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PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS: O que dizem os livros didáticos? O que fazem os professores?

PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS: O … · 2019. 10. 25. · pela compreensão nos momentos de ausência e pelo incentivo para que eu participasse de atividades

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  • PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS: O que dizem os livros didáticos? O que fazem os professores?

  • MARÍLIA DE LUCENA COUTINHO

    PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO DE CRIANÇAS: O que dizem os livros didáticos? O que fazem os professores?

    Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação.

    Orientadora: Profª Drª Eliana Borges Correia de Albuquerque

    RECIFE 2004

  • AGRADECIMENTOS

    A minha orientadora, Eliana:

    Gostaria de fazer um agradecimento muito especial, não apenas pelo

    constante interesse, incentivo, confiança em mim e neste trabalho,

    mas, principalmente, pela incrível disponibilidade, não importando a

    “hora nem o local” dos nossos encontros acadêmicos, mesmo que isso

    lhe tomasse o tempo de estar com os seus familiares.

    A Luiz e à pequena Alice,

    meus agradecimentos, mas, também, minhas desculpas por ter “roubado”

    tanto Eliana de vocês!

    A Yarany,

    por ter me recebido de portas abertas em sua sala, pela disponibilidade

    de sempre, pela confiança, por ter compartilhado comigo oito meses de

    muita aprendizagem e por ter se tornado uma grande parceira.

    A Conceição,

    por ter aceitado participar desta pesquisa, demonstrando confiança no

    trabalho de uma pesquisadora ainda iniciante, o que possibilitou que eu

    conhecesse mais de perto seu ótimo trabalho como professora.

  • A Luziara,

    que, muito embora não tenha sido citada nesta pesquisa, me recebeu,

    sempre com muita atenção e cuidado, em sua sala de aula, ajudando-

    me a conhecer melhor o seu cotidiano, não muito diferente do de

    muitas professoras de nossas escolas.

    Ao Colégio Marista São Luís, representado por Tereza Cahú, Ir. Ailton,

    Lucrécia e Ana Cristina,

    pela compreensão nos momentos de ausência e pelo incentivo para

    que eu participasse de atividades que, muitas vezes, aconteciam no

    período das aulas.

    A Jô, especialmente,

    pelo incentivo na participação de congressos, capacitações, bem como

    pelo cuidado da organização dos horários para que eu pudesse

    freqüentar as aulas no Curso de Mestrado.

    A Tânia,

    pelos momentos em que esteve em minha sala, assumindo tão bem a

    função de professora, para que eu pudesse me afastar, mais

    tranqüilamente.

    Aos meus amigos Marcus, Bel, Heise e, em especial, Rose e Andréa,

    que compartilharam, de perto, as angústias e “delícias” vividas durante

    a realização deste trabalho.

  • A Jaque,

    grande incentivadora para a realização deste Curso de Mestrado:

    leitora atenta do anteprojeto e que, com muito interesse, “descobriu”

    um orientador interessado na minha pesquisa.

    Aos alunos das professoras observadas e, sobretudo, aos meus alunos,

    por todo o carinho demonstrado no dia-a-dia, através de sorrisos e dos

    constantes bilhetinhos de “amor”, que me fazem sentir como é bom ser

    “professora de crianças”.

    A Alda,

    por todo apoio e paciência que teve comigo.

    A Dalmo,

    pelo “orgulho” em ter uma namorada que fazia mestrado, pela

    compreensão nos momentos de minhas faltas e, principalmente, pela

    paciência, cuidado, perfeccionismo e maravilhosas sugestões feitas no

    momento da formatação desta dissertação.

    A minha mãe,

    por sempre ter acreditado no meu potencial, por ter ficado ao meu lado

    nos momentos mais difíceis de minha vida e por ter sido grande

    incentivadora em minha trajetória pessoal e profissional.

  • A meu pai,

    que, mesmo estando distante, nunca deixou de estar próximo,

    incentivando-me, orgulhando-se de minhas conquistas e me

    considerando uma professora “especial”.

    A Bruno, meu irmão,

    que mesmo à distância esteve sempre interessado em entender e

    conhecer o que eu fazia, torcendo para o meu sucesso.

  • LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS

    Tabela 1 – Freqüência e Percentagem de Atividades de Leitura...... 70 Gráfico 1 – Atividades de leitura/Projetos........................................... 70 Tabela 2 – Freqüência e Percentagem de Materiais Textuais por

    Unidade/Projeto...............................................................

    74 Gráfico 2 – Material Textual/Por projeto............................................. 75 Tabela 3 – Freqüência e Percentagem dos Modos de Leitura por

    Unidade/Projeto...............................................................

    81 Gráfico 3 – Orientações para leitura/projeto...................................... 81 Tabela 4 – Explicitação dos Gêneros nas Atividades de Leitura por

    Unidade/Projeto...............................................................

    87 Gráfico 4 – Orientação para leitura por gêneros/projetos................... 87 Tabela 5 – Explicitação das Finalidades de Leitura por

    Unidade/Projeto...............................................................

    91 Gráfico 5 – Finalidades de leitura/projetos......................................... 91 Tabela 6 – Freqüência de Estratégias de Leitura por

    Unidade/Projeto...............................................................

    94 Gráfico 6 – Estratégias de leitura/projetos........................................ 94 Tabela 7 – Atividades de Apropriação do Sistema de Escrita

    Alfabético.........................................................................

    100 Gráfico 7 – Atividades de Apropriação do Sistema de Escrita

    Alfabético/ Projetos..........................................................

    101 Tabela 8 – O Que se Lia na Sala de Aula de Yarany (total de 22

    aulas observadas)...........................................................

    152 Gráfico 8 – Divisão de atividades Yarany........................................... 153 Tabela 9 – O Que se Lia na Sala de Aula de Conceição (total de 7

    aulas observadas.............................................................

    156 Gráfico 9 – Divisão de Atividades Conceição..................................... 156 Tabela 10 – Para Que se Lia na Sala de Aula de Yarany................... 160 Gráfico 10 – Objetivos de Leitura Yarany............................................. 160 Tabela 11 – Para Que se Lia na Sala de Aula de Conceição.............. 167 Gráfico 11 – Objetivos de Leitura Conceição....................................... 167 Tabela 12 – Quem Lia na Sala de Aula de Yarany.............................. 172 Gráfico 12 – Modos de Leitura Yarany................................................. 172 Tabela 13 – Quem Lia na Sala de Aula de Conceição........................ 176 Gráfico 13 – Modos de Leitura Conceição........................................... 176

  • SUMÁRIO

    AGRADECIMENTOS

    LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS

    SUMÁRIO

    RESUMO

    ABSTRACT

    INTRODUÇÃO........................................................................................... 12

    CAPÍTULO 1 – MARCO TEÓRICO......................................................... 16 1.1 – Transposição Didática........................................ 17 1.2 – A Construção dos Saberes na Ação................... 20 1.3 – A Fabricação do Cotidiano................................. 23 1.4 – Concepção de Língua/Linguagem...................... 26 1.5 – Alfabetização e letramento................................. 30 1.6 – Ensino de Leitura e as Estratégias de Leitura.... 38 1.7 – Algumas reflexões sobre as mudanças nos

    livros didáticos de alfabetização.........................

    42 1.8 – Objetivos............................................................. 50 1.8.1 – Objetivo Geral...................................... 50 1.8.2 – Objetivos Específicos........................... 50

    CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA E TRATAMENTO DOS DADOS......... 52 2.1 – Sujeitos................................................................ 53 2.2 – Procedimentos Metodológicos............................ 57 2.2.1 – Observação das aulas......................... 57 2.2.2 – Análise documental.............................. 58 2.2.3 Entrevistas........................................ 58 2.3 – As professoras como leitoras.............................. 60

    CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO.................................... 65 3.1 – Apresentação do livro didático Letra, Palavra e

    Texto...................................................................

    66 3.2 – O que os alunos lêem?....................................... 69 3.2.1 – Quais textos os alunos lêem?.............. 73 3.3 – Colaboração para a construção da leitura.......... 79 3.3.1 – Como os alunos lêem?........................ 79 3.3.2 – Com qual explicitação de gênero os

    alunos lêem?........................................

    85 3.3.3 – Para que os alunos lêem?................... 90

  • 3.3.4 – Estratégias de leitura exploradas......... 93

    CAPÍTULO 4 – ANÁLISE DO USO DO LIVRO ...................................... 104 4.1 Uso não seqüenciado do livro............................. 107 4.2 – Leitura dos textos das unidades trabalhadas e

    de alguns enunciados.........................................

    108 4.3 – Exploração de estratégias de leitura................... 116 4.4 – Realização de atividades de apropriação do

    sistema de escrita propostas no livro..................

    128 4.5 – Realização de outras atividades de apropriação do

    sistema a partir do livro...............................................

    136 4.6 – Contextualização das atividades do livro

    didático................................................................

    141

    CAPÍTULO 5 – PRÁTICAS DE LEITURA NA ALFABETIZAÇÃO: além do livro d idático ..................................................

    149

    5.1 – O que se lia em sala de aula?............................. 150 5.2 – Para que se lia em sala de aula?........................ 159 5.3 – Quem lia?............................................................ 171

    CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 180

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 190

    ANEXOS...................................................................................................... 195

  • RESUMO

    A presente pesquisa pretendeu investigar as práticas de leitura realizadas por

    duas professoras, que lecionavam no 1º ano do 1º ciclo do Ensino

    Fundamental, da Secretaria de Educação da Cidade do Recife. Buscamos

    analisar como as docentes construíam e desenvolviam as atividades de leitura

    na perspectiva do letramento e como o livro didático adotado pela Rede (Letra,

    Palavra e Texto) era utilizado por elas. Como procedimentos metodológicos,

    realizamos a análise do referido livro, fizemos entrevistas com as docentes e,

    também, observações semanais de suas práticas de ensino. A análise do livro

    constatou uma presença de um variado repertório textual, contemplando

    diferentes gêneros que circulam na sociedade, mas, em relação às atividades

    de leitura, muitas vezes não havia indicação de como o texto deveria ser lido e

    havia pouca exploração de estratégias de leitura. No entanto, no que diz

    respeito à dinâmica de sala-de-aula das professoras, ambas utilizavam o livro

    didático como um dos materiais de apoio à organização do trabalho

    pedagógico, mas, percebemos que, muitas vezes, elas re-construíam as

    atividades propostas, modificando-as ou mesmo acrescentando outras, de

    acordo com as necessidades de suas práticas. Essas modificações estavam

    relacionadas, sobretudo, com a necessidade de complementar as atividades do

    livro didático no que se referia à exploração de estratégias de leitura e à

    apropriação do sistema de escrita.

    Palavras-chave: alfabetização/letramento/livro didático/construção da

    prática/atividades de leitura

  • ABSTRACT

    The following research has investigated the reading practices of two teachers

    during the first cycle of the first year of the fundamental level from “Secretaria

    de Educação da Cidade do Recife”. We have analysed how the teachers have

    constructed and developed the reading activities from the perspective of literacy

    and how the adopted book (Letra, Palavra e Texto) was used by them. As

    methodological procedures, we have analysed the referred book, interviewed

    the teachers and made weekly observations on their teaching practices. The

    book analyses have found a diversified textual repertory, with different genres

    that circulates among the society. Several times there were no instructions

    about how the reading practices should occur and almost no exploration of

    reading strategies. Referring to the class dynamics of the teachers, both of

    them have used the book as support material to organize the pedagogic work.

    Several times we also perceived that, they have reconstructed the purposed

    activities, modifying them and even adding new activities according to their

    necessities. Those modifications complemented the didactics books helping to

    explore reading, strategies and the appropriation of the writing.

    Key words: alphabetization/literacy/didactics books/practices

    construction/reading activities

  • INTRODUÇÃO

    O Censo Escolar1 do ano de 2000 revelou que o fracasso escolar no 1º

    ano do 1º Ciclo do Ensino Fundamental, no estado de Pernambuco,

    representou cerca de 25%, ou seja, uma em cada quatro crianças repetiu a

    classe inicial, por não ter conseguido (na grande maioria dos casos) construir

    sua base alfabética.

    Mas, o que, exatamente, traduzem esses dados? Embora a escola

    tenha aumentado suas taxas de escolarização nos últimos anos, por qual

    motivo não consegue vencer o desafio de alfabetizar os alunos?

    As contribuições advindas das áreas educacional, sociológica,

    psicológica, lingüística e outras, apontaram que o fracasso escolar não mais

    poderia estar condicionado ao alunado, mas, sim, à própria escola, que se

    mostrou ineficiente na garantia de permanência e de sucesso dos alunos: os

    fracassos seriam “produzidos pela escola reprodutora” (MORTATTI, 1999, p.

    262). Esse fracasso também teria relação direta com as práticas de leitura

    realizadas nas nossas escolas.

    1 Censo Escolar 2000 – Estatística da Educação Básica 2000-CIBEC/INEP

  • 13

    Como bem coloca Côco (2001), as transformações ocorridas na

    humanidade em seu percurso rumo a uma sociedade do letramento, as

    implicações políticas na democratização do conhecimento e as relações sociais

    que se estabelecem, ratificam a leitura como componente da vida social. Lerner

    (1993) acrescenta que o atual desafio configura-se em combater a

    discriminação que a escola opera, não apenas quando gera o fracasso explícito

    daqueles que não conseguem se alfabetizar, mas, também, quando

    impossibilita aos outros – que aparentemente não fracassam – chegarem a ser

    leitores de textos competentes e de apropriarem-se da leitura como ferramenta

    essencial no progresso cognitivo e uso social. Vencer esse desafio implica

    gerar mudanças e levá-las à prática. Essa não é uma tarefa fácil para as

    escolas.

    Segundo Mortatti (1999), foi só a partir do final dos anos 80 e início da

    década de 90 que conclusões resultantes de investigações sobre o

    conhecimento e evolução psicogenética da aquisição da língua escrita surgiram

    no cenário educacional, fazendo uma verdadeira revolução conceitual,

    refutando as antigas práticas tradicionais de alfabetização, seus “métodos”,

    materiais didáticos utilizados e, principalmente, deslocando do eixo da

    discussão de como se ensina para como se aprende. Assim, o sujeito que

    aprende passou a ser visto como um sujeito cognoscente, ativo e competente

    lingüisticamente, capaz de construir seu conhecimento na interação com o

    próprio objeto de conhecimento. Essa perspectiva de aprendizagem contribuiu

    também para o abandono de uma visão adultocêntrica do processo de

    alfabetização, da falsa idéia de que é o método que alfabetiza, que cria

  • 14 conhecimento, que o professor é o único informante autorizado e que a

    atividade escolar deveria privilegiar o ensino em função da aprendizagem.

    As cartilhas, até então tidas como materiais de referência no processo

    de aquisição da leitura e escrita, foram amplamente criticadas e acabaram por

    cair em desuso, exatamente porque se mostraram inadequadas na irrelevância

    das informações que traziam, pela monotonia dos exercícios que propunham e

    pela falta de sentido nas atividades sugeridas. Novas questões, então,

    surgiram: Como realizar uma prática diferenciada? Que materiais utili zar?

    E mais, com qual ob jetivo ensinar a ler e escrever?

    Segundo Albuquerque (2002), mudanças na prática dos professores

    passaram a ser exigidas. Os documentos oficiais (propostas curriculares, por

    exemplo), como textos prescritivos, no geral, criticam as práticas tradicionais de

    alfabetização e propõem novas perspectivas teórico-metodológicas, embora

    não haja um consenso em relação às suas denominações e interpretações

    (MARINHO, 1998). Por outro lado, presenciamos, na última década, um

    processo de reformulação dos livros didáticos com vistas a contemplarem as

    novas perspectivas teóricas de alfabetização.

    Silva (1996) aponta-nos que a escola concebe o livro (didático ou não)

    como um instrumento básico, um complemento primeiro das funções

    pedagógicas exercidas pelo professor. Lajolo (1996) reafirma essa concepção

    e acrescenta que, apesar do livro didático não ser o único material de que os

    professores e alunos irão valer-se no processo de ensino-aprendizagem, ele

    pode ter muita influência na qualidade do aprendizado resultante das atividades

  • 15 escolares, principalmente em nossa sociedade, uma vez que, no decorrer de

    sua utilização, o livro didático acabou determinando conteúdos, condicionando

    estratégias de ensino e marcando, de forma bastante incisiva, o que se ensina

    e como se ensina em nossas escolas.

    Logo, questionar os livros didáticos é questionar o próprio ensino que

    neles está cristalizado. Compreendendo a importância desse material e

    percebendo a necessidade urgente de serem feitas reformulações nos livros

    didáticos (pois muitos apresentavam trabalho bastante diferente do sugerido

    nas novas perspectivas de ensino, erros grosseiros, além de posições muitas

    vezes preconceituosas e discriminadoras), o MEC passou a desenvolver,

    desde 1995, o PNLD2, caracterizado pelo trabalho de análise e avaliação

    pedagógica dos livros didáticos das diferentes áreas de ensino, seguindo,

    como parâmetros, critérios cuidadosamente estabelecidos e de acordo com as

    novas perspectivas educacionais (ALBUQUERQUE, 2002).

    Dessa forma, este projeto propõe-se a analisar as práticas de leitura de

    professoras em turmas de alfabetização e como tais práticas relacionam-se

    com as orientações presentes nos livros didáticos recomendados pelo PNLD.

    2 O Programa Nacional do Livro Didático é uma iniciativa do MEC e seus objetivos básicos são a aquisição e distribuição, universal e gratuita de livros didáticos para os alunos das escolas públicas do Ensino Fundamental. Desde 1995, esse objetivo foi ampliado e o PNLD passou, também, a avaliar os livros didáticos inscritos no programa. Em 1996 foi publicado o 1º Guia do Livro Didático, contendo pareceres e recomendações sobre os livros inscritos.

  • CAPÍTULO 1 – MARCO TEÓRICO

  • Pensamos ser importante, inicialmente, tomarmos como eixo de

    discussão a teoria da Transposição Didática, uma vez que, para analisar as

    práticas de ensino de leitura das professoras de língua

    portuguesa/alfabetização, precisaremos considerar as transformações

    ocorridas no ensino, nessa área, e em como elas estão sendo transpostas para

    os “textos do saber” (entre eles, o livro didático) e desses para a sala de aula.

    1.1 – Transposição Didática

    Como forma de fazer chegar à escola as novas direções apontadas para

    o ensino de língua portuguesa, precisamos pensar em um processo de

    transformação de saberes, denominado por Chevallard (1991) de transposição

    didática. Essa teoria baseia-se na distinção entre o saber científico (saber

    “sábio”), o saber a ser ensinado (encontrado nos textos do saber) e o saber

    efetivamente ensinado.

    Nessa perspectiva, o saber científico, decorrente de resultados de

    pesquisas que a comunidade científica realiza, passa por um processo de

  • 18 transformação de objetos de conhecimento em objetos de ensino-

    aprendizagem e, só então, eles são introduzidos no contexto escolar.

    Henry (1991) define o saber científico como o conjunto de

    conhecimentos socialmente disponíveis, que, geralmente, é encontrado em

    publicações científicas ou em comunicações reconhecidas pela comunidade e,

    como já havíamos citado anteriormente, até a chegada na sala de aula,

    transformações e adaptações alteram esse saber inicial. Segundo Chevallard

    (1991, p. 45):

    um conteúdo de saber, tendo sido designado como saber a ensinar, sofre então um conjunto de transformações adaptativas que vão torná-lo apto a tomar lugar entre os “objetos de ensino”. O trabalho que, de um objeto de saber a ensinar faz um objeto de ensino, é chamado de transposição didática.

    “No desenvolvimento de toda prática educativa, sempre se faz

    necessário estabelecer prioridades na condução dos procedimentos

    pedagógicos” (PAIS, 1999, p. 16). Um dos pontos também importantes trata da

    seleção dos conteúdos que constam nos programas escolares (ou, grades

    curriculares) e que têm como fonte original o saber científico. É importante

    salientarmos que não é a totalidade do saber científico que será ensinado na

    escola. O sistema social (também denominado de noosfera) encarrega-se de

    “indicar”, dentre os conhecimentos historicamente acumulados, aqueles que

    são pertinentes para o ensino. Essa indicação de pertinência vai depender de

    fatores diversos, tais, como: tipo de sociedade, contexto social, político e

    econômico, entre outros.

  • 19

    Sendo assim, é importante, segundo Pais (1999), deixar claro que os

    conteúdos escolares não podem ser considerados apenas como uma

    simplificação do saber científico: possuem linguagem, propósitos e objetivos

    absolutamente diferentes dos utilizados inicialmente. Henry (1991) acrescenta

    que, muitas vezes, da escolha do saber a ensinar até a sua adaptação ao

    sistema, é possível que se criem novos conhecimentos e é só a partir dessa

    adaptação que se pode determinar o conteúdo a ser ensinado. Lerner

    complementa:

    A escola tem por objetivo comunicar às novas gerações o conhecimento elaborado pela sociedade, então, o objeto de conhecimento – o saber científico ou as práticas que se tenta comunicar – converte-se em ‘objeto de ensino’. Ao transformar-se em objeto de ensino, o saber ou a prática para ensinar modificam-se: é necessário selecionar algumas questões em lugar de outras, é necessário privilegiar certos aspectos, tem-se que distribuir as ações no tempo, tem-se que determinar formas de organizar os conteúdos. Sendo assim, a necessidade de comunicar o conhecimento leva a modificá-lo (LERNER, 1993, p. 6).

    Assim, o saber científico sofre modificações ao ser transformado em

    saber a ser ensinado e sofre, também, alterações na intervenção do professor.

    De acordo com Henry (1991), o professor tem a função de administrar essa

    transposição didática, adaptando os objetos a ensinar a seus próprios

    conhecimentos já construídos, transformando-os em saberes efetivamente

    ensinados.

    No entanto, sabemos que, para melhor compreendermos esse

    movimento de adaptação dos objetos a serem ensinados a conhecimentos já

    construídos, precisaremos considerar um outro referencial teórico que se apóia

  • 20 nas práticas profissionais e nos mecanismos que as caracterizam, ajudando a

    melhor compreender a natureza das mudanças ocorridas nas práticas de

    ensino dos professores: a construção dos saberes na ação.

    1.2 – A Construção do s Saberes na Ação

    Segundo Albuquerque (2002), pesquisadores, que analisam as práticas

    dos professores e os processos de mudanças nelas ocorridos, têm observado

    que as mudanças didáticas e/ou pedagógicas não são frutos de uma

    apropriação realizada diretamente de algo que se divulga por meio de cursos,

    revistas, livros, etc. Para esses autores, os saberes não são o fruto de uma

    transmissão, mas, sim, de uma fabricação onde a formação do professor

    tomará não o aspecto de uma transferência de conhecimentos

    descontextualizados, mas uma re-interpretação de um discurso pedagógico, de

    acordo com as conjunturas das diversas culturas.

    De acordo com Chartier (1998), os professores constroem suas práticas

    a partir do que está sendo discutido no meio acadêmico e transposto para os

    textos do saber, porém, sempre considerando o que é possível e pertinente de

    ser feito em sala de aula, a partir de uma re-interpretação dessas discussões, a

    qual pode ser compreendida por meio de dois modelos: o primeiro defende que

    a difusão dos saberes é necessária para orientar as escolhas didáticas e as

    práticas pedagógicas; o segundo propõe que a formação dos professores se

    faz, principalmente, por “ver fazer e ouvir dizer” e que o ponto principal dessa

  • 21 apreensão dos saberes é sua pertinência em relação ao trabalho na classe.

    Sendo assim, entendemos que os professores não se apropriariam da teoria e

    das prescrições oficiais, como, por exemplo, as contidas nos livros didáticos, de

    forma a aplicá-las diretamente, como os pesquisadores/especialistas

    pensaram-na, mas, sim, dentro do que é possível de se fazer, dentro de suas

    condições de trabalho.

    Ao analisar a prática de ensino da escrita de uma professora, Chartier

    (1998) observou que ela utilizava um dispositivo específico – os ateliers de

    escrita – para poder iniciar as crianças nas atividades de escrita. Dois ateliers –

    o de grafismo e o de escrita dirigida – eram realizados com a sua

    orientação/supervisão e priorizavam aspectos como coordenação motora e

    aprendizagem dos traçados das letras. Eles pareciam se constituir em

    atividades que vinha desenvolvendo há alguns anos e possuíam um objetivo

    pedagógico que extrapolava a aprendizagem da escrita, se relacionando com o

    desenvolvimento de outros conhecimentos, como os comportamentos/atitudes

    escolares. Já o atelier de escrita livre foi iniciado durante o período de

    realização da pesquisa em sua sala de aula e extrapolava a ênfase na escrita

    enquanto “produção material”, por envolver a produção intelectual de um texto

    que deveria ser lido por um adulto (professora/estagiários/pesquisadora). Esse

    atelier parecia corresponder a uma inovação didática: tentativa de aplicação

    pedagógica de reflexões teóricas recentes sobre a escrita, mais

    especificamente retomada em protocolos de pesquisas elaborados por Emília

    Ferreiro. Foi por sugestão da pesquisadora e com a ajuda dela que a

    professora aceitou realizar esse atelier.

  • 22

    Ainda segundo Chartier (1998), a professora pesquisada tinha

    consciência de que essas atividades se referiam a uma grande variedade de

    modelos. Ela sabia, por exemplo, que os dois primeiros correspondiam a

    práticas tradicionais de ensino da escrita: aquisição de habilidades motoras

    finas, iniciação de modelos, uso da letra de imprensa (embora o texto oficial

    propusesse a cursiva). Já o atelier de escrita livre se referia a outros modelos

    teóricos que tratavam a escrita em sua dimensão de saber “lingüístico” e de

    código simbólico. Ela assumia o ecletismo desses modelos, uma vez que

    conseguia desenvolver cada atelier sem que um interferisse no bom

    desenvolvimento do outro. Assim, eles não apareciam como contraditórios,

    mas como “dispositivos em coexistência pacifica”. Se, do ponto de vista teórico,

    esses ateliers são incompatíveis, eles aparecem, do ponto de vista dos

    “saberes da ação”, como um sistema dotado de forte coerência pragmática.

    Para a referida autora, as práticas pedagógicas dos professores são

    constituídas de um conjunto de dispositivos, empregados por eles, para o

    ensino dos conteúdos relacionados às diferentes áreas de conhecimento, os

    quais constituem o “saber-fazer” dos professores e podem envolver

    procedimentos os mais rotineiros e, também, aqueles propostos como

    inovadores. A prática pedagógica dos professores englobaria, assim, as

    disposições incorporadas por cada sujeito, os esquemas de ação e a

    fabricação de suas práticas profissionais, privilegiando, principalmente, as

    informações que são diretamente utilizáveis, o “como fazer” melhor do que o

    “por que” fazer.

  • 23

    Como vemos, as práticas escolares cotidianas são permeadas por

    apropriações, não ocorrendo por meio de um ato passivo de recebimento de

    algo pronto e acabado, mas, sim, constituem-se em um processo ativo de “re-

    construção” de práticas já existentes. Chartier (2000) ajuda-nos, mais uma vez,

    a refletir sobre as mudanças nas práticas de ensino de professores, apontando

    que elas podem ocorrer tanto nas definições dos conteúdos a serem ensinados

    – que constituem as mudanças de natureza didática – ou, então, dizem

    respeito a mudanças relacionadas à organização do trabalho pedagógico

    (material pedagógico, organização dos alunos em classe, avaliação, etc.), e

    que ambas também são partes constituintes da fabricação do cotidiano escolar.

    É preciso, então, refletirmos sobre a relação entre esses dois aspectos.

    Faremos isso com base na perspectiva de fabricação do cotidiano escolar de

    Certeau.

    1.3 – A Fabricação do Cotidiano

    Para que possamos melhor compreender como se dá o processo de

    construção do cotidiano escolar, consideramos importante tomar como

    referencial teórico a Fabricação do Cotidiano de Certeau. Essa teoria defende o

    cotidiano como uma compreensão do ambiente onde se formalizam as práticas

    sociais, mas que, também, sofre influências exteriores. Essas relações sociais,

    por sua vez, são formadas por práticas construídas, “fabricadas”, a partir das

    diversas atividades que se exercem na vida cotidiana e que são produzidas e

    recriadas pelos sujeitos.

  • 24

    Ferreira (2004) acrescenta que a lógica das práticas cotidianas não se

    apresenta apenas no que é realizado em um determinando ambiente, mas é

    uma “rede de operacionalização nas quais estão envolvidas as relações de

    força, que se constituem em construções de táticas e de ações ‘próprias’,

    desenvolvidas pelos sujeitos (FERREIRA, 2004, p. 6).

    Ainda segundo a autora, Certeau esteve muito mais centrado na busca

    da compreensão das estratégias e táticas das práticas cotidianas dos sujeitos

    sociais do que na identificação e estruturação dos conceitos das múltiplas

    realidades.

    Certeau (1985, p. 15) define estratégia como “o cálculo ou a

    manipulação de relações que se tornam possíveis a partir do momento em que

    um sujeito de vontade ou poder é isolável e tem um lugar de poder ou saber

    (próprio)”. Desse modo, as pessoas que racionalizam sobre um determinado

    espaço, elaborando normas, leis, conceitos, saberes científicos e/ou a serem

    ensinados (como, por exemplo, os especialistas responsáveis pela elaboração

    de documentos oficiais e livros didáticos) estão construindo estratégias de

    operacionalização de um determinado espaço, que serão “fabricadas” nas

    práticas cotidianas por meio das táticas, as quais, por sua vez, são “a ação

    calculada ou a manipulação da relação de força quando não se tem lugar

    ‘próprio’ ou melhor, quando estamos dentro do campo do outro”. Assim, as

    táticas surgem muito mais sutis porque são dependentes do tempo, dos

    momentos, das oportunidades. Ainda, segundo Certeau (1985), quando não

    estamos no nosso terreno, aproveitamos a conjuntura, as circunstâncias, para

  • 25 dar um “golpe”, porém não no sentido de enganar os outros, mas, no desejo de

    resguardar a sobrevivência dos sujeitos.

    Ferreira (2003) define as estratégias, de acordo com Certeau, como

    dominantes de seu espaço de ação, possuindo relação de força, capitalizando

    resultados, definindo projetos e impondo programas. Já as táticas, ao contrário,

    estariam relacionadas à forma com a qual as

    pessoas tomam os enunciados de uma língua e conversam em função dos encontros; cada ator impõe a sua maneira o que lhe foi dado a fazer, compreender ou viver. Entretanto, o ator não é dono do espaço no qual se move, ele divide as cartas com quem encontra (FERREIRA, 2003).

    O que diferencia as estratégias das táticas, de acordo com Certeau

    (1985), são os tipos de operação, uma vez que as estratégias são capazes de

    produzir, mapear e impor regras, ao passo que as táticas só podem utilizá-las,

    manipulá-las ou alterá-las. Elas não obedecem a uma lei (podemos entender

    “lei” como as prescrições contidas nos livros didáticos, por exemplo), mas são

    operações que as re-constroem.

    Retomando a perspectiva da transposição didática, consideramos

    importante destacar que as mudanças nos saberes científicos são transpostas

    para os “textos do saber”, transformando-se em “saberes a serem ensinados”.

    O professor, no entanto, não se apropria dessas mudanças, de modo a

    realizá-las na forma como aparecem estrategicamente nos textos do saber

    (propostas oficiais, livros didáticos). Ele re-cria o que está posto, a partir da

    construção de táticas. O nosso interesse reside, justamente, em identificar e

  • 26 analisar as táticas de uso do livro didático, apreendendo como as professoras

    estão se apropriando das novas concepções e como isto tem sido efetivado em

    suas práticas de sala de aula.

    Portanto, consideramos importante refletirmos, na próxima parte deste

    trabalho, sobre as alterações ocorridas nos últimos anos nas orientações de

    ensino de Língua Portuguesa, mais especificamente, no ensino de leitura.

    1.4 – Concepção de Língua/Linguagem

    Fazendo uma revisão sobre o ensino de Língua Portuguesa, Soares

    (1998a) enfatiza que, até meados da década de 50, o ensino era basicamente

    destinado às camadas privilegiadas da sociedade, pois estas eram as únicas

    que tinham acesso assegurado à escolarização. Os seus alunos já chegavam à

    escola com um razoável domínio do dialeto de prestígio (ou, a chamada norma

    padrão culta) e, ensinar, nessa perspectiva, estava diretamente relacionado

    ao reconhecer as normas e regras de funcionamento dessa variedade

    lingüística. A língua era percebida como um sistema, e ensinar português era

    ensinar a conhecer/reconhecer o sistema lingüístico.

    Ainda segundo a autora supracitada, nos anos 60 o país vivenciava um

    regime ditatorial e buscava o desenvolvimento do capitalismo mediante a

    expansão industrial. Surgiu a necessidade de ampliar o acesso à

    escolarização, como um meio de garantir o fornecimento de recursos humanos

    para a expansão desejada. A partir daí, chegou às escolas um novo público –

  • 27 as camadas populares – e, junto com ele, variantes lingüísticas bastante

    diferentes daquelas anteriormente encontradas nesse espaço.

    Logo, as novas condições sócio-político-educacionais acarretaram a

    revisão do ensino de Língua. Sob bases teóricas que oportunizavam o

    desenvolvimento de um trabalho com esse novo alunado, a concepção de

    linguagem como sistema, a partir daquele momento, foi substituída por uma

    perspectiva de língua como instrumento de comunicação, articulada ao caráter

    instrumental e utilitário do ensino. Tratava-se de não se levar mais ao

    conhecimento do sistema lingüístico, mas ao desenvolvimento de habilidades

    de expressão e compreensão das mensagens. Deslocava-se o eixo de saber a

    respeito da língua para o uso da língua.

    Conforme a revisão realizada por Soares (1998a), o referencial acima

    citado perdurou até o início da década de 80. No entanto, mais uma vez,

    questões de natureza sócio-político-educacionais contribuíram para o

    redimensionamento da perspectiva descrita e forneceram dados para que,

    então, uma nova concepção de linguagem fosse utilizada. Por volta dos anos

    80/90 do século XX, a intensificação das pesquisas e os estudos avançaram e,

    sob a influência da Lingüística Textual, da Análise do Discurso, da Psicologia

    Cognitiva, da Psicolingüística, entre outros, passou-se a repensar a linguagem

    e o ensino da língua escrita sob novas bases.

    De acordo com Rangel (2001), é nesse período que se percebe uma

    “virada pragmática” no ensino de língua materna, buscando uma mudança na

    concepção do que se considera “ensinar língua”, fundamentada em um novo

  • 28 conjunto articulado de orientações teóricas e metodológicas: os aspectos sócio-

    interacionais da linguagem passam, então, a ser considerados e a linguagem

    deixa de ser encarada apenas como conteúdo escolar, passando a ser

    concebida como processo de interlocução.

    Isso se deu, entre outras coisas, porque o conhecimento paulatinamente

    construído pelas ciências da aprendizagem a respeito do q ue é aprender

    propiciou um amplo e variado questionamento das práticas e concepções até

    então sustentadas. Era necessário fazer das situações de ensino um momento

    de intercâmbio planejado, onde o objeto de conhecimento e os parceiros de

    aprendizagem pudessem interagir (RANGEL, 2001). Não havia mais espaço

    para ignorar as crenças e as hipóteses do aprendiz, exatamente porque é com

    base nelas que o sujeito elabora o seu conhecimento.

    Santos (1999) também chama a nossa atenção para o fato de que os

    educadores passaram a ser alertados para a realidade de que a linguagem não

    existe por causa da escola: ela é objeto de ensino porque existe fora desse

    espaço, no dia-a-dia das pessoas e só se realiza por meio das interações.

    Logo, o ensino de língua precisaria acontecer no espaço de interlocução:

    (...) Desloca-se o eixo do ensino, voltado para a memorização de regras da gramática de prestígio e nomenclaturas, para um ensino cuja finalidade é o desenvolvimento da competência lingüístico-textual, isto é, o desenvolvimento da capacidade de produzir e interpretar textos em contextos sócio-históricos verdadeiramente constituídos (SANTOS, 1999, p. 19).

  • 29

    Marcuschi (1996) também explicita a língua como uma atividade

    constitutiva (com a qual construímos sentidos), cognitiva (com a qual podemos

    expressar nossos sentimentos, idéias, ações e representar o mundo), ação

    (pela qual interagimos com os outros) e que, sendo assim, se manifesta nos

    processos discursivos e se concretiza nos usos textuais mais diversos. É mais

    do que um instrumento de comunicação, código ou estrutura.

    Dessa forma, pressupostos teóricos e metodológicos que não

    contemplavam os conhecimentos prévios e as hipóteses infantis sobre a

    natureza e o funcionamento da linguagem, bem como não validavam as

    habilidades e competências da leitura e produções de texto como reflexões

    sistemáticas, passaram a ser refutados (pelo menos, teoricamente). Nesse

    sentido, o ensino de Português não mais poderia ignorar as condições sócio-

    interacionais e os mecanismos cognitivos envolvidos no processo de aquisição

    e desenvolvimento da linguagem: era necessário “um ensino que

    proporcionasse o (inter) agir” (RANGEL, 2001, p. 10).

    Essas teorias começam a chegar às escolas, adaptadas e aplicadas ao

    ensino da língua materna, alterando, reestruturando e contribuindo na

    reformulação da perspectiva de língua e de linguagem (SMOLKA, 1988). Com

    isso, esta passou a ser entendida:

    como uma forma de interação humana, produzida e atuante sobre um fundo de discurso e não de silêncio, e que utilizar a língua é bem mais do que representar o mundo: é construir sobre o mundo uma representação, é agir sobre o outro e sobre o mundo, constituindo-se o sujeito do discurso como o lugar de uma constante dispersão e aglutinação de vozes (MORTATTI, 1999, p. 30).

  • 30

    Geraldi (1999) acrescenta que a linguagem é muito mais do que

    possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor: ela

    é um lugar de interação humana, que só tem existência no jogo que se joga na

    sociedade, na interlocução.

    Assim, desde os anos 80, é a concepção interacionista de língua que

    passou a nortear o ensino nessa área. Isso é evidenciado na pesquisa de

    Marinho (1998), que analisou Propostas Curriculares de diferentes Secretarias

    e observou que essa era a concepção ”predominantemente” adotada nesses

    documentos.

    É sobre o desenvolvimento de um ensino de leitura e escrita –

    alfabetização – dentro dessa perspectiva de língua que nos deteremos nas

    próximas etapas deste trabalho.

    1.5 – Alfabetização e letramento

    Entendemos por alfabetização o processo através do qual as pessoas

    aprendem a ler e a escrever e que vai muito além de técnicas de transcrição da

    linguagem oral para a linguagem escrita; pressupõe o aumento do domínio da

    linguagem oral, da consciência metalingüística e repercute diretamente nos

    processos cognitivos envolvidos nas tarefas que enfrentam (FERREIRO &

    TEBEROSKY, 1986). No entanto, apesar de já se possuir clareza sobre os

  • 31 processos pelos quais se constrói a leitura e escrita, a alfabetização ainda

    continua a ser um grande desafio.

    Tradicionalmente, o ensino da leitura e da escrita tem sido pautado por

    uma prática pedagógica que tem como base uma concepção de alfabetização

    entendida como decodificação/codificação e produção grafomotriz. Essa

    concepção, segundo Cook-Gumperz (1991), surgiu como uma necessidade de

    controlar e limitar a alfabetização, monitorando as formas de expressão e de

    comportamento dos sujeitos, ainda nos séculos XVIII e XIX. Alfabetizava-se

    através de ensinamentos de hábitos de produtividade, economia e, também,

    por meio de um programa restrito, com pouca escrita e com a leitura de textos

    religiosos, objetivando treinar socialmente os trabalhadores para transformá-los

    em força de trabalho operário.

    Ainda segundo a autora, nesse modelo de alfabetização, as etapas de

    aquisição do conhecimento eram previamente estabelecidas e a ênfase estava

    no domínio de determinadas habilidades (entre elas, podemos citar,

    discriminação auditiva e coordenação motora), sendo a repetição e a

    memorização os “pontos-chave” desse processo

    Nessa concepção tradicional, ler seria uma habilidade individualmente

    adquirida, independente da situação, da época e do grupo social (KLEIMAN,

    2001). Quando se pensa em uma perspectiva individual, a atenção dirige-se

    para a aprendizagem do alfabeto, para a formação de palavras e frases, sem

    se considerarem os usos e as funções sociais do tipo de texto que se está

    lendo.

  • 32

    Ferreiro & Teberosky (1986) apontam que, tradicionalmente, o problema

    da leitura tem sido exposto como uma questão de método, e a preocupação

    seria a de buscar o “melhor e mais eficaz método de ensino de leitura”. Assim,

    convivemos durante várias décadas (e talvez ainda hoje no espaço de muitas

    escolas) com dois tipos fundamentais de métodos: os sintéticos (que partiam

    dos elementos menores das palavras) e os analíticos (que partiam da palavra

    ou de unidades maiores). Embora houvesse divergência entre os dois, ambos

    percebiam a aprendizagem da leitura como uma questão mecânica, a

    aquisição de uma técnica para a realização do deciframento. Como a escrita

    era concebida como uma transcrição gráfica da linguagem oral, ler significava

    associar respostas sonoras a estímulos gráficos, ou seja, decodificar o escrito

    em som. Essas práticas de ensino da língua escrita pressupunham uma

    relação quase que direta com o oral e as progressões clássicas (começando

    pelas vogais, depois combinações com consoantes, até chegar à formação das

    primeiras palavras por duplicação dessas sílabas) marcavam, incisivamente, o

    ensino de leitura.

    As autoras supracitadas também apontam que nas décadas de 60/70

    surgiram mudanças significativas no que concernia à maneira de compreender

    os processos de aquisição/construção do conhecimento e da linguagem na

    criança3. Só a partir de então é que se passou a considerar que a escrita era

    uma maneira particular de transcrever a linguagem e que o sujeito que iria

    abordar a escrita já possuía um considerável conhecimento de sua língua

    materna. Até então, a leitura muito pouco tinha a ver com as experiências de

    3 Cf. Piaget, 1961, 1978; Bronckart, 1976; Chomsky 1974, 1976; Pêcheux, 1962 e outros.

  • 33 vida e de linguagem das crianças, estando essencialmente baseada na

    repetição, memorização e era tida apenas como um objeto de conhecimento na

    escola (quando, na verdade, sabemos que ela é constitutiva do conhecimento

    na interação).

    As novas perspectivas no ensino/aprendizagem da leitura foram

    apresentadas e discutidas e, assim, percebeu-se que era preciso pensar não

    apenas em “ensinar” (no sentido de transmitir) a leitura, mas, de usá-la, de

    fazê-la funcionar como interação, interlocução na sala de aula, experienciando

    a linguagem nas suas várias possibilidades.

    Se a expressão alfabetização é antiga conhecida dos meios

    educacionais, foi na segunda metade da década de 1980 que a expressão

    letramento surgiu no discurso de especialistas nas áreas de ensino da língua,

    tornando-se, então, cada vez mais evidente, nas discussões acadêmicas e

    produções teóricas, a relevância da palavra para o processo de alfabetização.

    Segundo Soares (1998b), a palavra letramento foi usada pela primeira

    vez, em português, por Kato (1986), dois anos depois por Tfouni (1988),

    quando, desde então, se preocupou em definir e diferenciar alfabetização e

    letramento. Soares (1998b) aponta que a palavra letramento é uma tradução

    para o português da palavra inglesa literacy, que significa estado ou condição

    de quem é letrado, transcendendo a concepção de alfabetização, pois para ser

    letrado é essencial que se possua o domínio da leitura e escrita no cotidiano e

    que elas sejam usadas, adequadamente, em situações sociais reais de leitura

    e escrita.

  • 34

    A distinção entre os termos alfabetização e letramento foi proposta por

    Soares (1998b, p. 10):

    A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. O segundo, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita.

    De acordo com a mesma autora, não basta apenas “codificar e

    decodificar” signos: é preciso letrar e, apesar dos termos serem duas ações

    distintas, eles são indissociáveis. O ideal, segundo Soares (1998b), seria

    alfabetizar letrando, ou seja: "ensinar a ler e a escrever no contexto das

    práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se torne ao

    mesmo tempo alfabetizado e letrado” (SOARES, 1998b, p. 47).

    Kleiman (2001), complementa definindo o termo letramento como um

    conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquanto sistema simbólico e

    enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos,

    extrapolando o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que

    se encarregam de introduzir, formalmente, os sujeitos no mundo da escrita. Ela

    afirma que a escola (a mais importante agência de letramento) preocupa-se

    não com o letramento enquanto prática social, mas, apenas, com um tipo de

    letramento: o escolar.

    A autora, baseada em Street3 (1984), ainda acrescenta que o modelo

    que determina as práticas escolares de letramento é o modelo autônomo, que

    considera a aquisição da escrita como um processo neutro, independente de 3 Cf em Kleiman, 2001.

  • 35 considerações contextuais e sociais. A escola, na grande maioria das vezes,

    promove atividades com o objetivo de, apenas, “desenvolver a capacidade de

    interpretar e escrever textos abstratos, dos gêneros expositivo e argumentativo,

    dos quais o protótipo seria o texto tipo ensaio” (STREET, apud KEIMAN, 2001,

    p. 44).

    Em contraposição, ao modelo autônomo, e ainda baseada em Street,

    Kleiman (2001) apresenta o modelo ideológico de letramento e afirma que não

    existe apenas uma concepção de letramento, mas, sim, práticas de

    letramentos, que são social e culturalmente determinadas. Dessa forma, os

    significados específicos que a escrita assume para um grupo social dependem

    dos contextos e instituições em que ela foi adquirida.

    A concepção de ensino da escrita como desenvolvimento de habilidades

    necessárias para produzir uma linguagem abstrata (ou modelo de letramento

    autônomo) está em contradição à corrente que estamos defendendo neste

    trabalho: aquisição da escrita enquanto prática discursiva.

    Para esta tendência, a prioridade do trabalho pedagógico deveria estar

    colocada nos usos da língua escrita e nas interações que a criança faz com os

    escritos no seu cotidiano. Na medida em que a linguagem escrita não é vista

    como um código a ser decifrado, mas muito mais do que isso, como um objeto

    de conhecimento a ser construído, são enfatizadas atividades que favorecem o

    convívio da criança com o escrito, e são valorizadas tanto as suas produções

    quanto as hipóteses explicativas que vai desenvolvendo sobre a escrita.

  • 36

    Logo, nessa perspectiva de letramento, o trabalho da alfabetização tem

    como finalidade a formação de leitores competentes, capazes de compreender

    os diferentes textos com os quais se defrontam. Para ensinar a ler nesta

    perspectiva, é importante que os alunos tenham contato com variados tipos de

    texto e com objetivos de leitura também diferentes desde que iniciam o

    processo escolar: é o interagir com todo tipo de material escrito, que possua

    significado na sociedade na qual estão inseridas as crianças.

    Soares (1998b) afirma serem necessárias algumas condições para que

    o letramento possa ocorrer, dentre elas, a necessidade de haver material de

    leitura disponível para os alunos, pois,

    em muitos casos, alfabetizam-se crianças, mas não lhes dão condições para ler e escrever: não há material impresso posto à disposição, não há livrarias, o preço dos livros e até jornais e revistas é inacessível, há um pequeno número de bibliotecas. Como é possível tornar-se letrado nessas condições? (SOARES, 1998b, p. 58).

    Morais (2002) atenta para o fato de que a linguagem precisa ser

    transformada em objeto de ensino-aprendizagem para que seja apropriada

    pelos iniciantes, dadas as condições de ensino e aprendizagem no âmbito

    escolar. Pautado em Chevallard (1986) e Brousseau (1991), Morais (2002)

    afirma que os conhecimentos científicos são inevitavelmente transformados

    quando os tornamos objetos de ensino-aprendizagem. No entanto, é

    necessário haver um cuidado com a transformação, a fim de se evitar erros

    conceituais. Termos, freqüentemente, utilizados, como, escolarização,

    didatização e mesmo pedagogização, não se identificam com a destruição da

  • 37 língua na escola, mas têm sentido semelhante ao que esse autor chama de

    transposição didática da linguagem.

    Como bem afirma Morais, nessa “cadeia de transposição didática” parte

    das mudanças dos conhecimentos científicos se transformam em textos do

    saber – livros didáticos e propostas curriculares – que orientam o ensino: o

    “saber efetivamente ensinado” e as referidas mudanças no interior do saber

    científico, assim como a mudança de paradigma dos processos de

    aprendizagem do ler e escrever encontraram legitimação nos textos do saber.

    Para uma maior compreensão dessa abordagem, é importante

    definirmos que o termo escolarização (que embora tenha tomado conotação

    pejorativa quando relacionado a conhecimentos, saberes, produções culturais)

    nada tem de depreciativo, pois não há como ter escola sem escolarização de

    conhecimentos, saberes: o surgimento da escola está indissociavelmente

    ligado à constituição de saberes escolares que se corporificam e se formalizam

    em currículos, matérias, disciplinas, etc. e tudo isso exigido pela existência de

    um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem (SOARES, 1999).

    Assim, observamos que esse processo, o qual chamamos de

    escolarização, é um processo inevitável porque é da essência mesma da

    escola; é o processo que a institui e que a constitui. Negar e criticar a

    escolarização seria negar a própria escola. O importante a ser discutido não é

    o fato da escolarização existir em si, mas da inadequação da escolarização das

    práticas sociais de leitura e escrita, fato que, muitas vezes, se traduz em

    deturpação, falsificação e distorção, resultantes de uma pedagogização mal

  • 38 compreendida que, ao transformar o literário em escolar, o desfigura. Mas,

    como fazer uma escolarização adequada?

    Como podemos perceber, as atuais questões sobre a alfabetização para

    o letramento não podem ser reduzidas a uma questão de métodos, mas de

    rever o próprio processo, compreendendo-o como construção do conhecimento

    sobre a língua escrita por parte da criança. Se no enfoque tradicional, o

    professor (único sujeito “autorizado” a transmitir o conhecimento) questionava

    qual a seqüência mais adequada de apresentação das letras para formarem

    sílabas, das sílabas formarem palavras e das palavras formarem frases, no

    enfoque que valoriza a perspectiva social (conhecido na literatura como

    relacionado aos estudos do letramento4) a pergunta seria: quais os textos

    significativos para o aluno e sua comunidade que são importantes para serem

    trabalhados?

    1.6 – Ensino de Leitura e as Estratégias de Leitura

    Kramer (1986) define o saber ler como “dispor do veículo fundamental

    de acesso aos conhecimentos da língua nacional, da matemática, das ciências,

    da história, da geografia e significa possuir o instrumento de expressão e

    compreensão da realidade física e social” (p.9).

    Lajolo (1988) acrescenta que ler não é decifrar (como em um jogo de

    adivinhações) o sentido do texto, mas, sim, a partir dele atribuir-lhe significado,

    4 Conferir os trabalhos de Soares (1998), Kleiman (2001), Batista & Galvão (1999), e outros.

  • 39 conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos. Nessa

    perspectiva, a leitura também é percebida como um processo de interlocução

    entre leitor/autor, mediado pelo texto. Ler não é captar um “sentido único do

    texto”, mas, sim, um processo – está em constante elaboração e reelaboração.

    Solé (1998) afirma que a leitura é o processo mediante o qual se

    compreende a linguagem escrita. Nessa compreensão intervém tanto o texto

    (sua forma e conteúdo) quanto o leitor (suas expectativas e conhecimentos

    prévios). Logo, para ler, necessitamos, simultaneamente, manejar com

    destreza as habilidades de decodificação e apontar ao texto nossos objetivos,

    idéias, experiências prévias e mesmo motivação; a leitura é um processo de

    (re) construção dos próprios sentidos do texto. É por isso que, segundo Geraldi

    (1999), podemos falar de leituras possíveis de um mesmo texto. Não estamos

    aqui querendo dizer que “todas as possibilidades são possíveis”, pois, como

    bem coloca Possenti (1990) “a leitura errada existe”.

    Solé (1998) ressalta que, apesar de o leitor construir o significado do

    texto, isto não quer dizer que o texto não tenha significado em si, mas, o

    significado que um escrito tem para um determinado leitor não é uma réplica do

    significado que o autor quis lhe dar, mas, uma construção que envolve o texto,

    os conhecimentos prévios e objetivos do leitor que o aborda.

    Os Parâmetros Curriculares Nacionais na área de Língua Portuguesa

    (MEC-SFE, 1997), também afirmam que a leitura é um processo no qual o

    leitor realiza um trabalho ativo de construção de significado do texto, a partir de

    seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, sobre

  • 40 tudo o que sabe em relação à língua, seja da característica do gênero, seja

    sobre o portador, ou mesmo sobre o sistema de escrita. “Ler um texto” não

    trata simplesmente de extrair a informação da escrita, mas implica,

    necessariamente, compreensão, através da qual os sentidos começam a ser

    construídos antes da leitura propriamente dita.

    Ainda segundo o documento, qualquer leitor mais experiente, que

    consegue analisar sua própria leitura, constata que a decodificação é apenas

    um dos procedimentos que utiliza quando lê. Outras estratégias, como a

    seleção, antecipação, inferência, verificação, são tão importantes que sem elas

    não é possível ler com rapidez e proficiência. Dessa forma (como nos apontam

    SOLÉ, 1998; KLEIMAN, 1989, 1998 E SMITH, 1999), a escola tem papel

    fundamental no ensino de estratégias de leitura. Kleiman (1998) explicita que

    elas são operações regulares para abordar o texto (não queremos aqui afirmar

    que o importante é possuir grande repertório de estratégias, mas, sim, saber

    usá-las; estratégias de leitura não são um fim em si mesmas, mas um meio

    para se chegar à compreensão), que contribuirão, imensamente, no

    entendimento do material escrito.

    Ajudar os alunos a utilizarem estratégias para compreenderem os textos

    deve ser tarefa primordial no ensino de língua portuguesa desde muito cedo

    (antes mesmo que as crianças tornem-se alfabetizadas, propriamente ditas)

    porque o ensino inicial da leitura deve garantir a interação significativa e

    funcional da criança com a língua escrita, como meio de construir os

    conhecimentos necessários para poder abordar as diferentes etapas da sua

  • 41 aprendizagem, uma vez que, segundo Smith (1999), iniciamos a aprendizagem

    da leitura desde a primeira vez que temos qualquer idéia da escrita e

    aprendemos algo sobre a leitura cada vez que lemos.

    Logo, é fundamental, como bem coloca Solé (1998), que o texto escrito

    esteja presente de forma relevante na sala de aula. É importante pensarmos,

    ainda, que não é apenas o material, mas, também, as atividades e exploração

    das estratégias de leitura que deles suscitam o que será de importante no

    ensino de leitura.

    Assim, ensinar as estratégias de compreensão leitora, aliadas ao

    domínio das habilidades de decodificação (claro!), torna-se ferramenta

    essencial se queremos garantir que os alunos possam participar dos usos e

    funções sociais que a linguagem escrita assume nas sociedades do letramento.

    Mas, como unir esta perspectiva com as atividades de sala de aula sem

    cair nos artificialismos de simulação de leituras? Como realizar uma prática

    diferenciada? Que materiais utilizar? Com qual objetivo ensinar a ler e

    escrever? Como desenvolver uma prática de leitura de diferentes gêneros com

    exploração das estratégias? Deve-se iniciar essa prática de leitura quando os

    alunos estiverem alfabetizados, sabendo ler e escrever?

    Diante dessas indagações, faz-se fundamental buscar procedimentos

    didático-pedagógicos adequados ao processo. É preciso perceber que a

    mediação do adulto nesses eventos de letramento é essencial e que o livro, a

    escrita, também são elementos significativos nessas interações (KLEIMAN,

  • 42 2001). Sendo assim, questionamos se os livros didáticos recomendados pelo

    PNLD (2001/2002) têm contemplado as “novas” orientações teórico-

    metodológicas nessa área.

    1.7 – Algumas reflexões sobre as mudanças nos livros didáticos de alfabetização

    A importância da investigação sobre a temática “livro didático” se

    intensifica quando se constata que ele constitui, muitas vezes, o único material

    de acesso ao conhecimento, tanto por parte dos professores (que nele buscam

    a legitimação de seu trabalho e apoio para suas aulas) quanto dos alunos. E a

    escola, principal responsável pelo ensino do registro verbal (principalmente ler

    e escrever) da cultura dos dias atuais, concebe o livro (didático ou não) como

    um instrumento fundamental, um material essencial na realização das funções

    pedagógicas exercidas pelo professor (Cf. SILVA, 1996; LAJOLO, 1996;

    CORACINI, 1999).

    Segundo Batista (1999), os livros didáticos podem ser uma interessante

    fonte para o estudo do cotidiano e dos saberes escolares. Eles são a principal

    fonte de informação impressa utilizada por parte significativa de alunos e

    professores, o que ocorre na proporção em que as populações escolares têm

    menos acesso aos bens econômicos e culturais.

    Os livros didáticos são, para significativa parte da população brasileira, o

    principal impresso em torno do qual sua escolarização e práticas de leitura

  • 43 serão organizadas e constituídas. Ainda segundo Batista (1999), é preciso

    conhecer melhor esse impresso que se converteu na principal referência para a

    formação e inserção no mundo da escrita de um expressivo número de

    docentes e discentes de nosso país e que, como conseqüência, tem auxiliado

    na construção do fenômeno do letramento no Brasil. Dados também indicam

    que o impresso didático desempenha um papel bastante importante na

    produção editorial brasileira geral.

    Lajolo (1996) comenta que, na sociedade brasileira, os livros didáticos, e

    também os não didáticos, são considerados centrais na produção, circulação e

    apropriação de conhecimentos, sobretudo dos conhecimentos por cuja difusão

    a escola é responsável. Silva (1996, p. 11) acrescenta:

    Aprender, dentro das fronteiras do contexto escolar, significa atender às liturgias do livro didático: comprar na livraria ou recebê-lo através de programas governamentais no início de cada ano letivo, usar ao ritmo do professor, fazer as lições, chegar à metade, ou aos três quartos dos conteúdos ali inscritos e dizer amém, pois é assim mesmo (e somente) assim que se aprende.

    Assim, o livro didático, que deveria ser um meio, passa a ser visto e

    usado como um fim em si mesmo, especialmente no que se refere ao trabalho

    com a língua portuguesa e, mais especificamente, nas práticas de leitura

    correntes. No entanto, para compreender um pouco mais a lógica posta nos

    livros didáticos, entender a trajetória dos mesmos e sua utilização no contexto

    escolar, é preciso retroceder no tempo e investigar como e por quê eles

    sugiram.

  • 44

    As cartilhas foram consideradas, durante muito tempo, como materiais

    de referência no processo de aquisição da leitura e escrita, exatamente porque,

    como aponta Cagliari (1999), as antigas cartilhas trazem uma concepção de

    língua escrita como uma transcrição da fala: elas supõem a escrita como

    espelho da língua que se fala. Seus “textos” são construídos com a função de

    tornar clara essa relação de transcrição. Em geral, são usadas,

    exaustivamente, “palavras-geradoras” e famílias silábicas, com o objetivo de

    memorização e repetição, sem qualquer contexto ou sentido. A ênfase destes

    materiais sempre foi dada à produção escrita pelo aluno. O importante era

    aprender a escrever e decodificar palavras. A atividade escolar deixou de

    privilegiar a aprendizagem e passou a cuidar quase que exclusivamente do

    ensino. Em lugar do alfabeto, apareceram as palavras-chave, as sílabas

    geradoras e os textos elaborados apenas com palavras já estudadas.

    Completadas todas as letras, o aluno começava seu livro de leitura, também

    programado de maneira a ter dificuldades crescentes.

    Segundo Dietzsch (1996), nas frases soltas e sem sentido, perdia-se o

    texto e sacrificava-se o leitor. Centrada nessa abordagem, que vê a língua

    como pura fonologia, a cartilha introduz a criança no mundo da escrita,

    apresentando-lhe um texto que, na verdade, é apenas um agregado de frases

    desconectadas. A única ressalva a esses “textos” seria feita caso alguém

    encorajasse o aluno a brincar com o significante e a jogar com o absurdo para,

    assim, “desconstruir” e reconstruir outros sentidos. No entanto, não foi com

    esse propósito que as cartilhas foram exploradas.

  • 45

    No Brasil, os livros didáticos assumiram um modelo de livro que se

    constituiu, entre os anos 60/70, em um modelo de estruturação do trabalho

    pedagógico em sala de aula, de apoio ao trabalho do professor,

    caracterizando-se, essencialmente, como fonte de informação para os

    docentes.

    Batista (1999), por sua vez, descreve como a década de 80 assistiu ao

    surgimento de um forte discurso contrário à utilização dos livros didáticos. Por

    um lado, essa utilização foi apontada como vinculada à desqualificação

    profissional de professores e, por outro, esses materiais foram criticados por

    apresentarem erros conceituais, por se constituírem em um campo da ideologia

    e das lutas simbólicas, revelando um ponto de vista parcial e comprometido

    sobre a sociedade.

    Compreendendo a importância desse material, e reconhecendo que

    muitos deles se distanciavam das atuais propostas curriculares e dos projetos

    elaborados pela Secretarias de Educação – que, por sua vez, contemplavam

    as novas concepções relacionadas ao ensino de língua Portuguesa – e por

    serem também desatualizados e cometerem erros inaceitáveis, o MEC passou

    a desenvolver e executar, desde 1995,

    um conjunto de medidas para avaliar sistemática e continuamente o livro didático brasileiro e para debater, com os diferentes setores envolvidos em sua produção e consumo, um horizonte de expectativas em relação a suas características, funções e qualidade (BRASIL - MEC - SEF, 2001, p. 11).

  • 46

    Dessa forma, todas as obras a serem adquiridas passariam por um

    processo de análise e avaliação (de acordo com as áreas de conhecimento).

    Apenas os livros didáticos não-consumíveis (com exceção dos dirigidos à 1ª

    série), com qualidades gráficas e editoriais e que não envolvessem mais de

    uma área do saber, que não exigissem a compra de outros volumes ou

    satélites, que apresentassem um “guia” para o professor, poderiam ser

    analisados. Além desses critérios, outros de ordem específica das áreas do

    conhecimento também foram estabelecidos.

    Então, desde 1996, os resultados das avaliações foram sendo

    apresentados através de publicações do Guia de Livros Didáticos, que

    apresenta informações sobre eles, constituindo-se em um material que deveria

    orientar a escolha do livro didático pelo professor. Nesse guia, eles são

    classificados em três grandes categorias:

    1- Recomendados com distinção – categoria composta por manuais

    que se destacam por apresentar propostas pedagógicas mais próximas

    possíveis do ideal representado pelos princípios e critérios adotados nas

    avaliações pedagógicas, constituindo-se em materiais elogiáveis, criativos e

    instigantes.

    2- Recomendados – categoria composta por livros que cumprem

    todos os requisitos mínimos de qualidade exigidos, assegurando a

    possibilidade de um trabalho didático correto e eficaz por parte do professor.

    3- Recomendados com ressalvas – nessa categoria, reúnem-se

    livros que obedecem aos critérios mínimos de qualidade, mas que, por alguns

  • 47 motivos, não estão livres de ressalvas. Podem subsidiar um trabalho

    adequado, se o professor estiver atento às observações, consultar bibliografias

    para revisão e para complementar a proposta.

    Logo, autores e editoras, “preocupados” em atender às novas exigências

    surgidas a partir das avaliações dos livros didáticos, apressaram-se em realizar

    mudanças. As antigas cartilhas vêm sendo substituídas, desde a década

    passada, por livros que, em seu título, trazem afirmações do tipo: “uma

    perspectiva construtivista para a alfabetização”.

    Estes ‘manuais modernos’ começaram a introduzir certos elementos novos, certos ‘truques’ que estão na moda para tornar os livros menos monótonos; assim, é comum encontrarmos histórias em quadrinhos, reproduções de trechos de jornais e revistas, receitas de cozinha etc (CHARMEUX, 1995, p. 25).

    Mas, será que as propostas dos livros didáticos recomendados pelo

    PNLD poderiam mesmo superar as antigas práticas usadas nos modelos

    antigos? Será que esses novos manuais apresentam orientações teórico-

    metodológicas que possam auxiliar o professor no desenvolvimento de um

    trabalho baseado nessa nova perspectiva de alfabetização? Será que os

    professores estão, efetivamente, utilizando esses “novos” livros?

    Algumas pesquisas buscaram analisar os novos livros de alfabetização,

    sob diversos aspectos.

    Bregunci e Silva (2002), ao desenvolverem uma pesquisa financiada

    pelo MEC sobre a escolha dos livros didáticos, constataram que, do ponto de

  • 48 vista de um grande número de professores, os livros disponibilizados após a

    implantação do PNLD são considerados melhores do que aqueles distribuídos

    e utilizados anteriormente, pois, segundo os próprios professores, os novos

    materiais apresentam conteúdos integrados e uma abordagem interdisciplinar

    ou conteúdos mais criativos, próximos à realidade dos alunos. Por outro lado,

    as pesquisadoras destacaram que, para a maioria dos docentes, os livros

    recebidos na faixa de menções superiores – sobretudo os Recomendados com

    Distinção – não atendem à sua clientela por trazerem textos longos e

    complexos, sendo “feitos para crianças que já sabem ler”. São obras

    reconhecidas como “boas em si mesmas (...) mas difíceis de serem seguidas...”

    Em geral, nesses casos, os professores procuram textos e exercícios

    considerados menores e mais acessíveis, mais claros e mais fáceis para os

    alunos, em livros que já haviam utilizado anteriormente.

    Albuquerque (2002) analisou o discurso das professoras sobre os livros

    didáticos recomendados e a forma como os utilizavam. A pesquisadora

    observou que os professores usavam o livro como um apoio à prática

    pedagógica e aproveitavam, principalmente, os textos diversificados, presentes

    nos novos livros didáticos para a realização de atividades de leitura. Para o

    desenvolvimento do trabalho de Análise Lingüística, as docentes procuravam,

    em sua maioria, os livros tradicionais.

    Silva (2003), Castanheira e Evangelista (2002) investigaram o discurso

    das professoras no que se refere ao uso dos novos livros didáticos e

    constataram que elas trocavam os livros recomendados pelo PNLD por outros

  • 49 inferiores, pois sentiam dificuldades de utilizarem os novos livros para

    alfabetizar, uma vez que eles apresentavam textos complexos e longos. Assim,

    preferiam livros com textos curtos e com os quais já estavam acostumadas a

    trabalhar.

    Nunes-Macedo, Mortimer e Green (2003) desenvolveram um estudo

    com o objetivo de investigar como alunos e professora construíram a discussão

    dos textos do LD, evidenciando que o discurso é constituído pelas ações dos

    sujeitos no processo de interação. Eles observaram que a professora rompia

    com o uso linear do LD e subvertia a lógica de organização proposta,

    apropriando-se desse material conforme exigências da própria prática. Essa

    opção parece indicar uma preocupação da professora em fazer um uso

    contextual do material, evidenciando uma perspectiva de letramento como uma

    prática sócio-cultural. Os pesquisadores observaram, ainda, que a experiência

    de vida da professora foi constitutiva desse processo e isso inclui o fato de ela

    ser professora há dez anos.

    A presente pesquisa, por sua vez, buscou analisar as transformações

    ocorridas nos livros didáticos em função dos novos referenciais teóricos e

    procurou compreender como os professores têm utilizado esse material como

    um suporte para suas práticas pedagógicas e, ainda, como essa prática tem

    sido re-inventada a partir das táticas dos professores.

    As dificuldades de escolha e uso dos livros recomendados pelo PNLD

    fazem emergir a necessidade de crescente investimento em uma política de

  • 50 formação, que capacite os profissionais das escolas para um trabalho mais

    consistente com os livros que solicitam e que lhes são destinados.

    Esperamos, com o desenvolvimento deste trabalho, poder contribuir

    para a reflexão sobre algumas questões teórico-metodológicas relacionadas às

    pesquisas que analisam as práticas de ensino dos professores de Língua

    Portuguesa na alfabetização. Pretendemos demonstrar a possibilidade de uma

    compreensão diferenciada acerca da prática das professoras, que pode auxiliar

    na ampliação e na reflexão de como os saberes são fabricados/construídos

    também a partir de práticas docentes.

    1. 8 – Objetivos

    1.8.1 – Objetivo Geral:

    Investigar as práticas de leitura realizadas em duas classes de

    alfabetização e como tais práticas se relacionaram com as orientações

    presentes nos livros didáticos recomendados pelo PNLD.

    1.8.2 – Objetivos Específicos:

    • Identificar a concepção de alfabetização e de leitura expressada

    pelas professoras das turmas estudadas.

  • 51

    • Analisar as atividades de leitura propostas nos livros didáticos,

    observando o que os alunos leram, pra que leram e como leram.

    • Analisar as atividades de leitura desenvolvidas por professores de

    alfabetização: como contribuíram para o processo de letramento e como elas

    se distanciaram/se aproximaram das orientações presentes nos livros didáticos

    utilizados.

  • CAPÍTULO 2 – METODOLOGIA E TRATAMENTO DOS DADOS

  • 2.1 – Sujeitos

    A pesquisa foi realizada com duas professoras do 1º ano, do 1º ciclo do

    Ensino Fundamental, de uma escola da rede pública de ensino da Secretaria

    de Educação da Cidade do Recife. O critério de escolha dessas professoras

    baseou-se em quatro aspectos:

    1. Professora regente atuando no 1º ano do 1º Ciclo;

    2. Utilização do livro didático adotado na rede;

    3. Indicações realizadas por colegas de trabalho e pela equipe

    técnica da Secretaria de Educação, como sendo uma professora que

    desenvolvia uma prática diferenciada e inovadora de alfabetização;

    4. Disponibilidade dos sujeitos em participarem da pesquisa;

    Optamos pela realização de dois estudos de caso, exatamente porque,

    segundo Lüdke & André (1986), o estudo de caso se caracteriza por procurar

    apreender uma realidade, em particular, dentro de um sistema mais amplo, que

    tem um valor em si mesmo, ainda que posteriormente venham a ficar evidentes

    semelhanças com outros casos e situações. O interesse incide naquilo que ele

    tem de único, de particular.

  • 54

    Os estudos de caso tiveram durações distintas. O primeiro deles

    contemplou 22 observações, durante os meses de março a novembro, no ano

    de 2003. O segundo estudo de caso ocorreu no mesmo ano, no período de

    outubro a dezembro, correspondendo a um total de 7 observações. A diferença

    entre o quantitativo de aulas observadas, de ambas as professoras, explica-se

    pela dificuldade encontrada em localizar uma docente que atendesse ao perfil

    desejado.

    A seguir, descreveremos cada um dos nossos sujeitos. É importante

    salientarmos que a forma como estão sendo denominadas representa uma

    opção delas: ambas decidiram pela manutenção dos próprios nomes.

    Yarany trabalhava como professora há 10 anos, havendo ensinado nas

    redes públicas de ensino; tinha sido professora da rede estadual (e encontrava-

    se em período de licença sem vencimentos) e no ano da entrevista lecionava

    na rede municipal. Sua primeira experiência como professora havia sido em

    uma turma de jovens e adultos também como alfabetizadora. Yarany ensinou

    essas turmas por cerca de sete anos. Após esse período, ela realizou um

    concurso para ser professora do município de Recife; lecionou em turmas de

    terceira série e aquele era o seu primeiro ano com turmas de alfabetização de

    crianças.

    Yarany ensinava em uma escola, no turno da manhã, e, à tarde,

    também, exercia uma função administrativo-pegagógica na Secretaria de

    Educação do Recife, tendo recebido a indicação para essa função através do

  • 55 assessor de Língua Portuguesa, que se interessou pela sua prática no ano de

    2001, quando ela apresentou-lhe um de seus trabalhos.

    Yarany possuía curso de magistério, realizado entre os anos de 1988 e

    1989 em uma escola da rede privada de ensino e, curso superior em

    Arquitetura e Urbanismo, pela Universidade Federal de Pernambuco (cursado

    entre os anos de 1991 e 1996). Também havia cursado uma pós-graduação

    em Informática Educacional, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.

    Segundo ela, o referido curso foi promovido através de um convênio entre o

    governo do estado e o MEC, na época em que ela ainda lecionava na rede

    estadual.

    Yarany relatou que estudou durante a educação infantil, ensino

    fundamental e médio em escolas da rede privada de ensino.

    Sua mãe era professora e embora tivesse feito o curso de direito, não

    atuava na área, dedicando-se ao magistério. Atuou como professora da rede

    Estadual de Ensino por vários anos e, no momento da entrevista com Yarany,

    ela trabalhava como educadora de apoio, na referida rede. Possuía

    especialização na área educacional, mais precisamente em gestão escolar.

    Seu pai possuía o curso universitário e também especialização na área

    de relações públicas, com habilitação em recursos humanos, e atuou, a vida

    inteira, nesse ramo, encontrando-se, na ocasião da pesquissa, aposentado.

  • 56

    Conceição ensinava em uma turma de 1º ano do 1º Ciclo, no turno da

    manhã, em uma escola situada no bairro de Setúbal.

    Esse era o seu segundo ano como professora, embora já estivesse em

    processo de aposentadoria. Ela relatou que, apesar de possuir o curso superior

    em Letras (pela Universidade Católica de Pernambuco), desde a década de

    1980, nunca havia se interessado em lecionar. Quando ainda estava fazendo o

    curso de graduação, começou a trabalhar na Escola Técnica Federal de

    Pernambuco, na área administrativa. Depois de concluir seu curso recebeu

    uma promoção (anteriormente denominada de ascensão funcional) e foi

    convidada para coordenar o setor, onde chefiou durante 16 anos, até meados

    do ano 2000.

    Só após se aposentar foi que ela interessou-se em lecionar e fez o

    concurso para ser professora da rede municipal de ensino da Secretaria de

    Educação da cidade do Recife, tendo assumido a função como professora de

    alfabetização logo após ter realizado a prova (em meados do ano de 2001).

    Conceição possuía um curso de especialização em supervisão escolar, pela

    Universidade Salgado de Oliveira (Universo). No período da nossa coleta de

    dados, ela estava concluindo um curso de aperfeiçoamento na área de língua

    portuguesa para as séries iniciais, promovido pela Universidade Federal de

    Pernambuco, em parceria com a fundação Vita. Sua monografia de conclusão

    intitulou-se Estratégias de leitura nos diversos gêneros, e tinha como objetivo

    discutir as prováveis causas para o desinteresse dos alunos com relação às

    atividades de leitura.

  • 57

    Conceição também relatou que viveu a infância e a adolescência em

    uma cidade do interior do estado de Pernambuco, onde estudou numa escola

    particular religiosa, até o final do ensino médio. Seu pai possuía um engenho e

    administrava pequenas áreas de terras naquela mesma região, havendo

    concluído apenas o ensino fundamental. Nesse mesmo engenho funcionava

    uma escola para os filhos dos trabalhadores, onde sua mãe e suas irmãs

    lecionavam. Sua mãe possuía o curso de magistério

    2.2 – Procedimentos Metodo lóg icos

    2.2.1 – Observação das aulas

    Realizamos observações da dinâmica da sala de aula, pois essas

    possibilitam “um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno

    pesquisado (...) e a experiência direta é sem dúvida o melhor teste de

    verificação da ocorrência de um determinado fenômeno” (LÜDKE & ANDRÉ,

    1986, p. 26).

    Também buscamos analisar os materiais utilizados no ensino da leitura

    (entre eles, livros de literatura, cadernos dos alunos, com maior ênfase no livro

    didático utilizado). Acreditávamos que, assim, poderíamos perceber como se

    deu a transposição didática (CHEVALLARD, 1991) ocorrida no tratamento das

    informações dadas, a partir das prescrições contidas nos documentos oficiais

    (Guia do Programa Nacional do Livro Didático) e, principalmente, nos livros

  • 58 didáticos e como de posse deste material as professoras construíam as suas

    práticas docentes (CHARTIER, 1998).

    2.2.2 – Análise documental

    A Secretaria de Educação da Cidade do Recife tem feito a opção pelo

    “sistema escolha única do livro didático” e, dessa forma, realizamos uma

    análise do livro didático utilizado na rede para a alfabetização no ano de 2003,

    apresentado no capítulo 3. Segundo Bardin (1977), a análise documental é um

    conjunto de operações que visa a representar o conteúdo de um docume