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 A não-aprendizagem na escola é uma das causas do fracasso escolar, mas essa questão é bem mais ampla. É por isso que Psicopeda-gogia Clínica - uma visão diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar propõe uma visão abrangente para achar uma resposta à queixa escolar, analisando-a em diferentes perspectivas: a da sociedade, a da escola e a do aluno. À primeira é a mais vasta e influencia as outras duas. No diagnóstico psicopedagógico não se podem desconsiderar as relações entre a produção escolar e as oportunidades reais que a sociedade dá às diversas classes sociais. Muitas vezes, alunos de baixa renda são classificados como deficientes mentais, com problemas de aprendizagem. Na realidade, faltam-lhes oportunidades de crescimento cultural, de rápida construção cognitiva e desenvolvimento da linguagem, o que aumentaria suas chances de êxito na escola.  A autora afirma que a escola não pode ser vista isolada da sociedade, pois o sistema de ensino, seja público ou particular, reflete sempre a sociedade em que está inserido. Portanto, a absorção de conhecimentos pelo aluno depende de como essas informações lhe foram ensinadas, o que, por sua vez, depende das condições sociais que determi- nam a qualidade de ensino. Professores em escolas desestruturadas, sem apoio material e pedagógico, desqualificados pela sociedade, pela família e pelos alunos não têm como tornar o conhecimento atrativo. E preciso que o professor competente e valorizado encontre prazer de ensinar para que possibilite o prazer de aprender, pois a má qualidade de ensino provoca desestímulo na busca do conhecimento. Maria Lúcia L. Weiss aponta e analisa as causas do desestímulo e da incapacidade para aprender, tornando Psicopedagogia Clínica - uma visão diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar um livro interessante para pedagogos e profissionais que atuam na escola: professores, orientadores, supervisores e administradores  

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  • A no-aprendizagem na escola uma das causas do fracasso escolar, mas essa questo bem mais ampla. por isso que Psicopeda-gogia Clnica - uma viso diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar prope uma viso abrangente para achar uma resposta queixa escolar, analisando-a em diferentes perspectivas: a da sociedade, a da escola e a do aluno.

    primeira a mais vasta e influencia as outras duas. No diagnstico psicopedaggico no se podem desconsiderar as relaes entre a produo escolar e as oportunidades reais que a sociedade d s diversas classes sociais. Muitas vezes, alunos de baixa renda so classificados como deficientes mentais, com problemas de aprendizagem. Na realidade, faltam-lhes oportunidades de crescimento cultural, de rpida construo cognitiva e desenvolvimento da linguagem, o que aumentaria suas chances de xito na escola.

    A autora afirma que a escola no pode ser vista isolada da sociedade, pois o sistema de ensino, seja pblico ou particular, reflete sempre a sociedade em que est inserido. Portanto, a absoro de conhecimentos pelo aluno depende de como essas informaes lhe foram ensinadas, o que, por sua vez, depende das condies sociais que determi-nam a qualidade de ensino. Professores em escolas desestruturadas, sem apoio material e pedaggico, desqualificados pela sociedade, pela famlia e pelos alunos no tm como tornar o conhecimento atrativo. E preciso que o professor competente e valorizado encontre prazer de ensinar para que possibilite o prazer de aprender, pois a m qualidade de ensino provoca desestmulo na busca do conhecimento. Maria Lcia L. Weiss aponta e analisa as causas do desestmulo e da incapacidade para aprender, tornando Psicopedagogia Clnica - uma viso diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar um livro interessante para pedagogos e profissionais que atuam na escola: professores, orientadores, supervisores e administradores

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    PSICOPEDAGOGIA CLNICA

    uma viso diagnstica dos problemas de aprendizagem escolar

  • PSICOPEDACOGIA CLNICA

    - uma viso diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar

    Maria Lcia Lemme Weiss

    Lamparina editora

    Projeto grfico Fernando Rodrigues

    Proibida a reproduo, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprogrfico, fotogrfico, grfico, microfilmagem etc. Estas proibies aplicam-se tambm s caractersticas grficas e/ou editoriais. A violao dos direitos autorais punvel como crime (Cdigo Penal, art 184 e ; Lei 6.895/80), com busca, apreenso e indenizaes diversas (Lei 9.610/98 - Lei dos Direitos Autorais - arts. 122, 123, 124 e 126).

    Catalogao na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros W456P

    12.ed. Weiss, Maria Lcia Lemme

    Psicopedagogia Clnica - uma viso diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar/ Maria Lcia Lemme Weiss. - 12.ed. rev. e

    ampl. - Rio de Janeiro: Lamparina, 2007 208 p.: il. Apndice

    Inclui bibliografia ISBN 978859827133-0

    1. Psicologia da aprendizagem. 2. Psicologia educacional. 3. Avaliao educacional. I. Ttulo.

    CDD 370.15 CDU 37-015.3

    Lamparina editora Rua Joaquim Silva, 98, 2C andar, sala 201, Lapa

    Cep_20241-110 Rio de Janeiro RJ Brasil Tel./fax: (21)2232-1768 [email protected]

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    PSICOPEDAGOGIA CLNICA

    uma viso diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar

    Maria Lcia Lemme Weiss

    Reviso e atualizao de contedo Alba Weiss

    12a edio

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    A Paschoal Lemme, meu pai,

    construtor da intelectual

    Arthur Bernardes Weiss que pelo amor

    construiu a mulher

    Lcia Helena, Fernando e Albinha que pelo carinho e compreenso

    construram a me

    Pacientes da Clnica Comunitria do SPA - UER] - construtores da terapeuta

    Cludia Toledo Massadar representando todos os amigos e ex-alunos que com afeto

    construram o meu desejo de escrever e colaboraram na realizao deste livro.

    O MEU CARINHO E GRATIDO

  • "No darei inicialmente uma reviso histrica e mostrarei o desenvolvimento das minhas idias a partir das teorias dos outros, porque minha mente no funciona deste modo. O que acontece que eu coleciono isto e aquilo, aqui e acol, vinculo-me minha experincia clnica, formo minhas prprias teorias e depois, no final, passo a me interessar em verificar o que eu roubei de quem. Talvez este mtodo seja to bom quanto qualquer outro."

    D.W. Winnicott - Primitive emotional development.

    "Querem uma originalidade absoluta? No existe. Nem na arte nem em nada. Tudo se constri sobre o anterior, e em nada do que humano se pode encontrar a pureza. Os deuses gregos tambm eram hbridos e estavam 'infectados' de religies orientais e egpcias."

    Ernesto Sabato - O escritor e seus fantasmas.

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    Um pouco mais sobre aprendizagem... Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as estrelas brilhavam atravs do teto semidestrudo.

    "Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da semana passada, e outra vez acordara antes do final.

    Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e comeou a acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que acordava, a maior parte dos animais tambm comeava a despertar. Como se houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida vida daquelas ovelhas que h dois anos percorriam com ele a terra, em busca de gua e alimento. "Elas j se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horrios", disse em voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser tambm o contrrio: ele que havia se acostumado ao horrio das ovelhas.

    Havia certas ovelhas, porm, que demoravam um pouco mais para levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que ele falava. Por isso costumava s vezes ler para elas os 'trechos de livros que o haviam impressionado, ou falar da solido e da alegria de um pastor no campo, ou comentar sobre as ltimas novidades que via nas cidades por onde costumava passar.

    Paulo Coelho - O alquimista

  • NOTA 6 EDIO (DP&A EDITORA)

    Na 6a edio foi acrescentado o captulo "Uso da informtica no diagnstico psicopedaggico", mostrando o bom uso do computador ao longo do processo de avaliao. Esse um tema de relevncia, sendo acrescentado no livro em funo da exigncia de profissionais e mesmo de pacientes que j esto inseridos na era da informtica, fazendo rotineiramente o uso do computador. Foi feita uma reviso para o ajuste de alguns captulos ao novo tema includo.

    A autora NOTA 11a EDIO (DP&A EDITORA)

    Esta nova edio inclui texto referente a "Provas projetivas psicopeda-ggicas", que representam um avano na consolidao da especificidade da prtica psicopedaggica. Tambm foram reformulados al-guns textos nos captulos 7, 8, 12 e 13 para torn-los mais objetivos em relao ao propsito do livro. Foi feita uma complementao na Bibliografia, procurando dar ao leitor uma viso mais ampla dos no-vos conhecimentos psicopedaggicos que vm sendo construdos por profissionais brasileiros, em diferentes regies do pas, e apresentados por intermdio de Congressos, Simpsios e Encontros de Psicopeda-gogos, fortalecendo, assim, a teoria e a prtica psicopedaggica, dando ao diagnstico psicopedaggico maior suporte terico.

    A autora NOTA 12a EDIO

    A 12a edio foi realizada pela editora Lamparina, que a partir de agora se incumbe da manuteno da qualidade deste livro. Foram respeitadas as reformulaes e incluses feitas na 11a edio, garantindo sua atualidade e seu compromisso com a constante reflexo sobre o fazer psicopedaggico. Tambm foi acrescentado o texto da palestra "Da clnica para a escola: a compreenso das diferenas", proferida pela autora no XIII Encontro Regional de Psicopedagogia (Paran, 2003).

    A revisora

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    Sumrio Prefcio - Welitom Vieira dos Santos 13

    Introduo 15 1. Aspectos bsicos do diagnstico psicopedaggico 29

    2. Diagnstico: o primeiro contato telefnico 43 3. A queixa 45

    4. Primeira sesso diagnostica 51

    Apresentao inicial 58 5. Anamnese 63

    6. Uso do ldico no diagnstico psicopedaggico 73

    Sesso Ldica Centrada na Aprendizagem 75 Enquadramento especfico 77 Material 77 Observao e avaliao de atividades ldicas 79 Primeira sesso 81 Segunda sesso 83 Terceira sesso 85 Quarta sesso 87 Quinta sesso (ltima) 89

    7- Avaliao do nvel pedaggico 93 Alfabetizao 95 Leitura 96 Escrita 98 Matemtica 99 Avaliao pedaggica 101

    8- Uso de provas e testes 103 Diagnstico operatrio 105

    Material 107 Administrao 108

    Apresentao do material e da questo 109 Ordem na aplicao das provas 109 Registro 110

    Avaliao das Provas 111

  • Testes psicomtricos 112 Testes de desempenho de inteligncia 113 Teste gestltico visomotor 116

    Tcnicas projetivas 118 Tcnica de relatos 119 Uso do grafismo 121 Provas projetivas psicopedaggicas 123

    9. Uso da informtica no diagnstico psicopedaggico 131 10. Devoluo e encaminhamento 137 No consultrio 141

    Na escola 142 O encaminhamento 142 11. Informe psicopedaggico 145 12. Diagnstico por equipe multidisciplinar 149 13. Consultrio 153

    Mobilirio, objetos de uso e computador 154 A sala 157 Atividade extra-sala 158 Caixa de trabalho 160 Material de consumo 160 Jogos 161

    Anexos. Provas do diagnstico operatrio 163 Ne 1 - Conservao de pequenos conjuntos discretos de elementos 163

    Na 2 - Conservao das quantidades de lquidos (Transvasamento) 165

    NQ 3 - Conservao da quantidade de matria (Quantidade contnua) 166

    N 4 - Conservao do comprimento 168

    Ns 5 - Conservao do peso 169

    N2 6 - Conservao do volume 171

    NQ 7 - Classes - mudana de critrio (Dicotomia) 172

    Na 8 - Quantificao da incluso de classes 174

    Ne 9 - Interseco de classes 175

    Nfi 10 - Seriao de bastonetes 176

    Ns 11 - Prova de combinao de fichas duplas para pensamento formal 177

    Np 12 - Permutaes possveis com um conjunto determinado de fichas (Para o pensamento formal) 178

    Teste WISC - Proposta de interpretao por Glasser e Zimmerman 179

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    Prova 1 - Informao 179

    Prova 2 - Compreenso 180

    Prova 3 - Aritmtica 181

    Prova 4 - Semelhanas 182

    Prova 5 - Vocabulrio 183

    Prova 6 - Nmeros 183

    Prova 7 - Completar figuras 184

    Prova 8 - Arranjo de figuras 185

    Prova 9 - Cubos 186

    Prova 10 - Quebra-cabea 187

    Prova 11 - Cdigo 187

    Sugestes para exame complementar baseadas na proposta de Glasser e Zimmerman 189 Da clnica para a escola: a compreensodas diferenas 191 Bibliografia 195 Trabalhos da autora 203

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    Prefcio Fico pensando por que se escrevem livros como este Psicopedagogia Clnica - uma viso diagnostica dos problemas de aprendizagem escolar, Certamente, a todos os motivos se soma o desejo-necessidade de intervir. Numa ampla, mltipla e coletiva sesso. A experincia acumulada incomoda e preciso dividir.

    A leitura do livro deixa uma inevitvel constatao: o exerccio da Psicopedagogia no para quem quer; , sobretudo, para quem pode. No basta o domnio terico, j que seu exerccio metaterico e supe, por parte do profissional, uma percepo refinadamente seletiva e crtica. Mais ainda, a capacidade de juntar e processar saberes, na medida de cada caso, para dar conta de cada um. A isto h que se somar a sade emocional do psicopedagogo, sua capacidade de transitar entre as complexas relaes familiares, muitas vezes em famlias em processo de reorganizao, e identificar as possveis sadas.

    O livro mostra, claramente, a complexidade do fazer psicope-daggico e, por isso mesmo, no deixa seu leitor desamparado. Abastece-o de um saber prtico de experincia, feito e iluminado por algumas teorias. E aqui cabe uma observao. No h aquilo a que estamos acostumados: a definio inicial de uma posio terica a sedimentar os passos da autora. H, isto sim, no decurso da exposio, a presena de tericos que melhor "iluminaram", na tica da autora, os diferentes passos da interveno: Winnicott, M. Klein, Pichon-Rivire, Bleger, F. Dolto, J. Visca, Mannoni, "iluminados", em contrapartida, pela prtica.

    Rico, exaustivo algumas vezes, pela minuciosa pauta apresentada, como na explorao do ldico, entrevistas, diagnstico, no se furta a advertir para alguns perigos que rondam o iniciante. De resto, livro para ser lido no apenas por psicopedagogos, mas por todos os profissionais que atuam na escola: professores, orientadores, supervisores e administradores. De preferncia, ainda no perodo de formao, como as licenciaturas e ltimos perodos do curso de Pedagogia. Ficar claro para cada um que no existe ato praticado na escola que seja incuo e que cada um destes atos, de alguma maneira, afeta a sala de aula, atinge o aluno. Alis, no h ato inofensivo quando se trata de criana, na educao familiar ou escolar. Nada mais necessrio do que sabermos que nossa atuao na sala de aula pode levar a uma desastrosa desorganizao

  • mental e emocional do aluno. Nossas relaes, nossa cobrana - muitas vezes incompatvel com a maneira de ensinarmos; nossa linguagem e modo de explicar, com freqncia so os verdadeiros responsveis pelo fracasso do aluno.

    O livro, com linguagem clara e leve, nos deixa alertas e preocupados, mas sabendo o que fazer. E, claro, por iluminar objetos nos legar sombras que escondem objetos que ser preciso iluminar. E criar sombras e...

    para ler e recomendar a outros: "Olha, li um livro que me acertou os passos, me abriu a viso e me arrumou os gestos. Voc precisa conhec-lo".

    Welitom Vieira dos Santos Professor da Faculdade de

    Educao da UERJ

  • INTRODUO

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    Introduo .

    SUMRIO Diferentes perspectivas de estudo do

    fracasso escolar Condies externas Viso da sociedade

    Viso da escola: a modernidade, o co- nhecimento novo (ansiedades bsicas)

    Condies internas Viso do aluno: a intra-subjetividade

    Integrao da aprendizagem Aspectos orgnicos da aprendizagem Aspectos cognitivos da aprendizagem

    Aspectos emocionais da aprendizagem Aspectos sociais da aprendizagem

    Aspectos pedaggicos da aprendiza- gem, o construtivismo, o interacionis-

    mo e o estruturalismo O objetivo do presente trabalho bastante restrito. Pretendo fazer um recorte dentro da ampla questo da aprendizagem humana, dos aspectos que conduzem ao fracasso escolar e podem ser detectados atravs do diagnstico psicopedaggico. A no-aprendizagem na escola uma das causas do fracasso escolar, mas a questo , em si, bem mais ampla. No pretendo ser acrtica, mas o mbito do trabalho no comporta um aprofundamento exaustivo; a proposta partir de uma viso abrangente para chegar, de um modo mais objetivo, mais con-textualizado, a uma resposta para a queixa escolar.

    Eu acho que na escola que eles mostram que est acontecendo alguma coisa com eles, e

    atravs da escola que a gente pode perceber que est acon-tecendo coisa muito sria e a

    gente pode atuar....

    Professora de CA

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

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    Considera-se fracasso escolar uma resposta insuficiente do aluno a uma exigncia ou demanda da escola. Essa questo pode ser analisada e estudada por diferentes perspectivas: a da sociedade, a da escola e a do aluno.

    A primeira perspectiva, a da sociedade, a mais ampla e de certo modo permeia as demais. Neste mbito, estariam o tipo de cultura, as condies e relaes poltico-sociais e econmicas vigentes, o tipo de estrutura social, as ideologias dominantes e as relaes explcitas ou implcitas desses aspectos com a educao escolar.

    No diagnstico psicopedaggico do fracasso escolar de um aluno no se podem desconsiderar as relaes significativas existentes entre a produo escolar e as oportunidades reais que determinada sociedade possibilita aos representantes das diversas classes sociais. Assim, alunos de escolas pblicas brasileiras provenientes das camadas de mais baixa renda da populao so freqentemente includos em "classes escolares especiais", considerados pertencentes ao grupo de possveis "deficientes mentais", com limites e problemas graves de aprendizagem. Na realidade, faltam-lhes oportunidades de crescimento cultural, de rpida construo cognitiva e desenvolvimento da linguagem que lhes permita maior imerso num meio letrado, o que, por sua vez, facilitar o desenvolvimento da leitura e da escrita. Por outro lado, as condies socioeconmicas e culturais tero, tambm, influncia nos aspectos fsicos dos alunos de camadas de populao de baixa renda pelas conseqncias nos perodos pr-natal,

    LucasRealce

  • INTRODUO

    17

    perinatal, ps-natal, assim como a exposio mais fcil a doenas letais, acidentes, subnutrio e suas conseqncias.

    Relembro o caso de trs irmos (9, 8 e 6 anos) que se matricularam juntos pela primeira vez na vida, em classe de alfabetizao de uma escola pblica (maro). J no ms de junho eram encaminhados para diagnstico em clnica comunitria porque no conseguiam caminhar na alfabetizao. A escola nada questionou em relao profunda "carncia social" dessa famlia de migrantes que chegava ao Rio de Janeiro fugindo de outra misria pior. De imediato "culpou" os trs alunos alegando que deveriam ter um problema fsico-familiar para no aprender. Conseguimos provar, pelo diagnstico, a absoluta normalidade dessas crianas e a necessidade de a escola "rever-se".

    A segunda perspectiva diz respeito anlise da instituio escola, em seus diferentes nveis, como sendo a maior contribuinte para o fracasso escolar de seus alunos. Tal possibilidade de estudo no pode ser vista isolada da anterior, pois sistema de ensino, seja pblico seja particular, reflete sempre a sociedade em que est inserido. A escola no isolada do sistema socioeconmico, mas, pelo contrrio, um reflexo dele. Portanto, a possibilidade de absoro de certos conhecimentos pelo aluno depender, em parte, de como essas informaes lhe chegaram, lhe foram ensinadas, o que por sua vez depender, nessa cadeia, das condies sociais que determinaram a qualidade do ensino. Termina a rota da "deficincia social" nas baixas oportunidades do aluno como pessoa, acrescidas da baixa qualidade da escola.

    Professores em escolas desestruturadas, sem apoio material e pedaggico, desqualificados pela sociedade, pelas famlias, pelos alunos no podem ocupar bem o lugar de quem ensina tornando o conhe-

    LucasRealce

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    18

    cimento desejvel pelo aluno. preciso que o professor competente e valorizado encontre o prazer de ensinar para que possibilite o nascimento do prazer de aprender. O ato de ensinar fica sempre comprometido com a construo do ato de aprender, faz parte de suas condies externas. A m qualidade do ensino provoca um desestmulo na busca do conhecimento. No h, assim, um investimento dos alunos, do ponto de vista emocional, na aprendizagem escolar, e esse movimento seria uma condio interna bsica. Casos h em que tal desinteresse visto como um problema apenas do aluno, sendo ele encaminhado para diagnstico psicopedaggico por "no ter o menor interesse nas aulas" e "no estudar em casa", baixando assim sua produo.

    A rapidez da evoluo cientfica e tecnolgica do mundo apreendida pelas crianas e adolescentes, direta ou indiretamente, pelos meios de comunicao, independentemente de sua classe social ou situao sociocultural. Tal fato faz com que algumas vezes a escola parea parada no tempo ou voltada para o passado, enquanto seus alunos vivem intensamente o presente e o futuro, com novos critrios de valor no contexto cultural. Percebo essa discrepncia em inmeros pacientes que me so encaminhados para diagnstico, das mais diferentes origens. Por exemplo, uma vez alfabetizada, a criana poderia lidar com certos tipos de programa de computador, fazendo operaes como v em lojas ou em programas de televiso. No entanto, muitas escolas acham que isso para adultos ou "crianas ricas", privando assim seu aluno de ingressar na tecnologia da atualidade na escrita e leitura de textos ou no trabalho matemtico. Triste a escola que no acompanha o mundo de hoje, ignorando aquilo que seu aluno j vivncia fora dela. Transforma aquele que inteligentemente a questiona e que saudavelmente se recusa a buscar um conhecimento parado no tempo num "portador de problema de aprendizagem". J tive a triste experincia de ouvir de uma autoridade educacional da rede pblica a afirmao de que era um absurdo aparelhos de vdeo e computadores em escolas nas quais o telhado estava ruim e faltavam carteiras etc. O aluno da escola pblica necessita das duas coisas: do telhado, do quadro-de-giz e dos vdeos e computadores, pois s assim o aluno "descamisado", de "p no cho" poder estar no mundo, desejoso de aprender "coisas modernas" que lhe daro melhores possibilidades no mercado de trabalho futuro, que lhe daro uma possvel ascenso social pelo conhecimento que possuir.

  • INTRODUO

    19

    Entre as "jias didticas" que encontrei nos cadernos escolares de

    meus pacientes estava o estudo do tubo digestivo da minhoca. Na prova, colada no caderno - convertido em base de colagem de folhas mimeogra-fadas - havia uma questo com o desenho do tubo digestivo da minhoca para que a "vtima", de memria, nomeasse as suas diferentes partes. No havia uma nica referncia utilidade dela, sua contribuio para a qualidade da terra de plantio. O dono desse caderno era um adolescente de 13 anos, 6a srie de bom colgio particular, que, saudavelmente, se re-cusava apenas a memorizar informaes das diferentes matrias que lhe eram transmitidas, sem a preocupao da construo de significados para ele. A partir de certo momento, tornou-se displicente com essa disciplina e outras mais, no cumprindo tarefas, matando essas aulas, num ato de "legtima defesa". Esse jovem foi encaminhado para diagnstico: problema da escola ou problema do aluno?

    Ainda na questo da organizao escolar, relembro o caso de Vtor que era multirrepetente de classe de alfabetizao de escola pblica e ainda continuava analfabeto aos 10 anos. A escola o encaminhou para diagnstico por suspeitar de algum problema orgnico ou emocional. Durante a anamnese, constatou-se o seguinte em sua histria escolar: na primeira classe de alfabetizao, teve quatro professoras com pequeno intervalo entre elas (6 anos de idade), na repetncia do segundo ano foi colocado em classe de principiantes recomeando o processo de alfabetizao (7 anos). Houve nesse ano prolongada greve de professores no segundo semestre; no fim do ano, "empurrado" para a i srie (8 anos) continuou analfabeto. No ano seguinte (9 anos), em funo da idade, foi colocado numa turma de 2- srie e mais uma vez reprovado sem se alfabetizar. Durante o diagnstico, verificou-se sua absoluta normalidade e o vnculo negativo - o horror que criara em relao aos objetos e atividades da situao escolar.

    Nos dois casos ficou claro que a origem do fracasso na produo escolar estava na m conduo do processo de ensino, havia "saudavel-mente" uma "formao reativa" escola.

    Qualquer escola precisa ser organizada sempre em funo da melhor possibilidade de ensino e ser permanentemente questionada para que seus prprios conflitos, no resolvidos, no apaream nas salas de aula sob a forma de distores do prprio ensino. Nessas situaes fica o aluno como depositrio desses conflitos e, conseqentemente, apresenta perturbaes em seu processo de aprendizagem (Bleger, 1960).

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    20

    Outras falhas escolares esto na qualidade e na dosagem da quantidade de informaes a serem transmitidas e na "cobrana" ou avaliao da aprendizagem. Tais situaes, se mal conduzidas, so geradoras de uma ansiedade insuportvel para o aluno, chegando desorganizao de sua conduta por no agentar o excesso de ansiedade.

    Pichon-Rivire (1982) muito contribuiu para a compreenso das dificuldades de aprendizagem resultantes de ansiedades vividas pelo sujeito no momento em que se v colocado em situao de aprendizagem nova, muitas vezes, pedagogicamente de forma inadequada. Considerou que, nesse momento, o sujeito experimenta dois medos bsicos a que chamou de "medo perda" e "medo ao ataque". O sentimento de "medo perda" surge quando teme perder o equilbrio emocional j obtido com a segurana que possui no domnio dos conhecimentos anteriores, j integrados. O "medo ao ataque" do conhecimento novo acontece quando no se sente devidamente instrumentado na situao nova que est vivendo. Esses dois "medos" coexistem sempre; entretanto, no devem chegar a um ponto tal que atrapalhe a mudana de conduta que vai caracterizar o domnio, a integrao do que novo, ou seja, a verdadeira aprendizagem do aluno em sala de aula.

    Pichon-Rivire complementa esses conceitos propondo a anlise de momentos seqenciais existentes em todo processo de aprendizagem humana. Em qualquer aprendizagem, obrigatoriamente, o sujeito passaria pelo "momento confusional" (todo incio, desarrumao), pelo

  • INTRODUO

    21

    "momento de discriminao" (separao e procura dos lugares dentro dos conhecimentos j integrados anteriormente para colocar e relacionar o conhecimento novo) e pelo "momento de integrao" do conhecimento novo a tudo que o sujeito j sabe, a tudo que realmente j aprendeu. Por exemplo, quando os contedos do programa escolar, ou seja, as informaes trazidas para a sala de aula, so apresentados ao aluno de forma inadequada, tornam-se objetos de difcil discriminao; eles se confundem com outros conhecimentos j possudos e no se integram aos mesmos, gerando grande "confuso" e tornando a elaborao do conhecimento mais demorada e difcil. Dizia-me Marta (4a srie): "Ela (a professora) explicou fraes e eu no entendi nada. Que esse negcio de avs?". Depois que objetivei com papel e refiz o caminho, ela falou: "J sei, tem que dividir igual. Quando acaba o dcimo que vem o avs". O mesmo ocorreu com Creuza, i srie do Ensino Mdio: "Acho que j entendi lgebra. S no sei essa tal de incgnita". Essas so situaes que devem ser consideradas na ao didtica do professor. Quando apresenta a "matria nova" e logo a seguir, no mesmo tempo de aula, resolve fazer um teste-surpresa de avaliao sobre o assunto dado, fatalmente estar pegando o aluno em "momento confusional", que parte da elaborao normal do conhecimento novo. O tempo necessrio para elaborao total vai variar de um aluno para outro. Considero uma boa estratgia didtica o uso de "exerccios de fixao", orais ou escritos, para facilitar a rapidez do processo de discriminao e a seguir de integrao. O trabalho interdisciplinar uma forma de provocar a melhor passagem pelos trs momentos ao se fazer a ligao de "fios de conhecimentos" que vm de diferentes disciplinas.

  • PISICOPEDAGOGIA CLNICA

    22

    Essas diversas questes ligadas escola precisam ser pesquisadas durante o diagnstico psicopedaggico para evitar alocar ao paciente, como se fossem aspectos internos seus, pontos ligados ao processo ensino-aprendizagem, que se originam em procedimentos didticos inadequados levando o aluno a ter algum tipo de dificuldade.

    A terceira perspectiva de estudo do fracasso escolar est ligada ao aluno, especificamente s suas condies internas de aprendizagem, fo-cando-se, assim, a questo na intra-subjetividade. Na minha experincia clnica, com pacientes de diferentes classes sociais, constatei que cerca de 10% dos casos encaminhados para diagnstico psicopedaggico tinham sua causalidade bsica em problemtica do paciente, oriunda de sua histria pessoal e familiar. No entanto, na viso da escola, esta seria a causa da maioria dos casos de fracasso escolar. Os trs enfoques da questo no so mutuamente excludentes; muito pelo contrrio. O fracasso escolar causado por uma conjugao de fatores interligados que impedem o bom desempenho do aluno em sala de aula. A tentativa de identificar durante o diagnstico um ponto inicial nas condies internas do aluno ou nas condies externas do ensino e da situao escolar visa apenas a melhor orientao teraputica posterior.

    A ansiedade vivenciada pelo aluno em situaes de conhecimento novo, de conhecimentos que ele acha que so difceis e de que "no dar conta", de exigncia exagerada da famlia ou da escola, de se perceber incapaz, do clima negativo formado em sala de aula, e de outras mais, leva-o a condutas diversificadas que atrapalham o j citado processo de elaborao do conhecimento. Entre as vrias condutas assim originadas pode-se exemplificar: aluno com agitao intensa iniciada em determinada aula, aluno desatento em determinada aula que fica parado, alheio e de repente comea a se agitar, "doenas" (dor de cabea, dor de barriga, dor na mo etc.) que s aparecem em certas aulas, "branco", esquecimento de tudo que sabe na hora da prova, teste ou exame. Todas essas condutas podem conduzir a uma dificuldade posterior na aprendizagem escolar que vai se ampliando aos poucos. Algumas vezes, pode afetar apenas a produo escolar em determinada rea ou momento da vida escolar, gerando, assim, o fracasso escolar. preciso no confundir o aluno com dificuldade de aprendizagem com o aluno que aprende mas no tem a produo esperada pelo professor ou pela famlia. A aprendizagem-normal d-se de forma integrada no sujeito que aprende: sentir, pensar, exprimir e agir. Quando, por exemplo, o sujeito est pensando, prestando ateno numa aula e comea a sacudir

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  • INTRODUO

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    as pernas, a se movimentar enquanto l silenciosamente, est vivendo um momento de "dissociao de campo da conduta", est havendo algum tipo de interferncia emocional, segundo viso de J. Bleger (1984). Para esse autor, toda conduta humana, em cada momento, exprime a predominncia momentnea de uma das trs reas funcionais da conduta: a da mente, a do corpo e a da relao do sujeito com o mundo externo. A alternncia e a integrao delas fazem parte da vida normal. Algumas vezes, as "dissociaes de campo" so benficas, auxiliam a diminuir a grande ansiedade que est vivendo nesse momento. Por exemplo: esfregar um objeto amuleto enquanto faz uma prova escolar.

    Quando comeam a aparecer, constantemente, "dissociaes de campo da conduta" (Bleger, 1984) e sabe-se que o sujeito no tem problemas orgnicos que justifiquem essa dissociao, pode-se pensar que esto se instalando dificuldades em sua aprendizagem: algo vai mal no pensar, na sua expresso, no agir sobre o mundo. hora de pesquisar onde est comeando a dificuldade na situao de aprendizagem presente.

    No diagnstico, observamos crianas que fazem "dissociaes de campo" quando esto desenhando ou escrevendo uma coisa e falando compulsivamente de outra completamente distinta; quando esto lendo ou explicando e comeam a sacudir as pernas, mexer as mos, fazer outros movimentos ou sair andando pelo consultrio; quando esto conversando e no meio da fala soltam palavras ou expresses aparentemente sem nexo. Para Franoise Dolto (1989), so "sadas do inconsciente e precisam ser interpretadas e colocadas no seu devido lugar".

    Numa entrevista de devoluo, quando conversava com Raul (9 anos) e seus pais, j vivendo separados, ouvi-o, enquanto ele desenhava meio rabiscado: " pr-natal". Perguntei logo: "O que voc falou?" Ele disse: "No sei". A conversa girava anteriormente sobre o desejo da me de ter uma menina, desde quando esperava o primeiro filho. Ele era o terceiro filho homem do casal.

    Dissociaes graves e incontrolveis podem indicar vrias formas de doena mental e/ou neurolgica que exigem um diagnstico mais especializado e complementar com outros profissionais.

    Na prtica diagnostica necessrio levar em considerao alguns aspectos ligados s trs perspectivas de abordagem do fracasso escolar. A interligao desses aspectos ajudar a construir uma viso gestltica da pluricausalidade desse fenmeno, possibilitando uma abordagem global do sujeito em suas mltiplas facetas.

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    Aspectos orgnicos relacionados construo bioflsiolgica do sujeito que aprende. Alteraes nos rgos sensoriais impediro ou dificultaro o acesso aos sinais do conhecimento. A construo das estruturas cognoscitivas se processa num ritmo diferente entre os in divduos normais e os portadores de deficincias sensoriais, pois exis tiro diferenas nas experincias fsicas e sociais vividas.

    Diferentes problemas do sistema nervoso acarretaro alteraes escolares, como disfasias, afasias, dislexias, TDA, TDAH e outros mais.

    Na atualidade, j so identificadas diferentes sndromes orgnicas desde o nascimento da criana e apontadas suas relaes com a aprendizagem. O trabalho psicopedaggico poder ser feito no momento mais oportuno para cada caso.

    Na realidade, crianas portadoras de alteraes orgnicas recebem, na maioria das vezes, uma educao diferenciada por parte da famlia, o que pode levar formao de problemas emocionais em diversos nveis, gerando dificuldades na aprendizagem escolar.

    Aspectos cognitivos estariam ligados basicamente ao desenvolvi mento e funcionamento das estruturas cognoscitivas em seus diferentes domnios. Incluir nessa grande rea tambm aspectos ligados memria, ateno, antecipao etc, anteriormente grupados nos chamados fatores intelectuais.

    Numa viso piagetiana, o desenvolvimento cognitivo um processo de construo que se d na "interao entre o organismo e o meio". Se esse organismo apresenta problemas desde o nascimento, o processo de construo do sujeito sofrer alteraes no seu ritmo. Por exemplo, a criana com grande baixa visual ter seu processo de construo do espao complicado, pois suas experincias com o mundo fsico ficam diferentes das crianas com viso normal. Tive depoimentos de crianas que somente na classe de alfabetizao (6-7 anos) tiveram a alterao visual percebida pelos professores, e a famlia passou a providenciar a correo com culos de "grossas lentes". Essas crianas contaram que as coisas em torno eram diferentes antes do uso dos culos.

    A criana deficiente mental caminha na sua construo cognitiva lentamente, mas at um certo ponto. Ela tem limites, mas no neces-sariamente problemas na aprendizagem que ocorra dentro dos seus limites (Sara Pain).

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  • INTRODUO

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    INTRODUO Aspectos emocionais estariam ligados ao desenvolvimento afe

    tivo e sua relao com a construo do conhecimento e a expresso deste atravs da produo escolar. Remete aos aspectos inconscientes envolvidos no ato de aprender.

    O no-aprender pode, por exemplo, expressar uma dificuldade na relao da criana com a sua famlia; ser o sintoma de que algo vai mal nessa dinmica. Na prtica, pode exprimir-se por uma rejeio ao conhe-cimento escolar, em trocas, omisses e distores na leitura ou na escrita, no conseguir calcular em geral, no conseguir fazer uma diviso etc.

    Aspectos sociais esto ligados perspectiva da sociedade em que esto inseridas a famlia e a escola. Incluem, alm da questo das oportunidades, o que j foi comentado, o da formao da ideologia em diferentes classes sociais. A busca do conhecimento escolar, recorte do acervo de uma cultura, servir para qu? Permitir uma definio de classe? Permitir uma ascenso social? Ser um meio para melhoria das condies econmicas? Responde a uma expectativa de classe? Es sas e outras questes necessitam ser pensadas durante o diagnstico. Por exemplo, quando a famlia tem possibilidade de escolher a escola para seu filho, ela o faz visando manuteno de sua ideologia.

    outro exemplo a falsa democratizao de algumas escolas em que se d a mistura de crianas de classe mdia de ampla base cultural com crianas de camadas menos favorecidas da populao, sendo estas ltimas expelidas da escola por duas reprovaes. Essa escola que "finge" aceitar a diversidade cultural constri nessas crianas a baixa auto-estima, o sentimento de inferioridade que carregam para outras escolas ditas mais fceis. Isto acontece porque, na realidade, no fazem dentro da escola modificaes curriculares e pedaggicas que auxiliem a criana menos favorecida a ter uma ascenso no conhecimento e se igualar com as do primeiro grupo.

    Aspectos pedaggicos contribuem muitas vezes para o apareci mento de uma "formao reativa" aos objetos da aprendizagem escolar. Tal quadro confunde-se, s vezes, com as dificuldades de aprendiza gem originadas na histria pessoal e familiar do aluno.

    Nesse conjunto de fatores externos, como j vimos, esto includas as questes ligadas metodologia do ensino, avaliao, dosagem de informaes, estruturao de turmas, organizao geral etc, que, influindo na qualidade do ensino, interferem no processo

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    ensino-aprendizagem. Ficam reduzidas, assim, as condies externas de acesso do aluno ao conhecimento via escola. Concordamos com Vygotsky (1989) quando enfatiza que o "nico bom ensino o que adianta ao desenvolvimento".

    Uma boa escola deveria ser estimulante para o aprender; por essa razo, concordamos que a funo bsica dos profissionais da rea de educao deveria:

    a) melhorar as condies de ensino para o crescimento constante do processo de ensino-aprendizagem e assim prevenir dificuldades na produo escolar;

    b) fornecer meios, dentro da escola, para que o aluno possa superar dificuldades na busca de conhecimentos anteriores ao seu ingresso na escola;

    c) atenuar, ou no mnimo contribuir para no agravar, os problemas de aprendizagem nascidos ao longo da histria pessoal do aluno e de sua famlia.

    Essa funo do educador se distingue da do clnico que ter por obrigao intervir, buscando remover as causas profundas que levaram ao quadro do no-aprender.

  • INTRODUO

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    Sintetizando o que foi visto, destacamos a idia bsica de apren-dizagem como um processo de construo que se d na interao permanente do sujeito com o meio que o cerca. Meio esse expresso inicialmente pela famlia, depois pelo acrscimo da escola, ambos permeados pela sociedade em que esto. Essa construo se d sob a forma de estruturas complexas. Esquematizaremos a idia aceita pela maioria dos autores de Psicopedagogia.

    Finalizamos com Vygotsky (1989), ao frisar que a aprendizagem da

    criana comea muito antes da aprendizagem escolar e que esta nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criana na escola tem uma pr-histria.

  • Captulo 1

    Aspectos bsicos do diagnstico psicopedaggico*

    Todo diagnstico psicopedaggico , em si, uma investigao, uma pesquisa do que no vai bem com o sujeito em relao a uma conduta esperada. Ser, portanto, o esclarecimento de uma queixa, do prprio sujeito, da famlia e, na maioria das vezes, da escola. No caso, trata-se do no-aprender, do aprender com dificuldade ou lentamente, do no-reve-lar o que aprendeu, do fugir de situaes de possvel aprendizagem. Nessa investigao no se pretende classificar o paciente em determinadas categorias nosolgicas, mas sim obter uma compreenso global _________ A introduo deste captulo a reproduo de parte da palestra proferida no IV Encontro

    de Psicopedagogos, realizado em So Paulo, 1990, e publicado nos Anais do Encontro pela Editora Artes Mdicas sob o ttulo Psicopedagogia - contextuali-zao, formao e atuao profissional (Porto Alegre, 1992, p. 94-97).

    Esse negcio de Psicopedagogia fazer a gente aprender sem

    saber que t aprendendo assim brincando...

    Celso, 8 anos, 1 srie SUMRIO

    Sintoma Desvio

    Parmetro Eixos de anlise

    Relao diagnstico e tratamento Modelo de aprendizagem

    Seqncia diagnostica Aspectos informais e ldicos

    Relao terapeuta e paciente: transferncia e contratransferncia Contrato e enquadramento

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  • ASPECTOS BSICOS DO DIAGNSTICO PSICOPEDACCICO

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    da sua forma de aprender e dos desvios que esto ocorrendo nesse proces-so. Busca-se organizar os dados obtidos em relao sua vida biolgica, intrapsquica e social de forma nica, pessoal. Nessa viso estaramos subordinando o diagnstico psicopedaggico ao mtodo clnico, ao estudo de cada caso em particular. Busca-se do clnico exatamente a unidade, a coerncia, a integrao que evitariam transformar a investigao diagnostica numa "colcha de retalhos" com a simples justaposio de dados ou com mera soma de resultados de testes e provas.

    Na ao diagnostica, estaremos recorrendo sempre a conhecimentos tericos e prticos, dentro de determinada perspectiva metaterica como vimos no captulo anterior. uma alimentao mtua permanente entre a prtica e a teoria. Nessa viso, poderamos afirmar que o diagnstico pode ser visto lato sensu como uma "pesquisa-ao". Esta possibilitar ao terapeuta levantar sempre hipteses provisrias que iro sendo confirmadas ou no, ao longo do processo; no final, hipteses de trabalho permanecem para novos casos clnicos.

    Podemos dizer que o que percebido pelo prprio indivduo ou pelos outros chamado de sintoma. O sintoma est sempre mostrando algo, um epifenmeno. Com o sintoma o sujeito sempre "diz alguma coisa aos outros", se comunica, e "sobre o sintoma sempre se pode dizer algo".

    O sintoma , portanto, o que emerge da personalidade em interao com o sistema social em que est inserido o sujeito. Assim, o problema manifestado pelo aluno numa determinada escola, turma ou em relao a um dado professor, pode no se manifestar de forma clara em outro contexto escolar. Tal fato torna evidente que h um certo tipo de desvio em relao a determinados parmetros existentes no meio, que so representados por suas exigncias.

    Aceitando-se a idia de que h um desvio, surge a pergunta: desvio em relao a qu? Esse um momento crucial do diagnstico. preciso clareza do terapeuta na busca desses parmetros, que vo definir a qualidade e a quantidade do desvio e sua importncia no desenvolvimento da escolaridade.

    Somente depois de clarificada a posio do desvio possvel traar os rumos a serem seguidos no diagnstico. Alguns parmetros so facilmente identificados como: formao cultural, classe socioeconmi-ca, idade cronolgica, exigncia familiar, exigncia escolar, relao entre contedos escolares e o desenvolvimento de estruturas de pensamento, exigncias escolares durante a alfabetizao e a psicognese

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    da leitura e da escrita, e o desenvolvimento biopsicolgico considerado normal. Outros dependero do contexto em que est se dando o ensino-aprendizagem.

    Podemos lanar mo de alguns exemplos em mbitos bastante diferentes. No comum uma criana de classe mdia no estar alfa-betizada aos 9 anos. Tal fato sugere que algo no vai bem com ela. No entanto, se o mesmo fato ocorre com crianas de camadas populares, de baixa renda, o primeiro pensamento que me ocorre o da falta de oportunidade social e escolar. Da mesma forma, a troca de letras de uma criana de 6 anos em processo de alfabetizao normal, parte de seu processo de construo da escrita, mas se dela for exigida a produo correta de palavras de uma cartilha, cometer um certo tipo de erro que, mal interpretado, poder levar erroneamente hiptese de uma dificuldade pessoal em relao ao padro da turma e exigncia do professor.

    Para iniciar o diagnstico psicopedaggico fundamental que o terapeuta tenha claros os dois grandes eixos de anlise:

    HORIZONTAL - A-HISTRICO - VISO DO PRESENTE "AQUI, AGORA, COMIGO"

    VERTICAL - HISTRICO - VISO DO PASSADO, VISO DA CONSTRUO DO SUJEITO

    No eixo horizontal explora-se basicamente o campo presente, onde a busca est centrada nas causas que coexistem temporalmente com o sintoma. Nesse nvel que se realiza a contextualizao, que permite clarificar a grandeza do desvio existente nesse "aqui e agora". Utilizo para esse objetivo, alm de entrevistas com o paciente, instrumentos tais como: Entrevista Familiar Exploratria Situacional - EFES (Weiss, !987), entrevistas com toda a famlia, incluindo o paciente e os irmos (tipo DIFAJ de A. Fernandez, 1990), Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem - EOCA (Visca, 1981), Sesses Ldicas Centradas na Aprendizagem (Weiss, 1987), provas e testes diversos, Diagnstico

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  • ASPECTOS BSICOS DO DIAGNSTICO PSICOPEDACCICO

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    Operatrio (Piaget), entrevistas com a equipe da escola e com outros profissionais, anlise da produo do sujeito fora do consultrio (material escolar, desenhos, construes, textos produzidos etc).

    No eixo vertical, histrico, onde se busca a construo geral do indivduo, sempre contextualizada nos diferentes momentos. Nesse nvel, uso entrevistas diversas de anamnese com a famlia, com a escola, com outros profissionais e fao a anlise de documentos passados tais como laudos, relatrios escolares, registros, lbuns fotogrficos e da vida do beb. Para tal, recortamos diferentes "histrias" que se integram na grande histria do paciente: histria escolar, histria clnica, histria das primeiras aprendizagens, histria da famlia nuclear (pais e irmos), histria dos ancestrais (das famlias paternas e maternas).

    A obteno dos dados relacionados aos dois grandes eixos no pode ser regida por regras externas prefixadas: cada sujeito em exame representa um caminho prprio, que deve ser descoberto e respeitado pelo terapeuta. Diferentes instrumentos fornecem elementos para pesquisa do passado, do presente e das expectativas de futuro. Por outro lado, indispensvel que se utilize cada instrumento de pesquisa captando ao mximo - e de forma articulada - elementos na rea cognitiva, afetivo-social e pedaggica.

    O sucesso de um diagnstico no reside no grande nmero de ins-trumentos utilizados, mas na competncia e sensibilidade do terapeuta em explorar a multiplicidade de aspectos revelados em cada situao. Por exemplo, na simples aplicao do teste visomotor de Bender (que, em princpio, visaria avaliar aspectos visomotores) buscam-se indcios

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    de uma possvel organicidade, dados sobre a construo cognitiva espacial (aspectos de espao topolgico e euclidiano), aspectos emocionais (egocentrismo, dissociaes, acting out), cumprimento de ordens, uso do tempo, aspectos escolares no uso do material.

    Dentro dessa perspectiva de abordagem do "desvio de aprendizagem", necessrio que o foco da anlise no fique restrito ao paciente, mas estenda-se s suas relaes, aos seus grupos de pertinncia, s instituies bsicas. Somente assim pode-se aprofundar a investigao a nveis psicossocial, sociodinmico e institucional, na colocao de Pichon-Rivire (1982). Por exemplo, analisam-se as relaes grupais escolares e familiares, os conflitos da instituio escolar que o paciente freqente, chegando-se busca dos aspectos falhos: falta de oportunidade concreta no plano social, escolar ou familiar? m conduo do problema educacional? dificuldade pessoal? dificuldade familiar? Tal anlise no implica que se perca a viso de uma pluricausalidade ges-tltica dos problemas de aprendizagem (Bleger, 1984; Visca, 1987), mas, sim, que se priorizem fatos e se conclua pela necessidade - ou no - de continuar o diagnstico psicopedaggico (Weiss, 1990, p. 56).

    A maioria dos casos que recebo para avaliao psicopedaggica de estudantes com quadro de fracasso escolar, apresentando os mais diversos sintomas. Quando sintetizamos os dois eixos de pesquisa diagnostica que contextualizamos o caso para organizar o laudo e a entrevista de devoluo. Torna-se necessrio tambm sintetizar a viso do que a escola oferece como ensino e o que exige como produto de aprendizagem do aluno. importante que, de algum modo, se possa fazer esse "diagnstico" da escola para definio dos parmetros do desvio.

    O desvio que identificamos no incio de diagnstico est de algum modo "embutido" na formulao da queixa. Por essa razo, no se pode apenas diagnosticar o sujeito isolado no tempo e no espao da realidade socioeconmica que se vive no Brasil de hoje. Essa realidade chega ao paciente pela ideologia dominante nos diferentes grupos em que convive: famlia, escola, instituies de abrigo de menores, casas comunitrias etc. que faro a construo do seu imaginrio e determinaro o seu modo de viver no dia-a-dia. Tudo isso define as relaes famlia-escola e as expectativas criadas em relao ao uso do aprendido na escola, ao seu lugar na sociedade, ao "ser cidado". preciso, desse modo, integrar os aspectos socioeconmi-cos na unidade funcional da pessoa que aprende, pois j fazem parte do seu imaginrio, do seu modo de se relacionar com os objetivos e

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  • ASPECTOS BSICOS DO DIAGNSTICO PSICOPEDACCICO

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    situaes de aprendizagem, assim como interferem tambm em suas construes cognitivas e afetivas.

    Nos casos em que me parece claro que existe m conduo da questo escolar, procuro discutir com os pais, em primeiro lugar, e posteriormente com a escola, a necessidade de reestruturar a situao e de suspender o diagnstico. Tento assim despatologizar o quadro de fracasso escolar, levando seus responsveis a repensarem a questo. A interrupo do diagnstico tira o paciente da situao de nico responsvel pelo fracasso e lhe d uma nova oportunidade em condies diferentes, com o apoio familiar e escolar.

    Algumas vezes a famlia ou, mesmo, a escola resistente reviso da situao. Nesses casos nossa interveno no tem ressonncia e eles continuam a buscar a definio da patologia que desejam ver na criana (filho-aluno), mantendo, assim, o depositrio de seus aspectos proble-mticos. Mais um caso perdido, mais um abandono de diagnstico...

    O objetivo bsico do diagnstico psicopedaggico identificar os desvios e os obstculos bsicos no Modelo de Aprendizagem do sujeito que, o impedem de crescer na aprendizagem dentro do esperado pelo meio social. Assim, para conhecer esse Modelo de Aprendizagem, conta-se, nos dois eixos descritos, com dados oriundos das observaes da escola, da famlia e obtidos diretamente pelo terapeuta e por outros profissionais.

    Entendo como Modelo de Aprendizagem o conjunto dinmico que estrutura os conhecimentos que o sujeito j possui, os estilos usados nessa aprendizagem, o ritmo e reas de expresso da conduta, a mobilidade e o funcionamento cognitivos, as modalidades de aprendizagem assimilativa e acomodativa e suas de distores (Captulo 8), os hbitos adquiridos, as motivaes presentes, as ansiedades, defesas e conflitos em relao ao aprender, as relaes vinculares com o conhecimento em geral e com os objetos de conhecimento escolar, em particular, e o significado da aprendizagem escolar para o sujeito, sua famlia e a escola. Quando o terapeuta consegue chegar ao esboo do Modelo de Aprendizagem do sujeito, ele j atingiu um nvel de integrao dos dados obtidos que lhe permite refletir e levantar hipteses sobre a causalidade do problema de aprendizagem e/ou do fracasso escolar e traar as direes do que fazer para mudar a problemtica existente, sempre considerando os diferentes nveis de orientao escola, famlia, e de tratamentos especializados (psicopedaggico ou outros). Dessa integrao de dados que surge o Prognstico e o contedo para a entrevista de Devoluo.

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  • ASPECTOS BSICOS DO DIAGNSTICO PSICOPEDACCICO

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    Outro aspecto que merece reflexo o da relao entre Diagnstico e

    Tratamento e sua implicao direta no tempo de durao do diagnstico. preciso que fique sempre claro ao terapeuta que a simples procura do diagnstico representa um grande movimento do paciente e de sua famlia. Nenhum diagnstico incuo; ele j , em si, uma interveno na dinmica pessoal e familiar. Essa viso necessria para se levar em considerao o que est ocorrendo, durante o diagnstico, com o paciente e seus familiares. Por vezes recebo informaes da escola de que determinada criana "melhorou s com o diagnstico" ou que ficou "muito agitada e agressiva", piorando durante o mesmo. Esses so alguns sinais de alerta que indicam o quanto a pesquisa diagnostica est mexendo com o sujeito e sua famlia.

    Por exemplo: encerrei o diagnstico de uma adolescente (18 anos, 7 srie de escola especial) no momento em que ela se queixou me de que no queria continuar as sesses porque eu "a estava forando a crescer". Ela foi capaz de perceber isso, mostrando seu bom nvel intelectual, atravs de leitura dos textos escolhidos e comentrios que fazia para escolha de atividade, da vinda sozinha sesso etc. Era considerada deficiente mental, e por desejo da famlia sem condies de sair de escola especial e at mesmo de prosseguir nos estudos nessa escola. Para ela, no aprender significava no crescer e assim no trocar de papel na famlia. Nessa famlia, ela era a doente que justificava a dedicao integral de pai e me e a manuteno de um casamento "j acabado". E bvio que a me concordou com a interrupo do diagnstico, pois sentiu que comeava a acontecer uma melhora indese-jada. Essa famlia continuou buscando novos diagnsticos...

    A simples ateno da famlia ao se preocupar em levar uma criana a um profissional j para ela o indicador de que os pais passaram a se in-teressar mais por ela. Ter uma pessoa s para ela nas sesses diagnosticas j "teraputico". Por essas razes, quando no se vai continuar a atender o paciente em tratamento posterior, preciso que haja um limite no nme-ro de sesses diagnosticas, para no se aprofundar ainda mais a relao terapeuta-paciente e, de repente, cort-la, frustrando as expectativas do paciente ao se fazer um encaminhamento para outro profissional. Por outro lado, qualquer entrevista com os pais j est, de algum modo, fazendo-os pensar sobre suas vidas com esse filho, refletir sobre questes antes afastadas do foco, sobre acontecimentos que consideravam irrelevantes e que agora ficam reposicionados nessas entrevistas.

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  • PSICOPEDAGOGIA CLNICA

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    A maior qualidade e validade do diagnstico depender da relao estabelecida terapeuta-paciente: emptica, de confiabilidade, respeito, engajamento. A relao de confiana estabelecida cria condies para o incio de qualquer atendimento posterior.

    A meu ver, essa relao nasce da maneira aberta, relaxada, acolhedora, sorridente com que nos dirigimos criana e ao adolescente; tambm na linguagem que usamos, o mais possvel prxima da deles - no vocabulrio e na temtica. Conta, tambm, a liberdade de ao que proporcionamos no espao do consultrio, no se sentindo eles exigidos, policiados, como s vezes acontece na escola ou na famlia.

    Quando percebo grande resistncia no paciente, sinal de que o en-gajamento est difcil, interrompo o processo de avaliao e me questiono sobre o que pode estar acontecendo "aqui, agora, conosco" no nvel fantasmtico ou real. Deve-se investigar se existem medos ou ameaas encobertos. H fatos reais que podero estar interferindo concretamente, tais como: a coincidncia de horrio da sesso com o jogo de futebol, o programa de televiso preferido, a "gozao" dos irmos ou colegas etc. Por exemplo, ficou clara, para mim, a existncia de ameaas para Cristina, que resistia avaliao durante duas sesses, quando, repetidamente, na terceira sesso, falou: "Vim aqui porque dizem que sou maluca, no aprendo e fao bobagens". Em outro momento disse: "Minha prima de 12 anos foi no psiquiatra e ficou boa". Interrompi as sesses somente individuais e realizei uma sesso com ela e os pais, tentando lev-la a reelaborar o significado da avaliao psicopedaggica e o caso da prima. Naquele momento, tinha 9 anos e cursava a terceira srie e me procurava por apresentar dificuldade na escrita (Weiss, 1987, p. 30).

    Algumas vezes, a dificuldade no do paciente, mas minha. Ques-tiono o meu momento, a minha atitude e os mecanismos contratransfe-renciais que podem estar interferindo.

    Assim, vemos que o processo diagnstico baseia-se no inter-relacio-namento dinmico e de condutas interdependentes entre o terapeuta (diagnosticador) e o paciente (o diagnosticado), a comunicao estabe-lecida entre ambos faz com que o terapeuta atue (de forma consciente e inconsciente) sobre o paciente sempre que apresenta qualquer conduta. Tudo nessa comunicao importante: a palavra, o modo de falar, a atitude, os gestos, a movimentao do corpo etc.

    Sendo o diagnstico um processo que acontece a partir de relaes interpessoais, fundamental que se leve em considerao a ine-

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  • ASPECTOS BSICOS DO DIAGNSTICO PSICOPEDACCICO

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    vitabilidade do aparecimento de fenmenos de transferncia e contra-transferncia entre o terapeuta (psicopedagogo) e o paciente e seus pais. Se esses mecanismos no forem bem conduzidos, podero comprometer gravemente o diagnstico.

    Entendemos contratransferncia como as condutas inconscientes que aparecem no terapeuta, emergindo das inter-relaes existentes com o paciente (ou seus pais) a partir do clima formado ao longo do atendimento, enfim, do campo psicolgico que se estabeleceu nas sesses diagnosticas.

    H indcios de mecanismos contratransferenciais quando, por exemplo, o terapeuta comea a ficar constantemente irritado com o paciente (ou seus pais), sente rejeio, compaixo, bloqueio, ansiedade excessiva etc. O no-controle de seus mecanismos contratransferenciais deve levar o terapeuta a buscar auxlio na superviso de outro profissional externo a essa relao. A percepo dessa situao contratransferencial pelo prprio terapeuta exige dele uma boa preparao teraputica, bem como sua passagem pela experincia psicoterpica ou analtica.

    O bom preparo teraputico possibilita ao profissional, em situaes crticas, a iseno necessria para analisar a conduta do paciente e/ou de seus pais, e auxili-los na compreenso dos contedos emocionais expressos nas sesses diagnosticas.

    J no mecanismo de transferncia o paciente que traz para as sesses seus sentimentos, atitudes e condutas inconscientes para com o terapeuta que vo representar modelos de conduta estabelecidos em outros contextos, basicamente o familiar. Assim, vai atribuir certos papis ao terapeuta e agir em funo deles. So cenas comuns de crianas com relao terapeuta: "Me d gua... voc no faz o que eu mando... mame faz o que eu mando!".

    E necessrio que o terapeuta consiga compreender os pedidos de ajuda, dependncia, proteo, reaes onipotentes e fantasiosas expressas atravs de mecanismos transferenciais durante o diagnstico. Compreender bem o que acontece, discriminando o seu papel, pode auxiliar o paciente a prosseguir no processo diagnstico sem que ocorra uma fixao em pontos inadequados.

    O diagnstico psicopedaggico composto de vrios momentos que temporal e espacialmente tomam 0dimenses diferentes conforme a necessidade de cada caso. Assim, h momento de anamnese s com os pais, de compreenso das relaes familiares em sesso com toda a

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  • PSICOPEDAGOGIA CLNICA

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    famlia presente, de avaliao da produo pedaggica e de vnculos com objetos de aprendizagem escolar, busca da construo e funcionamento das estruturas cognitivas (diagnstico operatrio), desempenho em testes de inteligncia e visomotores, anlise de aspectos emocionais por meio de testes expressivos, sesses de brincar e criar.

    Tudo isso pode ser estruturado numa Seqncia Diagnostica esta-belecida a partir dos primeiros contatos com o caso.

    Em linhas gerais, estabeleo a seguinte Seqncia Diagnostica a ser modificada segundo as necessidades de cada caso:

    1. Entrevista Familiar Exploratria Situacional (EFES) (M.L. Weiss, 1987);

    2. Entrevista de Anamnese; 3. Sesses Ldicas Centradas na Aprendizagem (para crianas)

    (M.L. Weiss, 1987); 4. Complementao com provas e testes (quando for necessrio); 5. Sntese Diagnostica - Prognstico; 6. Entrevista de Devoluo e Encaminhamento.

    Modificaes comuns de acontecer: a) com pais separados e incompatibilizados: duas anamneses

    iniciais; b) adolescentes que desejam o primeiro contato sozinhos; c) anamnese inicial sempre que h dvidas em relao a diag-

    nsticos anteriores, ou o paciente esteve ou est com outros profissionais.

    Visualizando a questo de outro modo: A seqncia diagnostica tradicionalmente usada na clnica psicolgica

    e transposta para a psicopedaggica segue o modelo mdico: 1. anamnese (histria do caso); 2. testagem e provas pedaggicas (exames); 3. laudo (sntese das concluses e prognstico); 4. devoluo (verbalizao do laudo) ao paciente e/ou aos pais.

    Jorge Visca (1987, p. 70) prope um esquema seqencial diagnstico flexvel, baseado na Epistemologia Convergente e assim formulado: 1. Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem (EOCA) - levantamento do primeiro sistema de hipteses com definio de linhas de investigao e escolha de instrumentos;

    LucasRealce

  • ASPECTOS BSICOS DO DIAGNSTICO PSICOPEDACCICO

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    2. Testes - levantamento do segundo sistema de hipteses e linhas de investigao;

    3. Anamnese - verificao e decantao do segundo sistema de hipteses, formulao do terceiro sistema de hipteses;

    4. Elaborao do informe psicopedaggico (elaborao de uma imagem do sujeito que articula a aprendizagem com os aspectos energticos e estruturais, formulao escrita de uma hiptese a comprovar);

    5. Devoluo da informao aos pais e/ou ao paciente. (Em momento posterior, devolver, de forma restrita, o que for de interesse para a escola.)

    Existem pacientes que no aceitam sesses diagnosticas formais.

    Torna-se necessrio, ento, fazer uma avaliao ao longo do prprio processo teraputico. Nesses casos, com crianas, fao sesses de ludo-diagnstico, mas sempre centradas na aprendizagem, procurando observar concomitantemente aspectos afetivo-sociais, cognitivos, corporais e pedaggicos. V-se, assim, que no h fronteiras formais entre diagnstico e tratamento como analisamos anteriormente. A separao normalmente feita apenas operacional, basicamente em instituies e para instituies.

    LucasRealce

  • PSICOPEDAGOGIA CLNICA

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    Em alguns casos, consigo realizar o diagnstico em nmero limitado de sesses, mas atribuindo a todas elas uma caracterstica informal. Nem sempre so todas as sesses de carter ldico, pode ser um perodo ou determinada parte da sesso ou algumas sesses. Deixo a criana brincar, criar e desenvolver a confiana em nossa relao. Relembro Ana (8- srie) que muito ansiosa explorava incessantemente o consultrio. Adorou a caixa em que guardo material para provas piage-tianas, fazia bolas de massa plstica, punha objetos na balana, at que colocou o ramo de margaridas e rosas no cabelo e falou: "Estou bonita? Isso de bailarina". medida que ela brincava, eu aproveitava e fazia algumas perguntas que conduziam a questes tais como: "No ramo de seu cabelo tem mais margaridas ou rosas? Se eu tirar as flores do ramo o que ficar no seu cabelo?" etc. No necessrio que a criana esteja sentada frente a uma mesa para revelar se capaz de realizar incluso de classes. Esta foi uma situao atpica, apenas a relembro para exemplificar o informalismo que pode ocorrer eventualmente no diagnstico, sem prejudicar o objetivo a ser atingido pelo terapeuta. No caso, no se tratava de uma sesso de ludodiagnstico, mas sim uma sesso exploratria do ambiente que propiciou um certo tipo de avaliao.

    Resumiremos no quadro a seguir as relaes das etapas do diagnstico com os princpios bsicos da aprendizagem vistos no captulo anterior.

    Outros aspectos bsicos a serem considerados no diagnstico so: o contrato e o enquadramento.

    No incio do diagnstico realiza-se um contrato com os pais e se constri um enquadramento com estes e o paciente. O enquadramento a definio das variveis que intervm no processo, tornando-as constantes.

    So aspectos importantes das constantes do enquadramento, que englobam tambm o contrato:

    a) esclarecimento de papis: funo do terapeuta-investigador; participao dos pais e de outros membros da famlia (ana-mnese, sesses familiares, devoluo etc); contato com os profissionais da escola; contato com outros profissionais que atendem ou j atenderam a criana;

    b) previso do nmero aproximado de sesses e forma de en-cerramento do trabalho;

    definio de horrio, dias e durao das sesses;

    LucasRealce

  • ASPECTOS BSICOS DO DIAGNSTICO PSICOPEDACCICO

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    d) definio dos locais: consultrios, sala de ludo, sala de teste etc; e) honorrios contratados e forma de serem cobrados.

    O contrato com instituies assume caractersticas diferentes, pois ele realizado com a instituio e no com um terapeuta em particular. Geralmente, h um documento escrito fornecendo os dados j vistos, a tabela de preos, o pedido de autorizao para uso de dados com fins cientficos, a definio de nmero de faltas e o direito ou no a continuar o diagnstico.

    Em qualquer das situaes, importante que haja o esforo de todos para evitar a quebra do enquadramento. Ele deve ser cumprido no s pelo paciente e seus familiares como tambm pelo prprio terapeuta e funcionrios das instituies. preciso que o terapeuta possa manter o seu lugar de modelo e ter, assim, condies de denunciar as quebras de enquadramento. No entanto, preciso que em alguns momentos haja flexibilidade para atender a situaes imprevistas que exigem a sua modificao em funo da melhoria das condies para o paciente.

    LucasRealce

  • Captulo 2 Diagnstico:

    o primeiro contato telefnico J deixei um recado,

    preciso falar com urgncia... Pai

    SUMRIO Significado do primeiro contato telefnico

    Resistncia Continuidade

    A ansiedade do primeiro movimento

    No momento em que a famlia faz o primeiro contato telefnico com o terapeuta, j est se dando um movimento

    interno nela, o que pode ser o incio de uma mudana. Muitas vezes a escola solicita uma avaliao psicopedaggica, a

    famlia no discorda abertamente, aceita a solicitao, mas no d continuidade, alegando que o terapeuta no foi achado, caro, longe, apresentando diferentes formas de resistncia.

    A maneira como o profissional acolhe o primeiro contato com a famlia ou o prprio paciente muito importante para a continuidade do processo. Pode ser um momento "impessoal", via secretria do consultrio ou da instituio, para simples marcao de um horrio, como pode ser um primeiro momento j com grande carga emocional persecutria ou de expectativa positiva. Assim, relembro como exemplo dois casos bem significativos. No primeiro, o pai da criana trocou informaes com a secretria, e, quando ela explicitou o preo da consulta, ele falou: "Vou denunciar vocs, no se pode cobrar em BTNs (ndice monetrio da poca), ilegal", no que foi delicadamente retrucado pela secretria, que

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    mostrou a normalidade do procedimento. Ele bateu desaforadamente com o telefone. Trs semanas depois marcou o primeiro encontro pessoal, transcorrendo normalmente a avaliao. Tal situao deve ser discutida nesse momento. Pareceu-me que ele estava bastante ameaado diante da perspectiva do diagnstico do filho - e, conseqentemente, "seu prprio" - e precisava medir foras com a terapeuta.

    No segundo caso, foi a me de uma criana que iria ser reprovada pela segunda vez na primeira srie do 1- grau. Ela estava muito aflita, e queria urgncia na avaliao, j em novembro, ltimo ms de aulas do perodo letivo. Tinha uma expectativa mgica sobre o diagnstico e um possvel milagre de aprovao. Conversei diretamente com ela, ao telefone, quando me exps toda a sua aflio. Ao lhe explicar as dificuldades da primeira srie e as relacionar com o que acabara de me dizer sobre o procedimento da escola, tranqilizou-se e disse: "Foi bom falar com voc. Assim, se voc acha que ela pode no ser anormal, eu espero voc ter horrio para avaliao, j que talvez ela no passe de ano mesmo".

    Creio que j houve, por caminhos diferentes, uma interveno nessas famlias. Sou a favor de se procurar construir uma boa relao com a famlia desde o primeiro contato telefnico, tentando, dentro do possvel, personaliz-lo. necessria uma conversa de aproximao, no, porm, uma "triagem", como acontece com funcionrios de clnicas encarregados desse primeiro contato. Nesse momento, fundamental saber sobre o paciente: seu nome, idade, escolaridade, escola que freqenta, quem solicitou a avaliao e por que razo o fez (a queixa), quem indicou o profissional, se esteve ou se est em atendimento com outros profissionais e de que especialidade so, se vive com os dois pais ou s com um deles, se o paciente est concordando em fazer a avaliao. De algum modo, tal contato caracteriza o incio de uma primeira entrevista.

    Outra situao muito comum a de um dos pais fazer o primeiro contato e afirmar que o outro genitor discorda da proposta de avaliao, sendo radicalmente contra. Considero indispensvel reforar o elemento que est disposto ao movimento e, num momento seguinte, tentar con-quistar a adeso do outro e conhecer suas razes. Isso no to simples assim: por vezes, a me simplesmente se dispe a qualquer coisa para no perder o lugar, grosso modo, de sofredora que cuida dos filhos sozinha...

    Concluindo, preciso que se considere sempre a grande carga de ansiedade posta pelos pais nesse primeiro contato, pois um movimento que poder vir a se definir pr ou contra a avaliao.

  • Captulo 3 A queixa

    As coisas no entram na cabea dele. Me

    Estudo, estudo e na hora no sai nada.

    Paciente

    SUMRIO

    Tipos de queixa Anlise da queixa

    Significado da queixa A queixa e a seqncia diagnostica

    A queixa na fala dos pais e na do paciente:

    (1) "Parece que ele no guarda nada."

    (2)"No tiro nota boa porque relaxo." "No presto ateno. S consigo quando algum ajuda."

    (3) "Ele no faz nada na sala, no no presta ateno na aula."

    (4) "No sou inteligente a ponto fixa em nada, de olhar o professor explicando e entender na hora.

    (5) "L bem, mas no consegue escrever." "E timo na Matemtica, mas sempre foi mal em Portugus."

    (6) "Erro na escrita porque fao muito rpido, no sei

    fazer devagar." "Eu leio um pouco devagar. No gosto de ler livro. O que eu gosto mais da aula de msica. No gosto de dividir, no sei conta de dividir."

  • PSICOPEDAGOGIA CLNICA

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    (7) "Vai sempre mal na escola, mas eu tambm era assim e hoje estou muito bem. Estou aqui porque a escola mandou."

    (8) "Estudo, na hora da prova d nervoso e eu esqueo." "Estou me esforando. Nas matrias no vou nada bem. No sei conseguir re-sultado melhor. No gostei da pro-fessora, gritava muito."

    (9) "Ele cabea-dura que nem eu, l em casa ningum sabe nada. Acho que no adianta..."

    (10) "No estudo, no tenho pacincia para estudar. S agora na 5a srie que as matrias so mais difceis. Na prova final vou estudar feito um condenado."

    (11) "Acho que est tudo bem, no sei por que a professora disse para eu trazer ele aqui."

    (12) "Eu no queria aprender a ler e a escrever." "Tenho medo de tirar nota baixa, repetir ano e perder os amigos." "Tive dificuldade no colgio A, no era bom o ensino, a minha me me tirou e ps em outra escola, a o segundo colgio no era bom, e minha me botou em outro, a ela no gostou e eu voltei para o primeiro."

    As mltiplas formulaes feitas pelos pais, pela escola e pelo prprio

    paciente em sua autoviso precisam ser analisadas nos seus diferentes significados. H nessas frases pistas diversas que me levam construo do fio condutor da anamnese e, s vezes, do prprio diagnstico, pois essa anlise possibilita desde a compreenso das diferentes relaes com a aprendizagem escolar dos pais e do paciente at a aceitao ou no do diagnstico.

    Nos exemplos, h uma pequena amostra dos diferentes tipos de problemas que nos so relatados com mais freqncia. Observando-se os verbos usados, percebem-se caminhos bem diversos dentre as dificuldades expressas.

    O exemplo (1) refere-se a uma impossibilidade de guardar, de reter o conhecimento. O aprofundamento da questo do "reter" em nvel familiar. O que esquece? O que retm? No fixa nada, em nenhuma situao? Pensa-se, nestes casos, em aprofundar aspectos emocionais e orgnicos.

  • A QUEIXA

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    Nos exemplos (2), (3) e (10) no se fala em dificuldade de aprender, mas

    sim de olhar, de parar, de no estar interessado em ir ao encontro do conhecimento. H necessidade de apurar a ligao do paciente com a realidade, de ver aspectos emocionais e sociais, de entender a valorizao do conhecimento dentro desta famlia especificamente.

    No exemplo (8) levantada a possibilidade de aprender e a impos-sibilidade de revelar o que se sabe. Deve-se pensar em aspectos emocionais, na dinmica familiar, seus "segredos" e a circulao do conhecimento. O esforar-se e no conseguir tambm pode sugerir dificuldades na rea cognitiva e pedaggica.

    Nos casos (4) e (9) fala-se da dificuldade de aprender, de absorver o conhecimento. Sugere a avaliao do baixo autoconceito impedindo o movimento de busca do conhecimento, a "entrada na cabea dura".

    Nos (7) e (11), colocada uma oposio dos pais questo levantada pela escola. Ser necessrio aprofundar o assunto: haver dificuldade em aceitar o problema? Resistncia situao diagnostica, discordncia de observao em relao ao paciente, dificuldade em lidar com a realidade?

    O (5) refere-se dificuldade especfica na rea de registrar. preciso aprofundar as vertentes simblica (significado da escrita) e pedaggica (como foi ensinada a escrita), psicomotora (como esse domnio e a escrita) etc.

    O (6) remete a uma questo temporal, ao ritmo da produo e seu significado, e tambm ao significado da operao "dividir" e sua realizao pedaggica.

    A queixa no apenas uma frase falada no primeiro contato, ela precisa ser escutada ao longo de diferentes sesses diagnosticas, sendo fundamental refletir sobre o seu significado.

    Algumas vezes, a queixa da escola apontada como o motivo manifesto do diagnstico repetida pelos pais, sem qualquer elaborao posterior. Ao longo do processo ela vai se transformando e se revelando de menor importncia, ao mesmo tempo em que vai surgindo um motivo latente que realmente mobilizou os pais para a consulta. Esse motivo pode crescer em importncia, exigindo mais urgncia no atendimento, ficando a dificuldade escolar em segundo plano. No caso de Tales (10 anos, 4- srie) a procura do diagnstico se deu no fim do ano, aps o fracasso nas provas de seleo para ingresso em um novo colgio, embora j estivesse aprovado para a srie que cursaria no atual colgio. No final da primeira entrevista ficou claro que a verdadeira queixa no era escolar. Dizia a me: "Ele sempre foi assim resis-

  • PSICOPEDAGOGIA CLNICA

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    tente, emburrando quando no se fazia o que ele queria, tinha crises de violncia, perdia o flego, ningum agentava mais ele". O pai acrescen-tou: "Voc lembra daquele dia em Cabo Frio que ficou sem falar dois dias porque eu no deixei ele ir ao boliche? Realmente ele s vezes irritante, e s vezes to doce e amigo". No momento inicial de colocao da queixa foi dito: "Acho que ele est com dificuldades em Portugus, parece que a escola no exigiu muito dele por achar que tem dificuldades; em Matemtica est melhor. Queremos que voc veja como anda o pedaggico dele para nos situarmos para o prximo ano".

    No caso de o contato inicial ser s com os pais, s vezes realizo vrias sesses para que fiquem claras, para eles e para mim, as relaes de cada um e de todos com a dificuldade de aprendizagem que esto trazendo. Essas entrevistas vo se transformando na prpria anamne-se. Nesse ponto, vou estruturando as sesses com ambos os pais ou, no caso de pais separados, s vezes com cada um separadamente ou junto com seu novo companheiro. Na maioria dos casos, inicio o trabalho por uma entrevista conjunta com os pais e o paciente. Esta atividade, que depois de muita experincia denominei Entrevista Familiar Exploratria Situacional - EFES (Weiss, 1987), ser desenvolvida no prximo captulo. Nessa entrevista explicitada de forma mais profunda a queixa.

    No atendimento a jovens adultos e adolescentes, a primeira entrevista pode ser marcada por eles prprios e nesse momento apresentam a queixa j elaborada por eles. comum j trazerem suas hipteses sobre as dificuldades escolares. Jorge, 23 anos, tcnico de som, assim se expressou ao nos procurar na clnica comunitria: "Eu vim falar com vocs porque ando pensando em voltar a estudar, mas tenho medo de no sair do lugar de novo. Eu parei na y- srie, s vezes acho que sou 'burro'. Naquele tempo eu no entendia nada na escola. Acho que s minha irm era inteligente. s vezes fico pensando se era isso que me atrapalhava, todo mundo s dava 'cartaz' para ela. O que voc acha?". Quando a relao construda entre o paciente, os pais e o tera-peuta de confiana, a expresso de sentimentos da famlia mais fcil, e assim consegue-se a explicitao da queixa de forma mais detalhada. a partir dessas falas que levantamos as primeiras hipteses. Analisando o que dito que vamos perceber se existir um entrave na aprendizagem ou se o paciente aprende, mas se ocorre obstruo, impedimento na hora em que ele necessita mostrar o que j sabe, o que j aprendeu, como no caso de exerccios, testes e provas.

  • A QUEIXA

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    Se a queixa aponta para a dificuldade de mostrar, de revelar o conhecimento j adquirido, esse entrave pode estar ligado histria do paciente e de sua famlia ou relacionado a situaes escolares definidas.

    Nesse caso, comum encontrar grande exigncia e cobrana por parte dos pais, falta de espao na famlia para que a criana aprenda a expressar o que sente ou pensa sobre fatos, objetos e pessoas; o retoro para ocupar e permanecer no lugar da pessoa que no se expressa, isto , daquele que falado pelos outros. Todos esses aspectos, obviamente, devem ser aprofundados.

    No segundo caso, importante ainda fazer questionamentos sobre os vnculos formados com os professores, objetos e diferentes situaes escolares. Por exemplo, o mau relacionamento com um professor pode ser o fato bloqueador. Assim me dizia David (12 anos, 5-srie): "Depois que eu fiquei com aquela professora da 3- srie, fiquei 'entupido'; antes eu era bom na sala, mas ela no gostava de mim e eu tambm no gostava dela, brigava muito". Outros aspectos a serem vistos so ligados metodologia de ensino, s formas de avaliao (provas institucionais), metodologia de alfabetizao, s transferncias de turma e de escola quando mal conduzidas.

    Em sntese, fundamental, durante a explicitao da queixa, iniciar a reflexo sobre as duas vertentes de problemas escolares: o sujeito e sua famlia e a prpria escola em suas mltiplas facetas, para definir a seqncia diagnostica bem como as tcnicas a serem utilizadas.

    SINTETIZANDO

    Primeiro Contato Telefnico -> Queixa -> Hipteses -> Primeira Sesso Diagnostica: EFES.

    LucasRealce

    LucasRealce

    LucasRealce

  • Captulo 4

    Primeira sesso diagnostica

    O que acontece comigo...?Eu sou burro?

    Paciente Darei conta desse diagnstico?

    Terapeuta

    SUMRIO Ansiedades da primeira sesso

    Diferentes formas de primeira sesso Entrevista Familiar Exploratria Situacional (EFES): objetivo, descrio e exemplo

    EOCA: objetivo, descrio, exemplo, avaliao

    O primeiro encontro do terapeuta com o paciente carregado de ansie-dade de ambas as partes. H muito de desconhecido, de persecutrio para os dois. Cada um pe nesse encontro questes diferentes como: "O que acontece comigo?", "Sou doente?", "Sou burro?", "O que ser que a professora falou para ela?". Por outro lado: "Ser que ele me aceitar?", "Ser que descobrirei o que acontece?".

    A ansiedade existe sempre, em qualquer situao diagnostica: no terapeuta, em face da necessidade de penetrar no desconhecido; no pa-ciente e seus pais, ante o desconhecimento da situao e o medo de reve-lar aspectos pessoais ou da vida familiar, aspectos esses conhecidos ou desconhecidos deles prprios.

    A ansiedade bem dosada positiva em qualquer situao. ne-cessrio dar muita ateno a esse aspecto, pois, se por um lado a ansie-dade pode ser "um agente motor da relao interpessoal", num sentido construtivo, por outro, a partir de certa intensidade pode perturbar a relao, desorganizando em excesso a conduta do terapeuta, do paciente ou dos pais. Nesse caso, a sesso pode se tornar improdutiva.

  • PSICOPEDAGOGIA CLNICA

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    Como j foi visto, depender do que foi dito no primeiro contato telefnico sobre a queixa, a definio da forma de realizar a primeira entrevista, e cada caso sugere um caminho a trilhar.

    H situaes em que opto por entrevista inicial de anamnese com os pais, quando, por exemplo, me dito que o paciente j teve ou tem outros tratamentos; quando h dvidas sobre um diagnstico anterior; quando h discordncia de posio entre pais e a escola; quando pais separados esto em atrito; quando h um desvio muito grande entre a idade cronolgica e a srie escolar.

    Fao a primeira entrevista como uma Entrevista Familiar Exploratria Situacional - EFES (Weiss, 1987, p. 29). Nessa entrevista reno os pais com a criana ou adolescente para uma sesso conjunta com durao de cinqenta minutos.

    A EFES tem como objetivos a compreenso da queixa nas dimenses familiar e escolar, a captao das relaes e expectativas familiares centradas na aprendizagem escolar, a expectativa em relao atuao do terapeuta, a aceitao e o engajamento do paciente e seus pais no processo diagnstico, a realizao do contrato e do enquadramento de forma familiar e o esclarecimento do que um diagnstico psicopedaggico.

    Como em qualquer entrevista, necessrio criar na EFES um clima de confiana para que haja a livre circulao de sentimentos e informaes a fim de que se possam fazer observaes como:

    - Se h dilogo livre entre os trs, se um respeita a opinio do outro, dando-lhe tempo para falar, e se o desacordo pode ser explicitado.

    - Se os pais permitem as interrupes da criana ou adolescente, deixando-o discordar, acrescentar ou modificar fatos por eles relatados; se apenas um dos pais fala, impedindo a expresso do restante da famlia. Nesse caso, fundamental que o terapeuta pea a opinio de todos, ao mesmo tempo em que percebe como se estrutura a definio de limites dentro do prprio grupo familiar.

    - O tipo de vnculo que os pais fazem como casal e com o tera-peuta; vnculos pai-paciente e me-paciente.

    - Se h fantasias de sade ou de doena no grupo que estejam misturadas com a queixa.

    - Qual o nvel de ansiedade, expresso atravs de dados como: pedido de urgncia no atendimento, solicitao de uma fre-qncia excessiva de sesses ou de horrios inadequados.

  • PRIMEIRA SESSO DIAGNSTICA

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    - Conhecimento que o paciente tem do motivo do diagnstico e

    como lhe foi explicada a vinda ao consultrio. - Como o grupo compreende a explicao sobre o que uma

    avaliao psicopedaggica, as tcnicas utilizadas, os contatos que sero feitos com a escola e outros profissionais.

    - Que aspectos escolhem para comear a expor a situao. - Qual "o significado" do sintoma para a famlia e na famlia (Sara

    Pain). O registro fiel dessa entrevista muito importante porque ela se presta

    a muitas distores. Os pais s transmitem o que querem ou podem, enquanto o terapeuta s compreende o que pode. Ao longo do processo diagnstico, s vezes, os dados vo se modificando, bem como as hipteses e concluses do terapeuta. Quando se constri uma boa relao, comum que, em outra oportunidade, os pais revelem dados esquecidos nesse primeiro momento. Os dados colhidos na EFES devem ser comparados e relacionados com o material obtido atravs da anamnese, testes, outras entrevistas ou outros instrumentos. O fundamental que, ao final dessa entrevista, os pais e o paciente saiam mais tranqilos e menos ansiosos, sem perder de vista a necessidade de continuidade do diagnstico.

    As crianas se sentem confiantes com a presena dos pais, falam de escola, exploram o consultrio, brincam e ouvem a nossa conversa, in-terferindo de vez em quando. Deixo disposio delas brinquedos, jogos, papel, hidrocor e quadro-de-giz. Tenho obtido bons resultados no enga-jamento de crianas entre 5 e 8 anos. Elas vem o consultrio como espao ldico, de confiana, no criando problema em retornar sozinhas. Considero de grande valia o adolescente fazer este primeiro contato com o terapeuta em nvel de igualdade com os pais, pois de imediato sua fala e sua posio ficam valorizadas. Comeo a entrevista ouvindo sempre em primeiro lugar o adolescente: a razo da vinda ao consultrio e a queixa da escola, sua anlise do fato, suas expectativas. No momento seguinte, ele pode ouvir a opinio dos pais e contest-la caso discorde. A presena do terapeuta possibilita ao adolescente ser mais autnomo nesse dilogo. Tenho ouvido frases como: "Quando eu peo ajuda na Matemtica, voc diz que t cansado", "Quando voc fica no rneu p, eu fico com raiva, a que eu no estudo mesmo", "Se eu tiro cinco, voc diz que tem que ser sete; se eu tiro sete, voc diz que podia ser melhor", "Eu no gosto desta escola, e vocs no me tiram dela", "Na hora da prova eu penso: se eu errar, j perdi a roda da bicicleta, depois

  • PSICOPEDAGOGIA CLNICA

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    a outra roda...". Essa posio do jovem no era ouvida pelos pais em situao espontnea, domstica.

    Tais exemplos representam diferentes facetas das relaes da famlia com o trabalho escolar: valorizao, apoio e ateno execuo de tarefas domsticas, nvel de exigncia e forma de cobrana do produto escolar, sentimento da criana ou adolescente em relao a essa situao e a escolha da escola.

    Vrios casos de fracasso escolar de adolescentes ficaram equacio-nados nessa entrevista familiar, sem haver necessidade de dar continuidade ao diagnstico, pois houve uma clarificao da questo no nvel grupai com reposicionamento dos pais e proposta de ao conjunta no nvel domstico e escolar.

    Como exemplo de EFES, transcrevo trechos da primeira entrevista de Patrcia (14 anos, 5a srie), encaminhada pelo Servio de Orientao Educacional da escola por ter duas reprovaes sucessivas e estar comeando um novo ano com notas muito baixas, sem perspectivas de melhora.

    T: Voc gosta de ler? Pat: Olha, eu no leio. s vezes, quero ler, mas no tenho "saco" para ler.

    T: Como anda o ambiente do colgio? Pat: Tenho raiva de dois professores e de alguns colegas. T: E o que voc acha?

    Pai: Quando se pergunta de estudo, ela diz que est tudo bem. Na primeira reprovao, eu fiquei aborrecido com o colgio, porque ns (pai e me) tnhamos sido alunos desse colgio. Ela me parecia alheia reprovao, era como se tivesse passado de ano. Eu acho que, ano passado, dei pouca assistncia a eles porque estive envolvido em aperfeioamento profissional. Os dois perderam o ano. Eu no gostei foi dela mentir pra gente, dizer que ia ao cinema e ia pra danceteria. A coordenadora do colgio reclamou que ela no aceita autoridade. Me: Ns deixamos ela ir danceteria, mas tem que dizer com quem vai e os horrios. Acho que no estudo, ele (o pai) tem razo. Pat: Ele (pai) quer que a gente seja no estudo o que ele foi. Pai: Eu era levado, mas estudava. Hoje sou arquiteto.

  • PRIMEIRA SESSO DIAGNSTICA

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    Me: Eu estudei no colgio X. Trabalho em meio expediente, e me sentia um pouco culpada. Sempre foram (Patrcia e o irmo) independentes. No queriam a minha participao. No tive me. No precisei de professores particulares. Pat: Vocs sabem que eu odeio os professores de Geografia e de Histria. Eu posso estudar sozinha, antes foi "bobeira", por isso fiquei reprovada.

    T: Patrcia, o que voc prope para este semestre como experincia de estudo? Pat: Eu quero que eles me dem o direito de fazer o meu horrio de estudo. No quero que fiquem no meu p, enchendo o saco. S quero poder resolver o meu domingo, e no estar todo domingo na casa da vov! T: Como vocs vem a proposta da Patrcia? Pai: Acho que a gente andou conduzindo mal esse problema de estudo e sadas l em casa. Pat: Vocs podiam s falar depois das minhas notas nos dois prximos bimestres. Me deixa...

    A partir desse ponto, discutiram-se o nvel de competncia dos pais em

    determinar limites sociais gerais, a margem de liberdade de ao de Patrcia, os horrios compatveis com sua idade, as culpas vivenciadas pelos pais, suas expectativas de produo escolar dos filhos e de futuro profissional, a forma de se fazerem as cobranas e as dificuldades especificas da me.

    Patrcia analisou com bastante seriedade seu pouco investimento anterior na aprendizagem escolar, seu desejo atual de assumir um novo compromisso com a escola, suas reaes agressivas com relao aos pais por meio da escola, seu desejo de dispor de tempo para definir melhor suas responsabilidades nas diferentes situaes