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I UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CI Ê NCIAS JUR í DICAS E ECON Ô MICAS INSTITUTO DE P Ó S-GRADUAÇ Ã O E PESQUISA EM ADMINISTRAÇ Ã O-COPPEAD QUALIDADE TOTAL E BRASIL: uma perspectiva cuural Marcello Eduardo Guimarães Adrião Rodrigues Dissertação apresentada ao COPPEAD como parte dos requisitos necessários para obtenção do grau de Mestre em Ciências (M.Sc.) Professor orientador: Everardo Rocha Rio de Janeiro Novembro/96

QUALIDADE TOTAL E BRASIL: uma perspectiva cultural · de pós-graduação e à elaboração desta dissertação de mestrado. Em seguida, a todos os profissionais, empresários e executivos

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I

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS JURíDICAS E ECONÔMICAS

INSTITUTO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO-COPPEAD

QUALIDADE TOTAL E BRASIL:

uma perspectiva cultural

Marcello Eduardo Guimarães Adrião Rodrigues

Dissertação apresentada ao COPPEAD como parte dos requisitos

necessários para obtenção do grau de Mestre em Ciências (M.Sc.)

Professor orientador:

Everardo Rocha

Rio de Janeiro

Novembro/96

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QUALIDADE TOTAL E BRASIL: UMA PERSPECTIVA CULTURAL

Marcello Eduardo Guimarães Adrião Rodrigues

Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para obtenção do Grau de Mestre em Ciências (M.Sc.).

Aprovada por:

Prof. v rardo Guimarães Rocha P esidente da Banca

Profa. Anoa M",'a cam� COPPEAD

Pfõf. José Carlod dos Reis Carvalho IPEA

Rio de Janeiro, RJ - Brasil Novembro de 1996

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Rodrigues, Marcello Eduardo Guimarães Adrião

Qualidade Total e Brasil: uma perspectiva cultural /

Marcello Eduardo G. A. Rodrigues. Rio de Janeiro: COPPEAD,

1996.

xi. 220p.i1.

Dissertação - Universidade Federal do Rio de Janeiro,

COPPEAD.

1. Organizações. 2. Qualidade Total. 3. Cultura Brasileira. 4.

Tese (Mestr.-COPPEAD/UFRJ) . I. Título

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Aos meus amigos, à minha família, ao meu amor,

enfim, àqueles que a cultura brasileira sabe, de uma

forma toda especial e linda, valorizar

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RESUMO DA DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO COPPEAD/UFRJ COMO

PARTE DOS REQUIS ITOS NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE

MESTRE EM CIÊNCIAS (M.Sc.)

Qualidade Total e Brasil : uma perspectiva cultural

MARCELLO EDUARDO GUIMARÃES ADRIÃO RODRIGUES

NOVEMBRO/1996

ORIENTADOR: PROF. EVERARDO ROCHA

PROGRAMA: ADMINISTRAÇÃO

O objetivo da dissertação é analisar teoricamente a metodologia administrativa "Gestão

pela Qualidade Total", confrontando seus valores com características da Cultura

Brasileira. Dentro deste escopo, o trabalho apresenta mais uma possibilidade de

interdisciplinaridade entre as disciplinas Administração de Empresas e Antropologia Social.

Os elementos da Cultura Brasileira e da Qualidade Total são comparados através de

quatro dimensões: a dimensão econõmica, a dimensão do poder, as relações humanas,

e a dimensão temporal. Demonstra-se com isso que existem concordândcias e conflitos

de significados e que a aplicação das propostas da Qualidade Total no Brasil pode ser

influenciada por peculiaridades culturais. O trabalho demonstra ainda que as

ferramentas interpretativas disponibilizadas pela Antropologia Social. utilizadas criativa e

inovadoramente, podem ser recursos para o estudo das questões organizacionais.

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ABSTRACT OF THESIS PRESENTED TO COPPEAD/UF RJ AS PARTIAL FULFILMENT

FOR TH E DEGREE OF MASTER OF SCIENCES (M .Se . )

Qualidade Total e Brasil : uma perspectiva cultural

MARCELLO EDUARDO GUIMARÃES ADRIÃO RODRIGUES

NOVEMBRO/1996

ADVISOR : PROF. EVERARDO ROCHA

DEPARTMENT: ADMINISTRATION

The objective 01 this dissertation is lo theoretically analyze the Total Quality Managemenl

(TQM), by conlronting and discussing ils values against Brazilian Culture peculiarities. In this

sense, the work suggest a possibility 01 partnership between Business Studies and Social

Anthropology.

Simbolic elements Irom the Brazilian Culture and lrom TQM are compared through lour

dimensions: the economic dimension, the aspects 01 power, human relations and the time

dimensiono By doing 50, some coincidences and conflicts 01 meanings are highlighted.

Moreover, lhe results show thal the direct application 01 TQM tools and theories in Brazil

may suller influence 01 culture idiosyncrasies. Also, the work exemplilies how the creative

and in nova tive use 01 Anlhropological inlerpretalive techniques can help organizational

studies.

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SUMÁRIO

CAPíTULO 1 - INTRODU CÃO 1.1 - A Busca do Conhecimento em Administração 1.2 - Relevãncia do Trabalho 1 .3 - Limites e Objetivos 1 .4 - Estruturação

CAPíTULO 2: O CONCEITO SEMIÓTICO DE CULTURA 2.1 - Conceito Semiótico de Cultura 2.2 - Cultura Global, Subculturas e Cultura Brasileira 2.3 - A Cultura Nacional e o Gerenciamento de Organizações

CAPíTULO 3: BRASil E CULTURA BRASilEIRA 3.1 - Possíveis Recortes de Brasil: Limitações e Possibilidades 3.2 - Visão Histórica do Brasil: Formação Política, Econômica e Social 3.2.1- Regime Monárquico 3.2.2 - Regime Republicano 3.2.2. 1 - República Velha 3.2.2.2 - Revolução de 1930 e o Estado Novo 3.2.2.3 - General Dutra, a volta de Vargas e o interregno de Café Filho 3.2.2.4 - De Juscelino Kubitschek à Revolução de 64 3.2.2.5 - A Ditadura Militar 3.2.2.6 - Nova República; Collor; Itamar e Fernando Henrique Cardoso

3.3 - Visão Sincrônica da Cultura Brasileira 3.3.1 - Determinismos e a Fábula das Três Raças 3.3.2 - Espaços Sociais no Brasil: Casa, Rua e Outro Mundo 3.3.3 - Cultura Relacional e Mediação 3.3.4 - Dramatizaçôes da Cultura Brasileira 3.3.4.1 - Rituais Nacionais 3.3.4.2 - Ritos Cotidianos

CAPíTULO 4: A CULTURA BRASilEIRA EM QUATRO EIXOS DE ARTlCUlACÃO SIMBÓLICA 4. 1 - Eixos de Articulação Simbólica 4.2 - O Brasil e o Eixo temporal: Múltiplas Concepções do Tempo 4.3 - O Brasil e o Eixo Econõmico : Ambiguidade no Produtivismo 4.4 - Individualismo e Estado Nacional: O Tipo Brasileiro de Igualdade

CAPíTULO 5: MUNDO DA QUALIDADE TOTAL 5.1 - Proposta Teórica 5.2 - A Cultura da Sociedade da Qualidade Total: Heróis e Mitos 5.3 - A Temporalidade no Mundo da Qualidade Total: Historicismo 5.4 - Sociedade da Qualidade Total: o Predomínio do produtivismo 5.5 - O Estado como Metáfora do Poder na Cultura da Qualidade Total 5.6 - O Coletivismo no Mundo da Qualidade Total

CAPíTULO 6 : PROPOSTAS E CONCLUSÕES 6.1 - Limitações do Estudo e Oportunidades Abertas 6.2 - Antropologia. Administração, Qualidade Total e Brasil

BIBLIOGRAFIA E NOTAS

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APRESENTAÇÃO E AGRADECIMENTOS

A vIda não é uma festa, nem uma desgraçq mas sim um assunto importante do qual estamos encaITegados e que

devemos resolver com honra (A/exis de Tocquevil/e)

Entre os motivos da escolha do tema desta dissertação de mestrado, estão, com certeza,

fatores pessoais. Sempre tive curiosidade quanto ao Brasil. que às vezes me orgulha e

outras me decepciona. Um país que faz seus cidadãos transitarem entre uma confiança

no futuro e uma vontade de 'ir embora'. Os mesmos cidadãos que, quando distantes,

vagueiam entre uma indescritível saudade - que faz pensar em voltar urgentemente -, e

uma justificável insegurança - que atenua a sensação de traição por ter ido embora.

Brasil que é alvo de tanto amor e de tanta raiva, e que oscila com uma continuidade e

uma facilidade fascinantes entre extremos que qualquer outro país da mundo

consideraria incompatíveis. Escolhi aproveitar este instrumento de aprendizagem, a

dissertação de mestrado, para penetrar neste país de ambiguidades, procurando não

julgá-lo, mas sim entendê-lo, se é que isso é possível.

E nesta jornada, que é primordialmente uma busca pessoal de conhecimento, procurei

interrelacionar esta minha motivação com um tema particularmente polêmico no

universo das organizações: a Gestão pela Qualidade Total (GQT). É a interseção destes

dois mundos que pretendi explorar. E digo "mundos" porque, conforme detalhado

adiante, com um pequeno esforço de relativização antropológica, pode-se "etnografar"

o "mundo da qualidade total", interpretando seus mitos e rituais, decifrando seus valores

simbólicos, estudando a saga de seus heróis, tentando entender a magia que encanta

seus fervorosos adeptos e o feitiço que assusta seus não menos fervorosos críticos.

Este trabalho, é claro, ao estudar o Brasil e a qualidade total estabeleceu um diálogo

com diversos autores de um e de outro dos campos envolvidos. Muitos já se dedicaram, e

se dedicam, a tentar entender - e tentar explicar - o Brasil. Alguns usando criatividade e

"compromisso com a sua particular circunstãncia nacional" (Ramos, 1995), Outros

autores, adequando realidade à teoria, seguindo linhas-mestras filosóficas tão importadas

quanto o modelo administrativo (Gestão pela Qualidade Total) aqui discutido. De outro

lado, a GQT é também muito estudada e sobre ela pesa uma ampla literatura,

Assim, diversas linhas de raciocínio foram consideradas, e a contribuição maior deste

trabalho está em estabelecer, na sua interseção, um limitado, porém novo recorte das

realidades teóricas. Espero que, partindo deste terreno complexo e movediço, possa

apresentar alguns frutos compensadores.

Sem pretensões maiores do que as adequadas a este exercício acadêmico, espero estar

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contribuindo, ao articular, creio inovadoramente, tal metodologia da Administração - a

GQT - com um complexo, rico e multifacetado universo de acontecimento e verificação

humana - a cultura brasileira.

Desta forma, e buscando um sentido relativizador, tomo emprestadas as idéias expressas

nas palavras de James Lovelock (1991). Elas se nutrem do sentido crítico e, a um só

tempo, apontam para a possibilidade de uma produção inspirada na diversidade, no

respeito pela diferença e no desejo da troca intelectual:

(Os cientistas acadêmicos) são limitados pelas regras tribais das disciplinas a que pertençam ( ... ) (a 'crítica dos pares') garante que os cientistas trabalhem segundo o conhecimento convencional. e não conforme a curiosidade ou inspiração que os impulsione. Sem liberdade, eles correm o risco de sucumbir a um elitismo rebuscado e pretensioso, ou de tornarem-se criaturas dogmáticas, como os teólogos medievais ( ... ) o que é daquelas exuberantes figuras romãnticas, os professores malucos, os cientistas pirados? Aqueles que pareciam livres para abranger todas as disciplinas da ciência, sem nenhuma dificuldade, sem nenhum obstáculo? Eles ainda existem e, de certa maneira, estou escrevendo como um desses espécimes raros e em extinção. (s.p.)

Estas idéias reforçam minha crença na transdisciplinaridade: na prática de buscar

respostas em vários "campos de saber". Prática que, espero, está me tornando cada vez

mais um engenheiro-administrador capaz de considerar a alternativa lógica das ciências

humanas. Ou, quem sabe, um administrador-antropÓlogo com conhecimentos de

engenharia. No fundo, o que me importa mais é seguir formando meu arcabouço

intelectual. experimentando um desejo muito humano da procura de explicações.

Este trabalho é também fruto da contribuição de diversas pessoas e instituições que o

tornaram possível. Agradeço, em primeiro lugar, aos contribuintes brasileiros (aqueles

cidadãos que pagam impostos), por viabilizarem o fomento do governo aos meus estudos

de pós-graduação e à elaboração desta dissertação de mestrado.

Em seguida, a todos os profissionais, empresários e executivos que, em conversas informais

me deram várias dicas quanto à dissertação. E também àqueles entrevistados,

especialmente Roberto DaMalla que, durante uma curta passagem pelo Brasil. usou de

seu tempo para cordialmente me receber, vindo da 'rua', em seu paraíso, sua 'casa' no

Jardim Ubá.

Aos professores do COPPEAD/UFRJ e colegas da turma 1994, especialmente à Mestra

Anna Maria, que indicou caminhos alternativos na busca da resolução de alguns de

meus dilemas existenciais e me confirmou a beleza da aprendizagem. Também, a todos

os funcionários, pelos jeitinhos inofensivos com que quebraram meus galhOS sempre que

precisei.

Ao meu orientador Everardo Rocha, pelo interesse e apoio intelectual e moral prestado

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continuamente ao longo da elaboração deste trabalho. Pelo acesso a sua biblioteca

pessoal e por ter me apresentado o pensar relativizador da Antropologia Social.

Principalmente. pela companhia ao longo do processo. numa síntese simbólica do que a

cultura brasileira tem de mais belo, a simbiose positiva - e possível - de amizade e

seriedade.

À Juliana leite, por estar ao meu lado nos momentos finais deste projeto pessoal e, tenho

certeza, daí por diante, com sua meiguice e ternura.

Ao meu irmão Paulo e à Andréia, que, em Portugal. devem estar morrendo de saudades

deste maravilhoso Brasil. Com meu mais especial carinho à minha Vó Bel. a "vovinha". À

minha irmã Ana Christina, por ser a irmã mais doce e carinhosa do mundo, e ao Zé Carlos,

que tanto admiro intelectual e pessoalmente, entre outras coisas por colaborar comigo

através de seus pontos-de-vista macroeconômicos.

Com toda possível ternura e gratidão do universo ao meu pai, Antonio Carlos, e à minha

mãe, Mabel. que sempre estiveram ao meu lado em tudo, especialmente em minhas

jornadas intelectuais. Para vocês não existem palavras, pois sem vocês nada disso seria

possível.

Concluo esta apresentação e sigo os passos de Policarpo Quaresma esperando, um final

mais feliz que o da personagem. Aproveitarei a viagem para obter o grau de mestre e

para atingir, na eterna busca da plenitude intelectual incansável, um pequeno,

passageiro, porém significativo êxtase, comportilhável com aqueles para quem a vida é

um eterno processo de aprendizagem.

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Capí"éu.l.o I :

INTR.O:DUÇA.o

"Um ser humano deveria ser capaz de trocar uma fralda, planejar

uma invasão, abater um porco, pilotar um navio, projetar um

edifício, compor um soneto, fozer um balanço contábil, construir

uma parede, engessar um osso, confortar um moribundo, receber

ordens, dar ordens, cooperar, agir sozinho, resolver equações,

analisar um novo problema, espalhar estrume, programar um

microcomputador, preparar uma refeição saborosa, lutar com

eficiência e morrer galantemente. A especialização é para os

insetos. "

ROBERT A. HEINLEIN

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1 . 1 - A Busca do Conhecimento em Administração

Nenhum homem pode ser um puro especialista sem se" 00 mesmo tempo. e ao estrito senso do termo, um imbecil f8ernard

Shaw}

A humanidade parece estar vivenciando uma transição paradigmática relacionada à

maneira de buscar conhecimentos. O modo reducionista, determinista, cartesiano,

mecanicista de procurar a compreensão dos fenômenos naturais e humanos não está mais

dando conta da complexidade do mundo modemo, que vem desafiando, com problemas

e questões interrelacionados e interdependentes, a capacidade humana de encontrar

respostas.

Trigo (1989) afirma que, no mundo de hoje, complexidades e contradições se avolumaram e

ficaram mais explícitas, que o conceito de crise deixou de ser uma exceção, tomando-se

regra da vida dos homens. Suponho como premissa. então, existir um paradigma

epistemológico declinante. Tal paradigma, segundo Capra (1982), tem suas raízes nas

mudanças revolucionárias na física e astronomia dos séculos XVI e XVII, estampadas,

principalmente, nas obras de Galileu, Newton, Bacon e Descartes. Usando a metáfora do

mundo-máquina, preconizava-se o entendimento do todo a partir de sua decomposição e

do estudo lógico das partes isoladas. Acreditando na certeza quantificável do

conhecimento científico, postulou-se que esta deveria ser expressa na pura linguagem

matemática. Capra (1982) lembra que:

... foi o método de Descartes que tomou possível à NASA levar o homem à Lua. Por outro lado, a excessiva ênfase dada ao método cartesiano levou à fragmentação característica do nosso pensamento em geral e das nossas disciplinas acadêmicas, e levou à atitude generalizada de reducionismo na ciência, a crença em que todos os aspectos dos fenômenos complexos podem ser compreendidos se reduzidos às suas partes constituintes (p.55)

Trigo (1989). discute uma pretensa pós-modem idade que "tem como característica

arrebatar metadiscursos e dogmas estabelecidos" (p. 207). Ele cita a crítica de Karl Popper

ao "otimismo epistemológico" (p. 216) do século XIX, com suas certezas sobre a verdade e o

conhecimento definitivo. Em seguida, ele demonstra o esfacelamento dos meta discursos

construídos por Platão, Aristóteles, Tomàs de Aquino, Com te, Marx e Engels, com suas ofertas

de métodos, fórmulas filosóficas para um futuro melhor do homem: "A implantação prática

dessas teorias foi mostrando seus limites e imperfeições" (p. 215). Campos (1992, 1993)

comenta a influência disto sobre os estudos e práticas de administração :

O desenvolvimento das teorias de administração dentro do paradigma dominante sofreu três limitações, dentre outras, todas decorrentes da suposição mecanicista do universo: o reducionismo, a incompetência para lidar com contradições e a não apreciação da subjetividade, da capacidade essencial dos indivíduos de interpretarem a realidade. (1993, p. 7)

Tais teorias "supunham, ou pretendiam, uma regularidade e uma certeza nas relações entre

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pessoas à semelhança do funcionamento das máquinas" ( 1 992, p . 1 ) . Ela critica o simplismo e

pessimismo de tais abordagens quanto a uma suposta natureza humana, que seria

predominantemente utilitária, preguiçosa, manipulável: "como seria fácil a vida do gerente

na organização, se as pessoas se 'comportassem' no sentido mais tradicional do termo"

(1 992, p. 1 ). Num pensar congruente com este, Hall ( 1 995) diz que:

Much of the literature and thinking about issues 01 diversily carries a strong US legal assumption of 'equality as sameness' . The essence of the US approach has been that everyone is and should be treated the same, and if Vou do not agree I will sue vou. In the sense that sameness is the opposite of diversity, this could actually be seen as an anti-diversity approach. I think there is an evolving European view which says everyone is not the same - and thank godness for that. It would be a dull world if the Italians behaved like the British. A Dutch participant on one of our training programmes said : 'Sometimes when I hear my company talk about harmonisation, I think they want us ali to play the same note. Well, I am a musician, and let me tell vou that harmony doesn ' t mean that: it means that we ali play different notes, but together we sound beautiful' (p.25)

Capra ( 1 988) propõe uma ampliação epistemológica nos moldes vislumbrados pelo físico

Geoffrey Chew em sua teoria bootstrap - a ciência futura como uma rede interligada de

modelos mutuamente consistentes, limitados e aproximados, nenhum pretensiosamente

imutável, nem baseado em qualquer fundamento firme. Uma ciência que " iria além das

distinções disciplinares convencionais, recorrendo a qualquer linguagem que fosse

adequada para descrever aspectos diferentes do tecido da realidade" (p.56).

Respeitar a multidimensionalidade do real não impede a análise-tentativa na busca do

conhecimento, contanto que se procure valorizar a reprodução da totalidade na parte, e

que se preserve uma postura consciente quanto a transitoriedade, questionabilidade e

falibilidade da criação intelectual. Esta visão é condizente com a proposta de Trigo ( 1 989),

citando Popper, para que predomine o realismo epistemológico, pois "é possível agir no

mundo mesmo sem saber a verdade sobre ele ( ... ) podemos identificar quando estamos

errados, podemos tentar prever as consequências de nossas opções" (p.21 6). Para tal, seria

necessário utilizar ao extremo a capacidade humana de criticar tudo, sem desprezar a

tolerância e a paciência durante a construção de um sistema de leitura, mesmo

incompleto, deste mundo.

A ciência pode se aprimorar, abandonando teorias que se tornem obsoletas, substituindo

(ou ampliando) as velhas teses por outras que conservem seu caráter conjecturaI. Com esse

método a certeza é substituída pelo progresso científico. Os dogmas e parâmetros fixos são

trocados por conceitos mutáveis e pela possibilidade de o novo ser cotidianamente

encontrado na realidade. Os parâmetros se tomam modulares, em alguns casos até mesmo

descartáveis. É a epistemologia dos fast-food e dos shopping-centers. Etérea e bela como o

laser refletido na névoa provocada pelo gelo seco ( . . . ) a margem de respostas convive com

a imensidão de possibilidades. (Trigo, 1 989, p.21 6) Por tudo isso, Campos ( 1 993) propõe aos

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gerentes e estudiosos de administração um "pluralismo teórico" (p.3) concomitante à

"modéstia cognitiva" e à "humildade profissional" (p.1 4).

Este contexto de mudança no modo de buscar conhecimento impacto as práticos e

estudos de administração. Dentro deste panorama, pretendo emoldurar meu trabalho.

Nesta tentativa, ao aplicar o ferramental disponibilizado pela Antropologia Social, desejo

explicitar mais um ponto da relação interdisciplinar entre Antropologia e Administração,

agregando conceitos ao arcabouço de conhecimentos transdisciplinares.

1 .2 - Relevância do Tema e Delimitação do Trabalho

Na verdade, nôo importa o número de pessoas que possam vir a ler meu trabalho. A relevôncia de um trabalho se define muito mais em termos de comprometimento do pesquisador do que

pela amplitude de leitores que ele possa alcançar (Neiva Marques)

Bethlem ( 1 989, p .2 1 6) diz que "em um país quase sem estatísticas e em que as que existem

não são confiáveis, temos de repousar em nossas observações, mesmo sabendo-as

estatisticamente viciadas". Ligo isso ao que dizia Malinowsky ( 1 984) sobre "fenõmenos de

suma importãncia que de forma alguma podem ser registrados com o auxílio de

questionários ou documentos estatísticos, mas devem ser observados em plena realidade."

(p.29). Estas idéias nos ajudam a refletir sobre o fato de que os resultados de ações

gerenciais orientadas para a implantação da famosa Gestão pela Qualidade Total podem

diferir do planejado, não sendo a prática administrativa simples como pretende a

elaboração de "modelos" ou "pacotes" pretensamente "efetivos" em qualquer ambiente

organizacional ou nacional.

Tal situação se complica frente à crescente complexidade do mundo e às inúmeras

propostas metodológicas que aparecem como um leque de opções, respondendo à

demanda por mudanças. Sei que os executivos têm que atuar com rapidez frente à

turbulência do ambiente empresarial. Mesmo assim, ciente da carga informacional à qual

estão submetidos os decisores, soa-me paradoxal que executivos de grande capacidade

intelectual continuem embarcando nos chamados "modismos empresariais" e acreditando

neles como panacéias. A quantidade de recursos escassos dispendida por pessoas

normalmente tão cost-conscíous na busca (melhor dizendo, na compra) de "milagres

organizacionais" é espantosa, principalmente quando confrontada com resultados que

podem ser medíocres ou efêmeros, quando não opostos ao que se esperava.

Fetue ( 1 995) corrobora com esta constatação quando diz que a cientificidade de diversos

modismos lançados no mercado "está longe de apontar resultados inequivocamente

positivos ou duradouros, ainda que consideremos apenas os indicadores financeiros como

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critério de desempenho das organizações"(pA) .

Contudo. meu intento não é negar a existência de "casos de sucesso"; não é inviabilizar a

aplicação dos conceitos e ferramentas da Qualidade Total na administração de empresas

brasileiras. Pretendo. sim. buscar um entendimento quanto a algumas facilidades e

dificuldades que podem ser encontradas quando da operacionalização de filosofias

gerenciais "universais". num espaço social particular. com suas respectivas especificidades

simbólicas. Ou seja. pretendo introduzir um novo ângulo de visão sobre o assunto Gestão

pela Qualidade Total. potencializando um uso mais comedido e bem-direcionado de

recursos governamentais e empresariais.

Existe uma interatividade entre os modismos e o "momento" da organização (Fetue. 1 994)

que pode ser transportada para o nível de cultura nacional. Fetue alerta quanto "aos riscos

da crença em 'receitas mágicas' da felicidade gerencial" (p.89) . Quero ir além do discurso

dos "consultores-gurus"I que normalmente focam indicadores gerenciais limitados e de

curto prazo (via de regra só os quantificáveis) , sem atentar para impactos negativos sobre

aspectos organizacionais intangíveis de longo prazo. Fetue ( 1 995, p.6) lembra que "os

modismos não caem em espaços vazios de poder e cultura; já que toda organização possui

a sua história, eles também deixam marcas na construção do tecido organizacional".

Morcas drásticas podem ser, por exemplo, a sensação de falta de consistência e a perda

de credibilidade na alta administraçã02.

Creio profundamente que nós, administradores brasileiros. precisamos estar cada vez mais

abertos a uma característica antropológica: a capacidade de relativizar as sensações de

estranhamento, de introduzir a dúvida sistemática que suspende as verdades da rotina e do

senso comum. Deveríamos nos sentir obrigados a questionar onde supúnhamos existir o

saber, a duvidar onde supúnhamos existir o absoluto, a indagar onde supúnhamos ter a

resposta aos nossos problemas de gestão. Daí. nas profundezas destas inquietações, talvez

pudéssemos chegar mais próximos de algumas das sempre incompletas respostas.

Meu trabalho vem, também, se juntar a outros referentes ao tema GQT. Este tema tem sido

matéria de ocupação tanto de acadêmicos e executivos, quanto dos próprios governos

nacionais. Isto é demonstrado pela exigência de certificação ISO 9000 para produtos

importados (feita primordialmente pela Comunidade Européia) e pela criação dos prêmios

IEsta designação não é minha. Ela me foi apresentada em conversas informais com executivos e donos de empresas. Obv.iamente não representa a totalidade dos profissionais de consultoria do mercado, mas reflete uma decepção de empresários e executivos com alguns resultados, provavelmente decepcionantes que determinados consultores vêm realizando.

'Quanto a este aspecto, gostaria de salientar que o mesmo foi amplamente abordado no programa de Mestrado Coppead, especialmente durante as cadeiras de "Comportamento Organizacional", com a professora Anna Maria, de "Gerência de Recursos Humanos", com o professor Gabriel G. da Fonseca e no momento da simulação de negociação sindical do "Jogo de Empresas", com O Prof. César Golçalves.

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Deming, no Japão; Malcolm Baldrige, nos EUA; e Prêmio Nacional da Qualidade, no Brasil.

Meu enfoque, entretanto, deseja considerar os aspectos culturais, que só recentemente vêm

sendo incorporados às práticas gerenciais. Por este ãngulo, este trabalho é um acréscimo

àqueles que buscam conhecer peculiaridades do gerenciamento no contexto brasileiro.

Bethlem ( 1 989, p.240) diz que "o conhecimento da cultura é crucial. Temos por isso de

transferir muitos de nossos antropólogos das tribos indígenas para as empresas e para as

organizações particulares, estatais, mistas". Para o autor, no conhecimentos em

administração, existem conceitos e processos universais, independentes da cultura, e há

outros que são dependentes. Creio serem poucos os exemplos de não-interferência cultural

e, conforme procurarei demonstrar adiante, a GQT provavelmente não é um deles.

Nesta linha, quero abrir um pouco mais o leque de alternativas brasileiras para o estudo da

administração e, com isso, diminuir a necessidade do uso de exemplos, casos, leituras

importadas de outros ambientes organizacionais com características distintas do nosso e

assim oferecer uma pequena contribuição para consolidar a massa crítica, visando novos

desenvolvimentos quanto ao estudo de Administração e de Organizações.

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1 .3 - Limites e Objetivo

o presente projeto de trabalho envolve questões complexas. Em primeiro lugar, preciso

entender o Brasil e a cultura brasileira. É uma tarefa árdua: há questionamentos, críticas,

opiniões e debates intelectuais sobre nossa sociedade por todos os lados. Por outro lado,

alguns desafiam a validade de falar na "cultura" de um país, num mundo globalizado, ou,

ao menos, ocidentalizando-se. Como outra face deste mesma moedo, há defensores da

mesma impossibilidade, não pela globalização do mundo. mas sim pela existência de

particularidades regionais e de classes sócio-econõmicas nas "sociedades complexas". Ou

seja, enquanto uns focam na "macro-civilização ocidental" , se estendendo pelo globo e

perpassando as diversidades existentes, outros afirmam que as diferenciações locais ou de

classe dificultam falar de "cultura brasileira".

Como se não bastasse isto, existe a velocidade atual de troca simbólica que o mundo

tecnológico impõe. Isto leva o grau de contato entre valores, símbolos, significados de

"sociedades" diferentes - que sempre existiu em escalas não-planetárias (Lévi-Strauss, 1 952) -

a um patamar muito mais frequente e intenso, podendo gerar alterações imprevisíveis em

qualquer conjunto simbólico, em qualquer cultura.

Outra dificuldade é definir a GQT. Embora seja uma filosofia pretensamente "universal",

existe um relativo grau de afastamento (embora não necessariamente discordãncia) entre

autores quando se procede a um aprofundamento. Para exemplificar cito que Pereira ( 1 993)

sumariza diversos "métodos de implantação da Qualidade Total". Procurarei. então,

destrinchar este grau de afastamento, buscando uma estrutura básica por trás dos diversos

discursos sobre GQT.

É importante ressaltar que os dois assuntos que pretendo estudar - Brasil e Qualidade - são

complexos e dão margem a perdas de foco. Por isso, minha preocupação constante será

redirecionar definições e reelaborar fronteiras, chamando atenção para os limites do estudo.

Assim, ao falar de "cultura brasileira" , "GQT" e suas possíveis interligações, estarei redefinindo

fronteiras, evitando exagerar em desvios improdutivos. Este cuidado em definir o espaço de

trabalho tem seu preço: alguns aspectos podem passar despercebidos. Como nos ensina

Geerlz ( 1 973): "A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais

profunda, menos completa." . E o viés da Antropologia é o de ser "uma ciência cujo

progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento de

debate." (p.39)

Com isto quero dizer que assumo a vocação interpretativa da Antropologia, a sua

predisposição à critica, a sua consciência das limitações intelectuais na apreensão da

totalidade do real. Estou certo de que, assim, arcarei com custos menores do que aqueles

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presentes nas visões "positivistas", de "modelos prontos" e "determinismos" administrativos,

que não aceitam que a prática gerencial nada mais é que uma atividade contextual e

dinãmica por excelência.

Outro ponto importante que devo ressaltar de início é que muitas avaliações críticas têm

sido efetuadas quanto aos "modismos empresariais" como pacotes administrativos à venda

no mercado com efetividades questionáveis (Fetue, 1 995; Ávila, 1 995) . O caminho de minha

crítica é, em suas premissas, similar. Entretanto, procurarei atuar num espaço nacional e não

organizacional. Pretendo comparar características da GQT e da cultura brasileira a nível do

simbólico, utilizando categorias amplamente discutidas por estudiosos reconhecidos no

campo da Antropologia Social.

Em termos resumidos, minha discussão segue a linha que entende a GQT como um padrão

administrativo que flaresceu em uma cultura nacional extremamente particular. tendo,

posteriormente, emigrado para o resto do globo. A crítica é, então, feita à transposição de

premissas entre nações sem maiores análises quanto às imposições ou restrições simbólicas,

quanto às elaborações que diferentes sistemas de significados nacionais pudessem realizar

sobre os mesmos elementos concretos.

Definida minha perspectiva quanto aos limites do estudo, quero explicitar seus objetivos

acadêmicos. Um deles consiste em contribuir para ampliar as possibilidades de parceria

entre a Administração e a Antropologia, respondendo a uma efetiva demanda causada

pela complexidade da estrutura organizacional contemporânea.

Espero também estar colaborando com a corrente que defende a necessidade de

"substituirmos importações" quanto estudo e ensino da Administraçâo no Brasil, revertendo

nossa tendência ao "etnocentrismo às avessas", que, preconceituosamente, renega o que

nosso, em favor mesmo do que é inefetivo, mas estrangeiro.

Como objetivo intelectual, tenho a explicitaçâo, em um grau de profundidade simbólica, de

alguns pontos onde "cultura brasileira" e "Gestâo pela Qualidade Total" se interligam e se

interpenetram. Através de um processo interpretativo, típico da Antropologia, quero enfocar

as relevâncias, dificuldades e possibilidades do uso, num Brasil cheio de idiossincrasias, de

mais um dos vários modelos propostos como a panacéia dos problemas gerenciais.

Seria extremamente pretensioso definir a viabilidade ou inviabilidade da GQT no Brasil. Na

verdade, seria impossível; nunca se dispõe da totalidade de informações sobre sucessos e

fracassos. Mesmo as definições de sucesso e fracasso sâo relativas, já que é impossível

calcular, por exemplo. o custo de oportunidade dos investimentos em Qualidade Total para

o país. para as empresas. para os empregados. ou para os consumidores. Isto se

considerarmos apenas a dimensâo financeira na definiçâo de "sucesso".

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Também não pretendo cair no mesmo erro que critico e determinar um modelo de GQT

adaptado à cultura brasileira: aí eu estaria desprezando idiossincrasias organizacionais e,

pior, a noção da realidade como humana e dinamicamente (re)construída. Espero, sim,

propor um novo recorte da realidade brasileira e administrativa, explicitando imagens e

sombras que alguns elementos da GQT adquirem frente à prática social brasileira e vice­

versa. Desta forma abrirei caminho para uma futura exploração do modo como estes dois

mundos se encontram.

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1 .4 - Estruturação

Neste capítulo um, localizo o trabalho dentro do campo de estudos em Administração, bem

como justifico sua relevãncia, seus limites e objetivos.

Nos capítulos dois, três e quatro realizo o levantamento bibliográfico, inventariando

informações relevantes para o posterior desenvolvimento teórico. Ressalto que isto foi feito

bem de acordo com o estilo antropológico de minimizar "etnocentrismos". Para legitimar a

pesquisa sobre cultura brasileira utilizei como ponto de partida a reportagem da revista Veja

(23/1 1 /94), na qual quinze intelectuais brasileiros escolheram os melhores livros do Brasil. A

bibliografia das obras recomendadas nas listas de cada intelectual. com especial atenção

àquelas citadas por vários deles, foi usada para selecionar novas referências, sempre com a

preocupação de legitimá-Ias por especialistas.

Quanto ao material sobre administração de empresas e GQT, procurei englobar livros,

revistas especializadas, jornais e revistas não-especializados. Este "trabalho de campo

bibliográfico" se uniu aos meus conhecimentos préVios - como "nativo" do mundo da

Qualidade Total - na tentativa de perceber a existência de uma estruturação simbólica

básica, que pudesse ser designada como "cultura da Qualidade".

No capítulo dois, defino o conceito de cultura utilizado, já que tal palavra evoca diversos

significados: localizo a "cultura brasileira" dentro de um contexto de mundo globalizado: e

demonstro a importãncia deste conhecimento quanto às práticas gerenciais.

O capítulo três ilustra a aventura que é entender o Brasil a partir de várias "trilhas teóricas",

sendo que o conjunto me forneceu a base de conhecimentos, o ponto de apoio, para

posterior síntese, realizada no capítulo quatro.

No capítulo cinco, o Mundo da Qualidade Total é explorado. Procuro elaborar uma

"pequena etnografia" deste universo, observando-a dentro de uma perspectiva oferecida

pelos mesmos elementos usados para "materializar em palavras" (se é que isto é possível) a

cultura brasileira.

O capítulo seis conciui a tese e é o ponto de interseção das discussões anteriores. É o

caldeirão de informações onde equaciono cultura brasileira e Gestão pela Qualidade Total.

Nele são sintetizadas minhas hipóteses de interligação simbólica entre a GQT e a cultura

brasileira, buscando a apreensão de informações, significados e, quando possível, respostas.

Deste debate derivam as conciusões e propostas de novos estudos.

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Ca.pí-h11o 2: :

CON"CEITO SElVIIÓTICO DE CUL'rURA

"Além do esboço firme da constituição tribal e dos atos culturais

cristalizados que formam o esqueleto. além dos dados referentes à

vida cotidiana e ao comportamento habitual que são. por assim

dizer. sua carne e seu sangue. há ainda a registrar-se-Ihe o espírito

(. . .) interessamo-nos. sim. apenas por aquilo que eles sentem e

pensam enquanto membros de uma dada comunidade. Sob este

ponto de vista. seus estados mentais recebem um certo timbre.

formam-se estereotipados pelas instituições em que vivem pela

influência da tradição e do folclore. pelo próprio veículo do

pensamento. ou seja. a língua. O ambiente social e cultural em que

se movem força-os a pensar e a sentir de maneira especifica (. . .) Se

então o analisarmos através de padrões morais. legais e

econõmicos. também essencialmente estranhos a ele. o resultado

de nossa análise não passará de uma caricatura da realidade (. .. )

não pretendo introduzir categorias artificiais e estranhas à mente

nativa. Nos relatos etnográficos não pode existir nada mais falso que

a descrição dos fatos das civilizações nativas nos termos de nassa

própria civilização. ( .. . ) a que me interessa realmente na estuda da

nativo é sua visão das caisas. sua Weltanschauung. a sapra de vida e

realidade que ele respira e pela qual vive. Cada cultura humana dá

a seus portadares uma visão. da mundo. definida. um certo gasto

pela vida. Nas viagens pela história humana e pela superfície

terrestre. é a passibilidade de ver a vida e a mundo de vários

ângulas. peculiar a cada cultura. que me encantau mais que tudo..

e me despertau a deseja sincero de penetrar noutras culturas.

campreender autras tipas de vida "

BRONISLAW KASPER MALlNOWSKY

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2.1 - Conceito Semiótico de Cultura

Considero imprescindível, logo de início, definir a conceituação do termo "cultura", para

limitar os trilhos que, com bifurcações, atalhos e retomadas, indicarão a trajetória deste

trabalho. Dois comentários de Latouche (1 994, p.47) são brilhantemente representativos da

dificuldade e da importância deste início: (I) "A palavra 'cultura' possui tantas acepções e

é utilizada em contextos de tal forma diversos, com conotações tão variadas que provoca

uma multidão de mal-entendidos"; (2) "a polissemia da palavra 'cultura ' é a causa de seu

sucesso". Para atingir a definição que me guiará, vale a pena relembrar as modificações

que este conceito vem sofrendo em seu sentido antropológico.

Medeiros ( 1 9 9 1 ) , relembra o conceito -caracteristicamente etnocêntrico- formulado por

Tylor, em 1 87 1 , que considerava a cultura um fenômeno natural, e explicava as diferenças

entre as sociedades pelo ponto em que estas se localizavam numa escala evolutiva do

desenvolvimento humano. Os critérios de alocação seriam comportamentos e instituições

sociais definidos segundo os valores do observador. Isto é, se fosse possível tirar um retrato

estático, momentâneo, do mundo, todas as culturas estariam alocadas sobre um mesmo

eixo temporal-histórico, algumas numa posição mais atrasada, num estágio pelo qual já

haveriam passado as sociedades mais avançadas que estudavam o assunto. A escola

evolucinista, procurava, naquele momento, superar a sensação de estranheza dos primeiros

contatos com civilizações totalmente estranhas aos observadores europeus. (DaMatta, 1 98 1 )

Medeiros ( 1 99 1 ) , continua seu inventário descrevendo a reação difusionista às teorias

evolucinistas. Nesta linha, ela destaca a afirmativa de Franz Boas, em 1 896, segundo a qual

cada sociedade seguiria seu rumo, a partir de processos históricos idiossincrásicos.

Caracterizando Boas como "gênio inquieto, curioso, instigante, procurou investigar muitas

áreas do conhecimento humanístico dando toques de primeira linha em inventividade e

criatividade" (p.39). Rocha ( 1 994) ilustra as diferenças entre difusionismo e evolucionismo:

para o evolucionismo a história tinha ' H ' maiúsculo, era uma única para toda a humanidade .. . O longo caminho da história, que a hipótese evolucionista criava, era como uma escada onde cada sociedade acumularia 'progresso', desde a mais primitiva, até o dito homem 'civilizado' . Por outro lado, o pensamento difusionista propunha o estudo do história concreta de cada cultura, os processos próprios de mudança, troca e empréstimo que as caracterizariam. É uma história com 'h ' minúsculo, de cada cultura particular, específica. (p.57)

Na época difusionista, entretanto, não fora ainda "cristalizado" um novo conceito de cultura

que substituísse o superorganizado conjunto de idéias evolucionistas (Rocha, 1 994), mas na

passagem do século XIX ao século XX, as ciências sociais ganharam impulso com os

desenvolvimentos de Durkheim, Radcliffe-Brown e Malinowski. O primeiro, ainda que sem

superar a oposição entre individual e coletivo, nem aquela entre um ponto de vista histórico

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e um ponto de vista funcional (lévi-Strauss, 1 9 86), mostrou ser impossível a explicação do

social (todo) unicamente pelo individual (parte). Ao vislumbrar e propor a totalidade social

como drama, o "social" como um plano capaz de formar-se a si próprio, tendo suas próprias

regras e, por tudo isso, possuindo um dinamismo especial, Durkheim superou a visão dos

macroprocessos sociais como um simples somatório de desejos de atores individuais

(DaMatla, 1 981 , p.47). Várias portas foram abertas para os cientistas. DaMatla ( 1 990), por

exemplo, estuda o Brasil, lembrando que o verdadeiro plano social não deve ser reduzido a

uma realidade individual, psicológica, geográfica, ecológica ou teológica, pois o social

existe num plano próprio, além do estímulo material.

Já a obra de Radcliffe-Brown foi marcante por propor a fuga do eixo histórico na

interpretação da realidade social. Rocha( 1 994) lembra que Radcliffe-Brown "discordou

desta vinculação que existia entre a compreensão do presente de uma cultura e o estudo

de seu passado"(p.58), e exalta as pOSSibilidades abertas à Antropologia pelo uso da

perspectiva sincrônica de estudo social. Ele diz que as idéias de Radcliffe-Brown liberaram a

explicação antropológica do 'outro' de uma noção etnocêntrica de tempo linear, histórico,

produzida na sociedade do 'eu' ."

Declinava o etnocentrismo evolucionista e consolidava-se a prática relativizadora que hoje

é vista como imprescindível, como símbolo-maior da Antropologia Cultural. Paralelamente,

inaugurava-se, no trabalho de Malinowski ( 1 9 84), o "trabalho de campo" - novo ferramental

antropológico que prega o convívio e debate de idéias com os próprios "nativos" da

sociedade estudada como forma menos preconceituosa e mais relativizada de entender

costumes, movimentos sociais e tradições, enfim, sua cultura . Entende-se, daí, que a

relevância explicativa de cada cultura é determinada pelas atividades, ou seja, pela

constância e continuidade dos peculiares comportamentos de seus membros.

o modo de encarar a ciência antropológica, posterior ao difusionismo, foi categorizado

como funcionalismo. DaMatla ( 1 989) procura corrigir distorções teóricas, liberando o

funcionalismo das acusações a respeito de atitudes doutrinárias postulantes de um

"equilíbrio entre todas as partes ou esferas de um sistema social". Na verdade, "a

declaração de que tudo numa sociedade tem um sentido não autoriza a teoria de que

tudo está em equilíbrio". (p. 1 02-1 04)

Eunice Ribeiro Duhram ( 1 984), introduzindo a edição brasileira de Malinowsky ( 1 984), retrata

o postUlado da integraçâo funcional dos elementos culturais, particularidades e

especificidades de cada sociedade. Malinowsky interpretava as instituições, não como o

somatório de aspectos estruturais, mas sim como a síntese de tais elementos, tais dimensões

significantes :

O conceito de função aparece como instrumento que permite reconstruir, a partir dos dados aparentemente caóticos que se oferecem a um pesquisador de outra

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cultura, os sistemas que ordenam e dão sentido aos costumes nos quais se cristaliza o comportamento dos homens (Malinowsky, 1 984, pX).

Ou seja, o funcionalismo foi um passo que intensificou a consideração e valorização de

diversas lógicas, respectivamente consistentes com as instituições das sociedades humanas

estudadas. Desde então, até o posterior estruturalismo de, por exemplo, Lévi-Strauss e Louis

Dumont, tudo passou a estar submetido à critica (DaMatta, 1 98 1 ) . O estruturalismo levou ao

extremo o respeito pela diversidade humana nas escolhas simbólicas. Fez isto ensinando a

busca da semelhança na diferença, defendendo que a crítica intelectual e o acirramento

do debate entre os estudiosos gera frutos referentes à ampliação contínua do entendimento

de cada termo, estrutura, elemento e, principalmente, de sua relação com o todo social.

No caminho acima descrito, intensificava-se a percepção da importância do termo

"cultura" para o entendimento do "ser humano" :

O aspecto 'instintual' do organismo do Homo Sapiens, comparado com o dos demais animais superiores, é frouxamente organizado, fornecendo apenas informações gerais para o comportamento. O essencial inacabamento biológico do ser humano após o nascimento, sua plasticidade e abertura para o mundo, levam á conclusão de que a Cultura ergue-se como instância propriamente humanizadora, que dá estabilidade ás reações comporta mentais, e funciona como mecanismo adaptativo básico da espécie. Mas essa estabilização se caracteriza por ser não-determinada universalmente. A humanização do homem se faz de diversas maneiras possíveis (Velho, 1 978, p.5)

Retomando a discussão da postura estruturalista, vemos que ela é caracterizada pelo

desafio aos conceitos de "natureza humana" e de "substãncia básica do ser humano". Esta

descrença incrementa a fé na diversidade das possibilidades humanas e induz à utilização

do "inconsciente antropológico", proposto por Lévi-Strauss. DaMatta ( 1 98 1 ) o traduz como o

local onde se pode realizar a consciência sociológica das diferenças entre relações e

instituições humanas, um campo de virtualidades, vazio de conteúdo e de tempo. O jogo do

antropólogo estruturalista consiste em identificar, descobrir pontos críticos de uma dada

instituição - suas invariantes e seus traços distintivos - para, em seguida, conduzir tais pontos

críticos poro tal zona deslocada, o inconsciente sociológico. Ali, "naquele trecho vazio de

compromissos históricos, onde o significado é dado por posição, o observador pode

contrastar esses pontos críticos com outros pontos críticos de outras instituições de sua ou de

outras sociedades"(p.1 1 5) .

No momento histórico entre o meio e o final do século xx. quando há o aprofundamento

das informações sobre "outras sociedades", e a aceitação e respeito a outras

"possibilidades simbólicas" começam a ser defendidos, surge, meio que paradoxalmente, a

discussão sobre a ocidentalização total do mundo, sobre a emergência da cultura global.

Talvez isto esteja relacionado ao fenômeno identificado por Polany ( 1 980) e Latouche ( 1 994) :

a compartimentalização da vida social que levou ao descolamento e predomínio da

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dimensão econômica em relação a outras facetas da sociedade. De qualquer modo,

Latouche ( 1 994, p.47) demonstra como esse fenômeno de complexificação da sociedade

gerou a multiplicação de concepções em torno do termo "cultura" .

É este o campo, já arduamente semeado e fertilizado por vários pensadores, de onde retiro

o conceito de cultura tal como será utilizado no restante do trabalho. O conceito que

aplicarei no universo das organizações é aquele que define cultura como o conjunto de

signos-guia da ação de um grupo social. É a cultura como diretriz simbólica continuamente

apreendida e reformulada por práticas sociais. É a noção de cultura que Rocha ( 1 994)

compreende como um sistema de significação - o conceito semiótico de cultura

O conceito de cultura que eu defendo ( . . . ) é essencialmente semiótico. Acreditando como Max Weber que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise, portanto, não como uma ciência experimental a procura de leis, mas como uma ciência interpretativa a procura do significado (Geertz, 1 978).

Respeitando a diferença e acreditando que a diversidade de significados é algo inevitável.

buscarei minimizar meus etnocentrismos. Tomo "cultura" como um conceito acima das

dicotomias certo/errado, bom/ruim. Encaro "cultura" como sendo o mapa simbólico, o guia

(lembro que apenas um guia, não uma imposição determinística) dos membros de

determinada coletividade. "Cultura" que, sendo fenõmeno sociológico universal. é

indispensável à existência do Homo Sapienscomo tal.

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2.2 - Cultura Global, Subculturas e Cultura Brasileira

o conceito semiótico de cultura relativiza e nos leva a pensar nos limites implicados nas

culturas concretas. Culturas locais, planetárias, nacionais são questões importantes e

Hobsbawm ( 1 994. p.24) diz que "o globo é, agora, a unidade operacional básica, e

unidades mais velhas como as 'economias nacionais ' , definidas pelas políticas de estados

territoriais, estão reduzidas a complicações das atividades transnacionais." Rocha ( 1 994)

considera que uma aldeia global está emergindo, apoiada numa cultura planetária que se

espalha através da comunicação de massa. Velho ( 1 981) diz que muitos sistemas simbólicos

são independentes do pertencimento a uma mesma sociedade :

O fato de dois indivíduos pertencerem à mesma sociedade não significa que estejam mais próxímos do que se fossem de sociedades diferentes ( ... ) Expressões ou termos como burguesia internacional, unidade internacional proletária, tendem a sublinhar a importância de experiências e interesses sociológicos e históricos comuns em detrimento das noções de identidade e cultura nacional (p. 1 24- 1 25) .

Isto torna desnecessário estudar o impacto de diferenças nacionais nas práticas

administrativas? Um olhar desatento a estes argumentos pode gerar uma séria falácia: a do

fim da diversidade. Realmente, os rápidos e contínuos desenvolvimentos tecnológicos

permitem a interação de povos geograficamente distantes e se efetivamente temos uma

civilização pós-industrial em processo de planetarização de sua cultura. Entretanto, parece­

me mínima ou, na melhor das hipóteses, distante no tempo, a possibilidade do equilíbrio

mitológico, ritualístico, de imagens e valores num nível que permitiria identificar uma mesma

rede de significados, um mesmo código simbólico afetando identicamente todos os Seres

Humanos.

Acredito, sim, estar-se vivenciando a intensificação de um fenõmeno já descrito, a respeito

de sociedades humanas em contato :

Operam simultaneamente, nas sociedades humanas, forças que atuam em direções opostas, umas tendendo para a manutenção e mesmo para a acentuação dos particularismos, outras agindo no sentido da convergência e da afinidade, que são atualizadas sempre que estudamos formas concretas, hístoricamente dadas, de grupos instituições e relações sociais ( Lévi-Strauss, 1 952).

Fenõmeno que o próprio Lévi-Strauss ( 1 952) considera limitado: a disseminação geral de

valores no sentido desta "cultura global" seria, necessariamente, modificada de modo

aleatório, influenciada por tantos povos quantos forem os atingidos no processo de

globalização cultural.

Mais ainda, atento para as diferentes perspectivas da duração do tempo (Rocha, 1 994,

p. 1 1 0- 1 1 2) e, daí, defendo que, mesmo que tal processo de homogeneização seja

significativo numa escala de tempo geológica ou sociológica, ela torna-se

inaceitavelmente grande numa escala de tempo administrativa.

1 4

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Um excelente resumo da situação é o que identifica a ampliação da definição de cultura,

com a incorporação em seu significado dos próprios processos de integração e

desintegração cultural em níveis interestaduais e transnacionais. Neste caso, poder-se-ia

destacar macro processos culturais trans-sociais, com relativa autonomia a nível global -ele

chama de sistemas emergentes de terceiras culturas- que constituem canais para toda a

sorte de fluxos culturais diferentes (Featherstone, 1 990).

Ou seja, uma cultura global representaria, em determinados espaços ou áreas sociais, um

certo conjunto restrito de significados identicamente disseminados, mas, de forma alguma,

obliteraria os espaços para peculiaridades simbólicas nacionais, ou mesmo regionais: "Essas

áreas culturais, naturalmente, constituem um clamor longínquo do ideal de uma cultura

global que irá sobrepor-se a muitas culturas nacionais que ainda dividem o mundo de forma

tão retumbante ( . . . ) culturas nacionais ainda bastante compactas e frequentemente

renovadas" (Anthony Smith, in Featherstone, 1 990, p.20 1 )

Johann Arnason (in Featherstone, 1 990, p,238), discutindo a questão do nacionalismo,

recomenda considerar que a globalização de modo algum é sinõnimo de

hornogeneização, mas que, pelo contrário, ela deve ser entendida como uma nova

estrutura de diferenciação. Ele acredita que existe, como contraponto à investida de

homogeneização, uma tentativa de neutralização, em nível nacional. Enfim, a nação seria

uma "forma moderna específica de identidade coletiva; seu papel histórico é mediar entre

as orientações particularistas e universalistas da sociedade moderna" (p.223).

Não nego, portanto, que haja, cada vez mais, a disponibilização de acesso, por todos os

cantos da Terra, a objetos materiais, a elementos tecnológicos e . mesmo, a valores morais

assemelhados. Nem nego que haja a tentação etnocidária de uma Sociedade Ocidental

que "tende para o grau zero de diferença, deseja a diversidade anulada. Para ela

diversidade consentida só aquela que não disputa determinados eixos de sua lógica"

(Rocha, 1 995, p. 1 23J3.

Encaro como mínima, contudo, a probabilidade de que, dentro das infinitas possibilidades

disponíveis de combinação de significados, um único conjunto total seja compartilhado

simbolicamente numa mesma forma padrão absoluta por grupos sociais geograficamente

dispersos na superfície da mãe-Terra .

No ambiente das discussões teóricas em Administração, Fons Trompenaars, citado por Hall

( 1 995) , diz :

There are people who believe that, beca use of international trade, we are becoming more and more similar. I don' t believe in that. The European Community

'Estes eixos, conforme Rocha ( 1 995) são o produtivismo, o Estado Nacíonal, o individualismo e a lógica diacrônica na concepção do tempo - o tempo histórico. Eles serão fundamentais, mais adiante, na discussão da cultura brasileira e do "Mundo da Qualidade Total".

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developed by starting with one set of laws which are interpreted in the same way by everyone. But that's only the surface levei of culture. You've got to look ot what these things mean to people I don' t believe that people want to be similar anyway. They feel the need for identity The more we travei and communicate, the more we seem to become different! This belief in an universalising process is very much an Anglo-Saxon phenomenon (p.2 1 ) .

Latouche ( 1 994) corrobora, ao lembrar que

O homem nunca é unidimensional, talvez porque a humanização passe por um sistema simbólico sempre arbitrário e. por isso, polissêmico. A adesão a valores nunca é absoluta ou exclusiva. Sempre foi assim, ainda é assim. ainda que nada possa se afirmar sobre o futuro. É possível que nossos sistemas simbólicos se reduzam a códigos de sinais em um universo cada vez mais tecnificado, mas ainda não chegamos lá e não é certo que um dia chegaremos. Todos os esforços feitos nesse sentido realçam o fosso a transpor. O japonês, o americano, o europeu ainda têm valores específicos, tradições, ligações afetivas cujo fundamento não está na megamáquina e sim na história e na terra(p.63).

Não pretendo me alongar nesta questão na tentativa de encontrar a resposta que ainda

não existe, conforme denotam os debates intelectuais que acessei. Espero, todavia, ter

justificado minha premissa quanto à inoperãncia - na escala de tempo administrativa

relevante para meu trabalho - da uniformização de significados. Embora, inegavelmente,

similaridades culturais ocorram entre nações e sociedades, tal processo dinãmico parece

não levar a uma única civilização industrial moderna. simbolicamente padronizada.

Isto não significa desconsiderar influências culturais mais gerais. Significa, sim, reter o foco na

cultura brasileira. DaMatta (1990, p. 1 8) cita Louis Dumont para defender que comparação

epistemologicamente correta é aquela que mantém a referência à cultura global, sem

esquecer, nem favorecer a perspectiva simbólica do estudioso. A existência de fenômenos,

considerações, elementos globais não é um obstáculo ao estudo de significados locais. Pelo

contrário, ao oferecer pontos de apoio comparativos, alavanca oportunidades, planta

sementes de relativização de vital ímportãncia no estudo de sistemas nacionais.

O outro lado da moeda aparece quando Hofstede ( 1 980, p.26) diz que "the word 'culture' is

usually reserved for societies (in the modern world we speak of 'nations ' ) or for ethnic or

regional groups, but it can be applied equally to other human collectivities or categories : an

organization, a profession, or a family." Se o termo "cultura" também pode ser aplicado a

grupamentos humanos reduzidos, é porque existem diferenciações destes entre si e em

relação ao todo com o qual eles interagem. É isto que leva Velho ( 1 978, p.8), a questionar:

Um dos grandes problemas do antropólogo ao estudar a sociedade complexa moderna é conseguir identificar os diferentes códigos existentes e, ao mesmo tempo, procurar verificar até que ponto e como estão interligados e se formam, constituem uma totalidade que possa ser descrita e analisada ( ... ) Até que ponto pode-se falar em cultura nacional ?

Ou seja, uma empresa no Rio de Janeiro pode constrastar, em termos de comportamento

humano, com empresas na Bahia. Mais ainda, operadores de chão de fábrica e gerentes

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de uma mesma empresa pOdem estar submetidos a diferentes códigos simbólicos. Velho

( 1 98 1 ) diz que quando o antropólogo se defronta com uma sociedade complexa como a

brasileira, "fica cada vez mais evidente a existência de diferentes modelos culturais, visões

de mundo altamente diferenciadas" (p.99).

Certamente estas limitações existem: as peculiaridades, singularidades estaduais, regionais,

ou de grupos sociais com interesses, motivações e simbologia distintos têm seu impacto,

merecem atenção. Entretanto vale citar DaMa lia ( 1 98 1 ) :

Posso divergir com relação às motivações específicas de nordestinos e surfistas, mas não tenho dúvidas (e, creio, que nem eles), quanto ao lugar do 'trabalho' e do 'lazer' como categorias sociológicas no nosso mundo social ( . . . ) diria que nossas divergências seriam ainda menores caso a nossa conversa com os nordestinos e surfistas fosse orientada no sentido de valores mais profundos, como a honra, o sexo, o machismo, a sorte, o destino, a mOlandragem, o cumprimento de promessas e das palavras, etc ( ... ) o ponto de encaixe numa sociedade não diz respeito somente a opiniões absolutamente iguais, mas -muitas vezes- a opiniões aparentemente contraditórias (mas de fato complementares) . Assim, os surfistas apresentariam com toda a clareza (e os trabalhos de Gilberto Velho revelam isso claramente) um discurso entrecortado pela ideologia moderna do individualismo negativo e do hedonismo fundado na visão de quem está por cima: uma espécie de malandragem contemporãnea, falada no idioma da psicanálise, do marxismo crasso e do niilismo ( ... ) os nordestinos exprimiriam um ponto de vista provavelmente oposto, falando do destino (e de destinos), do lugar de cada um na sociedade, no dever e na 'obrigação' de trabalhar, na esperança da sorte grande e da loteria como único modo de mudar de vida e subir rapidamente, tudo isso num universo social onde as pessoas não têm escolhas ou individualidades. Vistas lado a lado, como se o Brasil fosse uma colcha de retalhos ou um conjunto de elementos paralelos, individualizados, tais oplnloes revelariam plena divergência e distãncias irreconciliáveis. Mas será realmente assim ? ( . . . ) Não serão eles precisamente os dois lados de uma mesma moeda que é o Brasil hierarquizadO e capaz de viver códigos aparentemente opostos simultaneamente? (p.1 66- 1 67) .

o próprio Gilberto Velho ( 1 98 1 . p. 84) concorda que o ponto de diferenciação e o limite de

abrangência dependerão de nossas intenções e dos instrumentos de observação - a "lente

usada". Enfim, quando falo de cultura brasileira, estou falando das singularidades que geram

o sentimento de uma identidade nacional que diferencia o brasileiro dos cidadãos das

demais nações :

A confluência de tantas e tão voriadas matrizes formadoras poderia ter resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de componentes diferenciados ( . . . ) Ocorreu justamente o contrário, uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se diferenciaram em antagõnicas minorias raciais, culturais ou regionais, vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia frente à nação ( . . . ) sertanejos do Nordeste, caboclos da Amazõnia, crioulos do litoral. caipiras do Sudeste e centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos eles muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pela diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de miScigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou outra parcela da população ( . . . ) os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. (Ribeiro, 1 994, p. 20-24)

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"devo dizer-vos que o Brasil, politicamente, é uma unidade. Todos lalam a mesma língua, todos têm a mesma tradição histórica e todos seriam capazes de se sacrilicar pela delesa do seu território" (Getúlio Vargas, em 1 940)

"Num mundo em que a comunicação é global e instantãnea, e ao mesmo tempo os públicos se Iragmentam e especializam-se, a identidade cultural torna-se o cimento das nações. Nós, brasileiros, somos um povo com grande homogeneidade cultural. Nossos regionalismos constituem variações da nossa cultura básica, nascida do encontro da tradição ocidental-portuguesa com a alricana e a indígena" (discurso de posse do Presidente Fernando Henrique, JB, 02/0 1 / 1 995) .

Reconhecendo a existência interna da diversidade, preocupo-me com as categorias

sociológicas mais amplas e uso lentes adequadas para observá-Ias :

Anthropologists today are less willing to privilege any given aspect 01 a society as an independent variable that can expia in or in some sense detemine the other domains 01 a society. We have also come to recognized that the concept 01 a "national society" - such as Brasil - is only one levei 01 analysis that we construct lor specilic analytical purposes. Larger leveis may also be constructed-such as Latin American culture- just as more restricted leveis are also available : the cultures 01 cities or neighborhoods, ethnic groups and ciasses, prolessional and religious groups, genders, regions and so on. In other words, we work today in a world where we recognize the contingent and constructed nature 01 categories that we nevertheless lind analytically, and even practically, uselul. (Hess, em DaMalla & Hess, 1 995, p. 1 7)

Não creio que possa, assim, solucionar todos os problemas, mas estou convencido de que

consigo levantar algumas questões básicas, sobre a cultura brasileira e sobre a cultura da

Qualidade Total. Questões que estarão se somando ao estoque de conhecimento sobre

administração no Brasil.

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2.3 - A Cultura Nacional e o Gerenciamento de Organizações

No item anterior. procurei demonstrar que, mesmo frente a um processo de

homogeneização global de alguns valores. existe a tendência, ao menos no curto/médio

prazo da escala de tempo administrativa, da manutenção das diferenças nacionais e das

motivações específicas de cada nação. Embora possam ser identificadas categorias

sociológicas gerais de uma civilização industrial contemporãnea, o modo como estas

permeiam cada ambiente social nacional é particular. O inverso é também verdadeiro:

regiões, classes sociais e 'clãs modernos' distintos dentro uma mesma nação, apesar de

discursos possivelmente diversos, guardam valores e práticas sociais complementares que

denunciam a identidade nacional.

Neste item, pretendo colocar o estudo das culturas nacionais como importante no contexto

empresarial "em globalização". Para me permitir a tanto, lembro, inicialmente, que Hofstede

( 1 980) denuncia um "etnocentrismo original" neste meu ato. Ele lembra que a própria

consideração da importãncia do estudo comparativo de culturas nacionais deriva de, e

reflete, a aplicação de valores ocidentais. Tendo aceitado esta característica etnocêntrica

de meu trabalho, sigo com intenção de não intensificá-Ia. Por isso, desconsiderarei as linhas

evolucionistas de pesquisa em administração que acreditam que sistemas administrativos

mais "atrasados" tendem, com o tempo, a progredir no rumo das mais "avançados".

Medeiros ( 1 99 1 ) inventaria vários autores para confirmar a crescente atenção que vem

sendo dada à pesquisa comparativa de práticas gerenciais em países diferentes: e

Schneider (1988) mostra as possibilidades de influência da cultura nacional na cultura

organizacional. Com isto, corrobora Rocha ( 1 9950, 1 995b), com seus recentes estudos de

cultura organizacional, efetuados em empresas localizadas no Brasil. Rocha conclama a

gramaticalidade entre aspectos da cultura interna da empresa e da cultura brasileira :

A cultura do Banco do Brasil não existe no vácuo, seus valores não se realizam em um espaço neutro ( . . . ) em que pese a existência de elementos autõnomos e significações particulares em toda cultura organizacional, podemos dizer que estas culturas nativas são como que embebidas ou encompassadas pelo sistema simbólico abrangente ( . . . ) No mínimo, são obrigadas a um diálogo com esta cultura mais ampla como condição de sua permanência enquanto instituição viva. A cultura do banco se faz e refaz em um complexo jogo que envolve funcionários interagindo entre si, com suas famílias e com um amplo universo de usuários da instituição. (Rocha, 1 9950)

Hampdem-Turner ( 1 990) concorda que "corporate cultures are specific episodes of more

general national and regional patterns" (p.2), e une-se a Hofstede ( 1 980) e Trompenaars

( 1 993) no desenvolvimento e uso de modelos específiCOS para comparação de culturas

nacionais. através de pesquisas no ambiente empresarial. Vale perceber que o Brasil nunca

assume uma posição extrema nas dimensões quantitativa mente analisadas. Isto é

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gramatical com alguns aspectos da "ambiguidade brasileira" que, qualitativamente,

veremos adiante. Contudo, embora interessantes, estes trabalhos pouco se aprofundam

especificamente na cultura brasileira.

Concluo este item lembrando que, embora estejam se multiplicando estudos em

Administraçõo referentes ao aspecto cultural. poucos sõo ainda os desenvolvidos no Brasil.

Embora alguns trabalhos considerem o Brasil parte do estudo, não encontrei na minha

pesquisa bibliográfica nenhum desenvolvimento similar ao que proponho, ou seja, ver como

propostas gerenciais se atualizam, simbolicamente, no Brasil, entre brasileiros. Para tanto,

porém, preciso antes entender a cultura brasileira.

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Capí-tu.l.o a :

BRASIL E CUI..IrURA BRASILEIRA

"O Brasil não é um país sério "

CHARLES DE GAULLE. estadista francês

"O Brasil é um estranho país. O governo às vezes não é grande coisa,

as instituições sõo o que se sabe. Mas a amizade é uma coisa

muito sólida, uma coisa muito séria. t por isso que eu gosto do Brasil "

FERNAND BRAUDEL, sociólogo francês

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3.1 - Possíveis Recortes de Brasil : Limitações e Possibilidades

o Brasil não é para principiantes. (Tom Jobim)

Diversos estudiosos brasileiros convergem para a semente comum, a meu. ver correta, de

que entender o Brasil passa por se assentar em bases teóricas próprias, sob pena de

desconsiderar peculiaridades significativas do país ou mesmo correr o risco de erroneamente

forçar a realidade brasileira para dentro de modelos sócio-politico-económicos importados.

Ramos ( 1 99S,p.S9) fala em uma sociologia brasileira viciada por simetrismo, sincretismo,

dogmatismo, dedutivismo e inautenticidade, afirmando que a adoção métodos e

processos da antropologia e da sociologia européias e norte-americanas tem levado

profissionais brasileiros a um "descritivismo casuístico de escasso valor pragmático" pouco

utilizável para o esclarecimento dos problemas da sociedade brasileira. Na mesma linha,

Ribeiro ( 1 995, p. I S) diz que "visivelmente o esquema marxista aceito sem demasiados

reparos no mundo europeu e no anglo-saxão de ultramar. feito de povos transplantados,

empalidece frente à nossa realidade ibero-americana." Para lidar com isto, a obra desses

autores tenta "abrasileirar" teorias, modelos e metodologias estrangeiras de ciências sociais.

Há ainda outros estudiosos que buscam ãngulos de visão inovadores para entender a

mesma realidade social.

Sempre buscando minimizar determinismos e etnocentrismos, acredito ser a partir da revisão

e reunião de todos estes diversos fragmentos, explicações e esquematizações para Brasil e

Cultura Brasileira, que devo iniciar o trabalho de entender como as práticas sociais

cotidianas afetam o interior das organizações, mais especificamente como a cultura

brasileira se relaciona com a cultura da GOT.

Propondo-me a considerar as diversas óticas, seus limites e possibilidades, sinto-me limitado

pela característica descritiva, sequencial, linear da linguagem escrita, com a qual preciso

organizar minha dissertação. Decidi. por isso, dividir o estudo em duas partes, segundo o

critério abaixo descrito, deixando explícifos elos de ligação entre elas.

Na "primeira parte", edito um corte diacrõnico do Brasil. O princípio desta démarche é

reunir, sem a pretensão de ser exaustivo, fragmentos de estudos econõmicos, políticos e

sociais do país sob uma perspectiva histórica . É o Brasil visto predominantemente como

integrante - agente e sujeito a ações - de um contexto mundial fragmentado em Estados­

nação, que pode ser descrito dentro de uma sequencialidade temporal.

Limitações importantes podem surgir, entretanto, quando se priorizo unicamente esta via. Em

primeiro lugar ela tende a fazer julgamentos de valor com base em critérios

predeterminados -normalmente econõmicos -, que nem sempre são suficientes para

entender o que diferencia o corpo social brasileiro dos demais. Conforme Barbosa ( 1 992) :

Nossas descrições oficiais do Brasil são normalmente feitas dentro de um discurso

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político e econõmico que apresenta uma realidade oficial unívoco, pois permitem uma descrição universalizante, descolada das situações sociais concretas. Justamente aquelas que imprimem as especificidades aos fatos e aos lugares e permitem que países com PIBs, PNBs, RPCs, estruturas de classe e partidos políticos semelhantes consigam ser realidades sociais inteiramente diferentes (p.3).

Esta linha diacrõnica acredita que economicismos são suficientes para entender a realidade

brasileira e, assim, acaba por esconder parte dela. Algumas dimensões essenciais da cultura

brasileira são desconsideradas na análise; algumas práticas sociais definidoras de um

"comportamento brasileiro" tendem a ter seu valor de estudo menosprezado. Devidamente

destrinchadas, tais práticas podem oferecer mais algumas respostas quanto à identidade

nacional. Advêm disto o segundo agregado de informações que utilizo. Esta segunda

démarche é "visão sincrõnica" da cultura brasileira (Lévi-Strauss, 1 952; DaMatla, 1 98 1 ;

Rocha, 1 994).

o sincronismo rebate, nega a "sociologia do Brasil como gostaríamos que ele fosse" e prega

o estudo de ideologias e representações simbólicas que "efetivamente motivam e orientam

a vida diária aqui e agora." (DaMatla, em Barbosa, 1 992). Trata-se daquilo que Barbosa

( 1 992) chamou de "clima" : os aspectos corriqueiros que ocorrem de forma diferente em

sociedades distintas, e que permitem distingui-Ias. Tudo aquilo que pode ser encarado como

"dimensões valorativas de que se revestem todos os atos da vida social, esse aspecto

fluídico que escapa às rígidas análises de modelos e que imprime toda a especificidade do

fenõmeno social" (p.2). Precavendo-se de críticas a uma possível superficialidade

metodológica, Barbosa ( 1 992) diz ;

Argumentar que essas obras eram impressionistas e carentes de fundamentos empíricos pode, até certo ponto, indicar uma deficiência delas, mas revela mais a posição metodológica de seus críticos. Por que seriam os retratos das grandes estruturas brasileiras mais verdadeiros a respeito do Brasil do que aqueles baseados em seus aspectos comezinhos? Se formos nos ater aos aspectos metodológicos unicamente, esses retratos eram, e são, tão imprecisos como os anteriores, pois muito poucas fontes primárias foram - e são - consultadas para que o retrato apresentado correspondesse àquilo que se acredita ser a 'realidade' brasileira. A visão 'estrutural ' , como a 'cotidiana' , é, apenas, uma outra forma de recorte da realidade em que determinados aspectos são mais enfatizados do que outros. (p.7)

Nesta "segunda parte" procuro acoplar opiniões e estudos dos autores que, de um modo ou

de outro, consideraram algo além da "união de três raças", da "instabilidade política", do

"atraso econõmico", na tentativa de entender o Brasil. Com certeza eles usam

componenfes históricos e contrapontos com outras nações como pontos de apoio, mas não

como objetivo final.

Resumindo, no primeiro enfoque, é descrita uma "formação histórica da sociedade

brasileira" e sua "tipologia das classes sociais" a partir da miscigenação biológica e

simbólica do colonizador português, do gentio que aqui habitava e do contingente negro

introduzido como mão-de-obra escrava, na "empreitada mercantil salvacionista

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portuguesa" (Ribeiro, 1 995). São explorados os modelos de desenvolvimento econômico

brasileiro considerando, conforme Moto ( 1 980), o Brasil parte de um universo mais amplo de

naçôes com passado colonial que, em sua esmagadora maioria, constituem atualmente o

chamado grupo subdesenvolvido. Modelos que, segundo Caio Prado Jr. ( 1 980) espelham o

atual enquadramento no sistema internacional do capitalismo, similar ao que ocorre desde

o ciclo da cana de açúcar, primeira grande empresa colonial agrícola européia no Brasil

(Furtado, 1 980; Prado Jr, 1 980). É verificada ainda a proposta de Guerreiro Ramos ( 1 995)

quanto à dinãmica da sociedade política ilustrado com acontecimentos da história política

do Brasil. bem como a formação do patronato político no Brasil, conforme Faoro ( 1 976).

No segundo enfoque, predominam as interpretações que procuram ver o Brasil a partír de

suas características culturais, da ênfase nos costumes e situaçães sociais concretas, do

entendimento de instituições como a família e a igreja. Linhas que, segundo Barbosa ( 1 982)

tiveram seu períOdo áureo na década de 1 930, desaparecendo quase que completamente

até meados de 1 970 e que, recentemente, voltaram à cena brasileira. Nesta linha, o que é

tomado como significativo é o emaranhado das relações sociais do dia-o-dia, tanto na

esfera doméstica quanto na pública. Conforme DaMatta ( 1 990) :

Não se trata de discutir uma história de três raças, seis regiões ou duas classes sociais que se digladiam pelo poder, mas de entrar nas razões sociais do dilema que coloca uma sociedade às voltas consigo própria ( ... ) discutir os caminhos que tornam a sociedade brasileíra diferente e única, muito embora esteja, como outros sistemas, igualmente submetida a certos fatores sociais, políticos e econômicos comuns. (p. 1 4)

A obra de Gilberto Freyre ( 1 933, 1 936) - sobre as implicações da economia escravocrata,

latifundiária e monocultora nas relações pessoais - exemplifico um corte sincrônico. Buarque

de Holanda ( 1 936) também, ao explicar características da sociedade com base no estilo de

COlonização e predomínio português. Recentemente, destacam-se as reflexões de DaMalla,

como sementes que deram frutos em Rocha ( 1 995b), Amo Vogel (em DaMalla, 1 982) e Lívia

Barbosa ( 1 992), na discussão sobre a ambiguidade, o "jeitinho brasileiro", o "individualismo e

igualdade à brasileira" e as dramatizações do futebol.

Enfim, a segunda démarche considera o conjunto de instituições e fatos sociais legítimos, e

nem sempre legais (Barbosa, 1 992). Rico arsenal de aspectos que, não sendo propriedade

de um segmento social específico, nem estando cerceados em espaços sociais ou

geográficos, faz parte do cotidiano brasileiro e mapeia semioticamente as possibilidades

comportamentais. Coincidentemente (ou por isso mesmo), inclui tudo que já foi tabu dentro

das sociologias oficiais. Temas como a morte, a mulher, o machismo, o futebol. a culinária, o

jogo do bicho, os personagens paradigmáticos, o carnaval. a ética da malandragem.

Temas abordados como "ópios do povo", "casos de polícia" , "mostras de alienação e

mistificação social", tudo que seria corrigido "com administração da ideologia correta pelo

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grupo apropriado" (DaMatta, 1 982, p. 1 6) .

Parti do estudo da cultura brasileira através de obras clássicas de escritores reconhecidos.

Considerei diversas linhas de pensamento e autores recomendados pelos seus pares. Dei a

mim mesmo a oportunidade de repensar minhas posições e potencializar positivamente as

pré-concepções que necessariamente tenho, porque sou brasileiro. Da interseção destes

dois tipos de recorte e interpretação da realidade brasileira - o diacrõnico e o sincrõnico -

crio. posteriormente, uma análise fundamentada em quatro categorias, eixos sociológicos

amplamente discutidos na literatura antropológica.

As mesmas quatro noções que já terão sido detalhadamente expostas para falar de cultura

brasileira serão usadas, através de um exercício intelectual de relativização, para a "leitura

da GQT". Numa "viagem literária ao mundo da GQT", será elaborada uma etnografia deste

mundo.

Alocadas as duas culturas - 8rasil e GQT - nos mesmos quatro eixos lógicos, mesmas quatro

categorias simbólicas, estará aberta uma vereda, um clarão na floresta, que permitirá uma

particular visão do encontro entre duas sociedades e, com isso, um possível

aprofundamento interpretativo das questões da GQT no Brasil.

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3.2 - Visão Histórica do Brasil : Formação Política, Econômica e Social

Se é a história que os homens fazem sem sabe!;' ou a históno dos homens, tal como os historiadores a fazem sabendo·o; ou. enfim a interpretação pelo

filósofo da história dos homens .. . ou da história dos histoflodores (Lévi-Strauss)

o litoral brasileiro começou a ser ocupado por tribos de tronco tupi, cerca de dois séculos

antes da "descoberta do Brasil". Estima-se que, em 1 500, no momento da chegada da

caravela portuguesa comandada por Pedro Álvarez Cabral, a população gentia total era,

pelo menos, da ordem da existente em Portugal. Dispersos pelo território estavam, além dos

povos tupi, os povos Bororo, Xavante, Kayapó. Todos eram "arredios" na opinião dos

portugueses que aqui chegavam e encontravam dificuldades em escravizó-Ios. Muitas

destas tribos semi-nômades cultivavam - além do milho, da mandioca, do abacaxi, da erva­

mate, do guaraná, de diversas árvores frutíferas e da antropofagia ritualística - uma visão

"coletivista" de sua sociedade : "na sua concepção sábia e singela, a vida era uma dádiva

de deuses bons" (Ribeiro, 1 994, p,45).

Os europeus que aqui chegavam - "gente prática, experimentada, sofrida, ciente de suas

culpas oriundas do pecado de Adão cuja vida era uma tarefa, uma sofrida obrigação, que

a todos condenava ao trabalho e tudo subordinava ao lucro" (Ribeiro, 1 994, p,45) -

encontraram, em termos gerais, um território de terras férteis no litoral, um relevo que

dificultava a penetração e alguns rios que, com exceção da planície amazônica e dos

pampas, correm do interior para a costa, rios "encachoeirados, com alucinante regime de

cheias e vazantes" (Moog, 1 978, p, 1 O) .

Buarque de Holanda ( 1 978) enfatiza que, como se não bastassem as características inóspitas

à penetração para o interior, as leis portuguesas "criavam todas as dificuldades às entradas

terra a dentro, receosos de que com isso se despovoasse a marinha" (p,66), O clima tropical

e sub-tropical, diferente do europeu, repelia a emigração européia: quem se dispunha a vir

o fazia, tipicamente, como explorador, não como povoador (Prado Jr" 1 980), Era a visão

oportunista da natureza : "boa para viver, boa para devastar" (DaMatta, 1 993), A intenção

era a do extrativismo imediatista e predatório, com controle e patrocínio do Estado.

Coletividades masculinas, não familiares formavam-se na busca do enriquecimento rápido

que fazia subir na escala social portuguesa, Era uma "concepção espaçosa do mundo",

onde o "ideal será colher o fruto sem plantar a árvore" (Buarque de Holanda, 1 984,p. 1 3) . Este

é o cenário onde começo a editar uma "história do Brasil", embora, em 1 500, não fossem

conhecidos os contornos geográficos do país, nem se pudesse falar de uma nação ou povo

brasileiros.

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3.2. 1 - Regime Monárquico

o Coeso/pinio echinoto, ou pau-brasil, é o primeiro motivo de incursões européias, não­

duradouras, ao litoral do novo território. Os espanhóis respeitavam o tratado de Tordesilhas

( 1 494) e a bula Papal que dividiam o mundo entre estes e os portugueses. O rei francês,

entretanto, "desconhecendo a cláusula do testamento de Adão" que excluíra seu povo do

novo mundo, incentivava a iniciativa individual-privada de seus súditos no tráfico da

madeira-corante, com uma política liberal sem privilégios reais (Prado Jr., 1 980) .

Uma política divergente da francesa era aplicada pela Coroa Portuguesa. Monopolizadora

da prática extrativista, outorgou exclusivamente a Fernando de Noronha e seus sócios

judeus, em 1 50 1 , a primeira concessão exploratória. Entre 1 504 a 1 530, a Coroa já começava

a cobrar seus direitos de diversos traficantes personalisticamente escolhidos. A intenção de

ocupar o território era dificultada pela pequena disponibilidade populacional e pela

razoável estabilidade social de Portugal, que, naquela época, priorizava atenções para as

possessões no Oriente e o apogeu comercial desta região (Prado Jr., 1 979) . A partir de 1 532,

antes da implantação dos governos gerais ( 1 549), fez-se o oferecimento das Capitanias

Hereditárias a indivíduos de pequena expressão social. indicados por fidalgos portugueses.

(Bethlem, 1 989).

Ao contrário dos vizinhos norte-americanos, a colonização foi obra do Estado: "as capitanias

representaram delegação pública de poderes, sem exclusão da realeza" (Faoro, 1 975,

p. 1 09) . Os judeus e holandeses, por vislumbrarem boas perspectivas na cultura da cana-de­

açúcar, foram os principais financiadores (Prado Jr .. 1 980).

O colono europeu ficará então aí na única posição que lhe competia: de dirigente e grande proprietário rural ( . . . ) não se chegou nem a ensaiar o trabalhador branco. Isto porque nem na Espanha, nem em Portugal, havia, como na Inglaterra, braços disponíveis, e dispostos a emigrar a qualquer preço. Em Portugal, a população era tão insuficiente que a maior parte do seu território se achava ainda, em meados do século XVI, inculto e abandonado (Prado Jr., 1 979, p.30) .

Portugal diferia de outros territórios europeus por já possuir uma forte estrutura burocrática de

Estado. Faoro ( 1 975, p. 1 47) lembra que o Estado português, "plenamente maduro e

constituído no século XVI", usa suas instituições para abraçar as praias e os sertões,

"negando-se à experiência criadora de amoldar-se às novas, imprevistas e perigosas

circunstâncias brasileiras". Ao projeto colonial mercantil unia-se o projeto salvacionista

jesuitico que, embora de racionalidade oposta, o legitimava.

O respeito devotado ao padre e ao clero, a obediência aos padrões religiosos, nâo impediram que a supremacia civil mantivesse suas prerrogativas de comando ( . . . ) O que as ordens religiosas conseguiram, no Brasil, foi. pelo esforço dos jesuítas, a conservação da moldura religiosa da sociedade ( . . . ) O domínio do indígena, sua integração à cultura européia, pareceu à autoridade metropolitana obra do missionário, com a catequese como o 'prelúdio da submissão da raça inferior' ( . . . )

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Os colonos, entretanto, não queriam cristãos, mas escravos ( . . . ) Esta batalha, perderam-na os jesuítas ( 0 0 ') Mas a guerra, eles a venceram em profundidade e em amplitude histórica: o padrão católico de moral se transplantou na colônia portuguesa: padrão, na verdade, nem sempre obedecido na consciência, mas respeitado na conduta exterior. A cultura nativa deixou traços, reminiscências, resíduos: seu conteúdo osséo se perdeu, substituída pela predominãncia portuguesa ( 0 0 ') A conciliação das duas culturas seria impossível. como impossível a segregada permanência do indígena ( 0 0 ') os costumes indígenas e negros nada puderam contra o núcleo europeu de cultura (0 0 ' ) Embora não tenham chegado a (00') neutralizar as influências, que foram enormes, das duas culturas, -indígena e, sobretudo africana, a mais próxima e penetrante, é certo que conseguiram contê­las bastante (00 ') O velho e tenaz patrimonialismo portuguêS desabrocha numa ordem esta mental. cada vez mais burocrática" (Faoro, 1 975, p.202) .

Durante o domínio espanhol sobre a coroa portuguesa ( 1 580- 1 640), aumentou a pressão das

demais potências internacionais sobre o Brasil. Isto se reflete na ocupação holandesa­

puritana do Nordeste, até 1 654.

A ruptura só se dá quando, mais congruentemente capitalista, a administração holandesa passa a exigir o pagamento pontual dos créditos concedidos, executando as dívidas pela expropriação dos engenhos dos devedores remissos. Então, alguns dos mais afoitos em colaborar na primeira fase se fizeram mais patriotas e mais pios na defesa da pátria portuguesa e da religião católica (Ribeiro, 1 994, p.294).

Faoro ( 1 975, p. 1 30-1 33) repele a denominação "feudalismo" para o sistema de donatarias e

dos engenhos, do pau-brasil e cana-de-açúcar, pois ( 1 ) governo português não punha no

negócio o seu capital. ao tempo escasso e comprometido em outras aventuras, (2) não

havia no sistema brasileiro nem o feudo nem o vínculo de vassalagem, (3) o rei subordinava

as pessoas e o governo dirigia as ações, numa relação vertical que não se coaduna com o

pacto entre camadas desiguais, mas estruturadas rigidamente em privilégios, típica do

feudalismo.

Neste ínterim, os holandeses adquiriram o conhecimento dos aspectos técnicos e

organizacionais da indústria açucareiro, criando a base para implantação e

desenvolvimento da indústria concorrente, de grande escala, na região do Caribe. Além

disso, retratando o povoamento do litoral e do sertão nordestino, estima-se que, no início do

século XVII, havia 1 20 engenhos de açúcar e um significativo rebanho bovino com 680 mil

cabeças (Furtado, 1 980).

Ribeiro ( 1 994) modela este primeiro momento de colonização em três planos: ( 1 ) plano

adaptativo, relativo à incorporação de tecnologia européia de produção agrícola,

navegação e mineração, agregando-a à tecnologia indígena de pequenas lavouras e em

pequena escala a criação de animais: (2) plano associativo, caracterizado pela tentativa

frustrada de escravização de índios, pelo estímulo à miscigenação entre portugueses e

índias, e pela centralização do poder político que, desde o fracasso das donatarias e da

implantação do primeiro Governo Geral de Tomé de Souza, em 1 549, procurava integrar

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todos os núcleos de povoamento; (3) plano Ideológico, marcado pela ambiguidade dos

projetos religioso e mercantil (que reflete numa contraditória e "hipócrita" política indígena),

pela concentração do saber erudito pelos religiosos e pela lenta difusão da língua

portuguesa em substituição ao nheengafu (derivação do tupi-guarani) usado nos núcleos

jesuítas e, até o século XVIII, em toda a região das bandeiras.

Vale ressaltar o papel desbravador das "bandeiras" no Sudeste que, na busca de riquezas e

de índios escravos, acabou sendo o mecanismo de adentramento territorial. Velho ( 1 976)

lembra que o bandeirante "não estava de fato interessado na terra, mas na mobilidade",

portanto a interiorização não resultou em povoamento. Interessante também é a descrição

que o autor faz sobre a estrutura da bandeira:

O chefe da bandeira concentrava todo o poder em suas mãos ( . . . ) A bandeira não poderia subsistir sem a sua autoridade ( . . . ) precisava ser conduzida por seu chefe de uma forma militar ( . . . ) era um Estado em miniatura ( ... ) estabelecendo uma 'democracia hierárquica' ( . . . ) como o Estado, é uma espécie de extensão da família. E o chefe da bandeira uma espécie de pai de todos (p. 1 45).

O tráfico negreiro - lucrativa empreitada comercial que pode ter ocorrido desde 1 538 e que

certamente foi intensificada em meados do século XVII - trazia para o Brasil, um contingente

negro com diversidade linguística e cultural: eram provenientes, principalmente, das culturas

sudanesas (Yoruba, ou nagô; Dahomey, ou gegê; e Fanti-Ashanti. ou minas), africanas

islamizadas {Pehul, Mandinga, Haussa, ou malel e congo-angolesa (Bantu). Desenraizados,

perdiam a identidade cultural. Eram individualizados a força e brutalizados por "castigos

pedagógicos" para garantir a produtividade nas dezoito horas de trabalho diárias, todos os

dias do ano (Ribeiro, 1 994). Em diversos quilombos, junto a marginais da sociedade "oficial",

escravos fugidos tentavam constituir um outro estilo social. retomando de forma modificada

alguns valores culturais das tribos africanas. Enquanto não eram dizimados, participavam da

política e da economia, em posição de renúncia à ordem estabelecida, impactando, à sua

maneira, o destino brasileiro (Diegues & Rocha, 1 99 1 . Moura, 1 98 1 ) .

Em 1 642, quando Portugal retomou da Espanha o controle da colônia. D.João IV

reestabeleceu o Conselho Ultramarino e unificou administrativamente todo o Reino.

Reforçava-se a centralização: "Em meados do século XVIII, todas as capitanias terão

voltado ao domínio direto da Coroa, e serão governadas por funcionários de nomeação

real" (Prado Jr., 1 980, p.5 1 ). O comércio e o direito formal de se estabelecer no Brasil foram

restringidos. Inclusive, a ameaça de despovoamento em regiôes importantes de Portugal,

metrópole empobrecida pela privação do comércio asiático, levou, a partir de 1 667, à

imposição de restriçôes à emigração:

Em 1 720 pretendeu-se mesmo fazer uso de um derradeiro recurso, o da proibição de passagens para o Brasil. Só as pessoas investidas de cargo público poderiam embarcar com destino à colônia. Dentre os eclesiásticos podiam vir os bispos e missionários, bem como os religiosos que já tivessem professado no Brasil e precisassem regressar aos seus conventos. Finalmente, seria dada licença

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exepcionalmente a particulares que conseguissem justificar a alegação de terem negócios importantes, e comprometendo-se a voltar dentro de prazo certo (Buarque de Holanda, 1 984, p.69)

Tais medidas mostraram-se insustentáveis após a descoberta das minas de ouro ( 1 70 1 - 1 780)

e diamantes ( 1 740- 1 828) no Centro-Sul. Monopolizada e regulamentada pela Coroa, a

mineração foi responsável não só pela ocupação do interior do país, mas também pelo

posicionamento político internacional da metrópole. Portugal sustentava-se na articulação

econômíca com uma Inglaterra em plena revolução industrial ( Furtado, 1 980). Segundo

Faoro ( 1 975, p.227). Portugal era apenas um entreposto no caminho do ouro para a

Inglaterra. Manchester ( 1 973) corrobora :

os ingleses submeteram firmemente a nação a um estado de dependênCia. Conquistaram isso sem o inconveniente de uma conquista ( ... ) Em 1 754, Portugal quase nada produzia para sua subsistência. Dois terços de suas necessidades físicas eram surpridos pela Inglaterra ( . . . ) Os ingleses eram ao mesmo tempo os fornecedores e os varejistas de todo o necessário para a vida do país (p.49)

No Sul, cujo povoamento iniciara-se no modelo de missões jesuíticas, os fazendeiros, após a

expulsão da Companhia de Jesus, apropriaram-se das terras e do gado que, juntamente

com cavalos, eram mercadorias desejadas na região mineira. Manteve-se presente, o "atrito

ideológico" entre a realidade brasileira e a ideologia capitalista:

Reconhecer autonomia aos fatores econômicos, organizar o crédito com o produto do ouro das minas, liberar a iniciativa individual. grande propulsora do capitalismo mercantil dos povos protestantes, ceder à idéia da livre competição em oposição ao postulado secular da cooperação cristã ? Não, não podia ser. Pelo contrário, o que cumpria fazer naquela conjuntura era revigorar as recomendações dos concilios no sentido de que o usurário não fosse permitido à mesa da comunhão nem admitido o sepultamento cristão ( . . . ) Quanto ao ouro das minas, que melhor destino lhe podia dar que aplicá-lo na edificação e ornamentação de igrejas, mosteiros e conventos ? (Moog, 1 978, p.79).

Para evitar a sonegação e o contrabando, o manuseio do ouro em pó ou pepitas era

punido com degredo perpétuo nas colônias africanas. Anualmente, era cobrado o "quinto",

estipulado em cima de uma cota anual mínima. A decadência natural das reservas aliada à

deficiência técnica dos mineradores acabou derrubando a arrecadação abaixo do nível

exigido de 1 00 arrobas ( 1 500 quilos). Portugal introduziu o procedimento, às vezes violento,

da "derrama". Isto acabou estimulando a I nconfidência Mineira, devidamente reprimida e

utilizada como exemplo anti-rebeldia. Ligado ao mesmo eixo de sustentação econômica

com a Inglaterra estava o comércio de escravos.

a mistura de tráfico e contrabando dificultou o empenho posterior dos estudiosos no sentido de calcular sua lucratividade. Mas os mais moderados que se debruçaram sobre esta tarefa sugeriram ganhos médios de 30% a 50% por travessia, que durava cerca de quatro meses, Ganhava-se muito: os ingleses da época diziam que o tráfico - sem o lucro extra do contrabando - era o ' negócio mais lucrativo sobre a face da Terra' (Caldeira, 1 995, p. 72).

Vale ressaltar ainda, entre os séculos XVI e XVII I : ( 1 ) o incentivo à miscigenação com o

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indio. 12) a inefetividade das restrições à mestiçagem com negros; e 13) o escasso

povoamento que se fazia na bacia amazõnica e no Extremo Norte. Após a expulsão. por

portugueses. em 1 6 1 6. de ingleses e holandeses que primeiro ocuparam a foz do Rio

Amazonas. a continuidade se deu através de ordens religiosas, das zonas de pecuária em

Marajó e de pequenos grupos ribeirinhos engajados na coleta de drogas e, principalmente,

nos seringais. A Coroa Portuguesa, interessada na consolidação deste território como

brasileiro, investia parte da riqueza proveniente do ouro na construção de cidades. A

economia de algodão e arroz era tecnologicamente deficiente, mas tornou-se competitiva

frente à crise criada no mercado mundial com pelas lutas de independência norte­

americanas IFreyre, 1 987; Prado Jr., 1 979, 1 980; Ribeiro, 1 994).

Enquanto na Europa, em pleno florescimento ideológico do liberalismo de Adam Smith,

criticava-se a politica mercantilista, os monopólios e restrições, os tratados de comércio e o

trabalho escravo, o governo português aplicava uma teoria diferente. Buscava-se a

especialização econõmica para alcançar o chamado "maior beneficio mútuo". Na prática,

a Coroa permitia aos coloniais plantar o que a Europa não produzia. Em troca do "favor" do

monopólio da agricultura tropical, os brasileiros renunciariam ao que "podia ser mais bem

produzido em Portugal". Para evitar a ruptura da boa ordem, o governo impingia proibições:

"o comércio intemacional. a instalação de indústrias de qualquer espécie, a impressão de

livros ou folhetos de qualquer espécie e a fundação de escolas de nível superior eram

rigorosamente vedadas" ICaldeira, 1 995, p. 7 1 ) .

ao adaptar a teoria do escocês a uma sociedade escravista, na qual o trabalho estigmatizava e o ócio premiava, e também a seus bons princípios de católico extremado, IVisconde de Cairu) foi obrigado a muitos malabarismos I ... ) Começou por substituir o mercado por um outro princípio regulador da vida econõmica, o velho e bom paternalismo da Coroa: 'O primeiro princípio da economia politica é que o soberano de cada nação deve considerar-se como o chefe ou cabeça de uma vasta familia e, consequentemente amparar todos os que nela estão como seus filhos e cooperadores da geral felicidade' . Torto o princípio, torto o caminho. A idéia de que o trabalho é a fonte de toda a riqueza não podia entrar na cabeça de nenhum senhor de escravos. E para que a importante função de dar ordens não parecesse menos nobre do que conviria para esses eventuais leitores, ocorreu-lhe dar a ela o devido destaque. Em vez da riqueza pelo trabalho, atribuiu a Smith o elogio de outros valores maiores - e dignos de um senhor. Na nova escala, o trabalho vinha por último na construção da riqueza: ' Inteligência, Indústria e Trabalho são as causas das riquezas das nações I . . . ) Inteligência é o conhecimento das cousas e bem assim dos expedientes de proporcionar fins a meios para terem as empresas convenientes resultados. Indústria é a energia e constãncia dos homens em suas operações penosas para vencerem obstáculos e não desacorçoarem com perigos e sinistros. Trabalho é o exercício mecãnico do corpo com que se executam essa operações' explicou em seu Estudos do Bem Comum. Dai para chegar a uma fórmula de progresso econõmico que dava um justo prêmio para os labores intelectuais dos donos de escravos, os que só usavam a inteligência e deixavam o exercício mecãnico do trabalho para os outros foi apenas um passo 1 . . . )Com essas pequenas alterações, não admira que até mesmo os brasileiros que defendiam as novidades trazidas pelos ingleses tivessem dificuldades para entender a lógica das idéias de Smith ICaldeira, 1 994, p . 1 1 9- 1 20).

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Sobre o século XVIII, Prado Jr. ( 1 979) relata ( 1 ) a exiguidade de engenheiros. médicos e

advogados na colônia: (2) a "endemia social" de desocupados permanentes tanto na área

urbana quanto na rural: (3) as regulamentações contrárias ao crescimento de indústrias

domésticas como olarias e cortumes: (4) a inviabilização. por concorrência internacional e

restrições metropolitanas. das nascentes indústrias do ferro e manufatura têxtil: (5) a

preeminência social de senhores rurais. das altas autoridades eclesiásticas e das

administrações civil. judiciária e militar: (6) a singularidade e importãncia da classe

comercial.

Novais (em Mota, 1 980) enfatiza as contradições entre o pensamento liberal e a prática

colonial portuguesa. e defende a importância da transferência da corte portuguesa para o

Brasil motivada pela invasão francesa na Península Ibérica. A movimentação rumo à colônia

de cerca de quinze mil pessoas e da metade do dinheiro em circulação em Portugal se deu

em final de 1 807. A vinda marcou o fim de um dos pilares essenciais da relação colonial

mercantilista entre Brasil-Portugal: pela liberação do intercâmbio comercial acabando com

o monopólio metropolitano.

ID.João VI) percebia que os tempos tinham mudado desde que entrara em moda o hábito de cortar a cabeça dos reis europeus. E como gostava da coroa e da cabeça a ponto de atravessar um oceano para preservá-Ias I . . . ) tratou de reforçar o sentimento de paixão. e deu para arrumar as coisas com seus amados e incultos súditos do melhor modo que podia ( ... ) passou a manejar a única arma que tinha. o fascínio. para trocar pelo que não tinha. o dinheiro . . . um enxame de brasileiros dispostos a ganhar reconhecimento social baixou na capital ( . . . ) Em pouco tempo, um grupo de brasileiros adestrados nas etiquetas da Corte e nos negócios do Estado participava ativamente das decisões nacionais" (Caldeira. 1 995. p.79) .

D.João VI acabou por desagradar a todos na tentativa de conciliar os interesses conflitantes

de brasileiros. estrangeiros e portugueses. Voltou para Portugal, recomendando ao filho

D.Pedro. prínCipe-regente, que proclamasse a independência do Brasil, pois movimentos

revolucionários contra a metrópole pipocavam desde a independência norte-americana.

Liderados pela aristocracia rural, tais movimentos continham a ambiguidade da pregação

de uma ideologia liberal-nacionalista atrelada à luta de proprietários de terra e traficantes

contra o fim da escravidão. Depois do famoso "dia do Fico", fez-se a independência que

nâo mudou a estrutura sócio-econõmica anterior, focada no atendimento do mercado

externo e baseada na mâo-de-obra escrava (Pomer, 1 98 1 ) . Os cargos nos ministérios.

Conselho de Estado. Câmara dos Deputados e Senado da nascente monarquia brasileira

foram ocupados por fazendeiros, altos funcionários e comerciantes bem-relacionados,

normalmente brasileiros. filhos de portugueses e ligados por laços de parentesco ou

compadrio.

D.Pedro I encarnava a figura do Salvador da Pátria, realizando o milagre da paixão absoluta

entre os liberais, o povo, os portugueses. a aristocracia. Sentindo-se firme no poder. tratou de

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desestruturar as sociedades secretas que o haviam ancorado, em especial a maçonaria

vermelha que esboçava intenções republicanas. Mesmo a maçonaria azul foi afetada: José

de Bonifácio, Patriarca da Independência e idealizador de uma "monarquia dual, uma

espécie de federação luso-brasileira" , foi exilado (Prado Jr., 1 979, p.364).

Proclamou-se a independência mas o regime monárquico transplantado da Europa continuou no Brasil ( . . . ) não se põs o problema da forma política. Com a ideologia monárquica enraizada, a maioria do povo brasileiro e os políticos, apoiaram o líder da emancipação política do Brasil que era um príncipe. Mesmo os elementos mais radicais concentravam-se mais na idéia do federalismo do que propriamente na República, com todas as suas implicações democráticas(José Ribeiro Jr, em Moto, 1 990, p. 1 5 1 ) .

A Constituição, outorgada pelo imperador, em 1 824, preconizava a livre iniciativa, garantia

o direito a propriedade (inclusive de escravos) e a educação gratuita para todos. Ela

exciuía direitos políticos dos trabalhadores, caixeiros e criados, bem como de todos que não

tivessem renda líquida anual de 1 00$000 (maioria da população), e dos que não fossem

católicos. A contradição era mais gritante quando se considera o artigo 1 79 que, inspirado

na Declaração dos Direitos do Homem, abolia os privilégios, preconizava liberdade de culto

(desde que respeitada a religião do Estado), garantia liberdades individuais e estabelecia

igualdade de todos perante à lei (Vioti da Costa, em Moto, 1 990).

Velho ( 1 976, p. 1 38) lembra que qualquer pessoa que trabalhasse sem elos com o sistema

dominante era vista com grande suspeita e frequentemente "encontrava oposição direta,

senão armada". Mesmo os mais de 1 8 movimentos messiânicos que ocorreram a partir de

1 8 1 7, todos baseados numa "idealização do passado", tenderam a criar vínculos com o

sistema dominante. Em casos de coexistência impossível, como Canudos e o Contestado, os

"renunciadores à ordem estabelecida" foram dizimados'.

Era contraditória a apologia intelectual à riqueza e ao cosmopolistismo, ao capitalismo e ao

liberalismo, frente a um sistema político centralizador e autoritário, despótico, num país

pleno, senão de miséria, ao menos de significativas desigualdades sociais e regionais. Não

menos contraditório era o imperador D.Pedro I, no exercício do Poder Moderador que,

, Como parte de uma brilhante exposição qualitativa sobre a questão da fome no Brasil, o médico Josué de Castro (1992), ao retratar o fenômeno do messianismo, lembra que "as carências múltiplas que se associam nos casos de fome absoluta entre os sertanejos devem provocar distúrbios nervosos . . . Além desta ação direta sobre a personalidade do sertanejo, fazendo-os uns desorientados e desajustados, age a fome periódica desorganizando ciclicamente a economia da região e criando um meio social extremamente receptível às atividades do cangaceirismo e do beatismo. Meio social formado de massas humanas predispostas à aceitação e à adoração desses tipos singulares que simbolizam a sua aspiração de fuga à miséria - fuga pela força do fuzil ou pela força da magia. A verdade é que, para o sertanejo, o cangaceiro raramente é um criminoso, um celerado, sendo cantado e louvado como um homem valente que joga cavalheirescamente a sua vida para defender os oprimidos e alimentar os famintos, roubando dos ricos para distribuir com os pobres. As conexões entre a fome e a adoração mística são tão claras e conhecidas que quase não merecem comentários . . . Durante a luta de Canudos, o fanático Antonio Conselheiro pregava entre os seus prosélitos, conforme documentou Euclides da Cunha, 'os jejuns prolongados, as agonias de fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais intimos, que atravessava os dias alimentando-se com um pires de farinha' " (p.254-257).

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segundo Reale ( 1 985), era uma "concepção do teórico francês chamado Benjamin

Constant, que conferia ao rei a função de harmonizar entre si os Poderes Executivo,

Legislativo e Judiciário".

(O.Pedro) rezava pela cartilha liberal que colocava a lei acima do personalismo, mas não admitia que lhe ditassem o que fazer; casado com a filha do imperador da Áustria, cunhada de Napoleão, defendia a pureza de sua Coroa enquanto reconhecia em público os filhos que ia tendo com a amante, a marquesa de Santos; passava horas encontrando fórmulas para economizar centavos, e em seguida torrava milhões num ímpeto incontrolável; gastava meses negociando duramente um acordo, para logo depois assinar outro sem avisar ninguém; saía de noite pelas ruas a galope, acordava ministros para tomas decisões, das quais muitas vezes se arrependia no dia seguinte (Caldeira, 1 995, p.99)

Faoro ( 1 975, p,295) lembra que o núcleo do comando polítiCO restringira-se ao "circulo

íntimo que cercava o imperador, lisonjeando-o". O.Pedro I imperava por meio de ministros,

servos de sua vontade e capricho. O Senado Vitalício e o Conselho de Estado, desvírilizados,

serviam apenas para homologar o comando único da cúpula, tomando-se "inexpressivos

apêndices do soberano".

O Estado endividava-se com a Inglaterra para ampliação da estrutura administrativa, para

pagamento das tropas mercenárias que lidavam com insurreições internas e para

financiamento da guerra Cisplatina. Em meados do século XIX, o serviço das dívidas

absorviam 40% das receitas, e o Banco do Brasil, sem dinheiro em caixa, emitia papel­

moeda e incendiava a inflação (José Ribeiro Jr., em Mota, 1 980; Prado Jr., 1 980).

O Brasil, assim, tendeu a tornar-se uma espécie de colõnia britãnica 'oculta ' . A independência brasileira, em 1 822 foL do ponto de vista britãnico, uma maneira de completar o estabelecimento de um vínculo direto, o que havia se iniciado em 1 808- 1 0 com a abertura dos portos brasileiros à nações 'amigas' e a fixação de taxas alfandegárias sobre os produtos britãnicos ( 1 5%) que eram menores do que as sobre produtos de outros países (24%) e menores, até, do que as cobradas dos próprios produtos portugueses ( 1 6%) (Velho, 1 976, p . l l l ) .

No decorrer do século XIX, cresceram as pressões contra o tráfico negreiro. A Inglaterra já

oferecera, em troca do fim do regime escravocrata, o reconhecimento imediato da

independência, em novembro de 1 822 (Manchester, 1 973). O.Pedro I recusara,

obstaculizado pelo poder dos grandes proprietários e pelos interesses dos traficantes.

Entretanto, Felisberto Pontes, marquês de Barbacena, representante do Brasil na Inglaterra

por indicação dos própriOS traficantes, reelaborou suas idéias e alianças ao receber 2% do

primeiro empréstimo inglês posterior à Independência. Assim, ele intermediou o tratado que

regulamentou o fim do tráfico. No mesmo texto, os ingleses mantinham privilégios políticos e

comerciais; Portugal reconhecia a independência do Brasil e a nascente nação brasileira

assumia o pagamento do empréstimo tomado da Inglaterra pela ex-metrópole para

combater essa independência.

O. Pedro I realizava seu projeto pessoal de continuar herdeiro do trono lusitano. Aos

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traficantes foi concedido o período de cinco anos para intensificarem o comércio de

escravos até a promulgação de uma lei. em novembro de 1 83 1 que proibiu o tráfico de

africanos para o Brasil. Todavia, a lei "não pegou" e o número de negros que entravam no

Brasil continuou a crescer, agora através do contrabando que, pelo ocultamento de

registros, promovia a queda de arrecadação.

Três anos após a renúncia e fuga noturna de O. Pedro I do Brasil, em 1 93 L ele tornava-se

O.Pedro IV de Portugal. No mesmo ano, nos trópicos, o Ato AdiCionai reformava a

Constituição Nacional. Crescia o poder dos liberais com a nomeação da primeira regência,

que durou dois meses (Caldeira, 1 995). Na regência seguinte, sob liderança do então

Ministro da Justiça, o padre Feijó (admirador intelectual de Rousseau), as sementes revoltosas

foram atacadas pelo braço firme do major Silva, futuro Ouque de Caxias e símbolo nacional:

à ordem de apelar para a violência quando necessário, "como bom soldado, cumpridor de

ordens, o major não titubeou" (Caldeira, 1 995, p.1 28).

Os liberais no poder convertem-se em conservadores, em guardiões do país contra a anarquia. Este o primeiro ato do drama do liberalismo brasileiro, ideologia de oposição, demolitório, incapaz de governar de acordo com seu programa ( . . . ) Feijó refletirá bem este espírito: seduzido, na oposição, com a liberdade, torna-se, na cadeira ministerial, a mão de ferro implacável contra a turbulência gerada de idéias que foram suas (Faoro, 1 975, p.300).

Na política externa, o alvo de Feijó foi o monopólio inglês, através da redução de tarifas às

importações de outros países. Em 1 844, quatro anos após O.Pedro 11, com maioridade

antecipada, assumir o trono brasileiro, o Brasil reagiu à sobretaxação do açúcar brasileiro na

Inglaterra: a tarifação Alves Branco aumentou para até 60% a taxa de importação de

produtos ingleses. Isto estimulou o início de algumas indústrias locais (Virgmo Pinto, em

Mota, 1 980) . Promoveu-se, também, uma descentralização do poder e contenção de

despesas. Entretanto, a maçonaria vermelha, reestruturada, achava lento o ritmo de

mudanças e radicalizava :

Em várias províncias eclodiram revoltas, sempre com o objetivo de criar um governo republicano local. Cada uma ganhava um nome: Cabanagem, no Pará: Balaiada, no Maranhão: Sabinada, na Bahia: Carneiradas, em Pernambuco. A história de todas elas foi semelhante: o grupo imbuído de ideais republicanos - composto em geral de artesãos, funcionários públicos e alguns proprietários com vínculos na capital da província - conseguia tomar o poder ou ao menos desencadear uma forte rebelião na capital. Os conservadores reagiam, convocando tropas para retomar a cidade. Por fim, 05 liberais fugiam para o interior - território dos fazendeiros conservadores - e acabavam invariavelmente esmagados (Caldeira, 1 995, p. 1 5 1 ) .

O drama brasileiro tinha como n ó central a contradição de revolucionários que não sabiam

como conciliar a proposta de uma república formada por cidadãos iguais perante à lei com

uma estrutura sócio-econõmica escravagista. Em 1 830 o café ultrapassara o açúcar, o

algodão e o couro na pauta exportadora. Esta monocultura dependia do braço escravo

para manter-se atrativa. (Virgmo Pinto, em Mota, 1 980). As pressões pela reversão do

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panorama escravocrata intensificaram-se após a aprovação, em 1 845, do Bi/! Aberdeen ato

pelo qual o parlamento inglês tornava lícito o apresamento de embarcações traficantes e

sujeitava os infratores às penas da pirataria (Manchester, 1 973).

Após 1 850, com lei Eusébio de Queiroz, aumentou o combate ao tráfico negreiro no Brasil.

Isto estimulou o comércio interno de escravos, do Norte decadente para um Sul que

vivenciava mais uma fase de intensa e rápida prosperidade, baseada na exportação do

café e na disponibilidade de capitais pela diminuição do tráfico internacional (Prado Jr.,

1 980; Ribeiro, 1 994).

Enquanto uma única patente industrial fara expedida entre 1 831 e 1 835, entre 1 88 1 e 1 889 o

número cresceu para 955. Pela terceira vez, em 1 850, foi fundado um Banco do Brasil e, em

1 85 1 , onze companhias comerciais e industriais constituíram-se pessoas jurídicas (Virgílio

Pinto, em Mota, 1 980; Manchester, 1 973). Fracassou a tentativa de incentivar a vinda de

imigrantes europeus como mão-de-obra alternativa.

As colõnias criadas em distintas partes do Brasil pelo governo imperial careciam totalmente de fundamento econõmico; tinham como razão de ser a crença na superioridade do trabalhador europeu, particularmente daqueles cuja 'raça' era distinta da dos europeus que haviam colonizado o país. Era essa uma colonização amplamente subsidiada ( . . . ) quando. após os vultuosos gastos, se deixava a colõnia entregue a suas próprias forças, ela tendia a definhar, involuindo para uma simples economia de subsistência ( ... ) Viajantes europeus que passavam por essas regiões se surpreendiam com a forma primitiva de vida dos colono e atribuiam seus males às leis inadequadas do país ( ... ) A consequência prática de tudo isso foi, entretanto, que se formou na Europa um movimento de opinião contra a emigração para o império escravista da América e. já em 1 859, se proibia a emigração alemã para o Brasil. (Furtado, 1 980, p. 1 24- 1 25)

Contudo, a identidade brasileira se formava. Em 1 852, O.Pedro 11. inaugurava o telégrafo

nacional. Em 1 874, um cabo telegráfico submarino unia Brasil à ex-metrópole, Portugal. No

ano seguinte, o imperador inaugurou a intertigação entre Rio e Bahia. Pernambuco e Pará,

através do primeiro sistema nacional de comunicação telegráfica por cabo submarino. Em

1 878. nosso último monarca fazia a primeira ligação telefõnica do Palácio de São Cristovão

para a Praça XV, no Rio.

Faoro ( 1 975) desmente a visão de um Segundo Reinado "harmônico e elegante,

enganadoramente monumental", no qual o governo parlamentar, já estruturado na

Regência, se expandiria. sob o reinado de O.Pedro 1 1 . durante cinquenta anos de concórdia,

paz, prosperidade e predomínio da vontade popular .

.. todos sabiam que as eleições tinham pouco haver com a vontade do povo ( . . . ) a verdade eleitoral não sairia da lei. como queriam os estadistas ( . . . ) o eleitorado obedece ao governo, qualquer que seja este, uma vez que seja o poder que nomeia. que possui as armas e o pão. O deputado, dentro deste circulo de ferro, era nada mais que o resultado das combinações de cúpula, tramadas nos salões dos poderosos ( . . . ) Na verdade. o governo parlamentar, tal como o exerce O.Pedro II ( . . . ) não corresponde ao sistema em curso na Inglaterra. imã. ao mesmo tempo das vontades e teorias. Parlamentarismo dualista, filho da monarquia limitada ( . . . )

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seguia, embora imitasse o parlamentarismo inglês, na verdade, o rumo oposto, do exercício pleno do poder Moderador ( . . . ) Os partidos não são 'claramente definidos ' , resultando daí que as maiorias 'são mais ocasionais que permanentes ' , sujeitas a uma arregimentação incerta, precária, penosa ( . . . ) N o fundo, pulsa, vibra, orienta e comanda a famosa oligarquia ( . . . )calçada na vitaliciedade, no Senado, no Conselho de Estado ( ... ) O imperador reina e governa, sem que o anime a fome do poder tirânico: filho e vítima de um sistema, ele viça à sombra de instituições secularmente plantadas (p.341 -39 1 ) .

Noya Pinto (em Mota, 1 990, p. 1 4 1 ) retrata a industrialização do país, lembrando que entre

1 839 e 1 844. o título máquinas e acessórios ocupava o 250 lugar entre as importações,

passando a 1 1 0 em 1 870, e a 60 lugar em 1 902. Tal ascensão assinala o "esboço do

aparelhamento industrial brasileiro". Faoro ( 1 975) concorda com a escalada crescente da

importação e industrialização em meados do século XIX, mas lembra ( 1 ) do modo peculiar

de empreendimento industrial "sem risco" e (2) da expansão do café, com a qual há uma

pressão para redirecionamento dos recursos estatais para tal monocultura :

Convencido da necessidade de indústrias para o Brasil, voltou-se o empresário, até então dedicado ao comércio de importações, para a indústria do ferro, a qual, 'sendo mão de todas as outras, me parecia o alicerce dessa aspiração' . Não confiou Mauá apenas na proteção alfandegária, tratou de conseguir dois auxOios diretos: a garantia de compra, por parte do governo, de tubos para encanamento de água, e a obtenção de empréstimos, por meio de leis votadas pelo Parlamento, a prazo longo e juros baixos. Supria-se, desta sorte, os dois mais importantes impedimentos ao incremento industrial - o mercado restrito e incerto, bem como a pobreza de capitais. Matou a indústria a mudança de rumo do govemo. 1 5 anos depois da tarifa Alves Branco . . . O café cresce e se expande, pressionando em todos os campos, a politica econõmico-financeira. Os recursos disponíveis correram para a lavoura exportadora (p.424).

Na política internacional do período, destaca-se o rompimento e reatamento de relações

com a Inglaterra (mediado por Portugal) e o término das convenções consulares com

Portugal, França, Espanha e Inglaterra ( 1 887).

O Brasil libertava-se das obrigações decorrentes dos tratados (concluídos na primeira

década de sua existência nacional) , que privilegiavam os europeus e impunham restrições à

soberania brasileira. Paralelamente, crescia o intercâmbio comercial com os Estados Unidos,

principal mercado comprador de café (Manchester, 1 973; Virgílio Pinto, em Mota, 1 980).

Apesar desta "propensão internacionalizante", o Brasil, juntamente com Cuba, marcava-se

por ser um país que continuava admitindo a escravidão, após os Estados Unidos abolirem­

na, em 1 865. A Guerra do Paraguai -que, entre 1 865 e 1 875, elevou o prestígio do Duque de

Caxias- ilustrava em relevo as debilidades de uma nação com cerca de 1 5% da população

escravizada. Isto provocou uma nítida divisão pOlítica: em 1 868, o imperador, exercendo o

poder Moderador, organizou um ministério conservador, escravocrata e, licitamente, mas

com ares gol pistas, dissolveu a Câmara. Como resposta, organizou-se um novo partido

liberal que cingiu-se em 1 870, gerando uma extremada ala republicana. Em 1 87 1 , foi

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aprovada a Lei do Ventre Livre, pela qual filhos de escravos já nasceriam livres. Tal lei não

apresentou grandes resultados práticos, pois os nascidos continuavam dependentes dos

donos de seus pais.

Após 1 885 acirrou-se o confronto, sendo o abolicionismo apoiado pela recusa das Forças

Armadas a apoiar os senhores de escravos. Em 1 888, a Lei Áurea, surpreendentemente

sucinta para padrôes brasileiros, declarava, em dois artigos, ( 1 ) extinta a escravidão e (2)

revogadas disposiçôes em contrário (Prado Jr., 1 980) :

Num país ao tempo essencialmente agrícola, desmantelamos o trabalho servil, base de nossa economia patriarcal , sem promover a necessária valorização do trabalho livre, com o qual deveria ser composta a situação. Em lugar de mecãnicos, engenheiros, químicos, agrônomos, artesãos, operários qualificados e especialistas, milhares de bacharéis de anel no dedo a provar a primeira vista que não trabalham com as mãos; milhares de beletristas mofando nas repartições públicas; milhares de candidatos à sinecura e ao invejado título de malandro (Moog, 1 978, p.2 1 4) .

Neste ponto, quero ressaltar a impossibilidade de, numa despretensiosa "edição da

realidade em sequência historicista", apresentar e analisar todas as convergências e

divergências entre os vários autores que consultei sobre os fatos do Brasil-Colônia e do Brasil­

Império.

Ribeiro ( 1 994) acha que o Brasil, no plano econõmico, é produto da interação de três

empreendimentos produtivos :

( 1 ) uma empresa escravista. (2) um utópico projeto comunitádo jesuítico; (3) um setor de

baixa rentabilidade e alto impacto social formado por microempresas de produção de

gêneros de subsistência e criação de gado. Eles se unem a uma esfera "parasitária

improdutiva" : o (4) lucrativo núcleo intermediador formado por banqueiros e agentes de

câmbio, armadores, exportadores e importadores. Estes quatro empreendimentos precisam

ser entendidos em sincronia com o patriciado burocrático que administrava e com a classe

eclesiástica católica, na determinação da vida civil e a militar. Ele menciona que esta

estruturação levava a um "estado de guerra latente entre forças sociais desiguais" (p. 1 67-

1 75) .

Moog ( 1 978), comparando Brasil e Estados Unidos, retrata as idiossincrasias dos diferentes

processos socio-político-econômicos. Enquanto a colonização norte-americana foi feita em

termos de ocupação política e consolidação pela formação de estados independentes e

confederados (que se defendiam da hipertrofia do poder central), no Brasil, a ocupação foi

predatória, as capitanias hereditárias foram distribuídas sem obrigação de trabalho dos

donatários e a instalação de indústrias na colônia era proibida até a vinda da família real

portuguesa.

Nos Estados Unidos as famílias imigrantes exercitavam a ética puritana do trabalho e

frugalidade, intencionando ficar e criar uma nova sociedade com valores liberais e com

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uma forte crença na predestinação. Crença esta que influenciou a admiração pela riqueza

(sinal de "escolha por Deus") e o desprezo pela pobreza (sinal de abandono divino). Nos

mesmos termos religiosos, os brasileiros fomos influenciados pela notória repulsa católica à

riqueza e à propriedade privada que "deve ser tolerada apenas como concessão à

fraqueza humana" (p.49). A Igreja considerava pecado a auferição de lucros ( turpe fucrum)

tanto pela dedicação às atividades mercantis, quanto pela cobrança de juros, que

significaria o insulto de "vender o tempo que pertence a Deus" (p.52) :

Ao praticar o mercantilismo, o português não pensou dentro dos moldes da realidade, permaneceu encarcerado nas idéias medievais ( . . . ) Os interesses econômicos se subordinavam à salvação da alma, verdadeiro fim da vida, entendida a atividade econômica como integrante da conduta moral, ditada pela moral teológica. Os motivos econômicos, extraviados de suas inspiraçôes éticas, seriam suspeitos de pecado (Faoro, 1 975, p.6 1 )

A concessão de terras, baseada na obrigação de cultivo e nos resultados econômicos,

levou à construção do território americano por meio de aquisiçôes, guerras e ocupaçôes. O

desenvolvimento ferroviário e a existência de jazidas carboníferas de alta qualidade

facilitaram a instalação de indústrias nos moldes europeus durante o século XIX.

No Brasil, os atuais contornos geográficos se devem a tratados internacionais negociados

pela metrópole, alguns deles antes até de 1 500. As características topográficas brasileiras

inibiram o deslocamento para o interior, bem como atrasaram o desenvolvimento de

sistemas de transportes de grandes volumes (ao contrário dos pioneiros norte-americanos,

que só bem adiante na penetração encontraram o obstáculo das Montanhas Rochosas).

A imigração européia para a colônia norte-americana ocorreu em números

quantitativamente significativos e foi predominantemente política e religiosa. O transplante

se deu agregando valiosa tecnologia e formação educacional ao excesso da força de

trabalho inglesa. A imigração européia no Brasil, que comparativamente à norte-americana

foi insignificante em termos numéricos, se deu por estagnação econômica nos países

originais, sem transferência tecnológica. Em grande parte os que chegavam eram

analfabetos.

Moog acredita ainda que, no clima tropical de mais de dois terços do território brasileiro,

"não há estímulo para a produção de aquecimento, estímulo que talvez constitua o primeiro

momento de todo desenvolvimento industrial" (p. 1 3) e ressalta que "a maioria dos nossos

terrenos carboníferos está situada a grande distãncia dos centros industriais e a qualidade

do carvão é inferior" (p.45).

Waller ( 1 984) descreve as limitaçôes fisiológicas de trabalho manual sob temperaturas acima

de 27°C : "exceeding this temperature leads to fast overheating of the body, physical

performance declines rapidly and several hours of rest are necessary to restore the thermal

equilibrium of the body" (p. 1 4 1 ) .

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Reis ( 1 985) lembra do marasmo referente às atitudes educacionais na Colônia, com

exceção do período de Maurício de Nassau durante a presença holandesa no nordeste. A

marca do início do estudo das ciências no Brasil teria sido o Seminário de Olinda, fundado

em 1 800, que, com idéias liberais, rompia com o ensino religioso formai. A continuidade

deste rompimento com a tradição católica só se daria em 1 837, com a criação do Colégio

que depois foi nomeado Pedro li. Ele lembra que a frutificação de núcleos de ciência só se

deu após a vinda de O.João VI, inclusive com a impressão dos primeiros livros editados no

Brasii.

Furtado ( 1 980) diz que o principal problema na época do fim da escravidão era a

insuficiente oferta de mão-de-obra. Ele aprofunda a análise, dizendo que, com o fim da

escravidão, não ocorreu no Brasil nenhum dos extremos previstos por teorias econômicas.

Nem foram os salários mantidos em nível de subsistência, sem redistribuição de renda, como

houve em ilhas das Antilhas inglesas que aboliram a escravidão sem quaisquer modificação

na organização da produção; nem houve enormes mOdificaçôes na estruturação

econômica (por oferta elástica de terras). com consequente subida de salários e

redistribuição de renda. Ele aproxima o primeiro caso do que aconteceu no Nordeste

açucareiro; e o segundo caso da região cafeeira, embora com menor dispersão em busca

de novas oportunidades e consequentemente, um baixo aumento salarial :

Tudo indica que na região do café a abolição provocou efetivamente uma redistribuição da renda em favor da mão-de-obra. Sem embargo, essa melhora na remuneração real do trabalho parece haver tido efeitos antes negativos que positivos sobre a utilização dos fatores ( .. . ) é necessário ter em conta alguns traços mais amplos da escravidão. O homem formado dentro desse sistema social está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos! . .. ) a idéia de acumulação de riqueza é praticamente estranha ( ... ) Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem incansável, a elevação de seu salário acima de suas necessidades - que estão definidas pelo nível de subsistência de um escravo - determina de imediato uma forte preferência pelo ócio ( ... ) Podendo satisfazer seus gastos de subsistência com dois ou três dias de trabalho por semana, ao antigo escravo parecia muito mais atrativo 'comprar o ócio' que seguir trabalhando quando já tinha o suficiente para viver" (p. 1 40) .

Ainda sobre as relaçôes trabalhistas, Caldeira ( 1 995) afirma :

Assim. na loja. na rua ou na vida privada. o destino dos empregados dependia bastante dos incertos caprichos de seus patrôes ( ... ) a estrita obediência e o mais completo respeito pelas ordens faziam parte da cartilha ( ... ) A forma de tratamento mais comum com que os caixeiros se dirigiam ao patrão era 'meu amo' . Eles deviam submeter-se sem reclamar ao controle total de sua vida profissional e privada, sempre sujeitas a exames e julgamentos; obedecer fielmente a todas as determinaçôes, mesmo às mais esdrúxulas, para demonstrar sua fidelidade: cuidar das tarefas domésticas e não se meter em confusôes pela cidade, que poderiam macular seu nome. Essas limitaçôes eram compensadas por algumas 'vantagens' afetivas. Os patrôes que davam casa e comida se sentiam 'pais' dos empregados, que tratavam como 'filhos' (Caldeira, 1 995, p.66-67)

Prado Jr ( 1 980) diz que, ao final do Império, o Brasil tinha uma população de 1 4 milhôes de

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habitantes, incluindo uma classe-alta com padrões de consumo semelhantes aos europeus.

O intercâmbio externo do país era significativo em termos internacionais, pois, apesar das

deficiências pela falta de planejamento integrado, avançara-se em termos de sistema de

transporte e rede telegráfica. Ele destaca a indústria têxtil mas lembra da rudimentar

capacitação técnica da mão-de-obra existente e, especialmente, da dependência

econômica absoluta do setor agrícola direcionado à exportação.

Em especial o café era um virtual monopólio internacional com a alta produtividade e

expansão determinadas mais por fatores extrínsecos do que por realizações empresariais :

Mauá, o maior empresário e banqueiro do Império, via com clareza a estrutura do seu tempo. Ele sofria, como todos, o dilaceramento de tendências opostas: reclama a liberdade para a empresa, mas não dispensa, senão que recloma estímulo oficial, envolvendo o Estado nos negócios, no esquema global. O Estado, por seu lado, tutela para que o país progrida . . . O empresário quer a indústria, mas solicita a proteção alfandegária e o crédito público. Duas etapas constituem o ideal do empresário: na cúpula, o amparo estatal: no nível da empresa, a livre iniciativa" (p.433)

A este cenário, aliaram-se as caóticas e instáveis políticas monetária e de crédito

internacional. como obstáculos à estabilização e à segurança financeiro. Isto se refletiu nos

desequilíbrios demográficos e nas significativas diferenciações entre as regiões do país.

Prado Jr ( 1 980) lembra que "a mudança de regime não passou efetivamente de um golpe

militar, com o concurso apenas de reduzidos grupos civis e sem nenhuma participação

popular" (p.208) .

Faoro ( 1 976) lembra do fator ascendente no cenário político no fim do Segundo Reinado,

que é a influência local, personificada nos coronéis : "O deputado será o agente que cuida

das nomeações, das promessas, dos favores, dos arranjos . . . As nomeações deveriam vir pela

mão do candidato, o ministério cuidaria de alguns afagos. Visitas, discursos, amizades,

empenhos, nomeações, sâo os ingredientes da vitória. O dinheiro entra em cena,

comprando os votos, com os eleitores mais dedicados passando ao lado contrário" (p.385).

Além disso, após a vitória da Tríplice Aliança, o que fora uma corporação secundária diante

do peso da Guarda Nacional. começou a tomar consciência de si, como força à parte da

politicalha: "A visão de que entre a Nação e o Estado, entre as classes, os escravos e o

Império, havia um estamento cívico, provado na luta, que merecia respeito e queria exercer

poder, começou a generalizar-se entre oficiais" (Cardoso, 1 977,p.28).

O espírito corporativo se intensificou no exército, cujos membros se sentiam superiores e

responsáveis pela Nação, merecedores de privilégios supostamente derivados das

abstinências e renúncias materiais: "o estamento estava partido, com a supremacia do setor

militar, herdeiro da desagregaçâo da monarquia" (Faoro, 1 975, p.483).

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3.2.2 - Regime Republicano

3.2.2. 1 - República Velha

o exército foi responsável pela transformaçãos de monarquia em república, efetuada num

poço de contradições que misturava idéias republicanas com restrições ao federalismo.

Desconfiava-se que o federalismo poderia catalisar um inadmissível desmembramento

territorial, pelo desejo de predominio de chefes políticos provinciais. Intensificou-se o

coronelismo, motivado pela ambiguidade de tal proposta federativa com um governo

militar centralizador. O Coronelismo, segundo Faoro ( 1 975), tratava-se de um poder de

homem a homem, não racional, pré-burocrático, de índole tradicional:

O coronel é, acima de tudo, um compadre, de compadrio o padrão dos vínculos com o séquito. A hierarquia abranda-se, suavizando-se as distãncias sociais e econõmicas entre o chefe e o chefiado . . . O eleitor vota no candidato do coronel não porque tema a pressão, mos por dever sagrado, que a tradição amolda (p.633-634)

Campello de Souza (em Moto, 1 980, p . 1 67) diz que a Constituição de 1 89 1 impõs a forma

federativa, o presidencialismo, a ampliação do contingente eleitoral, e antecipou-se a um

crescimento urbano ligado umbilical mente à economia cafeeiro. Era um sistema

influenciado, em teoria, pelo modelo do Estado democrático-liberal dos EUA, mas

caracterizado, na prática. por um equilíbrio altamente instável entre uma ditadura militar,

que lutava para manter a unidade nacional, e uma proposta federalista "cujo foco de

poder se localiza nos Estados, sob hegemonia dos economicamente mais fortes, liberal na

sua forma, oligárquico quanto ao funcionamento efetivo".

Janotti ( 1 98 1 , p.33) fala em "encadeamento rígido de tráfico de influências", "pirãmide de

compromissos recíprocos". "ilusão de se viver momentos de grandes transformações". Na

repartição do poder, permaneceram as antigas oligarquias e se introduziram as novas,

representadas, em São Paulo. pelos proprietários de terra, banqueiros e comissários de café.

O cenário internacional, em 1 889, indicava um incremento do comércío internacional,

estimulado pela industrialização, pelo liberalismo e pelos aperfeiçoamentos tecnológicos. O

mercado para produtos tropicais se alargava. Entre 1 886 e 1 930, a dívida externa cresceu

quase nove vezes. O governo federal, os estados agora autônomos e a municipalidade

usavam empréstimos externos para garantir os transportes ferroviários e marítimos que

transportavam os grandes volumes de produção agrícola, e a energia elétrica que

, Otávio Velho ( 1 976) diferencia conceitualmente os termos transformação e mudança. Simplificadamente, o primeiro implica continuidade, enquanto o segundo é caracterizado por algum rompimento significativo. No Brasil, fala-se muito em mudança, mas tem-se, na prática, transformações: "Na madrugada de 1 5 de novembro só percutem incidentes militares sem expressão: uma longa marcha culmina no golpe sem sangue" (Faoro, 1 975, p.494).

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acionava maquinaria aperfeiçoada na produção do café (Prado Jr., 1 980).

No mesmo período, ocorreu o maior fluxo de imigração internacional para o país,

contrabalançada, entretanto, pelo paralelo crescimento da emigração. Embora

numericamente insignificante, o papel da imigração foi muito importante como formador

de certos conglomerados regionais (Ribeiro, 1 994, p.242).

Falando sobre os govemos de Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Prudente de Morais,

Franco (em Abreu, 1 990) dá importãncia a: ( 1 ) o estabelecimento de firmas estrangeiras no

país, (2) o colapso do preço do café, (3) a expansão monetária com a política papelista de

Rui Barbosa - "encilhamento" -, e consequente detonação de atividades especulativas na

bolsa de valores, (4) a significativa propensão dos brasileiros a manter largas quantias em seu

poder e não depositar moeda em bancos, (5) a instabilidade cambial, (6) as oito

substituições de Ministros da Fazenda, (9) a moratória externa ocorrida em 1 898.

Ribeiro ( 1 994) atenta para: (I) a indústria açucareira do nordeste, baseada em privilégios

governamentais à oligarquia patricia I controla o sistema partidário local; (2) o interior

nordestino, onde estoura a revolta de Canudos ( 1 896-1 897), organizada em torno dos

poderes messiãnicos de Antonio Conselheiro, terminando em genocídio e contrapondo

cangaço e coronelismo; (3) o cercamento de latifúndios e expansão dos pastos no Centro­

Sul; (4) a consolidação da oligarquia dos cafeicultores, que dominaram as atividades do

plantio à exportação, evitando a submissão, como na lavoura açucareira, ao patronato

exportador. Tal poder seria retratado nas consecutivas eleições de Presidentes e no controle

indireto das desvalorizações da moeda para compensar as quedas de preço do café.

Furtado ( 1 980) lembra que a situação de extrema pressão sobre a massa de consumidores

urbanos "tornou impraticável insistir em novas depreciações ( ... ) Exatamente nessa etapa

em que se fazia impraticável apelar para o mecanismo cambial, a fim de defender a

rentabilidade do setor cafeeiro, configura-se o problema da superprodução" (p. 1 78) .

Entre os dois pólos cafeeiros do centro-sul, inchou-se o setor intermediário e o industrial, numa

"urbanização caótica" (Ribeiro, 1 994). Havia a concentração de 30% da atividade industrial

no Estado do Rio, contra 1 6% em São Paulo e 7% no Rio Grande do Sul, sempre mantendo-se

o "vínculo entre o Estado e o dinheiro" (Faoro, 1 975, p.5 1 3) .

Cardoso ( 1 977) recorda a pressão industrialista por regulamentações protecionistas durante

os governos de Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Prudente de Morais. Restou a Campos

Sales, o presidente seguinte, sanear as finanças pela ortodoxia monetarista e cortes drásticos

dos gastos públicos, além do auxílio externo através do funding loan inglês, re-financiando

empréstimos anteriores. Tal freada na euforia inicial da república resultou na quebra de

quase metade do sistema bancário e deflação de 30%, pelo enxugamento da liquidez.

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Campello de Souza (em Mota, 1 990) sustenta que o equilíbrio dependeu da política dos

governadores: "deputados e senadores garantiam-se a si próprios mandatos sólidos e

intermináveis no Congresso ( . . . ) Iniciou-se a implantação das oligarquias estaduais, cujo

poder se fecharia às tentativas conquistadoras das oposições que surgissem"(p.1 85). Deste

modo, propiciava-se ao regime federativo o equilíbrio procurado nos anos anteriores. Ou

seja, os governos entre 1 902 e 1 930 - Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da

Fonseca, Venceslau Brás, Delfim Moreira, Epitácio Pessoa, Artur Bernardes, Washington Luis -

mantêm, em termos internos, características semelhantes, na dinâmica e instável oscilação

entre federalismo e centralizaçâo:

... realidade articulada pelos dois grandes Estados, Sâo Paulo e Minas Gerais, com os desafios de outras contestações discretamente coordenadas pela terceira força, logo assumida pelo Rio Grande do Sul. O aparelho fiscal e financeiro, concentrado na Uniâo, permitia sufocar essa reaçâo, dada a permanente penúria dos Estados para proverem às suas necessidades. Só os grandes estariam ao abrigo da ajuda federal direta, impondo seus interesses na formulaçâo da pOlítica econômica. Os pequenos Estados obedecem porque são pobres e continuam pobres porque não participam dos estímulos comandados pela União. Essa circunstância permitiu que a política dos governadores evoluísse para a supremacia do presidente da República, numa tendência que o presidencialismo favorecia ( . . . ) Desde aí. a intervenção nos Estados encontrara a sua norma conciliatória, mediante um tácito ajuste entre eles e a União .. . Além do argumento extremo, as nomeações, a ajuda econômica com obras federais, os cargos ministeriais cativam lealdades e suavizam o mando" ( Faoro, 1 9 75, p.569-569) .

o início do século XX foi caracterizado por Furtado( 1 980) como a passagem de país agrícola

a país periférico, com continuidade da dependência política, econômica e tecnológica do

Brasil no cenário internacional.

Na época, o Marechal Rondon, Patrono das Comunicações Brasileiras já liderava a

implantação telegráfica que se concluiu em 1 9 1 5 com 2.368 Km de linhas instaladas,

metade em plena selva. Intensificavam-se as comunicações à distância que, se por um lado

integraram o país, por outro iriam estimular o processo chamado por Velloso ( 1 986, p.9 1 ) de "

efeito demonstração cultural" pelo qual as classes médias em países subdesenvolvidos

passavam a aspirar padrões de consumo vigentes, no mesmo momento, em países

desenvolvidos.

Winston Fritsch (em Abreu, 1 990) lembra que no períOdO entre 1 900 e 1 930, "convivem o

apogeu, as tensões crescentes e a derradeira ruptura do sistema de controle político

consolidado a ferro e libras pelos grupos hegemônicos da república durante o biênio

Campos Salles-Rodrigues Alves" (p.3 1 ) . Em termos externos, ele atenta para a

vulnerabilidade da economia brasileira aos choques exógenos, os "profundos desequilíbrios

macroeconômicos provocados por alteraçôes bruscas na posição externa a que o Brasil

estava sujeito por razões estruturais" (p.35). O Brasil teria sido sobremaneira impactado pelo

boom e colapso do preço internacional dos produtos primários, e pela oscilação

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extraordinária dos fluxos de comércio e investimentos externos, em contextos de : ( 1 )

crescimento anômalo dos investimentos europeus na periferia ( 1 900- 1 9 1 3) ; (2) Guerra

Mundial ( 1 9 1 4- 1 9 1 8) ; (3) Pós-Guerra ( 1 9 1 8- 1 927) e (4) Depressão Mundial ( 1 928- 1 929). Além

disso, adotou-se o padrão-ouro, com características negativas para o país endividado e

comercialmente dependente.

Durante a Guerra, pela erosão dos salários reais, houve a primeira onda de manifestações

operários. Após a Guerra. as oscilações intermitentes dos preços do café e a defesa ao setor

cafeeiro levaram ao desequilíbrio orçamentário e aceleração inflacionária. O consequente

colapso cambial, entretanto, atenuou o impacto deflacionário interno da queda dos preços

internacionais, protegendo exportadores e industriais.

Entre 1 927 e 1 929, o esgotamento das fontes externas de recursos e a formação de um

processo recessivo sem precedentes, influenciava o golpe militar de 1 930. Conforme Furtado

( 1 980) : "deflagrada a crise no último trimestre de 1 929, não foram necessários mais que

alguns meses para que todas as reservas metálicas acumuladas à custa de empréstimos

externos fossem tragadas pelos capitais em fuga do país" (p. 1 85).

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3.2.2.2 - Revolução de 1 930 e o Estado Novo

Faoro ( 1 9 75) diz que o movimento tenentista ( 1 922) é um marco histórico brasileiro, pois esta

onda de indisciplina militar no forte de Copacabana antecipou a Revolução de 30. Ele

lembra, também, da fundação, no mesmo ano, do partido comunista, sob a influência

marxista do pós-guerra. Cortado por dissidências e rivalidades, o partido não atraiu a

simpatia dos tenentes, embora tenha, paulatinamente, substituído o anarquismo na

influência sobre o operariado. Operariado que cresceu 66% na década de 20:

A militãncia sindicaL- reconhecidos os sindicatos por lei desde 1 907- sofre, duramente no governo Washington Luis, retração profunda. A questão social se converte - quer tenha ou não pronunciado a frase o último presidente da República Velha - numa questão de polícia (p.676).

Mas a camada média da sociedade "não tinha condições de aspirar o comando político

do país ( . . . ) não reinvindica posição autônoma ( . . . ) as reinvindicações da classe média

reclamariam proteção e amparo, não atendimento ou representação, numa realidade que

autonomiza o Estado, condutor e agente econômico da sociedade" (p.677-678). Além disso,

a cúpula industrial era "um prolongamento do oficialismo, pregando a iniciativa privada

protegida, modalidade brasileira do liberalismo econômico ( . . . ) inapta a organizar uma

sociedade ( . . . ) o setor se casa e prolifera no patrimonialismo, no qual um grupo estamental

se incumbirá de distribuir estímulos e favores, com amor místico ao planejamento global da

economia" (p.677).

Getúlio Vargas torna-se como que um herói mítico das insatisfaçôes reinantes. O panorama

brasileiro parece atingir, no momento da revolução de 30 e do golpe de 37, o apogeu de

uma articulação sócio-lógica. Um estilo que pode ser sintetizado naquilo que Otávio Velho

( 1 976) denominou "capitalismo autoritário".

Um paradoxo curioso é que escondido por detrás do mito disseminado do caráter 'cordial' do brasileiro, são exatamente os 'sábios' compromissos da sociedade brasileira que se articulam com o autoritarismo, ao passo que as grandes revoluções burguesas é que abriram o caminho para a democracia e o liberalismo ( ... ) a idéia de um desenvolvimento capitalista autoritário pode ajudar a permitir levar em conta simultaneamente a mudança, a permanência e a sua complexa interrelação. Os jovens oficiais dos anos 20 representavam a idéia de seguir os passos dos países 'avançados' no plano econômico e sobretudo no plano político. A eles se opunham as forças dominantes que não estavam dispostas a mudar dessa maneira, pois com isso iriam perder poder. Todavia, isso não significa que já não havia mudanças ( ... ) O Estado já não era apenas um mediador. Sobretudo a partir da década de 40, passou a ser também um agente de transformação direto do processo econômico ( ... ) A mudança e a permanência continuavam a coexistir e a se combinar (Velho, 1 976, p . 1 26- 1 27)

No período Varguista - entre novembro de 1 930 e outubro de 1 945, data da ascensão

provisória de José Unhares, seguido do governo linha-dura do general Eurico Gaspar Dutra -

o capitalismo autoritário tornou-se saliente. Como um "Salvador da Pátria", Getúlio Vargas

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foi empossado com apoio da metade do exército e pela totalidade dos oficiais insurretos na

década de vinte. Vencedora a revolução, baseada numa ótica adversa ao esquema da

política dos governadores, são empreendidas as reformas políticas, e só políticas, com o

voto secreto e a supervisão judicial. Em termos práticos, outra vez São Paulo - com outros

homens-, e Minas Gerais - com os mesmos líderes-, comandariam a República.

Produzir e produzir muito, com énfase agrícola, em favor do lavrador, contra os intermediários, advertindo dos perigos da monocultura e do latifúndio, reconhecendo no café, embora, 'o maior e mais urgente dos problemas econômicos atuais do Brasil ' . O 'proletariado rural. reduzido à condição de escravo da gleba ' , recebe a promessa de um pedaço de chão, com assistência governamental. O problema industrial. que ainda não transparece como o setor que dinamizará a economia, tem uma chave, ainda desenhada e embaraçada em dúvidas e incertezas, só superadas com um Estado economicamente condutor ( . . . ) 'o surto industrial '- proclama na Esplanada do Castelo - 'só será lógico, entre nós, quando estivermos habilitados a fabricar, senão todas, a maior parte das máquinas ( ... ) Daí a necessidade de não continuarmos a adiar, imprevidentemente, a solução siderúrgica, Não é só o nosso desenvolvimento industrial que o exige: é também a nossa segurança nacional' ( . . . ) o ideário nacionalista aí está vivo: produzir para emancipar o país, com recursos próprios, com a remodelação do Banco do Brasil. para 'exercer a função de confro/er. como propulsor do desenvolvimento geral' ( .. ,) o Estado é o centro da economia que a tutela e dirige ( . . . ) a espinha dorsal do novo modelo será o elemento militar ( . . . ) A nacionalização da economia - nacionalização e não socialização - completa o quadro, sob o pressuposto do aniquilamento do centrifuguismo estadualista" (Faoro, 1 975, p.689-694),

Centralizador, planejador, poderoso, controlador total da economia, o Estado, materializado

na figura do ditador que domina a nação, sobrepôe-se ao integralismo e ao radicalismo

esquerdista, Castro ( 1 992, p,282), citando Rafael Xavier, retrata como o poder tributador

articula-se com o extremismo do processo de centralização que, em 1 946, chegando a

arrastar para os cofres do Governo central 93% das arrecadaçôes nacionais, deixando para

atender às necessidades de 84% das populaçôes dos Municipios brasileiros apenas 7% das

mesmas, Só o Distrito Federal arrecadava quase o dobro do quanto recebiam os 1 552

Municipios do interior do Brasil.

A nova Constituição de 1 6 de julhO de 34 preconizava supervisão judicial de pleitos eleitorais

livres com voto secreto: prometia a nacionalização dos bancos, das minas e das águas, o

que, posteriormente, se concretizou nos respectivos códigos (Faoro, 1 975). Quanto à

educação', Reale ( 1 985) e Reis ( 1 985) consideram que 1 930 representou um corte na

• Pode-se imaginar, com base neste trecho, que entre 1 500 e 1 808, qualquer tentativa de documentação no Brasil devia ser extremamente dificultada, sem falar do baixíssimo nível de alfabetização. Moog ( l 978) lembra que quem estudava, no Brasil, eram os filhos do grandes latifundiários, que iam à Europa para cursos, predominantemente, de direito, filosofia, letras. Buarque de Holanda ( 1984, p ,85-100) ressalta a formação de apenas 720 brasileiros na Universidade de Coimbra, entre 1 775 e 1821 , em média menos de 1 6 formados por ano, Aceitando a estimativa Ribeiro ( 1994), de urna população de 3 milhões de habitantes nos fins do século XVIII, percebe-se a insignificância do número, Para efeito comparativo, lembro que, nos EUA, a Universidade de Harvard foi fundada em 1 636 e a Universidade da Pennsylvania, em 1 740. Moog menciona, também, a inexistência, no Brasil, dos inventores de gadgets que abundaram nos laboratórios e oficinas de quintal das

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estrutura educacional do país, com o desenvolvimento das ciências humanas determinando

a criação de universidades,

Na parte trabalhista, consagra-se a assistência a todas as necessidades, proibindo-se,

entretanto, a greve, em nome dos "superiores interesses da produção nacional" (Teixeira et

alii, s.d" p.7), O Estado comandava o operariado, sindicalizado sob as rédeas do Ministério

do Trabalho, Indústria e Comércio, quer fora criado para elaborar uma política sindical que

contivesse o operariado dentro do Estado, permitindo uma "conciliação" entre capital e

trabalho, O decreto 1 9 ,770 estabelecia o controle financeiro sobre os recursos dos sindicatos,

vetava filiação a entidades trabalhistas internacionais, Em 1 939, o decreto 1 .402 instituiu o

Imposto Sindical obrigatório, à revelia do movimento operário, Por outro lado, o governo

barganhava vantagens trabalhistas como a lei de férias, descanso semanal remunerado,

jornada de oito horas, regulamentação do trabalho da mulher e do menor (Antunes, 1 989).

Na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), promulgada em primeiro de maio de 1 943,

sistematiza-se todo o conjunto de leis criado desde 1 930, mantendo seu "espírito

corporativista" e prevendo o direito de greve somente com prévia autorização do tribunal

competente (Teixeira et alii, s,d., p.8).

Segundo Basbaum ( 1 976), a Constituição de 1 937, instituída após o Golpe branco de lO de

novembro, era diferente das que a antecederam: tratava de impor um "Estado de fato, que

não fosse embaraçado em sua ação pelos grupos econômicos e políticos em disputa"

(p, 1 05). Dispensava o Congresso, liquidava o federalismo, substituía governadores estaduais

por interventores federais, enterrava a pluralidade sindical. Em 2 de dezembro, um decreto

fechava todos os partidos políticos.

Em 1 940, Getúlio pareceu aderir ao nazi-fascismo, golpeando as expectativas aliadas e os

norte-americanos intensificaram as pressões diplomáticas visando a mudar a atitude

brasileira, Segundo Sola (em Mota, 1 990), a importãncia geográfica e o interesse

internacional na escolha política do Brasil "permitiam ao governo a oportunidade de jogar

com Roosevelt e com Hitler, ao mesmo tempo" (p,274), Morais ( 1 994, p.425) lembra que

meses antes do embarque das tropas brasileiras para a Itália, em 1 944, o govemo brasileiro,

em guerra com a Alemanha e a Itália, expropriou todos os bens dos chamados 'súditos do

Eixo ' , As empresas cujo controle estivessem nas mãos de capitais italianos, alemães ou

japoneses passavam a pertencer ao Banco do Brasil. Cinco escalões das Forças

Expedicionárias Brasileiras, num total de 25.000 homens, participaram da Guerra. Foram 45 1

residências nos Estados Unidos, Ele levanta a hipótese do desprezo brasileiro pelo trabalho manual, que explorarei mais adiante nesta dissertação, Quanto à imprensa escrita, em entrevista pessoal ao autor, o Antropólogo Roberto DaMana ressaltou que a "criação da imprensa" no Brasil é simbolicamente significativa: "uma instituição que, ao nascer na Europa, serviu, predominantemente, para divulgar os ideais de igualdade e liberdade, no Brasil iniciou-se com intenção única e exclusiva de servir de meio comercial. E mais, para o comércio de escravos",

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brasileiros mortos e os que voltaram tronaram-se símbolos da derrota da ideologia nazi­

fascista e do campanha pelo restabelecimento democrático no Brasil.

A Segunda Guerra representou muito para o Brasil, em termos de industrialização,

impaclando tanto a iniciativa privada quanto as intervenções públicas.

A tendência da economia brasileira de substituir as importações por manufaturas locais sempre existiu ( ... ) quase todos os industriais imigrantes apareceram antes da Primeira Guerra Mundial - Matarazzo, Gamba, Crespi. Diederichsen, Lundgren, os Jafel. os Weissflog, os Klabin -e levaram anos, até decênios, no negócios de importação antes de se aventurarem à indústria. A princípio, o motivo deles era sempre, manifestada mente, engrossar a própria linha de importações ou efetuar no país o processamento final de algumas matérias-primas que importavam (Dean, 1 977,p.265-270).

Não houve significativas melhorias de eficiência operacional durante esta industrialização

( 1 920-1 940). O aumento da produtividade da indústria brasileira decorreu da utilização mais

intensa da capacidade ociosa (economias de escala) e que a produtividade por unidade

de insumo tende a crescer rapidamente nos primeiros anos de operação de novas

instalações industriais (curva de aprendizagem). Além do aumento de produtividade, a

Guerra foi um estímulo aos investidores manufatureiros porque houve o declínio da

importação de suprimentos, causada "não só pela própria carência de produtos disponíveis

nas fontes de além-mar, como também pelas dificuldades de transporte marítimo" (Baer,

1 977, p.2 1 ) . Com o mercado interno inteiro à disposição, muitas indústrias brasileiras viram-se

ainda chamadas a "preencher o vácuo deixado em outros países pela perda de contato

com seus fornecedores tradicionais de produtos manufaturados" (p.24). Houve também a

intensificação da compra, pelos aliados, de diamantes industriais, quartzo, borracha, carne

e algodão, além da melhoria do preço do café, pelo Acordo Interamericano.

Velioso ( 1 986) corrobora, dizendo que a maioria os empresários industriais, por volta de 1 9 1 4,

eram ex-fazendeiros ou importadores, ou ambos, que continuavam a administrar suas

fazendas, ou a importar mercadorias, depois de haverem fundado fábricas. "Foi desta forma

que ( . . . ) se formou uma burguesia industrial, de tendências conservadoras, mais

conservadoras, talvez, que as burguesias industriais dos primeiros países a industrializar­

se"(p.85). Porém, a alavancagem da industrialização de base brasileira partiu do Estado.

A moderna industrialização brasileira teve o seu impulso inicial a partir de dois atos de guerra. Getúlio Vargas impõs aos aliados, como condição de dar o seu apoio em tropas e matérias-primas, a construção da Companhia Siderúrgica Nacional e a devolução das jazidas de ferro de Minas Gerais . . . Volta Redonda foi a matriz da indústria naval e automobilística e de toda a indústria mecânica. A Vale do Rio Doce põs nossas reservas minerais a serviço do Brasil, provendo delas o mercado mundial ( . . . ) Além dessas empresas o Estado criou várias outras com menor êxito como a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Nacional de Álcalis (Ribeiro, 1 994, p.20 1 )

Velioso ( 1 986) diz que se exteriorizava um Estado altamente intervencionista em matéria

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econômica. que contemplou interesses imediatos dos setores médios urbanos e da

burguesia industrial. embora com caráter centralizador e autoritário. sob a coordenação do

Poder Executivo. e particularmente da Presidência da República. Ao ativismo econômico

dos órgãos reguladores e fomenta dores, incorporou-se o "Estado previdenciário" e o "Estado

empresário" e lembra que "no caso da industrialização, perdeu-se a lição importante de

que. para ser eficaz. qualquer sistema de proteção tem de ser declinante no tempo, de

modo a prevenir o produtor de que ele tem que adquirir, de forma gradual. poder de

competição" (p.98) . A doutrina que inspira tal modelo "quer suprir, pelo Estado. as

deficiências da iniciativa particular"(Faoro, 1 975. p.722). Daí. Getúlio planeja a criação da

Petrobrás e da Eletrobrás.

Velho ( 1 976. p . 1 46- 1 47) desenha uma analogia entre o Estado Novo e as Bandeiras da

época colonial. pois. pela mesma "democracia hierárquica" as Bandeiras tentam combater

o "feudalismo" e o "comunismo selvagem". enquanto o Estado Novo enfrenta o

"coronelismo" e o "comunismo russo". Mais ainda. ambos têm um território a conquistar". Nas

palavras de Getúlio Vargas. em 1 940: "o verdadeiro sentido de brasilidade é o rumo ao

oeste".

Além do manuseio da industrialização. o Estado envolvia-se com os incentivos à agricultura.

Créditos sem correção monetária aos produtores cafeeiros agem como subsídios. por causa

do processo inflacionário de 1 939 (Faoro, 1 975).

Através das Caixas Econômicas e das instituições de Previdência Social. os investimentos

públicos em relação ao total do país sobem 43 % entre 1 939 e 1 942.

A regulamentação do câmbio está presente. por intermédio do Banco do Brasil ( 1 93 1 ) e mais tarde sob supervisão do Ministério da Fazenda... A legislação. modificada e modernizada segue o mesmo curso. burocratizando. não raro. todas as atividades particulares. A intervenção oficial se expande no regime dos capitais estrangeiros. assegurando a comercilização das exportaçôes ( . . . ) A lei contra a usura. de 1 933, limita os juros à taxa máxima de 1 2% ao ano, reduzindo-a para 8% nos contratos agrícolas, com favorecimento de 6% para serviços, maquinismos e utensílios dedicados ao trabalho rural (Faoro, 1 975, p.7 1 6-7 1 8) .

Abreu ( 1 990, p.90- 1 03) relata : ( I ) os resultados limitados, comparativamente à agenda

inicial. da missão Aranha aos Estados Unidos em 1 939: (2) o desagrado de tais resultados,

principalmente pelos militares que consideravam a retomada dos pagamentos do serviço

da dívida externa (interrompidos no Golpe de 1 937) prejudiciais à importação de

equipamentos militares; (3) o incremento da dependência externa frente aos Estados Unidos

que, com a aproximação da paz, restabeleceram uma política comercial externa

"progressivamente menos magnânima", inclusive em relação ao café; (4) estagnação total

dos capitais estrangeiros investidos no Brasil. a partir de 1 943.

Em 1 945, partidos começam a se formar. O Partido Comunista Brasileiro recém-legalizado

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(tendo a frente Prestes, recém-anistiado depois de nove anos de prisão) apoiava o discurso

anti-imperai isto do governo. Prestes desconfiava de manobras realizadas nos bastidores do

PSD, para retornar o Partido à ilegalidade, após uma possível eleição do General Dutra.

(Basbaum, 1 976; Sola, em Moto, 1 990)

Paralelamente, a UDN acusava o governo da intenção de não realizar as prometidas

eleições. A UDN aproveitava-se de uma enorme força na imprensa (Morais, 1 990; Basbaum,

1 976), através de Carlos Lacerda e de Assis Chateaubriand, ex-companheiro de Getúlio que

mudara de lado, tratando Vagas "com desprezo e agressividade quando percebeu que o

presidente estava no ocaso do poder" (Morais, 1 994, p.449).

A batalha entre o slogan udenista de "todo poder ao judiciário" para garantir as eleições

contra a manifestação queremista - "queremos Getúlio"- apoiada pela "Constituinte com

Getúlio" do PCB, foi vencida pela primeira : em 29 de outubro de 1 945, o General Góis

Monteiro movimenta tanques e tropas e impõe a renúncia do presidente Getúlio Vargas.

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3.2.2.3 - General Dutra, a volta de Vargas e o interregno de Café Filho

Em 1 946, mais uma vez mudou-se a constituição brasileira. DaMatta ( 1 982) defende que uma

das dramatizações deste esporte na sociedade brasileira diz respeito à permanência e

aceitação universal das regras, numa sociedade marcada por mudanças bruscas de

normas, efetuadas pelo grupo que assume o poder.

(No futebol) 'saber perder' significa aceitar a igualdade como o axioma ou a condição fundamental do jogo ( . . . ) Um dos traços distintivos da sociedade tradicional é a desigualdade vista como algo natural. O resultado da institucionalização da desigualdade em todos os níveis é a multiplicidade de regimes legais e jurídicos vigentes no mesmo corpo social ( . . . ) É o regime do privilégio, da lei particular, feita para uma pessoa ou para um grupo social ( . . . ) aceitação de regras universais vem do principio ético burguês da igualdade perante o mercado e diante da lei. No caso brasileiro, porém, sabemos que essa igualdade estrutural é um ponto de tensão entre grupos, do mesmo modo que sabemos que existem vestígios claros da ordem tradicional no Brasil. Assim, militares e profissionais liberais, por exemplo, têm direito a prisão especial em caso de crimes, isso para não falar nos 'direitos' aceitos como legítimos, conferidos aos parentes de quem ocupa posições de prestígio e poder. De um certo ponto-de-vista, portanto, o dilema brasileiro ( . . . ) pode ser entendido como uma tensão entre relações pessoais que garantem um mundo relacionado e feito de gradações; e leis universais que exigem o justo oposto, pois conferem uma igualdade teórica para todos e demandam a liquidação dos privilégios pessoais e de família ( . . . ) muitos são os episódios históricos em que a moldura institucional da sociedade brasileira (por exemplo, a Constituição e certas leis federais) foi modificada somente para submeter ou retardar certas formas de manifestação onde a bandeira da igualdade estava sendo claramente levantada ( . . . ) Em sociedades assim constituídas, quero crer que a popularidade de esportes como o futebol jaz na capacidade do esporte de possibilitar uma experiência com 'estruturas permanentes' . Com um permanente que se define por meio de regras universais que ninguém pode modificar" (p.35-36)

A Constituição promulgada em 1 6 de setembro de 1 946 não diferia, em essência, da

anterior: presidencialismo, três poderes, etc. Entretanto, Basbaum ( 1 976) lembra que "sob o

império dessa constituição democrática, foram praticados, sobretudo durante a presidência

de Dutra, alguns atos dos mais reacionários e anti-democráticos: cidadãos foram presos ( . . . )

jornais foram fechados, o PCB tomado ilegal. e cassados os mandatos de deputados

legalmente eleitos" (p. I 80) . Antunes ( 1 989) amplia a lista, acrescentando a suspensão das

eleições sindicais e a proibição de existência do Movimento Unificador dos Trabalhadores.

Velho ( 1 976) acrescenta que a máquina estatal não foi basicamente substituída e "o

capitalismo autoritário não desapareceu junto com o regime autoritário do Estado

Novo"(p.1 34).

Tampouco desapareceram as articulações entre o mundo público e o universo privado,

estrutura mantida por força da continuidade da política industrial de substituição de

importações, e pela necessidade político de consideração de interesses pessoais num

conjunto institucionalmente instável. Neste sentido, Vianna (em Abreu, 1 990) menciona o

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consecutivo crescimento anual dos créditos reais à indústria, feito pelo Banco do Brasil.

Morais ( 1 994) relata a imposição feita por Assis Chateaubriand contra a nomeação de Dario

Magalhães como Ministro da Educação, sob ameaça declarar oposição ao governo e usar

seu poder de mídia.

Quanto à politica econômica, Sola (em Mota, 1 980) ressalta a situação deficitária das

contas externas e o posterior controle seletivo das importaçôes. Nasce um "drástico sistema

de licenciamento de importaçôes", fundamentado num critério pouco racional em termos

de eficiência macroeconômica: "a cada importador foi assegurada uma certa quota de

divisas, proporcional ao volume de suas transaçôes antes da instituição do sistema" (Baer,

1 997 p.43).

Em 1 949, troca-se uma política ortodoxa-contracionista por uma de flexibilização monetária

e fiscal. Na esfera internacional. acontece a reversão da política americana quanto ao

financiamento de programas de desenvolvimento internacionais, compromisso anterior

assumido por Truman de "tornar o conhecimento técnico norte-americano disponível para

as regiôes pobres do mundo" ( Vianna, em Abreu, 1 990, p, 1 1 8) ,

Na arena política, em 1 949, Vargas recomeçava a concretizar suas ambiçôes políticas.

Como "líder de massas", aproveitava o apoio ambíguo de Chateubriand (que também

sustentava a oposiçao) .

" . muita coisa estava em jogo. Era ano de eleiçôes. Pela segunda vez desde a queda do Estado Novo, em 1 945, os brasileiros pOdiam escolher o seu presidente da República. E entre os que se apresentavam para o teste das urnas estava Getúlio Vargas. Derrotado pelo golpe da redemocratização ( . , , ) era candidato forte e pretendia recuperar pela via eleitoral o posto que havia adquirido e deixado pelo arbítrio ( . . . ) Neste clima de efervescência político-ideológica, o Brasil recebeu os participantes do IV Campeonato Mundial de Futebol (para) o primeiro grande certame do pós-guerra (".) As esperanças no título mundial de futebol eram enormes (".) Chegou-se ao ponto de sugerir ter-se um jogador de cada Estado, que, acrescidos do representante de um dos Territórios, completariam o elenco dos vinte e dois convocados (".) mais do que uma Seleção Brasileira, esta equipe seria um verdadeiro microcosmo metonímico da nação (. , , ) Existem países em que o futebol não tem quase expressão. Outros, fizeram dele o seu esporte nacional. Para os primeiros, uma Copa do Mundo representa nada, ao passo que para os últimos ela pode vir a ser uma questão de vida ou morte" (p.81 -82) .

No dia 1 5 de julho de 1 950, cinquenta milhôes de brasileiros adormeceram como "futuros

Campeôes do Mundo". No dia seguinte, foram representados em seu silêncio pelos

espectadores presentes no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. O povo, nacionalista,

que unia o progresso econômico com a glória esportiva, decepcionava-se. A esperança de

um merecido lugar entre as grandes naçôes do mundo - exposta pelo lema "país do

futuro"- era impactada negativamente, em termos simbólicos.

Três meses depois da drástica derrota, Chateubriand instalou no Brasil a TV Tupi, quarta

estação de TV do mundo. Morais ( 1 994), relata o imprevisto da estréia, quando uma falha

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técnica fez com que dois brasileiros inexperientes assumissem a responsabilidade,

contrariando o técnico americano que optara pela suspensão da transmissão. "O que vocês

estão fazendo seria inadmissivel no Estados Unidos. Nenhuma câmera, nenhum diretor de TV.

ninguém assumiria a responsabilidade de colocar no ar uma estação nessas condições"

(p.492). Ao contrário da tragédia prevista, o que o americano viu, "emocionado com a

genialidade desses brasileiros malucos" (p.493), foi um programa correto do início ao fim:

"Improvisado e irresponsável, é certo, mas impecável" (p.492). A significaçâo histórico­

política dos meios de comunicaçâo de massa, sistema unificador de identidade nacional,

nâo pararia de se acelerar desde entâo,

Tendo, em campanha, abraçado a bandeira da redençâo da pátria pelo "Petróleo é

nosso", e o dístico de "pai dos pobres", Getúlio foi reeleito com pouco mais de um terço dos

votos totais, desagradando a UDN e o PCB. Cohn (em Mota, 1 980) diz serem os anos 50 uma

época marcante, enquanto ponto de inflexâo no processo de industrializaçâo do Brasil.

Com um perfil caracterizado pela substituiçâo de importações nas indústrias de bens de

consumo, o crescimento industrial já atingira "um grau de capacidade e diversificaçâo

produtiva que esgotava a capacidade de absorçâo passiva de um mercado originalmente

tornado disponível pela contraçâo da oferta de produtos importados" (p.307). Apesar do

discurso nacionalista, no início dos anos 50, o Brasil estimulava o afluxo de capitais

estrangeiros, pela retirada de restrições quanto a remessas de lucros (prado Jr., 1 980; Pinho

Neto, em Mota, 1 990),

Furtado ( 1 980) acrescenta que "a redistribuição de renda que caracterizou a experiência

brasileira no pós-guerra é um fenômeno mais complexo"(p,220) , Ele assume, pelo

crescimento das inversões industriais, que a política cambial combinada à seleçâo de

importações e à baixa relativa dos preços de importação de equipamentos causou uma

apropriação da riqueza nacional pelo setor empresarial.

Em 1 952, é criado o BNDE, que financiaria a infraestrutura brasileira e aquilo que Baer ( 1 977)

chamou de " backward /inkages' . O banco injetava recursos e se tornava sócio de

empreendimentos que proporcionariam um integração vertical para trás da indústria

brasileira tipicamente concentrada em produção de artigos de consumo.

Em 1 953, o congresso aprovava a Lei no 2004, que criava a Petrobrás e instituía o monopólio

de exploração e refino do petróleo, contrariando fortes pressões americanas. Com a

nomeação de João Goulart para o Ministério do Trabalho notou-se um aumento "populista"

da autonomia sindical (Teixeira et alli, s .d,) .

Entre tantas turbulências e "mudanças", uma inquestionável permanência: o Capitalismo

Autoritário, o Estado interventor, as regulamentações, as cartas-patentes e as licenças, o

liberalismo tematizado por uma consistente e consubstanciosa rede de interpenetração

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entre público e privado.

Vianna (em Moto, 1 990) lembra que, pela conjuntura inflacionária herdado do Governo

Dutra, foi implementada, sem êxito, uma política flexibilizadora das importações, ortodoxia

monetária e, inicialmente, reduzidos os gastos públicos. Em 1 953, ao colapso cambial

aliaram-se ( 1 ) uma retração dos financiamentos americanos após a eleição do general

Eisenhower, do Partido Republicano e (2) um racionamento forçado de energia elétrica no

Sudeste. Apesar do crescimento industrial de 9,3%, o PIB só cresceu 2,5%, e a inflação anual

(IGP-DI) pulou de 1 2% para 20,8%, enquanto o salário mínimo cresceu 1 4%. O

descontentamento transpareceu na greve de 23 de março que paralisou mais de 300 mil

operáriOS. Em 1 954, os Estados Unidos reagiram à alta do preço do café com uma

campanha nacional pelo uso de produtos substitutos, afetando as exportações brasileiras.

Getúlio concedeu aumento de 1 00% para o salário mínima. A espiral inflacionária

continuava, assim como a pressão dos diversos agentes sócio-econõmicos sobre o governo.

Em agosto de 54, Lacerda, que pregava a necessidade de uma ditadura - "Se a UDN não

pode alcançar o poder pelo voto, que o faça pelas armas" (Basbaum, 1 976, p.207) - sofreu

um atentado. O mandatário foi Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas. A

crise gerou uma proposta de renúncia, apoiada por diversos segmentos sociais, em especial

as Forças Armadas. Oficializada num manifesto assinado por altas patentes militares, a

sugestão de "afastamento temporário" culminou no tiro no peito, no suicídio de Getúlio que,

em 24 de agosto de 1 954, "saía da vida para entrar na história", conciamando, em carta

lida por João Goulart, sua vitória sobre o gOlpismo (Silva, 1 978).

O gesto trágico repercutiu, possibilitando a criação de uma frente anti-golpista e

assegurando a manutenção da ordem constitucional. Converteu-se o que seria uma

antecipação de 1 964 numa administração provisória de gestores de negócios. Essa tomada

de posição majoritária em defesa da democracia impUlsionou a recomposição da frente de

centro-esquerda formada pelo PSD-PTB que, mais adiante, elegeria Juscelino Kubitsheck

(Vianna, em Moto, 1 990, p . 1 50) .

No governo de Café Filho a UDN deteve o poder. Contudo, a política macroeconômica do

períOdO ( 1 945- 1 964) - o " pacto populista encarnado na aliança PSD-PTB" - não foi

impaclada substancialmente por esse "efêmero triunfo do 'golpismo' udenista" . O ajuste

contracionista limitou-se à gestão de Gaudin, no minístério da fazenda, tendo sido

totalmente sepultado na administração Whitaker (Neto, em Moto, 1 990, p. 1 65) .

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3.2.2.4 - De Juscelino Kubitschek à Revolucão de 64

Em 1 954. Juscelino e seu programa de metas - que faria o Brasil progredir "50 anos em 5" -

enfrentava a UDN que pregava a privatização e fundamentava-se na luta contra a

corrupção. A burguesia agrária, Minas Gerais e as "massas queremistas" de Goulart

apoiavam Juscelino. Parte das classes médias urbanas, a grande burguesia industrial e

financeira, e os administradores brasileiros das multinacionais - novo setor sócio-econômico

brasileiro ampliado depois da polêmica instrução 1 1 37 - apoiavam o candidato General

Juarez, da UDN. (Basbaum, 1 976).

Juscelino assumiu, apesar da nova tentativa udenista de impedir a posse sob alegação de

ausência de maioria absoluta. A resistência de Juscelino foi fortalecida pelo apoio da

imprensa, especialmente dos Diários Associados de Chateubriand que, em troca, tornou-se

Embaixador do Brasil na Inglaterra.

Velho ( 1 9 76) lembra que o Brasil era praticamente auto-suficiente em bens de consumo

leves. Portanto, a industrialização se concentrou em bens de consumo duráveis e bens de

capital. Os necessários capital e tecnologia mais sofisticados não seriam fornecidos por

fontes internas, "já que isso significaria refazer os passos já dados pelo capitalismo em escala

mundial". O períOdo Kubitschek marcou-se pela virada crucial na direção dos investidores

estrangeiros, sustentada em incentivos especiais. Investimentos estatais diretos e indiretos

continuaram a crescer, particularmente em comunicaçôes e na produção de energia,

havendo a adesão explícita a um 'modelo de economia mista ' . Uma consequência dessa

dupla tendência foi que a burguesia nacional "que estava se desenvolvendo com o apoio

estatal desde os anos 30, começou a ser imprensada". Isso não significa dizer que ela

desapareceu. Pelo contrário, muitos de seus membros prosperaram com o crescimento

industrial do período. Mas postos-chaves nos chamados setores dinãmicos da economia

foram assumidos diretamente pelo Estado e por investidores estrangeiros. "Na maioria dos

casos ou a sua dependência do Estado cresceu ou se tornaram sócios menores dos

investidores estrangeiros" (p.1 62-1 63).

Em termos médios, entre 1 956 e 1 96 1 , o PIB brasileiro cresceu à taxa anual de 8,2%, e a renda

per capita a 5, 1 %. A inflação anual foi de 22,6 %. As peças básicas foram o tratamento

preferencial para o capital estrangeiro, a ampliação da participação do setor público na

7 A polêmica instituição 1 1 3 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), permitia importação de equipamentos - ainda que usados e depreciados - que complementassem conjuntos já existentes no pais sem cobertura cambial. Ao investidor externo era mais vantajoso, pois ele ficava independente de ingressar com divisas à taxa do mercado-livre para recomprar as licenças de importação por um valor mais alto nos leilôes de câmbio. Segundo Pinho Neto (em Mata, 1 990, p.1 54), "tais 'subsidias' aliado à inexistência de financiamento no exterior que permitissem aos investidores nacionais beneficiarem-se da medida... fez com que a referida Instrução fosse vista cama uma discriminação contra o capital nacional".

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formação de capital, a expansão dos meios de pagamento e créditos bancários para

financiar altos gastos públicos e o estímulo à iniciativa privada. O Banco do Brasil financiava

o Tesouro Nacional (Orenstein & Sochaczewski. em Mota, 1 990). Ribeiro ( 1 994) diz que foram

tantos os subsídios, "tais como terrenos, isenção de impostos, empréstimos e avais a

empréstimos estrangeiros ( ... ) que muita indústria custou a seus donos menos de 20% de

investimento real de seu capital" (p.202).

Baer ( 1 977) propõe que a inflação tenha servido como um dos mecanismos de transferência

de poupança privada para o Estado, e que o controle de preços de energia elétrica, tarifas

telefõnicas, transportes públicos, alugueis, alimentos e gasolina, tenha sido uma tentativa de

"compensação social".

Isto levou a distorções e escassez em vários setores, além do desinteresse de investidores

privados, principalmente estrangeiros, pelas empresas sujeitas a tarifas baixas. Cohn (em

Mota, 1 980) afirma que a inflação, embora possa coexistir com o crescimento, a longo

prazo, induz distorções setoriais na economia e efeito depressivo sobre a demanda, por

erosão do poder de compra das classes com maior propensão marginal de consumo.

Falando em " Estado de compromisso", Velloso ( 1 986) faz o inventário dos ( 1 ) órgãos

reguladores e controladores - Sumoc, DASP, Cexim, Comissão de Similares, Conselho Federal

de Comércio Exterior, Conselho Técnico de Economia e Finanças do Ministério da Fazenda,

Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, Comissão de Planejamento

econõmico-: dos (2) órgãos fomentadores - CREAI, do Banco do Brasil, Comissão de

Financiamento da Produção, Departamento Nacional do Café, Instituto do Açúcar e do

Álcool, Instituto do Mate, Instituto do Pinho, Instituto do Sal, Instituto do cacau,

Departamento de produção Mineral, Conselho Nacional do Petróleo, Conselho de Águas e

Energia Elétrica, Conselho de Minas e Metalurgia, etc.-: dos (3) Institutos de Aposentadoria e

Pensão e (4) das empresas estatais - CSN, CVRD, Álcalis, FNM, atividades de ferrovias, portos

e navegação. O autor menciona o planejamento global e centralizado para estes órgãos a

partir dos anos 50.

A partir de então, graves distorções se intensificariam na economia brasileira : ( 1 ) por causa

da generalização de tarifas alfandegárias de mais de 1 00%, garantindo reservas de

mercado, muitas indústrias brasileiras tornaram-se ineficientes: (2) a desorganização da

produção agrícOla e consequente hiato entre indústria e agricultura: (3) o aumento da

presença do setor público no dispêndio nacional, sem adequados mecanismos de

financiamento, intensificando o processo inflacionário: (4) a restrição de mercado, imposta

pela desigualdade social crescente: (5) deficiências de infraestrutura urbana, (6) o

desequlíbrio regional, em especial no Nordeste.

Em 1 958, o Nordeste experimentou uma grande seca e forçou o governo a agir. Pela

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primeira vez, todavia, a ação govemamental adquiriu uma profundidade que "a levou a

perder seu tradicional 'caráter espasmódico' e o seu papel de reforço não-transformacional

da classe dominante. Levou à criação da SUDENE." (Velho, 1 976, p. 1 8 1 ) .

Em termos de política trabalhista, Teixeira e Messeneder (s.d.) ressaltam a pretensa harmonia

entre capital e trabalho. O populismo intensificou-se pela ação do vice João Goularl,

gerando uma imagem de plena democracia. Contudo, Velho ( 1 976) explicita os ambíguos

relances autoritários do governo JK:

Em 1 959, foram deflagradas quase mil greves( ... ) JK não hesitou em colocar o aparelho repressivo para terminar com tais movimentos (Velho, 1 976, p.9) .

De um ponto de vista liberai, Brasília e a estrada Belém-Brasília eram totalmente injustificáveis. Não eram economicamente viáveis e os recursos que engoliram deveriam ter sido utilizados, de acordo com a racionalidade liberal, nas partes já ocupadas do país. O fato de terem sido construídas, apesar de toda a oposição despertada e que se refletia largamente no Congresso, é certamente um indicador forte do autoritarismo subjacente a um governo considerado um dos mais liberais (no sentido político) que o Brasil já teve (Velho, 1 976, p. 1 56).

A estrutura industrial brasileira se assemelhava à dos países em estágio adiantado de

desenvolvimento econômico, apesar dos níveis de renda e produto industrial per capita

bem mais baixos (Velloso, 1 986). Em termos de infraestrutura, além do boom rodoviário

(aumento de 84% da rede rodoviária nacional entre 1 950 e 1 96 1 ) , a televisão já atingira, em

1 96 1 , o Sudeste, o Pará, o Ceará, Goiás e o Distrito Federai, o Paraná. Inovaçôes

tecnológicas como o vídeo-cassete, levavam à formação de networks centralizadas, com

direção controlada e linha política única (Morais, 1 994). A comunicação de massa

intensificava o processo de interação simbólica que, segundo Diegues ( 1 993), foi um

"arrastão de uma nova imagem, de uma outra idéia de Brasil ( . . . ) consagrada, sem dúvida,

pela própria população" (p.54).

Juscelino havia criado o que se poderia chamar de ideologia 'futurível ' , transformando o desenvolvimentismo numa fonte de otimismo psicológico e legitimação política ( . . . ) conseguiu temporariamente uma convergência entre os 'técnicos nacionalistas' (Furtado, Rômulo de Almeida) e os 'técnicos cosmopolitas ' (Campos, Lucas Lopes) em torno do Plano de Metas. O dívortíum acquarum só viria mais tarde, com o abandono, em 1 959, do Programa de Estabilização e a ruptura com o FMI (Campos, 1 994, p.328).

A oposição a JK, sob liderança de Lacerda, se congregou na figura de Jãnio Quadros. Este,

em campanha, sensibilizou a opinião comum com o tema da austeridade e despertou uma

potencialidade revolucionária difusa na massa popular. "Já se anunciava a linha de

independência maior à qual o Brasil parecia tender no plano da política externa"

(Beiguelman, em Mota, 1 990, p.326). No poder, com a marca significativa para a época de

mais de cinco milhôes de votos, Jãnio iniciou o combate à inflação e acerto cambial

através da liberação do cãmbio, compressão dos salários, contenção do crédito. Pela

Constituição de 46 existia a contradição entre a concentração de poderes no presidente e

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a fragmentação partidária em virtude da representação proporcional. Enfrentando

impecilhos no comportamento do Legislativo e com popularidade em queda, o presidente

tenta romper o impasse institucional através de um golpe de Estado não-convencional,

esperando ser aceito pelo consenso nacional (Campos, 1 994; Basbaum, 1 977; Beiguelman,

em Mota, 1 990).

o dia da renúncia, 25 de agosto de 1 96 1 , numa jogada simbólica, foi aniversário do suicídio

de Getúlio. Surpreendentemente, a renúncia foi aceita rapidamente pelo Congresso como

um "ato unilateral". Frente à ameaça americana de sanções econõmicas no caso de Golpe

Militar, e à iminência de uma Guerra Civil pela ausência de unanimidade nas Forças

Armadas (que queriam impedir a investidura de João Goulart), optou-se pela emenda

constitucional que instituiu o Parlamentarismo. Jango assumiu no dia 7 de setembro de 1 96 1 ,

com Tancredo Neves, este ficando até junho de 1 962 como Primeiro Ministro. No plebiscito

de janeiro de 1 963, retoma-se o presidencialismo, por 1 0 milhões de votos contra 2 milhões: o

país voltava à Constituição de 1 946 (Bausbaum, 1 977) .

Goulart regulamentou o Código Brasileiro de Telecomunicações, que previu a criação da

Embratel. A Eletrobrás foi criada e inauguradas a Ferro e Aço de Vitória, a Usiminas e a

Cosipa. A Vale do Rio Doce foi incentivada a investir no porto de Tubarão. Pela instrução

242, proibiu-se o registro de financiamento estrangeiro para importação de máquinas e

equipamentos que a indústria nacional pudesse fabricar (Bandeira, 1 978).

Velho ( 1 976), comenta a importãncia do fenõmeno inflacionário no sentido de fornecer

espaços adicionais para manobras sociais em períOdos disruptivos ou críticos do

desenvolvimento, adiando o possível ponto de ruptura derivado das tensões sociais. Ele

retrata a inflação como um "modo disfarçado de acumular capital. particularmente

relevante para o capitalismo autoritário" e afirma que "boa parte desse capital foi

canalizado para investimentos governamentais ou patrocinados pelo governo": (p. 1 66)

De 1 96 1 em diante o crescimento industrial brasíleiro caiu consideravelmente e foi acompanhado por um períOdO de contínua crise política ... a inflação já não estaria mais funcionando convenientemente como uma das principais fontes de acumulação de capital: em primeiro lugar porque já não era suficiente, por já estar muito alta e haver necessidades crescentes de capital; e em segundo lugar porque a massa da população estava reagindo contra os seus efeitos exploradores, seja por toda sorte de artifícios individuais, seja através de confrontações diretas de classes que tendiam a romper o 'pacto populista' (Velho, 1 976, p. 1 6 1 )

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3.2.2.5 - A Ditadura Militar ( 1 964- 1 985)

Ao longo do período de Jango. as reivindicações salariais cresceram numa economia

estagnada. com inflação anual de 5 1 %. em 1 962 e 8 1 %. em 1 963. O Plano Trienal de

Desenvolvimento Econõmico. de dezembro de 62. não logrou melhorias. A recessão se

agravou. paralelamente ao descontrole das contas públicas. expansão monetária e

deterioração da balança de pagamentos (Abreu. 1 990).

Em 1 963. Leonel Brizola. ex-governador gaúcho que apoiara a posse de Jango. encampara

empresas americanas e planejara uma reforma agrária no Rio Grande do Sul. derrotava

Lacerda no Estado do Rio de Janeiro. Em janeiro de 1 964. mesmo mês no qual não logrou

êxito na tentativa de decretar estado de sítio. João Goulart tomou medidas contrárias ao

capital estrangeiro: tabelou óleos lubrificantes. outorgou á Petrobrás o monopólio de

importações de petróleo e impediu a remessa de lucros (Bandeira. 1 978). Em 1 3 de março

de 1 964. Jango nacionalizou refinarias de petróleo. desapropiou terras. controlou preços de

remédios. tecidos e calçados e limitou os aluguéis. num comício organizado por forças da

esquerda. com Brizola e Miguel Arraes presentes.

Em 1 9 de março. financiada por algumas federações de indústrias. a Igreja organizou a

Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Manifestava-se contra a "comunização do

governo João Goulart". a tolerãncia à CGT e, pior. ao PCB. Em 31 de março de 1 964, deu-se

a rebelião militar [Abreu, 1 990; Bandeira, 1 9 78; Basbaum. 1 977; Teixeira et alli, s.d.).

O Golpe Militar concretizou-se pelo rompimento institucional retratado no A to Institucional no

1 . O AI-I permitia a cassação de mandatos democráticos e a de direitos políticos por dez

anos. A homologação, segundo depoimento do Marechal Juarez Távora, ocorreu sem

maiores dificuldades pelo Congresso que, a 1 1 de abril de 1 964. modificava a Constituição

de 46. Com o Programa de Ação Econõmica do Govemo (PAEG). iniciou-se o governo

Castelo Branco. (Basbaum. 1 976. p . 1 35)

Além de descrever o "entusiástico" apoio inicial dos Estados Unidos ao golpe. Skidmore

[ 1 99 1 ) acrescenta que dar satisfações não era uma das regras do governo brasileiro. Em 27

de outubro de 1 964, Castelo Branco assinou o AI- 2. que acabava com as eleições diretas

para presidente e governadores e fechava os partidos políticos existentes. introduzindo o

bipartidarismo.

No dia seguinte o Congresso aprovava a lei que extinguia a UNE. substituindo-a pelo

Diretório Nacional de Estudantes, sediado em Brasília e dirigido pelo MEC. "para o qual todos

os estudantes eram 'obrigados' a votar". Professores universitários foram demitidos ou

pediram demissão. O orçamento da União destinou. para a Educação. respectivamente.

entre os anos de 1 965 e 1 968. 1 1 %. 9.7%. 8.7% e 7.7%. Em 1 966. o AI-3 institucionalizava a

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nomeação de prefeitos das capitais dos estados e de outras cidades de "segurança

nacional" (Basbaum, 1 977, p. l 72).

Em 1 967, a nova Constituição aumentava o controle do Executivo sobre os gastos públicos,

impedindo o Congresso de criar despesas. Além disso, um decreto-lei implementou o

planejamento plurianual do Executivo, em moldes militares (Basbaum, 1 9 77; Skidmore, 1 99 1 ) .

Antunes ( 1 989) lembra que a fixação dos índices de aumento salarial passou a ser

prerrogativa do Estado, que acabou com o direito de greve, bem como com a estabilidade

no emprego. Em 1 966, instituiu-se o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) : "Com

as atividades sindicais reprimidas e as greves em atividades 'essenciais' proibidas - e ao

governo competia o julgamento da "essencialidade" - o poder de barganha dos sindicatos

tornou-se praticamente nulo" (Resende, em Mota, 1 990, p.2 1 7) .

Além disso, o PAEG pretendia conter o déficit governamental: os impostos foram

aumenfados e o financiamento do déficit começou a ser feito por emissão de títulos,

reduzindo-se a emissão de moeda. Com a queda nas importações e incremento das

exportações, as reservas internacionais dobraram. O Brasil foi. entre 1 964 e 1 967, o quarto

maior receptor mundial de ajuda financeira líquida proveniente de agências internacionais,

especialmente da norte-americana AIO.

A lei 4.595 criou o Banco Central. O sistema financeiro começou a se modernizar. A política

monetária saiu das mãos do Banco do Brasil. que foi restringido às atividades comerciais e

de fomento, embora com acesso livre e discricionário aos fundos. Em 1 965, a lei 4.728

redesenhou institucionalmente o sistema financeiro, delimitando as funções dos bancos

comerciais, dos de investimentos, dos de desenvolvimento, das sociedades de crédito e

financiamento, das corretoras, das distribuidoras de títulos e valores. Isto, juntamente com a

correção monetária de contratos e títulos de médio e longo prazo, foi um fator de captação

de poupança privada voluntária, canalizada para investimentos públicos e privados

(Resende, em Mota, 1 990).

Em junho de 1 965 acusava-se a incipiente TV Globo de manter ligações empresariais com a

americana Time Life Broadcasting Inc., ferindo a Lei das Telecomunicações . Iniciava-se a

briga entre Chateubriand e Roberto Marinho. Em 1 966, a Esso brasileira mudava o "mais

tradicional noticioso brasileiro , o 'Repórter Esso', da estação Associada para a Globo

(Morais, 1 994, p.64 1 ) . O governo rejeitou a denúncia contra a parceria Globo-Time Life, e a

TV Globo continuou crescendo: "diziam que esta ascensão podia ser explicada pela defesa

dos interesses oficiais através da programação" (Skidmore, 1 99 1 , p. 222).

Ainda na área de comunicação de massa, no começo de 1 967, pelo decreto-lei 236, o

presidente Castelo Branco limitou a cinco (três regionais e duas nacionais) o número de

estações televisivas pertencentes a um mesmo grupo empresarial : "o autoritarismo

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continuava a caracterizar o modo de articulação entre o político e o econômico" (Velho,

1 976, p . 1 661.

A presença do Estado se faz notar ainda pela criação do Banco Nacional de Habitação

(BNHI, em 1 965, como agência financeira do FGTS, cujos recursos passavam a ser investidos

na construção de residências. Em 1 968, o controle de preços através do CIP, tornou-se um

mecanismo completo de controle de custos e preços de todos os setores da economia.

Impunha-se o cancelamento de linhas de crédito para empresas que "exageravam" e

aumentava-se o acervo governamental de informaçôes sobre atividades do setor privado

(implicando maior capacidade de controlei .

Em contrapartida, os empresários contavam, em 1 966, com proteções tarifárias da ordem

de 1 1 8%, em média (para os bens de consumo, 230%: para bens intermediários, 68%: para

bens de capital e setor primário, 3 1 %1. O gritante desequilíbrio setorial, incluindo o hiato

entre indústria e agricultura, levou ao que Gudin chamou de "indústrias de tarifa e de

monopólio" (Velloso, 1 986, p. 1 1 61 . Mesmo assim, o governo foi responsável por mais de 60%

do investimento em 1 969 (Baer, 1 9771 .

A inflação anual caiu de 92%, em 1 964, para 38%, em 1 966. A correção monetária foi criada,

conciliando crescimento com controle inflacionário. Houve superávit da balança comercial

pelo significativo aumento de exportações, bem como superávit em contas correntes.

Empresas estrangeiras concessionárias de serviços públicos foram compradas,

proporcionando expansões sob controle govemamental : "tornou o Estado, de forma

definida, responsável pelos investimentos de infraestrutura econômica. O Estado empresário

assumia uma posição de destaque, num governo neo-liberal, por uma decisão

pragmática"(Velloso, 1 986,p. 1 241 .

Eleito indiretamente, conforme a nova Constituição de 1 967, iniciou-se o governo Costa e

Silva, caracterizado pela linha-dura militar do Ato Institucional no 5 ( 1 968), que cassava

mandatos legítimos de parlamentares. Concomitantemente, o PIB crescia e a inflação

diminuía. O rodoviarismo sofreu novo impulso, com 49% de aumento da rede rodoviária entre

1 967 e 1 973. Com os alívios fiscal e creditício e a redução do custo dos insumos básicos para

as empresas privadas, iniciava-se o "milagre brasileiro", que prosseguiu durante o Governo

Médici. Mas o discurso liberal continuava esbarrando na realidade:

O que de fato aconteceu desde 1 964 é que os laços com o capitalismo internacional se fortaleceram, a iniciativa estatal continuou a aumentar e após um períOdo inicial a economia começou a crescer a taxas que em alguns casos superaram as dos anos 50. Mais uma vez um movimento levado adiante sob a bandeira do liberalismo reforçou o autoritarismo. O período 1 964-68 marcou o estabelecimento de um regime autoritário completo ( . . . 1 O Estado foi forçado a preencher os 'vazios' na economia e gradativamente, na prática, houve uma reversão completa das intenções declaradas( ... ) Entre 1 964 e 1 969, foram criadas ou passaram ao controle federal, maior número de empresas que em qualquer outro

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período analisado, isoladamente. Em 1 969, somente as empresas governamentais eram responsáveis por cerca de 25% da formação bruta de capital fixo no país( . . . ) A centralização não só prosseguiu, mas acelerou o seu ritmo, e a autonomia estadual praticamente desapareceu" (Velho, 1 976, p. 1 7 1 )

Velloso ( 1 986) diz que com o aumento da renda e a disseminação do crédito, novos

consumidores se incorporavam ao mercado, com padrões de consumo crescentes "de

rádio para televisão e para carro ( . . . ) o fenômeno de corrida aos bens duráveis" (p. 1 30) .

Entretanto novos problemas surgiam: (I) a necessidade de novos investimentos, na medida

em que se esgotava a capacidade antes sub-utilizada: (2) a inexistência de um setor de

bens de capitais plenamente desenvolvido, que Cardoso considerava uma limitação ao

surto industrial-capitalista iniciado em 1 968; (3) o aumento da dependência de insumos

importados; (4) a desigualdade na distribuição de renda. A partir de 1 968, há a retomada

das atividades sindicais no país (Antunes, 1 989; Teixeira & Messeder.s.d.).

Segundo Lago (em Abreu, 1 990). os governos Costa e Silva e Médici foram marcados pela

busca do crescimento econômico em setores diversificados, e por incentivos à expansão do

comércio exterior. Foi notável a expansão do crédito ao consumidor e à agricultura, bem

como a redução de entraves burocráticos e incentivos fiscais e creditícios à exportação. O

BNDE criou o Finame e, além dos financiamentos ao setor público, intensificou contratos com

o setor privado que, a partir de 1 968, passou a receber mais da metade dos recursos

emprestados. O setor bancário se fortaleceu e oligopolizou, com a formação de

conglomerados. A lei 4.728, em 1 965, organizou o mercado de capitais, com intenção de

financiar a indústria a longo prazo (Campos, 1 994) . O acréscimo das exportações e o

endividamento externo viabilizaram importações necessárias de bens de capital. retratada

na queda do índice de nacionalização dos equipamentos de 72,6% em 1 970 para 67,3%, em

1 972. Estes bens de capital vieram suprir a demanda não atendida por tal setor econômico

brasileiro. As estatais também intensificaram investimentos.

Em 1 6 de setembro de 1 965, foi constituída a Empresa Brasileira de Telecomunicações, a

Embratel. com objetivo de implantar, explorar industrialmente e expandir os troncos do

Sistema Nacional de Telecomunicações. Concentrava-se numa única empresa pública todo

o serviço de telecomunicações (TCs) de exploração direta ou indireta da União. No governo

Costa e Silva, a Portaria no 4 (janeiro de 1 969) do Ministério das Comunicações (criado em

fevereiro de 67) consolidou a política das Telecomunicações, atribuindo à Ernbratel, que já

implantava TCs na Amazônia, a operação e propriedade dos meios. Em 1 969, era feita de

Washington a primeira transmissão televisiva internacional. Um mês depois, o Brasil recebia

imagens, via satélite, da chegada do homem á Lua. Em fevereira de 1 970, no governo

Médici. foram inauguradas os troncos Brasília-Rio, Rio-Florianópolis e Belo Horizonte-Salvador.

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Em julho a Embratel transmitia do México o tricampeonato mundial brasileiro na Copa do

Mundo:

A mesma taça que, em 50, foi a causa do pesadelo de toda a nação, passou a ser brasileira para sempre no México( . . . ) se no Maracanã sofremos a derrota das derrotas, no México tivemos a vitória de todas as vitórias. Os contrastes entre as duas Copas são muito grandes. O Brasil já havia trilhado um trecho considerável do caminho desenvolvimentista, embora não sem alguns tropeços. Nesse ínterim, tinha ganho a Copa do Mundo duas vezes, a primeira na Suécia, em 1 958, e a segunda no Chile, em 1 962 ( . . . ) a vitória de 70 desencadeou uma euforia, em escala nacional, como este país viu poucas vezes ( . . . ) As regras, o cotidiano, a hierarquia estavam suspensos. Não havia ordem, ninguém tinha vergonha (sinal das distãncias sociais momentaneamente abolidas) ( . . . 1 a vitória era de todo o povo brasileiro, dos jogadores e dirigentes da seleção até o último dos torcedores ( ... ) ocorreu um desses momentos extraordinários em que os problemas complicados da hierarquia social e da manipulação dos seus códigos cederam o lugar para um momento feliz de identificação e orgulho - éramos brasileiros - os maiores do mundo! " (Vogel, em DaMatta, 1 986, p. 1 1 0-1 1 4) .

O Brasil emergira como um dos melhores mercados d e TV do "terceiro-mundo". N a década

de 60, o número de residências urbanas com TV cresceu de 9,5% para 40%: "Quando Médici

assumiu, o Brasil tinha 45 emissoras de TV licenciadas. Seu govemo concedeu mais 20

licenças e nesse processo ajudou consideravelmente o crescimento da Rede Globo "

(Skidmore, 1 99 1 , p.222).

Skidmore ( 1 99 1 ) lembra da apreensão das classes produtoras, da insubmissão estudantil e da

rebeldia do clero frente a situação de repressão política que o país vivenciava. Ele descreve

a cisão do clero em três alas: a progressista, a conservadora e a moderada : "A Igreja

Católica tornou-se, {aule de mieux, a única instituição capaz de enfrentar o governo e

sobreviver. Mas, mesmo dentro dela, havia divisões, o que a impediu, às vezes, de defender

membros do clero dos horrores da tortura" (p.2 1 5) .

Lago (em Abreu, 1 990), sobre o período 1 967-1 973, ressalta que foram inegáveis os progressos

em várias frentes, porém que os benefícios destes não foram equitativamente distribuídos

pela população.

Sobre a década de 70, houve alterações no desenvolvimentismo, que passa a ocorrer

através de uma "perspectiva supra-regional 'integrada', em que o Estado afirma sua

posição central organizatória" O planejamento regional pregado na década anterior

empalidecia. As reações nacionalistas às propostas estrangeiras para o Nordeste e a

Amazõnia cresciam (Velho, 1 976, p . 1 85).

A lógica capitalista autoritária foi bem expressa por Delfim Netto: a terra e o trabalho que possuímos são de certa maneira o nosso 'capital ' ; o que precisamos fazer não é destruí-los, mas combina-los e mobilizá-los. Um forte sentimento de que embora o tamanho da terra e da população possam apresentar um problema agora, são uma garantia para o futuro, é uma parte importante da ideologia e política do capitalismo autoritário no Brasil ( . . . ) A Transamazõnica era mais importante politicamente do que economicamente ( ... )a maior parte dos passos

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mais importantes no desenvolvimento brasileiro têm sido dados assim, o que não significa que sólidas razões econõmicas não surjam posteriormente (Velho, 1 976, p.2 1 3) .

Skidmore ( 1 99 1 ) vê tal projeto como uma decisão do presidente Médici de atacar o

problema da pobreza nordestina e do despovoamento amazõnico, deslocando o fluxo

migratório que ia para o Centro-Sul na nova direção. Ele corrobora com a posição de Velho,

ao lembrar as palavras do então ministro da Fazenda, Delfim Neto: "Se Pedro Álvares Cabral

tivesse que provar a rentabilidade de sua viagem, o Brasil ainda não estaria descoberto"

(p.292) .

Os governos seguintes, Geisel e Figueiredo, foram marcados pelo fim do "milagre brasileiro".

Encerraram, também, um ciclo de exercicio do poder sem limites e sem prestação de

contas, sem oposição, sem incõmodos da livre imprensa e sem compromissos políticos a criar

embaraços à pOlítica econõmica (Carneiro, em Abreu, 1 990, p.297).

Em 1 974, o MDB, aproveitando a intenção de Geisel de não usar o AI-S, cresceu em

representatividade na Cãmara e no Senado, e passou a rejeitar emendas constitucionais. "A

Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi outra tradicional instituição que se tornou ativa

adversária do governo militar" (Skidmore, 1 978, p. 366). A reativação sindical iniciou-se com a

revogação do AI-S, em 1 978, e continuou com greves no ABC paulista. em 78 e 79, lideradas

por Luis inácio Lula da Silva, reinvidicando reposições salariais e a volta de lideranças

sindicais ditatorialmente cassadas (Antunes, 1 989).

O impacto de fatores macroeconõmicos externos foi forte no período final do regime militar.

Fortemente dependente das importações de petróleo, o país sofreu com a quadruplicação

do preço deste insumo em 1 973, com consequências intensificadas pela decisão de

"ignorar" a crise externa e manter as taxas de crescimento. (Carneiro, ern Abreu, 1 990,

p.300)

Moura (em Lamounier, 1 990) diz que a inflação rescrudeceu com o fim dos controles

artificiais de preços impostos por Médici. As contas externas deterioraram-se, intensificando o

processo de endividamento externo. A política industrial baseou-se na substituição de

importações de bens de capital. através de facilidades como depreciação acelerada para

equipamentos nacionais, reservas de mercado e vantagens fiscais e creditícias. Tarifas

públicas erarn usadas para controle da inflação e as estatais captavam empréstimos. Foi

dada ênfase à produção e prospecção de petróleo e ao programa nuclear, além de outros

"projetos de grande porte, de longo prazo de maturação e de baixa taxa de retorno" (p.42).

Diversos artifícios financeiros mascaravam a verdadeira dimensão do desequilíbrio fiscal. "É

evidente que as politicas implementadas no governo Geisel para enfrentar o primeiro

choque do petróleo manifestam uma forte preferência pela substituição de importações e

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uma resistência à opção de reduzir o crescimento" (Moura, em Lamounier, 1 990, p.39).

Entre agosto de 1 979 e outubro de 1 980. no governo Figueiredo. houve o segundo choque

do petróleo e a elevação vertiginosa do custo do endividamento extemo. O governo

ensaiou uma política de ajustes, até a saída de Mário Henrique Simonsen do Ministério da

Fazenda, em 1 979, "acusado de contracionista" . Neste ano e no seguinte houve

crescimento econômico, paralelo à aceleração inflacionária e dilapidação das contas

externas, levando a um novo choque de ortodoxia a partir de 1 98 1 (Campos, 1 994, p.978). O

quadro recessivo que se instalou até 1 983 - intensificado pela moratória mexicana de 1 982

que minimizou empréstimos privados para o Brasil - foi retratado por Moura (em Lamounier,

1 990) como "a mais profunda, prolongada e abrangente queda no nível de atividade

econômica dos últimos sessenta anos" (p.47).

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3.2.2.6 - Nova República; Collor; Itamar e Fernando Henrique Cardoso

o fim do regime militar vinha se desenhando a partir da liberdade de imprensa e do fim do

AI-5, no governo Geisel. a partir de quando o MDB, partido da oposição, intensificou

protestos. O pluripartidarismo e a lei da anistia foram aprovados em 1 979. Foram

restabelecidos os direitos pOlíticos daqueles que os haviam perdido nos termos dos atos

institucionais. Enquanto a ARENA se rearrumava como PDS, alterando a legenda, conforme

preconizava a lei. o MDB conseguiu "criativamente", manter parte da legenda anterior,

tornando-se PMDB. O incidente do Rio Centro, em 1 980, um atentado fracassado planejado

por forças militares contrárias à abertura, reforçou o processo de liberalização.

Em 1 984 houve a campanha pelas Diretas-Já, seguida pela articulação política que levou à

eleição indireta, pelo Colégio Eleitoral, de Tancredo Neves para a presidéncia da República.

A doença e a morte, a "derrota de Tancredo", um presidente com vitória "planejada" como

fora a vitória do futebol na copa de 1 950, pôs o país de luto. Segundo DaMatta ( 1 986a),

Tancredo simbolizava a visão relacional do Brasil : "era uma 'velha raposa' , era um político

malandro, daquela linhagem clássica do PSD mineiro ( . . . ) reafirmava como a conciliação

pode ser positiva e milagrosa na sua capacidade de juntar tudo" (p.36).

A consolidação do fim da ditadura previa a elaboração de uma nova Constituição para o

Brasil. A transição para a retomada da democracia e a instalação da Assembléia

Constituinte consolidou-se, entretanto, sob comando de José Sarney, o vice-presidente que

assumiu quando da morte de Tancredo Neves : "Em 1 964, ele (Samey) era um dos 'jovens

promissores' (o outro era Antonio Carlos Magalhães). que o presidente Castelo Branco

considerava 'políticos do futuro' " (Campos, 1 994, p . 1 063).

Sob bases políticas frágeis, o governo Samey orientou-se para a ampliação do espaço

político do PFl, em aliança com ala conservadora e fisiológica do PMDB. A "Nova

República", instalada em 1 985, foi marcada pelas intenções democratizantes, pelo

clientelismo político, pela constituinte e pela retomada de debates quanto ao regime de

governo e quanto ao papel a ser desempenhado pelo setor público. O Congresso

Constituinte, que alterou o mandato presidencial dando cinco anos de poder a José Sarney,

previu o plebiscito para definição entre Presidencialismo e Parlamentarismo (Lamounier,

1 990).

Na dimensão econômica, o governo Sarney ( 1 985-1 989) teve início após a explosão dos

desequilíbrios internos levando, em 1 98 1 . a "um declínio global do nível de atividades, à

exceção da intermediação financeira que aumenta a sua participação na renda

nacional". Ao ápice recessivo, atingido após o acordo com o FMI ( 1 983) e marcado por uma

queda de investimentos econômicos de 55% (acumulada nos dois anos). sucedeu uma

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retomada de crescimento do PIB de quase 6%, em 1 984, paralela a um aumento

considerável das exportações (Carneiro & Miranda, em Carneiro, 1 986, p,9) ,

Velloso ( 1 986) lembra que "entre 1 930 e 1 984, o PIS cresceu 20 vezes e o per capita, 5 vezes"

(p, 2 1 ) , O processo de descontrole inflacionário, entretanto, sempre esteve presente na

história econõmica brasileira e a partir do governo Sarney, crescente e explosiva, atingiu

cerca de 250% no ano de 1 985, O risco de hiperinflação se tornava ameaçador : "durante a

segunda metade da década de 80, a política econômica brasileira concentrou-se no

combate à inflação"(Modiano, em Abreu, 1 990, p,347),

Segundo Modiano (em Abreu, 1 990). a interpretação de inércia inflacionária, resultante do

alto índice de indexação da economia, foi a base dos programas de ajuste adotados a

partir do Plano Cruzado, em fevereiro de 1 986, Plano este "implantado numa conjuntura

intemacional extremamente favorável à economia brasileira: baixa significativa do preço do

petróleo, prosseguimento da desvalorização do dólar e redução das taxas de juros

internacionais" (Baer, Macarini & Andrade, em Carneiro, 1 986, p, 236), Concebido como um

"choque neutro", sem intenções redistributivas de renda, o plano foi recebido com enorme

entusiasmo pela população,

O aumento do poder de compra dos salários, a despoupança voluntária causada pela ilusão monetária, o declínio do recolhimento do imposto de renda para pessoas físicas, a redução das taxas de juros nominais, o consumo reprimido durante os anos de recessão e o congelamento de alguns preços em níveis defasados em relação a seus custos detonaram conjuntamente uma explosão de consumo, A escassez de produtos manifestou-se já nesta fase (Modiano, em Abreu, 1 990, p,36 1 ) ,

Os esforços de controle da Iiquidez através de uma política monetária restritiva e da

elevação dos juros não se concretizaram, frente à forte oposição política ligada às

expectativas do governo quanto às eleições para governadores e para a Assembléia

Constituinte, Uma semana depois da vitória maciça do partido do governo (PMDB), em

novembro de 1 986, foi anunciado o Plano Cruzado 11. um "pacote fiscal" que buscava

atacar o déficit público, O impacto das medidas de reajustes das tarifas públicas e aumento

de impostos indiretos foi um violento choque inflacionário, que induziu a retomada da

indexação e das minidesvalorizações diárias do cruzado,

Os ajustes cambiais não foram suficientes para o equilíbrio da balança comercial. o que

levou o governo à suspensão do pagamento dos juros da dívida externa, em fevereiro de

1 987, O ministro Bresser Pereira substituiu a Dilson Funaro, em abril de 1 987, e em junho

apresentou o Plano Bresser, O novo congelamento de preços, na prática, não se

concretizou. Os preços relativos já estavam em desequilíbrio pela majoração defensiva na

perspectiva deste novo congelamento, e pelos ajustes das tarifas públicas e dos preços

administrados pelo governo, A inflação mensal atingiu o patamar de 1 4% em dezembro de

1 987, levando à demissão de Bresser e à política "feijão com arroz" de Maílson da Nóbrega,

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Houve o fim da moratória da dívida externa, pagando-se os juros vencidos. Em julho de 1 988

foi concluído o acordo preliminar da dívida externa e a inflação mensal marcou um novo

recorde de 24%.

Em outubro de 88, após tensos debates, foi promulgada a nova Constituição brasileira,

contendo aspectos considerados inflacionários. Aumentou-se a vinculação das receitas do

governo, enrijeceram-se os gastos públicos, transferiu-se renda para estados e municípios

sem a contrapartida das obrigações e encareceu-se o custo de mão-de-obra para o setor

produtivo. Neste período, intensificava-se a violência urbana e no campo. O assassinato do

seringalista Chico Mendes, no Acre, teve repercussões internacionais.

O inédito pacto social entre governo, trabalhadores e empresários, assinado em novembro

de 1 988, contribuiu para adiar a ameaça hiperinflacionária, mas em janeiro de 1 989 já era

necessário um novo plano. Uma reforma monetária instituiu o Cruzado Novo como moeda

nacional. Incluindo medidas de desindexação e uso de "tablitas" e taxas de juros elevadas,

foi apenas mais um "represamento temporário da inflação" (Modiano, em Abreu, 1 990, p.

382). No mesmo período intensificava-se, com Luiz Antonio Medeiros e Rogério Magri. o

sindicalismo de resultados (Teixeira & Messeder, s.d.) . Na véspera das eleições presidenciais

de 1 989, todos os 22 candidatos se proclamaram, de alguma maneira, oposição ao governo

Sarney. Collor de Melo, com uma campanha agressiva contra Lula, seu opositor no segundo

turno das eleições, foi eleito presidente. À margem da estrutura partidária existente, teve

mais de 35 milhões de votos. Mais da metade foi proveniente de famílias com rendo de até

dois salários mínimos e escolaridade correspondente ao curso primário (Moura, Lamounier &

Singer, em Lamounier, 1 990) . A representação do PRN na Câmara dos Deputados era de 3%,

no momento da eleição. Collor não contava também "com apoios significativos entre as

organizações civis estáveis, salvo a Rede Globo de Televisão ( . . . ) o desenvolvimento da

campanha acentuou até o limite o caráter carismático" (Lamounier, 1 990, p.29) .

Bethlem ( 1 990) lembra do caráter simbólico que retratou a candidatura Collor. Aspectos do

"messianismo" brasileiro foram retomados pelo uso do local do descobrimento do Brasil. 00

lado da cruz onde foi rezada a Primeira Missa, no lançamento do nome do candidato. Sob o

emblema de "caçador de marajás", a retórica moralizante se aliava, na plataforma eleitoral

"Brasil novo", à proposta de redimensionamento do Estado, de privatização, de

desregulamentação e de abertura de importações. "Collor descobrira um samba de duas

notas de extrema sonoridade: a tônica mora/isto, simbolizada na luta contra o marajá, e o

tema da renovação, simbolizada pela oposição ao governo Sarney" (Campos, 1 994, p.1 223) .

O governo começou em 15 de março de 1 990, quando a inflação mensal de 84% atingia

principalmente as classes pobres que não contavam com a proteção indexatória.

Deixando, conforme aviso prévio, "a esquerda perplexa e a direita enraivecida", anunciou-

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se o gigantesco enxugamento da liquidez, pela retenção de cerca de 70% dos ativos

financeiros transformados em depósitos no Banco Central. Aliavam-se a isto uma

monumental reforma administrativa, com extinção de vários órgãos da administração

direta, indireta e estatais, uma tentativa de aumento da base tributária, pelo fim dos titulos

ao portador, e um regime cambial de taxas flutuantes, administradas pelo Banco Central.

Em pouco tempo a inflação novamente ascendia ao patamar mensal dos 20%, piorando o

cenário de desaquecimento econômico e desemprego.

Segundo Campos ( 1 994), o Plano Collor 11. de janeiro de 1 99 1 , novamente congelava preços

e salários, extinguia indexadores (BTN e BTN fiscal) e tentava cercear a ciranda financeira. A

queda da equipe econômica se deu após o escãndalo amoroso entre a Ministra da

Economia, Zélia Cardoso de Mello e o Ministro da Justiça, Bernardo Cabral. Marcilio Marques

Moreira assumiu em maio de 1 99 1 . Ele descongelou gradualmente os preços; concluiu o

acordo com o FMI; normalizou as relações com o Clube de Paris; retomou as negociações

da dívida extema com bancos privados; manteve o calendário de liberação das tarifas de

importação, contrariando interesses dos empresários paulistas. Com elevadas taxas de juros,

formava-se um estoque de reservas, cujo efeito inflacionário foi controlado pela emissão de

titulos públicos. Em outubro de 1 99 1 chegou ao congresso uma proposta de reforma

constitucionol.

A corrupção gerenciada por PC Farias, tesoureiro de campanha do presidente, foi o motivo

alegado para o posterior impeachmenf, supostamente influenciado por pressões populares.

Diversos analistas estrangeiros fizeram a suposição de que a queda de Collor foi mais

impactada por suas atitudes reformistas do que por sua característica corrupta e pelas

manifestações de rua dos "cara-pintadas" (Campos, 1 994) .

O períOdO de Itamar Franco, iniciado em 1 992, foi mais um interregno na história política

brasileira. Em 1 993, através de plebiscito, foi confirmado o regime presidencialista. Apesar

das propagadas indecisões frente a importantes questões (como a privatização) e de

atitudes públicas, segundo a imprensa, "pouco recomendáveis", o fato pragmático é que,

ancorado no Plano Real. o governo baixou a inflação mensal para um patamares de 1 -2%.

Itamar Franco concluiu seu governo mantendo a ordem institucional. com popularidade da

ordem de 80% e elegendo, no primeiro turno, como sucessor, o ex-Ministro da Fazenda

Femando Henrique Cardoso, que tomou posse no dia primeiro de janeiro de 1 995.

A política econômica foi mantida e a inflação permaneceu controlada em torno dos 1 ,5%

ao mês, apesar dos impactos econômicos da crise do México sobre os países latinos. Os

monopólios estatais vêm sendo flexibilizo dos e o sistema bancário passa por uma

reestruturação (questionada por diversas forças sociais) .

Nota-se, também, o fortalecimento do movimento dos "Sem-Terra" , com consecutivas

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invasões de terrenos marcadas pelo incremento da violência. O Congresso e a Poder

Executivo continuam discutindo reformas na Constituição. A imprensa continua notificando

a respeito da notável situação de desigualdade social do Brasil que, a despeito do fim do

efeito inflacionário sobre a concentração de renda, continua sendo considerado "o pais

mais injusto do mundo".

Discute-se, ainda, a possibilidade de reeleição do Presidente Fernando Henrique, que vem

se destacando pela atenção dispensada às relações internacionais, sendo, segundo a

imprensa, o Presidente que mais viajou pelo mundo na história da Brasil.

Em abril de 1 996, as questões mais presentes na imprensa falam da permanência e

intensificação do "ciientelismo" no processo político de reforma e modernização neo-liberal

do governo social-democrata; e de diversos exemplos de "corporativisrno" .

Procurei traçar, seguindo a lógica historicista, uma trajetória de tradições, políticas, fatos

econõmicos e sociais. Ambicionei iluminar aspectos que pudessem ser articulados com o

inventário que faço a seguir, de elaboração sincrõnica, sobre a cultura brasileira.

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3.3 - Visão Sincrônica da Cultura Brasileira

Apesar dos diversos vislumbres e explicações contidos no item anterior, o enfoque historicista

tende a, pelos mais diversos critérios. classificar, julgar, enxergar o Brasil como integrante de

algum conjunto de nações similares, roçando de leve a questão mais profunda da

identidade nacional.

A história é quase sempre que exclusivamente a única via de acesso que elegemos para o nosso auto-conhecimento. Difícil. portanto, encontrar nas nossas teorias sociais algo que não seja explicitamente histórico e implicitamente econômico: ou, ao contrário, implicitamente histórico e explicitamente econômico. Com a cabeça sempre passando por etapas necessariamente encadeadas ( ... ) mas se uma sociedade pode ser percebida e enquadrada ao longo da categoria do tempo, ela também se revela em termos de padrôes, pautas, configuraçôes. Teias de relaçôes sociais, jurídicas, econômicas e institucionais que são dadas de modo simultãneo (DaMatta, 1 986, p.37).

Esta simultaneidade é a questão mais intrigante e mais fundamental para meu trabalho de

entender as peculiaridades comportamentais brasileiras. O agir sincrônico do dia-a-dia.

Preciso (re)conhecer as diferenças entre as práticas sociais cotidianas no Brasil e nos demais

países "capitalistas", por exemplo, Portugal. Inglaterra e EUA, que sobremaneira

influenciaram-nos ao longo do processo histórico. Como entender as diferenças entre o Brasil

e os demais países "em desenvolvimento" ou "subdesenvolvidos do terceiro mundo

tecnológico", como a China, a África do Sul e a índia ? Ou mesmo entre nós e nossos

vizinhos latinos mais próximos como Argentina, Venezuela, Colômbia, Bolívia ou México?

Para responder isso é fundamental entender os mitos, rituais e símbolos cotidianos que

estruturam o sistema de significados brasileiro. Mais ainda, é preciso caracterizar a

"identidade brasileira" . Barbosa ( 1 992) lembra que o conceito de identidade social

relaciona-se ao mecanismo - que é parte central da vida coletiva - de construção da idéia

de "eu" e de "outro". Da concepção que permite distinguir o "nosso grupo" do "grupo

alheio". Ela acrescenta que tal identidade depende da lógica da situação, não sendo uma

atribuição monolítica e estática, acabada e permanentemente acionada.

A identidade nacional. portanto, se articula através dos variados discursos que se

entrecruzam no interior da sociedade, estruturando-se em categorias opostas e

complementares, abarcando uma série de identidades menores. Emerge, principalmente,

em momentos quando características da nação estão em jogo, e, às vezes, funciona como

o simétrico inverso de diversas outras identidades sociais internas, usadas para atualizar a

diversidade social e simbólica entre grupos constituintes da mesma nação.

Rocha ( 1 995a) defende o estudo dos episódios da vida cotidiana tomando-os como

"fragmentos de brasilidade", "pedaços do imaginário brasileiro", que podem ser

"remontados como um quebra-cabeças em busca de sua figura maior". Isto porque

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"detalhe não quer dizer pequeno ou sem importância. Muito ao contrário é exatamente o

detalhe que possui a força da revelaçâo" (p.2).

Exploro as idéias do grupo de estudiosos que segue a perigosa e desafiante a jornada para

entender "o que faz o brasil, Brasil", sem recorrer única e exclusivamente ao acervo

tradicional das análises ditas sétias sobre o Brasil. Aqueles que escolhem estudar experiências

da estrutura e vida brasileiras não assumidas como "instãncias decisivas da nossa vida

social". Não são elementos pertencentes aos "espaços legitimados dos grandes temas ou

das perspectivas explicativas nobres" . Não são itens do "repertório contido nas chamadas

grandes questões nacionais - coisas sétias como economia ou governo. Vamos pensar o

Brasil pelo detalhe" (Rocha, 1 995a, p.2) .

Para iniciar este item da revisão bibliográfica, faço minhas as brilhantes palavras

introdutórias do mesmo DaMalla ( 1 990), intrigado como ele com a generosidade, sabedoria

e esperança do povo brasileiro. Sigo seus caminhos para, com o auxílio da prática corajosa

da Antropologia Social, ter uma visão da sociedade aberta e relativizada pela

comparação, examinando aspectos de uma sociedade brasileira que o povo "encara e

certamente ama como uma divindade" (DaMa lia, 1 986, introdução).

se interpretações do Brasil são relativamente abundantes, não será exagerado dizer que quase todas procuram contar a história de modo linear, com um princípio, um meio e um fim; com bandidos e mocinhos, partindo da geografia para a família e o povo. Tomando o conjunto como uma corrente de águas claras, onde classes sociais ou grupos individualizados e altamente racionais lutam entre si pela posse incontestável do controle do sistema. Aqui estou interessado numa visão provavelmente mais complexa. Não desejo apenas conhecer os eventos dentro de sua evolução temporal. onde as coisa se desenrolam em linha (com antecedentes e consequentes) mas ver a nossa totalidade como um drama, onde o princípiO se rebate no fim e - na dialética das indecisões, reflexos e paradoxos - o bandido pode perfeitamente ocupar o salão e o mocinho (belo nos seus bigodões de fazendeiro de café e já pensando em fundar uma indústria) pode perder a fala e, de anarquista e futurista-canibal, passar a ser como a maioria, revolucionário de praia (DaMatta, 1 990, p. 1 3) .

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3.3.1 - Determinismos e a Fábula das Três Raças

No início do século XX. descrevendo a epopéia de Canudos. Euclides da Cunha ( 1 902) dizia

que :

a gênesis das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiara o esforço dos melhores espíritos ( . . . ) os nossos silvícolas. com seus frisantes caracteres antropológicos. podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autócnes da nossa terra ( . . . ) O negro bantu. ou cafre. com as suas várias modalidades. foi até esse ponto nosso etemo desprotegido ( . . . ) Qualquer. porém que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe. certo. os atributos preponderantes do homo ater , filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força. Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez. mau grado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado ( . . . ) A mistura das raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial ( . . . )0 indu-europeu, o negro e o brasílio-guarani ou o tapuia, exprimem estádios evolutivos que se fronteiam. e o cruzamento, sobre obliterar as qualidade preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço - traço de união entre as raças. breve existência individual em que se comprimem esforços seculares - é, quase sempre, um desequilibrado (p.54-80) .

Darcy Ribeiro ( 1 994), propondo-se a entender a formação e o sentido do Brasil, introduziu seu

livro dizendo que :

Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nesta confluência que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares. tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (p. 1 9)

Agregue-se a isso o trecho do discurso de posse do Presidente Fernando Henrique Cardoso,

apresentado no item 2.2 desta dissertação e fica clara uma mesma linha-guia. Embora o

primeiro enfoque tome a mestiçagem como algo negativo. o segundo pareça neutro e o

terceiro seja francamente positivo (como não poderia deixar de ser num discurso de posse),

têm-se, com a recorrência, uma característica tipica dos mitos, descrita por Geertz ( 1 978): a

motivação de cada grupo social a elaborar historinhas sobre si mesmo para serem contadas

a si próprio. Introduzo este item com uma breve digressão que permite o entendimento dos

mtfos. já que este conceito será usado no decorrer do trabalho. Fetue ( 1 995) lembra que "o

mito é, antes de tudo, uma fala, uma forma de linguagem ( ... ) sistemas semiológicos

segundos, ou seja, construções feitas a partir de associações já cristalizadas no imaginário

social"(p. l 0) .

Rocha ( 1 994) diz que o mito é "uma narrativa especial, particular, capaz de ser distinguida

das demais narrativas humanas" (p.8). Lévi-Strauss ( 1 973) lembra que os mitos podem nunca

atingir um estado final, tornando-se, pela dinâmica incorporação de mitemas, espirais que

tentam infrutiferamente resolver paradoxos e dilemas de um grupo social. A análise de mitos

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não é uma coisa simples, já que o discurso do mito é cifrado, implicitando significados

sociais, mas os antropólogos colecionam interpretações de mitos procurando investigar as

sociedades que os produzem e utilizam. (Rocha, 1 994) .

Concluo então a digressão para retomar o estudo da cultura brasileira através de uma

destas narrativas míticas. Um discurso sutil que a sociedade brasileira elaborou e disseminou,

e que foi destrinchado por DaMatta ( 1 98 1 ) . Em primeiro lugar, vale a pena olhar para o

nosso "mito das três raças" em seu papel de mais um determinismo presente no desenrolar

da vida social brasileira.

Que os três elementos sociais - branco, negro e indígena - tenham sido importantes entre nós é óbvio, constituindo-se sua afirmativa ou descoberta quase que numa banalidade empírica. É claro que foram ! Mas há uma distãncia significativa entre a presença empírica dos elementos e seu uso como recursos ideológicos na construção da identidade social, como foi o caso brasileiro (DaMatta, 1 98 1 , p.62)

Moog ( 1 978) e Ramos(1 995) juntam-se a DaMatta ( 1 98 1 ) na denúncia dos determinismos

racial, religioso, geográfico, positivista, "marxista-vulgar". O fato é que a propensão brasileira

a acatar "determinismos" como respostas e soluções parece infinita. Porém, não basta,

como fez Moog ( 1 978) com precisão, lembrar que explicações e causas para a situação

econõmica do Brasil precisam ser procuradas a partir da elaboração de um inventário que

reuna interrelacionadamente geografia, colonização, recursos naturais simbolismos

referentes à ausência de uma ética protestante que valorizasse o trabalho.

Trata-se, sim, de mergulhar mais profundamente, como fez DaMatta ( 1 979, 1 98 1 ), e perceber

que a "fábula das três raças", o "mito da democracia racial", oferecem explicações

"fáceis" quanto à preguiça, à malandragem e melancolia, e à incapacidade intelectual do

brasileiro, ou ao amor à natureza, à criatividade e à capacidade miscigenatória

(estereótipos positivos e negativos respectivamente derivados do índio, do negro e do

português). Este modo de construção de identidade cai como uma luva no imaginário

coletivo de uma sociedade que prefere não se aprofundar na discussão de seus conflitos

internos.

Existem sistemas que toleram e até mesmo tomam o conflito como um alimento social básico para sua própria existência enquanto conjunto saudável e íntegro. Mas existem também sociedades cujo temor ao conflito e à divergência é muito grande ( . . . ) Há sistemas que dão prêmios aos divergentes, que são vistos como criativos e como figuras geniais. E há sociedades que dão prêmios aos pacificadores ( . . . ) no Brasil, buscamos sempre encorajar esses pacificadores que tomam a ordem e a totalidade como sagrados (DaMatta, 1 98 1 , p. 1 64).

Os vários mitos que os brasileiros elaboram na conversa diária, na busca de explicar nossa

origem enquanto povo e resolver nossos problemas são, em geral, determinismos que diluem

o acirramento do debate sobre nossos dilemas. Num simbologismo mais profundo, eles

denotam a intolerãncia da sociedade brasileira à discordãncia e ao debate conflituoso de

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idéias, nossa constante preferência por conciliar impulsos contraditórios sem criar espaços

para transformações profundas.

Moura ( 1 98 1 ) cita José Honório Rodrigues, para lembrar que "como reação ao sistema

escravocrata, a rebeldia negra, insurreição racial, foi um processo contínuo e permanente, e

não esporádico como fez ver a historiografia oficial" (p.8 1 ) . Endeusamos pacificadores que

sacramentam a ordem e a totalidade, em detrimento da mudança racionalmente

debatida. Selecionamos os fatos históricos por este critério"

DaMalta ( 1 994) nos adjetiva como mestres das transições equilibradas e da conciliação.

Talvez desta forma esteja adiado (quem sabe eternamente) o rompimento do tecido social

brasileiro, preconizado por Jaguaribe de Matos ( 1 98S) que fala em um possível "desastre

histórico" que levaria a uma "estrutural inviabilidade e conduziria o país à guerra civil ou à

uma crise incomensurável" (p.32). O que tivemos no decurso de nosso processo histórico

oficial foi uma macroestrutural imobilidade social e política que, com um ligeiro esforço de

perceber as entrelinhas, pode ser caricaturizada pela semelhança entre os discursos

nacionalistas, messiãnicos e, como não pOderia deixar de ser, deterministas e reducionistas,

que perpassam correntes políticas em superfície discordantes. O que se espera em situações

de conflito é o ritual do reconhecimento hierárquico que humanizo e personaliza as

situações formais (DaMalta, 1 994).

O conflito aberto e marcado pela representatividade de oplnloes é, sem dúvida alguma, um traço revela dor de um igualitarismo individualista que, entre nós, quase sempre se choca de modo violento com o esqueleto hierarquizante de nossa sociedade ( . . . ) num mundo que tem que se mover obedecendo às engrenagens de uma hierarquia que deve ser vista como natural, os conflitos tendem a ser tomados como irregularidades (DaMalta, 1 990, p . 1 49)

A segunda revelação do mito racial diz respeito às hierarquias implícitas e não-discutidas.

Destrinchando o triângulo étnico, pela qual se arma, geometricamente a fábula das três

raças, vê-se que ele tem intenção pacificadora de suavizar uma estrutura social inigualitária.

DoM alta ( 1 98 1 ) lembra que o marco histórico do enraizamento de tais "doutrinas raciais"

teria ocorrido à época da Abolição da Escravatura e Proclamação da República que, não

só abalaram as hierarquias sociais, mas também, paralelamente, destruíram um recurso

utilizado pelas elites locais para sustentar o esqueleto social: colocar a culpa dos erros e

injustiças na Coroa Portuguesa em Lisboa. A parfir desse momento histórico, com o plano

'Não surpreende que nas aulas de história, os alunos brasileiros discutam muito mais enfaticamente (e sempre em seu lado positivo e unificador) o Descobrimento do Brasil, a Independência, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República; do que a expulsão dos jesultas, o fenômeno de Palmares (Rocha & Diegues, 199 I), a adesão aos holandeses no Nordeste, as diversas rebeliões regionais e tentativas separatistas e o período da ditadura millitar. Também não é de se estranhar a queima dos arquivos sobre a escravidão no Brasil, nem a recente demolição do presídio de Ilha Grande onde ficaram detidos os presos politicos durante a ditadura. Ambas foram atitudes de destruição de patrimônio histórico que não evocaram maiores exclamações populares, talvez por "apagarem" mem6rias desagradáveis.

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social e político o Brasil marcado por hierarquizações e motivações conflituosas, o mito das

três raças passa a unir a sociedade num plano "biológico" e "natural", prolongando os

domínios positivos existentes nos ritos de Umbanda, na propalada cordialidade, no carnaval,

na comida, na beleza da mulher (e da mulata) e na música popular.

Da Motta ( 1 98 1 ) desmente a idéia de Portugal como um país atrasado, sem sociedade

estabelecida, na época da colonização do Brasil. Ele faz aflorar uma realidade portuguesa

complexa e complicada como uma totalidade social altamente hierarquizada, com setores

e camadas sociais diferenciadas mas complementares. Uma sociedade cuja "unidade

política, realizara-a desde o século Xiii, antes de qualquer outro Estado europeu moderno"

(Buarque de Holanda, 1 984, p.83) e que, bem ao contrário do que afirmava Freyre ( 1 987) na

sua tese da propensão portuguesa à aceitação aberta de outros grupos étnicos, controlava

social e politicamente, de forma explícita , às vezes brutal, os segmentos alienígenas.

Um país com uma economia internacionalizante, voltada para práticas mercantilistas, mas

rigidamente entrelaçada por leis e decretos que impediam que o "econõmico" se

desvencilhasse completamente do social, conforme Polany ( 1 980) afirma ter ocorrido em

sociedades que vivenciaram plenamente a Revolução Industrial.

Do patrimõnio do rei - o mais vasto do reino, mais vasto que o do clero e, ainda no século XIV, três vezes maior que o da nobreza - fluíam rendas para sustentar os guerreiros, os delegados monárquicos espalhados no país e o embrião de sevidores ministeriais, aglutinados na corte ( ... ) Nos tormentosos dois séculos iniciais do reino de Portugal, traçaram-se limites nítidos entre o exercício de um cargo e a propriedade privilegiada. O país se dividia em circunscrições administrativas e militares, as ' terras' ou 'tenências ' , cujo superior governo cabia a um chefe, os 'tenens', dentro das quais se constituíam distritos, os 'préstamos ' , administrados por um prestameiro designado pelo rei. A função pública de primeiro nível cabia ao nobre, senhor de terra ou alheio ao solo jurisdicionado. Igualmente, as circunscrições judiciais (julgados) e circunscrições fiscais (almoxarifado) dependiam, no provimento dos cargos, da exclusiva escolha régia. O corpo de funcionários recebia a remuneração da renda dos casais, aldeias e freguesias, dos estabelecimentos não beneficiados com a imunidade fiscal ( ... ) O rei, na verdade, era o senhor de tudo" (Faoro, 1 975,p.5)

Buarque de Holanda ( 1 984) lembra que, diferentemente da burguesia mercantil do resto da

Europa, a portuguesa não precisou adotar um modo de agir e pensar absolutamente novo,

ou instituir uma nova escala de valores. Ela procurou associar-se às classes dirigentes,

assimilar muitos dos seus princípios, guiar-se pela tradição, mais do que pela razão fria e

calculista. "Os elementos aristocráticos não foram completamente alijados e as formas de

vida herdadas da Idade Média conservaram, em parte, seu prestígio antigo"(p.8).

DaMatta ( 1 98 1 ) desmente o "povo novo" de Darci Ribeiro ( 1 994), elaborado por um

caldeamento equitativo de elementos europeus, índios e negros, que tecia a rede cultural

brasileira. Não eram três culturas que se uniam. Era, sim, a cultura de Portugal, tomando a

religião como moldura justificadora da diretriz expansionista, que totalizava a Colõnia

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brasileira. Espasmadicamente admitindo elementos simbólicos negras e indígenas, a Coraa

transplantou para cá todo o aparato institucional hierarquizante, toda a ideologia de

classificação social, além das técnicas jurídicas e administrativas, para facilitar o controle da

empreitada além-mar:

1 822 é a data da independência de um território e não de uma nação. Aqui a idéia de nação precedeu ao fato da nação mesma, entendia esta como vivência de uma comunidade de estilo de vida histórica. As instituições vigentes no Brasil, até 1 822, do ponto de vista sociológico, eram excrescência. muito embora para o colonizador tivessem sido excelente arma de manutenção e preservação de uma estrutura de poder. A unidade do Brasil, conseguiu-a Portugal, graças ao artificial tecido de instituições com que vestiu a nossa realidade (Ramos, 1 995, p. 1 1 5) .

Da operacionalização de tal sistema legal transplantado resultou um formalismo excessivo.

com tudo codificado e previsto em lei. que é um dos fatores do descompasso entre a regra

e a prática cotidiana (Barbosa. 1 992) . Predominou uma experiência institucional político­

econômica fortemente centralizada em leis e decretos escritos sem a devida consideração

das diferenças geográficas e de práticas sociais concretas.

Esta leitura estruturalista do mito esclarece a lógica do sistema de relações sociais no Brasil.

Vivemos numa sociedade onde a hierarquização e as gradações são tomadas como fato

natural, podendo, e devendo. haver intimidade. confiança e consideração entre superiores

e inferiores. estratos sociais interdependentes. complementares. Há uma justificativa

indispensável e básica por trás das desigualdades: tal mundo terrestre espelha a realidade

do "céu", do "outro mundo" católico. O paraíso celeste. dividido e classificado segundo

planos de poder e importância - "povoado por anjos. arcanjos, querubins, santos de vários

méritos etc. sendo tudo consolidado na Santíssima Trindade. todo e parte ao mesmo tempo;

igualdade e hierarquia dados simultaneamente -, se reproduz entre os vivos (DaMalla, 1 98 1 ,

p.75).

Forma-se, na sociedade brasileira, um esqueleto vertical, hierarquizado, desigual. que

coloca tudo em gradações, e que vangloria o integral e pacífico (embora implícito)

reconhecimento social desta estrutura. Há uma inclusividade tomada como natural, oposta

a evitação vivenciada, por exemplo, na formação da nação norte-americana. Com os

mesmos elementos empíricos - branco colonizador. negro escravo e índio habitante - a

ideologia americana explicita uma identidade nacional englobada pelos valores do branco

anglo-saxão, hegemônicos e atuantes na exclusão (e até mesmo destruição) de índios e

negros.

Já no Brasil, a experiência com a hierarquia, a aristocracia, a escravidão e com as diversas tribos indígenas que ocupavam o território colonizado pelo português engedrou um modo de percepção radicalmente diverso ( . . . ) ' índio ' , 'negra' e 'branco' se relacionam por uma lógica de inclusividade, articulando-se em planos de oposição hierárquica ou complementar. Com isso, o Brasil pode ser lido como 'branco'. ' negro' ou 'índio' segundo se queira acentuar (ou negar) diferentes aspectos da cultura ( . . . ) Qualquer brasileiro pode então dizer que. nos planos da

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alegria, do ritmo e da opressão política e social, o Brasil é negro; mas que é 'índio' quando se trata de acentuar o tenacidade e uma sintonia profunda com a natureza. Por outro lado, esses elementos se articulam através de uma língua nacional e de instituições sociais que são a contribuição do branco-português, que, nessa concepção ideológica, atua como elemento catalisador ( ... ) numa mistura coerente e Ideologicamente harmoniosa (DaMatta, 1 993, p. 1 3 1 ) .

Num tal sistema totalizante e hierarquizado, não surpreende que se tenha modificado a

teoria racista, como tantas outras, possibilitando a congregação positiva de categorias

intermediárias, intersticiais, das quais a mulata é o melhor exemplo. Não surpreende que

elementos sociológicos se articulem de forma a evitar conflitos. Nosso sistema hierarquizado

está plenamente de acordo com os determinismos "que acabam por apresentar o todo

como algo concreto, fornecendo um lugar para cada coisa e colocando,

complementarmente, cada coisa em seu lugar" (DaMatta, 1 9B I , p.59) .

Temos, como herança portuguesa, um sistema de classificação social inigualitário,

fundamentado na hierarquia vertical e grupos sociais diferenciados, que nunca foi sacudido

por transformações socialmente significativas. Paralelamente, temos um triãngulo racial que

desloca para o campo da raça e biologia discussões sobre diferenças sociais. Este triângulo

racial mítico permite a síntese de posições políticas antagõnicas, a convivência e

interpermeamento (alguns diriam sincretismo) entre religiões díspares, enfim, a criação de

interstícios, de mediadores, num universo social que, permitindo tais gradações e

intermediações, se realiza na ambiguidade e na conciliação abrangente, evitando, a todo

o custo, o conflito e o confronto .

... nosso preconceito, muito mais contextualizado que o do americano, que é direto e formal ( . . . ) tem, pelo fato de ser variável. enorme e vantajosa invisibilidade. Na realidade, acabamos por desenvolver o preconceito de ter preconceito, conforme disse Florestan Fernandes numa frase lapidar (DaMatta, 1 986, p.35).

Moog ( 1 978) lembra que a doutrina de igualdade com separação, nos EUA, só começou a

proscrever após a decisão da Suprema Corte, em 1 954, contrária à segregação racial em

escolas. Já no Brasil, onde não há igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é forma

muito mais eficiente de discriminar pessoas, contanto que "elas fiquem no seu lugar e

'saibam' qual é ele" (DaMatta, 1 986, p.37).

o próprio estudo sociológico brasileiro, partindo sempre da "união de três raças", reifica o

mito, enquanto deixa de lado a peculiaridade da cultura brasileira, a característica

minimizada em diversos outros países, em especial os "países desenvolvidos": a

preocupação com as relações sociais, os interstícios do esqueleto hierarquizante, as

pOSSibilidades de conciliar e compatibilizar através das gradações, e de compensar através

de complementariedades permitidas pela multiplicidade de critérios de classificação.

É mais fácil dizer que o Brasil foi formado por um triãngulo de raças, o que nos conduz ao mito da democracia racial, do que assumir que somos uma sociedade hierarquizada que opera por meio de gradações e que, por isso mesmo, pode

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admitir entre o branco superior e o negro pobre e inferior, uma série de critérios de classificação. Assim podemos situar as pessoas pela cor da pele ou pelo dinheiro. Pelo poder que detém ou pela feiúra de seus rostos. Pelos seus pais e nome de família, ou por sua conta bancária. ( ... ) Na nossa ideologia nacional temos um mito de três raças formadoras. Não se pode negar o mito. Mas se pode indicar que o mito é uma forma sutil de esconder uma sociedade que ainda não se sabe hierarquizada e dividida entre múltiplas possibilidades de classificação (DaMatta. 1 986, p. 38) .

A prática cotidiana brasileira expressa a hierarquização continua e múltipla de todas as

posições do sistema. É possível, inclusive, compensar e complementar diferenciações

conflituosas - como a capital/trabalho - operando-se além do eixo econõmico. Consegue-se

personalizar o conflito e, através de classificações de caráter moral. dividir os patrões em

bons e maus, felizes e infelizes, que consideram ou não seus empregados. Empregados que

podem ser limpos ou sujos, leais ou desinteressados (DaMatta, 1 990, p. 1 56) .

É tipica de nosso sistema essa capacidade de misturar e acasalar as coisas. A 'atividade relacional ' , de ligar e descobrir um ponto central. O que faz o brasil, Brasil é uma imensa, uma inesgotável criatividade acasaladora. Será preciso, pois, discutir o Brasil como uma moeda, como algo que tem dois lados. E mais: como uma realidade que nos tem iludido, precisamente porque nunca lhe propusemos esta questão relaciona I e reveladora: afinal de contas, como se ligam as duas faces de uma mesma moeda ? " (DaMatta, 1 986, p. 40)

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3.3.2 - Espacos Sociais no Brasil : Casa, Rua e Outro Mundo

A cultura brasileira exerce de uma forma inusitada a capacidade humana de combinar

elementos concretos. Com os mesmos "universais" presentes em - religião, fisiologia, relações

sociais, sexo, política, economia, etc - , a sociedade brasileiro operacionaliza seu cotidiano

aproveitando-se de uma excepcional tendência oscilatória, movendo-se ambiguamente

sobre eixos éticos paradoxais e complementares. Esta é a idéia que DaMalla ( 1 990) tem

sobre o "dilema brasileiro" sobre as aparentes "incongruências" presentes na prática social

brasileira e no modo como a sociedade reflete e vivencia suas instituições, quando

comparada a outras nações.

Rocha ( 1 995a) retorna à década de 30, quando Gilberto Freyre modelava aspectos duais

da sociedade brasileira, jogando luz sobre um possível paradoxo basilar:

A formação brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietáriO e o pária. O bacharel e o analfabeto. O senhor e o escravo (Freyre, 1 985, p.53).

Freyre defendia que, frente a esta particularidade da indefinição, a cultura brasileira

buscaria compatibilizar tais antagonismos, equilibrando-os positivamente, exorcismando a

ambiguidade. Este sempre foi um ponto desprezado pelos economicistas apocalípticos,

pregadores da impossibilidade do Brasil enquanto nação. Contudo, Freyre cometeu erro

simétrico, esqueceu o outro lado da moeda, desprezou todo conjunto institucional que inclui

o sistema legal e constitucional. as ideologias religiosas oficiais e legitimadoras e o sistema

burocrático que fizeram a sociedade brasileira ser mais do que um sistema de costumes, ser

uma nação (DaMalla, 1 994) .

A realidade da cultura brasileira é mais complexa. Há fortes indícios de que a opção

brasileira não foi simplesmente a síntese positiva dos lados de seus antagonismos, nem a

demarcação nítida das fronteiras entre elementos contraditórios, nem a destruição

completa de algum pólo sistema em favor do outro, gerando uma unicidade, uma

homogeneidade ética. O que se vê é que a sociedade pode, e tende a, unir os dois lados

acima descritos a um terceiro elemento que pode tanto sintetizá-los, quanto dramatizar a

negação, a renúncia ou a perplexidade diante dos outros dois. É uma perene convivência

de contrários e complementos que governa a nossa visão de mundo, a ordenação,

reconstrução e constituição de nossas práticas cotidianas.

Estes "contrários" demarcam zonas, aspectos, assuntos e valores, possibilitando modos de

leitura diferenciados. Dependendo do contexto, um dos códigos sociais pode englobar os

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outros dois, mas também ocorrem operacionalizações híbridas, paralelas e sinérgicas, que

reificam o sistema classificatório diferenciador-hierarquizador e complementar. Um modo de

ser que, ao permitir a relação e conciliação de diversas éticas, abre "avenidas de

compensação social" (DaMalla, 1 994) .

DaMalla ( 1 990) retrata tal particularidade através de três "espaços sociais brasileiros" . Ele

denomina um deles "mundo da rua", É a área preconizadara dos modelos liberais burgueses

que vêm se implantando nas "sociedades modernas" desde a revolução industrial. É a zona

na qual os cidadãos são entidades sociais indiferenciadas, individualizadas e independentes

que agem perante uma estrutura legal, impessoal que pretende justiça, U m espaço social

que oferece escolhas individuais e, igualando todos os cidadão perante regras universais,

limita as hierarquizações apenas aos fenõmenos sociais que permitam diferenciar com base

em mérito pessoal. em desempenho individual. Ou seja, é uma estrutura por princípio

horizontal. permitindo verticalizações em espaços predefinidos e com base nos princípios da

meritocracia. PrinCipalmente, é uma zona ideológica que toma cada parte (cidadão) como

central e mais importante que o todo (sociedade),

Paralelamente ao "mundo da rua", temos o "mundo da casa", onde valores típicos das

"sociedades tradicionais" continuam operando. É a zona social que idealizadora um todo

(coletividade) que supera, em importãncia, as partes (indivíduos) . A hierarquia que cerceia

escolhas do indivíduo é norma socialmente aceita, e as desigualdades são tomadas como

fatos naturais frente à imperiosa necessidade de coesão da totalidade social. A tradição é a

lei. e a formalização, quando ocorre, é para reificar as diferenças e privilégios. Um espaço

social caracterizado por sua profunda ligação com o espaço geográfico, com o "território" .

Um setor de navegação social onde cada um vale pelas redes de conhecimentos pessoais

das quais participa, Múltiplas teias de relações que cristalizam os caminhos sociais

interdependentes que cada membro precisa seguir. Espaço social onde as vontades são

impostas de fora para dentro - pelo corpo social a cada um de seus membros.

A estes dois mundos - casa e rua -, pertinentes ao plano do concreto, junta-se um outro que

os espelho: o "outro mundo"

In the other wond there is the universal, unshakable equality of 011 people who stand as individuais before God and are judged on their individual merits. Yet. at the some time, the unshakable judgement of the other world is softened by such intermediary forces as spirits, saints, ar the Virgin Mary, who are able to intercede in the hierarchy on one's behalf (Hess, in DaMalla & Hess, 1 995, p. 1 4)

Complementar aos mundos do plano real. o "outro mundo" pertence ao plano do sagrado,

É o mundo do eterno, da religiosidade, o espaço de onde surgem o destino ou o Messias,

únicos mecanismos possíveis de induzir drásticas alterações na realidade. Realidade esta

diferente da concebida pela religião protestante que prega o "planejamento" da vida de

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forma a contabilizar positivamente as virtudes em relação aos pecados, já que a salvação é

fruto da aplicação constante e consistente da ética única do trabalho.

o "outro mundo" é o espaço idealizado pela cultura brasileira onde os seres humanos são

iguais entre si e, todos são inferiores hierárquicos em uma macroestrutura religiosa, que pode

ser acessada por mediadores Isantos, anjos, pais de santo, padres). É um espaço social onde

valem as duras leis divinas, que podem levar ao inferno; mas valem, também, o

arrependimento e o perdão que levam ao céu, e, ainda esperança de reconciliação

simbolizada pelo purgatório.

DaMatta ilustra bem a dimensão triangular da cultura brasileira:

Essas possibilidades e esses espaços permitem leituras ou construções diferenciadas mas cúmplices e complementares da sociedade brasileira por ela mesma I ... ) é possível 'ler' o Brasil de um ponto de vista da casa, da perspectiva da rua e do ãngulo do outro mundo I ... ) Trata-se de uma variação sistemática, previsível e legitimada, que todos os brasileiros adultos aprenderam e serão capazes de prever com razoável precisão. Leituras pelo ãngulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arremata dores de processos ou situações. Sua intensidade emocional é alta I . . . ) Leituras pelo ãngulo da rua são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada que, por isso mesmo, permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação. Já as leituras pelo prisma do outro mundo são inteiramente relativizadoras e muito mais inciusivas; nelas as misérias do mundo são criticamente apontadas. Elas indicam que há um outro lugar e uma outra lógica, que nos condena a fados a uma igualdade perante forças maiores" 1 1 994, p.2 1 ) .

Deus é brasileiro sobretudo porque Ele é feito - como nós - de três pessoas ou espaços distintos e absolutamente complementares. O Pai é a rua, o Estado e o universo implacável das leis impessoais. O Filho é a casa, com suas relações calorosas, sua humanidade e seu sentido de pessoa feita de carne e osso. E, finalmente, o Espírito Santo é a relação entre os dois, o 'outro lado' do mistério. A virtude que fica no meio - em cima de um muro" 1 1 994, p.29).

Essa possibilidade de transitar por códigos de comportamento díspares, aparentemente

paradoxais, responde pelas pequenas incongruências entre discurso e prática, que tanto

comentamos no dia-o-dia. Esta característica cultural peculiar, faz-nos saber, sempre, quem

é "dos nossos", e quem não é. Quem é "de casa", quem é amigo, quem pode nos pedir

favores e para quem devemos explicações que superam, hierarquicamente, a liberdade

individual de trilhar o próprio caminho.

Esta multiplicidade de possibilidades éticas, que sempre justificam personalisticamente os

comportamentos, gera uma predileção pela mediação, uma tentativa de soluções que

encobrem conflitos, que homenageiam a flexibilidade, que glorificam o que relaciona,

engloba e complemento. Que endeusam a ambiguidade.

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3.3.3 - Cultura Relacional e Mediação

Quando era só eu. tinhas meu amor e te faltava tudo. como sofrias! Quando foi só ele. tinhas tudo. nada te

faltava. sofrias ainda mais. Agora. sim. és Dona F/ar. inteira como deves ser (em "Dona Flor e seus Dois

Maridos", de Jorge Amado)

Como espero ter demonstrado acima. é imprescindível cogitar nossa cultura levando em

consideração sua multiplicidade ética, sua ambivalência simbólica, estes que são os pontos

centrais do dilema brasileiro. Na profundeza dos valores brasileiros, encontra-se a

possibilidade de acionamento de vários códigos, dependendo da situação.

Espero ter revelado o retrato de uma sociedade na qual um esqueleto hierarquizado, holista,

tradicional contrapõe-se a (e é complementado por) uma estrutura institucional. legal e

ideológica moderna-burguesa. Ambos são compensados, no nível místico, pela tradição

católica, atualizada de forma particular, permitindo à cultura brasileira uma multiplicidade

de éticas sociais não-hegemõnicas. Aparentemente paradoxal. esta multiplicidade ética

guia as ações e justifica os comportamento do cotidiano brasileiro.

DaMalla ( 1 993) diz que é por esta peculiaridade que o Brasil. analisado superficialmente

com base na lógica e nos valores modernizantes, parece um "verdadeiro desastre lógico.

Ou, para ser mais preciso, sócio-lógico!" (p.1 25). Quando se tenta aplicar à nação e à

sociedade brasileiras os modelos lineares de história, economia e política, depara-se com

uma aparênCia de combinações não só exóticas, mas ideologicamente "impossíveis" como

num "museu de sociologia retrospectiva ou de história social" (Oliveira Vianna, citado por

DaMalla, 1 993, p. 1 26):

O pressuposto é que todas as histórias teriam que ser semelhantes às da Europa e dos Estados Unidos e se fariam por meio de uma 'acumulação' em que certas instituições substituiriam outras. Segundo este modelo, não existiria transformação se o sistema mostrasse apenas combinação e mistura. Como se a mistura não pudesse ser compreendida positivamente ( . . . ) o fato é que. de exageros em exageros, encontramos de tudo no Brasil (DaMalla, 1 993, p. 1 27) .

Justamente isso se dá porque não vivenciou a dramática passagem à modernidade, o

definitivo e drástico rompimento com valores tradicionais que modificou o conjunto

institucional das nações ditas modernas, tipicamente Estados Unidos, França e Inglaterra. O

Brasil simplesmente agregou instituições novas às antigas, às tradicionais, sem definir

claramente as fronteiras e os espaços sociais de cada uma.

Ao analisar, criticar, procurar a sociedade brasileira através das lentes do sistema

hegemõnico de valores do igualitarismo liberal individualista, perde-se o fio da meada.

A impressão distinta de 'ordem' e de coerência produzida por esses sistemas liga-se diretamente a essa sólida moldura ideológica que torna ilegítimos outros conjuntos de regra. O problema, assim, não é 'descobrir' que as coisas estão fora do lugar, mas compreender o lugar das coisas. Ou seja: a ordem de legitimidade pela qual

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uma sociedade articula as práticas e os valores (sempre contraditórios) vigentes em seu meio. O que parece caracterizar o caso do Brasil é a ausência da necessidade desta articulação, daí a nossa perene auto-surpresa com nosso sistema ( . . . ) para entender isso é preciso perguntar: qual a lógica que preside essa desarrumação tão aparentemente pré-lógica ? (Da Motta, 1 993, p. 1 34).

DaMatta ( 1 994, p. 1 1 1 ) conclui que a aparente "incoerência" de motivações personalizadas

e regras impessoais correndo lado a lado, em esferas mutuamente exclusivas mas

complementares, é justamente o dado básico do sistema semiótico brasileiro. "Sem introduzir

a perspectiva que permite estudar a relação como um elemento estrutural no caso brasileiro

não se pode realmente penetrar na razão profunda da identidade nacional a não ser para

vê-Ia como uma configuração intrigante, confusa e errada".

Não se trata de interpretar o sistema social brasileiro como "incompleto", "imaturo" ,

"incongruente", numa linha teórica histórico-determinista, como se tal sistema estivesse "a

meio caminho e indeciso entre várias tendências históricas" (DaMatta, 1 9987, p.22). Trata-se,

sim, de perceber como indispensáveis para o entendimento da cultura brasileira, as

percepções da positividade que a cultura brasileira lança sobre as questões da mistura, do

dilema, do (re)englobamento de esferas divididas. Há uma lógica na ausência de

coerência burguesa, na circularidade ética, no "cinismo brasileiro". Neste meio segmentado,

não regido por uma única ética encompassadora, as idéias contraditórias podem ser

hierarquicamente integradas na base de diferentes englobamentos. (Da Motta, 1 993) .

O ponto-chave é utilizar consistentemente a descoberta de que a sociedade brasileira é relacional. Um sistema onde o básico, o valor fundamental. é relacionar; misturar; juntar; confundir; conciliar. Ficar no meio, descobrir a mediação e estabelecer a gradação, incluir (jamais exciuir) . Sintetizar modelos e oposições parece constituir um aspecto central da ideologia dominante brasileira. Digo mesmo que é o seu traço distintivo em oposição a outros sistemas, sobretudo os que informam os valores das nações protestantes, como os Estados Unidos. Assim, nos Estados Unidos há exclusão e separação; no Brasil, há junção e hierarquização. Num caso o credo diz : iguais, mas separados; noutro ele decreta: diferentes, mas juntos. Lá, o indivíduo é o sujeito do sistema; aqui o sujeito não é o indivíduo, mas também a relação, o elo, o ponto de Iigação(DaMatta, 1 994, p. 1 1 7)

Parece ser um erro adotar a linearidade histórica das tradições européias e norte­

americanas, radicalmente diferentes da tradição brasileira, para deduzir que o Brasil está

"atrasado", a meio caminho entre a perspectiva católica, a sociedade tradicional,

aristocrática, hierarquizada, holista, e o paradigma moderno, igualitário, individualista. De

fato, a cultura brasileira escolheu os três modos de ser e deu a todos importãncia e

profundidade similares e complementares. Esta peculiaridade nacional talvez explique, por

exemplo, porque gostamos de dizer que "tudo tem um outro lado". Esta expressão não só

caricaturiza os espaço complementares, mas também serve para adiar (ou evitar) conflitos

e possíveis rupturas.

Se, conforme assinala Max Weber, o movimento protestante foi no sentido de liquidar essas 'éticas dúplices'- que faziam com que um negócio com um irmão ou

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companheiro de aldeia fosse radicalmente diferente da negociação com um estranho -, no mundo católico da Contra-Reforma sua presença é sistemática e oculta, como o ar que respiramos. Pois aqui o sistema carece de uma hegemonia ideológica que o articula em torno de um só eixo classificatório. Assim, enquanto nos Estados Unidos a sociedade tem um código dominante que orienta todas as esferas da vida social, no Brasil há códigos especificos para cada esfera. que a sociedade toma como básicos. Somos uma pessoa em casa, outra na rua e outra ainda na igreja, terreiro ou centro espírita. Nossa lógica é relacional no sentido de que estamos sempre querendo maximizar as relações e a inclusão, criando com isso zonas de ambiguidade permanente (DaMatta, 1 994, p . 1 1 3) .

o sistema brasileiro se atualiza através de uma nação brasileira que opera fundada no

conceito de cidadania, e uma sociedade brasileira que funciona fundada nas mediações

tradicionais, ponderando vantajosamente os relacionamentos pessoais. Tem-se o

componente "relacional" da cultura brasileira que Morais ( 1 995) retrata claramente através

do episódio que conta a chegada ao Rio de Janeiro do então jovem Assis Chateaubriand :

Durante um mês Chateaubriand não teve descanso. Pela mão de Veríssimo, foi levado à presença dos mais notáveis nomes da política e da inteligência do Rio de Janeiro e de São Paulo. E assim acabou se tornando amigo e tendo como seus defensores figurões como o político e escritor paulista Alfredo Pujol, o senador Virgílio de Melo Franco e seu filho Afrânio ( .. . ) Em sua peregrinação pelas mais ilustres casas do Rio, o jovem nordestino estava colocando em prática um projeto deliberado que ele confessara a alguns amigos : - Para um moço pobre que chega da roça aqui no Rio, o capital mais importante que ele tem que levantar são as relações com gente influente. Se conseguir isso, depois é só colocar essas relações para render juros (p.86).

A tendência brasileira à mediação relacional parece ser uma resposta social ao desafio que

é conviver com códigos díspares, sem proporcionar rupturas provenientes de conflito graves

não resolvidos .

. . . num sistema assim constituído, era sempre possível ter uma linha jurídica rígida, mas ter também uma dimensão fundada nas relações pessoais, permitindo personalizar e dividir internamente os dois segmentos separados pela ideologia e pelas leis da sociedade ( . . . ) esquematicamente, há sempre uma superestrutura ideológica e jurídica plenamente coerente e oficiaI, interpretada por uma infraestrutura formada pela teia de relações sociais imperativas que, na prática, modificam muito os termos do problema, porque introduzem mais um elemento no esquema: a relação (DaMatta, 1 994, p . 1 07) .

Deixa de parecer exótico que a sociedade tenha desenvolvido a capacidade - e a

motivação - para criar possibilidades de ligações e mediações. gerando um sistema que

aceita a relação entre a igualdade superficial, dada em códigos jurídicos de inspiração

externa (geralmente divorciados da nossa prática social) ; e um esqueleto hierárquico,

tradicional, personalista, relacional. A cultura brasileira não se permite tomar um único

código como exclusivo e dominante, e prefere sempre a relação entre várias altemativas.

Uma fórmula social coerente consigo mesma na dependência da rede hierarquizada de

relações pessoais. Rede gradativa e inclusiva, que permite estabelecer diferenciações

dentro de toda e cada uma das camadas.

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Usando esta lógica alternativa - a lógica da mistura e da ambiguidade-, DaMalla ( 1 986,

1 994) expõe a capacidade brasileira de acasalar as coisas - a "atividade relaciona 1" -, com

uma inesgotável criatividade conciliadora:

( 1 ) na figura da mulher brasileira, especialmente na positividade imbuída à mulata e no

abundante uso de mulheres-heroínas pela literatura brasileira. "o feminino assume um

aspecto relacional básico na estrutura ideológica brasileira como ente mediador por

excelência" ( 1 994, p. 1 4 1 ) . Por exemplo, em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa ( 1 972)

apresenta Diadorim - "o modelo de um anjo que pode reunir em si uma dupla natureza . . . o

ser perfeito" ( 1 994, p. 1 42). Já Jorge Amado ( 1 966), apresenta Dona Flor, que, na relação

com Vadinho e Teodoro Madureira, opta por ambos e, com isso, opta pela certeza e pela

mudança, pela hierarquia e pela malandragem, pela surpresa e pela rotina, pelo

imprevisível e pelo planejamento, pela casa, pela rua e pelo 'outro mundo'. "Mulher e povo

que conseguiu casar-se tão bem com a ordem e o progresso" ( 1 994, p. 1 44) . Vale lembrar a

mulher no Brasil pode ser tomada como mulher da "casa" (menina de família) ou mulher de

"rua" (prostituta), mantendo a lógica estrutural da cultura brasileira, complementada pela

figura e importãncia da Nossa Senhora, a Virgem Maria, o fragmento do 'outro mundo'. "a

mulher é básica porque ela permite relacionar e, quase sempre, sintetizar antagonismos e

conciliar opostos. Como fez Nossa Senhora conciliando o humano com o divino, o sagrado e

o profano." ( 1 994, p. 1 40)

(2) na comida brasileira básica : o arroz com feijão no qual o feijão que é preto deixa de ser

preto, e o arroz, que é branco, deixa também de ser branco. "A síntese é uma papa que

reúne definitivamente feijão e arroz, construindo algo com um ser intermediário, desses que

a sociedade tanto admira e valoriza positivamente( ... ) parte de um mesmo processo lógico

e cultural" ( 1 986, p.36).

(3) pelo tratamento social brasileiro ao fenõmeno "morte": "no Brasil a morte mata mas os

mortos não morrem". Num papel estruturalmente homólogo (e relacionado) ao do espaço

social "outro mundo", os mortos retornam (ou estão sempre presentes). na forma de

assombrações, aparecimentos, ou mesmo da saudade. Como num caso cultural de

"endocanibalismo" mantém-se a relação entre vivos e mortos. O "morto", no Brasil, permite

a conciliação e o fortalecimento da rede de relações pessoais em torno de sua pessoa ou

de sua memória, através de "obrigações para com o morto", impostas de fora para dentro,

da sociedade para o indivíduo ( 1 994, p. 1 45- 1 73).

(4) pela malandragem, pela politicagem. Se a pedra de toque da cultura brasileira é a

capacidade de relacionar e de, assim, criar uma posição intermediária, uma posição que

assume a perspectiva da relação, a linguagem de conciliação, negociação, gradação se

faz imprescindível. "Sustento que isso é tão crítico que explica a popularidade de figuras

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como o malandro ou o político populista, que estão sempre manipulando com habilidade

os dois lados" ( 1 994, p. 1 02).

(5) por um sistema religioso que, embora dito sincrético, não se trata da mistura de várias

origens formando uma nova doutrina, mas trata-se, isso sim, de várias doutrinas não

excludentes que interagem entre si :

. . . (Brazilians) tend to be ecletic because no one knows for sure, of course, which path is the one that will insure the fullfilment of their needs and wishes ( . . . ) (Brazilians) do not view their options in either/or terms. Rather, an individual manipulates a whole set of culturally prescribed strategies with which he or she can respond to a given situation. Thus, in a particular setting, a person might be Catholic, in another, a tranquil devote e of Candomblé. No insincerity is implied: rather, the interpretation 'who knows what will work' has surely proven to be the most pragmatic attitude to take (Silverstein, in DaMatta & Hess, 1 995, p . 1 38) .

A sociedade brasileira é pródiga em apresentar combinações e ligações que, à primeira vista, são inteiramente deslocadas ou até mesmo impossíveis. Assim, é mais fácil ser católico e ubandista, milionário e socialista, aristocrata e populista, ao mesmo tempo ( . . . ) combinamos, de forma teoricamente complexa, autoritarismo estatal. patronagem familística e um capitalismo moderno que opera eficientemente em muitas áreas ( . . . ) não conseguimos perceber bem até hoje que a questão não é somente ter um 'capitalismo selvagem ' e autoritário, mas sobretudo descobrir que vivemos numa sociedade onde há sistematicamente um relacionamento intenso e funcional entre um sistema de mercado acoplado a um aparato legal fundado em leis universais e no indivíduo como sujeito: e redes imperativas de relações pessoais que funcionam hierarquicamente, mantendo os velhos privilégios elitistas. O problema não seria de ter capitalismo em excesso, mas de ter capitalismo pela metade (DaMatta, 1 986a, p . l 03).

Talvez a grande questão seja a falta de reflexão social quanto ao fenômeno tipicamente

brasileiro .

... o estudo das relações permite ultrapassar aquela visão tradicional da Identidade naciona/ como caráter ou traço ( . . . ) o Brasil não é nem o país do carnaval. nem a pátria do ' homem cordial' nem o território da violência. Também não é a sociedade feita inteiramente de feudalismos e desordens administrativas. O Brasil é o país do carnaval e é também e simultaneamente a sociedade do 'sério' , do 'legal ' , das comemorações cívicas e das leis que têm exceções para os bem-nascidos e relacionados. Tudo indica que fazemos como fez Dona Flor, buscando juntar sistematicamente esses pólos. (DaMatta, 1 994, p. 1 40).

Estratégias de relacionamento, cimentadas por elos morais, têm a capacidade de dobrar a

vontade dos indivíduos. Somos obrigados a visitar pessoas, a dar presentes, a assinar

manifestos, a frequentar locais, não porque individualmente queremos, mas porque há uma

demanda relacional. "É a relação que exige, não o indivíduo que deseja !" (p. 1 7 1 ) . Não há

brasileiro que não conheça o valor das relações sociais e que não as tenha utilizado como

instrumentos de solução de problemas ao longo de sua vida :"Brazil is an intermediary

society, neither modem, nor traditional. but emphatically both" (Hess, in DaMatta & Hess,

1 995, p. 1 2) .

Unindo ambiguidade e pOSSibilidade relacional constitui-se u m sistema altamente funcional,

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ainda que inusitado. Um caso sociológico em que mediadoreS' são indispensáveis. Uma

realidade que demonstra que o desembebimento do econômico frente ao social e o

político, processo marcante da ocidentalização e modernização, pode adquirir vários graus,

formas e conteúdos.

'DaMatta ( 1 993, p . 147) fala em "institucionalização do intermediário", pois que estes representam os interesses dos grupos em conflito, mas também exprimem os interesses da relação. Ele lembra que figuras marcantes do universo social brasileiro - o "despachante" , o "malandro" e o "santo pessoal" . são todos "seres intennediários" que auxiliam ao dar intimidade e pessoal idade às relações com o Estado, com pessoas "superiores" e com Deus. "Antes de ter um contato oficial com qualquer agência pública, entro em contato com alguém que faça minha mediação com ela. Tal e qual realizo quando vou solicitar de Deus, Nosso Senhor, algum favor e entro em contato com os Céus por meio dos santos de minha devoção, intermediários entre o Altíssimo e os homens" . Ele também ressalta a interessante peculiaridade brasileira de se poder 'ficar de mal' com o santo pessoal , ou chamá­lo carinhosamente pelo diminutivo (como em Santa Terezinha), numa materialização da 'pessoalização' característica de nossa cultura.

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3.3.4 - Dramatizações da Cultura Brasileira

" Situar essas procissões. paradas e Carnavais como modos fundamentais. através dos quais a chamada realidade brasileira se desdobra diante dela mesma. mira-se no seu próprio espelho

social e. projetando múltiplas imagens de si própria. engendra-se como uma medusa. na sua luta e dilema entre o permanecer e

o mudar" (RobertoDaMatta)

o objetivo deste item é aprofundar conceitos já apresentados. Será utilizada a proposta de

DaMalla ( 1 990). quanto à utilidade do estudo de mitos e rituais para o entendimento da

cultura de qualquer grupo social. Através de um resumo de trabalhos antropológicos sobre o

sistema brasileiro de Rituais Nacionais - Camaval. Paradas Militares e Procissões -. e sobre ritos

cotidianos - "jeitinho" e "Você sabe com quem está falando ? " - tanto o conceito de ritual

será explorado, quanto pontos desenvolvidos sobre a cultura brasileira serão melhor

embasados.

DaMalla diz que. decorrente da visão dos ritos como dramas sociais, surge a possibilidade

de estudá-los junto com os mitos. na busca do entendimento de temas e problemas básicos

do cotidiano de uma sociedade. Ambas as formas são extraordinárias. no sentido de

pertencerem a um universo situado acima do cotidiano, permitindo a "reflexão" e a

"alternativa" ao mundo real:

(Mitos e ritos) são respostas onde a coletividade pode apresentar seus dilemas e especulações sobre essa região entre a matéria (que não muda). o instinto e a pressão dos estímulos (que exigem respostas); e o grupo ou a sociedade (que se apropria de tudo e se situa no dilema perene de permanecer ou mudar). Ambos, ainda, colocam ações e tipos paradigmáticos, modos de ação que devem ser seguidos (e indicam o que não deve) e as relações que nunca devem se constituir (revelando assim quais as modelares) ( . . . ) O mito e o ritual seriam, deste modo, dramatizações ou maneiras cruciais de chamar a atenção para certos aspectos da realidade social. facetas que, normalmente, estão submersas pelas rotinas, interesses e complicações do cotidiano" (DaMalla, 1 990, p.35)

Os mitos, conforme já apresentado, são discursos recorrentes, dinâmicas "bricolagens

simbólicas", através dos quais um grupo social fala de si mesmo para si próprio. Um modo

sutil de lidar com verdades, dúvidas e paradoxos da realidade social. Um modo de

materializar, ainda que implicitamente, valores e ideologias; enfim, como que uma coleção

de significados representativa da cultura. Este ponto de vista também se aplica aos rituais.

Estes podem ser entendidos como condensações da realidade social. como dramatizações

das práticas e, portanto, sâo de extrema valia para o entendimento das sociedades.

O ritual não se define somente pela repetição, que pode ocorrer em diversos fatos da vida

social; nem por uma fórmula rígida, pois "existem rituais que abrem o mundo, pulverizando

todas as regras" (p.3 1 ) . O rito também não é caracterizado por qualquer material ou

substância especial. que o transforma em algo único e reificado: "ao contrário. tudo pode

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ser posto em ritualização, porque tudo o que faz parte do mundo pode ser personificado e

reificado. Menos que um pr9blema de substância, o rito nos coloca um problema de

contrastes" (p.3 1 ) . O mundo do ritual é, por isso, totalmente relativo ao que ocorre no

cotidiano: ações que no mundo diário são triviais podem adquirir um alto significado

quando destacadas num ambiente ritualístico.

Os rituais tem como característica básica a propensão ao destaque (valorização) e/ou ao

deslocamento (reposicionamento simbólico) dos materiais sociais básicos, dos elementos

concretos do cotidiano. Desta forma, novos significados podem ser auferidos, chamando

atenção para detalhes normalmente despercebidos durante as atividades rotineiras. O ritual

possui alta densidade simbólica (DaMatta , 1 990)

Pela propensão a focar a unidade simbólica e a identidade social. os rituais nacionais

podem ser considerados chaves-mestras das portas de entendimento da cultura de um país,

normalmente subdividido internamente em classes, regiões e outros grupamentos sociais.

Os rituais servem, sobretudo na sociedade complexa, para promover a identidade social e construir seu caráter. É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se penetrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de valores. Porque é o ritual que permite tomar consciência de certas cristalizações sociais mais profundas que a própria sociedade deseja situar como parte dos seus ideais 'eternos ' ( ... ) é o ritual que consagra tais globalizações que já existem na 'realidade' ( . . . ) Rituais nacionais contrastam claramente com outras formas de reunião especificas de certas regiões, segmentos, classes, grupos e categorias sociais pois implicam um mínimo de sincronia ( ... ) quando se realiza um ritual nacional. toda a sociedade deve estar orientada para o evento centralizador daquela ocasião, com a coletividade 'parando' ou mudando radicalmente suas atividades" (DaMatta, 1 990, p.24).

Antes de vislumbrar o caso brasileiro, então, é preciso aceitar e compreender o fenõmeno

ritualístico como dramatização social. Ele é uma das portas de entrada para entender o

código de conduta do grupo social. a sua cultura.

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3.3.4. 1 - Rituais Nacionais

DaMatta ( 1 990) usa o escopo teórico que toma o ritual como um objeto de estudo, pela

sua propensão a concentrar significados importantes para uma determinada cultura. Ele

constata a existência de um "triãngulo ritual brasileiro" : a Semana da Pátria com suas

paradas militares: a Semana Santa com suas procissões religiosas: e o Carnaval com seus

desfiles, bailes, concursos e fantasias.

Segundo DaMatla ( 1 994), esta tríade ritual é um "modo complexo de estabelecer e até

mesmo propor uma relação permanente e forte"(p.66) entre casa, rua e outro mundo. Mais

ainda, observando o sistema ritual como uma totalidade, nele está refletida a ambiguidade

instituída como fundamento social básico pela cultura brasileira.

Pode-se entender a sociedade brasileira "com seu extensivo sistema de rituais como uma

sociedade que se debate em torno de visões diferenciadas de si mesma" (DaMatla, 1 994,

p.68). São os rituais os "ordenadores simbólicos não-hegemônicos da vida coletiva" .

Percebamos alguns contrastes ilustrativos.

DaMatla ( 1 990) lembra que a Semana da Pátria marca o rompimento nacional definitivo

com o Período Colonial. a busca da maioridade política do país. É um rito histórico de

passagem. Em termos temporais, tem uma origem conhecida e uma data fixa: tudo é

coerente com o sentido historicista oficial que adquire. Por outro lado, o Carnaval se situa

numa escala cronológica cíclica e "o começo do Carnaval perde-se no tempo ( . . . ) A

cronologia do Carnaval é, assim, uma cronologia cósmica" (p.45) .

. . . o tempo criado e marcado por cada uma dessas cerimônias é contrastante. O tempo do Dia da Pátria é um tempo histórico remetendo os participantes do ritual para dentro da especificidade da história do Brasil. Já o tempo do Carnaval é cósmico e cíclico (p.45).

Outra consideração a ser feita é referente à organização dos rituais. No dia da Pátria, a

"produção" cabe aos poderes constituídos, e a legitimação provém de instrumentos formais

e legais. No decorrer do ritual. há uma nítida separação entre povo, que fica no papel de

assistente, e as autoridades. E mesmo estas estão separadas fisicamente entre si, cada qual

ocupando um local predeterminado hierarquicamente. Dramatiza-se a hierarquização

social. as questões do poder, a figura do "Caxias".

Diferente é o Carnaval, concretizado por organizações privadas, ou mesmo "segundo a

vontade de cada um". É no Carnaval que os brasileiros, deixam de lado a sociedade

hierarquizada e repressiva, e ensaiam viver com mais liberdade e individualidade .

. . . os grupos carnavalescos desfilam dançando, de modo que a observação da sua marcha é uma visão de movimento e de dinamismo, com cada participante realizando um gesto diferente ( . . . ) há uma grande possibilidade de dar vazão a inovações e interpretações pessoais ( . . . ) na parada militar o que caracteriza a

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marcha é a total uniformização dos gestos ( . . . ) Num caso, a marcha é marcada pela continência gestural; no outro, pela total incontinência (DaMalla, 1 990, p.49).

Além do movimento corporal envolvido, as vestimentas também simbolizam este fenômeno:

regras rígidas versus liberdade; hierarquia versus individualidade; fantasias criativas versus

uniformes. Some-se a isso que um dos elementos importantes do Carnaval é o desfile das

escolas de samba, dramatizando a movimentação vertical com base em performance. A

meritocracia, tão ausente no dia-o-dia, é dramatizada pelos concursos:

. . . a idéia de competição (isto é, concurso entre iguais) é algo banido do universo hierarquizado. Nele, ninguém deve subir por meio de provas, o que colocaria o desempenho adiante de outros critérios muito mais importantes, como o nascimento, a residência, a cor da pele (p.1 23)

. . . no Carnaval, o desfile das escolas de samba escapa do eixo da hierarquização quotidiana, sendo os grupos colocados em "livre competição" . . . Temos então que, numa sociedade hierarquicamente ordenada, como a brasileira, quando se escapa do sistema dominante (da hierarquia), os grupos entram em competição (p.48).

Enquanto o Carnaval é uma festa do povo, "da sociedade", onde as posições rotineiras

podem ser questionadas, a Parada comemora "a nação", o nascimento do Estada

Moderno-Burguês, pretensamente anti-aristocrático. Enquanto o Dia da Pátria acentua a

estrutura e a organização formal como ponto central, o Carnaval comemora a

descentralização, a improvisação e a criatividade : "No Dia da Pátria, há um reforço da

hierarquia, que é realizado de modo aberto e manifesto no início e no clímax do

acontecimento( . . . ) No Carnaval, porém, a festa enfatiza uma dissolução do sistema de

papéis e posições sociais, já que os inverte no seu decorrer" (p.57). O Carnaval é uma

ocasião em que a sociedade brasileira se posiciono temporariamente "de cabeça para

baixo", enquanto nos ritos de ordem, na celebração da Independência do Brasil, à

importância e peso do "governo" dentro da sociedade associa-se a idealizaçâo

modernizante de ordem, legalidade e seriedade. Concretiza-se o contraste entre as normas

formais, rígidas das paradas, frente ao riso, à ideologia de liberdade e de malandragem,

mecanismos articuladores legitimados nas experiências carnavalescas .

. . . de fato, se o Carnaval celebrava o riso e a desordem, a escolha do papel social (pelas fantasias) e do grupo, as inversões e vivências utópicas de abundância, ausência de trabalho, liberdade e igualdade de todos, os festivais da ordem remetiam a uma visâo oposta. Aqui, o que emergia na festa era a ordem, a legalidade, a posse do cargo público, a legitimação dos papéis, a falta de escolha, a continência de gestos, vestes e idiomas. Estava na presença de práticas que reforçavam a ordem social, algo que levava a pensar em autoritarismo e no seu símbolo mais explícito, o militar perfeito, seguidor da lei a qualquer custo, o 'caxias' do nosso vocabulário popular (DaMalla, 1 994, p . 1 04)

Da Motta ( 1 990) lembra ainda que o símbolo do Carnaval é o malandro, o personagem que

não cabe nem dentro da ordem, nem fora dela. Vive nos seus interstícios, sem buscar

alteração da estrutura, "entre a ordem e a desordem, utilizando ambas e nutrindo-se tanto

dos que estão fora quanto dos que estão dentro do mundo quadrado da estrutura" (p. 1 39) .

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o malandro brasileiro introduz no mundo fechado da nossa moralidade, a possibilidade de relativização. No nosso mundo burguês-individualista, somos sempre ordenados por eixos únicos (da economia e da política), mas o malandro nos diz que existem outras dimensões e outros eixos. 'Sou pobre mas tenho a cabrocha, o luar e o violão.' ( . . . ) temos aqui mecanismos de compensação, mas também não existe dúvida de que o mundo da malandragem e do Carnaval é rico em potencialidades e em inovações. Ele não está numa posição única, inteiramente definida. Não é nem uma função exclusiva da ordem, nem parte das forças da mudança e da igualdade como principio de justiça social. Está no meio termo, e provavelmente serve aos dois lados. Mas será certamente nesse mundo que a criatividade popular se exerce plenamente ( . . . ) o malandro compensa o caxias, figura que denota o mundo da estrutura, das leis e do autoritarismo (p.1 40)

o triãngulo ritual se completa com as festas religiosas da Igreja Católica, como as festas de

santos e as procissões. Estes ritos continuam dramatizando a ordem legal, mas uma ordem

com legalidade diferente da das Paradas e do Estado. Uma legalidade de fora do mundo,

destinada a gloriosamente nos ajudar a sair da sociedade terrena, largar seus breves

prazeres. Renunciar. Os processos rituais religiosos não são inteiramente formais, nem

informais. Embora centralizados na figura de um santo em procissão, envolvem também

festas onde há jogos e danças. A hierarquia eciesiástica se faz presente, mas o núcleo de

penitentes e seguidores participa ativamente do ritual, não ficando, como nas Paradas,

limitado ao papel de espectador. O próprio modo de comunicação dos rituais religiosos

reflete essa neutralidade, ambiguidade, fuga da decisão. Se as Paradas Militares optam

pelo discurso, formal, ordenado, eloquente e no Carnaval a opção é pelo canto, criativo,

informal, livre; as Procissões escolhem a reza, meio cantada, meio formal, uma forma

intermediária de comunicação entre o discurso e a música.

Tal configuração fundada em três momentos rituais mostra os modos pelos quais o universo

brasileiro pode ser percebido e dramatizado. Existem espaços sociais e ideológicos nos quais

se podia rir e 'brincar'; existem outros espaços onde o certo é ser sério e 'legal ' ; e existem

ainda os espaços neutros, onde deve-se renunciar a favor dos pobres, oprimidos e marginais,

dos santos, de Deus e da Igreja e da nova vida após a morte.

Desvela-se, daí. uma configuração social totalizada que institui três éticas simultâneas,

porém distintas: carnaval, rituais da religião e ritos civicos "guardam uma absoluta

equivalência entre si também no mundo cotidiano brasileiro, sendo na sua exepcionalidade

festiva, apenas manifestação de um espaço social dividido pela casa, pela rua e pelo outro

mundo" (DaMatta, 1 994, p . 1 04)

As celebrações patrióticas da Independência, o criativo Carnaval e as abençoadas festas

religiosas são discursos diversos e interdependentes sobre a mesma realidade. As Paradas

reforçam o cotidiano; fazem submergir uma realidade implícita. Celebra-se a separação. a

arrurnação hierárquica, a centralização e o autoritarismo, sob o pano de fundo da figura do

Estado Moderno. O Carnaval inverte os significados rotineiros: junta-se o que está separado,

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reelabora-se sistemas sociais de classificaçõo. As Procissões neutralizam as posições sociais

do mundo concreto e terreno, em nome da renuncia que busca a imensidõo e as

hierarquias sagradas do outro mundo, sem que se decida nem pela conjunçõo

carnavalesca. nem pela disjunçõo militar.

A troca de lugar que define a carnavalizaçõo é a marca de um elo bem-sucedido entre rua, casa e outro mundo, já que no carnaval até mesmo a morte e os santos podem participar. Mas as festas da igreja ou do 'outro mundo' sõo ocasiões em que a sociedade se junta pelo lado do espaço da renúncia e do abandono do mundo. Espaço que demarca o poder do outro lado das coisas, algo como uma realidade que permite chegar ao extremo da compensaçõo moral. Finalmente, o espaço da rua pode servir como suporte para festivais patrocinados pelo Estado nacional. Aqui nõo temos mais a tendência para a inversõo, como ocorre nos carnavais e nas festas populares em geral, nem a tendência para a neutralizaçõo, como acontece nas festas do 'outro mundo' ; mas temos. isso sim, uma ordem relacional marcada pela diferenciaçõo, na qual posições sociais externas sõo indiscutivelmente acentuadas e reforçadas. Temos pois três momentos onde o que se pretende é o relacionamento, a circulaçõo e a ligaçõo do sistema" {DaMatta, 1 994, p.69).

"se o mundo do carnaval e da religiõo nos apresentava uma imagem de nós mesmos como donos de uma enorme confiança. criatividade e esperança no futuro, o universo do civismo e da política nos apontava um caminho muito mais árduo, uma estrada cheia de pessimismo e desconfiança" (DaMatta, 1 994, p.98).

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3.3.4.2- Ritos Cotidianos

Retomemos a imagem do brasileiro navegando socialmente num espaço verticalmente

hierarquizado. dotado de éticas múltiplas. Tem-se um sistema de significados diferente e

mais complexo do que o de sociedades que enterraram o passado aristocrático, como a

França, Estados Unidos, ou mesmo a Inglaterra. A cultura brasileira, num jogo triplo, auto­

sustentável, se reproduz e se fortalece semioticamente na busca da relação, da mediação

e da inclusão não-conflituosa. Derivam daí. talvez, as percepções de Barbosa ( 1 982) de que

no Brasil o não não é o limite, da mesma forma que a lei, a norma, a constituição também

não implicam barreiras definitivas e irrevogáveis para o comportamento e o desejo das

pessoas.

Tendo percebido esta peculiaridade, Barbosa ( 1 982) partiu para buscar valores básicos

estruturantes do Brasil, valores pelos quais a cultura opera e se atualiza. Para realizar uma

leitura antropológica do cotidiano nacional. ela escolheu, como ãncora, a instituição

"jeitinho" .

Guerreiro Ramos, em 1 966, disse que a raiz do "jeitinho" era a discrepância entre as práticas

sociais e o formalismo das instituições sociais, políticas e jurídicas do Brasil e de outros países

latino-americanos. Seria uma estratégia popular de resposta à estratégia das elites

dominantes que, pela promulgação de leis, decretos, adiam conflitos. Seria um parcial

relaxamento das tensões sociais existentes. O "jeitinho" refletia o estágio de desenvolvimento

econõmico e social do país, ainda baseado em estruturas arcaicas, estando condenado a

desaparecer com a "evolução". A contraposição de Barbosa ( 1 982) é que o "jeitinho"

ocorre justamente pela introdução das forças modernizadoras numa estrutura hierarquizada

que premia as relações pessoais. Ele nasce, justamente, do encontro de regras impessoais

com a pessoalidade do sistema. Pessoalidade que, no Brasil. é um dado estrutural, e não

uma sobrevivência do passado. Portanto, a "solução" não pode estar na "evolução

modemizante", posto que ela é causa da força da instituição.

Roberto Campos, em 1 966, viu o "jeitinho" como uma instituição paralegal. existente em

países que não terminaram com a "desigualdade jurídica do feudalismo". Seria, ainda,

predominante nos países católicos, com seus dogmas rígidOS e intolerantes, ao contrário do

revisionismo utilitário e complacente da religião protestante que permite oficialmente a

modificação das normas éticas se a prática social exigir. Barbosa ( 1 982) lembra que nos

demais países latinos, embora possa existir funcionalmente a "ação" de conseguir algo

através da pessoalidade, este não é um elemento institucionalizado como categoria social,

definidor de um estilo nacional. "batizado", como é no Brasil (e entre as camadas operárias

da Argélia). Além disso, falar em feudalismo no Brasil e em Portugal é por demais simplista,

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conforme já vimos acima. Ao contrário da França, Inglaterra, os pequenos senhores e nobres

nunca foram força de oposição à Coroa, pulverizando o poder, As desigualdades presentes

no sistema jurídico não refletem uma estrutura feudal. mas sim um visão hierarquizada do

mundo. Mesmo a idéia de que o sistema jurídico português não cristalizava prátiCas sociais

também é errada. As leis e decretos formalizavam, exatamente, as desigualdades que

ocorriam rotineiramente, ou seja, a ausência de uma norma universalizante. Quanto ao

rompimento dos protestantes com a Igreja Católica, este se deu, muito mais pela

discordãncia quanto à "plasticidade" do catolicismo e sua multiplicidade ética que,

condenando o lucro, cobrava as penitências e vendia absolvições. A intenção protestante

preconizava a unidade e coerência ético, a prática uniforme, fosse qual fosse o espaço

social.

Oliveira Torres, em 1 973, dizia que o "jeitinho" é gramatical com a colonização

miscigenatória que formou o povo brasileiro, através da familiarização cultural com várias

vertentes, A resposta de Barbosa ( 1 982) é que vários autores tendem a colocar um

mecanismo de transplante cultural no caso americano em contraste com uma formação

cultural no caso brasileiro. Se o padrão de imigração é certamente decisivo e influente nas

diferenças históricas entre Brasil (COlonizadores isolados) e EUA (COlonização por famílias ) , é

equivocada a visão de formação de uma cultura brasileira num vácuo cultural. como se os

portugueses, o povo dominador e institucionalizador, ao chegarem, esquecessem seu

passado, seus valores e tradições, É o mito das três raças.

Keith Rosen, em 1 97 1 . ligava o "jeitinho" à tendência portuguesa ao legalismo, a transformar

tudo em lei achando que os problemas se resolveriam, Aliado à propensão centralizadora e

paternalista, que encorajava a apelação direta ao Rei de Portugal. o legalismo

impossibilitava a eficiência jurídíca e gerava a confusão legal. Culminava-se na baixa

expectativa popular frente ao serviço público e na relação protecionista frente aos

socialmente inferiores, "uma irresponsabilidade civil". O "jeitinho" também perduraria

enquanto houvesse a indisposição de discuti-lo, por ser algo vergonhoso. Trata-se, segundo

Barbosa, de um argumento que direciona o "jeitinho" para o lado da corrupção, e de uma

visão negativa que não é, conforme posteriormente detectado, a visão nativa. Mais ainda,

ao contrário da idéia deste autor estrangeiro, o "jeitinho" é rotineiramente lembrado -

louvado e condenado - pelos brasileiros.

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Clóvis ef alli, em 1 982. concluíram

Este é o enfoque que Barbosa ( 1 982) procurou ampliar é aquele de Clóvis Vieira, segundo o

qual o "jeitinho" seria um modo de transformar "indivíduos" em "pessoas", modo este que

não estaria caindo em desuso com a modernização. Elaborando mais profundamente. ela

propôs que não seria o caso de conceber o "jeitinho" como herança portuguesa. como

sintoma de subdesenvolvimento, como elemento morfológico, mas sim de dissecá-lo em seu

caráter simbólico como drama cotidiano e elemento de identidade nacional.

Barbosa ( 1 992) diferencia o "jeito" de outras categorias sociológicas brasileiras similares. Ela o

aloca no meio do continuum que leva do "favor" à "corrupção". A caracterização de cada

um é dada mais pela situação onde ocorre, e pela relação entre as pessoas envolvidas do

que por uma natureza permanente e dominante.

o "favor" é algo positivo, que ocorre entre conhecidos, pressupôe uma reciprocidade

direta, e não indica transgressão de regras. Quem faz um "favor" fica em uma posição

hierarquicamente superior e, dependendo do nível do "favor", pode até mesmo evitar

quem o recebeu, para não constrangé-Io por sua incapacidade de retribuí-lo. Há ainda a

propensão a dizer que "favor não se paga nunca" .

. . . o favor é básico numa sociedade onde as relaçôes assumem uma poslçao central, sendo um domínio institucionalizado do seu universo ( ... ) (o favor) requer uma equivalência moral entre as pessoas. exigindo delas a reciprocidade. Se o sistema assume a desigualdade e os benefícios estão orientados para mantê-lo, o favor estabelece um meio de relacionar pessoas sem extinguir ou ameaçar sua descontinuidade social. mas. ao contrário. reforçando-a (DaMatta, 1 994, p. 1 1 1 ) .

N o pólo oposto, estaria a "corrupção", algo negativo no imaginário brasileiro, normalmente

diferenciada do "jeito" pela presença de ganho material de uma das partes da transação.

A fronteira entre o "jeito" e a "corrupção" . entretanto, não é transparente.

Pode ser considerado "jeito" aquele caso que envolve uma pequena soma em dinheiro,

paralela a um processo de convencimento através de muita "lábia". Convencimento com

foco em valores humanos, pessoais, o que não seria necessário na "negociação" prévia da

"corrupção". que, envolvendo altas quantias, coloca o foco no valor material.

já frente ao "favor", o "jeito" é diferenciado por poder ser pedido a um desconhecido,

tendo uma "reciprocidade difusa" que permite a qualquer membro da sociedade a

"retribuir" um "jeitinho" que não foi recebido por ele. como se a dívida permeasse o corpo

social e fosse ativada ciclicamente, em situaçôes aleatórias, por todos os membros do corpo

social. conforme as necessidades.

Entender o "jeitinho" alocado entre o "favor" e a "corrupção" serve como mais um signo da

preferência cultural brasileira pelo "meio". Tanto o rito do "jeitinho" quanto o personagem

do "malandro" atualizam os aspectos ambíguos da sociedade brasileira, sendo centrais no

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continuum que vai do legal ao ilegal, do positivo ao negativo,

o "malandro" é um ser que se situa entre as classificações nativas de "marginal" e

"honesto", sendo individualizado no modo peculiar de falar, andar e transformar

desvantagens em vantagens, Simetricamente, o "jeitinho" é uma instituição paralegal, nem

legal nem ilegal, um processo individualizante que para funcionar baseia-se na performance

do individuo. Tanto a "malandragem" quanto o "jeitinho" dependem de um componente

de criatividade e improvisação para convencerem, transformando o impessoal em pessoal.

Na dimensão "tempo", enquanto o "malandro" vive o presente, sem um projeto de vida

definido a não ser pela flexibilidade, o "jeitinho" é uma ação social por natureza não

planejável, que ocorre a partir da situação dada, sempre no presente, independente de

passado e futuro.

Entre os dominios em que o "jeitinho" pode ser ativado, predominam aqueles em que a

burocracia racional limita a atividade pessoal. Aquele domínios onde todos querem ser

"pessoas" e não "indivíduos", mas onde há dificuldades de obter-se algo, por escassez de

recursos, Outro domínio do "jeitinho" é o que envolve a "sorte", ou o "eterno" ; "na vida, só

não há jeito para a morte" é um dito comum no Brasil.

A concessão do "jeitinho" é extremamente dependente de um posicionamento de

simpatia, humildade e cordialidade do requerente. Evita-se a arrogância, chegando-se

mesmo a disfarçar uma posição social hierarquicamente superior, Apesar disso, o

reconhecimento implíCito da superioridade pode facilitar a concessão do "jeito", se

verbalizada num discurso equalizodor, intimista, familiar.

Conforme já vimos, existem vários critérios classificatórios no Brasil, sendo que a necessidade

pessoal pode ser imperativo maior que normas oficiais. Inclusive, pode haver

constrangimento quando não se pode resolver, através do "jeitinho", eventualidades

indesejáveis que as normas oficiais afligem terceiros, Quanto ao discurso dos brasileiros sobre

o "jeitinho", Barbosa ( 1 992) comenta ;

Quando se privilegia as esferas polítiCas e econômicas o jeitinho emerge como um produto direto das distorçôes institucionais brasileiras, Quando, por outro lado, se considera como significativo o dominio das relaçôes sociais, ele surge como um mecanismo salutar, humano e positivo que promove ajustes face às imponderabilidades da vida e humaniza as regras a partir da igualdade moral entre os homens e das desigualdades sociais (p.49)

Positivamente, o "jeitinho" é colocado como representante do lado amigo, alegre, criativo

e esperto do brasileiro. Uma "coisa brasileira", assim como a capacidade de ser feliz apesar

da crise, dos políticos, do imperialismo internacional. Os males sociais seriam fruto de

comportamentos individuais de ordem moral, e não de inadequações de ordem das

instituições legais, políticas ou sociais como prega o discurso negativo erudito, Esta visão

negativa enfatizo no "jeitinho" suas causas de "histórica impunidade". A referência é sempre

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a mudanças de ordem pública, do universo impessoal (rua), nunca de ordem privada, do

universo pessoal (casa). Paradoxalmente, o discursante negativo reconhece que "utiliza o

jeitinho porque é obrigado".

Há ainda um outro discurso negativo, que é acionado quando o ator social vê frustrada suas

expectativas pessoais: "Esse país não tem jeito mesmo". É um discurso sem caráter técnico,

mas vinculado ao negativo erudito por também ser orientado a um padrão inspirado nos

paises do primeiro mundo econômico. A postura crítica radical advém justamente de seu

compromisso com um determinado quadro de valores a que a realidade social brasileira

'teima' em não se ajustar.

o fundamental. entretanto, é notar que, apesar das diferentes opiniôes sobre ele, o uso do

jeitinho é disseminado. Também há convergência de opiniôes quanto à técnica que

garante a efetividade da tentativa: mostrar os fatos pelo lado moral equalizador dos seres

humanos. Nisso, o "jeitinho" difere do rito cotidiano "Sabe com quem está falando?"

(DaMalla, 1 990). Deste pernóstico rito autoritário ninguém tem orgulho, posto que ele

explicita a face autoritária, hierarquizada de uma sociedade desigual.

o "Sabe com quem . . . " é, como não podia deixar de ser numa sociedade que odeia

conflitos, um rito escondido, no sentido de que, apesar de tomarmos conhecimento de sua

existência muito cedo, ninguém gosta de falar sobre ele. Inibimos ou escondemos dos olhos

do estrangeiro ou das crianças o "Você sabe com quem está falando", que "ainda não deu

letra de samba" (DaMalla, 1 990). Os brasileiros nunca tomam este rito como um drama

refletor de valores sociais, mas como a manifestação de deploráveis traços da

personalidade de quem o aplica. Seria, como o racismo e o autoritarismo, "algo que ocorre

entre nós por acaso". Vale apontar que tudo isso atualiza a tendência brasileira de divorciar

a regra da prática e de possuir uma vertente cordial e integrativa coma contraponto a

outra, exclusivista e escalonada. Mas será que existe ligação entre o "você sabe ..... e o

"jeitinho" ? Seriam eles simétricos opostos, como parecem a primeira vista, posto que um é

cordial e o outro é agressivo ?

Para Barbosa ( 1 982), o simétrico inverso do "você sabe .. . " seria a versão brasileira do rito

cotidiano igualitário americano : o "Who do vou think vou are ?". Este rito, nos EUA, é

invocado sempre que "o pedante com pretensões a superioridade atua num plano de

fantasias, pensa possuir algum direito a mais do que os outros" (DaMalla, 1 990) .

Cada vez mais utilizado no Brasil, o "Quem você pensa que é ?" é a resposta que

restabelece a igualdade, reconduzindo a pessoa ao seu lugar de indivíduo. É a maneira de

retomar a horizontalidade cidadã como réplica à tentativa de hierarquização. É, então, o

correspondente inverso do "Você sabe .. . . . .

DaMalla ( 1 990) acrescenta ainda duas observações a primeira é quanto à falácia do

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desaparecimento do "Você sabe . . . ", na medida em que a sociedade se modemiza. Na

verdade, o rito torna-se ainda mais necessário, já que as explícitas marcas de posição e

hierarquização tradicional - "como a bengala, o anel de grau" - desaparecem. A segunda

importante colocação é quanto à diretividade, à petulância, à hostilidade retratada pela

forma interrogativa das manifestações do "Você sabe com quem está falando ?" e do

"Quem você pensa que é ?" :

... a maioria dessas expressões assume uma forma interrogativa, o que, no Brasil, surge como um modo evidentemente não cordial - porque muito positivo - de interação social. Em nossa sociedade a indagação está ligada ao inquérito ( ... ) Sem a interrogação a vida social parece correr dentro do seu fluxo normal, de modo que é possível postular uma provável ligação entre o temor das formas interrogativas e as sociedades preocupadas com a hierarquia, onde normalmente tudo deve estar no seu lugar ( . . . ) No Brasil ninguém diz 'não sei' para revelar sua ignorância de algum assunto ( ... ) somos socializados (na família e na escola) aprendendo a não fazer muitas perguntas. Seja porque isso é indelicado, seja porque é considerado um traço agressivo que somente deve ser utilizado quando queremos 'derrubar' alguém. (p. 1 60)

Barbosa ( 1 992) chama atenção para as diferenças entre o "Você sabe .. . " e o "jeitinho". O

primeiro é característico de situações que configuram um grave conflito entre duas pessoas.

Ele ocorre nos casos cotidianos onde há a passagem de um papel universal de indivíduo,

cidadõo, à posição de pessoa, de ente socialmente posicionado por relações pessoais

importantes. Naqueles momentos há um desvendamento que se fez necessário pelo anterior

e "lamentável" desconhecimento da hierarquia presente no contexto. São situações onde o

usuário deseja romper com alguma regra que teoricamente o submete. Já o "jeitinho",

embora universalmente conhecido e aplicado, não é de fácil tipificação, por ser

"dependente da lógica da situação, caracterizando uma multiplicidade de eventos"

(Barbosa, 1 992,p.74).

O "Você sabe ... " é hierarquizante; faz uso da autoridade e do poder. O "jeitinho" é

equalizador; faz uso da barganha e argumentação. Um separa autoritariamente, o outro

reúne, aglutino numa horizontalidade moral. e sua eficácia depende exatamente da não

demonstração de autoritarismo. O "Você sabe ... ", ao contrário do "jeitinho", não é

universalmente conhecido, não pode ser usado por todos os brasileiros, nem permite a

conclusão anônima, porque se baseia justamente no desvendamento da posição de cada

confrontador dentro do esqueleto hierárquico vertical.

Enquanto a ativação do "Você sabe . . . " depende de laços relacionais que determinam sua

efetividade, no "jeitinho" entra-se despojado de qualquer relação, sendo seu resultado

determinada pelo desempenho individual, pela capacidade de convencimento. É um rito

que, apelando para a igualdade moral, acaba por gerar desigualdade e privilégio. Mas

uma desigualdade que não provoca, nos espectadores do rito, as reações enfaticamente

negativas do "Você sabe . . . ". Também não está o usuário do "jeitinho" sujeito à retaliação e

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à galhofa. No máximo críticas brandas, mesmo assim raras, posto que a tendência é pela

reciprocidade difusa-positiva, relativa ao movimento cíclico do "jeitinho" na sociedade.

Ciclicidade que garante uma posterior oportunidade de compensar, mesmo que com outra

pessoa, em outro contexto, aquele gesto. Já a reciprocidade do rito autoritário é.

obviamente, negativa : espera-se de quem usa o "Você sabe" que. algum dia. ele quebre a

cara.

Barbosa ( 1 992) lembra, como semelhança fundamental. a necessidade de um terreno social

contaminado pela ótica individualista, impessoal. anõnima para a existência de ambos.

Tanto o "jeitinho" quanto o "Você sabe ... " não fazem sentido onde a lógica é holista. onde

todos conhecem. tanto a lógica operativa da desigualdade. quanto a posição de cada

membro. e os tratamentos diferenciados devidos a cada um. Na prática. tanto o rito

autoritário. quanto o aglutinador são mecanismos socíais de transformação de indivíduos em

pessoas. Só que um o faz de modo hierárquico-relaciona I-conflituoso. e o outro de modo

individual. paradoxalmente terminando por expor a mesma desigualdade que, de início, ele

nega. O "jeitinho" não é um ritual híbrido. pertencendo aos nossos dois mundos concretos.

nem tampouco um ritual igualitário que, face às perversidade da estrutura social, termina

produzindo um efeito inverso ao desejado.

Tanto o "jeitinho", quanto o "Você sabe ( . . . ) " . dramatizam um universo ambíguo, proprietário

de uma complexa relação entre um espaço social hierarquizado e relacional. e outro

espaço social marcadamente igualitário e individualista. Enquanto o rito autoritário expressa

a "tensão entre essas duas visões de mundo e a tentativa metafórica de limitar o avanço do

individualismo, através da colocação de todos nos seus devidos lugares", o rito aglutinador

retrata a tentativa da cultura brasileira de não deixar que um dos mundos seja hegemõnico

em relação ao outro. Vistos em conjunto, os dois ritos cotidianos retratam como a vida social

brasileira transcorre num ritmo feito de tensões e compensações. (DaMolla, 1 994). Ou seja,

nossa cultura desenvolveu fórmulas rituais que demonstram um cotidiano de estresses e

alívios, complexamente compensatório. mediador, relacionador. inclusivo e graduador.

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Capí-h:1l.o 4

A C"ULTURA BRASILEIRA E:IVI

QUATR.O EIXOS DE AR.TICULAÇÃO

SI:IVIBÓLICA

"Esta apoteose do Ocidente não é mais a presença real de um

poder humilhante por sua brutalidade e sua arrogância . Ela se

apoio nos poderes simbólicos cuja dominação abstrata é mais

insidiosa. mas por isso mesmo menos contestável. Esses novos

agentes de dominação são a ciência. a técnica. a economia e o

imagináno sobre o qual elas repousam: os valores do progresso ( .. . ) A

técnica tomou-se um artigo de fé universal, a consequência

concreta e a presença visível da nova divindade: a ciência (. . .) o

mundo inteiro participa desde então de níveis diversos de uma

sociedade técnica única. A ciência é una. a matemática é a

verdadeira linguagem comum a todas as nações (. .. ) A vontade de

poder deve tomar a forma da acumulação ilimitada e a sociedade

toda deve ser tomada por um zelo irresistível pela produção e só

encontrar motivo de júbilo em sua ilimitada progressão r. . . } O

desenvolvimento é a aspiração ao modelo de consumo ocidental,

ao poder da magia dos Brancos. ao status relaCionado a esse modo

de vida (. . . ) A relação do homem com o mundo fica assim

profundamente determinada. Trata-se da concepção do tempo e

do espaço. da relação com a natureza. da relação do homem

consigo mesma"

SERGE LATOUCHE

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4. 1 - Eixos de Articulação Simbólica

A semente deste item é um trecho que agrega as categorias sociológicas que

fundamentarão meu trabalho posterior (os grifos são meus) :

Ser culto. moderno , significa para o brasileiro do século XIX e começo do XX, estar em dia com as idéias liberais, acentuando o domínio da ordem natural, perturbada sempre que o Estado intervém na atividade particular. Com otimismo e confiança será conveniente entregar o indivíduo a si mesmo na certeza de que o futuro aniquilará a miséria e corrigirá o atraso. No seio do liberalismo político vibra o liberalismo econômico com a valorização da livre concorrência, da oferta e da procura, das trocas internacionais sem impedimentos artificiais e protecionistas. O produtor agrícola e o exportador, bem como o comerciante importador, prosperam dentro das coordenadas liberais, favorecidos com a troca internacional sem restrições e a mão-de-obra abundante sustentada em mercadorias baratas. Tavares Bastos e Rui Barbosa, ambos filiados ao Partido Liberal e coerentes com a doutrina da facção elevam a doutrina à categoria de dogma. ' Pedi' - esclarecem as Cartas do Solitário - 'que o governo seja só governo, que distribua a justiça, mantenha a ordem, puna o crime, arrecade o imposto, represente o país; mas que não transponha a meta natural, mas que não se substitua à sociedade . . . Para nós só há uma política possível, um dever, um culto: melhorar a sorte do povo. Mas como? Observando a lei da natureza, isto é, fecundando as fontes vivas do trabalho, instrumento divino do progresso humano; isto é, restituindo à indústria a sua liberdade . . . porque ela quer a concorrência universal, a multiplicidade das transações, a barateza dos serviços, a facilidade dos transportes" (Faoro, 1 975, p.502).

São quatro os categorias de análise que pretendo tomar emprestadas da vasta literatura

antropológica. São os eixos do tempo, do econômico, do poder. e do ser humano. Estes

eixos de sustentação simbólica, entendidos em sua forma articulada, produzem uma

fotografia de um tipo particular de formação social.

Dos termos grifados acima, "moderno" e "futuro", pressupôem um tempo que passa, uma

vida social que se orienta para a mudança. Um tempo ligado a uma visão e a uma relação

com o mundo natural visto como um ambiente em que tudo se altera continuamente. As

"idéias liberais", sempre interligadas com a noção de "Estado", de "atividade particular" e

de "indivíduo" pressupõe que a unidade existencial - o ser humano -, é tomada de forma

individualizada, responsável e livre para escolhas. Pressupõe, também, que sua reunião se dá

por uma instãncia institucional regente e garantidora de contratos, também individuais e

livremente estipulados, elaborados por estes membros do corpo social.

Esta instituição é o Estado Moderno, territorialmente delimitado, que interage com outros por

"trocas internacionais" e que é visto como uma forma social de caráter próprio, separado

dos cidadãos, embora derivado de suas demandas. O Estado só existe quando legitimado

por seres humanos, mas sua figura é externa ao corpo social. O Estado policia e garante a

sociedade, imaginada como nada mais que uma reunião de indivíduos, estes sim,

elementos fundamentais. O fim é a felicidade individual. O importante são os indivíduos, a

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sociedade é o meio que garante o fim,

Articulados a estas concepções de tempo, poder, e ser humano como indivíduo, estão o

"liberallismo econõmico", a "livre concorrência", a "oferta e a procura", de alguma forma

ligados à noção de "escassez" ; à necessidade de se produzir sempre, e cada vez mais,

gerando excedentes, para garantir o "amanhã que será diferente de hoje", É o produtivismo

que se ancora numa ciência específica, a "Economia" , criada, conforme

Wonnacott&Wonnacott, para lidar com o "fato" de que, tendo "desejos ilimitados e recursos

limitados, enfrentamos o problema fundamental, a escassez, Não podemos ter tudo que

desejamos; temos que escolher, Polany ( 1 980) chamou atenção para o "desembebimento e

preponderância do eixo econõmico sobre o corpo social" , Fato que, apoiado na noção de

"mercado", transformou a natureza, o ser humano e o próprio meio transacional la também

"inventada" moeda) em "mercadorias" conforme vemos nas expressões "produtor

agrícola" e "mão-de-obra".

É com a ajuda do conceito de mercadoria que o mecanismo de mercado se engrena aos vários elementos da vida i ndustrial. As mercadorias sâo aqui definidas, empiricamente, como Objetos produzidos para a venda no mercado ( ... ) o ponto crucial é o seguinte : trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria, Eles também têm que ser organizados em mercados ( . . . ) Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro, obviamente, não são mercadorias ( . . . ) TrabalhO é apenas um outro nome para a atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para a venda mas por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada, Terra é apenas outro nome para a natureza, que não pode ser prOduzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido, mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais, Nenhum dele é produzido para a venda, A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia, Não obstante, é com ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais de trabalho, terra e dinheiro IPolany, 1 980, p,84-85) ,

A predominância absoluta desta "escolha cultural" gera a posição etnocêntrica, dos seres

humanos ocidentais que passaram, em maioria, a acreditar serem um dado concreto e

natural tais concepções. Lembrando que uma cultura só existe como um todo articulado,

Barbosa ( 1 992) atenta para um dos eixos simbólicos principais: o "individualismo como

valor". Isto é uma peculiaridade ocidental, quase raridade, já que "a grande maioria das

sociedades têm como foco central a totalidade, o conjunto e não uma de suas partes"

(p,90). É a concepção individualista do Ser Humano que Latouche ( 1 994) considera

catalisador da característica universalizante e etnocidária, nunca antes experimentada por

nenhuma outra cultura :

Como única sociedade baseada no indivíduo, ela não tem fronteiras verdadeiras. O projeto civilizatório da modernidade não tem sujeito próprio, nem base territorial definida de maneira estrita (., ,) O que é próprio desse universalismo é a busca da performance. Todo mundo pode jogar; e mesmo se as chances são extraordinariamente desiguais, ganhar não está fora de cogitação para ninguém, A totalidade do social é suscetível de funcionar como um mercado, O 'selvagem' da

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zona mais remota do planeta pode se tornar o number one da mídia vencendo a Maratona nos Jogos Olímpicos, sendo astro de cinema depois de se fazer descobrir por algum cineasta; há mil maneiras de tomar lugar na sociedade-mundo e, com ajuda da sorte, se alçar os primeiros postos. O Ocidente é emancipador no sentido de que ele solta as inúmeras amarras da sociedade tradicional e abre uma infinidade de possibilidades; entretanto, esta libertação e suas possibilidades só se realizarão para uma ínfima minoria. Em contrapartida, a solidariedade e a segurança serão destruídas para todos ( . . . ) o que torna o individualismo irresistível é que ele aparece ( . . . )como uma libertação, emancipa das limitações e abre possibilidades ilimitadas, mas às custas das solidariedades que constituíam a trama das coletividades (p.53-1 06).

A pretensão de que é a "evoluída", a "correta" articulação simbólica legitima a busca

etnocidária da equalidade universal. São minimizadas as discussões e questionamentos

cotidianos de tais valores, como se o pragmatismo determinasse um silêncio obrigatório

quanto às alternativas. Catalisado pelo individualismo, o processo se desenrola. Impõe-se

esta "verdade" pela força do Estado, destruindo, genocidária ou etnocidariamente,

qualquer grupamento humano que ouse desafiar os preceitos culturais básicos,

principalmente aqueles ligados ao produtivismo e à necessidade de progresso.

O principal destes eixos que não deixa lugar para a negociação diz respeito a uma concepção produtivisto do mundo ( ... ) é impossível negociar quando está em jogo uma concepção que discorde de que a natureza, seres humanos inclusos evidentemente, deva cumprir um destino de se transformar em riqueza ( . . . ) Desperdício impensável, ociosidade inconcebível. A tranquilidade original do improdutivo é crime que se pune com o etnocídio ou genocídio( . . . ) não pode, positivamente, existir sem que exista etnocídio é a aliança entre o Estado e o regime produtivista ( . . . ) Antes de ameaçar o eixo da produtividade, a diferença ameaçou o Estado. Este, enquanto mecanismo gerador da semelhança, não poderia conviver com uma realidade social direcionada para a diversidade. O Estado é a força centrípeta buscando a repetição do igual. a compulsão do mesmo. A diferença, inversamente, é movimento de eversão, centrífugo, um constante reviramento para fora" (Rocha, 1 995, p. 1 23-1 26).

De alguma forma a articulação de dimensões simbólicas adquiriu, num nível macro de

significados, uma posição dogmática, gerando o atual quadro de valores "ocidentais" . Tais

categorias simbólicas se alastram de forma nunca antes vista pela humanidade. Para efeito

deste trabalho, consideraremos como guia estas quatro concepções.

• a visão do Ser Humano como indivíduo. Cada indivíduo tem um fim em si mesmo. A sociedade é vista como um conjunto de indivíduos, como um meio para a felicidade individual e não como um fim em si própria. A própria vida é a maior riqueza. É o individualismo.

• a visão do tempo como uma dimensão deslocada da vida social. Como algo que passa, que "se perde ou se ganha". Cria-se a história que "retrata" e reifica a ideologia de "o quanto" e "como" a natureza muda. É o historicismo, fundado na noção de mudança.

• a figura do Estado como uma instituição indispensável à vida social, embora independente e separado dos cidadãos; existente para garantir as escolhas e contratos individuais, a liberdade e a igualdade. Nesta posição desvinculada do corpo social. "última instância institucional" para atuação sobre conflitos entre ciasses e/ou grupos, à figura do Estado agrega-se o monopólio da violência, interior e exterior, como modo de realizar tais garantias.

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• a noção do Ser Humano vivendo em um estado de permanente escassez, em competição por recursos insuficientes frente a necessidades infinitas. A concepção segundo a qual, para garantir o futuro (que é incerto e diferente do presente, pois que tudo muda), o " Homo economicus' precisaria acumular estoques através do trabalho contínuo e constante. É o produtivismo.

Sempre concordando com Rocha ( 1 995) quanto a ser "virtualmente possível ser ocidental

na ideologia e na prática em quase todos os lugares do planeta" (p. 1 1 3) , e sem negar o

caráter universalizante - etnocidário mesmo - desta ideologia, lembra que ela precisa ser

relativizada nas diversas possibilidades de atualização concreta. Conforme veremos abaixo,

o mesmo esboço, com as mesmas tintas, dada a capacidade criativa das sociedades

humanas, pode gerar pinturas diferentes. As possibilidades culturais são infinitas e o jogo

simbólico é complexo. Embora tais categorias não esgotem o entendimento das culturas,

elas impõem necessários limites ao trabalho. Além disso, servem como ponto de apoio

comparativo para entendimento da sociedade brasileira, do "Mundo da Qualidade" e da

interação entre estes dois conjuntos culturais.

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4.2 - O Brasil e o Eixo temporal : Múltiplas Concepções do Tempo

"Deitado eternamente em berço esplêndido. ao som do mar e à luz do cêu profundo (. . .) Gigante pela própria natureza. és belo. és forfe.

impávido colosso. E o teu futuro espelha essa grandeza(. . . } E diga o verde-louro desta flâmula: paz no futuro e glória no passado "

A categoria "tempo", enquanto aspecto crítico da junção do material com o simbólico é

um elemento fundamental para o entendimento de diversas sociedades. Especialmente

para a civilização ocidental. onde a interpretação e compreensão da realidade depende

substancialmente da apreensão do significado especifico deste signo. Tal importãncia pode

ser demonstrada pela preocupação que seu caráter simbólico desperta nos antropólogos

culturais: "temporal idades" é um assunto de vasta discussão entre estes profissionais que o

encaram como parte fundamental dos "mapas" de comportamento social. das culturas.

Posso dizer que tanto o tempo (ou a temporalidade) quanto o espaço são invenções sociais. Não existe uma medida orgãnica, natural ou fisiológica de uma categoria de pensamento e ação tão complexa quanto o espaço, do mesmo modo que não há um órgão do corpo para medir o tempo. Ambas as categorias são fundamentais e houve, e ainda há, quem argumente que são inatas justamente porque têm um processo de construção social complexo que desafia as melhores mentes dos mais finos filósofos e pensadores. (DaMatta, 1 994, p.35).

A representação que a categoria "tempo" assume é fundamental como ponto de

referência para a comparação entre os mapas de significados estudados: a teia que guia a

ação social no sistema social brasileiro e o mapa cultural do "mundo da Qualidade Total" .

Digo "representação que a categoria tempo assume" porque vários autores são unãnimes

em afirmar que embora a passagem do tempo seja um "dado universal" inegável. podem

existir várias "noções de tempo", vários tipos de "temporalidade" : o tempo, enquanto

concebido humanamente. é uma construção cultural.

Já que a natureza não oferece uma resposta definitiva ao entendimento do "tempo". este

precisa ser elaborado pelos seres humanos para assim adquirir significado. O "tempo", como

qualquer construção cultural. é uma resposta "produzida" pelos grupos sociais para os

problemas e paradoxos que se vão apresentando durante a vida social. Uma resposta que

tem a ver com a interrelação social dos membros da comunidade entre si e com a

interligação desta comunidade com o mundo natural.

o "tempo" não é uma parte intrínseca do mundo concreto: dentre as várias sociedades já

estudadas, parece que a concepção do tempo, enquanto categoria sociológica, pode ser

tomada como algo abstrato ou concreto; algo vinculado ou não a outros elementos

simbólicos. tais como. por exemplo, a categoria "espaço". ou as regras de parentesco

(Barbosa, 1 984) .

. . . devemos compreender que esses nativos não concebem o passado como uma época de longa duração, a desenrolar-se em estágios de tempos sucessivos. Não

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têm a noção de um longo panorama de sequências históricas. Ao falarem de algum acontecimento do passado, eles sempre especificam se o fato ocorreu no ãmbito de sua própria memória e na de seus pais, ou não. Mas, uma vez além dessa linha demarcatória, todos os acontecimentos do passado são situados pelos nativos num único plano, e não existem gradações de 'há tempo' ou 'há muito tempo'. As noções relativas a épocas de tempo estão ausentes de seu pensamento" (Malinowsky, 1 984, p.226)

Embora a concepção do tempo possa variar entre as diversas sociedades, em todas, "sejam

elas primitivas, tradicionais ou modernas, uma das funções primordiais da noção de tempo,

seja esta qual for, é a ordenação da realidade" (Barbosa, 1 984, p.3).

Em certos casos, a ordenação da realidade que mantém a continuidade social pode ser

vivenciada através do fenõmeno do "totemismo", numa "franca associação com o universo

natural". Este tipo de estrutura cultural caracteriza-se por uma concepção

predominantemente cíclico do tempo, na qual o foco é deslocado para a repetição

intermitente das mesmas coisas numa realidade que se pretende imutável.

A sociedade ocidental, industrial, moderna, contemporãnea, porém, experimenta a

continuidade social por um outro ângulo: através da noçâo de tempo histórico, valorizando

o registro e entendimento da sucessão linear de eventos onde uma dada forma se

transforma na outra. É uma temporalidade autõnoma, destacada que conduz a

continuidade da vida conjunta, sem conexão direta com, por exemplo, as atividades ou

com as relações sociais : tudo muda e passa: nada é permanente. Além disso, a

representaçâo simbólica do "tempo" para a civilização ocidental é, ainda segundo Barbosa

( 1 984), desligada da noção de "espaço", Duas zonas separadas, ambas tomadas como

categorias abstratas, ou seja, independentes do contexto situacional em que são utilizadas .

Desvinculado do "espaço", da "totalidade social", das "práticas humanas rotineiras", o

"tempo" passou a submeter as atividades individuais e sociais, permeando e guiando o estilo

de vida e os pensamentos, funcionando como elemento organizador básico e,

principalmente, como guia da vida humana.

Barbosa ( 1 994) ressalta que, numa perspectiva cronológica, houve uma marcante variação

na noção de "tempo", para a civilização ocidental. Ela ocorreu meio que paralela à

mudança no concepção de "indivíduo" e à formação do "Estado Moderno" , discutidas

adiante.

Na Europa do século V, quando, conforme retratado na obra de Santo Agostinho, o tempo

pertencia a Deus : "o homem só pOdia utilizá-lo tendo em vista a glória e a exaltação

divina" (p.6) . Já com São Tomás de Aquino, no século XIV, começa a

.. . passagem do tempo das mãos de Deus para as mãos dos homens. Já se torna possivel manipular o tempo para fins terrenos ( . . . ) Existe agora um tempo 'de Deus' , e um tempo 'dos homens', e dentro desse um tempo 'para Deus'. Já se pode planejar, executar e jogar com o tempo para fins lucrativos e neste domínio uma

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classe de hamens se sobressai das demais: a dos mercadores." é por essa mesma época que começam a surgir os primeiros relógios mecânicos (Barbosa, 1 99 1 , p.6).

Quando passa a ser imaginado como uma dimensâo absoluta, o tempo passa a ter

concretitude, passa a existir e ter valor. Pode ser medido, sentido, perdido, economizado,

ganho, vendido, tomado, abusado. Moog ( 1 978) também inter1iga o tempo à ideologia da

reforma protestante :

Para o católico, as grandes virtudes sâo as virtudes teologais. Para o puritano, as supremas virtudes sâo as virtudes econômicas: poupança, trabalho, utilizaçâo do tempo. Uma vez que o tempo é elemento de muita importância na contagem de juros e, portanto, na acumulaçâo da riqueza - time is money, tempo é dinheiro - o calvinista, aperfeiçoador da precisâo dos relógios, acaba escravo do tempo. Daí a pontualidade proverbial dos povos protestantes (p.82).

Conforme Rocha ( 1 995) , pode-se conceber o "tempo" de duas formas antitéticas. "Em uma

ele é devir, linearidade e o chamamos 'historicismo' , em outra ele é aliança,

complementaridade e o chamamos 'totêmico' " (p. 1 34). Sâo as concepções cíclica e

histórico-sequencial do tempo. O tempo cíclico predomina, segundo trabalhos

antropológicos, em socíedades tribais ou tradicíonais. O tempo histórico é caracteristico das

sociedades modemas. Completando o conjunto, DaMalla ( 1 98 1 ) adiciona o "tempo

eterno", a temporalidade religiosa e mística. O tempo do "outro mundo".

Simplificadamente, pode-se considerar que o "tempo eterno" é complementar e separado,

com zonas bem definidas de atuaçâo, quando o "historicismo" prevalece numa sociedade:

e que o mesmo "tempo etemo" é complementar e indissolúvel, com fronteiras tênues de

separaçâo, quando é o "totemismo" que se impôe em determinada cultura.

Além de possuirem relações particulares com o "tempo etemo", ambos - o "tempo

historicista" e o "tempo cíclico" - também com pactuam entre si. Entre as lógicas totêmica e

historicista, DaMalla ( 1 98 1 , p. 1 36) lembra que

. . . tudo indica que estes dois modos de transformaçâo - a externa, dada na lógica do totemismo e que atua em sistemas tribais; e a interna, dada nas operações da historicidade e do devir - sâo essenciais para a realidade humana que sempre se utiliza das duas idéias sistematicamente. Assim, nâo existe nem uma sociedade totalmente inteiramente fundada no totemismo, nem uma sociedade que possa prescindir radicalmente dele. Do mesmo modo, nâo há nenhum grupo humano fundado absolutamente na historicidade, sem ter idéias e valores tomados como eternos ( ... ) tanto as sociedades dominadas pelo historicismo, quanto aquelas dominadas pelo totemismo, podem se entender. E podem assim fazê-lo porque a forma subjacente (dominada) ficou implícita, inconsciente naquele sistema.

Conforme disse acima, de alguma forma, vários conjuntos diferentes de valores podem se

articular em sistemas semióticos, em modos de representaçâo simbólica. Cada coletividade,

através da "cultura" , obtêm, dentro da específica sócio-lógica, uma estrutura dinâmica de

valores que trabalha as incongruências ou paradoxos, e evita o ponto de rompimento do

tecido social, de forma a remediar qualquer impossibilidade semiótica.

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A "escolha cultural ocidental" , tomada em conjunto, em plena articulação é um dos

arcabouços simbólicos elaborados pela humanidade. Um arranjo ideológico peculiar que

viabiliza a lógica sócio-estrutural idiossincrática e deságua numa cultura ímpar. Conforme

mostra Rocha ( 1 995) , a concepção "historicista" compensa a possível perda de

continuidade social imposta pelo processo individualizante que quebra a teia holista,

hierárquica e relacional interna ao corpo social e acaba corn a dependência deste frente

ao espaço geográfico e à natureza. O historicismo articula-se com o poder do " Estado

Moderno" e com a mentalidade "produtivista" dependente da simbolização de "mudança"

e de "escassez". O sistema cultural "inventado" e vivenciado pela civilização ocidental

contemporãnea é viável com alternativa humana.

Contudo, em nenhum sistema sociológico, o extremo de cada uma destas oposições

parece ser exercitado plenamente. Certamente, tende a haver a predominãncia de um dos

opostos, mas não a exclusão do outro. Cada coletividade tem seus espaços sociais onde o

lado que não predomina se faz reaparecer. Esta coexistência de alternativas, ainda que em

zonas socialmente estipuladas, contribui sociologicamente, na medida em que mantém viva

(embora às vezes imperceptível) outras opções culturais.

Voltando à questão da temporalidade, não se deve cair na ilusão da pretensa auto-plena­

explicabilidade do "historicismo ocidental". Será a categoria universal "tempo" atualizada

da mesma forma pelas diversas sociedades do mundo ocidental ? Como se opera a

"temporalidade" na prática social do Brasil? Qual é a alternativa humana aqui concretizada

? Ramos ( 1 983, p. 1 9) resume a situação que interliga o padrão temporal imposto pela

ocidentalização com o tempo particular de cada sociedade:

As sociedades periféricas adotam o padrão de medir o tempo, válido no domínio mundial. Porém, não quer dizer que, do ponto de vista do ritmo e de outros aspectos vivenciais, o tempo seja uniforme para todas as sociedades ( . .. ) O tempo, como vivência, não se homogeneizou, em escala mundial.

Através da análise de valores relacionados à temporalidade, DaMatta ( 1 993, 1 994) propõe

que a sociedade brasileira pode ser considerada semi-tradicional. ou seja, uma coletividade

que, sem romper definitivamente com vínculos tradicionais, se predispõe a acatar

imposições da modernidade. Como era de se esperar, a categoria sociológica "tempo" é,

no Brasil, "misturada", "ambígua", "relacional". Ao invés de uma definição única, a

sociedade prefere a multiplicidade simbólica. Ela se submete aos três códigos possíveis

(casa, rua e outro mundo) que se rearrumam e se complementam. No cotidiano brasileiro,

relacionamos as concepções historieista, cíelieae eterna do tempo :

Em casa somos todos conservadores, porque o tempo da residência, do casamento, da família, dos amigos e parentes é um tempo cíclico e repetitivo que sempre volta na oscilação da vida e da morte ( ... ) dos aniversários e favores. Aqui vivemos um mundo marcado pelos ciclos de reciprocidade, onde a história linear do progresso social e político do mundo da rua definitivamente não deve entrar. Mas é óbvio que também temos esse mundo de mudanças, transformações e catástrofes sociais. Mas

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é um mundo situado fora de nossas casas, em plena rua, onde é vigente o critério do individualismo perante às leis e o mercado ( . . . ) a rua é um espaço marcado pela história e pela idéia de progresso com sua implacável linearidade. Nele somos sempre seres de uma temporalidade transformadora e pública, um tempo de somas e acumulações sociais que contrasta, sem que tenhamos consciência, com o universo de duração da casa ( . . . ) o 'outro mundo' é um local de síntese, um plano onde tudo pode se encontrar e fazer sentido. Assim, o outro mundo - o mundo dos mortos, fantasmas, espíritos, espectros, almas, santos, anjos e demõnios - é também uma realidade social marcada por esperanças desejos e vontades que aqui ainda não puderam se realizar pessoal ou coletivamente ( . . . ) é um mundo de esperanças e de potenciais que a história e o rumo dos acontecimentos não fez com que se realizassem ( . . . ) o 'outro mundo' pode aspirar à posição de ser o outro lado das coisas ( ... ) revestido num tempo de eternidade. Um tempo que, a rigor, não passa e é tão fixo como são nossos valores morais. Tempo que em vez de durar ou passar, perdendo-se na memória, está aqui rigorosamente revertido, posto que neste 'outro mundo' ele é uma 'zona eterna' para sempre relacionada às nossas mais esperançosas memórias e valores. Tempo, então, ligado 'àquilo que não passa nunca' " (DaMatta, 1 994, p. 1 62) .

A cultura valoriza e adere a três temporalidades de modo aparentemente paradoxal. Elas

podem ocorrer sincronicamente, sem demarcação nítida das zonas de atuação para cada

uma. Isto gera a impressão de inconsistência. Temos uma concepção de tempo da "rua" :

linear, moderno, progressista, preocupado em planejar, em preparar o presente para

acumular para o futuro, pois que "tudo muda". Temos, também, um tempo da "casa".

Tempo cíclico, pessoal, onde o passado se repetirá no futuro, pois que "nada muda" :

Na sociedade brasileira, tudo o que diz respeito ao universo da rua tende a passar com grande velocidade e se insere resolutamente na história; ao passo que tudo que está inscrito no mundo da casa, do lar e da família, está fora do tempo e do espaço, como um nicho que se acha protegido do próprio tempo (DaMatta, 1 986a, p.4 1 )

Complementar ao "tempo da rua" e ao "tempo da casa", temos o tempo do "outro

mundo" : o tempo religioso e eterno. Uma temporalidade marcada pelo signo da

relatividade das coisas e perpetuação dos valores, um tempo relacionado ao espaço social

do "outro mundo" que, contrapondo-se à concretitude dos mundos da casa e da rua,

sintetiza-os, fornece explicações e permite que tudo faça sentido. Este tempo eterno se

articula no imaginário brasileiro com o "destino", uma categoria socíológia forte e influente

para a cultura brasileira. DaMatta ( 1 986a) procurou o significado estrutural do "destino" na

morte de Tancredo Neves, em 1 985, quando a sociedade brasileira em coro apregoou sua

infelicidade frente ao "destino" que levava o novo "salvador", o homem que marcaria a

saída do país das trevas da ditadura e da recessão para a luz da democracia e do

crescimento. Ele também analisou tal categoria frente à derrota da seleção brasileira em

1 950, vendo o apelo ao "destino" como uma dramatização típica de sociedades

desconfiadas frente ao sistema de regras globais do Estado-nação.

A idéia de destino como uma categoria social é uma tentativa que algumas sociedades realizam no sentido de estabelecerem uma mediação entre esse conjunto de forças impessoais que movem o mundo sem o concurso dos homens; e

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as pessoas, com suas biografias, desejos, necessidades específicas, que vivem neste mundo. Enquanto categoria social (ou cultural), portanto, a idéia de destino permite construir uma ponte entre o plano individualizado das biografias, motivações, projetos e necessidades pessoais e as forças que naquele sistema são vistas como tendentes a jogar com cada biografia e cada vontade. É precisamente esse choque e essa luta, que a idéia de destino parece exprimir em certas sociedades onde existe uma desconfiança estrutural do sistema global de regras que somente o Estado ou o Governo controla ( . . . ) Essa derrota no futebol tem um peso muito grande e deve ser investigada de nossa perspectiva ( . . . ) Tal 'golpe do destino' fez com que muitos brasileiros fossem tomados de uma tremenda desilusão quanto a planos, motivações, projetos detalhados, etc. de que valia tudo isso, perguntavam amargamente, se no final eram derrotados" (DaMalla, 1 982, p.30-32) .

A categoria simbólica "destino" é fundamental para o entendimento da cultura brasileira,

posto que "destino" é uma idealização coletiva recorrente e inquestionável para uma

grande proporção dos nativos brasileiros. "Destino" concentra e representa valores da

temporalidade eterna, específica do "outro mundo", onde a racionalidade e o utilitarismo

não prevalecem. Possuindo um código ético específico, este espaço garante que "todos

são iguais perante a Deus" e que, para ele "daqui da Terra, nada se leva". Nesta sua

peculiaridade simbólica, esta temporalidade "eterna" se liga a valores culturais que

questionam a necessidade, ou a efetividade, de qualquer "planejamento para o futuro".

Considerando que a noção de "planejamento" é fundamental na estruturação e na

implantação da proposta de modernidade (tecnológica, econõmica, etc.), temos esta

"temporalidade eterna", este "tempo do outro mundo" a obstaculizar e enfrentar a

hegemonização dos valores individualistas, de acumulação e prOdutivismo. Esta noção é

fundamental, pois, desta forma, pode-se admitir que o grau de desembebimento (ou

afastamento) e o predomínio do reduto "econõmico" sobre o "social", proposto por Polany

( 1 980) , pode não estar sendo atualizado da mesma maneira pelas diversas sociedades que

tiveram acesso a tais valores (DaMalla, 1 994) .

Há uma outra categoria que permite uma análise estruturalista da temporalidade brasileira.

Também ela implica em uma temporalidade que se encontra fora, distante, além do eixo

linear histórico. Também ela contesta a hegemonia do historicismo no Brasil. É a "saudade",

que, como qualquer categoria sociológica, guarda sua importãncia por poder ser encarada

como uma construção cultural e ideológica: por ser uma palavra com "capacidade

perfomativa que ao ser invocada, promove um estado interno característico, que pode

permitir ou desculpar uma ação externa" (DaMatta, 1 993) .

A "saudade" é densa em significados no ambiente simbólico brasileiro. Tal densidade é

mensurável pelo fato de ser um sentimento que os brasileiros aprendemos e apreendemos

desde criança (e do qual nos orgulhamos). Ela tem uma rara capacidade de provocar e

induzir atitudes e sentimentos. Tanto o "destino" quanto a "saudade" estão, em termos

antropológicos, concentrando, invocando, dramatizando, iluminando, retratando, como

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pedaços de um espelho, a cultura brasileira.

A categoria "saudade" é uma experiência humana universal. possivelmente com existência

em qualquer coletividade. Só que, no Brasil. junto com a categoria "destino", ela teatraliza

valores alternativos à temporalidade historicista.

Através delas, dramatiza-se um cotidiano brasileiro que vai além da percepção de duração

e passagem, da marcação consciente do tempo numa escala histórica, numérica

padronizada. Enquanto o destino está conjugado com o "eterno", com o "ininteligível e

inexplicável" , com o "incontrolável", a saudade está relacionada à concepção "cíclica" do

tempo. É o tempo "da casa", avesso às grandes mudanças e transformações que implicam

em redefinição de valores. Tempo abundante da casa, é usado, diferentemente da "falta

de tempo da rua", para celebrar relações sociais, e não para produzir.

Barbasa ( 1 992) diz que a categoria "saudade" se articula com a categoria "crise" : "a

categoria crise realiza a mediação entre o que éramos ou Julgávamos sere o que realmente

somos. Ou melhor, entre o passado e o presente. É um discurso saudosista que se constrói em

torno da comparação" (p.55) .

o tempo da casa e o tempo do outro mundo se coadunam para complementar o tempo

moderno e formar o conjunto semiótico dos brasileiros. Continuamente ressurge o "dilema

brasileiro" de mudar ou não-mudar ? Planejar ou esperar pelo inevitável destino ? (DaMa lia,

1 990):

O tempo eterno desafia a impessoalidade do tempo da rua e do progresso que se baseia

na performance utilitária e no desempenho produtivo, que não dá nenhum direito à

reversibilidade plena baseada na igualdade moral. O tempo cíclico, emoldurado pela

"saudade", despreza o presente e invoca o passado glorioso que se reproduzirá em algum

momento futuro por graça e obra de algum herói ou messias. Juntos, desafiam a orientação

moderna pela qual o presente trabalhado produz, cronologicamente, o futuro planejado e

almejado. Diminuem o impulso frente ao produtivismo.

o "destino" acena com uma alternativa simbólica de percepção da impossibilidade do ser

humano programar a passagem do tempo que é eterno e está nas mãos de Deus. A

"saudade", como um resíduo do tradicionalismo holista e hierárquico, acena para a

percepção do tempo como uma trança internalizada nas relações pessoais:

Kollak (in DaMalla & Hess, 1 995) faz uma criativa análise do mundo da natação, que,

enquanto esporte de competição internacional. pode ressaltar diferenças culturais.

Comparando Brasil e Estados Unidos, ele propõe que o tempo e o resultado individual é

muito mais importante entre os norte americanos, e que as relações encompassam a

natação brasileira, onde parece ser mais importante a "colocação relativa" aos

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companheiros. do que uma melhoria no tempo individual do nadador.

Como materialização de mais um contraponto à temporalidade da rua. histórica e linear.

Barbosa ( 1 992) lembra a "temporalidade" envolvida na interligação simbólica do

"malandro" com o "jeitinho". O malandro é idealizado como ser que vive sempre do

presente. que não tem projeto de vida definido e que depende da capacidade

imaginativa. da iniciativa contextual. O "jeitinho" é um mecanismo social não-planejado.

surgindo de uma situação social imprevisível. dependente da astúcia e da criatividade para

o sucesso.

A cultura brasileira. em seu modo de mapear o conceito universal "tempo", denota um país

com intenção (e tentação) de ser moderno (e consequentemente impessoal e individual).

mas que não pretende abrir mão de suas qualidades tradicionais, o lado humano e

relacional. Incapaz de mudar totalmente ou capaz de permanecer apesar de tudo ?

A cultura brasileira deseja oscilatoriamente, a permanência total ou a mudança rápida, por

decreto. Ela menospreza as alterações institucionais trabalhadas. demoradas, típicas das

nações "fundadas" e não "descobertas" .

ideologias se reproduzem e se reforçam na percepção de que os Estados Unidos foram produzidos historicamente, isto é, foram fundados na implementação gradual e linear dos valores puritanos num território que ia imperialisticamente se ampliando; ao passo que, no Brasil, se fala numa descoberta feita por acaso, o que permite unir, num plano simbólico profundo, as idéias de sorte, encontro, milagre, mistura e hierarquia como forma de articular o relacionamento entre os diferentes (DaMatta, 1 993, p. 1 3 1 )

Conforme DaMatta ( 1 993) e Barbosa ( 1 984). "descobridores" são heróis de sociedades onde

se combinam individualismo e holismo e "fundadores" predominam nas sociedades

individualistas. Esta idéia é aproveitada por Rocha ( 1 995b. p.22):

descobridores encompassam, são referência básica nas redes de relações, poderosos ( . . . ) são capazes de proezas e pOdemos depender deles para nossa salvação. Magicamente os descobridores podem resolver impasses, resgatar situações impossíveis e realizam feitos sempre memoráveis ( ... ) 'com isso, as instituições sociais e os valores políticos ficam a salvo da discussão em termos das suas responsabilidades nos processos históricos e sociais ' (DaMatta, 1 993: 1 05).Os fundadores. por seu turno, estão presos na história, na jogo das negociações, nas instituições sociais ( ... ) Nas "fundações", a noção dominante é a de que agentes humanos. valores religiosos e instituições sociais assumem posições relativamente às suas ações, discutindo opções políticas e históricas ( ... ) assim, enfatizam-se instaurações, rupturas, descontinuidades e conflitos.

Falando da "descoberta do Brasil", Rocha ( 1 995b, p.24) observou que a cultura brasileira

ensina que o país pode. deve, precisa, ser ciclicamente (re) descoberto:

Descoberta (do Brasil) que é a de todos nós, mas acima de tudo descoberta do inesgotável potencial agregado no peso de ter que descobrir-se a si mesmo( . . . ) creio que. de toda evidência ela (a descoberta) se reproduz em inúmeras situações cotidianas em que somos chamados para, também como Cabral. inventar e

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descobrir o Brasil. Na verdade, não é outra coisa o que fazem nossos governos ao desejarem passar a limpo, inventar ou descobrir o Brasil. elaborondo, para ficarmos apenas ao longo da década de oitenta: '8 programas de estabilização econômica, 1 5 políticas salariais, 54 alterações de sistema de controle de preços, 1 8 mudanças de políticas cambiais, 2 1 propostas de renegociação da dívida externa, 1 1 índices inflacionários diferentes, 5 congelamentos de preços e salários, 1 8 determinações presidenciais para cortes drásticos nos gastos públicos' (Henriques, 58: 1 993). E isto sem contar com nossas múltiplas invenções do próprio Estado Brasileiro (e outras tantas reinvenções) do qual fazem prova a legião de constituições que tivemos - e suas inúmeras reformas -, nosso estado novo, nossa nova república. nossa república nova, nosso BraSil novo ou grande e outros tantos ( . .. ) E como tudo isto se reproduz indefinidamente no cotidiano, quando assumimos uma pequena chefia de algum departamento obscuro e, no mínimo, mudamos qualquer coisa, descobrindo, criando ou reinventando procedimentos (no mínimo pintamos paredes). Absurdo seria o discurso de alguém que, assumindo um cargo qualquer (os públicos, em especial) declarasse (nessas horas sempre é imperioso declarar) que não vai fazer nado, nenhuma boa nova, pois tudo ali já está sendo bem feito ( . . . ) Na verdade, aprender a descoberta do Brasil é, em certo sentido, aprender que estamos presos na compulsão das descobertas. É aprender uma representação onde somos jogados em tese, na prática obrigatória de atualizar o mito das descobertas e invenções em todos os contextos onde o oportunidade exista.

Neste contexto simbólico de ambiguidade temporal. na compulsão cultural do recomeço,

pode-se, no Brasil. desejar o progresso e desprezar o planejamento paralelo à linearidade da

história; falar em pontualidade e precisão enquanto atrasando ou esperando: evitar pensar

no futuro para glorificar o passado; temer o destino e esperar o milagre, com a certeza que

ele implicará numa (ou dependerá de uma) retomada de valores morais abandonados.

Alguns achados de Pereira ( 1 979), enquanto estudando trabalhadores do setor têxtil no

ambiente fabril, reforçam as propostos teóricas acima :

o trabalhador utiliza as categorias de sorte e azar para indicar as razões que definiram seu destino profissional ( ... ) outro fator de peso na determinação do destino profissional do candidato ( . . . ) são as relações mantidas com algum trabalhador mais graduado na empresa, um chefe, ou um empregado do 'administração' . No realidade, muitas vezes é através dessas relações que o candidato tem a 'sorte' de ser encaminhado ( ... ) é apenas através das relações pessoais que um servente consegue ser excluído de uma eventual lista de cortes de mão-de-obra (p . 1 1 3)

o operário acostumado o uma vida cheia de privações, paro quem o futuro é geralmente indeterminado e escapa aos seus desejos e ao seu controle, tende a conferir um grande valor 00 consumo imediato (p. 1 95)

os operários periodizam a vida através da formulação de um cruzamento de tempos: mais remotamente demarco-se um tempo negativo ( 'antes de Getúlio' ) e um tempo positivo ( 'depois de Getúlio ' ) ( . . . ) num momento mais próximo, demarca­se um passado positivo ( 'antes de 64') e um presente negativo ( 'depois de 64'), ou antes e depois que a 'política virou' (p.222)

Lévi-Strauss ( 1 974) cunhou os termos "sociedade quente" e "sociedade fria",

respectivamente para culturas onde a temporalidade histórica e o mudança são

"imprescindíveis e encompassadores" ou "indesejáveis e minimizados". Nestes termos, o Brasil

não seria uma sociedade "morna", mas, desafiando as leis da Física, e confirmando sua

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preferência por tríades, uma sociedade "fria", "quente" e "morna" ao mesmo tempo.

A cultura brasileira espelho, conforme DaMalla ( 1 993), "menos que um tempo de processos

impessoais e máquinas: mais um tempo de pessoas e de milagres" . Uma cultura possuidora

de uma "temporalidade encantada ( . . . ) que permite (re)ligar este mundo com o 'outro' e o

passado com o presente". Um cádigo simbólico que, desta forma, reifica a "desconfiança

dos esquemas burgueses que desdenham do passado e apontam o futuro como um modo

privilegiado e exclusivo de temporalidade" (p. 34).

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4.3 - O Brasil e o Eixo Econômico : Ambiguidade no Produtivismo

"Já na meninice, fêz coisas de sarapanlar. D e primeiro passou mais de seis anos não falando. Sio incitavam a falar exclamava : -

Ai! que preguiça! ( ... ) e não dizia mais nada ( . . . ) Macunaíma gozou do nosso gôzo, ah! ( . . . ) ' Puxavanle! que filha-duma ? ( . . . )

de gostosura, gente!' exclamou. E cerrando os olhos malandros, com a boca rindo num riso moleque safado de vida boa o herói

gostou gosotu e adormeceu." (em Macunaíma, de Mário de Andrade)

Neste capítulo a atenção está orientada para a atualização que a cultura brasileira faz de

quatro concepções básicas, eixos fundamentais para do modo de vida "ocidental". Quanto

à questão da "temporalidade", demonstrei que o Brasil une ambiguamente, o historicismo

progressista moderno com concepções temporais tipicamente tradicionais relacionadas à

permanência e ao misticismo. O tempo histórico liga-se ao tempo cíclico, vinculado às

relações humanas, e ao tempo eterno, religioso.

Destacamos agora a atualização que a segunda categoria, o "produtivismo", adquire

quando é (de)codificada pela cultura brasileira. O "produtivismo" está intimamente

relacionado à teorização que a ciência econômica elabora quanto à escassez.

Vale ressaltar que a percepção do conceito de escassez como "premissa", -de forma similar

ao conceito de mudança, que detona a concepção historicista da temporalidade- é uma

escolha simbólica de algumas sociedades. A civilização ocidental é uma delas. Dentro

deste panorama cultural peculiar, que toma a escassez como valor, a produção de

excedentes para estocagem como solução e o produtivismo como ideologia, nasce a

possibilidade da teorização sobre as "leis de mercado".

Uma economia de mercado significa um sistema auto-regulável de mercados; em termos ligeiramente mais técnicos, é uma economia dirigida pelos preços do mercado e nada além dos preços do mercado. Um tal sistema, capaz de organizar a totalidade da vida econômica sem qualquer ajuda ou interferência externa certamente mereceria ser chamado auto-regulável. Essas indicaçôes preliminares devem ser suficientes para revelar a natureza inteiramente sem precedentes de um tal acontecimento na história da raça humana( ... ) Nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de alguma espécie. Acontece, porém, que, anteriormente à nossa época, nenhuma economia existíu que fosse controlada por mercados (Polany, 1 980, p.59).

Polany ( 1 980, p.261 -265) protesta contra a propensão dos economistas clássicos de

desprezar a cultura dita "não-civilizados" para entender os problemas da nossa era.

Ele constata a não-universalidade da "motivação de lucro", do "princípio de trabalhar por

remuneração", da "lei do menor esforço". Defende que, onde prevalece a não­

fragmentação das dimensões da vida, o entrelaçamento do social com o econômico e

com o pOlítico (usando termos ocidentais), como no sistema Kula, estudado por Malinowsky

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( 1 984), o "econômico" se baseia em princípios e valores comportamentais não

unidimensionalmente competitivos. São exemplos a reciprocidade e a redistribuição.

A descoberta mais importante nas recentes pesquisas históricas e antropológicas é que a economia do homem, como regra, está submersa em suas relações sociais. Ele não age desta forma para salvaguardar seu interesse individual na posse de bens materiais; ele age assim para salvaguardar sua situação social, suas exigências sociais, seu patrimônio social. Ele valoriza os bens materiais na medida em que eles servem a seus propósitos. Nem o processo de produção, nem o de distribuição está ligado a interesses econômicos específicos relativos à posse de bens. Cada passo desse processo está atrelado a um certo número de interesses sociais, e são estes que asseguram a necessidade daquele passo (Polany, 1 980,p.61 ) .

Clastres ( 1 982) critica o etnocentrismo que envolve a classificação de sistemas econômicos

que não se orientam para o trabalho na intenção de estocar excedentes como

"sociedades primitivas, atrasadas, sem economia" . Ele utiliza o trabalho etnográfico de

Sahlins em socíedades tribais para contestar a antropologia econômica "clássica", que,

aderindo à suposta universalidade da noção de escassez, classifica a economia tribal como

uma economia de subsistência. Economia atrasada que, com grandes dificuldades,

consegue apenas assegurar a subsistência da sociedade. "uma economia de sobrevivência

na medida em que seu subdesenvolvimento técnico interdita-lhe irremediavelmente a

produção de excedentes e a constituição de estoques que garantiriam ao menos o futuro

imediato do grupo"(p. 1 29) .

Em articulação com a concepção temporal onde "nada muda" e o "futuro será

ciclicamente igual ao presente", há sociedades orientadas para o consumo imediato.

Sendo estas coletividades livres da idéia de escassez e do contínuo incremento de

necessidades, Clastres ( 1 982) redefine-as como "sociedades de abundãncia".

Se, em períodos curtos, de fraca intensidade, a máquina de produção primitiva garante a satisfação das necessidades materiais das pessoas, é porque ela funciona aquém de suas possibilidades objetivas. Caso quisesse, ela poderia funcionar durante um tempo maior e com mais rapidez, produzir excedentes, constituir estoques. Se, por conseguinte, podendo, a sociedade primitiva não o faz, é porque ela não quer fazê-lo (p. 1 30) .

Rocha ( 1 995) enfatiza que estas economias não produzem miséria:

Muito ao contrário, elas são, rigorosamente, máquinas de produção capazes de realizar o que a sociedade deseja delas. As sociedades 'primitivas' definem o que precisam e as 'economias' respondem prontamente a essas necessidades. Assim, seu nome se inverte : máquinas de (precária) subsistência viram máquinas de (completa) abundãncía. E como exigir mais de uma economia, além da realização daquilo que se quer dela ? 'Realize segundo minha vontade' é o que a sociedade 'primitiva' diz para a economia. E é apenas isso o que faz esta economia( ... ) ali não é enfatizado nem progresso, nem produção, nem excedente, nem acumulação, nem capital, tecnologia ou trabalho( . . . ) O que os dados etnográficos revelam é que o 'outro' - selvagem, pré-histórico, índio, primitivo - trabalha pouco( ... ) De fato, eles não são governados pelas escolhas de um dono de empresa, envolvido com a incessante produção de excedentes visando lucro, nem as de um trabalhador vendendo sua força no mercado. Na contracorrente dessa mentalidade, a abundãncia se realiza com pouco tempo dedicado ao trabalho ( . . . ) É o exato

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oposto da fome, do frio, das privações e de toda a sorte de dificuldades que, em geral. a ideologia burguesa deseja associar ao pouco trabalho( . . . ) É no modelo da formiga que acreditamos, nunca no modelo da cigarra, conforme nos ensina a velha fábula" (Rocha, 1 995, p. 1 98).

Clastres ( 1 982) classifica tal concepção cultural como englobada por um princípio "anti­

excedente", como uma produção de consumo que visa a garantir a satisfação das

necessidades, e não como produção de troca que visa a realizar lucros comercializando os

excedentes. Descobre-se que as sociedades primitivas podem ser vistas como sociedades

de recusa da economia. "A sociedade assinala à sua produção um limite estreito que ela se

proíbe de transpor, sob pena de ver o econõmico escapar do social e se voltar contra a

sociedade( . . . ) sociedade contra a economia" (p. 1 35).

Tanto é assim que a produção-extra, o planejamento e organização, e divisão social do

trabalho ocorrem, quando vinculadas a acontecimentos sociais, em determinados períodos

socialmente demarcados:

... os nativos não só têm capacidade para um trabalho ativo, contínuo e bem feito, mas também condições sociais que lhes possibilitam utilizar um sistema de trabalho organizado( ... ) (é errada) a noção que tradicionalmente se faz do nativo como indivíduo preguiçoso, individualista e egoísta que se beneficia da abundãncia da natureza,cujos frutos lhes caem às mãos, maduros e prontos para serem ingeridos. Essa noção implicitamente exclui a possibilidade de executar ele qualquer trabalho eficaz, integrado num esforço organizado através de forças sociais( . . . ) Essa teoria ignora a possibilidade do trabalho socialmente organizado( . . . ) no processo de construção de canoas, vimos diversos nativos, cada um deles ocupado numa tarefa específica e difícil. e todos eles unidos num só propósito( ... ) é preciso lembrar­se que a força que realmente une os nativos e os faz ater-se a suas tarefas é a obediência à tradição e aos costumes. Todo nativo sabe o que dele se espera em virtude de sua posição social e o faz ( . . . ) Não há quaisquer meios organizados de coerção física através dos quais uma autoridade pudesse fazer cumprir suas ordens( ... ) A ordem é mantida através da força direta de adesão aos costumes, regras e leis( . . . ) (Malinowsky, 1 984, p . 1 25) .

Ou seja, em algumas sociedades as regras culturais são outras. Tem-se uma concepção do

eixo econõmico diferente da concepção moderna. liberal, burguesa que pretende o

trabalho institucionalizado como mercadoria. Rocha ( 1 995) resume bem esta altemativa

ideológica produtivista, quando coloca que é possível a "criação do mercado em todo e

qualquer espaço social disponível" (p. 1 1 5) . A vida social é encompassada pela economia,

pelo trabalho, entidade central das relações do ser humano com a natureza e de ambos

com o corpo social.

É interessante notar como estas peculiaridades culturais de fragmentação do tecido social

em dimensões perceptivelmente bem definidas - o econõmico, o social, o político, o lazer, o

trabalho - são gramaticais com a metáfora mecanicista do universo, com o retrato

determinista e reducionista que vêm predominando desde o século XVI. conforme Capra

( 1 992) . Capra acrescenta que a linguagem quantitativa, a matemática de equações e

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estatísticas, adquiriram importãncia preponderante, na medida em que privilegiava-se a

ciência e tecnologia, a razão prática e analítica, Tudo isto se une numa fotografia coerente

quando se considera que é imperioso controlar e explorar ao extremo a natureza e elevar a

produtividade dos seres humanos, estes também matérias-primas da máquina de produção

de excedentes,

Como tais principios e valores relacionados à concepção produtivista do mundo se

atualizam no Brasil? É preciso entender como são integradas, no arcabouço de significados

da cultura brasileira, em termos de estrutura simbólica, as representações de "trabalhador",

"natureza", "dinheiro", que Polany ( 1 980) usa para caracterizar a economia de mercado,

irmã-siamesa do "produtivismo".

Vale questionar, também, o significado brasileiro de outros componente interrelacionados,

Qual é a concepção mais profunda sobre "acúmulo e reprOdução de capital" ? Sobre

"investimento e risco", sobre "trocas mercantis", sobre "planejamento racional e controle

matemático", sobre "riqueza material" ? Sobre "inovação tecnológica" ?

Sobre a percepção brasileira do conceito de "trabalho", DaMatla ( 1 986) lembra sua

conotação negativa, sua ligação com o impessoal e indesejado mundo da 'rua ' ,

consonante com origem da palavra no termo lripoliu, um instrumento romano usado para

castigar escravos. Mais ainda, sobre "trabalho" :

, .. os elementos aristocráticos não foram completamente alijados( .. ,) um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos (ibéricos) é a invencivel repulsa que sempre lhes inspirou toda a moral fundada no culto ao trabalho( .. ,) uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, do que a luta insana pelo pão de cada dia( . . . )enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da antiguidade clássica. O que predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtiva é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor (Buarque de Holanda, 1 982, p, 1 O) .

. . . contra o trabalho orgãnico: no plano econõmico, os salários de mera subsistência, como se o assalariado fosse apenas o substituto do escravo; no plano moral, a intumescência dos melindres ante às tarefas ligadas aos vexames da antiga escravidão, as vaidades levadas a extremos doentios, o pedantismo, a suficiência, o culto nacional de Malasarte, o herói que sem esforço e sem trabalho, somente pela habilidade, a intriga, o cálculo, a astúcia, resolve todas as situações (Moog, 1 978, p, 2 1 5),

. . . a grande responsabilidade pela preguiça brasileira, talvez a maior, cabe à prevenção emocional contra determinados tipos de atividade. Quereis a prova? Observai os mestiços e mazombos ainda não resgatados para o trabalho nas mais variadas funções( . . . ) Ao cabo de algum tempo vamos ter notícia de que todos eles deixaram bastante a desejar em matéria de rendimento de trabalho e os patrões, sobretudo os patrões estrangeiros, naturalmente concluirão que nada há a fazer, que a preguiça neles é congênita e racial. Tomemos agora esses mesmos mestiços e mazombos e coloquemo-los num time de futebol. Assistiremos logo a grandes transfigurações, Mazombos e mulatos que não tinham energia para o trabalho cuja preguiça era dada como congênita, cuja energia parecia nenhuma, correm

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noventa minutos em campo, lutam como bravos, nâo se poupam e nâo esmorecem um segundo( . . . ) Porque o futebol é algo que eles aprenderam a amar desde a infância( . . . ) ao passo que o trabalho orgânico foi sempre diminuído a seus olhos (Moog, 1 978, p. 234)

Sobre a "poupança", "investimento", "risco" , "reproduçâo do capital", "liberalismo" ,

"ciclos econômicos", e "relaçôes mercantis" :

Para uns (aventureiros), o objetivo final. a mira de todo o esforço, o ponto de chegada, assume relevância tâo capital que chega a dispensar, por secundários, quase supérfluos, todos os processos intermediários( . . . ) No mundo tudo se apresenta a ele em generosa amplitude e onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos( . . . ) O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, nâo o triunfo a alcançar. O esforço lento, pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de desperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante, tem sentido bem nítido para ele. Existe uma ética do trabalho, como existe uma ética da aventura. Assim, o indivíduo do tipo trabalhador só atribuirá valor moral positivo às açôes que sente ânimo de praticar e, inversamente, terá por imorais e detestáveis as qualidades próprias do aventureiro - audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem - tudo, enfim, que se relacione com a concepçâo espaçosa do mundo" (Buarque de Holanda, p. 1 3) .

. . . (no Brasil predomina um) tipo de industrialização artificial. baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias e no regime de inflação. É sempre o mesmo espírito aventureiro se insinuando, impulsionando, mas logo a seguir corrompendo os processo de criação de riqueza no país( . . . ) É a impaciência nacional do lucro (Castro, 1 992, p.28 1 ) .

O único critério possível de avaliação do risco de emprestar dinheiro era o da confiança pessoal. nem sempre efetivo na hora do aperto. Muitos clientes deviam e só entregavam o dinheiro quando pudessem e se Deus quisesse( . . . ) sem uma avaliação da pessoa e sem contar com uma densa teia de relações pessoais que permitisse pressão adicional na hora da cobrança, o crédito ficava difícil, mesmo que o candidato parecesse sólido financeiramente (Caldeira, 1 995, p.95).

O capitalismo politicamente orientado, centro da aventura, da conquista e da colonização, moldou a realidade estatal. sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência, o capitalismo moderno, de índole industrial. racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo ( . . . ) A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a se explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. ( ... ) Adotou do capitalismo a técnica, as máquinas, as empresas, sem aceitar-lhe a alma ansiosa de transmigrar( . . . ) Enquanto o sistema feudal separa-se do capitalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador( . . . ) concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia" (Faoro, 1 975, p.733-737).

O liberalismo (no Brasil) teve e ainda tem uma conotação precisamente coerente com a dicotomia casa/rua. Em sendo assim, ele jamais penetrou ou alterou os poderes paternos e conjugais de famílias as mais 'liberais' , cujo credo político surgia sempre da porta para fora( . . . ) um dos pontos mais críticos do credo liberal é a sua institucionalização como norma universalizada, homogeneamente instituída em

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todas as esferas da sociedade{ ... ) (no Brasil) temos um liberalismo que apenas deseja ter o direito de reclamar do governo, mas que deseja ser protegido por ele quando se trata de manter lucros e evitar as responsabilidades sociais de quem detém nas mãos as chaves do comércios, das finanças ou das atividades produtivas (DaMatta, 1 986a, p A I )

. . . 'lucro' tem conotações semãnticas altamente negativas n o Brasil; a o passo que, nos Estados Unidos, o profit dá uma idéia positiva do lucro{ ... ) A idéia de profit, de negócio e de comércio não é algo solto no quadro da sociedade americana. Ao contrário, tudo isso se relaciona profundamente a uma ética do trabalho e do valor individual como um dado indispensável ao funcionamento do sistema{ . . . ) o liberalismo autêntico é como um jogo de futebol: ou as regras são levadas a sério ou simplesmente não há jogo{ ... ) a experiência do futebol e a própria atração que ele exerce junto às massas brasileiras falam precisamente dessa ausência no cenário público brasileiro: um conjunto de regras fixas a que todos obedecem e que só podem mudar quando a vontade coletiva assim decide. Mas para isso, repito, é preciso que o credq liberal esteja em todos os lugares: na casa e na rua, na escola e na igreja, no trãnsito e nos partidos políticos" (DaMatta, 1 986a, pA7)

Há, na realidade, vários mercados que operam simultaneamente. Alguns são financiados pelo Estado e seus empresários desfrutam de todos os lucros e de nenhum risco. Outros operam na dura base da lei da oferta e da procura. e há, ainda, aquela esfera dominada pelos letrados, tecnocratas{ ... ) esses que vivem num universo sem competição, pagos pelo Estado e sustentados pelos misteriosos laços de simpatia e lealdades pessoais (Da Motta, 1 994, p.22)

Para retirar vantagens seguras em transações com portugueses e castelhanos, sabem muitos comerciantes de outros países que é da maior conveniência estabelecerem com eles vínculos mais imediatos do que as relações formais que constituem norma ordinária nos tratos e contratos{ ... ) Em realidade não é pela maior temperança no gosto das riquezas que se separam espanhóis e portugueses de outros povos, entre os quais viria a florescer essa criação tipicamente burguesa que é a chamada mentalidade capitalista. Não o é sequer pela sua menor parvificência, pecado que os moralistas medievais apresentavam como uma das modalidades mais funestas da avareza. O que principalmente os distingue é, isto sim, certa incapacidade, que se diria congênita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e mecãnica sobre as relações de caráter orgãnico e comunal. como o são as que se fundam no parentesco, na vizinhança e na amizade (Buarque de Holanda, 1 984, p.94-99)

... se compro ou vendo a um parente, não quero ter lucro e não me importo com o dinheiro. O mesmo poderá ocorrer numa transação com um amigo. Mas, se comercio com um estranho, então não há em vigor nenhuma regra, senão aquela de explorá-lo até o último ponto{ ... ) em casa não falo de negócios; na rua sou uma águia (DaMatta, 1 994, p. 52) .

. . . (o Barão de Mauá) descobriu que, embora houvesse uma dose de cálculo nas transações, muitas vezes os aspectos matemáticos tinham de ser deixados de lado na hora de buscar o lucro máximo de um negócio. Para entender a máquina era preciso conhecer quem andava por trás de cada item contábil{ . . . ) a maior parte das transações dependia de relações pessoais permanentes{ . . . ) o caráter personalista e familiar do interior das empresas se refletia no mundo de fora: como os empregados, os clientes eram tratados como membros de uma grande famnia (Caldeira, 1 995, p.94) .

. . . noção profundamente brasileira segundo a qual quem não chora - isto é, quem não tem a quem pedir, insistente e pessoalmente, falando de suas necessidades de modo aberto e desesperado - não mama !( ... ) no Brasil. sem uma forte relação pessoal e sem o esforço de tornar a relação com o patrão algo profundamente humano, não se pode ganhar nada. A sociedade sugere que o mérito impessoal e

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o julgamento por meio de normas universais são algo estranho no sistema (DaMatta, 1 993, p.85).

Sobre a "riqueza material" e "virtudes econômicas", e sobre "ciência e tecnologia", o

produtivismo brasileiro oferece:

.. . começava o tempo das fortunas estufadas em conversas de bastidores: em vez de obra do trabalho, da poupança, do crescimento dos negócios, a fortuna nascia da conversa oportuna com o amigo certo, a grande jogada que não dá trabalho mas rende muito: era hora da fortuna que beneficiava os mais inteligentes, os mais ousados, os mais bem informados - e jamais a malta trabalhadora. Se encontrassem problemas no caminho, os amigos do poder sabiam que contavam com uma rede de segurança: subsídios, favores especiais para os amigos do novo banco, e tudo o mais que pudesse ser arrancado por uma lei especial, a verdadeira mola do novo progresso( . . . ) pouco se lhes dava perder tempo fazendo contas para determinar a viabilidade da empresa - este era um problema para os otários que precisavam trabalhar como os escravos trabalhavam: a verdadeira riqueza estava na inteligência aplicada na concessão do favor, não no esforço de torná-lo realidade. Desligado do cálculo econômico, o financiamento passou a ser uma questão de vontade política" (Caldeira, 1 995, p.31 8) .

Nos Estados Unidos, os bens materiais não são vistos como culpa, mas como recompensa pelo trabalho duro e bom desempenho da pessoa. Não é motivo de escusas ou justificativas. No Brasil, o sucesso material tem implicaçôes de ordem moral bastante negativas e intimamente ligadas à religião católica que atribui características perversas a situaçôes de sucesso material. O rico foi bem sucedido do ponto de vista material, portanto, não deve sê-lo moral e espiritualmente. Isso permite que as pessoas se compensem, acionando diferentes sistemas de valores (Barbosa, 1 992,p.40).

A utilização técnica do conhecimento científico, uma das bases da expansão do capitalismo industrial, sempre foL em Portugal e no Brasil, fruta importada. Não brotou a ciência das necessidades práticas do país, ocupados os seus sábios, no tempo de Descartes, Copérnico e Galileu, com o silogismo aristotélico, desdenhoso da ciência natural (Faoro, 1 975, p.63).

Oficinas de artesanato e laboratórios de pesquisa! Aí está outro imenso contraste entre a civilização criada pelo pioneiro e a criada pelo bandeirante. Dificilmente encontráveis nas casas brasileiras, são a regra nas casas americanas. Casa de americano sem a sua oficina ou o seu laboratório, só por exceção. Daí os milhares de inventos e godgets com que a América anualmente contribui para o progresso da humanidade. No Brasil, (o cientista de porão) seria quase inconcebível. Ouviria histórias de Pedro Malasarte logrando inventores e pesquisadores, em lugar de histórias de edificação moral em torno de inventores e cientistas( ... ) E ai dele se os companheiros vierem a saber que no porão de sua casa ele vem estudando o problema do aproveitamento do amendoim, ou do café, ou o do babaçu, ou o da borracha, com o propósito de elevar o nível de vida da sua região ! Na certa seria tomado por gira. Os pais, então, para acabar com as maluqueiras do rapaz, não mais permitiriam em casa nem laboratório nem oficina(Moog, 1 978, p.1 1 6) .

Lá onde fosse necessária a técnica, inventar, criar e não apenas transplantar, lá não mais estaria (o brasileiro) ( ... ) a ciência aplicada estava por demais ligada à idéia de trabalho e, portanto, aos vexames da escravatura e da desclassificação sociol( . . . ) este gosto de eruditismo, de pretenso humanismo e de falso universalismo, com preocupaçôes de cultura puramente ornamental, impregnaria todos os centros de instrução do País" (Moog, 1 978, p. 1 2 1 ) .

No fundo, admiramos muito mais a cultura em disponibilidade do que a ciência em ação, da mesma forma porque cobiçamos muito mais a fortuna e o saber obtidos a

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golpe de sorte e de audácia. do que o saber e a fortuna que se constróem pela constãncia no estudo ou no trabalho (Moog. 1 978. p. 1 35) .

Apenas um ator dentre os atores do circo da fórmula um terá que encompassar toda esta parafernália tecnológica e submetê-Ia a uma categoria não racional: o talento. Este definitivamente não é obtido pela ciência ou pela razão. O talento é intuitivo. sensível. criativo. improvisador e. por que não dizer. mágico mesmo. Algo dotado pelos deuses e elaborado pelos homens de valor. No universo das práticas tecnológicas. a instõncia decisiva é o humano. no reino da razão prática. quem decide é o talento. No caso da atuação brasileira na fórmula um. fica evidente que realizamos uma opção preferencial pela ocupação dos espaços destinados aos heróis e não a dos espaços destinados à tecnologia. Nossa ocupação do espaço do herói. no entanto. foi realizada com extrema competência (Rocha. 1 995b. p.29).

Este corte da realidade brasileira com sua atualização peculiar dos valores "produtivistas"

poderia continuar indefinidamente. Encerremos as exemplificações com Barbosa ( 1 992) . Ela

lembra que as culturas que abraçaram unilateralmente o produtivismo alardeiam o

desempenho individual (refletido na recompensa material. no dinheiro) como o melhor

(senão único) indicador que possibilita uma hierarquização social. No limite tem-se o caso

concreto das representações americanas. dos estereótipos de winner e de laser. A

hierarquização que existe. idealmente. fundamenta-se unícamente em fatores econômícos.

em riqueza material. a partir de um ambiente competitivo que estimula cada um a estar

sempre se auto-superando.

Na sociedade brasileira. propensa a hierarquias diversas. hierarquias submetidas a múltiplos

critérios classificatórios opostos e complementares. o econõmico não prepondera como eixo

central. A riqueza material não é o maior valor do ser humano. "ser rico e ter status - embora

seja situação que todos almejam e que em muitos contextos abre espaços - não torna

ninguém superior a outro: e é de bom tom proceder como se isso não contasse( . . . ) Um rico

que se comporta de acordo com a imagem do que seja uma pessoa rica é caracterizado

negativamente" (Barbosa. 1 992. pAO) .

Na mesma linha. DaMalla ( 1 993) desafia o reducionismo que considera a "inflação" um

problema exclusivamente econõmico. o que parece ser verdade nos países onde houve o

significativo "desembebimento" entre econõmico. político e social da revolução puritana e

do liberalismo. No caso brasileiro. a inflação precisa ser analisada em conjunção com a

cidadania. o econõmico junto com o sócio-político.

o intenso processo inflacionário pode ser esperado num país com "inflação social". onde as

regras e normas burocráticas são "personalisticamente distorcidas. reinventadas ou

esquecidas em benefício de algum grupo intimamente ligado aos que governam". Além dos

custos econõmicos. os "custos morais e sociais" dos privilégios são repassados ao restante da

sociedade. "ficando tudo por isso mesmo" (p.1 55).

Regras econõmicas e políticas desencaixadas das relações sociais. lembra Polany ( 1 980).

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desembocam na institucionalização de um mercado no qual as normas se tornam

autônomas e auto-reguláveis. A impessoalidade de tais regras cria a esfera pública neutra,

divorciada da esfera privada. Em unicidade simbólica, o dinheiro como riqueza adquire o

seu significado pleno. Entretanto, conforme DaMatta ( 1 993), o mecanismo de desencaixe

(desembebimento) não é histórico-linear-determinístico. É limitada a visão evolucionista

segundo a qual algumas sociedades estão em algum ponto histórico "atrasado", a caminho

do pleno produtivismo. A questão é que este "desembebimento" pode ter se atualizado de

maneira peculiar em cada sociedade. O caso brasileiro, com a dualidade 'casa-rua',

demonstra um que, de algum modo, manteve-se forte o encaixe entre o econômico e o

politico.

Este encaixe inclui o social. Na cultura brasileira costuma-se utilizar, a fim de se conseguir o

que se quer, mais do que dinheiro. Negociar com diversas "moedas sociais", concretizadas

em teias de relaçôes pessoais .

. . . em termos de uma 'economia moral' , dir-se-ia que vivemos as situaçôes impessoais como desvalorizaçôes( . . . ) É justamente a adoção do igualitarismo num meio relacional que fabrica essa incoerência capaz de provocar tanto mal-estar( ... ) como se o igualitarismo que sustenta a meritocracia como valor, a isonomia como principio político e a competição como estilo de preenchimento de funções fosse negativo. Porque na medida em que eles são desvalorizados pelas práticas relacionais, eles estariam inflacionando o sistema. Mas se me apresento como irmão do presidente tudo muda de figura. Utilizando-me deste papel que é exclusivo, particularista, contextual e singular, introduzo no sistema uma moeda social paralelo (moeda válida para aquele momento e lugar), corrigindo o curso dos acontecimentos e criando uma imediata valorização da minha pessoa (DaMatta, 1 993, p. 1 65).

A economia se inflaciona, entre outras coisas, pelos incentivos governamentais a

determinados setores ineficientes em detrimento de outros ou pelos subsídios do Estado

acima do nível de poupança. A cidadania é inflacionada pela diferenciação na concessão

de favores e privilégios que colocam uma pessoa acima da lei, redistribuindo essa

desigualdade (repassando os custos morais) pelos demais cidadãos. (DaMatta, 1 993)

Torna-se culturalmente lógico que, no governo Collor, quando o discurso da modernidade

(da 'rua' ) foi levado ao extremo, possa ser inventariado o "caso Zélia do mercado de café",

o "caso LBA da primeira-dama", o "caso Alceni dos guarda-chuvas e bicicletas", o "caso

Magri. da liberação de verbas da Ação-social", o "caso do jet-ski do Fiúza", o "caso PP da

Petrobrás" e o "caso da simbiose PC Farias-Collor". São casos fundamentados num estilo

tradicional de exercer o poder através da ética dos privilégios aos conhecidos e amigos; a

ética da 'casa' .

. . . repassando os lucros aos amigos e os gastos para a sociedade ou para o governo( . . . ) Mas sempre distinguindo entre os vários dinheiros( . . . ) reencaixamos o dinheiro no seio dos valores sociais, fazendo com que ele deixe de ser um meio impessoal de troca para servir como símbolo de elos pessoais concretos (DaMatta, 1 993, p. 1 70).

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Lembremos, ainda com DaMatta, a fartura de situações onde o processo inflacionário foi,

como que "magicamente", bem ao "estilo brasileiro", abortado por formalismos imediatistas

e pelos "únicos tiros salvacionistas" dos congelamentos de preços e dos decretos

econõmicos, criando, momentaneamente "uma fantasia de 'normalidade' do sistema

brasileiro" (p. 1 56). Isto demonstra a eleição do plano político, normativo, como a única

esfera de mudança. Daí decorre o mudancismo, a vã esperança de "corrigir" o sistema de

uma vez, "zerando. invertendo ou revertendo" o tempo - o que é mais uma fotografia da

temporalidade cíclica brasileira discutida acima.

Entre nós. é absurdamente mais fácil mudar a lei do que prender um amigo( ... ) mudamos o regime em vez de fazer como se faz no resto do mundo: corrigir penosamente o que deu errado ou prender. seguindo a letra da lei. os ladrões dos bens públicos. Para nós. o 'mudancismo' garante que é mais fácil mudar as regras do jogo do que as práticas sociais: e que é mais econômico liquidar a moeda do que efetivamente discutir o modo pelo qual nossa economia promove o descalabro de todas as leis da economia para manter uma elite vampiresca que suga intermitentemente o grosso e bom leite das tetas do Estado misturado ao sangue esquálido das massas( ... )uma outra característica é que. com o 'mudancismo' . mistificamos a modernidade. E supondo que o modem o é uma espécie de desejável elixir da juventude. queremos colocá-lo dentro de nós a todo o custo. como se uma sociedade. fosse tão vazia quanto um caixão. Entre nós. deste modo. a adoção de instituiçôes passa sempre pelo encantamento da instauração. pelo entusiasmo dos primeiros momentos. e pela terrível desilusão de suo rotinização: o momento em que o novo sistema é apropriado pelas velhas práticas sociais e. em vez de ser assim corrigido e modificado, fica imediatamente perdido numa mistura muito nossa de cinismo e desencanto. O 'mudancismo' . assim, em nome de uma modemidade idealizada e inatingível. ajuda a uma fuga de nós mesmos"(DaMatta. 1 993. p. 1 58).

Seguindo a trilha. DaMatta ( 1 993. p. 1 70) lembra que. no sistema brasileiro. nem tudo pode

ser reduzido a dinheiro. pois este "não compra a felicidade". nem consegue obter certos

privilégios que só o nome de familia, a rede de relações pessoais ou o berço podem trazer.

"Favor se paga com favor. consideração com consideração. amizade com amizade. A vida

social tem muitas esferas de troca e cada uma tem sua moeda".

O dinheiro é apenas mais uma medida de troca. não sendo. como em sociedades

estritamente modernas. sacramentado como valor absoluto. Talvez por isso. "ao contrário do

que supunha Lenin, a desmoralização da moeda não faz a derrubada do regime( ... ) a

sociedade tem outras moedas capazes de atenuar. compensar. tornar formidavelmente

elásticas as perdas financeiras" .

Passemos da discussão dos recursos financeiros - moeda e dinheiro - para a da terra. dos

recursos naturais. DaMatta ( 1 993) atenta para as representações da natureza no 8rasil. A

visão da natureza como um "domínio imanente. eterno, passivo e generoso - da natureza

como mãe dadivosa - uma verdadeira máfria e não pátrid' (p.98).

Não se imagina no Brasil a natureza inóspita do protestantismo, vista como um obstáculo a

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ser dominodo e vencido. A cultura brasileira idealiza. mantém a concepção tradicional, a

"visão relacional da natureza". A terra ligada por elos aos seres humanos, mantendo-se a

intimidade entre o meio-ambiente e a coletividade que nele reside.

Representações que se concretizam no "país tropical. abençoado por Deus e bonito por

natureza", "gigante pela própria natureza" , "celeiro do mundo" onde "em se plantando

tudo dá" e que, ainda por cima, "tem palmeiras, onde canta o sabiá". É a ambiguidade

novamente marcondo lugar, quando do vislumbre de uma natureza "dadivosa e edênica",

imensa e verde, cor-símbolo de orgulho na bandeira nacional. Natureza ao mesmo tempo

"boa para viver, boa para devastar" (DaMalla, 1 993, p. 1 02) . Assim é desde o período

coloniol. com a idealização do enriquecimento rápido e fácil. onde o oportunismo

imediatista e o extrativismo predatório prevalecem sobre o planejamento sistemático e o

controle produtivo:

Compreender o processo brasileiro de ocupação significa perceber a fronteira mais como uma interpenetração do que como um avanço, mais como uma relação com o meio do que como uma projeção sobre ele, mais como uma busca intermitente por um jardim de delícias do que como uma construção sistemática (Morse, citado por Velho, 1 976, p. 1 1 5) .

... uma visão do mundo natural como um domínio infinito, na qual a interação ocorre de modo imediato, sem a menor preocupação com o conhecimento profundo do habitat (que conduz a ciência modem a) ou o esgotamento do produto explorado. São esses valores e esse desenho da natureza que caracterizam( . . . ) uma história marcada por ciclos econõmicos quando algum produto natural é descoberto, explorado e, finalmente, esgotado( ... ) um paradigma de exploração que não contempla nenhum dos componentes do mundo vigentes nas sociedades que passaram pelas revoluções puritanas e individualistas( . . . ) a intenção e motivação de 'tirar partido de tudo' é muito popular no Brasil contemporãneo, no qual existe a crença (e, infelizmente, a certeza) de que só assim se pode subir na vida( . . . ) (numa propaganda de televisão) o jogador de futebol Gérson ( . . . ) como todo brasileiro( . . . ) 'gostava de levar vantagem em tudo ' ( . . . ) mote conhecido como 'lei de Gérson' " (DaMalla, 1 993, p . 1 08) .

Esta concepção aventureira de exploração de recursos coliga-se com a malandragem.

Aventura e malandragem implicam a tentativa de alteração da posição do personagem

numa hierarquia tomada como fato concreto, imponderável. imutável. "Malandro e

aventureiro podem ser revoltados , às vezes revoltosos, mas nunca revolucionários. Sua luta é

pela posição que ocupam e desejam ocupar, nao pela mudança radical da estrutura

social" (DaMalla, 1 993, p . 1 1 4) . Em reloção à pretensão do sucesso econõmico de padrões

modernistas, DaMatta ( 1 993) afirma que

... continuamos a oprimir empregados domésticos e trabalhadores, continuamos a depredar e a destruir a natureza com a mesma desfaçatez de antigamente, agora com o agravante de que nosso discurso se reveste de uma hipócrita retórica igualitária( ... ) o fato é que temos uma ideologia nacional permeada por elementos naturalistas( ... ) no fundo, continuamos a crer numa natureza pródiga e no Brasil como país de inesgotáveis riquezas e generosidade. Para tanto, basta esperar um pouco ou, como dizem explicitamente alguns políticos, ter fé e 'votar em mim' pra ver como tudo vai dar certo. Essas são soluções carnavalescas, fundadas na

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esperança de que nossa história finalmente termine com um 'milagre' ou um golpe de sorte coletivo (p.1 1 7) .

Como. então. se coadunam estruturalmente estas idéias com o que j á foi vislumbrado sobre

a cultura brasileira de casa. rua. outro mundo. malandros. caxias e renunciadores.

historicismo. temporalidades cíclica e eterna ?

Se qualquer fragmento da realidade pode ser. como um decalque. descolado do pano da

realidade brasileira. observado com profundidade e interpretado. de forma particular. em

função de qualquer aspectos que realce aos olhos do estudioso. se isto é verdadeiro. a

"multivocalidade do futebol" torna-o um prato cheio para falar sobre a sociedade brasileira

(DaMatta. 1 992) . Daí. Rocha ( 1 995b) aproveitou-se de algumas dramatizações invocadas a

partir da conquista do tetracampeonato mundial pela seleção brasileira em 1 994. nas

Estadas Unidas. que utilizo para entender a "produtivismo" no Brasil.

Parece-me que ao destrinchar a análise de Rocha é possível encontrar mais ambiguidade.

mais componentes mediadores. mais sub-estruturas rei acionais. na noção brasileira de

"produtivismo". Sua proposta é de que o tetracampeonato conquistado em 1 994. iluminou

um lado da realidade social brasileira constantemente desprezado. tomado como algo

negativo pelo discurso brasileiro: o lado da 'rua' . da 'modemidade' frente às questões

utilitárias.

Apesar da felicidade desencadeada na sociedade. em um aspecto esta vitória foi diferente

das anteriores que levaram ao tricampeonato - em 1 958. 62 e 70: não houve a extremada

ode à criatividade. à malandragem. à astúcia do estilo brasileiro. Ganhamos como

"europeus". planejando resultados. organizando esquemas táticos. jogando na retranca.

Arrebatamos a taça na cobrança de pênaltis. outrora uma grande angústia nacional. talvez

pelo medo do "destino'. talvez pela característica fria. calculista. impessoal. deste tipo de

jogada - "uma jogada de precisão". conforme teria dito João Saldanha.

Falando das copas do mundo. lembramos a genialidade de Pelé. a loucura mágica de Garrincha ( ... ) a malandragem do Gérson ( ... ) As copas do tri são lembradas como a exibição do que seria o verdadeiro futebol brasileiro. desenhado em grandes rasgos de genialidade heróica de tipo espantãnea e. no limite. improvisada( . . . ) Em primeiro lugar. parece que não tínhamos técnico nem comando formal ou se tínhamos eram figuras menores. quase decorativas. Assim. em 58. a lenda diz que Feola. o técnico. cochilava em meio às partidas ( .. . ) A questão principal é que isto adquire valor de verdade. virando imagens selecionadas como autênticas( . . . ) ao lugar pouco importante atribuído ao técnico. adicionamos um conjunto amplo de imagens relacionadas ao futebol sem comando. rebelde. espontãneo. malandro. improvisado. solto. natural e. consequentemente. criativo do brasileiro( . . . ) Imagem de um futebol onde os planejamentos táticos. as organizações e esquemas estariam submetidos. encompassados e superados pelo talento natural do brasileiro. Estas representações são opostas àquelas que temos a respeito do jogo do estrangeiro europeu. praticante do futebol-força. que. ao contrário do nosso. é esquemático. planejado. fechado. preso e duro de cintura( . . . ) algumas das nossas representações do futebol em geral e da vitória na copa do mundo em particular. parecem cair por terra quando falamos da seleção de 94. a

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tetracampeã do mundo( ... ) a temática básica que a seleção brasileira de 94 atualizava ligava-se às representações da organização, da disciplina e do método. Numa palavra: o universo da rua, da lei e da ordem. Representações que sabemos são mais adequadas a uma seleção alemã ou inglesa - porque, em primeiro lugar, são parte do nosso acervo de imagens dos europeus desenvolvidos e civilizados. Em um certo sentido, a seleção de 94 - e por extensão o nação brasileira como um todo - traria 'uma imagem surpreendente' . Por força desta "imagem surpreendente" talvez estivéssemos dizendo, através do time de futebol, da nossa capacidade ou desejo de organizar um Estado moderno, dentro da metódica ideologia burguesa e resolvendo disciplinadamente desavenças polítiCas e problernas econõmicos" (Rocha, 1 995b, p . 1 8)

Através deste pequeno recorte do cotidiono brasileiro, Rocha ( 1 995b) joga os holofotes para

a multiplicidade de códigos valorativos da cultura brasileira. Ele identifica a presença, o

conhecimento, até o entendimento pela cultura brasileira dos valores burgueses referentes

ao "produtivismo". O Brasil "conhece" planejamento, método, controle, organização,

respeito à ordem. Só que, de forma complementar, tais elementos não adquirem a

importãncia, não impõe, em termos pragmáticos, atitudes tomadas como "certas" por

coletividades totalmente englobadas pela ética da modemidade. Pelo contrário,

aglomeram-se negativamente no imaginário nacional. na figura do "Caxias". Positivo, no

imaginário brasileiro, é a improvisação, a criatividade momentãnea, a malandragem. O

produtivismo moderno do "mundo da rua" não escapa de ser permeado e englobado por

valores tradicionalistas, pela pessoalização, pela magia. Valores que repulsam a

padronização, o controle, o planejamento, a organização, a visão calculista do futuro e a

concepção objetiva dos resultados esperados. Porém , inegavelmente, este "outro lado da

moeda" está presente.

. . . a lógica produtivista, o Estado moderno, o individualismo burguês e a temporalidade historicista entrelaçando acontecimentos na impecável sequencialidade evolucionista, parece ser uma das imagens dramatizadas pela seleção tetracampeã do mundo. Do gênio improvisador de 58, 62 e 70 aos organizados burgueses de 94, existe uma imagem importante nesta seleção, nos levando da desordem para a ordem, do improviso para a organização, do jeitinho à burocracia, da malandragem às leis universais, da casa para a rua. ( . . . ) acredito em uma leitura da seleção de 94 com base em um código típico disso que chamamos modernidade. Assim, podemos constatar uma oposição significativa entre a experiência do aprendizado da descoberta do Brasil - o acaso, o heróico descobridor, o demiurgo capaz de resolver sozinho ou o salvador da pátria - e as imagens da seleção brasileiro na copa de 94 - o grupo disciplinado, o planejamento, a organização, a hierarquia de comando, a racionalidade, o método para atingir objetivos (Rocha, 1 995b, p.20)

Rocha ( 1 995b) acrescenta que, apesar de os brasileiros serem responsáveis pela

organização das quatro maiores festividades da humanidade, a cultura insiste, no nível de

discurso, em repugnar a capacidade organizacional brasileira:

De alguma forma gostamos de imaginar que fazemos certas coisas magicamente. Assim, nossa cultura realiza a maior festa do planeta terra e a segundo e a terceira e o quarta - o carnaval do Rio de Janeiro, de Salvador ou Recife, o reveillon de Copacabana - e pensamos que em tudo isto estamos improvisando. Na verdade,

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sem organização, trabalho, comando, planejamento e administração, dificilmente quaisquer destas festas aconteceria. Quem duvida que improvise no próximo sábado, na própria casa, um jantar para trinta pessoas. Entretanto, a sensação que sublinhamos é a de que tudo acontece assim meio por acaso, como uma espécie de descobrimento" (p.2 1 )

A iluminação desta estrutura simbólica faz aparecer a escolha d a cultura brasileira por

desprezar aspectos da modernidade, evitando a total submissão do tradicionalismo. A

cultura brasileira mantém vivos e paralelos ambos os sistemas, ambas as éticas que guiam o

lidar com a vida.

Rocha ( 1 995b) vislumbra (e parece torcer por) a possibilidade de síntese positiva do lado

moderno com o lado tradicional. metaforizados, respectivamente, pela "rua" e pela "casa"

Creio que este ideal de paciência, método, disciplina e organização foi, em um certo sentido experimentado com sucesso no tetracampeonato{ ... ) Assim, penso que se não é totalmente verdadeira, ao menos é muito boa para pensar a imagem que a seleção de 94 nos deixa gravada na memória: é possível vencer como alemães. Apesar de tudo, podemos fazer as duas coisas; tanto a vitória glamurosa quanto o planejamento vitorioso. Numa cápsula; aprendemos, nas imagens do tetra, que o Brasil pode se organizar e .. . vencer. Que talvez não precisemos de heróis, políticos populistas, salvadores da pátria, figurões, líderes carismáticos, medalhões, ditadores ou caudilhos nos ensinando os caminhos do paraíso. Talvez, por força daquele jogo amarrado e feio se possa encenar um drama diferente e afinal não seja preciso nenhum Dom Sebastião resgatando a alma e cobrando a conta" (p.32).

Tendo visto opiniões de vários estudiosos sobre concepções brasileiras relacionadas ao "eixo

do produtivismo", noto que este valor ocidental. vem, em termos estruturais, agrupar-se às

demais instãncias de misturas e ambiguidades que permeiam o desenrolar da vida nacional.

Certamente a complexidade deste eixo simbólico no Brasil é maior que no mundo anglo­

saxão da ética hegemõnica.

o "espaço da preguiça", por poder ser compensado e complementado pela criatividade,

está previsto no imaginário do ambiente de trabalho, podendO obstaculizar a produtividade

plena. Temos, na exagerada exaltação de soluções mágicas, criativas ou messiãnicas, o

desprezo pelo planejamento e pelo método, pela organização e pela formalidade. Temos,

na pretensão da malandragem e do jeitinho. o espaço que "dá certo" desprezando as

normas e a padronização. Herdamos, das premissas católicas, a resignação e o

acomodamento com a pobreza material que, em muitas instãncias, parece levar ao

desprezo e à desconfiança da riqueza terrena. No universo brasileiro, o trabalho não é a

fonte suprema de dignificação do ser humano, como foi para os puritanos. A riqueza

material pode sucumbir à riqueza moral. O desempenho não é o critério de classificação

predominante. O dinheiro é apenas "umo entre várias possíveis diversas riquezas" e a moeda

é apenas um "indicador econõmico" num mundo repleto de "indicadores sociais", de

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amizades, "piedades" e outras "moedas paralelas".

As constatações de Pereira ( 1 979). estudando operários têxteis, oferecem mais uma amostra

da mistura simbólica entre material e moral que a cultura brasileira, bem como a

importãncia das relações no ambiente de trabalho brasileiro :

Apenas dinheiro se pede emprestado com mais facilidade( ... ) mas pedir emprestado alimento é tomado como 'vergonha' (especialmente pelos homens que, assim, proíbem as mulheres de fazê-lo), ainda que receber uma ajuda não­pedida seja prova de amizade e pagar um empréstimo ocasional ou uma dívida seja obrigação de dignidade. Pudemos observar que (para) empregados suspensos, demitidos ou desempregados, além do caso de operárias viúvas ou separadas dos maridos, era frequente a entrada de vizinhos oferecendo auxílio na forma de mantimentos. A manutenção de uma aparência de padrão de vida digno, num meio de pobreza geral, é uma questão de princípio entre os operários" (p.44-45)

Rodrigues (1 970), estudando trabalhadores da indústria automobilística, acrescenta muito á

questão da mistura de utilitarismo com moral e da valorização do trabalho:

.. . razão alegada era o fato de se tratar de uma empresa grande, rica( ... ) Sendo assim, deveria remunerar generosamente seus empregados (p.66)

Vé-se claramente que os grupos menos qualificados profissionalmente são os que mais acentuadamente aspiram trocar as oficinas pelos escritórios ( .. . ) 'o trabalho é mais limpo: a gente trabalha menos( . . . ) a gente fica limpo' . Trabalhar em escritório é, pois( ... ) subir mais um degrau na escala de estratificação social: ganhar mais, não fazer 'trabalho sujo ', educar-se, ter um 'melhor ambiente' (p.61 )

... operário é u m homem pobre, dominado e desprotegido: u m infeliz( . . . ) definem o operário como aquele que trabalha. O operário seria, então, essencialmente, o trabalhador( ... ) o sentido que o atributo 'trabalho' adquire( ... ) é entendido sempre como manual e, em seguida, como uma atividade cansativa, desagradável. suja, mero dispêndio de esforço físico, obrigatório( ... ) o trabalho não é valorizado enquanto ' trabalho produtivo' criador de riquezas (p.1 64- 1 65)

Temos hierarquizações morais, temos idealização da natureza e temos, dentre os membros

do corpo social, infinitas possibilidades de pretensões pessoais. Possibiidades que vêm em

qualquer gradação. Do extremamente ambicioso ao totalmente acomodado; do

trabalhador-caxias ao aventureiro-malandro; do responsável ao aproveita dor; do pontual

ao atrasado; do planejador-que-foge-à-incerteza ao despreocupado-que-procrastina.

Polany ( 1 980) falou em três falsos mercados - mercado de trabalho, mercado de terra e

mercado financeiro. Estes são os elementos importantes da fórmula de uma economia

"desembebida", que "submete" o social e o polítiCO ao econõmico. Este quadro adquire

significados diferentes do ideal economicista-burguês quando é metabolizado pela cultura

brasileira .

Por preconizar a escassez, a necessidade de acumular excessos para o futuro e o acúmulo

material como critério único no julgamento do membro social. a ideologia burguesa

pretende a uniformidade de seus membros sob um só regime. O regime da ambição,

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competição, progresso tecnológico e produtividade maximizados. Este regime não se

concretiza plenamente na cultura brasileira, nem no eixo produtivo, nem no eixo temporal.

Tudo isso posto, arrisco alguns palpites. Acredito que a tão propalada economia informal é

gramatical com a cultura brasileira, na medida em que foge das padronizações,

planejamentos e regras oficiais, da 'rua'. Este 'outro lado' da economia brasileira, que

funciona predominantemente baseada no código da 'casa' ou da 'malandragem ' , pode

ser encarado como mais do que simples reação à pobreza econômica. Se na maioria das

vezes a economia informal tem característica personalista pOr ser baseada na confiança e

no dever moral do empregado para com o cliente, ela pode ser tomada como um sutil

mecanismo de manutenção do englobamento entre social e econômico, minimizando a

hegemonização do último.

A economia informal pode, também, com seus "contratos de curto prazo", permitir que o

"inferior" social "se compense" ao enganar o "cliente mais rico que não sabe o valor real do

serviço", reificando as fórmulas miticas de Pedro Malasarte : "rico, mas burro" e "pobre, mas

esperto" (Da Motta, 1 990). Indo mais além, suponho que a compensação é intensificada

quando a economia informal "retoma" recursos do Estado, mas não renuncia ou conflitua,

evitando revoluções que mudem o sistema.

A economia informal é, ainda, um modo de navegação social que permite uma parcial

individualização do hierarquicamente inferior, que passa a exercer escolhas referentes ao

horário, às companhias pessoais e ao modo de trabalho, por exemplo. É também coerente

com a negação da acumulação contínua de estoques, posto que permite a intermitência

de produtividade do trabalhador.

A economia informal não é uma atividade salarial no sentido estrito( . . . ) Além de ser frequentemente familiar, tribal e sempre atipica, a atividade realmente não obedece a tudo que o trabalho pressupõe no Ocidente (ética do dever, missão redentora, etc)( . . . ) o objetivo da produção informal não é a acumulação ilimitada, a produção para a produção. O excedente, quando existe, não se destina ao investimento para a reprodução ampliada. O setor não se desenvolve por concentração das unidades e sim por sua multiplicação. Os recursos servem, em grande parte, à satisfação de necessidades culturais: despesas festivas, solidariedade do grupo" (Latouche, 1 994, p. 1 22).

No contexto informal. as atividades produtivas, mesmo quando utilizam tecnologias

sofisticadas ou saber científico, se incluem num tipo de produtivismo-relacional. bastante

"brasileiro" : "A capacidade de biscatear e a criatividade não tomam a forma da empresa

capitalista( . . . ) as pessoas são engenhosas sem serem engenheiros, empreendedoras sem

serem empresários, industriosas sem serem industriais" (Latouche, 1 994, p. 1 23).

Além da economia informal, acredito também que a cultura brasileira permite

simbolicamente os relacionamentos que ocorrem entre as esferas pública e privada do

sistema financeiro. As denúncias de informações privilegiadas e de "promíscua troca de

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profissionais entre Banco Central e instituições privadas". com inúmeras menções na

imprensa nos anos de 1 994 e 1 995. parece-me. fazerem parte da lógica personalisto e

relacional da sociedade.

Também torna-se inteligível a profunda importãncia que o Estado sempre teve no

desenvolvimento econõmico brasileiro. A cultura faz e é refeita pela aversão empresarial ao

risco. pelos desejos aventureiros de ganhos oportunísticos. pela crença na centralização

hierárquica e autoritária.

A importãncia do faturamento e das compras das empresas estatais ou mistas para a

economia brasileira é única em países ditos capitalistas. A influência do poder central foi

bastante peculiar no Brasil. desde o início de sua colonização. É histórica a característica

cartorial dos negócios sempre dependentes de concessão de privilégios. cartas-patentes.

autorizações e outros interterências governamentais. O Estado empresário é retratado pelo

fato de. em 1 987. as seis maiores empresas brasileiras serem estatais e cerca de 90 % das

empresas privadas brasileiras terem o controle acionário nas mãos de no máximo duas

famílias. Tais empresas privadas normalmente iniciaram pelas mãos de comerciantes ou

importadores sem conhecimento industrial. mas incentivados por possibilidades de ganhos

descomunais no processo de substituição de importações. Com a demanda pré-existente, o

baixa concorrência. pela proteção tarifária. e um mercado potencial regionalmente

concentrado, houve pouco estímulo aos desenvolvimentos de logística, marketing,

engenharia de produção e otimização de processos (Bethlem, 1 989).

Dentro da mesma lógica cultural de interpenetração sem hegemonia entre "casa" e "rua".

Bethlem ( 1 994) fala em "macrocefalia com base na lealdade e confiança", que garante o

emprego e alta remuneração aos diversos parentes (e amigos) alocados nos altos cargos

executivos.

O esquema de burocracia industrial dominante no Brasil é patrimonialista( . . . ) entre nós, a propriedade e a gerência ainda não se diferenciaram( ... ) Seria. assim. permitido chamá-Ias (as empresas) de 'clãnicas' . tão saliente na sua administração é a influência de critérios 'familísticos' ou de parentesco. antes propriamente de critérios burocráticos racionais( ... ) os 'administradores profissionais' são admitidos menos em virtude de suas qualificações técnicas objetivas do que por serem 'homens de confiança'. Essa mentalidade patrimonialista de nosso empresariado tem raízes no modo particular de formação do capitalismo no Brasil. Os fundadores da burguesia comercial e industrial no Brasil são antigos fazendeiros e imigrantes( ... ) exibem grande orgulho de família e, em suas empresas, resistem à modernização administrativa quando estas se chocam frontalmente com as praxes fundadas pelo 'patriarca'. chefe da família( ... ) relações entre chefes e subordinados assumem a feição de compadrio. O chefe é menos um avaliador objetivo de tarefas e performances do que um amigo ou inimigo. protetor ou desafeto" (Ramos, 1 983. p.2 1 3-2 1 4) .

Bethlem ( 1 989, p . 1 46- 1 53) afirma que. em 1 983, a maior empresa industrial brasileira era a

Petrobrás, estatal de tamanho descomunal em termos nacionais; que seu volume de vendas

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era um quarto do volume da maior empresa americana: que a maior indústria particular

brasileira possuía um volume de vendas cerca de cinquenta vezes menor que a maior

americana: que o Banco do Brasil era 2,5 vezes menor em ativos e 1 2 vezes menor em

depósitos que o maior banco dos EUA: e que o Bradesco, maior banco privado brasileiro, era

cerca de 50 vezes menor que o americano por ambos os critérios. Congruentemente, Fleury

( 1 995) lembra que

Convivendo por mais de três décadas com um mercado protegido, oligopolizado e, por consequência pouco competitivo, onde os custos eram automaticamente repassados para os preços, e onde os clientes tinham pouco a dizer, nossas empresas haviam desenvolvido uma cultura de desperdício, de ineficiência, de baixa qualidade, de serviços claudicantes e de pouca inovatividade( ... ) Dentre os vários indicadores apontados pelo IMO, o que chama mais atenção é o que trata da produtividade da mão-de-obra, onde o Brasil apresenta o segundo pior desempenho entre os (países) considerados. Enquanto o valor agregado por funcionário no Brasil era de US$ 7724 por ano, o de Cingapura, por exemplo, atingia o valor de US$ 1 7326" (p. 1 -8).

As idéias acima ilustram a concepção muito particular com a qual a cultura brasileira opera

cotidianamente o "eixo do produtivismo" e seus agregados - trabalho, recursos humanos,

dinheiro, recursos naturais, tecnologia, etc. Embora inegavelmente submetida ao discurso

ocidental que prega o desequilíbrio entre recursos (limitados) e necessidades (crescentes),

discurso que toma a "escassez" um valor: a cultura brasileira crê na magia (malandragem)

de última hora, crê na "concepção espaçosa" da natureza (Buarque de Holanda, 1 994), crê

na riqueza das relações pessoais e mantém o espaço da abundãncia como valor. DaL

segundo DaMatta, o amor ao carnaval.

Como um país pobre poderia produzir uma utopia rica, sensual e alegre? De acordo com a lógica ocidental. isso jamais poderia ocorrer. Se uma sociedade é pobre, ela só pOderia celebrar sua própria miséria. Nisso ela estaria sendo não só funcional. mas também profundamente linear e coerente com a 'lógica das idéias no lugar' ( . . . ) a despeito da lógica burguesa que aprisiona nossa imaginação, existe um elo profundo entre esse dia-a-dia miserável e injusto e o drama que subversivamente o carnaval produz e articula. Talvez pudéssemos começar a entendê-lo se fôssemos menos lineares em nossa busca. Diríamos, então : há carnaval com luxo precisamente porque há miséria social e pouco espaço político para o exercício da cidadania. O carnaval seria um 'rito de vingança' ( . . . ) produziria uma reversão da ordem social( . . . ) 'Quem gosta de miséria é intelectual. pobre gosta de luxo! ' ( . . . ) No fundo, Joãozinho Trinta está dizendo também que, no carnaval. o mundo deixa de ser englobado pelos valores da razão prática, que determina que as idéias fiquem calvinisticamente nos seus lugares e orientem religiosa e coerentemente as palavras e o comportamento" (DaMatta, 1 993, p. 1 44) .

Se o Brasil-econômico for encarado através de lentes contendo os valores hegemônicos

burgueses, modernizantes, pode-se, então, classificá-lo como país atrasado,

subdesenvolvido, de "terceiro mundo" e, ainda por cima, irresponsável, pelo modo

pomposo, paradoxal com que lida com a pobreza. Essa visão existe, é divulgada e domina

o imaginário da sociedade brasileira quando esta se olha no espelho pelo seu lado

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universalista. Esta visão nada faz além de reificar a situação e, como sempre, impedir a

discussão mais profunda das razões, Ao perfazer tais discussões em termos lógicos

importados, em vez de considerar a lógica-tríplice da cultura brasileira, o essencial, como

sempre, permanece escondido; e as conclusões, embora corretas, permanecem parciais.

Nada se faz além de repetir o que sempre foi dito e todos estão cansados de saber.

DaMatta ( 1 994) diz que é como se o Brasil - em sua complexa hierarquia complementar e

relacional sustentada por um discurso universalista e um aparato regulatório modernizante -

de algum modo se recusasse a viver a plenitude do produtivismo. A cultura brasileira parece

evitar o capitalismo em sua forma "totalmente planificada e hegemonicamente

padronizada pelo dinheiro das contas bancárias ou pelos planos estratégicos e operacionais

de produção e eficiência econômica" . A cultura brasileira consegue conciliar e

com pactuar moderno e antigo, esforço e malandragem, aprendizagem árdua e talento

nato, planejamento metódico e criatividade, amizade e profissionalismo, escassez e

felicidade. Talvez aí encontre-se a beleza e, quem sabe, a grande oportunidade da nação.

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4.4 - I ndividualismo e Estado Nacional : O Tipo Brasileiro de Igualdade

U_ Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensãa do Govêmo e vai sozinho.

- Mas praquê tanta complicação si a gente possui dinheiro à bessa e os manos podem me ajudar na Europa !

- Você tem cada uma que até parece duas ! Poder a gente pode sim porém mano, mas seguindo com arame do Govêmo não é

mllhor ? É. Pois então !" (Trecbo de MacunaÍma, Mário de Andrade)

Até agora a questão dos eixos simbólicos articulados que podem ser teoricamente

modelados para caracterizar a civilização ocidental - historicismo, produtivismo,

individualismo e Estado-moderno - foi aprofundada para os dois primeiros. Menções sobre os

outros dois - individualismo e Estado - foram inevitáveis, dada a indestrutível sobreposição de

representações simbólicas que o conjunto engloba.

Por exemplo, pode-se sintetizar tal integração através da idéia de que, em sociedades que

concebem o tempo como predominantemente cíclico, , o produtivismo pleno - a produção

de excessos, acúmulo de estoques e reprodução de capital - se faz desnecessário, posto

que o "futuro" repetirá o "passado" numa certeza de "abundância". Frente à imperiosa

necessidade de continuidade social por totalizações, o social continua encaixado ao

econõmico, as atividades produtivas submetidas à vida humana, as relações sociais

submetidas às metáforas naturais e eventos, por exemplo, climáticos.

Por outro lado, em sociedades que privilegiam a linearidade historicista, tende-se a

vislumbrar a possibilidade de escassez de um "futuro" certamente diferente do "passado". O

"presente" é planejado e organizado para a atividade produtiva e os desenvolvimentos

tecnológicos que permitam maior controle sobre esta temporalidade e esta natureza

imprevisíveis. Na conjunção do historicismo com o produtivismo, a vida humana se submete

à produção e as relações sociais se submetem à racionalidade utilitária. Quando a

continuidade social nâo é íntima do meio natural como no totemismo, ela é vivenciada

pelas edições históricas lineares onde "uma coisa causa a outra", "uma coisa sai da outra".

A vida humana acontece a partir de um imaginário fragmentado em múltiplas dimensões

"desencaixadas" - político, social. econõmico. Neste "desembebimento", tende a haver a

submissão dos espaços polítiCOS e sociais ao preponderante eixo econõmico. As relações

humanas - com a natureza e entre si - são regidas pela lei do mercado, do desempenho, da

competitividade. Confarme visto acima, a ideologia da dita Sociedade Ocidental adere a

este "modelo cultural".

Para tornar o capítulo mais elucidativo, a pretensão deste item 4.4 é incluir os outros dois

eixos que fortalecem tal estrutura simbólica. Com a discussão sobre individualismo e Estado,

o panorama desenhado a respeito da civilização ocidental tornar-se-á mais abrangente.

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Novamente, a lógica peculiar à qual este panorama se submete na interseção com a

cultura brasileira será explorada.

Se o mercado fez a grande transformação do nosso tempo, permitindo que a terra e a energia humana passassem a ser vendidas e compradas num espaço social demarcado pelo dinheiro e pelo preço, conforme nos ensinou Karl Polany, a idéia de cidadania complementou essa revolução, estabelecendo o indivíduo como um papel social central e absolutamente dominante dentro de nosso sistema. Em ambos os casos a revolução foi a de acabar com domínios e éticas particulares que operavam simultaneamente dentro de uma mesma sociedade (DaMatta, 1 994, p.77)

Preferi tentar decifrar num só item as questões do individualismo e do Estado moderno como

instãncia suprema do poder. Tal decisão foi baseada na crença de que há maior

efetividade no entendimento deste assunto quando se escolhe o conceito de "cidadania"

como semente. Tal conceito de cidadania é eficiente como ponto de partida porque

interliga individualismo e Estado-burguês, permitindo a posterior arnpliação de cada um dos

temas. Um bom começo é usufruir da concepção de cidadania com "alta pureza", virgem,

intocada pelo real. Uma excelente fotografia é a expressa por DaMatta ( 1 994) :

. . . como cidadão, não posso me definir usando meu componente etário ou sexual( ... ) aprendo - muitas vezes a duras penas - que devo ser universal e tenho que abandonar as complementaridades, contrastes e gradações( ... ) Deixo de ser um homem de meia-idade, deixo de ter um nome de família e uma cor; deixo de ser natural de um dado local geográfico e de ter uma dada profissão. Acabo também com minhas predileções e singularidades para me tornar uma entidade geral, universal e abstrata, dotada( ... ) de autonomia, espaço interno, privacidade, liberdade, igualdade e dignidade( ... ) esse papel deve operar num meio social homogêneo que possa garantir o seu reconhecimento em todos os confins da sociedade. Nada deve se interpor entre ele e a sociedade ou a 'nação' como um todo( . . . ) o conjunto de cidadãos. assim, é um conjunto de unidades teoricamente idênticas e absolutamente iguais e paralelas (p.75).

Se em todos os tipos de sociedade existe a noção empírica de indivíduo como entidade

concreta diferenciada, ser vivo separado. representante da espécie humana, a sociedade

ocidental moderna, peculiarmente, metamortoseia o "indivíduo" pragmático em valor

simbólico. Transforma-o, durante o exercício da ideologia do individualismo, em "dado

universal", em "princípio ordenador de uma nova visão de mundo" (Viveiros de Castro &

Araújo, 1 977. p. 1 39) .

Na sociedade moderna, o "indivíduo" é a idéia central do sistema, o valor fundamental. o

objetivo final. O ser humano é concebido como coisa autônoma, anterior e mais importante

do que a formação social. Os atributos de igualdade e liberdade, em conjunto com o direito

de escolhas e de sentimentos particulares são responsáveis pela normatização do sistema

coletivo. As leis daí derivadas devem ser respeitadas por todos indistintamente. É a idéia da

sociedade como associação proveniente da união voluntária de seres independentes.

Barbosa ( 1 992) lembra que o "individualismo" é uma "idéia nova". Pois " o holista é uma

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característica quase 'natural' da própria sociedade, enquanto o individualismo, quase um

desvio, uma doença" (p. 90) . DaMatta ( 1 994) corrobora, quando diz que "essa percepção

do indivíduo como um papel social e como um dado crítico da sociedade ocidental é algo

recente e efetivamente raro" (p.72).

A concepção oposta à sociedade individualista seria, então, a sociedade holista. Neste

caso, "holismo" significa um sistema de valores coletivistas, simétrico-inverso ao

individualismo. Sistema que foi identificado pelos antropólogos como típico e recorrente nas

sociedades tribais ou nas tradicionais. O social embebendo todos os domínios, a totalidade

prevalecendo sobre cada membro individualmente. A definição do ser humano se dando

por sua complementaridade relacional frente à totalidade.

O foco central, a premissa básica da coletividade holista é o conjunto social e não cada

fragmento, cada membro. O princípio organizacional básico é a hierarquia, determinada

pelos mais diversos critérios. A desigualdade não é discutida, nem debatida, nem

amaldiçoada, posto que é tomada como fato natural, indispensável para a continuidade

social, compensada pela solidariedade. "O todo prevalece sobre as partes e a hierarquia é

um principio básico da vida social" (DaMatta, 1 994, p.72).

Como dito acima, a Sociedade Ocidental concebe o inverso: a parte, o indivíduo, é mais

importante do que a totalidade social; as relações entre os homens e as coisas materiais

superam as relações que se dão entre os homens. Neste sistema ocorreu a "revolução

individualista", "um movimento cujo conteúdo ideológico é a institucionalização do

indivíduo como centro moral do sistema, de modo que a sociedade é agora vista como um

instrumento de sua felicidade" (DaMatta, 1 994, p. 73) Na moderna vale a percepção de si

mesmo como tendo caráter único e irredutível, limitado em seus desejos apenas pela

macroestrutura de leis e decretos que equaliza todos perante a instituição maior do Estado.

Esta figura estatal é atuante, cuidadosa em garantir a separação entre a vida pública e a

vida privada. Cuidadosa em garantir que qualquer contato entre um cidadão e a

totalidade se dê verticalmente, sem intermediações, na mais pura igualdade.

Por outro lado, as mediações são predominantes nas sociedades tradicionais, onde as

posições e hierarquias ocupadas pelo membro dentro do mapa social adquirem valor. Em

outras palavras, as relações entre os membros contam mais que cada membro

separadamente. O contato com a totalidade, o contato entre privado e público necessita

sempre da intermediação hierarquizada, do envolvimento de outras entidades, instituições

ou membros do corpo social.

Ao individualismo ligam-se o Estado e o produtivismo, conforme Torres ( 1 989), que mostra a

figura do Estado moderno como sendo a esfera autônoma do político, como ambiente do

exercício do poder; instituição definitivamente separada do espaço individual privado:

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A 'abstração de um Estado' (seria) a marca da modernidade a nível pOlítico( . . . ) Isso não significa que inexistisse na Antiguidade Clássica um domínio privado. Significa, no entanto, que este - quer se entenda como o equivalente à vida doméstica, quer como o espaço de atividades que hoje diríamos sociais ou econômicas -encontrava-se inteira e estritamente subordinado à vida política, que era tida como a forma mais nobre de vida e realização, à qual se dirigiam e consagravam todos os cidadãos dignos deste nome( . . . ) bem outra é a situação do Estado e da política no mundo moderno, em cujo horizonte, conforme Hegel, pode formar-se um Estado mesmo se os indivíduos que o vierem a integrar não tiverem qualquer ligação do ponto de vista dos costumes, da cultura, da lingua ou mesmo da religião( . . . ) mais profundamente, no entanto, o que diferencia de modo radical a situação política da modernidade em relação à polis grega é o surgimento da individualidade moderna, determinante último da desaparição da unidade imediata e transparente dos indivíduos com a vida comunitária( . . . ) constituída a individualidade moderna, já não há qualquer possibilidade de que a vida política readquira a naturalidade e transparência que foram suas características fundamentais na Grécia clássica( . . . ) como poderia ser de outro modo se a maioria esmagadora dos homens modernos têm nas atividades profissionais privadas o lugar mais frequente e valorizado da realização pessoal?" (p. 1 5) .

Quanto a esta questão do Estado, Clastres ( 1 982) vai ainda mais além. Ele inicia lembrando

que a autoridade do Estado se estende pelo expansionismo da língua nacional e pela

institucionalização de um modelo de educação formal. Só assim a nação pode se dizer

constituída e o Estado proclamar-se detentor exclusivo do poder.

Desta forma, Clastres interliga Estado e etnocidio, no que é acompanhado por Rocha

( 1 995), que lembra ser tal tipo de poder exercido, em última instância, pelo pretenso

monopólio da violência física. Para Clastres, o etnocídio, como supressão mais ou menos

autoritária das diferenças sócio-culturais, inscreve-se antecipadamente na natureza e no

funcionamento da máquina estatal, a qual procede por uniformização do tipo de relação

que interliga os individuos : "O Estado só conhece cidadãos iguais perante a lei" (p.59). A

ode à igualdade sob comando do Estado se reproduz e se intensifica na simbiose com o

produtivismo : "Raças, sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo;

tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo, de uma produtividade levada a

seu regime máximo de intensidade"(p.6 1 ) . Rocha ( 1 995) corrobora com tal opinião,

atentado para que "O Estado é a força centrípeta, buscando a repetição do igual, a

compulsão do mesmo" (p.1 26). Em resumo, ambos falam de etnocidio como indicador da

desvinculação entre marcas simbólicas importantes, realizada pela Sociedade Ocidental.

Em primeiro lugar, esta é uma sociedade de Estado. Em segundo, é uma sociedade que inventou o econômico como absoluta necessidade produtiva. A Sociedade Ocidental constituiu estes eixos como autonomia. É como se pedaços da sociedade, domínios da experiência fossem adquirindo vida própria. É como se, entrelaçados uns com os outros e todos com a teia social, se desgarrassem dela e, no mesmo gesto, se soltassem uns dos outros (Rocha, 1 995, p. 1 28)

Como contraponto, Clastres ( 1 982) lembra uma outra alternativa cultural, uma outra

possibilidade de escolha humana: "as sociedades primitivas podem ser etnocentristas sem

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serem etnocidárias, pois que são precisamente sociedades sem Estado" (p.57). Nelas não se

pode perceber a fragmentação entre social, econômico e político. Não existe a

concepção de domínios reducionisticamente separados. Enquanto as "sociedades de

Estado" são divididas em dominantes e dominados - "não é pensável sem a divisão entre

aqueles que comandam e aqueles que obedecem" (p.1 06)-, as sociedades ditas

"primitivas" são indivisas e, portanto, homogêneas : "o poder não é separado da

sociedade" (p. 1 06). A influência do líder se deve, não ao exercício do poder pela força e

pela violência, mas sim pela materialização do prestígio que se obtém pelo profundo

conhecimento das tradiçôes coletivas.

A chefia é apenas o lugar suposto e aparente do poder. Qual o lugar real? É o próprio corpo social, que o detém e exerce como unidade indivisa. Esse poder não­separado da sociedade se exerce para manter na indivisão o ser da sociedade, impedir que a desigualdade entre os homens instale a divisão na sociedade( . . . ) A sociedade cuida para não deixar o gosto do prestígio transformar-se em desejo do poder. Se o desejo de poder do chefe tornar-se por demais evidente( . . . ) ele é abandonado ou morto" (p.l l O) .

Nestas sociedades o igualitarismo não é concebido "perante a lei". O igualitarismo ocorre,

por mais paradoxal que possa parecer, no desprezo à concepção de desigualdade. Sendo

a "desigualdade" um fato tradicionalmente aceito, não há a concepção moderna de

desigualdade (tomada como injustiça). Na medida em que todos aceitam-na como fato

natural, ninguém se importa com ela : "Um homem não 'vale' nem mais, nem menos que

um outro" (Clastres, 1 982, p.1 1 6) .

Clastres lembra que Étienne d e La Boétie denomina "malencontro" à experiência humana

que juntou a vontade de dominar com a propensão a obedecer e reificar tal poderio.

"Malencontro" é a experiência que semeou o binômio Estado-cidadãos. e que, assim.

permitiu a fuga do domínio político das entranhas do corpo social, arrastando, no mesmo

processo, o gozo da liberdade como nada mais do que expressão do ser natural da

humanidade. Ele lembra que a partir do momento em que a relação de poder se reifica na

figura do Estado, o trajeto inverso parece impossível de se concretizar : "parece que há aí

um ponto que. uma vez ultrapassado, não permite volta, e que uma tal passagem se faz

apenas num sentido : do não-Estado para o Estado"(p. 1 1 9) . Neste contexto, diversas formas

podem ser assumidas pelas "sociedades de Estado", todas diferentes entre si: mas, em

conjunto, fundamentalmente opostas às "sociedade sem Estado", ou, como prefere

Clastres, "sociedades contra o Estado".

Há um constraste nítido entre as duas concepções culturais: em uma, o ser humano como

indivíduo singular, livre para escolher e submetido apenas às regras igualitárias elaboradas

na instãncia do político -o Estado todo poderoso perante o qual todos são iguais. Na outra o

ser humano como parte da totalidade holista. preso a uma hierarquia tida como "natural"

que despreza o significado da desigualdade, na medida em que não há espaço

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desvinculado para o político. Os seres humanos são todos importantes, enquanto

complementares, a vida não é concebida sem qualquer um deles, o poder encontra-se

inserido, solubilizado pelo corpo social.

Este contraste pode ser vislumbrado no mito de Romeu e Julieta, que Viveiros de Castro &

Araújo ( 1 977) criativamente destrincham como um possível mito de origem do Estado e do

individualismo:

Romeu e Juliefa pode ser interpretado como um mito que narra, paralelamente à origem do amor, a origem do Estado( . . . ) Romeu e Julieta se comportam como dois indivíduos que não reconhecem lealdade para com seus grupos, e que, aliás, só respeitam a autoridade do príncipe ( ... ) A partir de Romeu e Julieta, o que temos são indivíduos, e o Estado (p.1 62)

Torres ( 1 989) propõe que a conceituação rígida, ideal desta dimensão nitidamente política

que a figura do Estado Moderno assume depende de três fatores básicos:

1 . a noção de soberania , com a construção da ordem e espaço públicos. A idéia de que

um poder soberano, ao erguer-se acima e contra o particularismos dos interesses privados

pode unir as partes e ocupar-se do bem comum. "para Hobbes como para Bodin, a

existência da comunidade depende da instituição de um poder vertical que, sobreposto e

abstraído da interação e do confronto entre os particulares, crie impositivamente uma

ordem pública universal e compulsoriamente reconhecida" (p.52)

2. a despersonalização do poder, com desvinculação ciara e precisa do poder político da

figura do governante e da administração pública da figura de seus titulares. No Estado

moderno há separação rígida e completa dos instrumentos necessários ao exercício de

funções estatais do patrimõnio de seus titulares, um efetivo destrincamento da pessoa do

"rei" (presidente) da função "real" (presidencial).

3. a despafrimonialização do poder , "caracterizada, no plano jurídico, por uma nítida

separação entre o direito público e o direito privado; no plano administrativo pela

constituição de uma burocracia racional; no plano militar, pela formação de um exército

permanente, estavelmente hierarquizado e sustentado por fundos públicos; e, enfim, no

plano financeiro por uma demarcação ciara entre recursos e bens estatais e rendas e

patrimõnio privados dos governantes e funcionários" (p.54)

Conforme Faoro ( 1 976, p. 734) :

... o individuo de súdito passa a cidadão, com a correspondente mudança de converter-se o Estado, de senhor a servidor, guarda da autonomia do homem livre. A liberdade pessoal, que compreende o poder de dispor da propriedade, de comerciar e produzir, de contratar e contestar, assume o primeiro papel. dogma de direito natural ou da soberania popular, reduzindo o aparelhamento estatal a um mecanismo de garantia do indivíduo. Somente a lei, como expressão da vontade geral institucionalizado, limitado o Estado a interferências estritamente previstas e mensuráveis na esfera individual. legitima as relações entre os dois setores (públiCO e privada), agora rigidamente separados"

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Velho ( 1 98 1 . p. 1 25) acrescenta uma condição simbólica para a dita modernidade: a noção

individual do próprio Estado Nacional e a valorização de um patrimônio comum dentro de

suas fronteiras em oposição a patrimônios de outros Estados. O aparecimento deste Estado

Moderno é associado ao desenvolvimento da burguesia, ao fortalecimento do

nacionalismo.

Esta consciência da individualidade avassaladora e da instãncia Estatal. superior.

responsável por perpetuar a "igualdade perante a lei" sem intermediaçôes pessoais está, a

nível do simbólico, relacionada à constelação de valores protestantes. Com eles, houve o

rompimento de uma concepção coletivista de comunidade, onde as relaçôes eram mais

básicas que os indivíduos nela envolvidos. O Ser Humano vê-se como solitário diante dos

outros homens e de Deus, tendo que ser inteiramente responsável por sua 'salvação' : "Não

há mais confissão. nem compadrio, nem purgatório, nem indulgências, rezas ou missas que

os outros possam realizar por sua melhoria moral. Em outras palavras, não há nenhuma

mediação realizada através das relaçôes pessoais, tronando-se diretas as falas dos homens

com Deus!" (Ludwig Feuerbach, citado por DaMatta, 1 994, 1 66). O protestantismo serve,

também, como nódulo de ligação entre produtivismo, Estado e individualismo.

O protestantismo, em sua forma puritana (e algumas de suas recaidas no catolicismo pietista) , vai dar ao Ocidente um novo impulso. O individualismo levado ao extremo suscita uma moral radicalmente profana e econômica: o utilitarismo. Simultaneamente, o universalismo dessa concepção se arma de um conteúdo positivo, cuja força subversiva ainda não se esgotou: a Proclamação dos Direitos do Homem. O enriquecimento inelutável. gerado pela prática de uma ascese pessoal que valoriza o esforço, o cálculo. e busca ansiosamente os sinais da eleição divina na realização terrena só poderiam provocar a rápida secularização dessa religião, aliás dogmática e sectária (Latouche, 1 994, p.38).

Desta forma, relembrando a intimidade entre historicismo e produtivismo, retoma-se, com

Rocha ( 1 995) , a teia articulada de simbolismos que guia este raciocínio .

. . . o indivíduo ocidental e o Estado ocidental são estreitamente vinculados e os três domínios - produtivismo incluído - estão entrelaçados e solidários. Dois deles - Estado e indivíduo - apresentam uma história de constituição mais antiga e lenta. No entanto, acabam por encontrar destino pleno na modernidade exatamente pelo reforço da entrada em cena do domínio econômico (p. 1 30) .

Descrito este panorama, novamente pergunta-se: como se reproduzem no Brasil as

categorias "individualismo" e "Estado Moderno". Será possível fortalecer a hipótese de

DaMatta ( 1 993) segundo o Brasil vivencia em um nível particular o "desencaixe' dos redutos

de vida social proposto por Polany ( 1 980) ? Será que o arranjo Estado-indivíduo, no Brasil.

permite uma fórmula de navegação social que não é nem predominantemente moderna,

nem tipicamente tradicional, diferindo daquela das sociedades que sofreram a Revolução

Industrial e individualista ? Será que, ao rearticular estes dois eixos em sua teia de

significados. a cultura brasileira mantém viva, perceptível. sua característica ambígua,

relacional. adversa à "hegemonias éticas", anti-escolha e, por isso, multi-codificadora, pluri-

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possibilitadora, em termos simbólicos ?

Barbosa ( 1 992) propõe que diversos modelos distintos possam atualizar o "individuo" como

valor básico do sistema social e o Estado como instãncia de poder. Assim, no Brasil, o

processo histórico pode ter cristalizado de forma idiossincrática o conjunto de valores que

desemboca nos conceitos de individualidade e igualdade.

É necessário lembrar, inicialmente, que nação e sociedade são duas formas de coletividade

nem sempre coincidentes (DaMatta, 1 993). O conceito de nação liga-se à idéia de Estado.

de espaço físico, território nacional. Sociedade diz respeito às tradições, à cultura. Vários

estudiosos concordam que o Brasil foi uma nação antes de possuir uma sociedade. O Estado

Português englobava sua colõnia amarrando-a com sua formalização excessiva. Uma

ideologia oficial baseada em inúmeras normas e leis, regras elaboradas para efeito de

controle com o implícito intuito de refazer aqui a realidade hierarquizada-tradicional­

centralizadora metropolitana. Quando se fala sobre a ideologia individualista, costumo-se

tomar por base o universo social americano. A oposição é nítida pois nos Estados Unidos

houve sociedade antes da concepção da nação. A nação foi constituída, não só por

escolha política dos diversos estados, mas também em plena adesão à ética puritana,

liberal, individualista. Por outro lado,

. . . no caso de Portugal, o desenvolvimento da estrutura burocrática e de leis universais caminhou numa direção radicalmente diferente daquela da França, Alemanha e Inglaterra. Aqui. o propósito das leis universais não teria sido a liberação da atividade econõmica ou política, mas a justiça, vista como uma capacidade corretiva e compensatória do Estado( ... ) essas leis gerais vieram sempre de cima para baixo. não tendo sido o resultado de lutas locais (DaMatta, 1 994, p.96)

Este contraste é revelador de diferenças culturais. Enquanto a nação norte-americana pode

ser considerada o estereótipo individualista-liberal-burguês-igualitário, o Brasil encena sua

ambiguidade, sua oscilação entre casa-rua-'outro mundo'. Numa esfera social temos a

noção moderna-burguesa do indivíduo como centro do sistema legal, equivalente aos

demais perante a lei: noutra esfera temos esse sujeito normativo das instituições substituído

pelo sujeito normativo das situações, a "pessoa" (Barbosa, 1 992) .

Neste modelo, o sujeito pode se descolar da base normativa oficial e se refugiar na

totalidade social hierarquizada. A igualdade de toda a humanidade perante a Deus

encompassa mais os membros da sociedade que a igualdade juridicamente definida.

Caminha-se numa estrada social de fuga do material concreto, em direção à subjetiva

equivalência moral.

Barbosa ( 1 992) acredita ser este movimento social uma resposta bem-sucedida da

sociedade brasileira à superposição de todo o aparato legal igualitário e individualista a

uma estrutura cultural holista, coletivista, hierarquizante, proveniente de Portugal. Atinge-se o

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meio termo oscilante, sui generis , entre duas concepções polares. Uma estrutura sem a

unicidade da ética "tradicional", nem da ética "moderna". Uma montagem de éticas

múltiplas, uma sociedade "semi-tradicional"(DaMatta, 1 990), onde nenhuma ideologia

engloba nem compete com a outra. Todas convivem complementarmente, compensando­

se. É neste ambiente formado de uma mistura ética que decorre a vida social brasileira na

sua peculiar e permanente tensão entre as categorias sociológicas "pessoa" e "indivíduo".

Vale lembrar que "pessoa" e indivíduo" são designações teóricas para duas entidades

sociológicas extremas, distintas e opostas. O "indivíduo" modela o membro da sociedade

individualista. É o ser social autõnomo, sujeito a normas universais, propenso a escolhas

pessoais exercidas de dentro para fora. Valorizado segundo sua performance. Uma figura

social sempre em competição com os demais cidadãos, todos, em princípio, possuidores do

mesmo grau de igualdade e liberdade: o indivíduo "faz as regras do mundo onde vive". Hess

(in DaMatta & Hess, 1 995) afirma :

In countries such as the United States, hierarchy is viewed - and to some extent really is - as a product of a competitive system( ... ) Ideally, the competitive system is completely fair for 011 people( ... ) the resulting hierarchical order is " achieved" as a producl of fair competition( . . . ) in an individualistic society identity is rooted in one's own life history and choices. According to this logic, social identity and position are a product of which gome one enters, how hard one works, how talented one is, and how lucky one is. Social interaclion is imagined not as a ordered corporate body but as a great race or competition, with the leaders as the best players. In this sense, people are individuais, linked more by the rules of the game, which are assumed to apply equally to ali (or universally) (p.6)

A "pessoa" é o personagem da sociedade coletivista. Submetido à totalidade, seus passos e

sua classificação sociais dependem da sua relação com o resto da totalidade. Os critérios

de hierarquização são diversos e as imposições sociais predominam sobre as escolhas

individuais da pessoa. A pessoa recebe as regras do mundo onde vive.

É neste contexto que a ambiguidade brasileira reaparece:

O sistema é dual : de um lado existe o conjunto de relações pessoais estruturais, sem as quais ninguém pode existir como ser humano completo; de outro, há um sistema legal. moderno, individualista (ou melhor, fundado no indivíduo) modelado e inspirado na ideologia liberal e burguesa. É esse sistema de leis que submete as massas. Assim, o sistema legal em sociedades com esqueleto hierarquizante, não só amplia a representatividade de amplos setores, mas tende também a sufocar esses setores por meio do jugo impessoal da lei. A consequência disso é ( ... ) uma estrutura dual. que tende a auto-alimentar-se na dialética da lei draconiana e impessoal e do sistema de relações pessoais que permite, por causa disso mesmo, saltar a regra e o decreto. Daí a profunda verdade sociológica do ditado: 'aos inimigos a lei; aos amigos tudo!' ( ... ) pobre de quem tem que se haver diretamente com as leis e instituições impessoais do Estado na sua lógica jurídica que 'não pode parar' e tem razões que o coração deve desconhecer. Nota-se pois que, entre nós, o Estado é poderoso não como um mero instrumento de classe, mas, sobretudo, como uma área dotada de recursos e leis próprias. Um domínio capaz de criar um espaço social fundado no indivíduo, onde as relações estruturais e dominantes do universo da família, do compadrio, da amizade, da patronagem e do parentesco podem

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ser colocadas em risco e, por causa disso, serem reforçadas" (DaMatta, 1 990, p.20)

Enquanto a "pessoa" habita o mundo da "casa", das relações, do personalismo: o

"indivíduo" é o sujeito do mundo da "rua", com suas surpresas e emoções, dúvidas, injustiças

e insegurança:

O espaço público é perigoso e como tudo que o representa é, em principio, negativo, porque expressa um ponto de vista autoritário, impositivo, falho, fundado no descaso e na linguagem da lei que, igualando, subordina e explora. Na constituição da identidade social no Brasil. o isolamento e a individualização somente devem ocorrer quando não existe nenhuma possibilidade de definir alguém socialmente por meio de sua relação com alguma coisa, seja pessoa, instituição ou até mesmo localidade, objeto ou profissão (DaMatta, 1 994, p.65)

Daí a pOlêmica quanto ao conceito de cidadania no Brasil. Este conceito implica a idéia

fundamental de indivíduo - e a ideologia do individualismo -, com as derivadas regras

universais : um sistema de leis que vale para todos em todo e qualquer espaço social.

Ser cidadão, e ser indivíduo, é algo que se aprende: algo demarcado por expectativas de

comportamentos singulares. Essa noção é atualizada de forma peculiar na sociedade

brasileira, onde é crítico o papel desempenhado pelas relações na concepção cultural e na

dinâmica social. Como cidadão eu deveria pertencer a um espaço eminentemente público

e definir o meu ser em termos de um conjunto de direitos e deveres para com uma outra

entidade também universal. chamada 'noção' e concretizada no figura do Estado. São os

indivíduos (= cidadãos) que permitem a formação da autoridade pública estatal pela

representação consentida e livre de seus interesses,

Entretanto, no caso brasileiro, o cidadão está sujeito, não só às leis impessoais e universais,

mas também ao "poder brutal da pOlícia que servem sistematicamente para diferenciá-lo e

explorá-lo impiedosa mente, tornando-o um igual para baixa, numa nítida perversão do

ideário político-liberal" (DaMatta, 1 994, p.79). Por outro lado, certas categorias profissionais,

ou certos setores econõmicos, por exemplo, passaram a ter mais direitos que outras, sendo,

nos termos de DaMatta, um igual para cima.

No Brasil. o que se revela é que a noção de cidadania sofre uma "espécie de desvio, seja

para baixo, seja para cima, que a impede de assumir integralmente seu significado político

universalista e nivelador" (DaMatta, 1 994, p.82, os grifas são meus),

Os dramas cotidianos do "jeitinho" e do "Você sabe com quem está falando ?" operam

justamente como ritos que reelaboram as situações legais, igualitárias, universalistas,

individualistas, focando-as por um ângulo hierárquico, personalista, moral. DaMatta sintetiza

perfeitamente esta questão, reconectando o individualismo com o Estado-moderno quando

elabora sua opinião sobre a tradição política brasileira :

. . . um estado colonial que operava não a partir de agentes privados, mas de instituições e leis que ele mesmo criava como seus instrumentos de progresso, mudança e controle( .. ,) um modo de organização burocrática, no qual o todo

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predomina sempre sobre as partes e a hierarquia é fundamental para a definição do significado do papel das instituições e dos indivíduos. Isso explicaria, certamente, o chamado 'personalismo'; ou ainda 'caudilhismo' brasileiro e latino-americano como uma modalidade de reação às leis do Estado colonizador, em oposição ao individualismo norte-americano (e anglo-saxão), que é criador de leis( . . . ) enquanto o processo histórico brasileiro e da América Latina desenvolveu-se no sentido de ter que abrir um espaço social e político para as manifestações individuais e locais, já que tudo está rigidamente previsto e dominado pelo centralismo político, legal e religioso, o processo histórico norte-americano caminhou no sentido de engendrar leis que possam inventar, estabelecer ou até mesmo salvar totalidades maiores e mais inclusivas que os sistemas locais. No Brasil. o individualismo é criado com esforço, como algo negativo e cantra as leis que definem e emanam da totalidade. Nos Estados Unidos, o individualismo é positivo e o esforço tem sido para criar a unidade ou a union : a totalidade ( 1 994, p.83)

A família patriarcal fornece o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos. Uma lei moral inflexível. superior a todos os cálculos e vontades dos homens, pode regular a boa harmonia do corpo social. e portanto deve ser rigorosamente respeitada e cumprida ( 1 984, p.54)

Somos doutores em propor projetos racionais e modernos no âmbito do poder executivo e do congresso nacional para logo descobrir como estas propostas são permanentemente minadas por práticas clientelísticas e pela corrupção como dado estrutural. É como se o Estado-nação moderno, individualista e impessoal. desconhecesse a sociedade personalista, relacional e carismática. Melhor dizendo, é como se o Estado-nação não tivesse qualquer sintonia com as práticas sociais vigentes na sociedade e na cultura ( . . . ) se a nação exige aquela elegante prática weberíana em que a racionalidade dos interesses burocrátícos derrota à outrance as paixões motivadas pelos laços tradicionais que permeiam o sistema de relações pessoais ( . . . ) a sociedade - ao contrário - elege a amizade, a patronagem, o compadrio e os elos de família nascidos na casa como os critérios que devem guiar a distribuição dos recursos públicos. De tal modo que, quanto mais se discute a adoção de leis universais que finalmente irão valer para todos, mais se acentuam as relações pessoais. É minha tese que esse círculo vicioso constituido por teorias modernas (de cunho universalizante e impessoal) com práticas tradicionais (de cunho particularista e pessoal) caracterizaria a dinâmica de sociedades como a brasileira. Sociedades em que a nação moderna não foi constituída por revoluções sociais, mas por movimentos de independência que, embora com um ideário social avançado e transformador, eram elitistas e de cunho eminentemente político, tendo uma correspondência apenas superficial com as mudanças sociais que deram origem às chamadas 'revoluções' do mundo ocidental( ... ) somos mestres em experimentar com legislações avançadas (quando não francamente utópicas) que, partindo da cabeça dos juristas para o corpo social concreto, contemplam direitos que têm vigência na naçâo, mas estão notavelmente ausentes das práticas sociais( . . . ) Em vez de termos, portanto, a esperada disjunção entre práticas (abertas à mudança) e teorias (que desejam manter o status quo) - que conduziria ao conflito e a uma eventual mudança dos paradigmas - descobrimos, em seu lugar, uma perturbadora complementaridade entre práticas e teorias( ... ) quanto mais autoritários ficamos, mais sentimos necessidade de democracia. Mesmo agora, quando gozamos de saudável liberdade, ainda temos os que dizem que nosso principal problema é o de 'ordem' e ' autoridade' " (DaMatta, 1 993, p.94).

Buarque de Holanda ( 1 9 79) diz que, no Brasil. o elemento unificador foi sempre representado

pelos governos : "predominou, incessantemente, o tipo de organização política

artificialmente mantida por uma força exterior" (p.9). Coerentemente, ele lembra que isto

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contribui para que "a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens são-lhes

igualmente peculiares( ... ) não existe a seu ver, outra sorte de disciplina perfeitamente

concebível, além da que se funde na excessiva centralização do poder e na

obediência"(p. l l ) . A cooperação com base em Objetivos comuns, concretizada em

associações voluntárias, criadas por escolha e vontade dos membros não prevalece frente

à imposição relacional por associações socialmente determinadas e, portanto,

inquestionáveis. Aquelas redes de prestância e favores, teias que se elaboram por imposição

social, longe das escolhas e vontades individuais. Barbosa ( 1 992, p.36) acrescenta :

Aqui, procura-se prever todas as situações possíveis. Regula-se tudo e todos, exceto os direitos do Estado sobre o indivíduo-cidadão. No Brasil, o Estado se faz presente a cada etapa de qualquer procedimento burocrático. Dessa feita, creia-se uma situação paradoxal, para uma sociedade com setores a altamente modernizados e individualistas. Nela, o Estado deveria atuar apenas como mediador dos conflitos de interesse, mas ele se torna a encarnação dos valores hierárquicos e holistas, separando-se inteiramente da sociedade. O Estado desconfia de seus cidadãos e esses do Estado. O primeiro, através do sistema burocrático, checa e recheca cada afirmação de seus usuários; esses vêem-se mergulhados numa rede de exigências, muitas vezes incompatíveis entre si.

Esta é a situação do Estado e do individualismo no Brasil : uma ambiguidade marcada pelo

entrelaçamento e complementaridade de valores modernos e tradicionais, de

impessoalidades com paternalismos e personalismos. Velho ( 1 98 1 ) mostra um efeito vicioso e

ciclico, quando, re-misturando causa-e-efeito, diz:

O capitalismo no Brasil desenvolve-se de forma bem distinta ( ... ) Por um lado a estabilidade da hierarquia enquanto valor e, por outro, a ação do Estado enquanto ator central estabelecem limites nítidos para as ideologias individualistas como o liberalismo ( . . . ) embora não seja exclusivo, o modelo hierarquizante atua de forma decisiva na sociedade brasileira. Somando-se a isso a onipresença do Estado, encontramos os limites do indivíduo enquanto sujeito moral e político. Essas são algumas das razões para a fragilidade da noção de cidadania no nosso país. Embora na lei tenhamos , de um modo geral, definidos direitos e liberdades extensivos a todos os membros da sociedade brasileira, na prática temos cidadãos de primeira, de segunda e de terceira classes, e mesmo não-cidadãos, isto é, indivíduos sem voz , sem espaço e sem nenhum respaldo real nas instituições vigentes( ... ) A ambiguidade hierarquia-individualismo e o autoritarismo do Estado combinam-se para impedir o florescimento da noção de cidadão. Na prática, internalizamos valores hierarquizantes mesmo enquanto membros de setores ditos mais progressistas e liberais. Na prática, ainda remetemos ao Estado o controle de nossas vidas e aceitamos sua tutela e eventuais arbitrariedades. A dificuldade consiste na inexistência de uma ordem moral realmente compartilhada pela sociedade nos seus diferentes segmentos (p.1 46- 1 48).

Faoro ( 1 975) busca as origens desta peculiaridade na ex-metrópole :

O capitalismo. dirigido pelo Estado, impedindo a autonomia da empresa, ganhará substância, anulando a esfera das liberdades públicas, fundadas sobre as liberdades econõmicas. de livre contrato, livre concorrência, livre profissão, opostas, todas, aos monopólios e concessões reais( ... ) Quando o capitalismo brotar ( . . . ) não encontrará. no patrimonialismo, as condições propícias de desenvolvimento. ( ... ) A atividade industrial, quando emerge, decorre de estímulos, favores, privilégios, sem que a empresa individual baseada racionalmente no cálculo, incólume às

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intervenções governamentais, ganhe incremento autônomo ( . . . ) O Estado se confunde com o empresário( .. . ) Estado fonte de todos os milagres e pai de todas as desgraças (p.6S)

Lamounier & Souza (em Lamounier, 1 990) corroboram, quando dizem que a política brasileira

tem sido descrita de várias formas, mas sua imagem essencial parece ser a de uma ordem

'patrimonial ' .

É um Estado capaz de intervir preventivamente em conflitos sociais para evitar o surgimento de novas forças organizadas que possam desafiar seu poder ou ameaçar sua organização ( . . . ) a intervenção preventiva tem dado lugar na prática não só à repressão. mas principalmente à internalização do conflito, deixando este de ocorrer 'lá fora ' , numa assim dita arena privada, para de fato tornar-se parte das lutas dentro do setor público. Este processo de internalização torna menos nítida a linha do que divisória entre o que é público e o que é privado, desta forma reforçando o caráter patrimonial do Estado ( . . . ) grupos que de outra maneira seriam eliminados pela industrialização e pela modernização, adquirem direito a uma sobrevida. na medida que o Estado transfere os custos da sua sobrevivência à sociedade como um todo. Finalmente, a relativa estabilidade dessa estrutura política ante as agudas desigualdades sociais do país deriva em grande parte da inércia da própria desigualdade. isto é, do fato de que os pobres não têm acesso aos recursos políticos organizados. e procuram escapar da sua condição de pobreza na maioria das vezes através da mobilidade individual( . . . ) uma cultura pOlítica voltada para a prevenção do conflito( ... ) esforço deliberado das elites obcecadas pela unidade territorial ou coexistência de estrutura social modema e tradicional. esta sustentada a nível de subsistência com segurança pelo Estado patrimonial (p.83)

DaMatla ( 1 9860) mostra como o cerimonial de posse presidencial é um ritual revelador

desta mistura de nação e pessoa, de leis e privilégios relacionais :

O que dizer do conteúdo profundo deste nome: posse ? Sem dúvida a denotação de propriedade e controle. Nos Estados Unidos fala-se em inaugurafion (inauguração). o que revela um sentido de história, de um novo tempo. No Brasil. parece que investimos mais na idéia de domínio e de conjunção íntima da pessoa com o cargo que irá efetivamente possuir. A palavra me parece reveladora de uma concepção de poder altamente centralizado e concentrado. Um poder que é transmitido integralmente para uma pessoa e seu grupo ( 1 9860, p.23)

No universo social brasileiro permanentemente relativista em termos de valores, que não têm

posição fixa num eixo único ideológico central. o Estado é o principal dominio responsável

pela totalização do sistema (DaMatla, 1 990, p . 1 S7) . Talvez por isso, as datas mais importantes

da história oficial brasileira - independência em 1 822, abolição da escravatura em 1 888.

prociamação da república em 1 889, golpe de Estado em 1 930 e em 1 964 - sempre são

colocadas como eventos impostos de cima para baixo que preveniram que algo pior ou

mais radical acontecesse (Velho, 1 976, p. 1 2S) .

Este tipo de Estado paternalista, hierarquizante. personalista, e totalizador se reflete no modo

de pensar dentro das empresas. Pereira ( 1 979), num estudo sobre uma indústria têxtil diz :

O operário elabora( .. . ) uma classificação que abrange as relações de comando e subordinação hierárquica( . . . ) os 'operários' , 'os que são mandados', de um lado. e 'os homens', ' todos os que mandam', desde o chefe da seção até os patrões, de

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outro( . . . ) De que maneira se manifesta o poder dos 'homens'? Através da capacidade de impor ordens( . . . ) de punir( . . . ) de conceder favores( ... ) quando (os chefes) punem ou tratam com rigor excessivo aos operários, esses atos aparecem aos trabalhadores como exorbitãncia de seu poder, feita sem o conhecimento ou consentimento do patrão. Isto porque seria privilégio do patrão um poder de repressão direta( . . . ) 'o patrão é o dono, se ele não quiser que eu fique mais na caso de/e, eu tenho que sair'( . . . ) a relação paternalista que os proprietários mantém com os trabalhadores faz com que, aos olhos destes, o patrão apareça como mais 'justo' e mais 'humano' (p.75)

A tendência do operário a demarcar uma distãncia social nítida entre 'homens' e 'companheiros' ( . . . ) (mostra) as relações fundamentais sobre as quais se baseia a dinãmica da sociedade( ... ) tendem a ser vistas, de um modo geral, como se travando entre dois mundos opostos: o mundo do 'nós' e o mundo do 'eles' (p.1 75)

o estudo de Rodrigues ( 1 970) acrescenta:

' " (a empresa) é encarada deste mesmo ãngulo: dos benefícios e vantagens que oferece, os quais, por sua vez, são vistos como um dado, como algo que lhes cabe aceitar ou rejeitar mas não modificar. A empresa é algo exterior e, malgrado os esforços da direção, não é aceito como 'nós ' , mas como 'eles". Os operários esperam da empresa como esperam do sindicato, do governo e dos políticos. O conteúdo e o grau da expectativa variam mas a atitude é a mesma, traduzindo, no fundo, um sentimento de impotência, de fatalismo, e de resignação (p.53)

Se o controle estatal dos sindicatos foi repudiado pelos setores mais qualificados e organizados, de tradição anarco-sindicalista, socialista, ou comunista mais recentemente, a massa de trabalhadores semiqualificados ou braçais aceitou a intervenção e a proteção que vinham de cima (p.88)

Trata-se de uma percepção extremamente 'pessoalizada ', pré-industrial , dos mecanismos da vida social. O governo e os políticos são encarados como os principais responsáveiS pelos aspectos positivos ou negativos (principalmente estes últimos) da 'situação dos trabalhadores'. A percepção das medidas e ações dos ocupantes dos altos cargos e funções públicas está impregnada de elementos éticos e morais. O 'progresso' do pais, a melhoria da sorte dos trabalhadores, dependeriam basicamente de 'bons governantes', de 'políticos honestos' ( . . . ) A culpa pelo baixo nível de consumo dos trabalhadores não é atribuída aos patrões e empregadores, mas ao governo e aos políticos{p.1 37)

Há certa preferência por um governo forte que se reflete no apoiO à ditadura{ ... ) os valores do regime democrático de representação popular, segundo modelo que conhecemos no Ocidente, tem medíocre significado para as camadas populares no Brasil (p.1 4 1 - 1 44)

Três colocações de DaMatla sintetizam como individualismo e Estado-Moderno se atualizam

no Brasil :

Há uma forma de cidadania universalista, construída a partir dos papéis modernos que se ligam à operação de uma burocracia e de um mercado; e também outras formas de filiação à sociedade brasileira - outras formas de cidadania - que se constróem através de espaços tipicamente rei acionais, dados a partir do espaço da 'casa ' . Em outros termos, há uma nação brasileira que opera fundada nos seus cidadãos e uma sociedade brasileira que funciona calcada nas mediações tradicionais. A revolução ocidental moderna eliminou essas estruturas de segmentação, mas elas continuam operando social e politicamente no caso brasileiro, sendo também parte de seu sistema social{ . . . ) a lógica é a das lealdades relacionais que não têm nenhum compromisso legal ou ideológico ( 1 994, p.93)

No Brasil, o indivíduo isolado e sem relações, a entidade política indivisa, é

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considerado como altamente negativo, revelando apenas a solidão de alguém que, sem ter vínculos, é um ser humano marginal em relação aos outros membros da comunidade( . . . ) a comunidade norte-americana seria homogênea, igualitária, individualista e exclusiva: no Brasil, ela seria heterogênea, desigual, relacional e inclusiva. Num caso o que conta é o indivíduo e o cidadão; noutro o que vale é a relação( . . . ) (no Brasil), se o indivíduo não tem nenhuma ligação com pessoa ou instituição de prestígio na sociedade, é tratado como um inferior ( 1 994, p.84)

Entre nós, o Estado é poderoso não como um mero instrumento de classe, mas, sobretudo, como uma área dotada de recursos e leis próprias. Um domínio capaz de criar um espaço social fundado no individuo, onde as relações estruturais e dominantes do universo da famnia, do compadrio, da amizade, da patronagem e do parentesco podem ser colocadas em risco e, por causa disso, serem reforçadas (DaMalla, 1 990, p. 1 6)

A figura do Estado-Moderno é uma das mais fortes criações ideológicas da "modernidade".

Corno é fácil perceber, a prática distorce a idealização. No caso brasileiro, a congruência

simbólica é marcante. O Estado, por principio elemento do mundo da "rua", demarcador

da ética moderna, é atualizado como sendo o topo de uma hierarquia tradicional. Como

sendo o espaço social onde, quanto maior o esforço de codificação legal e busca da

justiça e igualdade cidadã, maior o revide proveniente das redes de relações. Redes estas

que, se proporcionam aos poderosos uma macro-transformação de indivíduos em pessoas

(sonho de todos os brasileiros) , proporcionam também, complementar e ambiguamente

(como não poderiua deixar de ser) , o papel de Grande Pai. de responsável por toda e

qualquer mudança, de indutor de um utópico bem-estar generalizado, a ser conseguido por

rápidas e não-conflituosas alterações institucionais.

1 49

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Ca.pí-t�o 5

l.VCUNDO DA. QUAX.IDADE TOTAX ..

"Suas mensagens não fazem outra coisa senão dialogar com a

sociedade, existindo articulada ao seu desenho Ideológico. Sua

significação é fruto de sua inscrição na ordem social, mantendo

com ela uma relação de múltiplo e complexo rebatimento. Este

destino - reflexo e espelho da cultura - acontece em um jogo

sistemático de trocas, envolvendo valores, estilos de vida

emoções, heróis, rituais, mitos, representações e o que mais se

queira nela ver impresso e reproduzido. "

EVERARDO ROCHA

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5. 1 - Proposta Teórica

o resultado até agora alcançado foi uma fotografia da "cultura brasileira" . Dentro desta

fotografia, com todas as limitações que uma fotografia possui - cópia imperfeita e

incompleta da realidade -, consegui. entretanto, elaborar alguns conceitos que me serão

úteis no restante deste trabalho.

Foram trabalhados os conceitos de mito, ritual. individualismo. coletivismo, Estado-Moderno

como instãncia legítima do poder, produtivismo, abundância, temporalidades linear, ciclica

e etema, etc. Estes conceitos foram utilizados para mostrar a cultura brasileira como um

sistema de significados inusitado. Um sistema caracterizado pela ampla possibilidade

oscilatória entre diversas éticas opostas e complementares, ativadas contextualmente, sem

predomínio ideológico majoritário - e muito menos absoluto - de nenhuma delas.

Tal situação se resume na palavra ambiguidade. Esta ambiguidade sinergiza com as

características de mediação e de busca da relação para determinar as dimensões

temporais, políticas, humanas ou econõmicas no Brasil. O estudo estruturalista de mitos e

rituais brasileiros confirma que estes elementos estruturais se arrumam num peculiar perfil .

Num feitio próprio pelo qual o individualismo, o Estado, o produtivismo e o historicismo -

"valores ocidentais" - são atualizados por esta sociedade brasileira que DaMalla ( 1 994)

chama de semi-tradicional.

Neste capítulo cinco, estes conceitos antropOlógicos serão novamente utilizados. O que

muda é a sociedade analisada. Estarei seguindo a linha inaugurada por Rocha [ 1 995), de

procurar sociedades do 'outro' dentro da própria sociedade de 'eu ' . Rocha [ 1 995) propõe o

entendimento da Comunicação de Massa através do entendimento dela como sendo uma

sociedade com valores simbólicos próprios e, interessantemente, opostos aos valores da

sociedade ocidental que a cria e perpetua. Esta possibilidade de, criativamente, iluminar

uma sociedade onde, previamente, ela não parecia existir é o ponto de sustentação teórica

da minha dissertação.

Nesta linha, faço perguntas, não mais a respeito da sociedade brasileira, conhecida e

reconhecida - ainda que talvez pouco entendida - nacional e internacionalmente, mas sim

sobre a sociedade da Qualidade Total [QT) . Minhas questões se alocam sobre o mapa

simbólico que determina a cultura do "Mundo da Qualidade Total".

Permeando o mundo que se diz geográfica e economicamente em processo de

globalização, existe uma comunidade específica, um conjunto de ' nativos' particular. Eles

desfrutam de valores próprios, elaboram mitos, praticam rituais. Esta comunidade, que se

localiza no interior do tão propalado business worfd. é a sociedade cuja cultura pretendo

decifrar.

1 5 0

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Nesta linha de raciocínio, esta sociedade da QT vem se defrontando com outras

sociedades. Vem se esbarrando com culturas nacionais e com culturas organizacionais,

naquele jogo sempre complicado que ocorre quando sistemas de valores diferentes se

encontram. Minha proposta é demonstrar que o modo como a sociedade da QT (qualidade

total) e a sociedade brasileira atualizam o mesmo conjunto de valores de maneira diferente.

Já vimos a atualização ambígua que a Sociedade Brasileira faz dos quatro eixos simbólicos

articulados - indivíduo. produção, tempo e Estado/poder.

Vejamos agora a Sociedade da QT. Como o Mundo da QT atualiza os mesmos elementos.

Como será concebido o tempo, o poder, o produção e o indivíduo nesta "cultura da

qualidade total" ?

Este estudo seguirá, majoritariamente, a tradição estruturalista da Antropologia de buscar

significados nas interações dos elementos formadores, de relativizar conceitos, de estudar

mitos e rituais. Com base na minha experiência pessoal, trabalhando dois anos como

engenheiro da qualidade, posso ser considerado um ' nativo' deste Mundo da Qualidade,

olhando e analisando a própria sociedade com olhar relativizador.

Tal situação me permitiu conviver profissional e pessoalmente com diversos outros membros

desta sociedade. Como vantagem, aprendi a linguagem desta Sociedade, e seu modo de

funcionamento : "um conhecimento adequado e prático da língua nativa, por um lado, e a

familiaridade com a organização social e vida tribal. por outro lado, tornam possível a leitura

dos textos em seu significado total"(Malinowsky, 1 984, p. 334).

Contudo, procurei me pOSicionar como o antropólogo que estuda a própria sociedade,

distanciando-me dela o mais possível. e utilizando, sem preconceitos, outras fontes de

conhecimento. Acima de tudo, procurei utilizar o ferramental estruturalista procurando os

detalhes "condensadores de significados".

Para minimizar acusações de exagerada heterodoxia metodológica, realizei uma vasta

pesquisa bibliográfica, em livros e revistas que os membros do Mundo da Qualidade Total

usam para se comunicar. DaMatta ( 1 994), no ensaio "A obra literária como etnografia :

notas sobre as relações entre literatura e antropologia", utiliza romances brasileiros para

articulá-los com valores que ele encontrou na cultura brasileira. Ele diz que "Num certo

sentido o 'Brasil' seria uma resultante complexa de tudo o que é usado explicitamente para

representá-lo" (p.36). É com este espírito que realizo a primeira etnografia-tentativa do

Mundo da Qualidade Total. Os resultados desta pesquisa bibliográfica é que legitimarão

minhas opiniões sobre a hipótese que defendo: a de que o conjunto articulado de valores

poder, individuo, tempo, e producão são concretizados de formas diversas em cada cultura

- a brasileira e a do Mundo da Qualidade Total.

1 5 1

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Deste modo, torna-se imprevisível o desenlace do encontro entre Brasil e Qualidade Total.

Tratar-se-ia de um processo similar ao que ocorre quando duas coletividades diferentes se

defrontam e comparam seus valores. Ao longo do tempo, o processos de assimilação,

aculturação e etnocídio podem ocorrer e algo novo surge, de acordo com o contexto

específico e com os fenõmenos singulares do encontro.

Esta hipótese surgiu quando relativizei as reportagens de uma revisto "técnico" sobre

qualidade, e passei o vislumbrá-Ias como mitos, passíveis de serem interpretados e

analisados. Este é o assunto do próximo item (5.2), cujo conclusão propõe o posicionamento

simbólico do Sociedade do QT sobre os quatro eixos articulados já descritos. A partir do item

5.3, maiores evidências serão fomecidas.

Ressalto, neste momento, as palavras de Geertz ( 1 973), que muito bem representam o

processo intelectual que me desafio e meus objetivos :

O objetivo do antropologia é o a largamento do universo do discurso humano( ... )os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, no verdade, de segundo e terceiro mão"( ... ) Trato-se, portanto de ficções; ficções no sentido de que são 'algo construído', 'algo modelado' ( ... ) A análise cultural é (ou deveria ser) uma advinhação dos significados, uma avaliação das conjeturas, um troçar de conclusões expia notórias (p.28)

Poro concluir, lembro que o objetivo é "tirar grandes conclusões o partir de fotos pequenos,

mos densamente entrelaçados" e que o análise cultural é "intrinsecamente incompleto e, o

que é pior, quanto mais profundo, menos completo. É uma ciência estranho cujas

afirmativos mais marcantes são as que têm a base mais trêmulo" (Geertz, 1 9 73, p.38)

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5.2 - A Sociedade da Qualidade Total : Heróis e Mitos

Escolher um ponto de partida para esta etnografia da Sociedade da Qualidade Total não

foi difícil. Na verdade este ponto de partida foi que deu origem á idéia quanto a como esta

tese seria concebida. Embora jó interessado em estudar as implicações da Cultura Brasileira

sobre as propostas da Qualidade Total, eu não sabia exatamente por onde começar. ou o

que estudar. Simplesmente seguir a tendência natural e descrever casos de sucesso ou

fracasso, sob a ótica da cultura brasileira, não me atraiu. Além disso, pelo que pude sentir, o

acesso a informações reais, principalmente quanto aos fracassos, não seria de fócil

obtenção nas empresas brasileiras.

A decisão quanto ao tipo de discussão que seria levado em frente na estruturação deste

trabalho veio enquanto eu lia artigos sobre a morte de Willian Edwards Deming, considerado

um dos "gurus", um "papa", um "filósofo" da Qualidade Total . Foi este o ponto de partida:

percebi que "existia" uma Sociedade de luto. Um Mundo estava chorando, uma Cultura

estava homenageando um dos seus principais membros, um personagem da sua elite, um

Herói Mítico. Mais ainda, esta sociedade impunha para dentro de cada um dos seus

membros, numa empreitada típica de culturas coletivistas (DaMatta, 1 994), esta tristeza e

este luto.

Naquele instante, eu percebi a existência de uma estrutura mítica no mundo da Qualidade.

O mito envolve um problema (produtividade), um aventureiro e sua viagem (Deming indo

dos Estados Unidos para o Japão), uma aprendizagem e seu desenvolvimento (Deming

desenvolvendo sua teoria a partir do que aprendeu com práticas japonesas) , o retorno do

herói. sua glorificação e, finalmente, sua morte.

Tal situação, pelo seu valor de estranhamento, assumiu, para mim, uma conotação de

"incidente revelador" (Rocha, 1 995). A experiência da perplexidade diante de um

determinado fato social (que gera uma novidade no "arcabouço mental de

conhecimento") pode ser, muitas vezes, um bom ponto de partida para o exercício de

reflexão, capaz de conduzir o pensamento na direção de uma compreensão alternativa.

A partir do destrinchamento deste "mito do mundo da Qualidade Total" é que surgiram

minhas hipóteses. Mito, conforme Lévi-Strauss e Geertz, é uma narrativa repetitiva e

continuamente reelaborada, em "espiral", por uma sociedade que quer, contar histórias de

si própria para ela mesma, buscando resolver seus paradoxos e reificar suas certezas.

Pois a vida de Deming, sua Saga, é uma das narrativas mais repetidas no conjunto de livros

que jó se escreveu sobre Qualidade Total. E é uma narrativa rica em sínteses de macro­

simbolismos da QT. Tratarei. então, esta narrativa como um mito.

1 53

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Uma interessante e atual versão deste mito é encontrada no capítulo sete do livro de Mann

( 1 992, p. 1 08- 1 20) , entitulado "História de uma Vida". O próprio título já é sugestivo em termos

da concepção temporal predominante no Mundo da Qualidade Total, mas isto será

elaborado mais adiante.

Tal mito é apresentado aqui, entrecortado por observações com as quais focalizo as

recorrências reveladoras, aqueles aspectos repetitivos que são, estruturalmente, uma

condensação de significados. Destas observações intermediárias nascerá a minha hipótese

quanto à cultura da Qualidade Total, sintetizada no final deste item.

"Este homem que estava fadado a ter um enorme impacto no desenvolvimento industrial

dos maiores países do Ocidente e do Oriente, nasceu em Sioux City, lowa, no dia 14 de

outubro de 1900( .. .) Seu pai traçou suo genealogia até um certo John Deming, cujo

testamento foi homologado em Hartford Connecticut EUA, em 1621, e cuja família

provavelmente veio do vale do rio Meno, na Alemanha"

Estados Unidos e Alemanha são mencionados; as datas seguem a linearidade histórica

oficial do ocidente; Historicismo e ao Estado. A importância dada aos laços familiares lembra

aspectos de culturas coletivistas.

"Deming, antes de seu casamento, recebeu uma educação um tanto informal. Durante

nossas recentes conversas, Deming relembrou a luta de seu pai e dele mesmo no

começor..) 'Foram dias difíceis. Tínhamos terra mas meu pai não era nenhum fazendeiro. Ele

fazia outros tipos de trabalho(. .. ) Era uma vida dura mas, de qualquer modo, sobrevivemos. '

A primeira casa deles em Powe// era um barraco de papel alcatroado, aproximadamente

do tamanho de um vagão de carga(. . . ) Ele recorda que sua mãe pegava-o e a seu irmão

pelas mãos e oravam por comida( . . .) Todos na família Deming trabalhavam. Edwards

conseguiu um emprego quando tinha doze anos, num lugar que servia refeições( . . .) Por isso

ele ganhava 1,25 dólares por semana, economizando a maior parte. "

Aparecem indicações de valores relacionados a uma concepção produtivista do mundo:

escassez, necessidade de todos os membros da família trabalharem, frugalidade e

poupança.

"Sua mãe, que estudara música em São Francisco, dava aulas de piano e de canto. Alguns

dos alunos não tinham dinheiro para pagar as aulas, mas levavam carne ou qualquer coisa

que a fam/7ia Deming pudesse usar. Powe// tinha uma população de cerca de duzentas

pessoas na época e havia várias centenas de pessoas em fazendas ao redor( . . .) Havia um só

professor e todos compartilhavam uma única sala de aula"

Novas indicações relacionadas ao coletivismo, à importância social das redes de

relacionamento.

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"(. .. ) disse-me Deming : 'você tinha que estudar e trabalhar para conseguir sua instrução. Eles

não baixavam o nível das aulas para a média'( .. . ) ele entrou para a Universidade de

Wyoming( ... ) 'Levando nas mãos a bagagem, cheguei a pé na universidade( ... ) antes de

mais nada tive de ficar de olho num emprego(. . .) Tinha umas economias. Mas pensava em

guardá-Ias. Só para ter certeza, cheguei um ou dois dias adiantado à escola para ser um

dos pnineiros a conseguir serviço(. . . ) A refinaria chegou à cidade bem mais trade (1919 ou

1920), quando eu estava prestes a obter o diploma(. . .) o trabalho não era muito pesado,

mas me lembro de que ficava muito cansado no final da décima sexta hora depois de dois

turnos consecutivos( .. . ) sua Vida concentrava-se em trabalhar, contribuir e aprender"

Trabalhar, contribuir e aprender denotam valores produtivistas e coletivistas.

"Depois de Edwards diplomar-se pela pela Universidade de Wyoming, em 1921, permaneceu

lá por mais um ano, para estudar matemática e ajudar no ensino de engenharia(. . .) Ele

decidiu fazer um curso de Mestrado em Matemática e Física na Universidade do

Colorado( ... ) seguia as aulas no verão e fazia cursos por correspondência durante o ano

letivo(. . .) Na universidade, Edwards conheceu Agnes Belle, uma bonita professora cujos pais

tinham vindo da Escócia. Depois de um ano de namoro eles se casaram(. .. )Perto do final de

1924, Oliver C. Lester, professor de Física( . . . ) sugeriu que Deming fosse para Yale( .. . ) escreveu

em seu favor e, em resposta, veio urna carta, que Deming ainda poSSUi; oferecendo um

curso gratuito e um trabalho de meio-período como instrutor, recebendo mil dólares por

ano(. . .)"

DaMalla ( 1 990) e DaMalla & Hess ( 1 995) apresentam o caráter relacional-hierárquico­

personalista do mundo universitário. Neste escopo, o trecho indica valores coletivistas na

formação de Deming. Aparece uma menção concreta de dinheiro ganho por tempo

trabalhado, tempo que se troca por moeda: produtivismo e histoncismo.

"Muitas pessoas levaram várias idéias novas para Yale, na época(. . . ) Muitas vezes (Deming)

expressou seus sentimentos sobre o valor de gastar o tempo ouvindo grandes eruditos(. . .) 'a

pesquisa era fascinante para mim e eu trabalhava com pessoas maravilhosas(. . .) não havia

escritórios, só escrivaninhas(. . . ) ' n

o fato de que "todos trabalhavam juntos" aparece positivamente valorizado: mais uma

indicação coletivista.

"Deming começou sua carreira no Governo como físico-matemático(. . .) em 1928, e

permaneceu neste posto até 1939( .. . ) Foi durante essa época, em 1930, e pouco depois que

os Deming adotaram uma filha, Dorothy, que Agnes Deming faleceu. A perda fez com que

ele se dedicasse ainda mais ao trabalho(. . . ) Em certo momento de 1927 houve necessidade

de um pesquisador ajudar Deming no laboratório de Pesquisas( .. . ) uma jovem chamada Lola

Shupe foi escolhida( ... ) Em 1931, Lola conseguiu seu Mestrado em Matemática e, em 1932,

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casou-se com Deming(. . .) Ela se aposentou do serviço para o Governo em 1967. De 1933 a

1954, Deming foi diretor do Departamento de Matemática e Estatística da Escola de Pós­

Graduação do USDA(. . .) 'dei cursos sobre inferência estatística e mínimos quadrados'(. .. } Em

1936, Deming foi a Londres a fim de estudar Teoda de Estatística com Ronald Aylmer( .. . }

Deming esforçou-se em garantir que as conferências de Neyman em abdl de 1937

contassem com a participação de estatístcos do Governo amedcano. "

A figura do Estado e do tempo oficial aparecem novamente.

"Consequentemente, elas (as conferências) exerceram um tremendo impacto( ... } O uso de

seu método de intervalos de segurança e apresentações detalhadas de cálculos de erro

nas publicações decorrentes marcou um importante passo adiante na prática estatística do

Governo amedcano( .. .} a amostragem havia chegado para ficar nos programas

governamentais amedcanos. "

A estatística, o planejamento, o cálculo, têm articulações profundas com um mundo

produtivista e historicista que está sempre mudando e andando para a frente e que, por isso

mesmo, se quer controlar e prever.

"Depois de sair do Departamento do Censo em 1946, Deming abdu seu escritóno em

Washington, D. C. como consultor em Estudos Estatísticos. E embarcou na cruzada que levou

ao renascimento da indústria no Japão, à proeminência mundial e, finalmente, ao

reconhecimento em seu próprio país(. . . }"

A estatística, interligada ao "renascimento da indústria no Japão", é novamente

apresentada com uma conotação extremamente positiva, como uma ode à produção, ao

produtivismo. Já o dilema de Deming entre Japão e Estados Unidos, que, conforme veremos

adiante, é um dos traços mais recorrentes nas versões míticas, reifica a existência dos

Estados-Nação.

"O fato é que ele ainda está ensinando na Univemdade de Nova Iorque toda segunda-feira

à tarde durante o ano acadêmico e didge também os trabalhos de estudantes do curso de

pós-graduação. Mas isso pertaz apenas uma pequena fração de suas atividades. Com uma

Idade em que se poderia esperar que passasse grande parte do tempo repousando sobre

seus merecidos louros e refletindo sobre a nova idade econômica que resultou de sua

introvisão e sua visão, Deming está na luta( .. . } com um programa sobrecarregado que só

alguns indivíduos robustos podedam aguentar. Entre as frequentes visitas a seus clientes

importantes e não tão frequentes visitas aos demais, ele encontra tempo para, dentro de um

ano e sem ajuda, cerca de 23 seminádos de quatro dias de duração sobre 'Métodos para o

gerenciamento da produtividade e da qualidade '( .. . }"

Novamente, idolatra-se o trabalho, o produtivismo.

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"Deming está imbuído de um zelo missionário pela comunicação da mensagem em que ele

e um exército de discípulos acreditam tão fortemente"

A narrrativa mítica termina com uma indicação sUbliminar de que existe uma teia de

relações pessoais que se funde na figura de Deming: mais conotações coletivistas.

Esta não é a única evidência mítica que permite uma, ainda que superficial, interpretação

estruturalista. A revista mensal da American Society for Quality Control (ASQC) , "Quality

Progress", publicou em março de 1 994, uma edição de homenagem à W.E. Deming. Um dos

artigos denominado "Gone But Never Forgollen" (Strallon, 1 994, p.25-28) , reifica o mito

acima interpretado. Em períodos especiais - morte, festividades - a sociedade pode dar

vazão a aspectos cotidianamente escondidos e não prevalescentes da sua estrutura

simbólica (DaMalla, 1 990; Barbosa, 1 992; Rocha, 1 995) . Mais adiante, discutiremos que,

embora o historicismo seja o foco predominante da temporalidade do Mundo da QT, ele

não é o único. Em todas as sociedades existem espaços e momentos que marcam as

possibilidades semióticas desprezadas por esta sociedade. A morte de Deming foi um destes

"momentos fora da rotina" para a Sociedade da QT. Por isso mesmo, a abundância de

significados condensados na "eternização" do herói. Vejamos :

"WEdwards Deming died december 20, 1993, ai his Washington, DC home. He was 93.

Deming mighf become lhe besl-remembered figure of lhe 2(Jh century associaled wilh

quality, even though he thought the chances of that were remote(. .. ) Deming once asked

how he would like to be remembered in the United States " 'l probably won't even be

remembered( ... ) well, maybe as someone who spent his life trying to keep America from

commiting suiCide '( . . . )"

"Século vinte" retoma a historicidade oficial. Novamente a preocupação com o país de

origem do Herói reifica a figura do Estado. O artigo continua como uma outra versão do

mito quase idêntica do mito acima analisado. As indicações simbólicas, como não poderia

deixar de ser, se mantém :

"Bom Wlllian Edwards Deming on October 14, 1900, in Sioux City, Deming was cal/ed Ed by his

famlly to distinguish him from his father( .. .) In 1908, the Demings moved to a 40-acre

homestead near Powel/( ... ) The family struggled to make ends meet( .. .) When he was old

enough to work, Ed helped supplement the family income( ... ) Wil/ian Edwards Deming

eamed a bachelor's degree in engineering from the University of Wyoming in 1921, went on

to receive a master's degree in mathematics and physics from the Universify of Colorado in

1925, and eamed a doctorate in physics from Yale Universtiy in 192B. He worked throughout

his col/ege days( . . .) During the summers of 1925 and 1926, he worked for the Westem Elecfric

Co. Hawthome planbt in Chicago. If was there that Deming leamed of Walfer A. Shewhart

and his efforts to standardize the production of telephones. The two met in 1927 and spent

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much fime fogefher o ver fhe following decodes. Alfhough Wesfern Elecfric offered Deming a

job when he complefed his docforafe work, he insfead chose the US Departmenf of

Agriculture in Washington DC(. .. ) Deming's professional life thriving even though his personal

life was on a roller coaster. He had mafTÍed Agnes Bell in 1922 and together they survived the

difficult college years. But in 1930, she died(. . . ) after they had adopted a daughter; Dorothy.

Deming made use of vanous private homes to help raise the infant (. . .) In 1938 Deming had

moved to the US Bureau of the Census and, on the eve of the war; helped develop what

might be the first application of statistical quality control procedures to a nonmanufacturing

problem: the 1940 US census(. . . ) W.Allen Wallis sought Deming's help to get appropriate

statistical techniques into the hands of the military and private contractors. Deming's answer;

which was implemented with great success, was to develop a series of courses to teach

statistical theory to engineers and others involved in wartime productionf ... )

American's manufacturing might - gUlded by these courses - helped win Worid War li. It

seemed only logical that quality theory, driven by the thousands of engineers Irained during

Worid War lI- should form the core of high-qualify work processes for consumer products after

the war. It didn'l happenf ... ) Only engineers, not executives, had aftended the wartime

courses. Deming would see to it that this mistake was not repeated when similar courses were

developed in Japanf . . . ) Deming was given countless honors during his ilfetime. In 1987,

President Reagan awarded him the National Medal of Tchnologyf ... ) He was introduced to

the Automotive Hall of Fame in 1991. ASQC recognized him wilh lhe Shewhart Medal in 1956

and named him an Honorary Member in 1970. In addlfion to his doclorale from Yale

Universily, he held honorary doctorate degrees from 15 universities. Which honor did he

treasure most ? f .. .) The Second Order os the Sacred Treasure, which was bestowed on him by

Japanese Emperor Hirohito in 1960. It was the second great honor Ihal he received from

Japan. The firsl was lhe decision by lhe Union of Japanese Scientisfs and Engineers fJUSE) to

nome ils annual quality award - lhe Deming Prize - afler him(. . .) Qualify was cast aside when

Worid War Ii ended. Will Deming ond wgaf he represenled be cast oside now Ihal he hos

died ? It seems unlike(. .. ) It becomes increasingly difficult, especiolly in the United Stotes, to

stop the flow of high-quolity reosonobly priced products(. . .) The Jopanese most certainly will

continue to honor individuols and organizotions with its annual Deming Prize. A country with a

history thot is millenio older thon the United Stotes doesn't forget such lessons as those tought

byDeming)"

Para concluir, Stratton ( 1 994), o escritor do mito, faz uma ode à tecnologia. É graças à ela

que se obtém a manutenção do espírito coletivista em torno da imagem de Deming, espírito

este que sustenta a Sociedade da QT :

"In oddition to his written words countless hours of Deming on videolape exislf.·.) expect to

see o digitized Deming on computer screens in lhe near future(. . . ) No, Deming won 't be

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forgollen. In many ways, given lhe slrong supporf from people and lechnology, he won'l

real/y be gone. "

Vale mencionar aqui que a saga mítica de outros "gurus" tais como J.M. Juran, ou P.B.

Crosby poderiam ter sido utilizadas. Elas apresentam elementos gramaticais e reforçadores

das dimensões acima. Garvin ( 1 992) mostra de forma bem resumida estes "mitos paralelos",

falando sobre os outros dois "heróis".

Também é interessante destacar que o "Mundo da QT" não está livre de conflitos humanos.

Em 1 99 1 . a revista Business Week publicou um artigo chamado "W,Edwards Deming and

J.M.Juran - Dueling Pioneers" (Business Week, december 2, 1 99 1 . p.24). Nele fica explicitada,

além da rivalidade entre os "gurus", valores produtivistas e historicistas (nas expressões

"workaholic" e "a century from now") :

For more than four decades , W.Edwards Deming and J.M.Juran have been the preeminent champions of quality. While they cross paths ollen, they are also, beneath the surface, keen rivals( . . . ) Still a workaholic at 9 1 . Deming( ... ) fiares at the suggestion that Juran's ideas have much merit or staying power. ' I 'm not interested in stamping out fires. That's what Juran does. I 'm creating a system of profound knowledge that will still be good a century from now'. At 87, Juran is able to give as good as he gets. 'Recognition has beco me the biggest thing in Deming's life. But the Deming prize is much more important than he is - just like the Nobel prize and Alfred Nobel

Para concluir este item, vejamos mais algumas narrativas míticas entrelaçadas com o mito

que descreve a saga de Deming :

( 1 ) Numa edição do "Financiai Times", na seção "Memória", Martin Dickson escreveu o

artigo "Deming, uma vida dedicada à qualidade". Ele propõe que existe o perigo de

superenfatizar a importãncia de Deming, que Deming e Juran foram discípulos dos métodos

de Walter Shewhart, um executivo da AT&T, e utiliza uma afirmativa na qual Juran diz que

"se nem eu nem Deming tivéssemos ido ao Japão no início dos anos 50, os japoneses ainda

assim teriam alcançado a liderança mundial da qualidade". Esta atitude não invalida as

interpretações acima. Pelo contrário, quando em conjunto com outro trecho do mesmo

artigo, reforça a idéia de coletivismo e de Estado:

(TQM) tem várias variantes, mas seu núcleo está firmemente focalizado sobre a maximização da qualidade de cada aspecto do trabalho de uma companhia, envolvendo todos os empregados no processo e tentando alcançar a completa satisfação das demandas da clientela( . . . ) Deming, por sua vez, pode ter aprendido tanto com os japoneses quanto ensinou: ele só formulou seus celebrados 1 4 pontos -ãmago de sua madura teoria da qualidade - nos anos 70, após observar por duas décadas a singular cultura administrativa do Japão"

(2) Na edição, acima mencionada, na qual a "Quality Progress" homenageia Deming, um

dos artigos - "Recollections About Deming" (p.31 -36) - condensa as opiniões de vários

colegas sobre Deming. A própria atitude de colecionar opiniões dos "amigos" detem uma

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conotação coletivista. Vejamos as opiniões :

Nida Backaits retrata valores produtivistas. historicistas e coletivistas: "The poet Kahlil Gibran

wrote that 'work is love made visible' in his poem 'On Work From the Prophet' ( 1 923). When I

first met Deming, in 1 987, he was already what I considered to be an ill person. He was 86

years old, had a hard time walking due to phlebitis, and had terrible coughing fits 01 live­

minute duration several times a day. Every morning, noon, and night he underwent sell­

treatment lor his leg. Despite these constraints, Deming maintained a grueling schedule that

would strain even the healthiest and most energetic among uso At age 27 I began to travei

with him and needed a good rest after only a lew weeks i ( . . . ) In this last year, Deming's health

deteriorated considerably. Although his daily medicai routine was exhausting, his

commitment to helping us see the world differently persevered. Deming expressed his love

and devotion to ali 01 humanity through his work ( . . . ) we will also remember Deming as a

humanitarian: he taught that management should create the conditions in which people will

be treated with dignity and respect, conditions that are their right and in which they thrive,

develop, and make their greatest contributions. In Deming's holistic, long-term view 01 the

world, treating people in this way is in management sell-interest and in the economic best

interest 01 any organization"

Thomas Nolan lortalece o produtivismo : "I have always been impressed by Deming's

devotion to his work and the simple way that he led his lile, despi te his renown and the

accompanying linancial gains that it brought"

Gipsie Ranney laia de tempo e relações pessoais: "Deming was a generous mano He gave

his time to anyone who wished to learn. During breaks at his seminars, he would give up his

time to rest and spend time signing books and answering questions"

Heero Hacquebord retrata valores coletivistas e menciona o Estado : "He would want other

to remember how important it is to cooperate. lor the betterment 01 everyone and to

elimina te the win-Iose competition( . . . ) People in government should remember that he said

they need to support cooperation instead 01 lostering competition among organizations in

the United States, and that they should govern the country as a system and not as separate

independent units"

Barbara B.Lawton menciona aspectos coletivistas e historicistas : "I believe that Deming

would want us to remember( . . . ) that we cannot be satislied when some people come out

ahead at the expense 01 others. Over the long-term, there is no such thing as 'I win.You lose'.

Because 01 our increasing interdependence, the options are either win-win or lose-Iose.

Therefore we must al i work together"

Joyce Orsini laz uma ode à necessidade de "prever o luturo" e vê a empresa como uma

teia social tem conotações coletivistas : "Deming stated 'knowledge has temporal spread.

1 60

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Knowledge comes Irom theory( . . . ) Management is prediction; a statement, il it conveys

knowledge, predicts the luture outcomes( .. ,) Without prediction, experience and examples

teach nothing ( . . . ) One 01 the local points 01 deming's lectures in 1 950 and 195 1 to top

management 01 Japanese industry was the need to appreciate a company as a system that

included customers and suppliers( ... ) He made the world a better place in which to live, and

his work provides a method to continue to improve the quality 01 living"

Gipsie Ranney retrata coletivismo e historicismo. Ao lalar em "top management", ele

esboça uma menção à dimensão "poder" que elaborarei mais adiante. Tal menção que

reilica o poder separado do corpo social, como no caso do Estado Moderno, com todos os

outro sendo "iguais entre si" e inleriores, submetidos à uma instância superior que é

tenuamente delinida, mas que todos entendem ; "He said that the inborn self-esteem and

dignity 01 people and their natural inclination to cooperate, learn and contribute were

crushed by bad practices in education and at work( .. ,) to ensure the long term survival,

management had to remove practices that were destruc!ive to people, remove barriers to

improvement and cooperation, and create an environment that fosters improvement and

innovation( ... ) This potential for gain lies in strategic planning and companywide systems such

as personnel, linancial and purchasing departments - ali of which are the responsability of

top management"

A Sociedade da Qualidade Total possui cultura peculiar que pode ser analisada sobre o

mesmo modelo de quatro eixos que usamos acima para entender a cultura brasileira. A

cultura da Qualidade Total possui inúmeras semelhanças com o ideal semiótico da

Sociedade Ocidental: produtivismo, historicismo e "poder separado da sociedade" são

valores positivamente articulados, Uma única diferença é a concepçâo coletivista do

mundo prepondera sobre o individualismo, Esta é minha hipótese, que será detalhada e

mais bem embasada no próximo item.

5,3 - A Temporalidade no Mundo da Qualidade Total : Cultura Historicista

Já foi demonstrada a ambiguidade da cultura brasileira frente à concepçâo do tempo,

Vimos que ela pode operar em oscilaçâo, dependendo dos contextos e dos agentes,

priorizando temporalidades historicista, cíclica ou eterna, em concordância,

respectivamente, com a ética da "rua", da "casa" ou do "outro mundo", Com isso, a cultura

brasileira estrutura-se em torno dos seus característico elementos ; a ambiguidade e a

"vontade relacional" .

Vale relembrar, neste momento, que todas as sociedades têm acesso a todas as

possibilidades simbólicas referentes a cada universal humano. Ocorre, entretanto, que

normalmente uma das alternativas encompassa as demais no sistema de significados de

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uma sociedade, restando ás outras opções ocupar alguns espaços sociais muito limitados

que, contudo, evitam seu "esquecimento" :

são escolhas sociais dominantes e não absolutas, únicas ou excludentes. A opção por uma não significa anulação da outra. Apenas os sistemas sociais assinalam a hegemonia, a explicitação de uma delas, deixando a segunda num plano subjacente, encompassado, latente (Rocha, 1 995, p . 180)

No caso brasileiro, o peculiar é não haver este encompassamento. Há sim, uma constante,

permitida e legitimada oscilação entre os três tipos de temporalidade, num complicado

jogo simbólico.

A cultura da Qualidade Total, ao contrário, parece possuir uma ética temporal

encompassando as demais. A temporalidade historicista predomina, com as outras

possibilidades se fazendo presentes em espaços consideravelmente menores de tal cultura.

Esta caracferística de ser historicista é previsível, se considerarmos que o Mundo da

Qualidade Total nasceu dentro do chamado Mundo dos Negócios, onde tempo é sempre, e

cada vez mais, dinheiro.

Além dos indícios histaricistas presentes no mito que foi analisado no item anterior, utilizarei

este capítulo para reforçar esta hipótese. Abaixo, estão agregados os achados de minha

pesquisa bibliográfica (minha etnografia literária) sobre a Sociedade da Qualidade Total.

Para começar, a Sociedade da Qualidade Total preocupa-se em ter a sua própria história.

Na sua edição de julho de 1 995, a revista Quality Progress anuncia que Juran, um dos

"gurus", um dos "líderes ideológicos" da Sociedade da QT, está escrevendo um livro sobre a

"História da Qualidade". Não se trata de uma inovação ou novidade.

Embora talvez Juran seja um "historiador" com maior legitimidade e trabalhe com maior

profundidade, outros já elaboraram "recortes" lineares e sequenciais sobre a GQT. Recortes

com base em "um evento saindo do outro", numa perspectiva tipicamente histórica da

realidade.

Como exemplo, menciono o artigo : "VISION 2000 - America's Top 1 000 Companies' Quality

Progress - Appendix B : Key Events in Worldwide Continuous Quality Improvement". Eis o

conteúdo :

"Pre- 1 900 - Quality ensured by the craftsmanship of the artisan. Most producfs not mass-produced. Workers planned, did, checked and acfed.

Approx . 1 900 - Frederick Taylor did landmark work on increases in productivity based on engineers planning, workers doing, inspectors checking, and engineers acting. Specialization began in earnest.

1 920- 1 930 - Walter Shewhart at Western Electric applied probability and variation theories to the manufacturing processes. Statistical Process Control (SPC) Chart developed. Increased specialization continues. The control charts allowed engineers to plan, but workers now check their own work, and then acf to change the process quickly.

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1 940-1 945 - World War I I created many innovative approaches to improving productivity and quality in the manulacluring 01 mililary goods. SPC and worker involvemenl widely used. Worlkers aclually helped plan work as well as doing, checking and acling on Iheir own produclion.

1 945- 1 950 - Uniled Slales gears up lo lull penl-up consumer demand Irom len years 01 Depression and live years 01 war. United Slales beca me 'lhe' dominai high volume manulaclurer. Vasl majorily 01 lhe workplace innovalions abandoned. Engineers once again plonned, workers did lhe work, il was checked by quolily conlrol. ond modilicalions made by speciolisl. Japon slruggled lo rebuild ils bosic induslry.

1 950- 1 954 - Japon begon ils journey lo Conlinuous Qualily Improvemenl by odopling Dr. W.Edwords Deming' s lechniques ond philosophy. Process Improvemenl become lhe key, rolher Ihon inspeclion 01 lhe final producl. These chonges were largely implemenled by engineers and lechnicol speciolisls. Uniled Sloles induslry rolled olong, dominoling domeslic ond world markels.

1 954-1 962 - Joseph Juran inlroduced Conlinuous Improvemenl philosophy lo moinslream Joponese monogemenl. Slressed breoklhroughs, projecled leams, ond onnuol improvemenl. In lhe Uniled Stoles, monulacluring conlinues unchonged.

1 962- 1 964 - Conlinuous Improvemenl philosophy spread in Japan lo lirst line supervisors wilh lhe publlicolion 01 Ishikawo's materiais in lhe Foremon Magazine on lhe 7 Tools lor Quolily Control. This begon lhe inlegralion 01 the techniques and philosophy into the daily work lile 01 lhe Japanese worker. This evolved inlo lhe quolily circles as we know Ihem lodoy. No chonge in the Uniled Stotes.

1 964- 1 972 - Komolsu Tractor applied Conlinuous Improvemenl Principies to 011 elemenls 01 the compony in the lorm 01 Total Quolily Conlrol [TQC) . United Stales induslry hils peok 01 high volume standardized monufocluring.

1 9 72-1 973 - Beggining 01 lhe applicotion 01 TQC principies lo the design process in lhe lorm 01 Qualily Funclion Deploymenl [QFD). Parlicipolion in lhe Plon-Do-Check-Aclion [PDCA) 01 Design was exponded Irom simply lhe R&D lunction to include marketing, soles, engineering, qualily, ond monulocluring. The American opprooch lo monulacluring hod nol chonged bul producl morket loss was slorting lo be noticed [e.g., comeras, radios, lelevisions).

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1 973 - 1 980 - Arab Oil Crisis caused export-sensitive Japan redouble its TQC efforts in manufacturing while expanding its efforts in the service sector.

1 980- 1 990 - NBC White Paper aired 'lf Japan Can Whay Can't We ? ' and sparked an American Quality renaissance that has matured beyond simply quality circles to include quality of design, administra tive applications, and basic management changes. Drs. Juran and Deming have inspired many American companies to make honest commitments to Continuous lmprovement. That's the good news: the bad news is that the Japanese have not been standing still. They have continued to push the boundaries of excellence further and further. As if this were not enough, Japan has been joined by countries such as South Korea, Taiwan and Brazi as major competitors in TQC"

Na mesma linha - determinar uma cronologia de eventos encadeados referentes á

Sociedade da Qualidade -, Garvin ( 1 992, p.44) descreveu as "Quatro Principais Eras da

Qualidade", que se sucedem "evolutivamente", da inspeção á gerência estratégica. Uma

etapa nasce da etapa anterior, todas englobadas pela cronologia oficial moderna­

ocidental :

1 - INSPEÇÃO : preocupação básica em verificar: Qualidade é um problema a ser resolvido: ênfase na uniformidade do produto: foco nos instrumentos de medição: profissionais da qualidade voltados para inspeção, classificação, contagem e avaliação: departamento de inspeção é responsável pela Qualidade: abordagem de 'inspecionar a qualidade' .

2 - CONTROLE ESTATíSTICO : preocupação básica e m controlar: Qualidade continua vista como um problema a ser resolvido: ênfase continua na uniformidade do produto, embora agora com objetivos de minimizar a inspeção: foco nos instrumentos de medição mas também nas técnicas estatísticas: profissionais da qualidade voltados para solução de problemas e aplicação de métodos estatísticos: departamento de produção e engenharia é responsável pela Qualidade: abordagem de 'controlar a qualidade ' ,

3 - GARANTIA DA QUALIDADE : preocupação básica e m coordenar: Qualidade continua vista como um problema a ser resolvido, mas que deve ser enfrentado proativamente: ênfase passa a ser colocada em toda a cadeia de produção, desde o Projeto até o Mercado, com necessidade de contribuição de todos os grupos funcionais da empresa: foco nos programas e sistemas administrativos: profissionais da qualidade voltados para Mensuração e Planejamento da Qualidade e Projeto de Programas: todos os departamentos, inclusive a Alta Gerência, são responsáveis pelo Projeto, Planejamento e Execução das políticas da Qualidade: abordagem de 'construir a qualidade' .

4 - GERÊNCIA ESTRATÉGICA DA QUALIDADE : preocupação básica com o impacto estratégico: Qualidade passa a ser vista como uma oportunidade de concorrência: ênfase passa a ser colocada nas necessidades do mercado e dos consumidores: foco no Planejamento Estratégico, Estabelecimento de Objetivos e na MObilização de toda a Organização: profissionais da qualidade voltados para estabelecimento de objetivos, Educação e treinamento, Trabalho Consultivo e Delineamento de Programas: todos os empregados, liderados ativamente pela Alta Gerência, são responsáveis pela Qualidade: abordagem de 'gerenciar a qualidade' .

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Não bastasse esta preocupação da Sociedade da OT em demarcar historicamente seus

passos, vários outros indícios apontam para o historicismo como alternativa cultural

privilegiada, encompassadora no Mundo da OT. Vejamos, então, alguns trechos literários

com conotação historicista, como mais um elemento de reforço desta hipótese sobre a

cultura da Sociedade da OT. Ressalto que alguns destes trechos são, também, indicativos

dos outros valores simbólicos da cultura da OT que analisarei adiante (produtivismo, poder

separado do corpo social e cOletivismo). Isto é previsível. óbvio, posto que tais dimensões

semióticas estão estruturalmente interligadas, sendo o sistema de significados daí resultante

exatamente o que designamos por "cultura" :

There are two problems: (I) problems of today; (ii) problems of tomorrow( ... ) one requirement for innovation is faith that there will be a future. Innovation, the foundation 01 future, can not thrive unless the top management have declared unshakable commitment to quality and productivity (Deming, 1 982, p.24-25)

Ouality should be aimed at the needs 01 the consumer, present and future [Deming, 1 982, p.5)

O tempo e as matéria-primas valem ouro e portanto é necessário agir [Mann, 1 992, p. 1 )

It requires a whole new structure, from foundation upward. Mutation might be the word, except that mutation implies unordered spontaneity. Transformation must take place with directed effort[ ... )drastic changes are required[ ... ) long-term commitment to new learning and new philosophy is required of any management that seeks transformation [Deming, 1 982, p. ix)

Um gerente com uma mentalidade foca da em lucros rápidos frequentemente aumentará o rendimento da inversão dos acionistas ao reduzir o emprego de recursos como treinamento, pesquisa e manutenção que possam manter a firma nos negócios no longo prazo (Mann, 1 992, p.96)

A estatística é a essência do método científico e relaciona-se com quase tudo que lazemos. É uma disciplina que lida com probabilidades e escolha, com compromissos. com causa-e-eleito, e com predição de acontecimentos futuros a partir da coleta de dados (Mann, 1 992, p.35)

Há dois problemas - os problemas de hoje e os problemas de amanhã - para toda a empresa que deseja manter-se em atividade [Deming, 1 990, p. 1 9)

Conceito de garantia da qualidade como um processo evolutivo [Campos, 1 990, p.74)

Managers had to[ ... )make sure there was a tomorrow. They had to orient themselves to continuous improvement[ ... ) to innovate constantly and commit resources to support innovation and continuous quality improvement [Garvin, 1 992, p. 1 80)

Há ainda que se alertar para o risco das empresas 'dormirem sobre os louros do passado'. O gerenciamento da qualidade pressupõe que as metas são sempre alvos móveis e o comprometimento com esta questão significa buscar initerruptamente as melhorias contínuas. Um dos pontos observados nos relatos das empresas foi o fato de parecerem estar'contando uma história de sucesso' que se iniciou no passado [Arruda, 1 994, p.204)

He [Deming) foresaw( .. . ) if one nation has access to another's technologis and is better at the art and science of mass production, that nation will invade the other's market. It is just a matter of time [Tribus, 1 988,p.26)

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quem é capaz de prever o futuro nunca é apreciado no seu tempo (Crosby, 1 979, p,4 1 )

A incerteza vive no presente. Cada dia desponta para um mundo novo, e cada noite encerra este mundo (Crosby, 1 979, p.64)

A alta administração só permitirá que a qualidade trabalhe futuramente, se ela ajudá-Ia a sobreviver no presente( ... ) a verdadeira força e valor da qualidade inclui aprender com o passado para facilitar o futuro (Crosby, 1 979,p.86)

A melhoria ocorre no desenrolar das etapas do programa geral (Crosby, 1 9 79, p.3 1 4)

Integração: Qualidade e Recursos Humanos para o ano 2000 (título do, livro de Philip B. Crosby, 1 993)

Se concordarmos em estar em algum lugar a uma certa hora, é de bom tom e conveniente respeitar o compromisso (Crosby, 1 993, p.225)

W.Edwards Deming was widely credit with leading the Japanese quality revolution( . . . ) Known to dismiss client companies that did not change, he stated, ' I give them three years. I 've got to see a lot happen' (Garvin, 1 992, p . 1 80)

To reach and maintain this minimum cost of quality, Juran proposed a three-ponged approach: breakthrough projects, the control sequence, and annual quallity programs (Garvin, 1 992, p.1 85)

aja agora, para ser recompensado mais tarde (Crosby, 1 979, p,4 1 )

A hipótese de uma ética temporal historicista encompassando o Mundo da Qualidade Total

é também corroborada pelo fato de que, neste Mundo, existem celebrações marcadas

historicamente. Na edição de outubro de 1 994 (vol 27, n° 1 0) , a revista Quality Progress

apresenta como reportagem de capa : "NATIONAL QUALlTY MONTH - CELEBRATING TEN

YEARS OF QUALlTY ( 1 984- 1 994) " .

Num artigo intitulado "The Quality Imperative", a revista Business Week (december 2, 1 99 1 )

menciona "a look at the movement ' s past, present and future" (p. 1 7) e "even statistical

quality control is just one step in the long, long road to world-class quality( . . . ) and if vou ever

think you're there, you're wrong. Vou can never stop" (p.2 1 ) .

Além do exposto acima, vários autores consagrados no Mundo da Qualidade Total

esbanjam termos e conceitos que só fazem sentido se o tempo for concebido

historicamente :

Figueiredo (s.d.) fala sobre "desperdícios do tempo de espera e de atrasos". e sobre " Just in

Time", Garvin ( 1 992) fala em durabilidade de produto, vida útil e atendimento com rapidez :

"pontualidade do atendimento às chamadas, relacionamento com o pessoal do

atendimento" (p.68)

Arruda ( 1 994) descreve os estágios históricos consecutivos da Qualidade : ( 1 ) inspeção de

produtos acabados na produção em massa; (2) Controle Estatístico da Qualidade e seus

conceitos de variabilidade comum e especial; (3) Uso do Nível de Qualidade Aceitável

(AQL); (4) a produção de aparelhos de medir com alta precisão e as técnicas para

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estabelecer padrões e níveis de aceitabilidade de amostras , resumidas na primeira norma

formal da qualidade: a Military Standard 1 050, em 1 940, durante a 2° Guerra Mundial ) : (5)

na década 50, surge o conceito de Garantia da Qualidade, reelaborando as relações

clientes-fornecedores. Oeming faz sucesso no Japão, surge o conceito de "zero defeito", de

"Do it right the first time" (OIRTFT) ; (6) Mais atualmente fala-se em gestão estratégica,

requisitos da g lobalização, conscientização do cliente, concorrência internacional, alvos

móveis e qualidade dinâmica. Num dos casos estudado por Arruda ( 1 994), a declaração do

engenheiro executivo da qualidade tem conotação tipicamente historicista: "nossa

empresa tem a tradição de usar todos os conceitos modernos da Qualidade com bastante

precocidade. Exemplificando, usamos CCQs há treze anos; hoje não usamos mais, fazemos

uso de outras ferramentas". Este mesmo entrevistado, em outros momentos, falou em "just in

time", "preocupação aguda com prazo do atendimento", "melhoria contínua" e na

qualidade como um "programa sem fim".

Pereira ( 1 993) menciona Oeming para afirmar que é imprescindível que entre as obrigações

inclua-se a de inovar. "As inovações seriam planos para o futuro que incluiriam novas

qualificações a serem exigidas" (p.37)

É interessante mencionar que Campos ( 1 990) . Pereira ( 1 993) e Oeming ( 1 990) esboçam a

existência dos resíduos encompassados na Cultura da QT - a temporalidade cíclica e a

eterna.

Rotina significa permanecer no rumo atual, obedecer as normas, evitar mudanças ( . . . ) Se a Rotina estiver bem montada, nada muda na empresa" (Campos, 1 990, p.35).

O ciclo POCA é uma representação da administração da qualidade. Todos os estudiosos se reportam a este ciclo para enfatizar a importãncia da contínua monitoração dos resultados (Pereira, 1 993, p.63)

Todos podem participar de uma equipe( ... ) Todos os membros de uma equipe têm a oportunidade de contribuir( .. . ) mas qualquer um deve esperar ver algumas de suas melhores idéias submergirem em face do consenso da equipe. Poderá ter nova oportunidade, em outra retomada do ciclo. Uma boa equipe terá memória social (Oeming, 1 990,p.67)

Entretanto, mesmo as conotações aparentemennte cíclicas são, na verdade, como que

"ciclos evolutivos". Melhor seriam representados por espirais que se enrolam ao longo do

eixo do tempo histórico. Tempo linear, dominante, poderoso e encompassador da cultura

da Qualidade Total. Tanto é assim que, logo em seguida, Campos ( 1 990) reforça a

necessidade da mudança, retomando os valores historicistas:

Manter apenas a Rotina pode ser cruel( . . . ) Melhoria significa mudanças, movimento decisivo para níveis de desempenho nunca antes alcançados( . . . ) A prática simultãnea da Rotina e Melhorias é que conduz a resultados positivos para a empresa( ... ) Controlar um processo significa manter estável (Rotina) e melhorar (Melhorias) um conjunto de causas que afeta os vários itens de controle (p.37)

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o autor termina por concluir que a temporalidade predominante, em nível de objetivos e

intenções, é mesmo o historicismo :

Se um processo está normal (as metas estão sendo atingidas e não mais ocorrem anomalias), o que se faz é continuar verificando (CHECK) periodicamente, sem fazer nenhuma alteração; este é o cicio de Rotina. Se esta normalidade começa a se prolongar, é sinal para que seja acionado o cicio de Melhorias, que é a prática cada vez mais profunda da análise de processo, tendo como meta melhorar sempre( . . . ) O cicio de Melhorias está intimamente ligado ao gerenciamento dos objetivos da empresa que busca melhoria em seus vários processos. Estas melhorias se somam para atender aos objetivos da alta administração( ... ) dentro do CQTE todos participam do trabalho de Melhorias na empresa( ... ) O trabalhador, neste esquema, é incluído no trabalho de Melhorias através do 'Programa de Sugestões' e dos 'círculos de Controle da Qualidade' (p.49)

Alguns títulos de livros e artigos também indicam a predominãncia historicista : ( 1 )

" Integração: Qualidade e Recursos Humanos para o ano 2000", de Philip B . Crosby; (2)

"Blueprints for Continuous Improvement", de Richard Hodgetts; (3) "ISO 9000 - Atualização

para 1 993 e propostas para 1 996 - Manual da Qualidade para Produtores", de Brian Rothery;

(4) "Sinais Vitais - Usando Medidas de Desempenho da Qualidade, Tempo e Custos para

Traçar a Rota para o Futuro de Sua Empresa", de Steven Hronec; (5) Vision 2000 : The

Strategy for the ISO 9000 Series Standards in the '90s (Marquard, Chové, Jensen, Petrick, Pile &

Strahle, Quolity progress, maio 1 99 1 , p.25-31 )

Com um olhar atento, outros sinais, menos superficiais, podem ser encontrados. Mann ( 1 992),

coloca a perda de mercados mundiais e intemos pelos Estados Unidos, para o Japão como

um "castigo" que os norte-americanos sofreram por achar que "nada muda" (concepção

eterna do tempo). "Aqui não havia uma queda acentuada da produção, mas ao contrário,

um sentimento de efervescência e otimismo. Nos Estados Unidos achava-se que o domínio

dos mercados mundiais seria eterno" (p. 1 6)

Mais direta é a ode à mudança e, consequentemente ' a visão historicista, que Hart & Bogan

( 1 994, p. XV) fazem no prefácio de seu livro :

O filósofo pré-Socrático Heráclito afirmou que 'Não há nada permanente, exceto a mudança'. Fundamentado em minhas experiências como membro do Congresso Norte-Americano, devo concordar; palavras mais verdadeiras nunca foram pronunciadas( ... ) O mundo está sofrendo mudanças em contínuo ritmo acelerado( ... ) A economia norte-americana está sendo desafiada não somente pelo Japão e outros países do Extremo Oriente como também pela Europa( . . . ) Nossa habilidade em competir como nação, face ao rápidO desenvolvimento do mercado mundial dos anos 90, dependerá, fundamentalmente, da qualidade de nossos produtos e serviços( ... ) Nossas atividades, nosso padrão de vida e nossos futuros pessoais e nacionais estão em risco.

Tal livro discorre o prêmio nacional americano da Qualidade, o Prêmio Malcon Baldrige. Este

assunto - prêmios nacionais da qualidades - será explorado mais adiante. Por enquanto, me

limito a lembrar menções destes autores que reforçam a idéia de historicismo, com seus

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conceitos agregados - "mudança", "imprevisibilidade", "futuro diferente do passado" ,

Uevolucionismo" .

Hart & Bogan ( 1 994) mencionam a "Era Baldrige", para explicar a origem e razão do prêmio

nacional de qualidade norte-americano, a "evolução histórica do prêmio e sequência

histórica dos vencedores". Já o item "Histórico do Baldridge" fala em "Evolução da

Mentalidade da Qualidade". Este item inclui a descrição histórica dos "gurus", desde o foco

na especialização com Taylor e Frank Gilbreth, passando pela inspeção, com G.S.Radford,

pelo controle estatístico de processos com Shewhart, pela amostragem com Dodge e

Romig, pela "síntese teórica" de Deming, pela origem da American Society for Quality

Control. pela contribuição de Juran, pelo Controle da Qualidade Total de Feingenbaum,

terminando com a "popularização" da época de Crosby. Nos capítulOS seguintes fala-se em

"O Futuro do Baldrige", em "Melhoria Contínua", em "Resposta rápida" e em "Perspectivas

de longo prazo" :

A expressão ' melhoria contínua' refere-se tanto a melhorias incrementais quanto a melhorias ' revolucionárias' ( . . . ) o processo de melhoria contínua deve incluir ciclos regulares de planejamento, execução e avaliação, o que requer uma base -preferencialmente uma base quantitativa - para avaliar o progresso alcançado e para fornecer informações a futuros ciclos de melhoria (pA)

O sucesso em mercados competitivos requer sempre ciclos cada vez menores de introdução de novos produtos e serviços no mercado (pA)

Conquistar a liderança no mercado e em relação à qualidade requer da empresa uma orientação voltada para o futuro e a disposição de assumir compromissos de longo prazo com os clientes, funcionários, acionistas, fornecedores e a comunidade( . . . ) Parte relevante de tal compromisso a longo prazo refere-se ao desenvolvimento de funcionários e fornecedores, ao cumprimento de responsabilidades comunitárias e ao fortalecimento do papel da empresa como modelo na promoção do espírito cívico (p.5)

Para sintetizar tudo que foi proposto neste item, interessa lembrar que conceitos como ( 1 )

MelhOria Contínua, (2) Planejamento de Longo Prazo, (3) Rapidez em atender as demandas

de clientes, (4) Previsão de cenários empresariais futuros, são como que obviedades para os

nativos do Mundo da Qualidade· Tais conceitos guardam conotações tipicamente

historicistas.

Neste item, foi proposta e defendida a hipótese de que a temporalidade histórica

encompassa a cultura da Sociedade da Qualidade Total. Os valores referentes a este

historicismo são predominantes no sistema de significados deste Mundo da QT, influenciando

comportamentalmente dos nativos desta cultura. No próximo item, veremos como é tratada

simbolicamente a questão da produção na Sociedade da Qualidade Total.

1 69

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5.4 - Cultura da Qualidade Total : O Predomínio do Produtivismo

o item 4.3 demonstrou como os princípios e valores relacionados à concepção produtivista

do mundo se atualizam no Brasil. Foram utilizados conceitos tais como "escassez".

"abundãncía", "acúmulo e reprodução de capital", "investimento e risco", "trocas/ relações

mercantis", "planejamento racional e controle matemático", "riqueza material e virtudes

econômicas" , "achievemenl' , "ciência" , "inovação tecnológica", "trabalho" ,

"performance", "poupança", "risco", "reprodução do capital", "liberalismo", "cicios

econõmicos". Vimos, através de uma análise antropológica estruturalista da cultura

brasileira, que a concepção do produtivismo no Brasil encerra a mesma ambiguidade

presente em outras dimensões classificatárias. A ideologia da produção existe, mas, como

diversas éticas podem ser acionadas, o produtivismo pleno (como idealmente concebido

pela Sociedade Ocidental) não é sempre o código predominante que mapeia o

comportamento dos brasileiros.

Agora vamos sintetizar os indícios que demonstram ser a Cultura da Qualidade Total

possuidora de uma construção ideológica altamente produtivista. Além de deixar a

temporalidade historicista ser predominante, a Qualidade Total escolheu, também, o

encompassamento pelo produtivismo. Isto se espelha nos seguintes trechos retirados da

literatura especializada:

Although Juran's analytical methods could help identify areas needing improvement, they were in the language of the shop floor( ... ) Juran recognized that such measures were not likely to allract top management attention: for this reason, he advocated a cost-of-quality (COQ) accounting system. Such a system spoke top management' s language - the money language (Garvin, 1 992, p. 1 84)

O segundo pressuposto errõneo diz que a qualidade é algo inatingível e, portanto, impossível de ser calculada. De fato, a qualidade pode ser precisamente calculada pela mais antiga e respeitada das medidas - o dinheiro concreto (Crosby, 1 979, p.3 1 )

A tecnologia cumprirá sua promessa de oferecer meios para aliviar a vida profissional e social das pessoas, fazendo com que ela se torne mais satisfatória (Crosby, 1 993, p.2)

Paper profits do not make bread: improvement of quality and productivity do. They make a contribution to belter material living for ali people, here and everywhere (Deming, 1 982, p.2 1 )

As pessoas estão procurando a integração. Não querem mais consertos rápidos, querem estabilidade, querem viver numa era de empreendimento e prosperidade (Crosby, 1 993, p . 1 59)

Charles Darwin's law of survival of the filies!. and that the unfit do not survive, holds in free enterprise as well as in natural selection( ... ) Aclually, the problem will solve itself. The only survivors will be companies with constancy of purpose for quality, productivity, and service (Deming, 1 982, p. 1 55)

Coisas boas só acontecem quando planejadas: as más acontecem por si mesmas (Crosby, 1 979, p.88)

As pessoas gostam de ser calculadas, quando o cálculo é justo e franco (Crosby,

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1 979, p.86)

He will leel important to the job il he can take pride in his work and may have a part in improvement 01 the system (Deming, 1 982, p.83)

The possibility 01 pride 01 workmanship means more to the production worker than gymnasiums, tennis courts, and recreation areas. Give the work a chance to work with pride, and the 3 per cent that apparentely don' t care will erode itsell by peer pressure (Deming, 1 982, p. 87)

Quality to the production worker means that his performance satislies him, provides him pride 01 workmanship. Improvement 01 quality translers waste 01 man-hours and 01 machine-time into the manulacture 01 good product and better service. The result is a chain reaction - lower costs, better competitive position, happier people on the job, jobs, and more jobs (Deming, 1 982, p. l )

Joseph M. Juran's impact on Japanese quality was usually considered second only to Deming's ( . . . ) but, at 82, he had enjoyed a variety and distinguished carrer that includes stints as a business executive, govemment administrator, lecturer, writer, and consultant (Garvin, 1 992, p . 1 84) .

Quando se pode medir aquilo a respeito do que se está falando e expressá-lo em números, obtém-se conhecimento: mas quando não se pode medir, quando não se pode expressar em números, o conhecimento a que se tem acesso é insatisfatório( . . . ) a estatística é a essência do método cientílico e relaciona-se com quase tudo que fazemos. É uma disciplina que lida com probabilidades e escolha, com compromissos, com causa-e-eleito, e com predição de acontecimentos luturos a partir da coleta de dados (Mann, 1 992, p.35)

Você pode enriquecer, evitando deleitas (Crosby, 1 979, p.79)

Tell a worker about a mistake ? Why not ? How can a man improve his work il we lail to point out to him a delective item that he has made, so that he can where he went wrong ? (Deming, 1 982, p.249)

A regulation is justiliable if it offers more advantage than the economic waste it entails ( ... ) One can not permit braches 01 regulations to take place over any length of time without creating an increasing state 01 disorder, thereby destroying the public conscience. For this reason it is in the nature of regulations to be strict. Im a permanent and well-organized system, checks and penalties are such that in the long run it is in no one's interest to break a regulation (Deming, 1 982, p.298)

A qualidade é um lator atingível. mensurável. lucrativo, que pode ser estabelecido, desde que haja compromisso, compreensão e você esteja disposto a trabalhar arduamente (Crosby, 1 979, p.20)

nem todos estão interessados em trabalhar duro e hoje vejo os conceitos e eslorços da construção da gestão da qualidade sendo diluídos em programas e técnicas superficiais (Crosby, 1 993, p.XIV)

Quando uma companhia tem garantia de negócios por muito tempo, pode concentrar-se em tomar-se mais eficiente e produtiva (Crosby, 1 993, p.59)

Philip B. Crosby started in industry as an inspector. He eventually rase through the ranks at several companies to beca me vice-president 01 quality at ITI (Garvin, 1 992, p . 1 88)

American managers must pursue quality to help them compete, Crosby argued. In fact, he believed that il quality were improved, total costs would inevitably fali, allowing comanies to increase profitability( ... ) the key to quality improvement was changing top management's thinking. II management expected imperfection and delects, it would get them, lor works would bring similar expectations to their jobs

1 7 1

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(Garvin, 1 992, p . 1 88)

Todos os autores (sobre Qualidade) citam o planejamento como elemento básico para implementação do TQM( . . . ) a questão dos custos da qualidade está presente em todos os autores citados (Pereira, 1 993, p.60-61 )

O TQM é um processo gerencial baseado na qualidade, estabelecido através de estratégias duradouras (daí o termo processo) , que visam superar as exigências dos clientes no dia-a-dia e, simultaneamente, elevar os índices de produtividade (Pereira, 1 993, p. 1 1 )

No CQTE, onde a especialização e o profissionalismo são evitados, todos são responsáveis por pela qualidade, todos praticam o desenvolvimento tecnológico, todos são responsáveis pelas suas próprias equipes (Campos, 1 990, p.1 1 6)

Tanto os administradores da empresa como os operários devem ser treinados ao longo do tempo para se tornarem exímios solucionadores de problemas (Campos, 1 990, p.54)

A empresa deve ser lucrativa de tal forma a poder pagar dívídendos a seus acionistas e se expandir. A produtividade gera o lucro que reinvestido é o único caminho seguro para a geração de empregos (Campos, 1 990,p.29)

No Brasil os ganhos de produtividade serão muito superiores a 1 00%( ... ) No dia em que os sindicatos descobrirem isso, passarão a exigir que a administração das empresas assumam o seu papel e utlizem metodologias que permitam melhorar a produtividade (Campos, 1 990,p.22)

Execer o controle da qualidade de forma ampla na empresa é fazer com que itens de controle( . . . ) sejam gerenciados de forma descentralizada com participação de todos (Campos. 1 990. p.68)

É necessário resgatar o sentimento de alegria pelo bom trabalho realizado, que é inato ao homem, treinando para o trabalho e mostrando o resultado do trabalho (Campos, 1 990,p. 1 23)

A utilização da estatística é vital( . . . ) Tudo neste mundo varia e obedece a uma distribuição estatística. É essencial ter um domínio sobre essas variações (Campos, 1 990,p. 1 29)

A cultura da Qualidade Total se baseia primordialmente em premissas de lucratividade,

planejamento e controle, materialismo. tecnologia e eficiência. Os autores abusam de

conceitos e valores ligados ao produtivismo. Figueiredo (s.d) fala em reduzir desperdícios do

tempo de espera, unidades defeituosas, estoques supérfluos e movimentos desnecessários.

Para tanto ele descreve os métodos JIT, MRP, desenvolvimento de fornecedores, produção

puxada (kanbans) e racionalização do uso do espaço. Ele enfatiza a necessidade da

limpeza e organização (housekeeping), da disciplina, da padronização de processos e da

manutenção produtiva total.

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Hart & Bogan ( 1 994) falam em (I )Aperteiçoamento Contínuo, (2) Planejamento, (3)

Prevenção, (4) Base Quantitativa, (5) Método Sistemático, Garvin ( 1 992) demonstra

preocupação com "Desempenho", "Confiabilidade", "Conformidade com padrões pré­

estabelecidos" e "Durabilidade", David ( 1 994), estudando a Quallidade no serviço público

brasileiro, menciona "aumento da competitividade", "redução de desperdícios", "garantia

de trabalho e renda para empregados", "procedimentos e padronizações" e as "sete

ferramentas da qualidade que aumentam a produtividade".

Arruda ( 1 994) considera o controle dos custos e da produtividade como "correlatos da

qualidade". Ele justifica a interligação entre qualidade e produtividade lembrando que

Falconi Campos ( 1 990) considera imprescindível tomar a produtividade como a relação

entre faturamento e custos, A solução ideal seria aumentar faturamento por maior

qualidade e reduzir custos por mecanismos de controle, Arruda ( 1 994) fala ainda em

inspeção de produtos acabados, produção em massa, separação de rejeitos, divisão do

trabalho, Controle Estatístico da Qualidade (CEQ), conceitos de variabilidade comum e

especial, uso de estatísticas passadas, nível de qualidade aceitável (AQLj, aparelhos de

medir com maior precisão, técnicas para estabelecer padrões e níveis de aceitabilidade de

amostras, garantia da qualidade- fornecedores, zero defeito, "Do it right the first time",

globalização e competitividade, conscientização do cliente, concorrência internacional.

Cerqueira Neto ( 1 99 1 ) enfatiza a necessidade de treinamento profissional e do uso das sete

ferramentas estatísticas, Também constantes na obra deste autor estão os conceitos

japoneses relacionados à maior eficiência produtiva : Seiri (utilização); Seiton (arrumação);

Seiso (limpeza); Seiketsu (saúde); Shitsuke (autO-disciplina),

Conceitos como (I) Controle Estatístico, (2) Planejamento Estatístico, (3j Documentação de

Procedimentos, (4) Treinamento e Desenvolvimento Profissional, (5) Inovação Tecnológica,

(6) Redução de Desperdícios e Custos revelam os valores da Sociedade da Qualidade Total.

No modo como são atualizados pela ideologia da QT, se relacionam com a concepção

produtivista do mundo, pois incluem as noções de : escassez natural, trabalho como

dignificador do ser humano, necessidade de medir para controlar, acúmulo de riqueza

como objetivo central do Ser Humano, crescimento tecnológico como tendência e

preferência universal. Reforça-se a hipótese de que os valores produ ti vistas são dominantes

no Mundo da GQT,

No próximo item, a questão da instância do poder separada do corpo social (metaforizada

na figura do Estado Moderno) é relativizada e avaliada como integrante da Cultura da QT.

173

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5.5 - O Estado como Metáfora do Poder no Mundo da Qualidade Total

A questão de o Estado ser a instãncia máxima do Poder Iseparado do corpo social), dentro

da moldura ideológica da civilização ocidental foi discutida no item 4.4. As possibilidades

ambíguas que a cultura brasileira faz dos conceitos de cidadania, política e poder foram

mostradas. Tem-se, assim, que a figura do Estado atualizada pela cultura brasileira, espelha

um espaço onde a desigualdade hierárquica é enfatizada; onde o personalismo, o

paternalismo e o corporativismo podem atingir seu ápice.

Agora, é a questão do poder na Sociedade da Qualidade Total que será destrinchada.

Defendo a hipótese de que a ideologia do Estado - com a referente alienação do poder

do corpo social - é adotada pela Cultura da Qualidade. Tal ideologia afeta simbolicamente

os membros deste Mundo. Para estudar esta hipótese, a análise será feita em dois níveis.

o primeiro nível é bastante direto e intuitivo. As dramatizações da Sociedade da Qualidade

Total enfatizam que o mundo é dividido em Estados-Nações. O segundo nível de análise é

bastante mais sutil. atingindo mais profundamente a representação do poder como sendo

legitimamente alocado e concentrado numa "instância" especial.

5.5. 1 - Qualidade e Estados Modernos

Vejamos inicialmente a ênfase que o discurso da Qualidade Total coloca sobre a

configuração política do mundo em Estados-Nação que, conforme visto no item 4.4 acima,

é uma construção ideológica da civilização contemporãnea.

A constatação inicial é que a História, os mitos e alguns "grandes rituais" da Qualidade Total

têm como espaços geográficos principais o Japão e os Estados Unidos, dois Estados­

Modernos que competem pelo predomínio econõmico no mundo moderno. Deming ( 1 982),

em seu mais famoso livro. dedicou um apêndice à "transformation in Japan". Isto, que

poderia ser tomado como um "mito de origem" da Sociedade da Qualidade Total, se passa

num Estado geográfica e politicamente definido.

Mann ( 1 992) pergunta, no primeiro capítulo do livro : "Por que aconteceu no Japão e não

nos Estados Unidos ?", reforçando esta idéia. Os trechos abaixo também demonstram como

a figura do Estado-Moderno se faz presente na literatura do Mundo da Qualidade :

Only transformation of the American style of management, and of governmental relations with industry, can halt the decline and give American industry a chance to lead the world again (Deming, 1 982, p.x)

Japanese executives who have used his Total Quality control methods to humble their US competitors( ... ) In the 1 990s, 'Made in the USA' will beco me a symbol 01 world-class again (Business Week, december 2, 1 99 1 , p. I )

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Se as coisas tivessem sido um pouco diferentes, os Estados Unidos poderiam ter sido o país a experimentar a Renascença na qualidade (Mann, 1 992, p.8)

No Japão a história foi completamente diferente. Lá a alta administração compreendeu que a inserção de qualidade num produto resulta em aumento de posição competitiva (Mann, 1 992, p.9)

A explicação de por que este milagre aconteceu no Japão repousa na união de todos os fatores necessários para uma transformação. A indústria japonesa, depois da guerra, experimentou a maior queda de todos os tempos. Deming entrou em cena e aprendeu a apreciar a personalidade e a cultura japonesas. Ele tinha consciência do que precisava ser feito e providenciava para que a mensagem fosse comunicada às pessoas, com capacidade para entrar em ação. A Kei-dan-ren, organização da alta adinistração do Japão, fornecia os meios para que a mensagem atingisse todas as indústrias japonesas - e os meios para uma contínua cooperação. A JUSE estava a postos, pronta para fornecer treinamento e facilidades. E a herança cultural japonesa criava precisamente a psicologia nacional que tornava a excelência do produto uma realidade. Depois da guerra, quase todos estes fatores estavam em falta no mundo ocidental. Aqui não havia uma queda acentuada da produção, mas ao contrário, um sentimento de efervescência e otimismo. Nos Estados Unidos achava-se que o domínio dos mercados mundiais seria eterno" (Mann, 1 992, p . 1 6)

(Deming) foresaw( . . . ) if one nation has access to another's technologies and is better at the art and science of mass production, that nation will invade the other's market. It is just a matter of time(Tribus, 1 988,p.26)

During his first visits, Deming examined what the Japanese were doing, their work force and its habits and became convinced that his methods could be applied there (Tribus, 1 988, p.28)

National approaches to quality( ... ) Following World War 11 the Japanese Industrialists were drawn into posts of national leadership. They wanted to develop their country industrially but found that their product quality was a major obstacle(Juran, 1 978, p.5)

Japan and the USA are strinkingly different in their organization for quality. In Japan, the revolution in quality was based primarily on a massive training program which started with the upper management ( ... ) a further feature of the Japanese approach is the concept of group agreement before undertaking new projects( ... ) In the USA, the organization forms are radically different. The trend has been to formally planned systems whích define departamental responsabilities as well as setting up the procedures to carry out the plans (Juran, 1 978, p.7) .

The Japanese rever the man who taught them that higher quality means lower cost. But in his own country, W.Edwards Deming has found few who will listen (Tribus, 1 988, p.26)

Uso o conceito de ritual já discutido acima, para definir os "Grandes Rituais do Mundo da

Qualidade" como aqueles eventos que fogem da rotina, e por isso mesmo, focalizam e

iluminam elementos estruturais e paradoxos da cultura da GQT. Um destes eventos foi

celebrado em outubro de 1 994 : a revista Quality progress reportou, como notícia de capa, o

"National Quality Month - Celebrating ten years of Quality". As conotações historicistas são

evidentes, e a comemoração se dá dentro de um Estado-Moderno.

Também as normas internacionais da qualidade, série ISO 9000, refletem esta divisão

internacional em Estados-Nações. Arruda ( 1 994), seguindo prática comum em diversos

1 75

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autores, estratifica "por países" os casos de certificados ISO 9000 auferidos até agosto de

1 994 : a Argentina possuía 355 empresas certificadas: o Japão , 400: os EUA, 1 600: e a

Inglaterra, 30500 empresas conformes com a norma internacional. Arruda ( 1 994) lembra que

tal norma se origina dos trabalhos da Organização Internacional para Padronização (ISO), e

que a norma congrega padrões nacionais de nove países·

Contudo, acredito que o melhor exemplo de "ritual" seria a concessão dos prêmios

nacionais de Qualidade. Certificados de Qualidade são distribuídos e trocados em enorme

quantidade, entre os mais diversos tipos de organizações. Entretanto, os prêmios da

Qualidade mais importantes, os que merecem maior atenção por parte dos estudiosos, são

os chamados Prêmios Nacionais da Qualidade. Por si só, esta constatação já é mais um fato

indicativo da trans-reificação entre a Sociedade da Qualidade Total e a ideologia do

Estado Moderno.

Tomados como eventos ritualísticos, estes Prêmios escancaram a inter-estruturação simbólica

tanto do Mundo da Qualidade Total, com os Estados-Nações. Eles podem ser imaginados

com uma "ponte simbólica" que reafirma valores da cultura da Qualidade.

Vejamos o caso dos prêmios japonês, americano e brasileiro (respectivamente: Prêmio

Deming, Prêmio Malcom Baldrige e Prêmio Nacional da Qualidade). Vale ressaltar que o

Prêmio Europeu da Qualidade (que pode ser interpretado como um símbolo antecipado da

pretendida unificação européia) não será discutido. Ele não acrescentaria ganhos teóricos

significativos, e é o menos mencionado na literatura pesquisada. As observações feitas

quanto aos outros três, provavelmente, poderiam ser estendidas ao Prêmio Europeu.

Para começar, a origem dos prêmios guarda total coerência simbólica com o papel do

Estado na economia de cada nação. O Prêmio Deming foi introduzido por iniciativa

conjunta das empresas, associações profissionais (no caso a União Nacional dos Engenheiros

Japoneses - JUSE) e do Estado Japonês. O Prêmio Malcom Baldrige nasceu da influência da

iniciativa privada sobre o governo americano, depois de esforços na busca da Qualidade

Total já terem sido implementados no país, por iniciativa própria das empresas (Nakhai,

1 994). Já o Prêmio Nacional da Qualidade faz parte de um "pacote" proposto (ou imposto)

às empresas pelo governo brasileiro, o "Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade"

(PBQP). Estes fatos guardam total correspondência com as atualizações que tais culturas

fazem da figura do Estado.

Interessante notar que DaMalla ( 1 990) diz que o ritual, às vezes, tem a capacidade de

mostrar o que está escondido pela cultura, de dar oportunidade à "alternativa

encompassada". Entre os três casos, é ponto comum entre diversos estudiosos que a cultura

americana pende para o individualismo, a brasileira para a ambiguidade individualista­

coletivista e a japonesa para o coletivismo. Pois é o Prêmio Japonês o único que guarda um

1 76

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espaço, uma categoria de premiação para um índividuo que se destaque nacionalmente

na área da qualidade. Tanto o prêmio americano quanto o brasileiro limitam-se a premiar

organizações (Nakhai. 1 994).

Por outro lado, o ritual também ilumina aspectos encompassadores da cultura.

Coerentemente com o espírito de "achievement" da cultura americana, Nakhai ( 1 994)

lembra que "The Baldrige Award is competitive. Unlike the other two awards, there is no

category in which ali applicants that satisfy a given levei of performance receive a quality

prize" (p.34).

Os laços simbólicos com as demais categorias da cultura da Qualidade estão presentes nos

três rituais. Nakhai ( 1 994) mostra que o Prêmio Deming foca a produtividade da organização,

a importância da Alta Administração. políticas, planejamento, controle. Um dos itens de

avaliação analisa os "Planos Futuros" da empresa.

Hart & Bogan ( 1 994). falando do Prêmio Malcom Baldrige, se prendem em laços simbólicos.

Primeiro, conotando "produtivismo, historicismo e Estado, mencionam que a habilidade

americana de competir "como nação, face ao rápido desenvolvimento do mercado

mundial dos anos 90, dependerá, fundamentalmente, da qualidade de nossos produtos e

serviços( . . . ) Nossas atividades, nosso padrão de vida e nossos futuros pessoais e nacionais

estão em risco" (p.XV).

Em seguida, ao descreverem a origem e a razão do "ritual", como estando intimamente

ligadas à perspectiva nacional. falam das ligações institucionais do Prêmio com o Congresso

Americano, reforçando a importância do Estado. Quanto aos critérios do prêmio, tem-se

produtivismo e historicismo reforçados: ( 1 ) Aperfeiçoamento Contínuo, (2) Planejamento, (3)

Prevenção, (4) Base Quantitativa, (5) Método Sistemático.

Na Parte 11 do livro, são mencionadas algumas pré-condições da Qualidade: ( 1 ) "Envolver

todos na organização"; (2) "Aperfeiçoar continuamente"; (3) "Medir"; (4) " Integrar"; (5)

"Formar equipes"; (6) "Envolver fornecedores" ; (7) "Reduzir o tempo de ciclo"; (8) "Planejar

sempre"; (9) "ter liderança da alta gerência"; ( l O) "Gerir o relacionamento com clientes". As

ligações com o Historicismo, o Produtivismo, o Poder na Alta Gerência e o Coletivismo são

explícitas.

Na parte 1 1 1 são descritas etapas historicamente lineares e sequenciais para o atingimento do

"padrão Malcom Baldrige": ( 1 ) Determinação da Visão futura da organização; (2)

Comportamento e eficácia gerencial; (3) Desenvolvimento do funcionário; (4) Satisfação do

cliente. É o Historicismo sendo aplicado.

Hart & Bogan ( 1 994) concluem com a descrição de diversos prêmios (rituais) derivados do

Baldrige, classificados com base nos diversos níves institucionais derivados do Estado e do

1 77

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produtivismo: comunidades, estados, setores industriais. Em termos de estrutura, são como

que rearrumações, bricolagens, usando o mesmo molde e os mesmo elementos do Prêmio

Malcom Baldrige.

No Brasil. o Grande Ritual é o Prêmio Nacional da Qualidade, parte integrante do "Programa

Brasileiro da Qualidade e Produtividade" (PBQP). Um documento oficial do Governo federal

(emitido em 1 99 1 ) lembra que tal programa pretende "uma filosofia de gestão que

pretende conduzir todos os segmentos da sociedade a uma postura que (através de um

comprometimento total) combata desperdícios" . O PBQP foi lançado em novembro de

1 990, corno "apoio ao esforço brasileiro da modernidade". Trata-se de um "programa

mobiliza dor" para alinhar "os ínstrumentos da Política Industrial e de Comércio Exterior, com

uma vigorosa atuação empresarial". Espera-se "vencer a competíção ínternacional e

assegurar substancial incremento na qualidade de vida da população brasileira", bem

como criar "uma ambiência favorável. tanto a nível gerencial quanto operacional. para a

mudança no sentido da modernidade" . Em seguida são citadas, no documento, as ações

gerais do Programa, que ressaltam como fundamental e imprescindível a participação de

órgãos, institutos, secretarias e comitês governamentais (federais e estaduais) .

Outro documento brasileiro, o "Prêmio Nacional da Qualidade - Critérios de Excelência -

1 993 - O Estado da Arte da Gestão da Qualidade Total", demonstra a estrutura de valores da

Cultura da Qualidade - historicismo, produtivismo, poder em um espaço social discriminado

e coletivismo - quando menciona:

... fortalecimento e manutenção dos laços com o cliente (p.3)

A alta direção da empresa deve adotar uma política orientada para os clientes( ... ) Os valores básicos da alta direção devem incluir áreas de responsabilidade comunitária e espírito cívico( ... ) A alta direção deve se empenhar em promover o crescimento e desenvolvimento de toda a força de trabalho, estimulando a participação e criatividade de todos os funcionários (pA)

A expressão 'melhoria contínua' refere-se tanto a melhorias incrementais quanto a melhorias 'revolucionárias ' ( . . . ) o processo de melhoria contínua deve incluir ciclos regulares de planejamento, execução e avaliação, o que requer uma base -preferencialrnente uma base quantitativa - para avaliar o progresso alcançado e para fornecer informações a futuros ciclos de melhoria (pA)

O vínculo estreito entre a satisfação dos funcionários e a satisfação dos clientes cria uma relação de co-responsabilidade entre a empresa e os funcionáríos(pA)

O sucesso em mercados competitivos requer sempre ciclos cada vez menores de introdução de novos produtos e serviços no mercado (pA)

Conquistar a liderança no mercado e em relação à qualidade requer da empresa uma orientação voltada para o futuro e a disposição de assumir compromissos de longo prazo com os clientes, funcionários, acionistas, fornecedores e a comunidade( . . . ) Parte relevante de tal compromisso a longo prazo refere-se ao desenvolvimento de funcionários e fornecedores, ao cumprimento de responsabilidades comunitárias e ao fortalecimento do papel da empresa como modelo na promoção do espírito cívico (p.5)

As empresas devem procurar desenvolver parcerias internas e externas( ... ) As

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parcerias internas pOderiam incluir esquemas que promovam a cooperação entre a direção e os funcionários(p.6)

Neste sub-item, foi demonstrada a interligação simbólica que os Grandes Rituais do Mundo

da Qualidade promovem entre produtivismo, historicismo, coletivismo e Estado.

Principalmente, foi proposto que, no plano macro, o Mundo da Qualidade e a ideologia do

Estado-Moderno, no jogo duplo, se reificam, sustentam, reforçam e interligam

simbolicamente.

Inicia-se, agora, um mergulho simbólico mais profundo, com a intenção de demonstrar que,

na dimensão política, nas fronteiras da questão do poder, a cultura da Qualidade Total

possui o mesmo elemento englobador que a civilização ocidental. Ou seja, uma proposta

semiótica de um espaço separado, "superior", legítimo e inquestionável, a partir do qual o

poder é exercido.

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5.5.2 - Alta Administração çomo Instância do Poder

Conforme Rocha ( 1 995), para a ideologia do poder alocado numa instãncia separada do

corpo social se concretize, é preciso que exista, além do "desejo do poder", a "vontade da

submissão".

O ponto é saber se existe um lugar, nessa representação da vida social. para o imperativo da 'ordem', do 'mando' e da 'obediência ' . Esses imperativos resgatam um principiO básico do poder e da política ( . . . ) A disponibilidade do 'mandado' para aceitar, por qualquer que seja o motivo, uma instãncia superior e mais poderosa, é inaugural e indispensável ao exercício absoluto da relação mando-obediência, transferindo o político de um plano perpassado r do corpo social para um plano separado e superior a ele (p. 1 8 1 ) .

Através dos exemplos abaixo, demonstro que a cultura da Qualidade atualiza

peculiarmente esta questão do poder, enquanto aloco seus membros, simbolicamente, em

duas esferas distintas. A esfera que domina, que impõe, que comanda, é a chamada "Alta

Administração, ou "Alta Gerência". A outra esfera, que obedece, que aceita, que se

submete, é composta pelos "empregados". Embora os limites de tais "espaços de poder"

nunca sejam determinados com clareza, eles estão presentes em qualquer descrição do

Mundo da Qualidade. Como era de se esperar, muitas vezes estes conceitos de

"administrador" e "administrado" encontram-se muito claramente ligados às concepções

historicistas, coletivistas e produtivistas:

Quality begins with the intent, which is fixed by management (Deming, 1 982, p.5)

O ciclo de Melhorias está intimamente ligado ao gerenciamento dos objetivos da empresa que busca melhoria em seus vários processos. Estas melhorias se somam para atender aos objetivos da alta administração (Campos, 1 990, p.49)

Management in authority will take pride in their adoption of the new philosophy and in their new responsabilities ( ... 1 will explain by seminars and other means to a criticai mass of people in the company why change is necessary, and that the change will in volve everybody (Deming, 1 982, p.86)

You can install a new desk, or a new carpet, or a new dean, but not quality control. Anyone that proposes to 'install quality control ' , unfortunately has little knwoledge about quality control. Improvement of quality and productivity, to be successful in any company, must be a leaming process, year by year, top management leading the whole company (Deming, 1 982, p. 1 39)

Innovation, the foundation of future, can not thrive unless the top management have declared unshakable commitment to quality and produclivity (Deming, 1 982, p.24)

O presidente (ou a maior autoridade local) deve ser o primeiro a romper o 'status quo' e conduzir o programa do CQTE. Este é um programa do presidente: ou ele assume o comando pessoal do programa ou sua implantação ficará comprometida (Campos, 1 990, p.30, grifos no original)

No Brasil os ganhos de produtividade serão muito superiores a 1 00%( . . . ) No dia em que os sindicatos descobrirem isso, passarão a exigir que a administração das empresas assumam o seu papel e utlizem metodologias que permitam melhorar a produtividade (Campos, 1 990, p.22)

1 80

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Tanto os administradores da empresa como os operários devem ser treinados ao longo do tempo para se tornarem exímios solucionadores de problemas(Campos, 1 990, p,54)

Management involvement in quality improvement and a company's focus on long­term commitment to its employees and products instead of short-term commitment to fínancial results ("lhe Government Learns About Quality in Japan", Quality Progress, March, 1 994, p,39)

". management supposes that ali problems are produced by the workers ("lhe Government Learns About Quality in Japan", Quality Progress, March, 1 994, p.42)

". um pavilhão particular, como o que a diretoria ocupa (Crosby, 1 993, p.63)

Deming said : 'If it isn't obvious to the workers that the managers are doing their part, which only they can do, I think that workers just get fed up with trying in vain to improve their part of the work. Management must do its part' ("lhe Government Learns About Quality in Japan", Quality Progress, March, 1 994, p.43)

A administração terá a tarefa de ajudar a todas as pessoas (".) a trabalhar juntas na base do toma-Iá-dá-cá, para chegarem a normas (".) que prestem real serviço aos clientes e à empresa (Deming, 1 990, p.48)

Um bom seguidor tem de desejar os mesmos resultados que o líder (Crosby, 1 979, p3 1 �

.

Quanto mais distante o administrador do administrado, menos eficiente a administração (Crosby, 1 979, p.36)

Deve ser óbvio, desde o início, que as pessoas desempenham de acordo com o padrão de seus líderes{".) Se a gerência crê que ninguém se importa, o pessoal não se importa mesmo(".) Não existem diferenças nítidas entre os vários níveis organizacionais, quando se trata de compreender a finalidade e o trabalho da companhia (Crosby, 1 979, p.22)

A alta administração só permitirá que a qualidade trabalhe futuramente, se ela ajudá-Ia a sobreviver no presente(".) a verdadeira força e valor da qualidade inclui aprender com o passado para facilitar o futuro (Crosby, 1 979,p.86)

Management had to take the lead in changing(".) had to develop long-term relations with vendors". When top-management had seriously commited to quality, lower-Ievel personnel would be more likely to take actions (Garvin, 1 992, p. 1 82)

Se não houver comprometimento de quem está no topo e se esta pessoa não se mostrar envolvida, um programa de Qualidade não poderá dar resultados positivos (Arruda, 1 994, p. 1 4 1 )

Garantido o envolvimento e a conscientização da alta gerência, o passo seguinte é estabelecer um plano de ação top-down (Arruda, 1 994, p.44)

Foi exaustivamente colocado por todos os entrevistados a importãncia do compromisso da alta liderança como condição básica para o sucesso do Programa de Qualidade. Mais do que isso, todos mostraram na prática como se dá este envolvimento da liderança, seja através de reuniões periódicas ou de discussões com funcionários de distintos niveis hierárquicos (Arruda, 1 994, p. 1 7 1 )

". sem qualquer exceção, todos os autores de trabalhos sobre gestão da qualidade pesquisados indicam que o comprometimento, em especial dos altos escalões da empresa, é fundamental para a implantação, implementação e continuidade do processo (Pereira, 1 993, p.55)

Uma empresa para ser considerada excelente deve ter alta participação dos funcionários nas decisões da organização e um grande envolvimento da alta direção no dia-a-dia da empresa{ ... ) uma gerência mais participativa é desejada

1 8 1

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(Pereira. 1 993, p.22)

A administração superior deve participar, deve haver uma abordagem organizada dos problemas e da forma de solucioná-los, deve haver uma conscientização de que a carga de trabalho aumentará e, finalmente, deve haver um sistema de recompensas para os resultados (Pereira, 1 993, p,48)

Esta ligação simbólica. marcada pela divisão de poder. entre Estado Moderno e Mundo da

Qualidade pode ser ainda vislumbrada pelo uso metafórico das diferentes modalidades de

exercício de poder pelos "Estados Modernos". Crosby ( 1 993, p.65) usa uma Matriz para

classificar Sistemas Administrativos. Ele caracteriza as organizações, em função da Política

Organizacional, da Definição de Requisitos, da Educação. da Avaliação de Desempenho e

dos Objetivos Organizacionais em cinco "tipos". Tais tipos de Sistemas Administrativos são

denominados através de metáforas do "Estado" : (I) "Terceiro Reich"; (2) "República das

Bananas". (3) "Monarquia Constitucional"; (4) "República Americana"; (5) " Integração do

Século XXI".

Mantendo a linha de separar os membros das organizações entre dois grupos, encontra-se

na Business Week de 2 de dezembro de 1 99 1 , um artigo sobre Qualidade Total com a

afirmação: "in the future. managers will have to cede power and responsability to

employees. the people who can do the most about quality" (p. 1 8) .

Scott J . Simmerman (Quality Progress, October 1 994), usa outra metáfora que demonstra a

existência de dois grupos, com duas visões diferentes: o grupo dos líderes e o grupo dos

"outros" :

The person in front of the wagon represents leadership. Leaders work hard to pull the organization forward. Focused on the future and the challenges ahead. they tend to beco me insulated and somewhat isolated from the bumps and thumps of the journey. The people in back represent those who push the organization forward. They feel every bump and thumps in the road. They share a limited view of where they are going (p.87)

Complementando o acima exposto a respeito do poder, Rocha ( 1 995) liga a "realização do

poder" ao "direito de falar":

O chefe pode ser algumas coisas e. entre elas, o homem que fala. E a fala é a razão do seu lugar ( . . . ) O ato da fala é um ato do poder porque este assegura o domínio da palavra. Os senhores são os que podem falar. Por isso, poder e palavra estão presos um ao outro como as faces de uma única moeda. Para quem domina, a fala é fundamental( . . . ) A palavra do 'déspota' , do 'príncipe ' . ou do'chefe de Estado' é rica em eficiência pois ela se chama ordem e não deseja senão a obediência do executante. Poder e palavró vivem um no outro, um é substãncia do outro( .. . ) A palavra é palavra de ordem e se sustenta, em última instãncia, na violência" (p. 1 84)

Neste sentido. há uma enorme significância na definição de "políticas da qualidade", com

a consequente imposição de "missão, visão, normas". Cerqueira Neto ( 1 99 1 ) defende que

"auditorias da presidência" são excelentes para dois objetivos: garantir o

"comprometimento da alta administração e a "avaliar os resultados" (p.63). O autor diz que

1 82

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cabe à alta administração

além do suporte aos times de projeto, iniciar a construção da infraestrutura do processo de melhoramento da qualidade, através do desenvolvimento do processo de projetos, da alocação de recursos, da cnação de instrumentos de divulgação interna e externa da qualidade, dos critérios para avaliação e recompensa dos esforços dos funcionários na busca da qualidade (p.66)

Mais explícita ainda é a correlação entre "poder e palavra" advinda de Arruda 1 1 994) utiliza,

dentro das fronteiras da Qualidade, que coloca ser o papel de "lideranças

conscientizadas", exercer a "arte de comunicar Qualidade" .

Neste item, foi demonstrado como mais uma dimensão simbólica da cultura da Qualidade

Total é congruente com valores encompassadores da civilização ocidental. Nesta última, a

questão do poder é materializada na figura do Estado, instância própria para o seu

exercicio, como espaço separado do corpo social.

Tal estruturação de significados se repete no Mundo da Qualidade. Isto ocorre no plano

macro, onde os rituais da Qualidade utilizam-se e são utilizados pelos Estados Modernos,

numa circularidade reificadora e confirmatória. Também ocorre num nivel simbólico mais

sutil, onde o discurso da sociedade da Qualidade estabelece uma instância de poder

separada que submente o restante dos membros. Trata-se da "Alta Administração", uma

figura de definição tão fugaz quanto a do Estado Moderno, porém, assim como o Estado, de

compreensão tão clara e difundida pelo corpo social.

Articula-se com este simbologismo, a preeminência dos conceitos de "iniciativa da alta

administração"; "comprometimento da alta administração"; "política da Qualidade"; bem

como a constante separação dicotômica administração/empregado presente na literatura

e no discurso dos "nativos" da Qualidade Total.

No próximo item, será estudada a única dimensão cultural da Sociedade da Qualidade

Total onde o elemento encompassador difere radicalmente daquele que predomina na

cultura ocidental-industrial-burguesa-contemporânea. É a questão da compreensão do Ser

Humano como, prioritariamente, "indivíduo", ou como "membro da coletividade".

o encompassamento típico da Civilização Ocidental favorece o "indivíduo" em relação à

"pessoa". Prevalece o individualismo sobre o coletivismo. A cultura brasileira, conforme

demonstrado, joga ambiguamente com esta dimensão simbólica. A questão, deslocada

para o Mundo da Qualidade Total. apresenta uma paradoxal moldura coletivista, que será

demonstrada a partir de agora.

1 83

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5.6 - O Coletivismo no Mundo da Qualidade Total

Nos três itens acima. neste capítulo cinco. foi defendida. através de uma "etnografia

bibliográfica" do Mundo da Qualidade. a proposta de que tal cultura utiliza e elabora as

concepções simbólicas da civilização ocidental-burguesa-moderna. O "tempo" é História; o

" Produtivismo" responde à propensão "natural" à escassez; o "Poder" fica alocado

legitimamente numa instãncia especial e separada do corpo social.

Neste item. a discussão se volta ao continuum individualismo-coletivismo. A hipótese exposta

é de que. quanto à esta categoria sociológica. o elemento encompassador na cultura da

Qualidade Total reverte simbolicamente os valores ocidentais contemporãneos. A

Sociedade da Qualidade Total atualiza. de um modo idiossincrático. as concepções

coletivistas para a questão do Ser Humano e das relações sociais.

Como nos itens anteriores. a defesa desta hipótese sustenta-se numa coletânea de

fragmentos literários. Obviamente haverá superposiçâo e entrelaçamento entre este

discurso coletivista e os discursos historicista. produtivista. e de poder como instância

particular. Vejamos:

Put everybody in the company to work to accomplish the transformation. The transformation is everybody's job. IDécimo-quarto e último ponto da lista de recomendações de W.E.Deming. para a busca da Qualidade Total. em Deming. 1 982)

As montadores Uaponesas) e seus fornecedores mantém um relacionamento bastante íntimo IDeming. 1 990. p.36)

A administração terá a tarefa de ajudar a todas as pessoas I . . . ) a trabalhar juntas na base do toma-Iá-dá-cá. para chegarem a normasl ... ) que prestem real serviço aos clientes e à empresa IDeming. 1 990. pA8)

It was na! new in Japan; people work together. In facto the relationship between a good vendor and a purchaser is as binding a relationship as that between a worker and company. or between teacher and pupil - a lifelong relationship I"The Government Learns About Quality in Japan". Quality Progresso March. 1 994. pAO)

Mais importante que o preço. no estilo japonês de fazer negócios. é a melhora constante da qualidade. que somente pode ser alcançada mediante um relacionamento de lealdade e confiança de longo prazo. relacionamento este estranho ao modo norte-americano de fazer negócio. Um fornecedor tem um dever para consigo mesmo e para com seu cliente IDeming. 1 990. p.33)

Um Círculo de CQ é a maneira japonesa natural das pessoas trabalharem juntas IDeming, 1 990. p.356)

Todas podem participar de uma equipei ... ) Todos os membros de uma equipe têm a oportunidade de contribuirl . . . ) qualquer um deve esperar ver algumas de suas melhores idéias submergirem em face do consenso da equipe. Poderá ter nova oportunidade. em outra retomada do ciclo. Uma boa equipe terá memória social IDeming. 1 990.p.67)

There is no substitute for teamwork and good leaders of teams to bring consistency of effort IDeming. 1 982. p. 1 9)

No one can pu! in his best performance unless he feels secure. ':Se " comes from the

1 84

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Latin, meaning without, "cure " means fear. Secure means without fear, not afraid lo express ideas, nol afraid lo ask questions(., ,) Evalualion of performance explains ( . . . ) why il is difficult for slaff areas lo work togelher( ... ) leamwork, so highly desirable, can nol Ihrive under lhe annual raling. Fear grips everyone. Be careful; don'l lake a risk; go along (Deming, 1 982, p. 59)

Each staft area was suboplimizing ils own work, bul nol working as a leam for lhe company. II was lhe new presidenl's jOb to coordinale lhe talenls of lhes e men for lhe good of lhe company .. Teams composed of people in design, engineering, production and sales could conlribute lo designs for lhe fulure, and could accomplish important improvements in product, service and qualily of loday( . . . ) Teamwork is sorely needed Ihroughoul lhe company. Teamwork requires one lo compensale wilh his slrength someone else's weakness (Deming, 1 982, p.63)

O desperdício resulta da excessiva compelição interna. do falo de não se procurar as causas fundamenlais dos problemas. do querer reinventar a roda - para dar nome a uma série de situações em que o Irabalho em equipe deve render dividendos (Mann. 1 992. p.86)

Não basla ler clienles que fiquem meramente salisfeilos. Os clienles salisfeilos mudam, sem nenhuma boa razão, apenas para experimenlarem ou Iras coisas. O lucro e o crescimenlo vêm de clienles que orgulham-se de seu produlo - o cliente fiel. Ele não precisa de publicidade ou oulra persuasão, e Iraz um amigo (Mann, 1 992, p . l 05)

Nossos colegas de Irabalho são clienles que esperam que façamos nossa parte denlro da cadeia que é a organização (Crosby, 1 993, p.40)

A Integração conlém Irês princípios: fazer com que os empregados sejam bem­sucedidos, fazer com que os fornecedores sejam bem-sucedidos; e fazer com que os clienles sejam bem-sucedidos (Crosby, 1 993, p. 1 6)

One of lhe major calalysls for lhe Iremendous surge in performance in quality, produclivily, and competiliveness was lhe formal teamwork agreemenl between lhe UAW (Uniled Aulo Workers) and lhe company(".) for a company anylhing like ours, lhe first Ihing people have lo do - as a group, and Ihal's importanl - is lo oblain a commitmenl lo excellence and compeliliveness. Unless everyone shakes hands and say 'We are commiled. We wanl lo do il' , Vou really are nol going to get very faro Teamwork, like commilmenl, is also fundamenlal if vou wanl lo be lhe best. Everyone has to sign up aI lhe same time for lotai leamwork (Alex Trolman, cilado por Karem Bemowsky, em "Ford Chairman Was, and Conlinues To Be, a Progress Chaser", Qualily Progress, Oct 1 994, v27, n l 0, p.3 1 )

The mosl fundamenlal of these differences is in lhe policy followed as lo lhe basic relalionship between vendor and buyer. AI one extreme is lhe adversary concepl: mulual doubl if not mistrusl; reliance on conlract provisions, documenls, penalties and olhe r elements of an arm's lenghl relalionship. AI lhe other exlreme is lhe leamwork concepl : mulual lrusl and confidence, cooperalion, joinl commilmenl (Juran, 1 978, p.5)

1 85

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Uma empresa honesta só pode sobreviver dentro de uma sociedade se for para contribuir para a satisfação das pessoas ( . . . ) a primeira preocupação da administração da empresa deve ser a satisfação das pessoas afetadas pela sua existência ( . . . ) a primeira prioridade da empresa são seus consumidores. É necessário, e mesmo vital para a empresa que eles (os consumidores) se sintam satisfeitos por um longo tempo após a compra do seu produto ( ... ) Um segundo tipo de pessoa afetada pela empresa é seu empregado. A empresa deve se esforçar para pagar­lhe bem ( . . . ) Um terceiro tipo de pessoa afetada pela empresa é o acionista ( ... ) a empresa deve ser lucrativa de tal forma a poder pagar dividendos a seus acionistas e se expandir. A produtividade gera o lucro que reinvestido é o único caminho seguro para a geração de empregos (Campos, 1 990, p.29)

No CQTE. onde a especialização e o profissionalismo são evitados, todos são responsáveis por pela qualidade, todos praticam o desenvolvimento tecnológico, todos são responsáveis pelas suas próprias equipes (Campos, 1 990, p. 1 1 6)

As auditorias praticadas em controle da qualidade devem sempre ter como objetivo ajudar as pessoas, cooperando com elas no sentido de trazer condições melhores de vida para todos. A natureza do homem é boa, ele precisa ser orientado e ajudado (Campos, 1 990, p. 1 54)

... na Qualidade Total a padronização é tarefa de todos (Campos, 1 992, p. l 7)

A noção de sistema e de organização deve implicar em solidariedade das partes visando um objetivo comum. Assim, a liderança deve motivar os departamentos a saírem de seus 'esconderijos' através (I) do maior diálogo entre cliente e fornecedor (externos e internos): (ii) de grupos de aperfeiçoamento interfuncionais: (iii) trabalhos em equipe para desenvolver novos projetos e (iv) formação de parcerias. Busca-se assim, quebrar barreiras decorrentes de ( ... ) objetivos individualizados{ ... ) que levam ao desinteresse e à alienação de qualquer diSfunção gerada em outros pontos da organização (Arruda, 1 994, p.44)

... estimula-se um corportamento mais pro ativo e participativo de cada funcionário (Arruda, 1 994, p.46)

... busca-se com isso, fazer com que o funcionário se sinta efetivamente mais participante (Arruda, 1 994, p.1 57)

Diariamente, antes do início da jomada, supervisores se reúnem por 1 0 minutos{ ... ) também são realizados cafés-da-manhã com a presidência uma vez a cada mês (Arruda, 1 994, p.1 58)

É necessário que, por trás de todas as técnicas empregadas, exista um fator aglutinador e coordenador de esforços, uma força impulsionadora do processo (driver) . Este elemento seria a gerência associada aos funcionários e clientes{Pereira, 1 993, p . 1 4)

Os clientes podem ser extemos - aqueles que não fazem parte da organização, incluindo aí os órgãos reguladores, público em geral e, por extensão, pode-se incluir os fornecedores e concorrentes - ou intemos (Pereira, 1 993, p.33)

A concepção coletivista do mundo implica em ver o Ser Humano, não como "indivíduo",

mas como um membro de uma teia de relações sociais. Impõe valorizar mais as

interligações subjacentes à esta rede de relacionamentos do que a unicidade de cada

ente que a materializa.

1 86

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Neste sentido, embora, como sempre, o elemento encompassado possa se fazer presente -

"a função 'qualidade' é responsabilidade de todos. Cada homem na organização precisa

conhecer qual é sua contribuição" (Pereira. 1 993, p.48) - a cultura da Qualidade é coletivista.

A proposta é que todos os Seres Humanos se encontram interligados. Mais ainda, friso que a

sociedade coletivista tende a demarcar profundamente a posição e o papel de seus

"grupos internos" - seus "clãs" e "hierarquias" -, embora sempre valorizando e reafirmando o

modo de interação social entre tais grupos.

o mesmo processo classificatório, demarcatório e hierarquizante é enfatizado na cultura da

Qualidade. Tal encompassamento do individualismo pelo coletivismo se reforça pela

presença de diversos "elementos grupais classificatórios" no discurso GQT: ( 1 ) parceria com

fornecedores: (2) intimidade com clientes: (3) intertigação entre as funções internas da

empresa; e, principalmente, (4) trabalho em equipe.

Concluo lembrando que este último elemento (trabalho em equipe) é peça chave no

Mundo da GQT. Embora possa ser "fantasiado" de muitas maneiras (projetos de melhoria,

CCQ. etc.). é difícil resistir à comparação relativizadora com o "trabalho comunitário",

identificado por Malinowsky ( 1 984) numa sociedade tribal de valores tipicamente coletivistas

(os grifos são meus):

Falei de trabalho organizado e trabalho comunitário. Essas duas noções não são sinônimas ( . . . ) trabalho organizado implica na coordenação de diversos elementos social e economicamente diferenciados. Trata-se de assunto bem diferente, entretanto, quando diversas pessoas se ocupam, lado a lado, da execução de um mesmo trabalho, sem qualquer divisão técnica do trabalho ou diferenciação social das funções( . . . ) em alguns casos, o trabalho comunitário é de extrema importãncia e, em todos eles, facilita consideravelmente a execução do trabalho. Do ponto de vista sociológico, o trabalho comunitário é muito importante, pois implica em auxílio mútuo, em troca de serviços e em solidariedade no trabalho em grande escala. O trabalho comunitário constitui um fator importante na economia tribal dos nativos de Trobriand ( . . . ) Há, portanto, diferentes modalidades de trabalho comunitário, com muitas particularidades interessantes ( . . . ) em todos os casos é a obediência ao dever, imposta pelos costumes, que os faz trabalhar" (p. 1 26)

Neste capítulo, apresentei os valores da GQT para defender a hipótese de que, na Cultura

da Qualidade Total, o historicismo encompassa o totemismo, o poder localiza-se num

espaço social pré-definido, o produtivismo é a concepção dominante e o coletivismo

predomina sobre o individualismo. No próximo capítulo, a união desta idéia com as

anteriormente descritas finaliza o trabalho.

1 87

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Capíú:1l.o G

PROPOSTAS E CONCLUSÔES

"Apesar de todos os inventários e de todas as teorias, existirão ainda,

para serem descobertas, muitas luas mortas ou pálidas, ou obscuras, no

firmamento da razão. "

DaMatla, lembrando Mareei Mauss

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6. 1 - Limitações do Estudo e Oportunidades Abertas

Neste item de conclusão. algumas limitações do estudo são ressaltadas e algumas

suposições adicionais são elaboradas. Estas auto-criticas e suposições podem servir como

oportunidades para novas pesquisas nesta linha.

Em primeiro lugar. uma pesquisa literária foi a semente desta primeira etnografia da

Sociedade da Qualidade Total. Foram lidos livros de autores reconhecidos e edições inteiras

da Revista Quality Progresso Ainda no campo que podemos considerar "específico da

Qualidade Total". foram consideradas teses recentemente defendidas por ex-alunos da

COPPEAD/UFRJ. Outros elementos de comunicação de massa. como jornais e revistas.

nacionais e estrangeiros, técnicos ou não, também fizeram parte da pesquisa. Foram

selecionados duas edições do mesmo mito e cento e vinte e três citações como fragmentos

deste processo de estudo que, petulantemente, chamo de "etnografia". Eles foram

alocados ao longo do capitulo cinco, na intenção de entender o simbolismo que mapeia o

comportamento no mundo da Qualidade Total. Ou seja, na intenção de etnografar esta

cultura.

A crítica possível é que, embora este seja um método válido, é apenas uma dentre diversas

ferramentas disponibilizadas pela Antropologia Social para o estudo de culturas.

Relativizando o conceito de "pesquisa de campo". posso dizer que transitei, fui e voltei.

questionei. reelaborei. "etnografei". num "campo de palavras escritas". "Viajei" para um

território literário e "habitei" intermitentemente este espaço por um ano.

Certamente tal descrição etnográfica poderia ser complementada e melhorada por uma

"pesquisa de campo" dentro das empresas, com entrevistas, questionários e observação

participativa. Com análises qualitativas de discurso, e, talvez, com avaliações quantitativas.

Fica aberta a oportunidade, no estilo da Antropologia Social, para novas etnografias, mais

completas, desta Sociedade da Qualidade Total. Esta é a minha primeira proposta de

estudo subsequente.

Acrescento. a seguir, alguns elementos e suposições sobre Brasil e Qualidade Total, que,

embora careçam da "prova cientifico", certamente são aqueles "detalhes do cotidiano"

que devem chamar a atenção do etnógrafo. E, por isso, são também oportunidades para

reflexão e estudo.

O primeiro ponto é que, verdade ou mentira, no discurso de seus nativos, o Mundo da

Qualidade Total está intrinsicamente ligado ao Japão. Pelo acesso teórico que tive sobre o

Japão (Brannen & Salk, 1 995; Braudel, 1 989; Hofstede, I 980; Kanemoto & MacLeod, 1 99 1 ;

Medeiros, 1 99 1 ; Nakane, 1 970; Rocha, 1 994; Rocha, s.d.; Trompenaars, 1 993). levanto a

questão que a cultura japonesa atualiza as dimensões simbólicas aqui discutidas de uma

1 88

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maneira muito similar à cultura da GQT (ou vice-versa) . Com certeza, de um modo

simbolicamente muito coerente com a GQT do que a Cultura Brasileira.

Dentro desta mesma linha sugestiva, uma cultura como a americana, reconhecidamente

diferente da japonesa (e da brasileira), deve apresentar características que não estão em

total sintonia e alinhamento com os valores da Qualidade Total. Alguns autores já se

aventuraram por este caminho.

Em Bemowski ( 1 993) , são sintetizados os resultados de uma pesquisa sobre Qualidade Total

nos Estados Unidos, dizendo que :

Each American believes that he or she is unique (p.65)

Americans accept imperfeclion{ . . . ) they equate quality with 'it works' and not perfection{ . . . ) a goal such as zero defects does not motiva te most Americans{ . . . ) people accept that it isn't a perfect world, but they do get upset when a problem isn't dealt with properly{ p.66)

For most Americans improving life a little bit every day for the next ten years is boring. Breakthroughs, on the other hand, are exciting and progressive{ ... ) challenges and crisis motivate Americans to achieve breakthroughs (p.66)

Americans view change positively if they control the change (p.67)

A vision or impossible dream is a key motivator for improvement{ ... ) Americans believe that the United States is the place where those dreams can be fulfilled (p.67)

Americans are more interested in what they can become rather then in what they currently are (p.67)

Americans prefer to improve by first deconstructing (taking apar! what exists) and starting over ( p.67)

Nesta pequena amostra de citações, pode-se perceber indicações simbólicas da

atualização que a cultura americana faz dos "universais" : Estado/poder, individualismo,

tempo e produtivismo.

A mesma Bemowski ( 1 995), sintetiza achados sobre o "trabalho em equipe", nos Estados

Unidos. Ela demonstra ainda mais a profundamente como interagem a cultura da GQT e a

cultura americana, ao afirmar que

The results of the team archetype study do: 'About and beyond an organizational goal. a team in America is a launcher, whose purpose is to launch individual team members, much as a rocket booster launches the space shutlle', states the Teamwork Executive Summary. 'A team purpose is to enhance individuais, to pro mote their lurther success. A team is thus a vehicle by which individuais can achieve more than they would or could by themselves ( . . . ) The bottom line is that American employees expect teams to benefit them as well as the company. Each member wants to know 'Whal's for me?' when he or she parficipates in a leam. In U.S. organizations, it is not enough that a leam have a single goal; each individual in the team must have a goal as well (pAO).

Acrescente-se a este conjunto a opinião de Kanemoto & MacLeod ( 1 99 1 ) , que afirmam que

"American workers value their right to act independently, then a Japanese system that

requires a great deal 01 co-ordination and commitment among workers may not be leasible"

1 89

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(p. 1 68) . Nesta moldura, a minha segunda proposta é que estudos etnográficos comparativos

envolvendo o Mundo da Qualidade Total. o Brasil. o Japão, os Estados Unidos, e quaisquer

outras nações poderiam prover novas revelações e acrescentar bastante a esta linha de

pesquisa.

Mudando o foco e recolocando fronteiras teóricas no estudo do Brasil e da cultura brasileira,

creio que os fragmentos de conhecimento, descritos ao longo da dissertação, podem ser de

extrema valia para outros estudos sobre a "Qualidade Total" em empresas brasileiras.

Será que, efetivamente ( 1 ) Comprometimento da Alta Administração; (2) Participação dos

empregados e Trabalho em Equipe; (3) Planejamento e Controle dos Processos Empresariais

e Operacionais por Métodos Estatísticos; (4) Foco nos Clientes Interno e Externo; (5) Melhoria

Contínua e Inovações, conceitos típicos dos discursos teóricos sobre Qualidade Total, são

concretizados de forma peculiar no Brasil ? Será que existem diferenças quando tais

métodos são aplicados em empresas grandes ou pequenas ? Empresas privadas ou públicas

? Nacionais ou multinacionais ? De capital aberto ou familiares ?

Por exemplo, Pereira ( 1 993) já analisou como as possíveis "abordagens para

implementação" da GQT operaram numa empresa brasileira. Ele propõe o benchmarking

como ferrarnenta para melhoria contínua; o TQC à japonesa iniciado por um cornitê de

executivos senior; a ênfase ern treinamentos, CCQ ou times, sugestões funcionários,

feedback clientes, pesquisas.

Campos ( 1 992) prega o uso do "Método da Cumbuca", afirmando que nós, brasileiros, "não

gostamos de ler, mas adoramos trabalhar ern grupo ! " (p.2).

A influência cultural que permeio estas propostas é uma questão aberta. Certamente,

existern indícios de que, nas empresas brasileiras que encaram processo de Qualidade Total.

o significado agregado aos mesrnos elementos universais do Mundo da Qualdade é

bastante peculiar.

O fato das iniciativas sobre Qualidade no Brasil terem, em grande parte, partido do Governo

Federal, através do PBQP, possui coerência simbólica. Reconfirmo-se a interpenetração

hierárquica e ambígua entre econômico e político. Mas existem outros detalhes.

Por exernplo, se a Qualidade Total prega documentação e respeito aos procedirnentos

escritos, é notório que, nas empresas brasileiras, o uso das chamadas "gambiarras"

("jeitinhos"operacionais) é consagrado e, rnuitas vezes, positivamente valorizado. Há

relutãncia em acessar os documentos escritos, mas o contato e a transmissão verbal de

práticas é significativo. A questão da "lealdade gerencial", predominando sobre a mera

racionalidade produtiva também se faz extremamente presente no arnbiente empresarial

brasileiro. Isso talvez explique a afirmação de um empresário brasileiro, industrial em São

1 90

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Paulo: "Posso até ser obrigado a ter a ISO 9000. Mas, para mim, a experiência e lealdade dos

meus encarregados que estão na fábrica há vinte anos é muito mais importante que os

papéis escritos e controlados".

Numa empresa localizada no Rio de Janeiro, Rocha ( 1 995c), encontrou afirmações que

abrem questões sobre o conceito de cliente interno, de racionalidade burocrática dos

procedimentos e de hierarquia formal:

. . . é facil conseguir o que eu preciso, pois trato todo mundo bem e consigo dar um jeitinho

Você chega e pede alguma coisa: 'olha eu preciso que você conserte isso aqui para mim ' . 'Não vai dar para consertar isso agora, porque eu estou com um monte de coisa, mas eu vou tentar quebrar o teu galho ' . Parece que todo mundo é macaco gordo e quebra galho para todo mundo. Você não me deve favores. Até parece que eu faço favor em trabalhar e ter que fazer alguma coisa para você. Todo mundo diz que quebra o galho para todo mundo. Quando você fala tem quase que suplicar um favor, assim pedindo pelo amor de Deus.

Não peço nada para depois não me jogarem na cara que eu sou privilegiado ou ficar devendo favor. Por que aqui as coisas são dadas muito como favor. Depois quando acontece alguma coisa ou estão precisando de alguma coisa que você é contra, eles jogam na cara: 'te dei aquilo, te dei aquilo outro' .

.. . em muitos países as pessoas divergem, aqui confundem profissional com pessoal. devido a um problema pessoal. você não consegue trabalhar junto.

Ainda quanto à questão da influência das práticas "relacionais e subjetivas" sobre processos

idealmente "produtivos e racionais", um engenheiro de uma multinacional americana

operando no Rio de Janeiro, afirmou que as contratações sempre dependem de

"indicações da diretoria". Numa outra multi nacional "carioca", o gerente de produção

reclamou que "os Encarregados perdem a moral porque tentam proteger os operadores.

Parece que são filhinhos protegidos. Esta falta de liderança gera abuso e os encarregados

acabam desprestigiados".

Em outros trabalhos profissionais e acadêmicos que desenvolvi, encontrei indícios de que a

própria implantação de processos da Qualidade costuma, nas empresas brasileiras, passar

por processos semelhantes ao processo político nacional. Inicialmente, o processo é visto

como uma enorme oportunidade, alguns gerentes como "Salvadores da Pátria" e o

entusiasmo com a possibilidade de mudanças aparece. Logo em seguida, como já

demonstrado acima na História do Brasil. passa a não mais haver credibilidade em

mudanças profundas e duradouras, e a sensação de "mudar para continuar igual" passa a

predominar e desmotivar os empregados.

Existem ainda detalhes menores, mas de alto valor simbólico. Em reuniões para trabalhos em

equipes (das quais fui membro) Objetivando projetos de melhoria de qualidade, a única

certeza era sobre os atrasos no início da reunião e na realização dos ações planejados.

Notória, também. era a evitação de expor sozinho, em público, opiniões que pudessem ser

1 9 1

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publicamente avaliadas e rejeitadas, ou que fossem potencialmente conflituosas. Na

mesma empresa, ouvi comentários de que "Qualidade é uma escada para quem é do

grupinho e, no fundo, é mais trabalho para os demais que não são".

De qualquer forma, a Qualidade Total parece ser mais facilmente aceita nos médios

escalões do que, por exemplo, propostas de Reengenharia. Coloco a interrogação: será

que a Reengenharia é menos "adequada" à cultura brasileira porque explicita o conflito,

enquanto a Qualidade acoberta conflitos com propostas de "participação" e

"comprometimento" ?

Por tudo isso, proponho entender a cultura brasileira como uma cama elástica, onde os

conceitos de qualidade são lançados e, se podem se moldar, podem também quicar e

serem repelidos. Raramente se alocam de forma determinista ou inteiramente previsível.

Sustento que a esfera social impacta e é refletida na microesfera organizacional; que a

sociedade, em diversos aspectos, é reproduzida na empresa. Nestes termos, lembro Rocha

( 1 995c), que propõe que "culturas organizacionais" não acontecem no vácuo, que os

valores não se realizam em um espaço neutro:

Na realidade, em que pese a existência de elementos autõnomos e significados particulares na cultura organizacional. podemos dizer as culturas nativas são embebidas ou encompassadas pelo sistema simbólico abrangente. No mínimo, são obrigadas a um diálogo com esta cultura mais ampla como condição de sua permanência enquanto instituição viva ( . . . ) em um complexo jogo que envolve funcionários interagindo entre si e com a sociedade brasileira como um todo ( . . . ) Seria improvável não existir uma reciprocidade entre as duas culturas. A cultura de uma instituição ( . . . ) apresenta uma gramaticalidade com a cultura brasileira. A questão cifra-se em tentar perceber a natureza dos estímulos externos que incentivam ou constrangem as representações da identidade do funcionário.

Vale a pena, então, pesquisar como os "universais" da Administração - por exemplo, "cliente

interno", "satisfação do cliente", "trabalho em equipe", "procedimentos escritos", "ISO

9000", "alta administração" e "controle estatístico" - jogam simbolicamente com os agentes

organizacionais brasileiros. Proponho, inciusive, a checagem do significado que o próprio

conceito "empresa produtiva" adquire para os diversos atores. Seria exagero supor que nos

Estados Unidos, com o predomínio quase absoluto de uma ética cultural encompassadora

única, a ética da "rua", a empresa é meramente um "espaço utilitário"? Que no Japão,

num encompassamento pela "casa", empresas espelham uma potencial extensão do

espaço familiar? Que no Brasil, as empresas sejam entidades sociais ambíguas, sujeitas a

várias definições e gradações de acordo com os contextos e com as necessidades de cada

"ator" ?

DeMacedo-Soares & Lucas ( 1 995) , comparando Brasil e Estados Unidos, afirmam que, no

Brasil, predomina a falta de uma "cultura" de qualidade-de-vida-no-trabalho, e que os

elementos da Qualidade Total. quando existem, estão desalinhados e desintegrados.

1 92

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Afirmam também que as propostas de delegação e "empowerment" são atualizadas de

forma bastante diferente no Brasil. em relação ao significado teórico destes termos.

Entretanto,

The local cultural traits can be positively exploited( . . . ) paradoxally, paternalism and personalism can contribute to the effectiveness of leaders who encourage new behavioral pallerns by their personal example, The other Brazilian cultural characteristics of creativity, flexibility and ability to improvise are fundamental( . . . ) speedy innovative solutions to unexpecled customer problems can make a significant difference in terms of customer satisfaclion (p,490)

Na mesma linha, Humphrey ( 1 995) demonstra que, apesar do entusiasmo do empresariado e

governo brasileiros com os resultados já atingidos por processos de Qualidade Total. estes

provavelmente advêem mais do enorme "gap in performance" anteriormente existente, Ele

demonstra que, apesar das melhorias, a produtividade e qualidade brasileiras ainda estão

longe de atingir níveis mundiais. Quanto mais próximos destes níveis, mais difíceis novas

melhorias.

Tão questionável quanto interessante (em termos simbólicos) , é a conclusão do artigo, com

a proposta de que "the authoritarian solution may work in Brazilian conditions" (p.784).

Até aqui. propus que (i) minha dissertação fosse ampliada e complementada (ou criticada)

com a utilização de diferentes metodologias de pesquisa cultural; (ii) fossem feitos estudos

gerais, comparativos entre diversos países, sobre Qualidade Total; (iii) fosse aprofundado o

impacto da cultura brasileira sobre os esforços de Qualidade Total no interior das

organizações, seja por estudos gerais, seja por estudos específiCOS de cada elemento da

Qualidade Total . Uma quarta proposta é, mudando de fronteiras, estudar o impacto do

encontro de culturas organizacionais específiCas com o Mundo da Qualidade Total.

Nas quatro propostas acima, a origem está no Mundo da Qualidade; o fluxo de raciocínio

vai deste mundo para as culturas nacionais ou organizacionais. Minha última suposição e

consequente proposta fazem o caminho reverso. Partem do ambiente brasileiro para

alternativas gerenciais. Preconizam a alternativa de criar sistemas simbólicos convergentes a

nivel nacional e organizacional. ao invés de adaptar "filosofias" importadas. Neste caminho,

valeria o aprofundamento do estudo sobre o caso descrito por Semler ( 1 994), Parece-me

que o sistema gerencial ali descrito co nota alta gramaticalidade com elementos culturais

brasileiros. Percebo (i) aspectos de "carnavalização", (ii) "individualismo à brasileira", (iii)

"temporalidade à brasileira", (iv) "responsabilidade à brasileira", (v) "criatividade à

brasileira", (vi) "planejamento à brasileira", (vii) "redes relacionais e lealdades à brasileira",

Quem sabe existem ainda outras especificidades que escaparam do meu olhar superficial e

limitado a um só artigo, Vejamos alguns trechos :

When we walk through our manufacturing plants, we rarely even know who works for us( . . . ) we could decide to find out who is who, but for two good reasons we never bother. First, the employment and contraclual relations are so complex that

1 93

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describing them ali would take too much time and trouble. Second. we think it is al i useless inlormation (p. 64)

What we're now engaged in might be called a radical experiment in unsupervised, in-house, company supported, satellite production ( . . . ) this satellite program, as we call it, sounds cahotic, may be Irustraling, and is in some way unconlrolable. II requires daily leaps 01 lailh (p.64)

I believe in responsabilily bul not in pyramidal hierarchy. I Ihink lha I slralegic planning and vision are olten barriers lo success. I dispute lhe value 01 growth. I don't Ihink a company success can be measured in numbers, since numbers ignore what the end user really thinks 01 the product and what the people who produce it really think 01 the company (p.64)

Sem co could govem itsell on lhe basis 01 three values: employee participalion, prolit­sharing, and open inlormation systems. We've introduced idiosyncratic leatures like lactory-floor Ilextime, sell-set salaries, a rotating CEO-ship, and, Irom top to bottom. Irom the owner to the nearest, greenest maintenance person - only three leveis 01 hyerarchy ( ... ) we treat our employees like responsible adulls. We never assume they will take advantage 01 us or our rules (or our lack 01 rules) ; we always assume they will do their levei best to achieve results benelitial to the company, the customer, their colleagues, and themselves( . . . ) participation gives people control 01 their work, prolit sharing gives them a reason to do it better, inlormation lells them what's working and what isn't (p.64)

On the whole, as I say, our approach has worked. Loyalty is high, qualily is excellent, and sales and prolits are surprisingly good lor a manulacturing company in onne 01 the world's most lunatic business environment (p.65)

lhe explosion 01 energy, inventiveness, and Ilexibility we'd been witnessing was hugely attractive (p.66)

Esta última proposta de pesquisa é bastante ampla. Que práticas administrativas e

gerenciais seriam mais propensas a ter congruência simbólica com a cullura brasileira?

Como a ambiguidade, a característica personalista e relacional. a multiplicidade ética

podem se interligar com objetivos organizacionais ? Existe alguma estrutura estática ou

dinãmica. sistemas gerenciais ou prálicas administrativas que melhor se amoldem a tais

peculiaridades ? Das limitações, críticas e alternativas de estudo, chega-se, então, às

conclusões da dissertação.

1 94

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6.2 - ANTROPOLOGIA, ADMINISTRAÇÃO, QUALIDADE TOTAL E BRASIL

A questão da prova nas ciências sociais obviamente não é aqui resolvida. parecendo Ilusório imaginar que possa sê-lo senão. em

última anólise, como resultado sempre relativo de uma prática de natureza coletiva (Otávio Velho, 1976)

As conclusões apresentadas neste item representam podem ser agrupadas em três

dimensões. A primeira diz respeito aos objetivos inicialmente mencionados de ampliar a área

de interseção intelectual entre a Antropologia Social e a Administração de Empresas. Neste

sentido creio ter aprendido e demonstrado que diversas práticas interpretativas da ciência

antropológica podem ser utilizadas para as pesquisas em Administração de Empresas. Esta

"parceria intelectual" parece fazer parte de um processo epistemológico muito maior,

advindo da demanda por novas respostas produzida pela cultura contemporãnea, pela

complexificação das sociedades.

Entendo que, no fundo, o conhecimento existe como um território único e que a

fragmentação em disciplinas é mera questão de escolha humana. O modelo

epistemológico atual é, dentre os vários possíveis. aquele pelo qual a uma civilização

escolheu acessar as estradas do conhecimento. Ela. entretanto, continua dependente da

adição de novos elementos à teia, sempre por terminar, de explicações e teorias, respostas

e novas perguntas.

Acredito que, neste momento de transição de paradigma epistemológico, não se podem

desprezar tais disciplinas-reduzi das-fragmentadas. Ainda são elas que catalisam o processo

de entendimento. Elas são usadas como pontos-de-apoio, como perspectivas de olhar,

como guias. Entretanto faço parte da corrente que pretende que os "cortes no real" sejam

cada vez mais amplos. includentes e holisticos.

Nesta linha, o conhecimento armazenado em um destes "fragmentos do saber", a

Antropologia Social. adquire peculiar importãncia. Em primeiro lugar. porque o esforço em

"relativizar" fornece oportunidades criativas de se "re-olhar" e "re-interpretar" o mesmo

objeto de pesquisa e perceber nele aspectos até então inusitados. Por natureza, a

Antropologia Social "aceita" e "acata", mais ainda, "objetiva" a diversidade. Em segundo

lugar, porque a análise estruturalista dos simbolismos pode trazer à tona representações

alternativas de uma mesma realidade, que aumentam o arcabouço de conhecimento da

humanidade, Se encarei como mito a "história da vida de Deming", o mesmo pode ser feito

para diversos discursos repetidos no mundo organizacional.

Existe uma significativa possibilidade de se encontrar, escondida atrás de palavras e

atitudes, uma estrutura simbólica na qual se penduram diversos e bem-determinados

(embora às vezes "taken for granted") componentes valorativos.

1 95

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Concordo que tende sempre a existir, sim, a necessidade de uma certa dose de

encapsulamento intelectual. Por exemplo, foram escolhidas por mim as "dimensões

universais" estudadas e a metodologia utilizada. Cada estudo individual (infelizmente?)

precisa de fronteiras. Neste caso, por exemplo, as dimensões foram "tempo", "poder",

"economia" e "indivíduo humano". A metodologia foi o "viagem ao campo literário". As

fronteiras foram Brasil e Qualidade Total. Contudo, estas limitações podem ser transcendidas

quando se deixam abertas as portas à crítica e à inventividade. A conjunção de estudos

múltiplos, o acúmulo de opiniões, com divergências e acréscimos, tenderá a clarear o

assunto estudado. Tenderá a mostrá-lo por diversas lentes, por variadas perspectivas,

aumentando o arcabouço humano de percepções do conhecimento.

Neste sentido, a perspectiva antropológica, semiótica, estruturalista, relativizadora, é mais

uma opção para estudos organizacionais. Até mesmo em campos que, à primeira vista,

parecem distantes. Muito claras são as aplicações referentes aos agentes que se

movimentam dentro dos ambientes organizacionais e na sociedade de mercado. Parece­

me bem explícita a aplicação do conhecimento antropológico às pesquisas designadas

"de Marketing", "de Recursos Humanos", ou "de Estratégia Empresarial".

Entretanto, creio que é possível ir além. Se acreditarmos que os mesmos "elementos

concretos" podem existir simultaneamente em lugares diversos (ou servindo a grupos sociais

diversos), com sigmficados bastante diferentes, até mesmo um sistema de custeio, a

montagem de orçamentos financeiros, o processo de difusão de informações no mercado

de ações, ou modelos de precificação de produtos podem ser olhados com lentes que

mostrem os significados e motivos que elas recebem e geram nos personagens da cena.

O segundo conjunto de conclusões diz respeito à busca de um conhecimento "brasileiro"

em Administração de Empresas. Com este estudo, passei a entender que a "universalidade

humana", se não for uma farsa, uma ilusão, é um conceito tão amplo que não traz respostas

importantes. Culturas diversas possuirão instituções sociais - formais e informais - diferentes,

mesmo que na estrutura e na forma, algumas instituições pareçam iguais.

Além disso, num jogo duplo, é o significado das instituições que leva cada membro da

cultura a agir de certa forma, do mesmo modo que são tais ações que, a nível de detalhe,

fornecem - e por isso mesmo podem demonstrar - a estrutura de tais significados.

Pelas mais diversas causas e por uma comunhão de fatores concretos, uma das fronteiras de

estudo que se pode utilizar é a divisão nacional. Embora sendo também originada em um

construto simbólico humano (o Estado Nacional) , a identidade nacional é um forte mapa

simbólico. Acredito que isto ocorra pela força com que instituições bem determinadas - com

destaque para o sistema formal de educação - exercem influência nos atores sociais.

1 96

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Tendo realizado este trabalho de pesquisa, ampliou-se em mim a crença de que as

fronteiras nacionais tem alto impacto simbólico. As culturas americana, brasileira, francesa,

alemã e japonesa atualizam os mesmos elementos concretos, e resolvem os mesmos

problemas humanos, de formas simbolicamente idiossincráticas.

Especificamente em termos de "cultura brasileira", os estudos que a relacionam com as

empresas e organizações são sobremaneira escassos. Espero que esta dissertação

acrescente ao conjunto e seja mais uma semente neste terreno. Como que numa "sinergia

de objetivos" acho que isto reforça ainda mais o acima descrito a respeito da "parceria

entre Administração e Antropologia Social" . Na medida em que percebe-se no interior da

Antropologia Social um movimento na direção do estudo de nossa própria sociedade, esta

pode, cada vez mais, entrelaçar-se com a necessidade de se buscar um conhecimento

nacionalizado sobre organizações e gerência.

Aprendi. com minha pesquisa, que o caminho da construção de "Ciências Sociais

Brasileiras" está bem demarcado. A criatividade dos economistas, antropólogos, cientistas­

políticos e sociólogos brasileiros, juntamente com sua capacidade de crítica intelectual aos

seus pares, me impressionaram e entusiasmaram. Creio que a disciplina "Administração de

Empresas" ainda tem um significativo papel a cumprir na construção deste caminho e de

seus atalhos.

Principalmente porque, num Brasil onde a característica básica é a ambiguidade, não há

teorizações fáceis sobre gerência. É menos provável a existência de modelos que tendam a

"funcionar na grande maioria dos casos", como talvez ocorra em culturas nacionais de

maior unicidade simbólica, de maior determinação ou prevalência de códigos, de

considerável encompassamento ético.

No Brasil. onde a regra é não ter regras encompassadoras e totalizantes, a única certeza é

que pode ser ou pode não ser. Mais ainda, "pode ser e não ser", ambígua e

contextualmente, ao mesmo tempo. Este ambiente empresarial tende a gerar surpresas

quando modelos "importados" são aplicados sem consideração de premissas. Este

"esquecimento", infelizmente, parece ser usual.

o terceiro e último conjunto de conclusões engloba, de forma mais específica, as questões

da relação entre Qualidade Total e cultura brasileira. Neste momento, o trabalho "curva-se

sobre si próprio" e a conclusão encontra a epígrafe e a introdução, resvalando, durante este

processo, nos diversos conceitos apresentados ao longo de seu "corpo". O fim confunde-se

com o início.

Qualidade Total e Cultura Brasileira. Pretensão de transferir e aplicar ideologias e tecnologias

"importadas" a ambientes peculiares. Crença em soluções milagrosas: "como seria fácil a

1 97

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vida do gerente na organização, se as pessoas se 'comportassem' no sentido mais

tradicional do termo" (Campos, 1 992, p. l )

Consistentemente com uma possível intenção de transformar um conjunto de metodologias

em um "produto vendável de prática gerencial" (Fetue, 1 995) , a "Qualidade Total", este

moderno "universal administrativo" parece adquirir um encanto especial no ambiente

empresarial brasileiro.

Parece que, olhado como um todo, o mundo da Qualidade é um mundo mágico, onde

abundam "feitiços e magias administrativas"; soluções definitivas para os inúmeros

problemas organizacionais e empresariais do país.

Fica difícil para mim, então, ceder à tentação de utilizar palavras de Malinowsky ( 1 984).

Buscando a semelhança na diferença, relativizo a crença, as atitudes e o discurso das atuais

gerentes e teóricos, frente aos elementos da "Qualidade Total" . Traço um paralelo da

Administração brasileira com crenças "primitivas" descritas naquela que pode ser

considerada a primeira etnografia de um mundo tribal. baseada num complexo "trabalho

de campo":

Encontraremos uma estranha mistura de informações específicas e concretas e de superstições fantásticas. Do ponto de vista crítico-etnográfico, podemos dizer diretamente que os elementos fantasiosos estão de tal forma entrelaçados aos fatos reais, que é difícil distinguir entre aquilo que se pode rotular de simples ficção poético-mitológica e aquilo que constitui uma regra comum de comportamento, retirada de experiências reais ( ... ) devemos, entretanto, enfatizar que todas essas crenças não podem ser consideradas como um conjunto coerente de conhecimentos; elas se acham envolvidas umas nas outras, e um mesmo nativo provavelmente possui vários pontos de vista racionalmente inconsistentes entre si (Malinowski, 1 984, p . 182) .

O nativo está profundamente convencido do poder misterioso e intrínseco de certas palavras; acredita-se que as palavras têm essa virtude por sua própria natureza (Malinowski, 1 984, p.325).

O nativo aceita implicitamente seus pressupostos fundamentais e, se acaso especula a respeito de alguma crença ou a questiona, só o faz com relação a detalhes e a aplicações concretas (Malinowski. 1 984, p.290)

Assim também o é frente à Qualidade Total. Como num exercício de fé, acredita-se na

efetividade de projetos "em equipe", nos relatórios de "melhoria da qualidade", na

viabilidade indiscutível do "planejamento da Qualidade". São "elementos fantasiosos

entrelaçados a fatos reais", são como que "superstições fantásticas".

Cria-se o dia "zero defeitos" e os procedimentos "documentados"; divulga-se o

"comprometimento da Alta Administração"; defende-se a delegação, a criatividade, o

"empowerment", a "participação dos funcionários", os "programas de sugestões". Mas será

que os gerentes, "nossos trobriandeses" são tão ingênuos ?

1 98

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Os efeitos da magia, embora constantemente presenciados e encarados como um fato fundamental. são considerados como fatos muito diferentes dos efeitos de outras atividades humanas. Os nativos compreendem muito bem que a velocidade e a capacidade de flutuação de uma canoa devem-se ao conhecimento e trabalho do construtor; reconhecem as propriedades de um bom material e da habilidade profissional. No entanto, a magia da rapidez acrescenta algo mais, mesmo à canoa mais bem construída" (Malinowsky. 1 984, p.304)

Ou seja, os efeitos da magia da Qualidade Total. embora constantemente presenciados e

encarados como um fato fundamental, são considerados como fatos muito diferentes dos

efeitos de outras atividades humanas. Os 'nativos' compreendem muito bem que a

qualidade dos produtos e a produtividade (que leva à lucratividade) na empresa devem-se

ao conhecimento e trabalho dos gerentes e empregados; reconhecem as propriedades de

um bom administrador e a habilidade técnica dos profissionais. No entanto, a magia da

"Gestão pela Qualidade Total" como que acrescenta algo mais, mesmo à empresa mais

bem administrada.

Esta digressão é um gancho que utilizo para concluir que os resultados positivos

conclamados como triunfos da "Gestão pela Qualidade Total" no Brasil muito

provavelmente teriam sido obtidos pela simples organização adequada dos recursos. Com

diferenças de produtividade e qualidade tão grandes frente a padrões internacionais,

qualquer melhoria administrativa brasileira tenderia a aparecer como enorme.

Alguns elementos e conceitos do Mundo da Qualidade Total podem auxiliar neste processo.

Entretanto, ficou claro para mim que defender a simples e pura transferência dos conceitos

da Qualidade Total para empresas operando no ambiente cultural brasileiro é uma falácia.

No extremo, pretender aglutinar as melhorias operacionais sob um conjunto simplista de

significados é, no mínimo, ingênuo. Mais correto é encarar o Mundo da Qualidade como

uma alternativa cultural paralela, de onde e para onde significados podem fluir e se

rematerializar em atitudes concretas.

Brannen & Salk ( 1 995) afirmam que a cultura é um construto reificado e, por isso, existe uma

dinãmica de interação e recriação cultural. sempre que grupos sociais com estruturas

simbólicas diferentes entram em contato. Daí, concluo que interpretar a Qualidade Total

como uma Sociedade permite propor que o encontro entre seus valores culturais e os

valores simbólicos da cultura brasileira nada mais pode fazer do que detonar um processo

de reelaboração cultural.

Cada "cultura" impacta a outra; nenhuma das "culturas" originais sai ilesa do processo.

Quando se permite, ou se força, o contato entre cultura brasileira e cultura da Qualidade

Total. dentro de uma empresa, ou em nível nacional. o resultado é imprevisível. Em outros

termos, a cultura brasileira afeta a cultura da Qualidade Total, da mesma forma que é

afetada por ela.

1 99

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Os valores e normas de comportamento ancorados em cada cultura não colidem e se

repelem como duas bolas de sinuca; nem se amoldam pacificamente como as palavras

que um autor sobre Qualidade Total impõe a uma folha de papel vazia. O processo é

complicado; cada sociedade "metaboliza" , à sua maneira, os elementos concretos

oferecidos pela contraparte. No processo, mantêm-se alguns significados, reelaboram-se

outros e criam-se novos elementos semióticos.

O espaço social onde o fenõmeno do "encontro entre culturas" ocorre pode ser uma

empresa específica, ou, num nível mais amplo, o ambiente empresarial brasileiro. De

qualquer modo, a estrutura cultural resultante deriva da negociação, em nível de

significados, entre os atores do processo.

Deriva do comprometimento de uma das partes em contato, em relação a alguns

elementos; do comprometimento do outro grupo, em relação a outros elementos; do

acordo num "meio-termo", em determinadas dimensões; e, ainda, de inusitadas e

imprevisíveis inovações simbólicas.

Mais ainda, tal "negociação cultural" - com dinãmícos processos de "etnocídio", de

"acomodamento", de "aculturação", e de "permanência" - está sujeita às interferências

individuais de cada membros. Membros, importante lembrar, de sociedades complexas que,

por isso mesmo, tendem a transitar por diversas dimensões, representando incontáveis

papéis, além do papel de "brasileiro" e de "empregado".

Além do macro-fenõmeno grupal. cada papel representado por cada membro estará

tendo sua cota de interferência no resultado de tal encontro entre a cultura brasileira e a

cultura da qualidade total.

Não existe, deterministicamente, uma impossibilidade simbólica para o encontro entre Brasil

e Qualidade Total. O arcabouço semiótico brasileiro não é, necessariamente, incompatível

aos valores da GQT. nem vice-versa. Porém, como não existe vácuo simbólico, os dois

mundos - cultura brasileira e GQT - vivenciam uma interação transcultural, uma aculturação,

no sentido positivo de "interbalaceamento simbólico".

Cada valor de cada uma das duas culturas, bem como as respectivas interações de

símbolos, tornam-se "significantes". Estes "significantes" são absorvidos e processados por

cada cultura, adquirindo, frente ao particular código, um significado específico. As duas

culturas iniciais mudam no decorrer do processo (Latouche, 1 995) .

Em resumo, a única certeza que se pode ter quando membros da sociedade brasileira são

expostos a valores simbólicos de uma outra cultura, como a da Qualidade Total. é que a

imprevisibilidade do resultado é enorme. Creio que, por isso mesmo, vale a pena se

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aprofundar em tal tipo de estudo. Neste mergulho, utilizar a abordagem interpretativa que

busca, mais que "controle" ou "soluções gerais", aumentar a capacidade de entendimento

das situações. Assim, ampliando os contextos de análise, excomunga-se o determinismo

reducionista, mudando o foco das "soluções absolutas e duradouras", para as "decisões e

ações contextuais e temporárias".

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