18
Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected] ISSN 1852-5704 660 Artículos y Ensayos PSICANÁLISE E INFÂNCIA: REVISITANDO A OBRA DE FRANÇOISE DOLTO HARRISON RIVELLO LOURO RESUMO Psicanálise e infância se encontram desde a invenção do legado freudiano. nos primeiros trabalhos de Freud é possível entrever a importância por ele dada ao infantil, sobretudo à sexualidade e sua relação com os processos inconscientes. Todavia, Freud não amplia a psicanálise de crianças a partir de sua técnica, tarefa que ulteriormente coube à outros analistas que, não obstante as divergências, trouxeram enormes contribuições à psicanálise de crianças. O presente trabalho pretende revisitar os conceitos elaborados pela psicanalista francesa Françoise Dolto, no que tange ao atendimento psicanalítico de crianças. Considerada uma grande personalidade da psicanálise, desenvolveu conceitos originais a partir de sua experiencia clínica e de sua singular escuta. Palavras-chave: Infância; Psicanálise; Psicanálise de crianças; Françoise Dolto. PSICOANÁLISIS E INFANCIA: VOLVER A VISITAR LA OBRA DE FRANÇOISE DOLTO RESUMEN El psicoanálisis y la infancia son desde su invención la herencia freudiana. En los primeros trabajos de Freud es posible vislumbrar la importancia que le daba a los niños, especialmente a la sexualidad y su relación con los procesos inconscientes. Sin embargo, Freud no extendió el psicoanálisis de niños en su tarea técnica que posteriormente se redujo a otros analistas que, a pesar de las diferencias, trajeron enormes contribuciones al psicoanálisis de niños. Este trabajo pretende revisar los

Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

660

Artículos y Ensayos

PSICANÁLISE E INFÂNCIA: REVISITANDO A OBRA DE FRANÇOISE DOLTO

HARRISON RIVELLO LOURO

RESUMO

Psicanálise e infância se encontram desde a

invenção do legado freudiano. Já nos

primeiros trabalhos de Freud é possível

entrever a importância por ele dada ao

infantil, sobretudo à sexualidade e sua

relação com os processos inconscientes.

Todavia, Freud não amplia a psicanálise de

crianças a partir de sua técnica, tarefa que

ulteriormente coube à outros analistas que,

não obstante as divergências, trouxeram

enormes contribuições à psicanálise de

crianças. O presente trabalho pretende

revisitar os conceitos elaborados pela

psicanalista francesa Françoise Dolto, no que

tange ao

atendimento psicanalítico de crianças.

Considerada uma grande personalidade da

psicanálise, desenvolveu conceitos originais a

partir de sua experiencia clínica e de sua

singular escuta.

Palavras-chave: Infância; Psicanálise;

Psicanálise de crianças; Françoise Dolto.

PSICOANÁLISIS E INFANCIA: VOLVER A

VISITAR LA OBRA DE FRANÇOISE DOLTO

RESUMEN

El psicoanálisis y la infancia son desde su

invención la herencia freudiana. En los

primeros trabajos de Freud es posible

vislumbrar la importancia que le daba a los

niños, especialmente a la sexualidad y su

relación con los procesos inconscientes. Sin

embargo, Freud no extendió el psicoanálisis

de niños en su tarea técnica que

posteriormente se redujo a otros analistas

que, a pesar de las diferencias, trajeron

enormes contribuciones al psicoanálisis de

niños. Este trabajo pretende revisar los

Page 2: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

661

conceptos desarrollados por la psicoanalista

francés Françoise Dolto, en relación con el

tratamiento psicoanalítico de los niños.

Considerada una gran personalidad del

psicoanálisis, ha desarrollado conceptos

originales de su experiencia clínica y su

escucha única.

Palabras clave: Infancia; Psicoanálisis; El

psicoanálisis de niños; Françoise Dolto.

PSYCHOANALYSIS AND CHILDHOOD:

REVISITING THE WORK OF FRANÇOISE

DOLTO

ABSTRACT

Psychoanalysis and childhood are Freud’s

legacy since their invention. In the early

works of Freud is possible to glimpse the

importance he gave to the child, especially

sexuality and its relation to the unconscious

processes. However, Freud does not extend

psychoanalysis of children from their

technical task that subsequently fell to other

analysts that despite the differences,

brought enormous contributions to

psychoanalysis of children. This work intends

to revisit the concepts developed by the

French psychoanalyst Françoise Dolto,

regarding the psychoanalytic treatment of

children. Considered a great personality of

psychoanalysis, developed original concepts

from their clinical experience and their

unique listen.

Keywords: Childhood; Psychoanalysis;

Psychoanalysis of children; Françoise Dolto.

Page 3: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

662

Desde a criação da psicanálise por Sigmund Freud, a infância vem se impondo e se

difundindo em nossa cultura como algo indelével. A indissociabilidade entre psicanálise e

infância se dá na inauguração do próprio discurso e legado freudiano, que a insere na

base da interpretação dos males psíquicos. A primeira direção dada por Freud foi a

postulação da cena sexual ocorrida na infância do sujeito, que produziria, ulteriormente na

adolescência ou na vida adulta, sintomas psíquicos. Um infantil, digamos, adjetivado, que

se refere a uma cronologia do sujeito. A partir disso, é possível imaginar como as

postulações freudianas foram impactantes para as sociedades do século XX, onde situar

a infância como palco de cenas sexuais era algo um tanto repulsivo. Mas Freud foi além:

não bastando descrever a sexualidade na infância, também a considerou, por um certo

caráter excessivo, uma financiadora das neuroses dos adultos.

O primeiro trabalho freudiano a abordar o sofrimento psíquico de uma criança ocorreu em

1909, com a publicação de Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, ensaio

também conhecido como “O Pequeno Hans”. Freud tencionava, a partir deste caso, além

de aliviar sintomas, dar um novo impulso às suas teorias sobre a sexualidade infantil,

sobretudo acerca do complexo de Édipo. No entanto, ele se depara com uma dificuldade

técnica, que se resume na questão da linguagem verbal da criança, que, para ele, é

restrita. Desta forma, não obstante toda a sua contribuição, Freud não amplia a análise de

crianças de forma técnica. Em 1933 publica as Novas conferências introdutórias sobre

psicanálise, onde registra que a psicanálise de crianças é um campo a se obter os

maiores êxitos, ressaltando a influência da relação com os pais no tratamento, embora a

mesma se faça necessária.

Page 4: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

663

Mas a psicanálise de crianças nos é apresentada hoje com uma história um tanto

peculiar. Passando por Hermine von Hug-Hellmuth (1871 - 1924), próxima a Freud e

considerada por ele a primeira analista de crianças, podemos ainda citar a também

vienense Melanie Klein (1882 - 1960). Esta última, junto a Donald Woods Winnicott (1896

- 1971), contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento da escola inglesa. A

psicanálise de crianças, ainda na Inglaterra, contou com a presença (não tão marcante

quanto a de outros analistas, mas historicamente considerada) de Anna Freud (1895 -

1982), também analista e última filha de Sigmund e Martha Freud. Klein e Anna Freud:

duas analistas marcadas por divergências em relação à psicanálise de crianças,

sobretudo à formação teórico-prática.

Na França, destacamos a pioneira Sophie Morgenstern (1875 - 1940), conhecida por suas

ideias sobre o desenho, o brinquedo e a forma diferenciada de compreender as relações

parentais. Esta exerceu enorme influência sobre outra analista, também francesa, da qual

discorreremos a partir de agora.

Françoise Marette nasceu em 6 de novembro de 1908, em Paris, e é considerada, com

Jacques Lacan, do qual foi fiel amiga, a segunda grande personalidade do freudismo

francês (Roudinesco, 1998, p. 157). Desde cedo dizia que seria uma “médica de

educação”, fruto de um desejo, segundo alguns comentadores, de proporcionar uma vida

melhor para as crianças. Melhor, neste caso, do que fora sua própria.

A jovem Françoise teve uma infância marcada por inúmeras dificuldades, que contou

desde incômodos com sua aparência à graves desentendimentos com a mãe. Aos 12

anos perdeu sua irmã mais velha em consequência de um câncer, o que agravou ainda

Page 5: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

664

mais a qualidade da relação com a mãe. A mãe, Suzanne Marette, que a culpava por não

ter rezado o suficiente a fim de salvar a irmã.

Quatorze anos mais tarde, inicia uma análise com René Laforgue, que foi fundamental

para Françoise. Como analisa Roudinesco,

Françoise tornou-se outra mulher: uma mulher consciente de si mesma e

não mais alienada, uma mulher capaz de sentir-se sexualmente mulher ao

invés de ter de si mesma uma imagem infantil e mortífera (p.157).

Resolve estudar medicina, sobretudo especializar-se numa pediatra convicta em tratar

crianças de forma inovadora. Seus contatos com Édouard Pichon (1890 - 1940),

primeiramente, e com Sophie Morgenstern, posteriormente, a torna psicanalista. Em 1938

ingressa na Sociedade Psicanalítica de Paris, defendo sua tese de medicina em 1939,

onde busca relacionar pediatria e psicanálise. Começa aí a sua grande jornada a partir do

tratamento psicanalítico de crianças. Em 1942, casa-se com o médico russo Boris Dolto,

com o qual teve três filhos. A parisiense Françoise Marette passa a assinar Françoise

Dolto.

Em 1949, impressiona muitos membros da Sociedade Psicanalítica de Paris com sua

exposição do caso de Bernadette, uma criança psicótica com dificuldades graves de

expressão verbal. A partir deste caso, Françoise Dolto sugere à mãe de Bernadette que

confeccione um objeto singular: uma boneca de tecido, sustentada por uma haste e com

uma flor de margarida representando o rosto. Isso permitiu que a criança projetasse suas

pulsões de morte no objeto e começasse a falar. O caso foi um verdadeiro precursor de

uma das principais postulações de Dolto, a imagem inconsciente do corpo, que será

Page 6: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

665

exposto adiante. Embora o presente artigo não tenha pretensões biográficas extensas,

cabe aqui ressaltar que Françoise Dolto faleceu em 25 de agosto de 1988, aos seus 79

anos, de complicações pulmonares. Deixou uma vasta bibliografia, entre livros,

entrevistas, artigos e transcrições de seus seminários, além de gravações em áudio e

vídeo.

A obra de Françoise Dolto nos apresenta teorizações inovadoras e, sobretudo, originais,

uma vez que era tida como uma analista autêntica e genial. As falas e as reflexões de

Dolto eram também conhecidas como emanações de sua clínica e de uma escuta singular

do inconsciente. A seguir, discorreremos sobre os conceitos fundamentais da autora.

Para Dolto, o ser é inscrito num mundo transgeracional. É ser de linguagem e de

linhagem, o que fez a autora pensar no termo filiação linguageira para dizer que a fonte

de seu desejo vem desde a concepção. Ela faz uso do termo encarnação para ilustrar

que, ao nascer, já existe um primeiro desejo de se assumir; um devir desejante. Somente

assim o bebê pode ser lançado num espaço triangular. Ledoux (1991) destaca que

“Françoise Dolto chegava até a afirmar que a criança escolhe seus pais: por isso tem

deveres para com eles, assim como os pais os têm em relação a ela (p.19).”

Uma forma mais do que elegante de dizer que a introdução no campo da linguagem é

antes um desejo de ser.

Dolto introduz dados importantes no que se refere à relação mãe-bebê. Para ela, a

triangulação é concepcional, sendo o nascimento uma consumação do encontro de três

desejos. Uma díade que será tríade. Mas enquanto díade, é preciso que o bebê

fundamente sua existência, seu desejo de ser, através da relação com um outro tutelar.

Essa relação é a primeira e principal segurança narcísica, que é o que permite a

Page 7: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

666

mediação de percepções. São as percepções do bebê que lhe dão as condições de ser

falante e receptivo, à espera de trocas linguageiras vocais ou gestuais. Segundo Dolto, aí

está o que ela chamou de comunicação interpsíquica. Quando o infans não encontra

respostas aos seus apelos por trocas, perde-se da mediatização das vivências que lhe

dão sentido. É o que ocorre na ausência da mãe, que promove uma descontinuidade no

que Dolto chamou de co-ser da criança.

Imaginemos uma alternância, conforme propôs Dolto, no co-ser com a mãe e o não-co-

ser. Para a autora, ainda que temível, essa alternância é também pontuadora, pois inicia a

experiência da falta no fluxo temporal do infans e espacial da mãe. A mãe também deseja

em outros lugares. Não obstante existem configurações diversas da relação mãe-bebê,

Dolto sinaliza para as consequências, graves ou não, de eleger o bebê como objeto

reparador, excessivamente erotizado. Como nos diz Dolto: “... considero que a mãe tanto

pode ser símbolo da morte quanto da vida” (1988, p. 84).

Dentre as diversas singularidades das ideias de Dolto, destaca-se a função do pai, que,

na relação mãe-bebê, tem a função primordial, e humanizante, de tirar a criança de uma

situação regressiva e puramente imaginária com a mãe. Ele é o eixo da tríade, de função

separadora, que visa indicar sua lei dissociativa à criança. A mãe não pertence à criança,

assim como a criança não é o seu produto. O pai é a barra do choro e do sorriso e de

toda a sua necessidade no contexto da díade. Esse princípio doltoiano, diga-se, coincide

com a ideia de Jacques Lacan do pai como um privador do objeto.

Dolto nos traz também uma noção de castração que, embora não superponha a noção

freudiana, é bastante original. Ela mantém a castração no status da Lei, como uma

experiência de separação simbólica e operacional. Não obstante “lei” possa significar uma

Page 8: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

667

repressão, como noção geral, Dolto a trata psicanaliticamente como iniciadora,

humanizante e, em outro tempo, sublimatória. Ao interditar um desejo, a castração

permite outros encontros pulsionais. Veremos a seguir as consideráveis castrações

simboligênicas de Françoise Dolto.

A primeira castração doltoiana é a castração umbilical. Dolto lança mão deste termo para

explicar, sobretudo, a passagem de um meio líquido para um meio aéreo, a perda de uma

condição essencial à vida do bebê. É uma saída difícil, embora primordial, onde o bebê

perde a segurança do corpo inteiro (Dolto, 2001). Essa perda, esse desencontro com o

único estado vital até então conhecido, significa um importante momento simbólico, como

se a alternativa fosse “saia de teu envoltório, é tua placenta ou a morte” (Ledoux, 1995, p.

217). É uma cicatriz que permitirá ao bebê um sopro pulmonar, o primeiro contato com o

ar, a fundação de seu esquema corporal e o reconhecimento dos limites do corpo. Para

Dolto, a castração umbilical é a primeira fonte vital simbólica, concomitante ao

nascimento, ainda que esteja ao nível do narcisismo dos pais. É como imaginar que o

bebê, a partir de agora, necessita de um outro objeto além da ligação umbilical.

Dolto, em seguida, nos traz a noção de castração oral, concomitante ao desmame. A

criança é privada aqui de uma parte de si mesma, o leite, separando-se, ao mesmo

tempo, do objeto parcial seio. Ante a proibição do corpo-a-corpo, instaura-se na criança o

desejo da fala, pois permite à relação mãe-bebê comunicar-se de outros modos que não

pelos cuidados corporais. Dolto não permite em suas teorizações uma noção de

substituição a partir de uma castração. Opta por transmutação, transmudar-se. Ou seja, a

castração oral viabiliza uma nova vicissitude para as pulsões orais: o comportamento

linguageiro.

Page 9: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

668

A terceira e última é a castração anal, que permite a separação da mãe em relação à uma

dependência excrementícia. Ou seja, marca a término da assistência ao corpo e o início

da autonomia motora da criança. Para Dolto, existem duas acepções acerca da castração

anal. A primeira, é o reconhecimento do agir da criança, da possibilidade de autonomia. A

segunda, que se articula com a primeira, é o acesso ao dizer. Dolto nos diz que as

pulsões da criança deixam de ser, em parte, obstruídas, permitindo trocas lúdicas e

socializadoras e o prazer na intersubjetividade. É o reconhecimento dos limites. Dolto

adverte ainda sobre o qualidade da castração anal, não devendo esta nunca assumir o

desejo de controle, de mutilação ou de adestramento.

Um dos conceitos mais originais de Françoise Dolto, de unanimidade entre os

comentadores, é a supracitada imagem inconsciente do corpo. Literalmente original por

ser estruturante em toda sua obra e por estar de forma íntima ligado à sua prática

analítica com crianças. Trata-se, primeiramente, de uma amarração do corpo e do

psíquico proposta por Dolto. O corpo e sua imagem inconsciente é aquele que não existe

sem linguagem, que é um substrato relacional do sujeito com o outro (Dolto, 2001).

Dolto enfatiza que sua ideia de imagem inconsciente do corpo não se refere à imagem

especular; refere-se à uma questão de identidade. Todavia, a autora trata a construção

das imagens do corpo como pré-especulares. O espelho que, para Dolto, é uma assunção

do sujeito em seu narcisismo. Entretanto, é preciso que o estádio seja para o sujeito um

efeito de corpo próprio-integração; que ele reconheça este corpo como sendo o seu e,

sobretudo, seja uma mais-valia de suas pulsões, a natureza de seu afeto (Dolto, 2001).

O sujeito, em sua origem, é fonte autônoma de desejo, portanto vai ganhando um corpo

imerso em linguagem e se apoiando em seus vínculos mais imediatos, que são

Page 10: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

669

substanciais. Nesse sentido, entendemos por substancial todos os objetos parciais que

permitem trocas, bem como as sutilezas das percepções. Os afetos e as palavras se

associam às vivências corporais, marcando de forma somato-psíquica o infans e

permitindo atividades representativas. Quando trazemos a ideia da imagem do corpo

como uma marca da clínica e da obra de Dolto, queremos dizer que as inconsistências

dessas imagens são reveladas pelas crianças a posteriori, a partir do desenho e da

modelagem. A imagem do corpo é um vestígio das representações precoces do sujeito,

sobretudo do momento em que estas foram elaboradas. É importante destacar ainda que

a imagem do corpo diferencia-se do esquema corporal. Para Dolto (2001),

O esquema corporal é uma realidade de fato, sendo de certa forma nosso

viver carnal no contato com o mundo físico. Nossas experiências de nossa

realidade dependem da integridade do organismo, ou de lesões transitórias

ou indeléveis, neurológicas, musculares, ósseas e também, de nossas

sensações fisiológicas viscerais, circulatórias (p. 10).

Dolto utiliza de um exemplo para nos explicar a diferença fundamental entre imagem do

corpo e esquema corporal. Uma criança paraplégica que projeta, apesar de sua

enfermidade no corpo, uma imagem sã do corpo. Ela encontra na mãe alguém que aceita,

com ela, este jogo projetivo. A mãe lhe fala sobre correr, saltar e atividades que as

crianças de sua idade fazem. Ou seja, permite trocas simbólicas por meio de palavras e

representações gráficas; e ali pode-se encontrar seus fantasmas e suas satisfações. Um

brincar verbalmente, como dizia Dolto.

Page 11: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

670

Uma criança com um déficit físico deve ter em palavras o seu passado, sua diferença

congênita em relação às demais crianças e, sobretudo, poder expressar-se a partir de

suas trocas. Como observa a autora, a imagem do corpo é estrutural e está ligada às

relações intersubjetivas tutelares, enquanto o esquema corporal se sustenta na fisiologia

corporal, ou, como nos traz Dolto, no viver carnal.

Françoise Dolto ainda aprimora sua noção de imagem do corpo a partir de três aspectos.

O aspecto estrutural se refere à imagem de base, que corresponde ao ser em sua coesão

narcísica (uma continuidade de ser e uma mesmidade de ser), sendo que qualquer

ameaça a esta imagem pode ser sentida como mortífera; à imagem funcional, que é

enraizadora e veicula as pulsões de vida; e à imagem erógena, que se refere às relações

com o outro, relações de prazer e desprazer. Essas imagens descritas, segundo Dolto,

podem ser entretecidas pela imagem dinâmica, que é nada mais que o advir do desejo e

o direito de desejar do sujeito, que depende de concessões dos adultos tutelares.

O segundo é o aspecto genético, que são as reformulações da imagem do corpo, o

reconhecimento da imagem. Tem, portanto, um contexto especular.

Por fim, o aspecto relacional, que se ordena no sentir e no dizer do outro. A fala do outro

é o substrato da imagem e organiza o cruzamento entre imagem do corpo e esquema

corporal.

Abordemos a questão edípica na obra de Françoise Dolto. Ela situa o complexo de Édipo

no desejo que ocupa o imaginário, num momento já de autonomia e de manutenção do

corpo da criança. Menino e menina estabelecem uma relação primária com a mãe, e são

as castrações simboligênicas, também primordiais, que encaminham o sujeito para o

Édipo. Ou seja, a superação da angústia primária de castração é que inicia o sujeito na

Page 12: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

671

realidade de seu corpo, dando início à problemática de seu sexo. Este é o momento (do

desejo) de atingir um corpo adulto e tentar retirar o genitor de seu lugar. A fase edípica

caracteriza-se por ser um tempo onde a criança “observa todos os detalhes do

comportamento e da vida dos outros e igualmente a natureza” (Dolto, 1996, p.181).

Para Dolto, a menina se descobre menina a partir de seu sexo, e não a partir da menina

que lhe é dita ou de sua forma de se vestir ou de ser penteada, por exemplo. A menina

perceberá o seu sexo junto a um suposto semelhante (Dolto, 1996): um menino. Uma

decepção inquieta a respeito do pênis que lhe falta tão logo se manifesta e, a partir de

palavras tranquilizadoras ditas, sobretudo pela mãe, é preciso que haja uma conformação

de ser. As palavras maternas lhe permitirão certificar de que, mais tarde,

terá seios como as mulheres, e também de que trará filhos ao mundo, como

sua mãe; mas é-lhe impossível imaginar que esses filhos sejam outra coisa senão

excrementos singulares, mágicos, procedentes de uma ingestão oral (p.181).

Essa conformação ingressa a menina no campo do feminino. A castração é um momento

para a menina que marca sua entrada no Édipo. Todas as suas pulsões orais e anais são

dirigidas para esse campo, como o coleguismo, e toda sua rivalidade, as tarefas

domésticas ou quaisquer outras ações que visam ativar o interesse do sexo oposto.

O menino, diante de sua diferença de sexo, transforma o pênis num glorioso e valorizado

instrumento, ainda que lhe seja misterioso. É um apêndice, embora altamente erógeno,

de função exclusivamente mictória. Mas toda essa glorificação, que faz o menino exibir-se

ainda mais, apresenta para ele perguntas mudas sobre o sentido de se ter um pênis,

sobretudo de ser ter ereções. Ao observar o sexo da menina, pode experimentar uma

Page 13: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

672

angústia especular de constatação, vendo ali, em seu suposto semelhante, uma

mutilação. São as palavras do pai, sobretudo, que poderão confirmar suas constatações,

dar um sentido às ereções e à função paternal.

Françoise Dolto, ao longo de toda sua obra, preocupou-se com a ética psicanalítica, em

parte influenciada por sua leitura freudo-lacaniana, em parte construída a partir de seu

estilo próprio. Estilo que se construiu nos seus quarenta anos de experiências clínicas

com crianças e adolescentes.

Recusando-se a aceitar a psicanálise como uma especialidade, deixou palavras que

inovaram a técnica. Tratou da dimensão subversiva da psicanálise; psicanálise, que

segundo Dolto, não é algo que se põe a serviço de cuidados e necessidades, mas sim do

sujeito e do seu desejo. A psicanálise está no adulto como também na criança que este

foi, e essa visão de Dolto marcou, posteriormente, sua forma de trabalhar com os pais e

de estruturar suas entrevistas preliminares.

Muitas crianças repetem o que foram seus pais, e esta não é uma questão moral, ou de

bem ou mal, mas de sofrimento de gerações. Dolto dizia que uma mãe tem o pleno direito

de não querer criar seu filho, de negar sua tutela a este. Para tanto, no contexto da

adoção, é indispensável, independentemente de seu tempo, dizer ao bebê sobre sua

filiação, sobre sua mãe, sobretudo, e sobre seus novos tutores. Em Dolto podemos

encontrar a ideia de que as palavras têm, sim, importâncias simbólicas, mas os não-ditos

são os mais patológicos. Uma palavra não-dita sobre a história de um sujeito pode vir a

ser um silêncio angustiante.

Dolto discutiu amplamente a psicanálise de crianças e a função do analista. Para Dolto, é

fundamental ouvir o cotidiano da criança e, sobretudo, sua genealogia, seus mortos, seus

Page 14: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

673

heróis, seus silêncios e seus segredos. Todos os detalhes devem fazer-se ouvir, como a

forma de brincar, o sono e a relação com os parentes. Ela adverte sobre os riscos da

normalização imposta e o abuso do poder dos adultos sobre as crianças. As crianças não

podem ser um “brinquedo de outros”, um objeto do qual se fala e que constantemente é

aniquilado como sujeito. Ela provocou categoricamente a tradição que chamou de “adulto-

centrismo” (Dolto, 2005).

Dolto rejeitava o trabalho com brinquedos. As crianças tinham à disposição sua fala, lápis

e massa de modelar, e tudo era dito. Dizia-se de tudo, mas não se fazia tudo. Um

desenho pode ser compreendido como uma fantasia, uma revelação da imagem do corpo

ou uma projeção; mas, sobretudo, é preciso que a criança fale sobre sua produção, que

associe livremente. Toda produção, todo agir e todo falar são testemunhos da relação

transferencial com a criança. Deve-se, no tocante da transferência, escutar as crianças ao

nível de suas idades, de suas falas, de sua subjetividade. E essa escuta só é permitida a

partir das imagens do corpo e de suas bases.

Traduzia na língua da criança o que ela estava sentindo, ensinando que o maior desafio é

ouvir as crianças segundo o seu pensamento e seu expressar, sem para isso ter de sair

da posição de analista. As crianças foram seus mestres.

Em 1980, Françoise Dolto, junto a outros colegas, fundou em Paris a Maison Verte, uma

instituição com o objetivo de facilitar as relações das crianças com seus pais, numa época

em que França vivia um momento de muita fragilidade nas relações de sociabilidade. No

espaço, as crianças podiam brincar desenvolvendo livremente sua autonomia motora,

mas não sem algumas regras, como brincar com água somente utilizando avental e não

ultrapassar os limites estabelecidos no espaço de convivência. Era permitido às mães

Page 15: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

674

conviverem com outras mães e os pais com outros pais, e isso dava ao espaço um status

nem de escola, nem creche, mas sim de um lugar de vida, de convivências e trocas. No

final dos anos 1980, as casas de acolhimento de pais e crianças, inspiradas na Maison

Verte, se multiplicaram na França. Como a própria Dolto (2005) nos relata:

A transformação operada nas mães que frequentam a Maison Verte é

espetacular. Elas têm tempo para pensar e para ser, ao passo que antes

eram atropeladas por suas crianças que as devoravam (…) A criança se

ocupa, a mãe se ocupa, elas se comunicam, não ficam mais coladas uma à

outra (…) e o pai também, quando chega aqui, descobre seu filho com

outras crianças; ele descobre sua mulher com outras mulheres (…) ele se

descobre em uma dimensão de pai e ao mesmo tempo de esposo em

relação a sua mulher (p. 345)

A obra de Françoise Dolto no Brasil, embora existam muitos títulos já traduzidos e

publicados, bem como artigos sobre a autora, ainda necessita de uma maior difusão.

Conhecer toda a sua originalidade e dar de encontro com sua escrita e sua fala requer,

primeiramente, um desejo de escuta para com as crianças. Quando escreve que “todo

aquele que se põe a ouvir a resposta das crianças é um espírito revolucionário” (Dolto,

2005), ela quer nos dizer que o saber psicanalítico, sobretudo sua forma de escutar os

sintomas, pode auxiliar pais e professores a compreenderem melhor as crianças. Para

ela, seja qual for a posição social do adulto, é primordial sua disponibilidade para entrar

em contato verbal e afetivo com as crianças. É preciso falar com elas de seus desejos,

recusando a satisfação e a consumação total do corpo. É isso que permite a introdução

Page 16: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

675

de toda criança na cultura. Compreender a criança na cultura a partir de Françoise Dolto é

um exercício único, pois é na cultura que encontramos todos os deslocamentos de

objetos, toda essa dinâmica desejante que serve à linguagem e à comunicação entre os

sujeitos. Françoise Dolto, por sua ética, pelo seu senso de valor humano e pela sua

confiança no outro, fez da vida um lugar acima de qualquer saber.

Page 17: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

676

Referências

Cifali, M. (Org.) (1989). Seguindo os passos de Françoise Dolto (Beatriz Sidou, trad.).

Campinas: Papirus.

Dolto, F. (2001). A Imagem Inconsciente do Corpo (Noemi Moritz Kon, trad.). São Paulo:

Perspectiva (Trabalho original publicado em 1984).

Dolto, F. (2005). A causa das crianças (Ivo Storniolo, trad.). Aparecida: Idéias & Letras

(Trabalho original publicado em 1987).

Dolto, F. (1989). Inconsciente e Destinos (Dulce Duque Estrada, trad., pp.47-130). Rio de

Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1988).

Dolto, F. (1996). No jogo do desejo (Vera Ribeiro, trad., pp.52-209). São Paulo: Ática

(Trabalho original publicado em 1981).

Freud, S. (2006). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vera Ribeiro, trad.,

Vol. 07, pp.163-189). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1905).

Freud, S. (2006). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In Edição standard

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (José Octávio de

Aguiar Abreu, trad., Vol. 10, pp.11-133). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original

publicado em 1909).

Freud, S. (2006). Além do princípio de prazer. In Edição standard brasileira das obras

psicológicas completas de Sigmund Freud (Eudoro Augusto Macieira de Souza,

trad., Vol. 18, pp.11-75). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em

1920).

Page 18: Psicanálise e infância - revisitando a obra de françoise dolto

Instituto de Investigaciones en Psicoanálisis Aplicadas a las Ciencias Sociales Universidad Argentina John F. Kennedy

Revista Borromeo N° 4 - Año 2013 http://borromeo.kennedy.edu.ar [email protected]

ISSN 1852-5704

677

Freud, S. (2006). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In Edição standard

brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (José Luiz Meurer,

trad., Vol. 22, pp.11-177). Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em

1933).

Lacan, J. (1998). Escritos (Vera Ribeiro, trad., pp.96-103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar

(Trabalho original publicado em 1966).

Ledoux, M. H. (1991). Introdução à obra de Françoise Dolto (Vera Ribeiro, trad., pp.09-

108). Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original publicado em 1990).

Roudinesco, E.; Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise (Vera Ribeiro, Lucy

Magalhães, trad., pp. 157-158). Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original

publicado em 1997).