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8/19/2019 Punkto - Desastre, Limites, Indisciplina
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Punkto [ práticas e escritas ] limites, desastre e indisciplina
Ciclo “O lugar do Discurso” \ 21 de Abril 2015
[slide 1, 2]
1. Queria agradecer o convite para participar nesta sessão. A minha ideia era falar-vos um pouco deste
projecto, o Punkto, que tem agora praticamente cinco anos, desde que em Maio de 2010 lançamos o
número zero, precisamente sobre a ideia do “ ponto”. E que teve como pano de fundo dois magníficos
textos: um de Herberto Hélder, que se chama “Desenho” e, outro, de Roland Barthes “A câmara clara”
que, de algum modo, definiram o ambiente temático do próprio projecto [slide 3] [slide 4]. Entretanto
publicamos mais três números: o primeiro sobre o “acaso”, em Novembro de 2010, partindo de
Mallarmé e do seu lance de dados – contou com os contributos de Godofredo Pereira, Miguel Leal,Atelier da Bouça [slide 5,6]; um número dois inteiramente dedicado à “destruição” à sombra de Walter
Benjamin, em Maio de 2011- contou com contribuições de José Bártolo, Álvaro Domingues, Tiago
Lopes Dias, Tiago Casanova [slide 7,8] e, por fim, o último número: “ Nostalgia”, publicado em Maio
de 2013, com contributos de André Romão, José Miguel Rodrigues, Laetitia Morais e Paulo T Silva,
Susana Lourenço Marques, Diogo Seixas Lopes e Maria João Baltazar. [slide 9,10]. Para além disso,
temos vindo a animar um site, com os seus conteúdos próprios e regularmente actualizado, e temos
vindo a desenvolver inúmeras iniciativas sobretudo no Porto (mesas-redondas, workshops) [slide 11, 12]
Mas não quero nem fazer uma descrição das iniciativas, dos números, do site, mas antes falar um
pouco do âmbito temático deste projecto [slide 13]. Para isso: vou partir e tentar clarificar o sentido
deste mote que nos tem acompanhado desde o início: Punkto: Publicação indisciplinada sobre limites:
da prática, da teoria, do político e da arquitectura. E, sobretudo, sinalizar três aspectos fundamentais
que nos têm mobilizado e que estruturam esta minha apresentação: (1) o papel da crítica e os limites
entre disciplinas, (2) as relações entre a teoria e a prática, (3) a relação entre arquitectura e o político.
2. Para começar, penso que é importante assinalar a possibilidade de estarmos aqui a discutir este
“Lugar do Discurso”. O que é sempre uma instância rara, pois estamos perante a oportunidade de
falar não com aqueles que geralmente aparecem publicados, o que seria a normalidade de um
qualquer colóquio de arquitectura, mas com aqueles que publicam, que se consignam a essa vontade
de um tornar público. E que podíamos definir como um dar a ver e dar a ouvir , que é tanto uma
partilha como uma exigência: o direito à participação na invenção de um mundo, como escreve a
Susana Caló num magnífico dossier “Devir menor ” que temos vindo a publicar no Punkto.
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3. Posto isto, é caso para dizermos que esta é uma sessão de certo modo vocacionada para o desastre.
Mas não se trata de vaticinar um qualquer insucesso deste colóquio, bem pelo contrário, trata-se de ir
ao encontro de um outro sentido para a palavra desastre. Dés-astre, que significa qualquer coisa como
sem astro ou a deriva de um astro fora de órbita. Um modo de sair de órbita, de se afastar, de traçar
linhas de fuga, uma errância: um pouco para lá dos astros, dos sistemas mediáticos das estrelas e dos
seus brilhos, um pouco para lá das imagens e dos seus efeitos de luz. Um pouco à procura de vida,
diria, lá onde ela parece totalmente ausente. Os movimentos do desastre são sempre os mais árduos e
os menos ambiciosos. Porque o desastre não é nenhum desígnio, nem mesmo uma condição, talvez
mesmo apenas um acaso, um desvio que teve que ser traçado, uma linha que foi necessário seguir: um
acidente, qualquer coisa que está prestes a cair. [slide 14]
4. Neste sentido, também o Punkto está absolutamente e alegremente vocacionado para o dés-astre –
para essa geografia do desastre, das grandes planícies escuras que rodeiam os astros, para aquilo que
permanece um pouco fora de órbita, à margem, sempre numa certa fuga àquilo que está demasiado
iluminado. Porque lá onde a luz é menor, lá onde a luz se vai esvanecendo, é também onde podemos
olhar a própria luz. E, como escrevia Michel Foucault, é preciso (antes de mais) ver aquilo que nos
impede de ver. Abrir-se um espaço , criar uma distância, deslocar-se ligeiramente. Mas não há
doutrinas nem profetas (sejam eles da luz ou da escuridão), mas sim um modo próprio de se
posicionar sobre o mundo.
Pensar é colocar-se já sobre um limite, é um modo de se des-sujeitar : de compreender o lugar de cada
um no jogo de forças entre o saber do poder e o poder do saber . [slide 15]
A crítica como uma certa “arte da inservidão voluntária”1. E a sua tarefa seria o limite. O lugar onde
nos libertamos das representações e onde aprendemos a interrogar os limites do conhecimento, onde
reconhecemos, como argumentava Michel Foucault, que a “nossa liberdade está mais naquilo que
pensamos do nosso conhecimento e dos seus limites do que naquilo que fazemos, com mais ou menos
coragem”2.
1 FOUCAULT, Michel, “O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung)”. Revista Imprópria Nº1, 1º Semestre, 2012, p.61.2 Idem, p.62.
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5. Era isto que queríamos dizer quando falávamos do Punkto como uma publicação indisciplinada
sobre limites. Mas não só, ressoava também (e ressoa ainda) um certo desencantamento sobre a
compartimentação, a separação e o encaixotamento dos saberes e das práticas: disciplinas confinadas
aos seus jardins mimados do saber , devorando-se a si mesmas. Uma espécie de canibalismo
autofágico disciplinar que transforma os objectos do mundo em simples representações abstractas.
Práticas e saberes elaborando as intermináveis listas da sua história e do seu território. Mas a dúvida
estava sempre aí. Pergunta Jacques Rancière “o que faz com que uma questão seja considerada como
filosófica ou política ou social ou estética [ou, mesmo, arquitectónica, poder-se-ia acrescentar ]?” [slide
16] Responde o mesmo Rancière: «Se a emancipação tem um sentido, este sentido estará justamente
na reivindicação de um pensamento pertencente a todo o mundo, sendo que não há divisão natural dos
objectos de pensamento e que uma disciplina é sempre um reagrupamento provisório, uma
territorialização provisória de objectos e de questões que não têm por si mesmo uma localização ou
um domínio próprio»3.
Se houve algo que procuramos no Punkto foi precisamente escapar a essa divisão das disciplinas, ir ao
encontro desse “ pensamento pertencente a todo o mundo”. E lá onde falávamos sobre pontos, acasos,
destruições, nostalgias não falávamos senão de arquitectura4. É que é preciso falar menos de
arquitectos e mais de arquitectura. E para falar de arquitectura é preciso fazer falar o mundo.
6. Fazendo, então, uma breve sinopse. Punkto: uma publicação indisciplinada sobre limites: da
prática, da teoria, do político e da arquitectura. Portanto, qualquer coisa como uma geografia do dés-
astre, movimentos e errâncias fora de órbita, uma certa arte da fuga e da inservidão voluntária, critica
dos limites e limites das disciplinas. Mas falta ainda fazer falar esta segunda parte: «da prática, da
teoria, do político, da arquitectura» [slide 17]. Outras duas divisões, outras duas cisões. Porque, na
verdade, é preciso ultrapassar este estigma de que há lugares onde se pensa e lugares onde se faz,
sujeitos que pensam e outros sujeitos que fazem, que há uma teoria ou uma história que é tarefa de
alguns e que há uma prática a sério que constrói e se replica. Não há uma teoria antes nem uma
prática depois. Todas as práticas operam sob um determinado paradigma teórico que as conceptualiza,
define, que as territorializa provisoriamente (a arquitectura, por exemplo, não foi sempre vista e
enunciada do mesmo modo, não teve sempre os mesmos objectos, os mesmos instrumentos, os
mesmos modelos de aprendizagem e de percepção do real).
3 RANCIÈRE, Jacques, Et tant pis pour le gens fatigues. Éditions Amsterdam, 2009, p.478.4 Referência aos âmbitos temáticos dos quatro números da Revista Punkto, lançados entre 2010 e 2013.
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Quem diz que recusa a teoria já está a definir um determinado quadro conceptual, já está a teorizar.
Não se pode, por exemplo, afirmar que o projecto não precisa de teoria. Porque estamos sempre a
operar dentro de uma determinada lógica de acção, dentro de um determinado paradigma teórico
vigente. Podemos não querer interrogá-lo, pensá-lo, problematizá-lo, podemos não querer sair dos
limites desse quadro conceptual, mas isso não é recusar a teoria é recusar o pensamento. [slide 18]
7. Mas é preciso dizer que esta cisão entre o fazer e o pensar (ou entre prática e crítica, se quisermos)
veio a revelar-se um mecanismo muito útil para perpetuar uma certa lógica que teima em afirmar que
não existe tal coisa como objectos políticos em arquitectura. [E entramos aqui na terceira coordenada]
Foi-se construindo a noção que a arquitectura operava agora livremente num espaço próprio, neutro,
objectivo e racional, ao serviço do progresso, da civilização e do bem-estar material, para além de
todas as ideologias e de todas as políticas. Mas o espaço homogéneo da objectividade científica da
disciplina parece confundir-se excessivamente com esse espaço de “ pura logística”5 do capital
financeiro: a configuração sem limites do território debaixo de um paradigma de gestão puramente
económico, onde tudo é integrado e absorvido, gerando um espaço homogéneo e sem qualidades,
onde as contradições e as desigualdades da produção capitalista são ultrapassadas (não por serem
resolvidas, mas por serem ocultadas).
Um espaço onde a arquitectura encontrou o seu lugar enquanto mercadoria e bem de consumo prête à
porter – astros solitários e cintilantes. Uma arquitectura na alcova, como já vaticinava Tafuri
evocando Sade6: entretendo-se no cuidado infinito de si, removida de qualquer contexto social,
político e económico; reduzida a exercício de estilo e a uma pura linguagem, conduzida à finíssima
textura das “peles” e dos “envelopes” (como, aliás, defendia Alejandro Zaera Polo, num conhecido
texto publicado na revista Volume7). Infelizmente, temos vindo a aprender que todas essas promessas
de felicidade
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civilizacionais parecem menos direccionadas para a satisfação das necessidades de populações e comunidades, e muito mais para satisfazer as necessidades próprias de reprodução e
expansão do capital e da economia, provocando violentos processos de especulação, expropriação e
privatização, com toda a gama já bem conhecida de consequentes exclusões e desigualdades sociais e
políticas, da China à Europa.
5 Cf. VIRILIO, Paul, Vitesse et Politique. Édition Galilée, 1977.6 TAFURI, Manfredo, “L’Architecture dans le Boudoir: The language of Criticism and the Criticism of Language”, in HAYS, K.
Michael (Ed.), Oppositions: reader , New York, 1998, p.291-316 (Publicado originalmente em: Oppositions 3, 1974).7 POLO, Alejandro Zaera, “The Politics of the Envelope. A Political Critique of Materialism”, in Volume 17, 2008, p.76-95.8 «A beleza não é mais que uma promessa de felicidade», STENDHAL, Do Amor, Relógio d’ Água, Lisboa.
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Um recente artigo de Paulo Moreira no J.A.9 a propósito da demolição de um edifício em obra de
Zaha Hadid, em Sevilha, construído à revelia da população local é um bom exemplo disso mesmo.
Patrick Schumacher, o braço direito da arquitecta iraquiana, defende (e defende-se) dizendo: “Parem
com o politicamente correcto em arquitectura. [...] Os arquitectos são responsáveis pela forma do
ambiente construído, não pelo seu conteúdo”10. Mas isso são apenas manigâncias retóricas, um modo
de salvar a pele e de salvar essa arquitectura da pele. Aliás, essa é já uma separação ideológica: forma
de um lado e conteúdo do outro, prática e teoria. Sempre as cisões e as separações. [slide 19]
E pergunto: entender a arquitectura apenas como forma do ambiente construído não será, afinal de
contas, conduzir a disciplina a uma definição muito empobrecedora de si própria? E o horizonte (ou o
limite) de tal entendimento não será a progressiva conversão da arquitectura numa mera técnica, uma
“prestação de serviços” burocratizada e desumanizada? Contra isso, aliás, contra uma tal ideia de
arquitectura, já Adolf Loos levantava a sua voz em 1910. Denunciando “uma arquitectura que passou
a ser graças aos arquitectos – esses ágeis desenhadores, como Loos os chamava – uma simples arte
gráfica”11.
Mas não se trata de moralismos. Digamos que se há uma potência da arquitectura esta está
precisamente nesse limite entre o dar forma e o fazer falar o conteúdo, no estabelecer com o
programa uma relação crítica de problematização e, até, de resistência e transgressão. O drama, mas
também, toda a potência da arte de construir. [slide 20]
O limite forma-conteúdo é o espaço onde se descobre a condição ética e política da arquitectura. Isto
é, onde esta reconhece que não opera sobre um espaço euclidiano, homogéneo, puramente logístico e
funcionalizante, e que os seus objectos arquitectónicos não são diamantes impolutos ou astros
intocáveis orbitando sozinhos na solidão das folhas brancas, mas pertencem a um território contestado
de corpos e indivíduos, objectos e coisas, grupos e comunidades que têm as suas relações de poder, as
suas exigências políticas, os seus conflitos legais e sociais, os seus desejos e sonhos. Objectos
políticos, necessariamente.
9 MOREIRA, Paulo, “O Efeito Sevilha”, Jornal Arquitectos 250, Maio-Agosto, p.400-403.10 SCHUMACHER, Patrick, Cit in, MOREIRA, Paulo.11 LOOS, Adolf, “Arquitectura” (1910), Ornamento y delito y otros escritos, Editorial GG (1972), p.224.
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A arquitectura é, antes de tudo, aquilo a que poderíamos chamar um regime de partilha e disposição
dos espaços e dos tempos, dos corpos e dos seus lugares, uma forma de recortar e articular o comum e
o próprio, o colectivo e o privado, um modo específico de dividir, compartimentar e hierarquizar os
espaços (sejam eles domésticos ou urbanos), definido regimes de visibilidade (do que é visível, do que
permanece oculto) e regimes de uso (daquilo que é usável e daquilo que permanece proibido). [slide 21]
A potência da arquitectura está aí nesse ponto onde ela é capaz de encontrar a vida. Onde já não se
coloca apenas o problema da forma, mas sim da forma de vida, e onde se reconhece que toda a
estética é já uma estética da existência. E isso é uma questão tanto política como artística. Ter como
objecto a vida, não para a capturar ou aprisionar, mas para a abrir a outras possibilidades de
existência, a outros modos de vida, traçando novas linhas de participação/encontro, e, sobretudo, de
resistência e fuga perante os discursos totalizantes do poder e os seus modos de sociabilização
dominantes.
A arquitectura como uma prática de libertação de espaços, que promova práticas de emancipação e
subjectivação das comunidades, capazes de se oporem a esse espaço sem rostos e sem qualidades da
logística económica, e a todas essas promessas de felicidades brilhando crepuscularmente antes do
desastre.
E cito, novamente, a Susana Caló: “A política faz-se e pratica-se nos espaços da existência como uma
luta pela vida. O direito ao espaço é o direito à participação na invenção de um mundo”12. [slide 22]
8. Para concluir. Digamos que o que temos tentado fazer, de modo tão imperfeito e incompleto, neste
pequeno projecto que dá pelo nome de Punkto, foi tentar orbitar em torno dessas práticas (do
pensamento, da escrita ou do fazer) que contra a catástrofe do tempo presente, opõem uma geografia
do dés-astre, esses múltiplos movimentos fora de órbita, sempre um pouco à margem, esgueirando-se,
desarvorando-se, riscando, e arriscando, “ propiciando a abertura de um espaço”, como escrevia
Herberto Hélder.
Práticas e escritas que reclamam para si esse direito à participação na invenção de um mundo. E,
sobretudo, procurando já não uma arquitectura que desenhe o mundo, mas sim que desenhe com o
mundo.
12
CALÓ, Susana, “Devir Autónomo e Imprevisto. Por novos espaços de liberdade”, in Dossier Devir menor, espaço, território eemancipação social. Perspectivas a partir da Ibero-América. Revista Punkto online. Outubro 2014.