se emprega para o saber cultivado na “schola”. De
“schola” vem o título “scholasticus”.
É o termo que designava inicialmente qualquer
pessoa que ensinasse as septem artes liberales, as sete artes
liberais, herdadas do antigo sistema de ensino. São elas a
2
gramática, a dialética, a retórica, que formam os três
primeiros caminhos, o trivium, da educação; enquanto a
aritmética, a geometria, a música e a astronomia compõem
os quatro outros caminhos da formação fundamental de
toda a idade média. São ensinadas desde Carlos Magno nas
escolas do palácio, das catedrais e dos conventos. Como os
mestres de todo ensino, seja do primeiro, do segundo ou do
terceiro grau, são quase sempre teólogos, o termo
scholasticus, na forma de doctores scholastici, foi sendo
transferido também para os professores e docentes de
teologia, chegando, por fim, a designar todos os que se
ocupavam com a scientia numa instituição de ensino. O
termo é uma latinização do grego skholastikos, cujo uso mais
antigo pode-se constatar numa carta de Teofrasto, sucessor
de Aristóteles, na direção do Perípato, escrita a seu discípulo
Fanias, conservada em parte por Diógenes Laércio, um
compilador do segundo século. O termo grego se deriva do
substantivo skholé, em alemão Schule, em inglês school, em
latim schola, nas neolatinas école, scola, escola, escuela.
Skholé, em grego, diz o ócio criativo de forças e valores
culturais, os latinos traduziram por otium, o ócio, e o
contrário a-skholé, por neg-otium, o não ócio. Assim, o
negócio, supõe que se suspenda a criação e a inventividade
cultural e se opere com os recursos já criados em condições
já dadas!
PRÉ-ESCOLÁSTICA: A FILOSOFIA DA ÉPOCA DO RENASCIMENTO CAROLÍNGIO (SÉC.
IX)
A escola romana, pública e laica, após as invasões bárbaras e a queda do Império
Romano do Ocidente (476), desapareceu nos primeiros decênios do século VI na Gália,
na Espanha e Itália, junto com a própria instituição do Estado tardo-antigo, imperial. Em
seu lugar organizou-se uma rede de escolas eclesiásticas, instaladas junto a mosteiros e
3
catedrais. Sob a égide da Igreja foi definido o programa e os métodos de ensino a partir
da herança patrística. Depois de Agostinho e da queda do Império Romano do Ocidente,
os esforços dos doutos cristãos foi o de transmitir o legado da cultura greco-romana aos
povos dominadores, os germanos (francos, vândalos, alamanos, burgúndios, visigodos,
ostrogodos) chamados de “bárbaros”, antes de tudo, pelas Artes Liberais. O “De doctrina
Christiana”, de Agostinho, lançou o projeto do cultivo do saber na cristandade latina
medieval1. Depois da contribuição de Agostinho, a de Boécio, que era cristão laico, é a
que mais se destaca.
Com Cassiodoro (514-584)2 inaugura-se a época da produção cultural dos
mosteiros. No campo dos saberes se destacam, por este tempo, o bispo Isidoro de
1 Na concepção de Agostinho, o estudo das Artes Liberais (o trivium: gramática, dialética e retórica; e o quadrivium: geometria, astronomia, música e aritmética) ajudaria não somente a tornar o homem eloquentíssimo e doutíssimo (eloquentissimus et sapientissimus), segundo o projeto romano de formação (a Humanitas, versão romana da Paideia grega), mas também perfeito (perfectus), no sentido ético e religioso do cristianismo1. Com efeito, neste projeto cristão de saber, o cultivo das Artes Liberais constitui o mais elementar do “studium sapientiae” (estudo da sabedoria). Elas formam o degrau básico da formação do homem cristão, a filosofia seria o degrau intermediário e a “doctrina christiana” (“doutrina cristã”: estudo da “sacra pagina”, da Bíblia, o degrau superior). As Artes Liberais teriam um papel propedêutico para a filosofia. Elas ajudariam a fornecer “argumenta certíssima” (argumentos certíssimos) para quem se propõe a filosofar. Depois, serviriam para exercitar o “animus” (ânimo, espírito), no sentido da sua afinação (eruditio) e no sentido de torna-lo capaz de discernir as coisas mais sutis (ad subtiliora cernenda), pois teriam a capacidade de ajudar o estudante a passar das coisas corpóreas às incorpóreas, do temporal ao intemporal, do real ao ideal, da criatura ao Criador. O estudo das Artes Liberais e da Filosofia, porém, serviriam ao estudo da “Doctrina Christiana”, que partiria da investigação da Bíblia (os medievais falarão do estudo da “sacra pagina”) e que se dedicaria à compreensão dos dados da revelação divina contidos no livro sagrado do cristianismo, os artigos de fé confessados pela Igreja, segundo a sentença de Agostinho, que se tornou um mote para os medievais latinos: “credo ut intelligam” (creio para compreender). 2 Cassiodoro foi sucessor de Boécio como Mestre dos Ofícios no reinado de Teodorico. Este viveu no centro da tensão entre romanos, godos e bizantinos. Depois de ter vivido um tempo em Constantinopla, fundou na costa do mar Jônio, na Calábria, um mosteiro de nome “Vivarium”. No seu mosteiro, Cassiodoro criou uma biblioteca que no período final da Antiguidade Clássica pretendia colocar textos gregos à disposição de leitores latinos e preservar para a posteridade textos sagrados e profanos. Ali formou leitores, copistas e tradutores dos manuscritos gregos antigos. Dedicou-se também à história natural e à medicina. Seu projeto pedagógico se inspirou nas escolas de Alexandria e de Nísibe. Para guiar a leitura dos monges, Cassiodoro redigiu as suas Instituições das letras divinas e seculares (560-580). A filosofia era representada aí por uma divisão das ciências e por um resumo do Organon.
4
Sevilha (560-633)3 e Beda, o Venerável (672/673-735)4. Desde o século VI, pois, até o
século XI o monaquismo foi o principal ambiente da transmissão cultural latina. A Igreja
se tornou, assim, através do monaquismo, a educadora do ocidente latino nos primeiros
séculos de Idade Média5.
O ocidente bárbaro é cristão e teólogo. Cristão, ele
vê a ascensão de um monarquismo específico. Teólogo, ele
desenvolve suas concepções trinitárias. Cristão e teólogo,
ele confia a monges o cuidado de produzir uma cultura que
tenha seus próprios objetivos, ritmos, tempos, ideais. Até o
ano mil, é o mundo da clausura que assegura, sozinho, a vida
do espírito, a manutenção da vida antiga e as indispensáveis
renovações6.
Estes monges, certamente, não intencionavam dedicar-se à filosofia como tal,
mas, ao tratarem de questões teológicas, tinham que se haver com a filosofia. Assim,
“estabeleceram as condições de uma prática filosófica propriamente ocidental”7.
O “renascimento carolíngio” trouxe consigo um novo impulso de estudos e de
pensamento na Alta Idade Média, incorporando mais fortemente o estudo da filosofia8.
3 A obra mais famosa de Isidoro chama-se “Etimologias”. É uma espécie de enciclopédia de saberes profanos e religiosos, dedicada ao rei visigodo Sisebut. Ele escreveu também um livro de “Sentenças”, manual de teologia dogmática, moral e espiritual. Isidoro procura escrever, nas “Etimologias” sobre as diferenças das palavras e as diferenças das coisas. Pressupõe que se conhece melhor a natureza de uma coisa quando se conhece melhor a natureza de seu nome. Ele detinha o conhecimento da gramática dos alexandrinos. Sua definição de “particípio” se tornou célebre posteriormente. Um particípio (participium) é aquilo que toma uma parte do nome e uma outra do verbo. É um particaptor (particapium). Nomeia um participador. Mas, o que é participar? Participare est partem capere: participar é tomar parte. 4 Beda escreveu um “Tratado da natureza”, inspirado na “História Natural” de Plínio. No campo da retórica, o seu tratado sobre os tropos (figuras do discurso) foi importante para a retórica medieval. 5 O monaquismo ocidental, então, se estruturou em torno de dois eixos. Um eixo é o da Gália (Lérins, Marselha, Arles), em que se destacam nomes como Honorato, João Cassiano, Cesário de Arles. No século VI surge, em Monte Cassino, a Regra de São Bento, mais comunitária e menos ascética, em que se impõe o “ora et labora” (ora e trabalha) como lema. O trabalho é tanto manual quanto intelectual. O papa Gregório Magno (590-604) irá disseminar a forma de vida da regra beneditina. O segundo eixo é irlandês. Patrício, com sua obra de evangelização da Irlanda, deixou um grande número de mosteiros. As comunidades monacais tinham até três escolas, em que se estudava letras latinas, poesia e direito irlandês. O irlandês Columbano (+615) fundou numerosos mosteiros, sobretudo na Gália e na Lombardia, que seguem uma regra mais ascética. 6 De Libera, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998, p. 264. 7 Idem, ibidem. 8 Os francos começam a se destacar no cenário do ocidente latino com Clóvis (466-511), o qual fundou a dinastia dos merovíngios, que governou por cerca de dois séculos, e foi o primeiro rei católico na nova era dos reinos bárbaros (que tendiam para o arianismo). Com Pepino, o Breve (714-768), que recebeu a
5
O renascimento carolíngio foi basicamente uma reforma dos estudos das letras9. Entre
os letrados que circundavam a coorte carolíngia, na Escola do Palácio, destacaram-se
Alcuíno de York e Teodulfo (ou Eginardo). Alcuíno de York (730/735-804), saxão
originário da Bretanha, foi o regente da Escola do Palácio. A partir desta Escola se
estendeu toda uma rede de escolas catedrais, monásticas e presbiteriais. Um escrito de
Teodulfo incentiva os pais a confiarem seus filhos às escolas presbiterais (paroquiais).
Os padres deveriam prestar este serviço sem exigir paga por isto10. A filosofia, porém,
se manteve restrita à Escola do Palácio, dirigida à nobreza palaciana. Naquele tempo,
este foi um traço comum do ensino da filosofia, quer no mundo islâmico, quer no mundo
bizantino, quer no latino:
No final do século VIII e – sobretudo – no século IX,
a filosofia, onde quer que esteja, está sempre próxima do
poder. Ela tem necessidade dessa proximidade, dela
depende. Em Bagdad, ela é feita no ambiente dos califas. No
Império Bizantino, em Constantinopla no palácio da
Magnaura. No ocidente, na corte do soberano: primeiro com
Carlos Magno, depois com Carlos, o Calvo. É que a prática da
filosofia inscreve-se em uma política centralizada, não como
instrumento do poder central, mas como meio de edificação
dos dirigentes, particularmente do próprio soberano e do
pequeno número de seus familiares. O filósofo do século IX
não se dirige ao público, nem ao conjunto dos clérigos. O seu
interlocutor é o poder: o Príncipe. O imperador é o primeiro
estudante do Império11.
investidura do papa Zacarias, começa a emergir uma ideia imperial entre os francos. Esta ideia se afirma com o coroamento de Carlos Magno (742-814). O Império carolíngio, franco-romano-germânico, configurado a partir das conquistas de Carlos Magno sobre os saxões, os lombardos e os sarracenos, recobria, praticamente, a parte ocidental do Império Romano. A partir deste Império se constituiu, então, o que veio a se chamar, mais tarde, de “Sacro Império Romano Germânico”. Em 806, Carlos Magno dividiu o império entre seus três filhos. A Carlos Magno sucedeu o seu filho, Luís, o Pio. Após várias peripécias, o império acabou sendo partilhado entre os três netos (Tratado de Verdun), em 843, constituindo, assim, três reinos: França, Germânia, Lotaríngia. 9 A Idade Média conhecerá outros renascimentos, como o “bizantino”, promovido por Fócio (s. IX) e o “latino” (s. XII). 10 Cfr. De Libera, A. A filosofia medieval. São Paulo: Loyola, 1998, p. 268. 11 Idem, p. 269.
6
Este estudo, segundo Eginardo, consistia nas sete artes liberais (Trivium:
gramática, dialética e retórica; e Quadrivium: geometria, astronomia, música e
aritmética); e no estudo da doutrina cristã, em que sobressai Santo Agostinho. Carlos
Magno prezava, entre os escritos de Santo Agostinho, sobretudo o “De civitate Dei” (A
cidade de Deus).
A renascença carolíngia teve em Alcuíno de York (séc. VIII-IX) o seu principal
propulsor e em João Escoto Eriúgena ou Erígena (séc. IX) o seu pensador mais original.
Alcuíno escreveu um tratado de que unia uma iniciação à retórica e uma doutrina moral:
é o “De rhetorica et virtutibus” (Da retórica e das virtudes). Escreveu também textos
sobre as categorias em que recorre a conceitos semânticos fundamentais como
homonímia, sinonímia, paronímia. Escreveu também sobre a teologia da trindade,
inspirado em Agostinho. Alunos de Alcuíno foram Fredegísio de Tours12 e Hrabanus
Maurus13. No campo da teologia destacam-se ainda, neste tempo, Gotescalco de
Orbais, Hincmar de Reims e Pascásio Radberto.
Fredegísio de Tours
Fredegísio, em um escrito em forma de carta aos palacianos14, intitulado “De
nihilo et tenebris”. Depois da saudação, ele diz:
Ruminando-a comigo e nela labutando, por fim me
vi abordando a questão do nada, questão, que há muitíssimo
12 Fredegísio ou Fredegisus nasceu na Inglaterra no fim do século VIII. Foi discípulo de Alcuíno (ca 735-804), primeiro em York, depois quando da ida de Alcuíno para França na corte de Carlos Magno (742-814) seguiu-o e trabalhou com ele na schola palatiana, centro de estudos, ensino e pesquisa, fundado e mantido por Carlos Magno. Alcuíno tornou-se alma desse centro do estudo. Em 796 Alcuíno tornou-se abade do mosteiro de São Martinho em Tours, cuja escola conventual ele transformou num estabelecimento modelo de ensino. Após a morte de Alcuíno em 804, Fredegísio sucedeu-o tornando-se abade do mosteiro de São Martinho. E também atuou como ele, eficazmente no fomento dos estudos, ensino e pesquisa, florescentes no reino, deixado por Carlos Magno. Faleceu no ano de 834. 13 Rabano Mauro viveu de cerca de 780 a 856. Fundou uma escola no mosteiro de Fulda. Preocupou-se com a formação filosófica e teológica do clero, escrevendo um “De institutione clericorum”. Escreveu um texto “De universo” (Do universo) ou “De rerum naturis” (Das naturezas das coisas). Como teólogo, escreveu vários trabalhos exegéticos. 14 Entre os estudiosos da vida de Fredegísio, de modo geral é aceito que a carta foi escrita no tempo de sua estadia em Tours e de suas atividades no ensino. O título, mencionado por Fredegísio ele mesmo, indicando o grau de ordenação (diácono), poderia ser usado por ele, mesmo sendo abade.
7
tempo, remexida por grande número de pessoas, delas foi
abandonada, sem ser discutida nem examinada, qual uma
questão impossível de ser explicada; uma vez quebrados os
nós rígidos nos quais ela parecia estar enredada, a
desembaracei e a libertei; dissipando a nebulosidade,
restituí-a à luz; providenciei também de confiá-la a todos os
séculos, da memória da posteridade, vindouros. A questão,
pois, é assim como segue: o nada é algo, ou não?
Se alguém diz que lhe parece que o nada é nada, então ele é constrangido a dizer
que o nada é, que é algo, é um, é um certo quê. Mas, se alguém diz que lhe parece que
o nada é nada e não algo, então esta tese deve ser examinada com a autoridade da
razão, que é receptiva à verdade, e com a autoridade da revelação, que é o firmamento
da autoridade da razão (o que lhe dá uma firmeza estável, imóvel).
Dois argumentos de razão partem dos nomes e dos seus significados:
Ajamos, assim, pela razão. Todo nome finito, pois,
significa algo, como p.ex., homem, pedra, madeira. Estes
nomes, portanto, lá onde forem ditos, simultaneamente, ao
mesmo tempo em que foram ditos, compreendemos as
coisas que eles significam. Assim, o nome homem, colocado
para além de qualquer diferença, designa a universalidade
dos homens. Pedra e madeira contêm de modo semelhante
a sua generalidade. Portanto, o nada se refere ao que (a + o
que) significa. Disso, também se prova que não pode não ser
algo. Igualmente, um outro argumento. Toda significação é
o que é. Nada, porém, significa algo. Portanto, o nada, a
significação dele é o que (o quê) é, isto é, da coisa existente.
Partindo, pois, do nome e da significação, quer como ato de significar, quer como
conteúdo significado, Fredegísio conclui que o nome “nada” nomeia algo de real, ou
seja, que o nada não é uma simples negação. Deve-se, portanto, atribuir ao nada um
ser.
8
Estes medievais são estranhos: Boécio atribuía ao ser (esse) um ainda-não-ser
(nondum est), enquanto ainda não fosse o “isto que é” (id quod est). Agora vem
Fredegísio, atribuindo ao nada um ser! Será que ao ser pertence o nada e ao nada
pertence o ser? Aqui ficamos confusos, perplexos, diante da clareza da pretensa tese
parmenídea, de que ser é e nada não é! Mas talvez esta confusão ao menos faça-nos
sair de nossa pretensa clareza e começar a levar a sério a necessidade de colocar a
questão do nada como também a questão do ser!
Em seguida Fredegísio procura mostrar com argumentos da revelação que o
nada não somente é algo como também é um grande algo! A Igreja, diz ele, ensina a
doutrina da criação, recebida da revelação divina, contida nas Escrituras Sagradas. Assim
instruída nos arcanos dos mistérios, com fé inabalável ela confessa “que o poder divino
obrou terra, água, ar e fogo, também luz, e anjos e a alma do homem, do nada”. A
Sagrada Escritura fala do abismo (caos) e das trevas que cobriam o abismo. Então
Fredegísio procura mostrar que as trevas são e, do mesmo modo, o nada é. Mais uma
vez, é pelo caminho da linguagem que Fredegísio argumenta, recorrendo à natureza da
declaração afirmativa e da negação:
Quem diz que as trevas são, ele põe, constituindo a
coisa. Quem, porém, diz que as trevas não são, tira, negando
a coisa. Assim como quando dizemos que Homem é,
constituímos a coisa, i. é o Homem. Quando dizemos que o
Homem não é, retiramos a coisa, negando, i. é o Homem.
Pois, o verbo da substância tem isso na natureza de declarar
a sua substância a o que quer que seja, a que se acrescenta
o sujeito sem negação. Portanto, no que é dito, as trevas
eram sobre a face do abismo, a coisa é constituída, a qual
nenhuma negação separa, ou divide. Pois, as trevas é sujeito,
eram o declarativo. Declara, pois, predicando que as trevas
são de algum modo. Eis a autoridade, acompanhada pela
razão, razão que também confessa a autoridade; ambas
predicam uma mesma coisa, a saber, que as trevas são.
Seguem-se outros tantos exemplos tirados das Escrituras, evocados com o fim
de mostrar que as trevas são. A noite é, tal como o dia é. Na criação, Deus separa
9
claridade e escuridão, e chama a claridade de dia e a escuridão de noite. “Se, pois, o
nome dia significa algo, o nome noite não pode não significar algo”. Se o Criador, com
sua autoridade, separou a luz e a escuridão, e nomeou a luz chamando-a de dia e a
escuridão, chamando-a de noite, então o nome noite significa algo, tanto quanto o
nome dia. E a autoridade do Criador não pode ser anulada. Segue uma reflexão sobre a
palavra do Criador e o ser das coisas:
O Criador, no entanto, imprimiu nomes às coisas,
que ele criou, para que toda a coisa dita por seu nome fosse
conhecida. E não formou nenhuma coisa sem vocábulo, nem
estatuiu vocábulo a não ser que algo a que o vocábulo foi
estatuído existisse. Se não fosse assim, de todo modo,
parece ser supérfluo, o que é nefasto dizer que Deus o fez.
Se, porém, é nefasto dizer que Deus estatuiu algo supérfluo,
o nome que Deus impôs às trevas, de modo algum pode ser
visto como supérfluo. Se, não é supérfluo, é conforme o
modo. Se, porém, é conforme o modo, é ela necessária,
porque para conhecer a coisa era necessário que ela fosse
significada por ele. Consta, portanto, que Deus constituiu as
coisas conforme o modo e os nomes que se são mutuamente
entre si, são necessários.
O nome dá a conhecer a coisa. É o caminho pelo qual se acede à coisa. O nome
não só denota alguma coisa. O nome nomeia, isto é, evoca, chama para a proximidade,
torna presente, de certo modo, a coisa. Assim, os nomes têm uma necessidade, que é
de evocar as coisas que nomeiam. Também o nome “nada”, como o nome “trevas”, não
são sem significação. Dão a conhecer alguma coisa, que, evoca, se nos apresenta. Mas,
assim como a realidade da luz é diversa da realidade da escuridão, isto é, a realidade do
dia é diversa da realidade da noite, assim também a vigência do ser é diversa da vigência
do nada.
E seguiram-se outros exemplos, todos tirados das Sagradas Escrituras, todos se
referindo às trevas. Os exemplos articulam as trevas com as categorias: As trevas são
um certo quê (substância): “enviou as suas trevas” (Sl 104); “Ele colocou as trevas como
seu esconderijo”... Posse: um salmo fala de “suas trevas” (Sl 138); Onde ou lugar: o
10
evangelho fala de “trevas exteriores” (Mt 8, 12); Quando ou tempo: na narrativa da
paixão, diz que houve trevas da hora sexta à hora nona; Quantidade: “Se, a luz que está
em ti são escuras, quão grandes serão as próprias trevas” (Mt 6,23; Lc 11).
Vê-se, pois, que Fredegísio enfrenta uma questão fundamental da filosofia – a
do nada, que ao lado da questão do ser, são as questões mais importantes – recorrendo
a uma consideração da linguagem e também a uma análise categorial. Ele busca
argumentos da autoridade da razão e argumentos da autoridade da revelação, que, no
entanto, são submetidos a uma análise racional, fundamentadora. E termina dispondo-
se para o diálogo filosófico com os seus leitores:
Procurei, assim, escrever, essas poucas palavras,
endereçadas à vossa grandeza e prudência, recorrendo
simultaneamente tanto à razão como à autoridade. Tudo
isso para que, aderentes a elas de modo firme e inamovível,
possais não vos declinar da vereda da verdade por nenhuma
opinião falsa. Mas, se acaso, por quem quer que seja, for
pronunciado algo que dissentisse dessa nossa razão,
recorrendo a esta como a uma regra, possais expulsar de
suas sentenças as estultas maquinações.
Termina de trevas.
João Escoto Eriúgena
O verdadeiro renascimento se dá, no entanto, sob o reinado de Carlos II, o Calvo,
filho de Luís, o Pio, e rei da França de 840 a 875 e imperador de 875 a 877. Para a escola
palaciana atraiu o maior filósofo daquele tempo no mundo latino: João Escoto Eriúgena
(ou Erígena).
11
Na Alta Idade Média, João Escoto Eriúgena, no século IX, foi o pensador que levou
à consumação a apropriação da cultura e do pensamento antigo por parte do mundo
latino, apropriação que começara com Boécio. Ele é o maior nome da época do
renascimento carolíngio.
Nas pegadas do Pseudo-Dionísio Areopagita
Foi como filósofo, e não tanto como teólogo, que João Escoto Eriúgena (c. 810 –
c. 877) entrou para a história do pensamento medieval. Seus grandes feitos foram,
primeiro, ter dado entrada no mundo latino, à tradição grega que se refaz a Gregório de
Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor (580-662); segundo, ter apresentado
uma concepção do Todo da realidade, na sua obra prima De divisione naturae (Da
divisão da natureza), muito mais elevada no domínio da linguagem e do pensamento,
do que toda outra obra de seu tempo, no mundo latino15.
A divisão da natureza
A obra prima de Eriúgena, escrita na forma de diálogo entre um nutritor
(nutridor, professor) e de um alumnus (pupilo, aluno), traz em seu título a língua grega
e latina, sinal de que o pensador pensa em latim, mas a partir da língua grega. O título
está assim formulado: Peri physeos merismou id est De divisione naturae. Peri physeos
15 Johannes Scotus Eriugena: assim era o seu nome para os medievais. Na literatura atual, ele é chamado ora de Erígena, ora de Eriúgena. O seu nome diz a sua origem: Scotus significa que vem da Escócia; Eriúgena, ou Erígena, que ele vem da Irlanda (Eire, em irlandês). Esta combinação – Scotus Eriugena – se explica pelo fato de a Irlanda ser chamada, naquele tempo, de Scotia Maior (Escócia Maior). Sua atividade, porém, se dá na França, em Paris, sob o governo de Carlos, o Calvo. O conhecimento da língua grega o permitiu traduzir os escritos de Gregório de Nissa, Dionísio Areopagita e Máximo, o Confessor. Já havia uma tradução das obras de Dionísio, feita por Hilduíno, abade do mosteiro de São Dionísio, no tempo do Imperador Luís, o Pio, mas esta era ininteligível. Por isso, Carlos, o Calvo, recomendou a Eriúgena que fizesse outra. Eriúgena não estudou somente os escritos de Dionísio, mas também os de seu principal herdeiro no oriente, Máximo, o Confessor. Máximo tinha dado prosseguimento à doutrina de Dionísio, tornando-a um pouco mais acomodada aos moldes da ortodoxia. No centro de sua obra está a tese sobre a encarnação, muito apreciada no oriente, a saber, de que Deus se fez homem para que o homem fosse feito Deus. Trata-se da theosis (deificação) do homem, que é a consumação da criação, o retorno de todas as coisas a Deus. Como o homem é microcosmo (um cosmo em miniatura), ao se unir ao homem Deus une-se a todo o cosmo e, quando o homem é deificado, com ele todo o universo é também deificado: Deus se torna tudo em todas as coisas.
12
merismou é a expressão grega, que Eriúgena repete, em língua latina, depois de um id
est (isto é): De divisione naturae. Objeto da investigação é, portanto, o tema mais antigo
da filosofia: a Physis, o que os latinos traduziram por Natura. Ambas as palavras
nomeiam não a natureza no sentido parcial das ciências naturais, mas a natureza em
sentido filosófico: o ser, sendo como a totalidade do ente, ou seja, de tudo aquilo que
é. A palavra grega, physis, dá a entender a experiência do ser como surgimento (phyo =
surgir, brotar, nascer). De modo análogo, a palavra latina, natura, significa a experiência
do nascer (nasci = nascer, vir à luz). Natureza é o vigor de ser como surgimento e
nascimento, como irrupção no claro, como vir à luz. A obra trata, pois, do ser em sua
originariedade e de suas “divisões”.
A palavra divisio (divisão) tem um sentido próprio no contexto do
neoplatonismo. Não tem o sentido classificatório que damos ao termo. Não somos nós
que dividimos a natureza, mas a natureza mesma que se “divide”. Por sua vez, divisão
(divisio) não tem o sentido de partir, mas sim o sentido de fazer-se ver (visio = visão). O
ser originário se faz ver em diferentes espécies. Espécie significa, aqui, o modo como
algo se faz ver, como se ele se dá à visão (aspectus), melhor, a forma, o contorno, o
brilho e esplendor de ser (speciosus = formoso, brilhante). No contexto neoplatônico,
divisio (divisão) corresponde à analysis: o modo como o Uno se desdobra e se articula
em uma multiplicidade. É movimento de exitus (saída do Uno) e de descensus (descida).
Assim acontece, por exemplo, na dinâmica dos universais: o movimento de
aparecimento dos entes vai se dando do generalissimum (o mais geral) ao
specialissimum (o mais especial). Para a concepção neoplatônica, gênero é o elemento
gerador, originário (genus = nascimento, origem, estirpe, linhagem, o momento de uma
genealogia); espécie (species) é a forma e o esplendor do que é gerado. O movimento
de desdobramento do uno ao múltiplo vai do generalíssimo ao especialíssimo e, uma
vez alcançada a espécie última, a multiplicação se finaliza como multiplicação de
indivíduos. Individuum é aquilo dividido (divisum) ao extremo e que não é mais divisível
(indivisum).
O contrário da divisio (divisão) é a resolutio (literalmente: desligamento; em
sentido figurado, porém: a dissolução ou dissipação, no caso, do múltiplo), isto é,
quando o múltiplo se desfaz, pelo seu retorno ao uno. O caminho de ascensão (ascensus)
13
e retorno (reditus), que vai do múltiplo ao uno, parte do indivíduo e das múltiplas
espécies e chega ao generalíssimo (o ser como substância). A divisão da natureza,
porém, não se dá segundo a dinâmica de gêneros e espécies, mas se dá de modo
transcendental, pois o que nela se faz ver ultrapassa todo o criado e a própria categoria
de substância. Refere-se à dinâmica de desdobramento do ser em sentido
transcendental e não do ser em sentido categorial (substância = ser em si).
As divisões da natureza não constituem partes de um todo, mas manifestações
diversas do Todo. Divisio (divisão) é o ato pelo qual a “Natureza”, melhor, o Todo, o
Absoluto, a plenitude originária e una do ser, que nós chamamos de Deus, se desdobra,
melhor, se comunica, se faz visível. Ela é teofania: divina apparitio (Da divisão da
Natureza III 19). As quatro divisões da Natureza são, pois, destinações do Todo, são
momentos de uma história do ser, cuja origem e fim se encontram na eternidade.
Torna-se me visível que a divisão da natureza através de quatro diferenças
recebe quatro espécies: das quais a primeira está naquela que cria e não é criada; a
segunda, naquela que é criada e cria; a terceira, naquela que é criada e não cria; e a
quarta, naquela que nem cria nem é criada (Da divisão da Natureza I 1).
1. A primeira aparição do ser se dá naquela natureza que não é criada e
cria: Deus como causa creatrix (causa criadora). Deus é a essência-ente, possibilidade
real e realidade possibilitadora de tudo o que vem a ser, fundamento abissal de todas
as coisas. Pelo ato criador, ele comunica existência a tudo o mais. Enquanto ser
originário e pleno, Deus é tudo, é o Todo, o Uno, o absoluto, o eterno. Nada há fora dele.
2. A segunda aparição do ser se dá naquela natureza que é criada e que cria.
Trata-se, aqui, das causae primordiales (causas primordiais ou primeiras) de todas as
coisas, o que Platão chamou de ideias, as formas originárias ou arquétipos de todas as
coisas. Esta concepção, porém, em Eriúgena só se entende caso se tome como horizonte
a doutrina cristã trinitária, mais especificamente, a doutrina cristã do Logos-Filho de
Deus. Cada coisa, antes de ser em si mesma e no espaço-tempo do mundo, é em Deus,
como um pensamento e um desejo no espírito de Deus, ou melhor, no Filho de Deus. A
criação é um desdobramento e uma ressonância da geração do Filho. No Filho, o Pai se
diz. Nele, o Pai concebe e diz todas as coisas, por bem-querer, de modo absolutamente
14
gratuito. Criação é comunicação do ser, comunicação que se dá por meio do Filho: a
Palavra (o Logos, o Verbo, a Sabedoria, a Arte) eterna do Pai. “No princípio Deus criou o
céu e a terra”, isto é, a totalidade dos entes. “No princípio”, isto é, na Palavra (Logos),
no Filho, que é coessencial e coeterno com Deus, o Pai. Por isso, criação tem um quê de
geração. O criado é cria de Deus, concebido, gestado e trazido à luz por Deus no Filho
de Deus, desde a eternidade. A natureza das coisas que estão na mente ou no espírito
divino é criada, mas é também criadora. A verdade de cada coisa do mundo consiste em
ela ser assim como era no pensamento de Deus. As ideias eternas das coisas são
arquétipos, formas formadoras, que determinam o modo de ser de cada coisa que vem
à luz no espaço-tempo do mundo.
3. A terceira aparição se dá naquela natureza que é criada, mas não é
criadora. Natureza naturada, não natureza naturante, para usar uma terminologia
análoga, presente na modernidade, desde Spinoza. Trata-se, aqui, da natureza do
mundo, estendida no espaço-tempo. O mundo surge do nada: do nada da receptividade
para o ser, denominado de materia prima (matéria primordial). “O mundo é, pois, feito
de matéria sem forma; matéria sem forma, totalmente, de nada; e, por isso, também o
mundo é feito totalmente de nada” (Da divisão da Natureza III 22). Cada coisa do mundo
é concreta. Isto quer dizer: ela se faz visível por meio de uma concreção (concretum:
particípio passado de concrescere = crescer junto, adensar, condensar). Os dois
elementos que entram na composição do concreto é a forma, elemento determinante
do modo de ser, e a matéria, princípio de receptividade, que se predispõe a ser. Só que,
agora, como matéria formada. O mundo criado é, neste sentido, a forma terminal do
processo criativo do ser. Por ser terminal, já não cria. É, no entanto, criado. Criar é, aqui,
dar existência, possibilitar subsistência e consistência de ser. O ser não é somente
essência, mas também existência. Existência significa a positividade de ser: de ser no
espaço-tempo do mundo, de ser em si (substância) e de ser relação com outras coisas,
de ter uma densidade e uma consistência de ser. Esta concepção de ser, de cunho
“existencial”, é nova em relação ao neoplatonismo, que entendia o ser de modo
essencialista.
4. A quarta aparição do ser se constitui na natureza não criada e que não
cria. É Deus como fim de todas as coisas, o Bem para o qual tudo tende e pende, como
15
à sua consumação, perfeição e plenitude. Aqui se trata de Deus como a plenitude serena
em que todo o movimento criativo se aquieta e se silencia; o silêncio em que a sinfonia
da criação se recolhe. A primeira e a quarta divisões, portanto, correspondem a Deus
como o princípio e o fim de todas as coisas, alfa e ômega de tudo. Nas palavras do
próprio Eriúgena:
E, pois, a primeira e a quarta são um, porque elas são
inteligíveis somente a respeito e a partir de Deus; é ele, pois,
o princípio de todas as coisas que são dadas com ele, dele a
partir de si, e é o fim de todas as coisas, que o apetecem,
para que nele se aquietem eterna e imutavelmente (Da
divisão da Natureza II 2 – tradução nossa). (Apud ÜBERWEG
& HEINZE, 1927, p. 174).
O fim de tudo é o retorno (reditus), a reversão (reversio) para Deus. É o
recolhimento do múltiplo no Uno. Na consumação de todas as coisas, Deus é tudo em
tudo. Escutemos as próprias palavras de Eriúgena. Ele diz que, neste estágio, Deus
... já deixou de criar, uma vez que todas as coisas
estão convertidas para dentro de suas razões eternas nas
quais permanecerão e permanecem, desistindo também de
serem chamadas pelo nome de criaturas; Deus, pois será
tudo em tudo, e toda a criatura será obumbrada, uma vez
que foi convertida para dentro de Deus, como os astros ao
surgir do sol (Da divisão da Natureza III 23). (Apud ÜBERWEG
& HEINZE, 1927, p. 174).
Deus e as criaturas
A imensa intimidade entre Deus e a criatura que se apresenta nessa concepção
de Eriúgena levantou suspeitas, ao longo da história, de panteísmo. Contudo, há
panteísmo onde o Deus em questão não é tomado como ser pessoal e onde o ato criador
é encarado como simples emanação e não como um ato livre e gratuito de amor. Não é
o caso de Eriúgena. Apesar das ressonâncias neoplatônicas, o seu pensamento é
16
fundamentalmente cristão. O horizonte de sentido de sua exposição é o mistério
trinitário. A processão do universo a partir de Deus se dá por meio do Filho. É o Espírito
Santo que vivifica todas as coisas. É por meio da deificação do homem que o universo
retorna para Deus e nele se aquieta. O homem é criado de tal maneira, que nele todas
as coisas estão contidas. Ele é o microcosmo, por ser o elo que liga as duas extremidades
criaturais: o mundo do espírito e o mundo do corpo, o inteligível e o sensível. A queda
do homem é a queda do universo. A salvação do homem é a própria salvação do
universo. Ao unir-se ao homem, na encarnação, Deus se une ao próprio universo. A
intimidade que existe entre Deus e a criatura é uma intimidade da relação paternal-filial
e mesmo da relação esponsal. A deificação não é uma eliminação do humano no
homem, mas a sua plena consumação, pois o homem já fora criado à imagem e
semelhança de Deus. A reversão e resolução de todas as coisas em Deus não é a
supressão da individualidade, mas a sua consumação (cfr. Da Divisão da Natureza V 8-
13).
Não há confusão entre Deus e a criatura. “Conquanto, Deus não é o todo da
criatura, nem a criatura parte de Deus, assim do mesmo modo, a criatura não é o todo
de Deus, nem Deus, parte da criatura” (Da divisão da Natureza II 1) (Apud ÜBERWEG &
HEINZE, 1927, p. 174). Entretanto, há absoluta intimidade e proximidade entre Deus e a
criatura, uma plena identificação, o que só se torna possível a partir de uma admirável
condescendência amorosa por parte de Deus, pois, ao criar, Deus se faz, de certa
maneira, “criado”, isto é, renunciando-se à sua absoluteza, Deus se dispõe a entrar no
horizonte do ser criatural, a se relacionar com a criatura no plano de ser dela mesma:
Nada, pois, subsiste fora dela (da natureza divina).
Conclui-se que somente ela, verdadeira e propriamente, é
em todas as coisas e nada verdadeira e propriamente é, que
não seja ela. Assim, não devemos compreendê-las como
duas coisas distantes, Senhor e criatura, mas como um e o
mesmo. Pois, tanto a criatura é subsistente em Deus, quanto
Deus de modo admirável e inefável é criado na criatura,
manifestando-se a si mesmo; invisível, fazendo-se visível;
incompreensível, fazendo-se compreensível; oculto,
fazendo-se aberto; incógnito, fazendo-se conhecido; carente
17
de forma e aspecto, fazendo-se formoso e especioso; sendo
supra-essencial, fazendo-se essencial; e sendo supra-
natural, fazendo-se natural (...); em todas as coisas criando,
faz-se criado em todas as coisas; sendo feitor de todas as
coisas, torna-se feito em todas as coisas. (Da Divisão da
Natureza III 17) (Apud ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 173).
A condescendência de Deus não depõe contra a sua transcendência, antes a
atesta e corrobora. De uma maneira dialética, porém, pela via negativa, é preciso
reafirmar a transcendência de Deus. Eriúgena o faz, ao modo de Dionísio. A via negativa
leva a intuir Deus como não criado nem criador. Mas, agora, de um modo todo especial.
Deus é agora intuído não como princípio nem como fim de todas as coisas; não mais
como ser nem como natureza, nem como essência nem como ente; mas como o que
transcende tudo isso, como “super-essencial”. Essentia est, affirmatio; essentia non est,
abdicatio; superessentialis est, affirmatio simul et negatio (É essência, afirmação; não é
essência, abdicação; é super-essencial, afirmação e, simultaneamente, negação) (Da
divisão da Natureza I 16). A via negativa é via de abdicação. É renunciando a Deus que
o homem intui algo do mistério de Deus, não como criador, princípio e fim da criatura,
mas como Deus mesmo, na sua Deidade. Em sua Deidade, Deus se dá como silêncio.
Aqui todo o afirmar e negar se recolhe. Como o que transcende todo o ser, toda a
essência e natureza, todo o ente e existente, Deus pode ser chamado de Nada?
Ser e nada
Eriúgena faz uma investigação sobre os modos em que nós falamos de ser e de
nada (ÜBERWEG & HEINZE, 1927, p. 170-171). Há pelos menos cinco modos de
interpretar o ser e o nada, ou melhor, aquelas coisas que são (ea quae sunt) e aquelas
que não são (ea quae non sunt). Tudo depende, do ponto de vista semântico, do sentido
que a cópula est (é) ou non est (não é) recebe na proposição.
1. Num primeiro sentido, dizemos que é àquilo que se faz conhecer
diretamente, por meio da experiência sensível. Neste sentido Deus nada é,
mas não somente Deus. Também a essência de cada coisa e as ideias ou
razões eternas das coisas na mente de Deus nada são. Nós não conhecemos
18
o que a coisa é (sua essência), mas apenas que ela é (sua existência). De sua
essência nós só temos um conhecimento indireto, oblíquo, por via dos
acidentes, ou melhor, dos atributos e propriedades, sendo algumas mais
características e substanciais do que as outras. Do mesmo modo, Deus e as
ideias são por nós pensados, mas não conhecidos, se por conhecimento
entendermos aquilo que se dá de modo sensível. Neste primeiro sentido,
pois, o que é metafísico é um nada.
2. Em segundo lugar, na ordem do criado, diz-se que é a tudo aquilo que se deixa
apreender num determinado nível, que não é, a tudo o que transcende esse
nível, estando num nível superior. A cada vez, o superior é um nada em
relação ao inferior, que não o apreende. O vegetal nada é para o mineral; o
animal, nada é para o vegetal; a alma intelectiva nada é para o animal (alma
sensitiva); o anjo nada é para o homem. Nada é, aqui, designação para
transcendência, superação no ser, superioridade de ser.
3. Em terceiro lugar, chamamos de nada àquilo que é apenas potencial, ao que
ainda não é, ao que ainda não se realizou: como a semente nada é em relação
à árvore.
4. Em quarto lugar, chamamos de nada àquilo que é corporal, pois surge e
perece, isto é, passa do não-ser para o ser e do ser para o não-ser, aparece e
desaparece.
5. Em quinto lugar, num sentido moral, chamamos de nada ao pecado, pois é
um dano à imagem e semelhança de Deus no homem. Desta exposição
podemos inferir que Deus pode ser chamado de “nada” à medida que este
nome designa sua transcendência superessencial, ou seja, à medida que ele
transcende todo o ser, toda a essência e natureza, todo o ente e existente, à
medida que ele é intuído como sendo unicamente ele mesmo, absoluto, isto
é, solto de toda relação com a criatura, nem como princípio nem como fim
de todas as coisas.
19
Por causa das suspeitas de panteísmo, o pensamento de Eriúgena foi prejudicado
em sua recepção no pensamento medieval. Muitas vezes sua influência foi implícita e
tácita. Há um grande número de manuscritos de suas obras, o que atesta que ele foi
muito lido na Idade Média. Citam-no autores como Berengário de Tours, Isaac de Stella
e Alano de Lila. Honório Augustodunense, na primeira metade do século XII, recorre
amplamente ao seu pensamento em sua obra intitulada “Clavis physicae” (A chave da
física). O que prejudicou bastante a leitura do Da divisão da Natureza foi a interpretação
panteísta dada por Amalrico de Bena e pelos amalricianos. Este ensinou abertamente a
identidade de Deus e da criatura. Para ele, Deus é a essência e a forma de toda a criatura.
Tudo é um e este Um é Deus. Os amalricianos, por sua vez, ensinavam que Deus atua
em nós o querer e o agir e que, por conseguinte, não havia nenhuma diferença entre
bem e mal, entre mérito e culpa. Diziam ainda que o Pai se encarnou em Abraão e nos
patriarcas; que o Filho se encarnou em Jesus Cristo; e que o Espírito Santo se encarnara
neles, os amalricianos, para suprimir a Igreja e instituir um reino de conhecimento e de
amor. Quem traz em si o amor está no céu. Não há, de fato, nem céu nem inferno. Vê-
se que a sutil relação de identidade e diferença que existe no pensamento de Eriúgena
cede lugar, no caso dos amalricianos, a uma concepção grosseira, onde a identidade
perde toda tensão dialética e todo o tom de encontro pessoal com Deus e a identificação
se torna crassa confusão. Por causa de tudo isso, a leitura do Da divisão da natureza foi
proibida pelo concílio de Paris em 1210 e esta decisão foi ratificada quinze anos depois
pelo papa Honório III. Apesar disso, admiradores de Dionísio no século XIII, como Alberto
Magno, Tomás de Aquino, e os franciscanos citaram Eriúgena como o “comentador” de
Dionísio. João Gerson e Nicolau de Cusa, no fim da Idade Média, também o têm como
um dos seus autores favoritos.
20
A ESCOLÁSTICA NASCENTE
O século X foi um século de consolidação do projeto de Estado e de civilização,
começado com Carlos Magno. A França é o centro da Europa. Do ponto de vista religioso,
um fato que marca a história é a fundação da Abadia de Cluny. As reformas monásticas
vão se seguindo, no século XI, com uma renovação feita pelos beneditinos, com o
apogeu de Cluny e com o surgimento de novas ordens, como os cartuxos (1084) e os
cistercienses (1098).
Os anos 1000 são para a cristandade medieval o auge do regime feudal, baseado
fundamentalmente nos laços de vassalagem. Do ponto de vista político, emerge o
protagonismo da França, liderada por reis da dinastia capetíngia: Henrique I (1031-
1060) e Filipe I (1060-1108). Neste tempo, Paris se torna a capital da França; antes, a
capital dos francos era Aquisgrana. Também se assiste a uma expansão da dominação
normanda na Itália e na Inglaterra. O século XI é o século das maiores confrontações
violentas entre a cristandade e o Islã, com a reconquista espanhola promovida por
Afonso VI (tomadas de Valência e Toledo) e com a Primeira Cruzada ao oriente, que
levou à tomadas de Antioquia (1098), de Edessa e de Jerusalém (1099). Ainda no plano
político, acontece a “guerra das investiduras” episcopais, travada entre o papa (Nicolau
II e Gregório VII) e o imperador da Alemanha (Henrique IV). Este conflito, porém, só vai
terminar com a concordata de Worms (1122), ficando decidido que a investidura
temporal – pelos quais os bispos são investidos como senhores dos feudos episcopais –
é feita pelo Imperador e a investidura espiritual – pelos quais os bispos são nomeados
como autoridades eclesiásticas nas dioceses – é feita pelo Papa. No campo cultural, o
século XI é o auge da arte românica.
Para compreender o pensamento medieval, é preciso intuir o espírito do tempo
que constitui o seu “medium”, o seu elemento e atmosfera. Por sua vez, para intuir este
espírito, nada melhor do que considerar a arte, pois esta dá materialidade plástica e
visibilidade a todo um modo de ser histórico, ou seja, a toda uma ideia de civilização e
cultura. Por isso, vamos partir da consideração da arte românica, para entender o
pensamento dos séculos XI e XII.
21
O românico
O românico é um estilo artístico de arte, reconhecível especialmente nas artes
figurativas – arquitetura, escultura e pintura –, cuja vigência pode ser datada dos
primeiros dois séculos do segundo milênio (séculos XI e XII). É irrupção, na história, de
algo original em arte, que espelha algo de original também na cultura e no espírito do
tempo. Poder-se-ia dizer que este algo de original emerge do encontro de dois mundos:
o romano e o germânico, daí o nome “românico” (usado pela primeira vez em 1824 pelo
arqueólogo francês De Caumont). Contudo, esta arte integra também elementos
bizantinos, armênios e islâmicos. Mas, enquanto algo de original, ela não é a simples
soma ou mescla destes elementos, mas é algo mais. Poder-se-ia identificar este estilo
pelas suas características, mas as características por si só não fazem um estilo. Elas
precisam de uma ideia central que as vivifique num todo único e original. Se tomarmos
a arquitetura como exemplo privilegiado, talvez possamos intuir os contornos deste
estilo, seus traços essenciais e a ideia central que vivifica este todo. Em primeiro lugar,
a igreja é o edifício onde este estilo se deixa mostrar mais caracteristicamente. Ela é uma
evolução e uma transformação da basílica romana, só que configurada em forma de
cruz. Ela é a concreção da ideia de “Cidade de Deus” (Civitas Dei). Trata-se de uma ideia
universalizada e espiritualidade de “civitas” (cidade, Estado), um arquétipo ideal, que a
Igreja e o Estado medievais tentam reproduzir no real. Em segundo lugar, a cobertura
do edifício se faz mediante a construção de abóbadas, isto é, de estruturas curvilíneas
de pedra; sendo que os arcos se constituem em elementos característicos. Em terceiro
lugar, são construções articuladas e maciças, com fortes efeitos de claro-escuro e luzes
radiantes que penetram a partir de escassas e estreitas aberturas. Em quarto lugar, a
subordinação das outras artes à arquitetura: pintura, escultura e mosaico.
Do ponto de vista estilístico, o edifício é uma síntese de arcos. A superfície curva
recebe um peso na sua parte mais alta e o transmite à sua parte mais baixa. Pequenas
partes de pedra estão em equilíbrio, cada uma recebendo um impulso daquela que lhe
é superior e transmitindo este mesmo impulso àquela que lhe é inferior. O impulso que
vem do alto, porém, finalmente se descarrega sobre os apoios, que recebem, por sua
vez, um impulso lateral, que tende a voltar-se para fora. Portanto, o que caracteriza o
22
todo é precisamente o mútuo e férreo jogo de impulsos e contra-impulsos gerado pela
abóbada, isto é, pela força que vem do alto.
A igreja românica, na verdade, dá expressão figurativa ao espírito de seu tempo
(séculos XI e XII). A ideia central que move tudo é a da “Civitas Dei”: a cidade de Deus. A
igreja românica não é somente um templo, ela é a imagem do mundo, do universo
estruturado a partir da cruz. Toma-se a basílica romana e se o reconstrói segundo a
forma da cruz. Trata-se de uma imagem paradoxal, uma conjunção de opostos: cidade
e cruz. O crucificado é alguém que morre fora da cidade, expulso, excluído como
malfeitor. É imagem da impotência. A cidade é uma imagem de poder. A basílica é um
edifício imperial (basileia = reino, império). Mas, agora, a cruz é o que lhe estrutura e
configura. A Cidade de Deus é a ideia de uma ordem civilizatória, constituída a partir da
cruz, isto é, da fé cristã, a mesma fé que era dos excluídos, dos escravos, dos
marginalizados do império romano. A Igreja e o Estado, na Idade Média, tentam
construir esta ordem civilizatória. A Igreja Romana e o Império Carolíngio se unem em
vista deste projeto.
A cultura românica é uma expressão de sua construção. A igreja românica não é
somente um templo, a morada de Deus, mas é também expressão ideal de um mundo,
de uma ordem que aspira à universalidade. Na fachada da Igreja Românica, em forma
de escultura, pode-se ver o Cristo que domina desde o alto, como o “Senhor” e “Juiz”
universal. Os Apóstolos são seus ministros, os evangelhos, sua lei. O seu Reino é do alto.
Os justos são os cidadãos desta cidade, que é denominada de “Jerusalém”, que, segundo
uma etimologia medieval, significa “visão de paz”. Os cidadãos desta construção, que
compõem a “comunhão dos santos”, estão unidos uns aos outros como pedras vivas,
que se sustentam mutuamente, recebendo e transmitindo o impulso que recebem do
alto. A construção espiritual que resulta daí é maciça, tem o peso, a densidade e a
consistência da pedra.
Algumas abóbadas típicas das igrejas românicas são formadas como arcos que
se cruzam. É a conjunção de opostos: o círculo e a cruz. O círculo significa plenitude da
vida, unidade, eternidade; a cruz, quebra, divisão, tempo: vida que vem da morte,
unidade que se conquista a partir da decisão (corte, ruptura, quebra), eternidade que
se decide a partir do tempo. Dentro da igreja românica vigora o claro-escuro: a
23
penumbra da fé, que é iluminação e obscuridade, ao mesmo tempo. A luz penetra a
partir do alto, através de estreitas aberturas, cujos vitrais são de acabamento rústico. A
luz da verdade vem do alto, da revelação divina, e entra no mundo humano através de
estreitas aberturas, as do intelecto, cuja transparência é sempre rústica, diante da
luminosidade sutil e esplendorosa do divino. Esta é a imagem ideal que a cristandade
medieval procura reproduzir no real da história.
Se a arquitetura românica, que recolhe em si a escultura e a pintura, dão
concreção plástica e visibilidade ao espírito do tempo na pedra, a literatura faz o mesmo
na palavra poética. É neste século que surge a mais famosa canção de gesta da Idade
Média: a “Canção de Rolando”. Escrita por um anônimo, em francês antigo, a canção
celebra de modo poético e lendário, os feitos heroicos de Rolando, ou Orlando,
apresentado como sobrinho de Carlos Magno. A história tem um fim trágico, pois
Rolando, que liderava a retaguarda do exército de Carlos Magno, é morto pelos
sarracenos, graças à traição de seu genro, Ganelão, perto de Roncesvales (Navarra,
Espanha). Carlos Magno, então, vinga a morte de Rolando vencendo, junto ao rio Ebro,
a luta contra os sarracenos, liderados pelo emir da Babilônia. Embora o poema épico
tenha um núcleo histórico, relacionado com uma batalha de Carlos Magno contra bascos
cristãos, em Roncesvales, no ano de 778, ele reflete muito mais o espírito cavalheiresco
daquele tempo e o confronto com o Islã. O poema era recitado para os cavaleiros que
partiam para as cruzadas e também para os peregrinos que faziam o Caminho de
Santiago de Compostela, os quais tinham que passar por regiões próximas aos domínios
dos muçulmanos.
O pensamento dos séculos XI e XII só pode ser compreendido a partir deste
horizonte, que é configurado pelo espírito do tempo.
A filosofia no século XI
O século X é um século obscuro na história da filosofia. Após Eriúgena, o
pensamento se cala. Eriúgena parece ter sido a última ressonância da antiguidade na
Idade Média. A filosofia antiga, que tinha começado com os poemas sobre a “Physis”
24
termina com um tratado sobre a “divisão” da physis (Natureza). Há uma certa
continuidade, de Parmênides a Eriúgena. Entre Eriúgena e Anselmo, o maior
representante do pensamento no século XI, há o silêncio, um hiato que separa dois
mundos. Eriúgena é a consumação do pensamento antigo na Idade Média, Anselmo, a
abertura de um novo pensamento, de um pensar original, que vai ganhando forma e
densidade no século XII e que rebenta no século XIII.
A QUESTÃO DA DIALÉTICA E DE SUA RELAÇÃO COM A TEOLOGIA. O PROBLEMA
DA ONIPOTÊNCIA DIVINA E DE SUA RELAÇÃO COM O PRINCÍPIO DE NÃO CONTRADIÇÃO
O contexto filosófico-teológico dos séculos X e XI é dominado pela questão do
estatuto da dialética, de sua relação com a teologia e da sua aplicabilidade nas
controvérsias teológicas, como as da eucaristia, da predestinação e da onipotência
divina. Ora, já Agostinho tinha considerado a dialética a arte das artes, a disciplina das
disciplinas, porque ensinava a ensinar e a aprender, isto é, ela não somente quer tornar
o homem ciente como também o torna. Alguns, porém, exaltaram tanto a dialética que
a colocaram acima da própria fé.
No século X, dois nomes se destacam: Gerberto de Aurillac e Fulberto de
Chartres. Gerberto de Aurillac, que se tornara o papa Silvestre II (1003), procurou aplicar
a arte da dialética à teologia, especialmente nas discussões sobre a eucaristia. Ele tinha
uma concepção realística da dialética, semelhante à concepção de Eriúgena. A dialética
é arte da “divisio” e da “resolutio”: ela divide os gêneros em espécies e reconduz as
espécies à unidade do gênero (dividit genera in species et species in genera resolvit). Ela
não tem sua origem em construções fictícias (machinationes) da mente humana, mas
sua origem é o próprio Deus, o autor de todas as coisas, em cuja mente estão as leis da
natureza das coisas e as leis de todas as artes. Os sábios não produzem a dialética como
uma ficção pura e simples da mente humana. Eles a “inventam”, no sentido medieval
do verbo “inventar”, que significa encontrar, achar algo que já estava ali, mas que estava
despercebido (invenire). Fulberto de Chartres (960-1028) aplicou a dialética na teologia,
mas salientou também os seus limites. A altíssima sabedoria dos desígnios divinos não
25
pode ser compreendida com os recursos da razão humana. Os mistérios divinos se
abrem aos olhos da fé e não às humanas disputas da razão. A estes dois nomes podemos
acrescentar um terceiro: Abão de Fleury (945-1004), que redescobriu os textos lógicos
de Boécio e providenciou para que o conhecimento aí veiculado pudesse ser transmitido
de maneira didática.
No século XI, os grandes entusiastas da dialética eram chamados de philosophi
(filósofos), sophistae (sofistas), peripatetici (peripatéticos). Anselmo de Besate, também
chamado de Anselmo Peripatético, foi um mestre que procurou cultivar a dialética pela
dialética, sem conexão com a teologia. Outros, porém, postularam uma aplicação
decisiva da dialética ao campo teológico. Acreditavam que a razão podia tudo e que
estaria acima da autoridade da Bíblia e dos Padres da Igreja. Queriam, pois, submeter a
teologia à dialética. Berengário de Tours (1005-1088) é o principal representante desta
tendência racionalista. No contexto das controvérsias sobre a eucaristia, afirmou que o
pão e o vinho não mudavam de essência ou natureza, mas que a presença de Cristo se
dava apenas por um sentido espiritual (intelectual), constituído pelos fiéis. Do lado
contrário, ouve uma reação de tipo fideísta, advinda sobretudo dos círculos dos
mosteiros reformados. Assim, Geraldo de Czanád (+ 1046), que tinha sido grande mestre
da dialética, se converteu, se tornou monge camaldulense, e a partir de então afirmava:
Pedro, João, Tiago e Paulo são mais do que Aristóteles e Platão. Sua oposição, porém,
não era tão forte como a de Pedro Damião (1007-1072). Dedicou grande parte de sua
vida à ascese monástica e à reforma eclesiástica. Participou das controvérsias sobre a
onipotência divina em relação ao princípio de não contradição. A pergunta que se
colocava nesta controvérsia era se Deus pode fazer que o que aconteceu não tenha
acontecido. Por exemplo, a fundação da cidade de Roma. Deus pode fazer que, uma vez
fundada Roma, Roma não tenha sido fundada? Segundo seu parecer, Deus não se
submete a nenhuma regra, pois está acima de tudo. Logo, não se submete nem mesmo
ao princípio de não contradição. Também o princípio de não contradição não constitui
um limite para a onipotência divina. Ele vale para a lógica e para o que está submetido
às leis da natureza (na natureza nem tudo está submetido a leis). A dialética não está
acima da teologia, mas é sua serva (ancilla).
26
O problema da onipotência divina e do princípio de não contradição prosseguiu
nos séculos futuros da Idade Média. Gilberto Porretano, Pedro Lombardo e Guilherme
de Auxerre se colocaram do lado de Pedro Damião. Anselmo da Cantuária e Honório
Augustodunense, porém, ficaram contra ele. O princípio de não contradição não pode
ser abolido: nem mesmo Deus poderia fazer que o que aconteceu não tivesse
acontecido. No entanto, para Anselmo, a razão disso está na própria vontade de Deus,
em sua vontade de verdade. Hugo de São Vitor, por sua vez, diz claramente que Deus
não pode fazer o que é logicamente impossível. Do mesmo parecer são Boaventura e
Tomás de Aquino. Este último diz: sub omnipotentia dei non cadit aliquid, quod
contradictionem implicat (sob a onipotência de Deus não cai aquilo que implica
contradição) (Suma Teológica I, q. 25 a. 4).
Numa posição intermédia, entre Berengário e Pedro Damião, está Lanfranco de
Pádua (c. 1010-1089). Lanfranco foi um célebre mestre da dialética que também entrou
para a vida monástica. No mosteiro, trocou a dialética pela teologia. Lutou
energicamente com Berengário na controvérsia sobre a eucaristia. Para ele, a teologia
não se fundava sobre a arte da razão, mas sobre as autoridades da fé: a Escritura e os
Padres da Igreja. Quando se trata dos mistérios da fé, como é o caso da eucaristia, a
investigação da razão é impotente. Entretanto, Lanfranco não combatia o uso da
dialética em si mesma, mas o seu abuso. Não existe um abismo entre a dialética e a
teologia. Aluno e herdeiro de Lanfranco foi, então, o mais célebre pensador do século
XI: Anselmo de Cantuária.
ANSELMO DE CANTUÁRIA (1033/34? -1109)
Anselmo nasceu em Aosta, no Piemonte (Itália), entrou para o mosteiro de Bec,
na Normandia (França), onde foi aluno de Lanfranco, e se tornou, desde 1093 até a sua
morte, arcebispo de Cantuária (Canterbury, Inglaterra).
Um feito importante de Anselmo foi a união de lógica e gramática, em sua obra
De Grammatico (Do gramático). Nesta obra, Anselmo une a semântica de Aristóteles
com a gramática de Prisciano, elaborando uma teoria da significação e da denominação.
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Esta teoria parte do problema da paronímia. Paronímia (Parônymía) é a característica
de uma palavra que deriva de outra, ou seja, que recebe de outro a sua denominação,
como gramático vem de gramática, e corajoso de coragem, segundo os exemplos dados
por Aristóteles no primeiro capítulo das Categorias. O problema que Anselmo se põe é
como “gramático” pode ser, ao mesmo tempo, uma qualidade e uma substância. A
palavra “gramático” é um nome que recebe sua denominação de “gramática”. Portanto,
a ela se atribui a paronímia. Trata-se de um nome ambíguo. “Gramático” significa,
propriamente, isto é, “per se”, um acidente, mais claramente, uma qualidade, a saber,
“conhecedor da gramática”. Mas, de uma maneira indeterminada, esta expressão
remete a uma substância, isto é, a um indivíduo que tem esta qualidade: a de ser
conhecedor de gramática. “Gramático”, portanto, significa “per aliud” (por outro), isto
é, de maneira indireta, uma substância: este homem, que tem a qualidade de ser
conhecedor de gramática. O termo “homem” denomina e significa direta, principal e
propriamente a substância: este indivíduo. Já o termo “gramático” é ambíguo: por um
lado, denomina a substância significando-a de modo indireto e indeterminado (per
aliud): designa um indivíduo, que é conhecedor de gramática; por outro lado, o termo
“gramático” recebe a sua denominação de “gramática” e significa “per se”, isto é, por si
mesmo, um acidente, isto é, uma qualidade: conhecedor de gramática.
A partir desta teoria da denominação e significação, Anselmo aplica à gramática
as categorias da ontologia aristotélica. Parte do seguinte estado de coisas: o
conhecimento da gramática não é essencial ao homem, embora seja essencial ao
gramático. Todo homem pode entender a linguagem sem precisar da gramática; mas
nenhum gramático pode expor uma compreensão da linguagem sem a formação própria
da gramática. Os conceitos de “gramático” e de “homem” são diferentes. “Homem”
nomeia um “quid”, um determinado “quê”, uma substância. Designa uma substância
primeira (substantia prima) enquanto significa este homem, este indivíduo. Designa
uma substância segunda (substantia secunda) enquanto significa a espécie chamada
“homem”, a espécie humana. O nome “homem” é, por isso, chamado de substantivo.
“Gramático” nomeia, diretamente, um “quale”, uma qualidade. O nome “gramático” é,
por isso, um adjetivo. Ele só significa um “quid” (substância) por meio de um “quale”
(qualidade). O dialético se ocupa diretamente com as palavras (voces: vozes) e só
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mediatamente, por meio das palavras, com as coisas (res). Neste sentido, ele deve levar
em consideração o que as palavras significam direta e imediatamente (per se). Por isso,
à pergunta – quid est grammaticus? (o que é “gramático”?) – deve responder: vox
significans qualitatem (uma palavra que significa uma qualidade), um adjetivo.
“Grammaticus” designa, pois, diretamente uma “res” (coisa/algo de real), que é um
acidente, um “quale” (uma qualidade) e equivale a “habens grammaticam” (tendo
conhecimento da gramática). “Grammaticus” designa, então, de modo indireto (per
aliud) e de modo denominativo (per apellationem) o homem.
Pode-se ver, pois, que, na obra “De grammatico”, Anselmo molda a gramática
segundo a lógica e a metafísica, mais precisamente, segundo a ontologia da substância.
Esta iniciativa possibilitou, por sua vez, o surgimento de uma lógica da linguagem, no
século XII, com Gilberto Porretano e Pedro Abelardo, e, no século XIII, de uma gramática
especulativa, que tratava dos modos de significar (De modis significandi) das palavras.
Assim, as categorias aristotélicas foram aplicadas à morfologia e à sintaxe. As
abordagens da linguagem de Roger Bacon, Martinho e João de Dácia e Tomás de Erfurt
vão nesta direção. Deste último é a obra “Grammatica Speculativa” (Gramática
Especulativa), que, no século XX, foi objeto de estudo do doutorado de Martin
Heidegger, ainda quando o texto era atribuído a Duns Scotus.
O mote de Anselmo é: “fides quaerens intellectum” (fé buscando entendimento).
Trata-se de uma retomada do mote de Agostinho: “credo ut intelligam” (creio para
compreender). Assim se dá o método especulativo de Anselmo: A “ratio” (razão), como
pensamento que se exerce pela “meditatio” (meditação), busca, no horizonte da “fides”
(fé), o “intellectus” (a compreensão, o entendimento, o “insight”). Como, porém,
entender melhor a relação entre “fides” e “ratio” (razão) em Anselmo? Não se trata de
chegar à fé a partir da razão, como queriam os entusiastas da dialética. Isso é impossível
e danoso. Mas, trata-se de chegar a uma compreensão da fé a partir do exercício da
razão, um exercício que não põe em questão a própria fé, mas a supõe, como horizonte
irrenunciável. Pois, o que está em jogo na fé, é mais do que uma crença ou opinião, ou
mesmo a adesão a uma doutrina, é, acima de tudo, a fidelidade a alguém: ao Deus fiel e
à sua auto-revelação. A fé, aqui, é entendida em duplo modo: como “fides qua”, o ato
de crer, e como “fides quae”, o crido, o conteúdo do que se crê. A teologia é “intellectus
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fidei”: empenho de intelecção que se dá a partir da fé (do ato de crer, fides qua) e que
se volta para a compreensão do crido (do conteúdo da fé, fides quae). A “fides” (fé) é
dom de Deus. O “intellectus” (intelecto), empenho do homem. Por isso, “fides quaerens
intellectum” pode significar também, em nível mais originário: o dom de Deus que, a
priori, ama, busca e quer, no homem, o empenho de compreender, que é empenho de
receber. Teologia é, assim, o saber de um encontro que se dá entre o Deus que se dá a
revelar e o homem que se dispõe a acolher e a compreender tal auto-revelação de Deus.
Do mesmo modo que o conceito de “fides” (fé), também o conceito de “ratio” (razão) é
duplo. Por um lado, “ratio” denomina a razão como capacidade do homem de processar
a compreensão e apreensão de sentido das coisas (intellectus). Por outro, “ratio” é
entendido como o fundamento e o fundo essencial de alguma coisa (ratio rei). A teologia
consiste em ser a investigação das “rationes necessariae” (razões necessárias) daquilo
que é crido (fides quae). Ela procura encontrar e expor as razões da fé, ou seja, o
fundamento essencial e racional daquilo que é crido. É neste sentido que Anselmo busca
realizar algumas investigações teológicas “sola ratione” (somente com a razão), isto é,
expondo unicamente argumentos de razão, sem recorrer a argumentos de autoridade
(da Escritura ou dos Padres da Igreja).
A busca do “intellectus” (compreensão) ou das “rationes necessariae” (razões
necessárias) no horizonte da fé pressupõe, contudo, a verdade como possível. Mas, o
que é a verdade? Anselmo dedica uma obra em forma de diálogo a esta questão (De
Veritate). Trata-se de uma questão essencial. Ela pergunta pela essência da verdade –
quid sit veritas? (o que é a verdade?). Anselmo parte da experiência: dizemos que há
verdade está ali onde se dá o verdadeiro. Há a verdade de uma indicação (significatio) e
a verdade de uma enunciação (enunciatio); a verdade de uma opinião (opinio), por um
lado, e a verdade de uma vontade (voluntas) ou de uma ação (actio), por outro; há ainda
uma verdade dos sentidos (sensus) e uma verdade da essência das coisas (essentiae
rerum). Muitas são, pois, as formas de verdade: há uma verdade do conhecer, a verdade
lógica; uma verdade do agir, a verdade ética; e uma verdade do ser, a verdade
ontológica. A verdade ontológica é o fundamento da verdade lógica. Com efeito, causa
da verdade do juízo ou enunciado está no ser ou não ser da coisa enunciada (res
enunciata). Mas, o que faz com que todas estas formas de verdade sejam verdade? A
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resposta de Anselmo é: a “rectitudo” (retidão), ou seja, que algo seja como ele deve ser.
Verdade é, portanto, a coincidência ou identidade entre o ser e o dever-ser da coisa.
Mas, de onde a coisa haure o seu dever-ser? O que é normativo para o real é o ideal,
normativo para a coisa é a ideia da coisa. Conhecimento e ação estão sempre
mensurando o fático (o ser real) a partir da essência, ideia ou norma (o ser ideal, o dever-
ser). Isto quer dizer: a verdade lógica e a verdade ética pressupõem a verdade
ontológica. Mas a ideia da coisa se funda e se fundamenta, originariamente, na mente
de Deus. A verdade das coisas (verdade ontológica) consiste em elas serem aquilo que
eram na mente de Deus, ou seja, em corresponder ao projeto criador divino. As coisas
são imagens concretizadas dos pensamentos de Deus. A “ratio necessaria” (razão
necessária) de uma coisa é justamente a exposição desta verdade essencial das coisas,
a verdade da essência da coisa. Deus é a verdade originária, suprema e infinita, a partir
da qual as coisas recebem o seu ser verdadeiro e as formas de verdade se concretizam.
Com efeito, a “rectitudo” da Verdade, que é Deus, é diferente da “rectitudo” das formas
de verdade derivadas desta verdade originária. A verdade das coisas recebe sua medida
da “summa veritas per se subsistens” (verdade suprema que subsiste por si mesma), que
é Deus mesmo. A verdade de Deus não recebe medida de nenhuma outra, pois ela
mesma é o parâmetro, a partir donde se mede a verdade das coisas (ontológica), e, por
conseguinte a verdade do conhecimento (lógica) e a verdade da ação (ética). Esta
verdade, por conseguinte, não pode se dar de modo plural. Ela é singular: única em si
mesma, e una em todas aquelas outras formas de verdade.
Mas, voltando à pergunta pela essência da verdade, como caracterizar um
conceito formal de verdade, que vale tanto para as formas de verdade derivadas quanto
para a verdade absoluta, una, infinita e suprema? Para Anselmo, a essência da verdade
se deixa dizer nesta indicação: “Veritas est rectitudo mente sola perceptibilis” (verdade
é a retidão perceptível só com a mente). A retidão segundo a qual a coisa é o que deve
ser, ou seja, é o que ela é no pensamento ou no projeto criador de Deus, constitui a
verdade ontológica. Tanto a retidão predicativa, de uma significação ou de um
enunciado, bem como a retidão de um conhecimento dado pela experiência ou pela
razão, que caracteriza a verdade lógica; quanto a retidão de uma opinião, vontade ou
ação, que caracteriza a verdade ética; quanto, ainda a retidão segundo a qual uma coisa
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é o que ela deve ser, isto é, correspondendo ao pensamento dela no desígnio criador de
Deus; todas estas formas de retidão recebem sua medida da verdade originária, infinita,
absoluta e incriada: Deus. Verdade é a percepção da retidão, percepção que se dá “sola
mente” (com a mente somente), isto é, numa apreensão puramente inteligível.
A investigação sobre a verdade remeteu à verdade absoluta e originária, Deus.
Mas, como demonstrar “sola ratione”, isto é, só com a razão, as “rationes necessariae”,
ou seja, os fundamentos racionais da fé na existência de Deus? Numa primeira obra, o
“Monologion”, Anselmo tenta demonstrar a existência de Deus por meio de dois
argumentos a posteriori, isto é, partindo da experiência. Ele o faz seguindo a via
platônico-agostiniana. Num primeiro argumento, Anselmo toma em consideração
conceitos transcendentais: bonum (bom), ens (ente), unum (uno). Anselmo parte da
existência de bens no mundo, que são mais ou menos bons. Alguns bens nós
consideramos bons pela utilidade (propter utilitatem); outros, pela sua beleza (propter
honestatem). Estes bens são medidos e valorados como mais ou menos bons. Deve
haver, então, uma medida pelas quais se medem os bens. Esta medida deve ser um bem
absoluto e não um bem relativo, algo que é um bem por si mesmo (bonum per se ipsum)
e não um bem por participação, algo que não é um bem, mas o bem. Trata-se, portanto,
do “summum bonum” (sumo bem), que nós chamamos Deus. Este mesmo raciocínio
vale para a grandeza e para a dignidade. Vale, por fim, para o ser. Tudo o que é parece
ser através e a partir de algo que ele não é. Deve haver algo, através do que e a partir
do que tudo o que é, é: o ente que é a partir de si mesmo, o sumo ente. E este sumo
ente não pode ser senão um só: uma vez que a própria verdade exclui que sejam muitos,
aquilo por meio do que tudo é, é necessário que seja um, aquilo pelo que tudo o que é,
é. O segundo argumento toma em consideração uma ordem gradativa no ser de tudo o
que é: a natureza da árvore é menos digna do que a natureza do cavalo, que é menos
digna do que a natureza do homem. Numa há somente o ser, noutra o ser, o viver e o
sentir, noutra, por fim, o ser, o viver, o sentir e o pensar. Esta gradualidade de naturezas
aponta para uma única natureza suprema. Esta é o que ela é, por si mesma, e tudo o
que é, é o que é por ela. Melhor: trata-se de uma natureza, que é por si mesma boa e
grande; que é por si mesma aquilo que ela é; que é por si mesma o que é sempre
verdadeiro, bom e grande; e que é o sumo bem, a suma grandeza, o sumo ente ou a
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suma substância, ou seja, que é o Altíssimo, de tudo aquilo que é. Esta argumentação
pressupõe, pois, o ser por participação (participatio), que é sempre relativo, a saber, o
ser da criatura; e o ser em sentido absoluto, que é o ser de Deus. O relativo é por outro
(ens ab alio). Já o absoluto é por si mesmo (ens a se). Os muitos relativos pressupõem,
contudo, um único absoluto.
O “Monologion”, obra muito importante da escolástica nascente, traz o famoso
argumento da existência de Deus conhecido como “ratio Anselmi”.
Algumas considerações.
(1) A “ratio anselmi” há de ser interpretada no todo da obra de Anselmo e do
seu projeto de pensamento. Contra o seu isolamento.
(2) Dentro da obra de Anselmo, o Monologion, o Proslogion e o De Veritate hão
de ser lidos como uma trilogia. Um tríptico.
(3) Momentos fundamentais do projeto do pensamento de Anselmo:
- Um percurso de pensamento que parte da fé para retornar à fé. Fé como
princípio. Atua aqui o princípio tomado por Agostinho a partir de Isaías (7, 9): “nisi
credideritis, non intelligetis” – “se não crerdes, não compreendereis”. Agostinho: “credo
ut intellegam” (creio para compreender). “Neque enim quaero intelligere ut credam,
sed credo ut intelligam” (não procuro, de fato, compreender para poder crer, mas creio
para poder compreender) (PG I). Na Epistola De Incarnatione Verbi, 1094, Anselmo
declara que tanto o Monologion quanto o Proslogion foram escritos “ut quod fide
tenemus de divina natura et eius personis, praeter incarnationem, necessariis rationibus
sine scripturae auctoritate probari possit”.
- O motivo: fides quaerens intellectum (a fé buscando intelecção/compreensão).
- A tendência: “tendere in veritatem” (tender para dentro da verdade) como um
“tendere in Deum” (tender para dentro de Deus). Diferença entre “ad”, que implica
exterioridade, e “in”, que implica interioridade. o intellectus fidei (a compreensão da fé).
- Fides (fé): mais que um “credere id” (crer em algo), um “credere in” (crer em
alguém). Uma fé que busca: dinamicidade de um “quaerere Deum” (buscar Deus) (cfr.
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Agostinho, livro X das Confissões). Busca da visão do “rosto” de Deus: “Quaero vultum
tuum, vultum tuum, Domine, requiro” (busco o teu rosto, o teu rosto, Senhor, reclamo)
[Proslogion, c. I]. Impossibilidade: Deus habita em uma luz inacessível (Lux Inacessibilis).
Sentido escatológico: a visão de Deus (species) é adiada para a eternidade. Para que não
se desespere, é dada ao crente uma “spes pertingendi” (esperança de alcançar o que
busca). A ausência de Deus, porém, aumenta o desejo do crente. Ele encontra um meio
entre a fé que busca e a visão que é buscada: a dinâmica do intelligere (compreender) e
o que ele pode alcançar, o intellectus fidei (compreensão da fé). O ‘intellectus fidei’
(compreensão da fé) como ‘medium’ (meio), que está “inter fidem et speciem” (entre a
fé e a visão) (Comendatio). O conhecimento, no entanto, está em vista do amor e da
alegria da união com Deus: “cognoscam te, amem te, gaudeam te” (te conhecerei, te
amarei, alegrar-me-ei de ti” (PG XXVI, último capítulo). Por tudo isso, o Proslogion une
razão e fé, poesia mística e prosa especulativa, espontaneidade da experiência da vida
da fé e esforço da investigação racional.
- Compreensão do limite, da finitude, desta unidade de fé-e-razão, face ao
mistério de Deus: “non tento, Domine penetrare altitudinem tuam, quia nullatenus
comparo illi intellectum meum; sed desidero aliquatenus intelligere veritatem tuam,
quam credit et amat cor meum” (Não tento, ó Senhor, penetrar a tua profundidade: de
maneira alguma a minha inteligência amolda-se a ela, mas desejo, ao menos,
compreender a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Com efeito, não busco
compreender para crer, mas creio para compreender. (PG I).
(4) Sobre o sentido dos escritos. O Proslogion retoma o Monologion. No
proemio do Proslogion Anselmo se refere ao Monologion como “exemplum
meditandi de ratione fidei” (exemplo de meditação a respeito da razão da fé).
O Proslogion, por sua vez, se propõe como um exemplo de contemplação,
em que aquele que escreve se apresenta “sub persona conantis erigere
mentem suam ad contemplandum deum et quaerentis intelligere quod
credit” (como uma pessoa que se esforçasse para elevar a sua mente até a
contemplação de Deus, a fim de compreender aquilo em que acredita). Por
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isso, o subtítulo da obra: “Fides quaerens Intellectum” (fé buscando
compreensão).
(5) Sobre o método. O método de Anselmo em ambos os escritos é o mesmo.
No Monologion é anunciado como “saltem sola ratione”. “Saltem” se traduz,
normalmente, por “pelo menos”, “ao menos”. Tem um sentido restritivo e
significa, aqui, “na falta de outra coisa”. No primeiro capítulo do Monologion
ele diz:
Se alguém ignora, o porque não ouviu o porque não crê, que há uma natureza
superior a todas as coisas que são, suficiente, sozinha, a si mesma na sua beatitude
eterna, que mediante a sua bondade onipotente concede o ser a todas as outras coisas
tornando-as de certo modo boas, e muitas outras verdades que necessariamente
cremos a respeito de Deus e da sua criação, penso que a maior parte (ex magna parte)
destas coisas, possa ao menos (saltem) se persuadir, mesmo se é de espírito (ingenium)
medíocre, com a razão sozinha (sola ratione) (MG I)
(6) Qual o sentido de “sola ratio”? “Ratio” (razão) aqui está em oposição a
“Auctoritas” (Autoridade). Como Agostinho, Anselmo distingue entre
autoridade divina, confiável, e autoridades humanas, não tão confiáveis.
Autoridade divina: a revelação, a Escritura (Sacra pagina). Autoridades
humanas: os Padres da Igreja, sobretudo Agostinho. No processo do
intelligere a ratio exclui o recurso às “auctoritates” como meio de
demonstração. Estas não são negadas ou suprimidas, mas, por assim dizer
“postas entre parênteses” (epoché, em sentido fenomenológico!!!). “Sola
ratio” equivale, segundo Viola, a “pura ratio” e, assim, antecede a Kant (reine
Vernunft: Razão pura). Razão pura como razão finita: o que se dá nos limites
da compreensão humana. Assim, tanto o Monologion, quanto o Proslogion,
se dariam, no tocante ao método, como uma dialética do espírito finito que
procura meditar com a só razão a respeito do espírito infinito (Deus), e elevar
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a mente com a só razão na busca da sua contemplação (cfr. Viola). O método,
aqui, é o caminho da razão solitária do espírito finito, o humano, que se dirige
(Proslogion = Alloquium = alocução!) ao espírito absoluto, a quem chama de
“Tu”, esforçando de compreender algo de sua existência e de sua essência
(uma “Fenomenologia do Espírito” antes de Hegel). Outro sentido: “sola
ratio” (Razão pura) significa “ratio vera” (razão verdadeira). Este sentido vem
de Agostinho. No De quantitate animae, ele fala de crer com o apoio na
autoridade e crer com o apoio na razão: “aliud est enim cum auctoritati
credimus, alliud cum credimus rationi”. Para Agostinho, crer com o apoio na
autoridade divina (revelação > Escritura) evita cair nos enganos de opiniões,
de razões aparentes, ilusórias, que ele chama de “similitudines rationum”
(semelhanças das razões). O caminho de crer com a autoridade é direto e
rápido. E adverte para a dificuldade de quem procura crer não só com a
autoridade, mas também com a razão: “deves tolerar muitos e longos
circuitos do pensamento (multi et longi circuitus), de tal modo que te guie a
razão que somente é razão, isto é, a verdadeira; e essa não só é verdadeira,
mas também tão certa e imune de todo sofisma que argumentos falsos e
opinativos não te podem distanciar” (Quant. An. C. 7).
(7) A necessidade do “unum argumentum”. No Monologion Anselmo percorre
este “muitos e longos circuitos” da meditação. Depois de tê-lo terminado, se
deu conta do resultado e ficou insatisfeito, e mais, angustiado. É o que ele
narra no proêmio do Proslogion: “Mal acabei de escrever um opúsculo,
acedendo aos pedidos de alguns irmãos, o qual servisse como exemplo de
meditação sobre os mistérios da fé para um homem que busca, em silêncio,
descobrir, através da razão, o que ignora, e dei-me conta de que essa obra
era difícil de ser entendida devido ao entrelaçamento das muitas
argumentações” (multorum concatenatione contextum argumentorum). Isso
o leva a procurar, numa outra obra, o “unum argumentum”: “Então comecei
a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento
(inveniri unum argumentum) que, válido em si e por si, sem nenhum outro,
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permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que ele é o bem
supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao contrário, todos os
outros seres precisam dele para existirem e serem bons. Um argumento
suficiente, em suma, para fornecer provas adequadas sobre aquilo que
cremos acerca da substância divina”. O encontro do “unum argumentum”
veio repentino (quadam die) a Anselmo, enquanto ele se debatia,
desesperado, em meio ao conflito de suas cogitações (conflictu
cogitationum) (Proêmio). Anselmo, então, abraçou com paixão este
pensamento, tendo-o como uma iluminação.
(8) Qual o sentido do “unum argumentum”? Trata-se de um princípio
demonstrativo a priori. No Monologion, Anselmo parte da experiência. A
demonstração da existência de Deus é a posteriori. No Proslogion, porém, a
marcha dialética segue a dinâmica de um desdobramento a priori. Dele
haveria de se poder derivar tanto a existência de Deus quanto os atributos
de sua essência. E, trata-se, aqui, do Deus da revelação bíblica e da fé cristã,
isto é, do Deus uno e trino (Trindade). Este princípio é posto como uma regra
dialética para a investigação que se dá “sola ratione”. A “ratio” “investigantis
et disputantis” (razão que investiga e disputa) marcha na direção de uma
compreensão do ser (esse) de Deus, guiada e regida por este princípio. Este
princípio se anuncia como uma “prolatio”16, uma prolação, no sentido de
uma menção, que pretende mostrar, deixar ver algo de algo. No capítulo II
do Proslogion se anuncia assim: “... credimus te esse aliquid quo nihil maius
cogitari possit” (cremos que tu és alguma coisa da qual não se pode pensar
nada de maior). Da afirmação da fé, porém, Anselmo passa abruptamente a
menção “aliquid quo nihil maius cogitari possit” como princípio que guiará a
sua investigação.
16 Prolatio: prolação, no sentido de prolongamento; alargamento. Cícero usa no sentido de citação, menção. Remete ao verbo “prolare”: estender, prolongar (daí: também adiar, diferir). Mas talvez também ao verbo “proferre”: exibir, mostrar, deixar ver; estender; citar, divulgar, revelar, declarar; mas também diferir, retardar. O particípio de ambos os verbos é “prolatum”.
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(9) Quais as características do princípio demonstrativo? Este princípio é uma
espécie de “indicação formal” (Heidegger). Formal é esta indicação pois não
traz de antemão nenhum conteúdo representativo. É uma indicação de um
rumo para o pensamento que investiga. Ela delimita, ao mesmo tempo, um
horizonte de busca: aponta para o limite do pensamento, para o máximo que
o pensamento (cogitatio) pode pensar (cogitare). A investigação se
caracteriza, então, como um movimento ascendente rumo ao limite daquilo
que se pode pensar. Esta indicação é, ao mesmo tempo, um indício de valor:
aponta para “aliquid quo nihil maius cogitari possit” – sendo que o “maius”
(maior) indica uma grandeza intensiva, não extensiva; qualitativa, não
quantitativa; que, no fim das contas, se idêntica com o “melius” (melhor). No
entanto, diferentemente do Monologion, Anselmo não recorre ao bonum
(bom), ao esse (ser), ao unum (uno). O “maius” (maior) não vai na direção do
ser (esse), mas do pensar, ou melhor, do poder ser pensado (cogitari). Neste
princípio, o cogito (pensamento) se mede com o que está posto no seu limite:
“aliquid quo nihil maius cogitari possit” (alguma coisa em relação à qual não
se pode pensar nada de maior). Por um lado, este princípio demonstrativo
tem como fio condutor o “cogitare” (ressonâncias de Cícero, Sêneca,
Agostinho). Por outro lado, ele se concentra na grandeza (por isso muitos o
chamam de argumento megalógico). O pensamento se mede, pois, com a
grandeza, com aquela grandeza em relação à qual não há nada de maior.
Trata-se de uma grandeza absoluta. Anselmo, aqui, não recorre mais, como
no Monologion, à uma grandeza comparativa e superlativa, o “summum”,
mas seu princípio aponta para a grandeza absoluta e insuperável: “aliquid
quo nihil maius”. Todo o Proslogion pode ser compreendido como a
exposição de uma dialética da grandeza, mediante a qual se mostra como
racional seja a existência seja a natureza do Deus uno e trino em seus
atributos.
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(10) Uma característica fundamental: o “unum argumentum” tem como
critério seguir a “necessitas rationis” (necessidade da razão), que, por sua
vez, é a manifestação da “claritas veritatis” (clareza da verdade). A razão
que investiga e disputa há que ser orientada, ela mesma, por algo que a
transcende: a verdade (veritas). A “necessitas” (necessidade) da “ratio
necessária” expressa a referência essencial da “ratio” (razão) à “veritas”. A
“necessitas” é “veritatis solidalitas rationabilis” (solidez da verdade que pode
ser investigada pela razão), diz ele no Cur Deus Homo (I, 4). Ela é a
manifestação da “claritas veritatis” (clareza da verdade). A razão não é a
verdade. Ela é apenas o “lugar” em que a claridade da verdade se manifesta
como necessidade. Na demonstração, o “probare” (provar), o “astruere”
(construir acrescentando), tem o sentido de, pela necessidade da razão,
“ostendere” (pôr diante dos olhos), “monstrare” (mostrar), “aperire” a
dimensão transcendental da “veritas” (verdade), da sua claridade e da sua
solidez. No De Veritate Anselmo desdobra isso, que já está, de certo modo,
latente no Proslogion. A verdade como “rectitudo mente sola perceptibilis”
(retidão que é perceptível com a mente somente) se funda numa verdade
absoluta, que é Deus. Deus é o fundamento da verdade (ratio veritatis: ratio
summae naturae) (cfr. Contra Gaunilo, III). É o fundamento da verdade da
razão (veritas rationis), que consiste na retidão que se percebe com a mente
sozinha. Mas, em que consiste esta “retidão”? Resposta: na correspondência
entre a “ratio” da mente que pensa e a “ratio rei” (razão da coisa). Assim, a
razão noética-noemática remete à razão ontológica. O “intelligere” implica
uma relação com a res, com o real, a realidade. Na retidão da verdade, não é
o intellectus que funda a res, mas a res que funda o intellectus. A “ratio rei” é
que dá fundamento à “ratio” (razão), para que o “cogitare” (pensar) seja um
“intelligere” (compreender).
Estrutura do argumento único
A marcha da demonstração é exposta numa estrutura:
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I. Capítulo II, 1-4: Introdução em forma de alocução. Apresentação da
“Prolatio”17:
“Então, ó Senhor, tu que nos concedeste a razão em defesa da fé, faze
com que eu conheça, até quanto me é possível, que tu existes assim
como acreditamos, e que és aquilo que acreditamos. Cremos, pois,
com firmeza, que tu és um ser do qual não é possível pensar nada
maior” (aliquid quo nihil maius cogitari possit).
II. Capítulo II, 5 – III, 16. Em forma objetiva e impessoal, Anselmo
apresenta, a negação da existência de Deus por parte do insipiente e
procura mostrar que ela é absurda, pois é autocontraditória. Se o
“non est Deus” (Deus não existe) é absurdo, se conclui que o seu
contraditório, o “Deus est” é verdadeiro de uma verdade necessária.
Deus existe necessariamente: ele não pode não ser. Ele é (existe = é
na realidade).
Porém, o insipiente, quando eu digo: "o ser do qual não se pode pensar nada maior", ouve o que digo e o compreende. Ora, aquilo que ele compreende se encontra em sua inteligência, ainda que possa não compreender que existe realmente. Na verdade, ter a ideia de um objeto qualquer na inteligência, e compreender que existe realmente, são coisas distintas. Um pintor, por exemplo, ao imaginar a obra que vai fazer, sem dúvida, a possui em sua inteligência; porém, nada compreende da existência real da mesma, porque ainda não a executou. Quando, ao contrário, a tiver pintado, não a possuirá apenas na mente, mas também lhe compreenderá a existência, porque já a executou. O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência "o ser do qual não se pode pensar nada maior", porque ouve e compreende essa frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência. Mas "o ser do qual não é possível pensar nada maior" não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, "o ser do qual não é possível pensar nada maior" existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, "o ser do qual não se
17 Prolação: uma menção, que pretende mostrar, deixar ver algo de algo. Uma “indicação formal” (Heidegger).
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pode pensar nada maior" existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade. O que acabamos de dizer é tão verdadeiro que nem é possível sequer pensar que Deus não existe. Com efeito, pode-se pensar na existência de um ser que não admite ser pensado como não existente. Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente. Por isso, "o ser do qual não é possível pensar nada maior", se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é "o ser do qual não se pode pensar nada maior", não seria "o ser do qual não é possível pensar nada maior", o que é ilógico.
III. Depois, em forma de alocução, novamente, Anselmo conclui,
remetendo à relação criador-criatura.
Existe, portanto, verdadeiramente "o ser do qual não é possível pensar nada maior"; e existe de tal forma, que nem sequer é admitido pensá-lo como não existente. E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu. Assim, tu existes, ó Senhor, meu Deus, e de tal forma existes que nem é possível pensar-te não existente. E com razão. Se a mente humana conseguisse conceber algo maior que tu, a criatura elevar-se-ia acima do Criador e formularia um juízo acerca do Criador. Coisa extremamente absurda. E, enquanto tudo, excluindo a ti, pode ser pensado como não existente, tu és o único, ao contrário, que existes realmente, entre todas as coisas, e em sumo grau.
IV. Anselmo retoma a negação do insipiente e tenta responder a duas
perguntas.
IV.1. A primeira pergunta é: por que é possível a negação do
insipiente?
Então, por que o insipiente disse em seu coração: "Não existe Deus", quando é tão evidente, à razão humana, que tu existes com maior certeza que todas as coisas? Justamente porque ele é insensato e carente de raciocínio (III, 17- 19).
IV.2. A segunda pergunta é: como é possível a negação do insipiente?
Mas como o insipiente pôde dizer, em seu coração, aquilo que nem sequer é possível pensar? Ou como pôde pensar aquilo em seu coração, quando "dizer no coração" nada mais é do que pensar? Se, verdadeiramente, ele disse isso em seu coração, na verdade, também, o pensou. Mas, na verdade, ele não disse isso em seu coração, porque, justamente, não podia pensá-lo. Com efeito, pode-se pensar, ou dizer
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no coração, uma coisa de duas maneiras: pensando na palavra que expressa a coisa, ou compreendendo a própria coisa. No primeiro sentido, é possível pensar que Deus não existe; no segundo, não. Quem, por exemplo, compreende o que são a água e o fogo, sem dúvida, não pode pensar que os dois elementos sejam realmente a mesma coisa. Entretanto, se pensar apenas nas palavras água e fogo, pode imaginar as duas coisas como idênticas. Assim, quem compreende o que Deus é, certamente, não pode pensar que ele não existe, mas o poderia, se repetisse na mente apenas a palavra Deus, sem atribuir-lhe nenhum significado, ou significando coisa completamente diferente. Deus, porém, é "o ser do qual não é possível pensar nada maior", e quem compreende bem isso sem dúvida compreende, também, que Deus é um ser que não pode encontrar-se no pensamento. Quem, portanto, compreende que Deus é assim, não consegue sequer imaginar que ele não exista.
V. Segue, então, a conclusão geral, em forma de alocução:
Obrigado, meu Deus. Agradeço-te, meu Deus, por ter-me permitido ver, iluminado por ti, com a luz da razão, aquilo em que, antes, acreditava pelo dom da fé que me deste. Assim, agora, encontro-me na condição em que, ainda que não quisesse crer na tua existência, seria obrigado a admitir racionalmente que tu existes.
Análise do argumento único
O argumento único é uma demonstração a priori da existência de Deus,
apresentado em forma de alocução (Allocutio: Proslogion) a Deus. É a priori, pois não
parte da experiência, das criaturas.
Deus é “ens a se” (ente por si), não “ens ab alio” (ente por outro). Ele de nada
depende e dele tudo depende. O argumento único, enquanto argumento a priori, deve
corresponder a esta aseidade de Deus. O argumento ele mesmo deve ser autônomo,
deve se bastar a si mesmo. Seu único apoio é a “prolatio”: “aliquid quo nihil maius
cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior).
O argumento único foi escrito por um monge teólogo para monges cristãos. O
sentido da obra como um todo é a “elevação da mente para Deus”. A demonstração da
existência de Deus é o ponto de partida desta elevação. Seu objetivo não é persuadir o
não crente a crer em Deus. Seu objetivo é levar o crente a compreender aquilo que ele
crê, isto é, incluir o movimento do intelecto na ascensão para Deus.
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O argumento único é uma demonstração indireta: não demonstra diretamente
que Deus existe, mas procura confundir e refutar a negação da existência de Deus, por
parte do “insipiente” (aquele que não sabe), mostrando sua insensatez.
Alexandre Koyré (L’idée de Dieu dans la philosophie de St. Anselme) aponta o uso
de dois princípios na demonstração: o princípio de perfeição e o princípio de contradição.
O princípio de perfeição
O fundamento da demonstração é o princípio de perfeição. A questão inerente a
este princípio é: qual o relacionamento entre ser e perfeição?
Antecedentes históricos na tradição filosófica:
Plotino considera que há um paralelismo entre ser e perfeição, entre os degraus
do ser e os degraus de perfeição dos entes. O mais alto grau de ser corresponde ao mais
alto grau de perfeição. A perfeição absoluta corresponde ao ser absoluto. Ou melhor: a
perfeição absoluta corresponde ao Um, causa do ser.
Para Agostinho, ser, a existência, é um bem. Bem é o que é, por natureza,
apetecido pelos entes.
O ser é, por natureza, de tal maneira atrativo (jucundum), que não é outra a causa de não quererem morrer (interiri) até mesmo os infelizes (miseri), que, embora penetrados do sentimento da própria infelicidade, anseiam por que seja arrancada de entre as coisas, não eles, mas sua infelicidade (...). E que dizer dos animais todos, mesmo dos irracionais, carecentes de tal modo de pensar, desde os dragões gigantescos até os diminutos vermes? Não apetecem ser? Não provam com todos os movimentos possíveis que fogem e refogem à morte? (...)18.
In quantum est, quidquid est, bonum est (Enquanto é, seja o que for, é bom)19.
Quaecumque sunt, bona sunt (Todas as coisas que são, sejam quais forem, são boas)20.
Daí que a má vontade, mesmo quando não seja segundo a natureza, mas contra a natureza, por ser vício, seja da mesma natureza que o vício, que não pode existir senão em alguma natureza. E
18 De Civ. Dei, XI, c. 27. 19 De Vera Religione, c. 9. 20 Confessiones VII, c. 12.
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somente na natureza criada do nada, não na que o Criador gerou de si mesmo, como o Verbo, por quem foram feitas todas as coisas. Porque embora seja verdade haver Deus formado o homem do pó, a terra e toda a matéria terrena procedem do nada absoluto, como a alma infundida no corpo, quando Deus criou o homem. Os males são superados pelos bens, a ponto de os bens poderem existir sem os males, embora se lhes permita a existência, para ressaltar o bom uso que deles pode fazer a providentíssima justiça do Criador. Assim Deus, verdadeiro e sumo, assim todas as criaturas, celestiais, invisíveis e visíveis, que estão acima desta atmosfera de trevas. Por sua vez, os males não podem existir sem os bens, porque as naturezas em que subsistem, como naturezas, são boas21.
Quia summum bonum est summe esse22.
O ser, portanto, é um bem. É uma perfeição.
Em Deus, a existência não pode ser separada nem distinguida de outras
perfeições, nem da essência mesma. Em Deus, essência e existência formam uma
unidade. No dizer dos medievais: Deus est suum esse (Deus é seu ser, seu existir).
Há que se notar que Anselmo não identifica ser e perfeição. A única coisa que ele
faz é afirmar que um ente dotado de perfeição e de existência é mais perfeito que um
ente privado de existência. Há uma conveniência entre ser e perfeição e não uma
identidade.
Deus é o ente absolutamente perfeito. Este é o sentido da “prolatio”: “aliquid
quo nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior). O
“maius” (maior) indica uma grandeza intensiva, não extensiva; qualitativa, não
quantitativa; que, no fim das contas, se idêntica com o “melius” (melhor). Perfeição e
bem convêm, aqui, com o ser.
o princípio de contradição
Anselmo procura mostrar que o insensato, de que fala o salmo, é de fato
insensato. Isto quer dizer: ao negar que Deus existe, ele diz coisas que ele não entende,
e diz coisas contraditórias.
21 De Civ. Dei, l. XIV, c. 11. 22 Porque o sumo bem é sumo ser.
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Segundo Anselmo, a proposição “Deus não existe” contém uma contradição nos
termos, uma contradição interna, portanto. Ela contém, ao mesmo tempo, posição e
negação do mesmo predicado. É uma contradição no pensamento. Anselmo procura
mostrar, pela impossibilidade de negar a existência de Deus, que ela deve ser posta.
Deus é “aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar
nada de maior). Dizer “Deus existe” é dizer: “algo do qual não se pode pensar nada de
maior existe”. Há dois modos de pensar uma coisa: “aliud est rem in intellectu habere,
aliud intelligere rem esse” (uma coisa é ter uma coisa no intelecto, outra coisa, entender
que a coisa existe). Pode-se pensar uma coisa sem considerar sua existência ou sua não
existência. O pintor, no exemplo dado por Anselmo, pensa o quadro sem ainda tê-lo
produzido, isto é, sem que o quadro exista. Ele tem o quadro em mente, o tem no
intelecto. Ainda não o concebe como existente. Depois de ter produzido o quadro, ele
concebe o existir do quadro (intellegit rem esse).
Há um pensamento puramente verbal, que não pensa a coisa mesma, mas
apenas pensa palavras. Este pensamento pensa de modo vazio, isto é, sem o
preenchimento (Erfüllung), para usar um termo fenomenológico, de uma intuição.
Pensa-se uma palavra de maneira vaga, imprecisa. Da mesma maneira, o discurso que
expressa este pensamento é vazio: diz-se uma coisa sem compreender o que está sendo
dito. Preenchido por uma intuição, o pensamento verbal se torna claro e preciso. O
pensamento verbal vazio não presentifica (vergegenwärtig) a coisa que ele tem em
vista. É deste tipo, segundo Anselmo, o pensamento daquele que diz: “Deus não existe”.
Assim como há dois modos de intencionar a coisa no pensamento, também há
dois modos de a coisas ser intencionada (visada). Aquele que diz: “Deus não existe” se
relaciona, intelectivamente, com a coisa que é nomeada pelo nome “Deus”, isto é,
“aliquid quo nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior).
Só que este relacionamento se dá no modo do “pensar vago” e do “falar vazio”. A coisa
pensada se dá no modo do “esse in intellectu” (ser no intelecto), isto é, de um mero “ser
intencional”, que não inclui o ser real. Ele não é capaz de “intelligere rem esse”
(apreender a existência da coisa), de captar o ser real. Ora, o ser intencional (esse in
intellectu), ser puramente pensado, é menor do que o ser real (esse in re). Vice-versa: o
ser real é maior do que o ser puramente pensado. Se o nome “Deus” indica “aliquid quo
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nihil maius cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior), então, este
algo não pode ser só no intelecto, mas deve ser também na realidade:
Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse solo in intellectu. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est. Si ergo id quo maius cogitari no potest, est in solo intellectu: id ipsum quo maius cogitari non potest, est quo maius cogitari potest. Sed certe hoc esse non potest. Existit ergo procul dubio aliquid quo maius cogitare non valet, et in intellectu et in re.
Mas "o ser do qual não é possível pensar nada maior" não pode existir somente na inteligência. Se, pois, existisse apenas na inteligência, poder-se-ia pensar que há outro ser existente também na realidade; e que seria maior. Se, portanto, "o ser do qual não é possível pensar nada maior" existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. Logo, "o ser do qual não se pode pensar nada maior" existe, sem dúvida, na inteligência e na realidade.
Se Deus é possível, Deus existe necessariamente.
O argumento vai do “posse” (poder) ao esse (ser).
Os passos do argumento são:
1) Posse – Deus é possível, isto é, é pensável. A prolação “aliquid quo nihil maius
cogitari possit” (algo do qual não se pode pensar nada de maior) diz algo de
possível, isto é, de pensável, pois não inclui nenhuma contradição.
2) Non posse concipi non esse – Deus não pode ser pensado como o que não
existe. Pois, pensar “Deus não existe” é o mesmo que pensar
contraditoriamente. Si ergo id quo maius cogitari no potest, est in solo
intellectu: id ipsum quo maius cogitari non potest, est quo maius cogitari
potest. Sed certe hoc esse non potest.
3) Necesse concipi esse – Deus necessariamente deve ser concebido como o que
é, o que é existe.
4) Non posse non esse – Deus não pode não ser, não existir. Deus existe de
modo necessário (e não contingente).
5) Ergo, necesse esse – portanto, necessariamente, Deus existe.
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Na resposta a Gaunilo, Anselmo diz:
Certe ego dico: si vel cogitari potest esse, necesse est illud esse (eu digo com
certeza: se pode ser ao menos pensado como existente, é necessário que exista)
(...). Si ergo potest cogitari esse, ex necessitate est. Amplius. Si utique vel cogitari
potest, necesse est illud esse (Se, pois, pode ser pensado como existente,
necessariamente é. Ademais, se pode também ser ao só pensado, é necessário
que exista).
Assim, o argumento põe uma relação necessária entre a possibilidade e a
necessidade da existência de Deus.
No que concerne ao pensamento, o argumento passa de um momento hipotético
para um momento tético. No que concerne à coisa pensada, o argumento percorre três
estações, passando pelas modalidades do ser, a saber, parte do possível para chegar ao
necessário e, por fim, à existência.
O ser no real (esse in re), ou melhor, a realidade ou a existência, não é somente
a base de perfeições, mas é, ela mesma perfeição. É a última perfeição de uma essência.
É sua realização completa (esse in actu).
A demonstração de Anselmo não é analítica, mas sintética. Isto é: a noção de
Deus não comporta, por identidade, a existência, mas a existência é posta como o que
convém à noção de Deus, e como o que convém necessariamente.
O insensato não entende, até o fim, a noção de Deus. É só com base nisso que
ele pode dizer: “Deus não existe”. Ele pensa, no sentido do cogitari, sem intelligere
(compreender). Ele pensa uma palavra de modo vazio, sem entender a coisa mesma que
é significada pela palavra. Pensa a “vox” sem pensar, isto é, sem intuir intelectivamente,
a “res”.
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O modo como Anselmo abordou a relação entre fé e razão se tornou
paradigmático para a teologia escolástica. Sua teoria da significação e da denominação
influiu na elaboração de uma doutrina da “analogia entis” (analogia do ente), que
iremos estudar em Tomás de Aquino. Sua abordagem lógica da gramática influiu na
lógica linguística do século XII (Gilberto de Poitiers e Pedro Abelardo) e sua abordagem
ontológico-categorial da gramática influiu na elaboração de uma gramática especulativa
no século XIII (Roger Bacon, Tomás de Erfurt). Mas, o que fez história mesmo ao longo
dos séculos foi o “argumento único” do Proslogion. Na Idade Média, estão a seu favor
Guilherme de Auxerre, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Egídio Romano e Duns
Scotus. Já Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham não o aceitam. Descartes o assume,
desligado do seu contexto. Kant o critica e rejeita. Hegel o apoia. Cada um, a partir de
sua perspectiva de pensamento. O que não se pode negar é que Anselmo foi uma
autoridade para os medievais e constitui também um pensador respeitado também
pelos pensadores modernos. E, se os continentais hoje o consideram devido aos seus
temas, os analíticos o retomam devido ao rigor formal lógico de suas exposições e
devido à sua teoria lógico-semântica.