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Que Falta Voce Me Faz - Harlan Coben

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

    expressamente proibida e totalmente repudavel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedo

    Sobre ns:

    O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.

    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • O ArqueiroGERALDO JORDO PEREIRA (1938-2008) comeou sua carreira aos 17 anos, quando foi trabalhar com seu pai, oclebre editor Jos Olympio, publicando obras marcantes como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida,de Charles Chaplin.

    Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propsito de formar uma nova gerao de leitores e acabou criando um doscatlogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992, fugindo de sua linha editorial, lanou Muitas vidas, muitos mestres, deBrian Weiss, livro que deu origem Editora Sextante.

    F de histrias de suspense, Geraldo descobriu O Cdigo Da Vinci antes mesmo de ele ser lanado nos Estados Unidos. Aaposta em fico, que no era o foco da Sextante, foi certeira: o ttulo se transformou em um dos maiores fenmenoseditoriais de todos os tempos.

    Mas no foi s aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o prximo, Geraldo desenvolveu diversos projetos sociaisque se tornaram sua grande paixo.

    Com a misso de publicar histrias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessveis e despertar o amor pela leitura, aEditora Arqueiro uma homenagem a esta figura extraordinria, capaz de enxergar mais alm, mirar nas coisasverdadeiramente importantes e no perder o idealismo e a esperana diante dos desafios e contratempos da vida.

  • Ttulo original: Missing youCopyright 2014 por Harlan Coben

    Copyright da traduo 2015 por Editora Arqueiro Ltda.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes semautorizao por escrito dos editores.

    traduo: Marcelo Mendes

    preparo de originais: Gabriel Machado

    reviso: Jos Tedin e Marlon Magno

    projeto grfico e diagramao: Abreus System

    capa: Raul Fernandes

    imagens de capa: Mark Owen / Trevillion Images

    adaptao para ebook: Marcelo Morais

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    C586q Coben, Harlan, 1962-

    Que falta voc me faz [recurso eletrnico] / Harlan Coben [traduo de Marcelo Mendes];So Paulo: Arqueiro, 2015.

    recurso digital

    Traduo de: Missing youFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-8041-404-2 (recurso eletrnico)

    1. Fico americana. 2. Livros eletrnicos. I. Mendes, Marcelo. II. Ttulo.

    15-20649 CDD: 813CDU: 821.111(73)-3

    Todos os direitos reservados, no Brasil, porEditora Arqueiro Ltda.

    Rua Funchal, 538 conjuntos 52 e 54 Vila Olmpia04551-060 So Paulo SP

    Tel.: (11) 3868-4492 Fax: (11) 3862-5818E-mail: [email protected]

    www.editoraarqueiro.com.br

  • captulo 1

    KAT DONOVAN GIROU NO banco que fora ocupado por seu pai e se levantou; preparava-separa deixar o pub OMalleys quando Stacy disse:

    Voc no vai gostar de saber o que eu fiz.Kat imediatamente parou no meio de uma passada ao ouvir o tom de voz. O qu?O OMalleys costumava ser um tpico bar de policiais, desses das antigas. O av de Kat

    havia sido um fregus do lugar, assim como o pai e os colegas de ambos na polcia de NovaYork. Mas agora havia se transformado num antro de mauricinhos, yuppies, farsantes ebabacas de toda espcie, e o que mais se via por ali eram impecveis camisas brancas sobternos pretos, alm de muitas barbas por fazer, dessas que foram aparadas para dar aimpresso de que estavam dois dias espera de uma gilete. Era uma gente que sorria muito,metrossexuais que esculpiam os cabelos com gel, que tomavam vodca holandesa s porquealguma agncia de publicidade havia resolvido que essa era a bebida que homens de verdadetomavam.

    Stacy agora passeava os olhos pelo pub. Esquivando-se. Kat no estava gostando nadadaquilo.

    O que foi que voc fez? Uau! exclamou Stacy. Uau o qu? DVB sua esquerda.Kat virou o rosto para olhar. Localizou? perguntou Stacy. Ah, sim, estou vendo.Do ponto de vista da decorao, o bar no havia mudado muito ao longo dos anos. Claro,

    a velha televiso de tubo havia sido substituda por uma infinidade de aparelhos de tela planaque exibiam uma variedade talvez exagerada demais de esportes e partidas quem realmentequeria ver o jogo dos Edmonton Oilers no campeonato estadual de hquei no gelo? , mas,fora isso, ainda havia ali aquela vibe charmosa de bar de policiais, resqucios de uma falsaautenticidade que tinha atrado as hordas de mauricinhos e expulsado os frequentadoresoriginais para transformar o antigo OMalleys numa verso Epcot Center daquilo que fora umdia.

  • Kat era a nica policial que ainda frequentava o lugar. Os outros voltavam direto paracasa depois do turno ou seguiam para algum encontro dos Alcolicos Annimos. Mas elaainda gostava de dar uma passada pelo pub e ocupar o antigo banco do pai com todos osfantasmas que rondavam por perto, especialmente presentes naquela noite, uma vez que oassassinato de seu pai havia voltado a assombr-la. O que ela queria era apenas estar ali,sentindo a presena do velho e se fortalecendo com ela, por mais cafona que isso pudesseparecer.

    Mas os babacas no a deixavam em paz. Era pedir demais.O homem em questo estava usando culos escuros s onze da noite na penumbra de um

    bar mal iluminado. Kat e Stacy chamavam de DVB, ou D Vontade de Bater, os infelizes quecometiam infraes de estilo e comportamento. Coisas do tipo: lenos na cabea, gigantescosrelgios brancos, carteiras presas s calas com correntes, camisas de seda desabotoadas nopeito, excesso de tatuagens sobretudo de tribais e plaquetas de identificao militar empessoas que nunca haviam servido.

    O de culos escuros abriu um sorriso largo para Kat e Stacy, depois ergueu seu copo guisa de cumprimento.

    Ele gostou da gente comentou Stacy. Deixe de enrolao. O que voc fez que eu no vou gostar?Quando Stacy se virou para ela, Kat pde ver o esgar de decepo que se formou no rosto

    do DVB, brilhante de tanta loo supercara. J vira isso um milho de vezes. Os homensgostavam de Stacy. Gostar talvez fosse pouco, pois Stacy era uma mulher deslumbrante,dessas que deixam os homens de joelhos bambos, que metem medo de to bonitas que so, toquentes que derretem dentes, ossos, metal. Perto dela, os homens no s perdiam o prumocomo tambm ficavam burros muito, muito burros.

    Por isso talvez fosse um erro andar com algum como Stacy: os caras ficavam pensandoque no tinham a menor chance com uma mulher to bonita assim. Muita areia para o caminhode qualquer um.

    Kat, em comparao, tinha uma beleza bem menos intimidadora.O DVB foi direto at ela, pronto para dar seu bote. Mais do que andando, parecia estar

    patinando na prpria baba.Stacy conteve uma risadinha. Isso vai ser divertido.Na esperana de desencoraj-lo, Kat lanou para o homem um olhar de enfado e desdm.

    Em vo, pois o DVB prosseguiu inabalvel, movendo-se ao ritmo de um bebop queaparentemente s ele ouvia.

    E a, gata, por acaso seu nome Wi-Fi?Kat no se deu o trabalho de responder e ele continuou: Porque estou sentindo uma conexo entre a gente...Stacy soltou uma gargalhada.

  • Kat apenas encarou o sujeito, que disse ainda: Eu me amarro nas miudinhas. Voc uma delcia, sabia? Deve ser daquelas bem

    safadinhas. Sabe o que ficaria bem em voc? Eu. Voc j conseguiu pegar algum com isso? questionou Kat. Ainda no terminei.O DVB tossiu na mo fechada em punho, sacou seu iPhone e o ergueu diante de Kat. Parabns, gata. Voc acabou de pular para o primeiro lugar na minha lista de coisas para

    fazer.Stacy adorou. Qual o seu nome?O homem arqueou as sobrancelhas. Pode me chamar do que quiser, gata. Que tal Pastel de Vento? perguntou Kat, e afastou o blazer para mostrar a coronha da

    arma que trazia na cintura. D o fora, seno vou ser obrigada a usar isto aqui. Poxa, gata, olha s o que voc fez comigo. Ele apontou para a virilha. Agora tambm

    estou armado. D o fora, eu j disse. Minha atrao por voc que nem diarreia. Difcil de segurar.Kat o encarou, horrorizada. Fui longe demais? Cara, isso foi nojento. Aposto que essa voc nunca tinha ouvido antes.Aposta ganha. Se manda. J. Tem certeza?Faltava pouco para que Stacy casse no cho de tanto rir.O homem j ia saindo quando parou de repente. Espere um instante. Voc est me testando? Pastel de Vento... Isso um elogio, no ? Vaza.Ele deu de ombros, depois se virou para Stacy. Perdido por um, perdido por mil,

    certamente foi o que pensou. Olhando-a de cima a baixo, falou: Essas pernas so compridas demais para serem de verdade. Depois falam que mentira

    tem perna curta... Deixe esse orgulho de lado, gata, e vem ser feliz comigo.Stacy ainda se divertia bea. Vem, Pastel, me come. Quero dar para voc. Aqui. Agora. Verdade? No.O Pastel olhou novamente para Kat, que ps a mo na coronha da arma. Resignado, o

    homem ergueu os braos e se afastou.

  • Stacy? chamou Kat. Hum. Por que esses caras sempre acham que podem se dar bem comigo? Porque voc linda e espevitada. Eu no sou espevitada. No , mas parece. Srio. Ser que tenho mesmo esse ar de biscate? Voc tem o ar de uma pessoa emocionalmente vulnervel. E isso exala no ar como se

    fosse... sei l, uma espcie de feromnio ao qual os babacas no conseguem resistir.Ambas tomaram um gole dos seus respectivos drinques. Mas e a? voltou a insistir Kat. Do que eu no vou gostar?Stacy olhou de volta para o Pastel. Me sinto mal por ele agora... De repente at merece uma rapidinha. No comea. Por que no? Stacy cruzou as pernas impossivelmente longas e sorriu para o Pastel,

    que a essa altura tinha todo o aspecto de um cachorro abandonado. Voc acha que esta saia curta demais?

    Saia? Achei que isso a fosse um cinto.Stacy riu com gosto. Adorava ser o centro das atenes. Adorava seduzir os homens, pois

    tinha plena convico de que, para eles, uma noite passada com ela era nada menos que umdivisor de guas. Seduzir tambm fazia parte do seu trabalho. Stacy era proprietria de umaagncia de investigaes particulares com outras duas mulheres to bonitas quanto ela. Aespecialidade da casa? Flagrantes em maridos infiis. Flagrantes, no: armadilhas.

    Stacy? Hum? O que foi que voc aprontou? Isto aqui.Ainda flertando com o Pastel, Stacy passou a Kat um pedao de papel. Kat franziu a testa.

    KD8115SexoSelvagem

    O que isso? KD8115 seu nome de usurio. As iniciais de Kat e o nmero de sua inscrio na

    polcia. E SexoSelvagem a sua senha. Ateno s maisculas. Senha para qu? Um site. VocFazMeuTipo.com. Ahn? Um site de relacionamentos.

  • Kat fez uma careta. Isso uma piada. um site sofisticado. Tem muita boate de striptease sofisticada por a. Fiz uma assinatura para voc. De um ano. Voc s pode estar brincando. Eu no brinco. Fao uns trabalhos a para essa empresa. Eles so muito bons. Alm

    disso... verdade seja dita: voc est precisando de algum. Voc quer algum. Mas no seraqui, nesta espelunca, que vai encontrar.

    Kat suspirou, levantou-se e meneou a cabea para Pete, o barman, que tinha toda a pinta deum daqueles atores sempre escalados para interpretar o barman irlands o que ele realmenteera. Ele fez o mesmo gesto, confirmando que colocaria os drinques na conta de Kat.

    Quem sabe voc no acaba encontrando seu Prncipe Encantado nesse site? arriscouStacy.

    J se dirigindo para a porta, Kat respondeu: mais provvel que eu encontre outro Pastel de Vento.

    Abrindo o VocFazMeuTipo.com, Kat digitou o nome de usurio e informou a apimentadasenha escolhida por Stacy. Franziu a testa ao ver, no topo de seu perfil, o apelido que a amigatambm havia tomado a iniciativa de escolher por ela: Linda e Espevitada!

    Esqueceu de vulnervel resmungou para si mesma.J passava da meia-noite, mas Kat era dessas pessoas que no precisavam de muitas horas

    de sono. Morava num endereo bem mais chique do que deveria: Rua 67 Oeste, pertinho doCentral Park, no Atelier. Cem anos antes, o prdio e seus vizinhos, incluindo o famoso Hoteldes Artistes, haviam abrigado um sem-nmero de escritores, pintores, intelectuais e artistas detoda sorte. Os espaosos apartamentos de arquitetura antiga davam para a rua; os menores, osatelis, ficavam nos fundos e, pouco a pouco, tinham sido transformados em residncias de umquarto s. O pai de Kat, vendo os amigos enriquecerem sem fazer nada, apenas investindo emimveis, rapidamente tratara de imit-los, comprando por um timo preo o apartamento quelhe oferecera um sujeito cuja vida ele tinha salvado.

    Kat ainda fazia seu bacharelado quando se mudou para l, valendo-se de uma bolsa deestudos da Polcia de Nova York para custear as despesas na prestigiosa e carssimaUniversidade Colmbia. Segundo os planos que havia traado para si mesma, o passo seguinteseria emendar numa especializao em direito, formar-se com louvor e trabalhar numa dasprincipais bancas de advocacia da cidade, enfim quebrando a maldio familiar que ameaavaempurr-la para a carreira policial.

    Infelizmente, a realidade fora outra.Uma taa de vinho tinto estava ao lado do teclado. Kat bebia muito. Sabia que se tratava

    de um clich, mas s vezes os clichs tinham l sua razo de ser. Era uma boa profissional.

  • Jamais bebia em servio. At ento a bebida no havia afetado sua vida de nenhuma maneiravisvel, mas, se precisava dar um telefonema ou tomar alguma deciso, costumava acontecerum, bem, desastre. Com o tempo, no entanto, acabara aprendendo a desligar o celular e a ficarlonge dos e-mails aps as dez.

    Apesar disso, l estava ela agora, pesquisando perfis aleatoriamente num site derelacionamentos.

    Seu prprio perfil contava com quatro fotos postadas por Stacy. A que encimava a pginaera apenas uma cabea recortada de uma fotografia tirada no ano anterior durante umcasamento em que ela havia sido madrinha. Olhando para a imagem, Kat tentou fazer umaavaliao objetiva do que estava vendo, mas no conseguiu. Detestava aquela foto. A mulherque via ali era uma pessoa insegura, de sorriso amarelo; dava a impresso de que esperavalevar um tapa na cara a qualquer momento. Seguiu no torturante ritual de analisar todas asfotos e percebeu que as demais tambm haviam sido recortadas de outras, e em todas elas oque se via era uma mulher desconcertada, nem um pouco vontade na prpria pele.

    Muito bem, chega de ver seu prprio perfil.No trabalho, os nicos possveis candidatos eram policiais. Ela no queria um policial.

    Policiais eram timas pessoas e pssimos maridos. Disso ela sabia muito bem. Quando suaav entrou em estado terminal, o marido, incapaz de lidar com aquilo, fugiu, voltando apenasquando... bem, quando j era tarde demais. Jamais se perdoara pelo que havia feito. Ou pelomenos era isso que Kat pensava. Embora tivesse sido um heri para muita gente, o velho seacovardara diante da pessoa que mais amava na vida. Como conviver com uma lembranadessas? O revlver que ele usava no trabalho se achava no mesmo lugar de sempre, escondidonum dos armrios da cozinha. Certa noite, no aguentando mais, ele pegara a arma daprateleira, sentara mesa da cozinha e...

    Fim de linha.O pai de Kat tambm tinha o hbito de sumir no mapa de tempos em tempos. Sua me

    ficava radiante sempre que isso acontecia, o que tornava a situao ainda mais escabrosa. Oraela inventava que o marido estava numa misso secreta, ora ignorava por completo o sumio,certa de que dali a alguns dias, no mximo uma semana, ele daria as caras de novo,perfeitamente barbeado, com um sorriso estampado no rosto, um buqu de rosas vermelhas nasmos, e todos agiriam como se nada tivesse acontecido.

    VocFazMeuTipo.com. Ela, a linda e espevitada Kat Donovan, estava navegando num sitede relacionamentos. Puxa vida. No era bem esse o seu plano nos tempos de faculdade. Pegoua taa de vinho, ergueu-a num brinde ao computador e tomou um copioso gole da bebida.

    Era triste que o mundo atual no fosse mais propcio ao encontro de um parceiro de vida.Sexo? Isso, sim, era fcil. Sexo era o que no fundo as pessoas buscavam nos encontros, umassunto no discutido, mas obviamente de grande importncia. Kat apreciava os prazeres dacarne tanto quanto qualquer outra mulher de sua idade, mas sabia que, indo com algum para acama cedo demais, a despeito da qualidade do sexo, as chances de um relacionamento de

  • longo prazo ficavam irremediavelmente prejudicadas. No se tratava de um julgamento moral.As coisas eram assim e ponto final.

    O computador apitou e uma mensagem pipocou na tela:

    Encontramos alguns perfis compatveis com o seu! Clique aqui para conhecer algum quepode ser perfeito para voc!

    Kat terminou o vinho. Cogitou servir-se de uma segunda taa, mas achou que j estava debom tamanho. Fazendo um rpido exame de conscincia, admitiu que queria, sim, uma pessoana sua vida. Precisava ter coragem para admitir isso para si mesma. Por mais que apreciasse aprpria independncia, ela queria um homem a seu lado, um companheiro, algum na camatodas as noites. No ficava se lamentando, tampouco forava a barra para encontrar algum.Mas sabia que no era talhada para ficar sozinha.

    Ela comeou a examinar os perfis. Quem no arrisca no petisca, certo?Pattico.Bastava uma rpida olhada na foto para que alguns dos candidatos fossem eliminados de

    cara, literalmente. Pensando bem, talvez no houvesse nada mais importante do que uma boafoto de perfil. A imagem que cada um daqueles homens havia selecionado com tanto critrioera responsvel pela primeira impresso que se tinha deles. Valia mais que mil palavras.

    Se o cara se mostrava usando um chapu, estava automaticamente fora de cogitao. Semcamisa, por mais malhado que fosse, descartado tambm. Se tinha um fone Bluetooth noouvido Uau, como eu sou importante! , fora tambm. Se tinha um tufo de pelos sob olbio inferior, se vestia um colete, se piscava, se fazia gestos, se usava uma camisa cor detangerina preconceito pessoal , se estava com culos escuros no alto da cabea... fora, fora,fora, automaticamente fora. Se o apelido escolhido era alguma coisa como BondCama,SorrisoSexy, RicoBoaPinta, MetralhadoradeMulheres... A, ento, nem pensar.

    Kat examinou alguns dos perfis em que os caras pareciam... razoveis. Lendo as pequenasbiografias, constatou que apresentavam uma deprimente semelhana. Todos naquele sitepareciam gostar de caminhadas na praia, restaurantes, academia, viagens para destinosexticos, vinhos, teatro, museus, vida ativa, riscos e aventuras. Mas tambm gostavam de ficarem casa tomando caf, lendo um bom livro, vendo bom filme na TV, jogando conversa fora,cozinhando e curtindo os prazeres simples da vida. Todos diziam que a principal qualidadeque buscavam numa mulher era o senso de humor ah, claro , de tal modo que, em dadomomento, Kat chegou a pensar se senso de humor era um novo eufemismo para peitosgrandes. E, bvio, todos escolhiam como tipo fsico preferido as magras, atlticas ecurvilneas.

    Isso era bem mais prximo da verdade e, por isso mesmo, at mais aceitvel.A maioria dos perfis era pura fico. Em vez de apresentarem as pessoas como elas

    realmente eram, refletiam o que elas pensavam ser ou o tipo de parceiro que acreditavam ser.

  • O mais provvel, no entanto, era que fossem uma imagem daquilo que elas queriam ser umprato cheio para qualquer psicanalista.

    As frases de efeito tambm estavam por toda parte. Se ela tivesse que usar uma palavrapara resumi-las, seria melosas. Coisas como Todas as manhs, a vida uma tela em brancoesperando para ser pintada. Tambm havia aqueles que, em busca de uma pessoa honesta,alardeavam quase histericamente a prpria honestidade. Outros fingiam sinceridade. Outrostantos eram pretensiosos, fanfarres, inseguros ou carentes. Assim como na vida real, refletiuKat. A maioria forava uma barra. O fedor do desespero praticamente se desprendia da telado computador em sucessivas baforadas de perfume barato. A constante ladainha da cara-metade era, na melhor das hipteses, desanimadora. Na vida real, Kat pensou ainda,encontrar uma pessoa com quem queramos sair mais de uma vez era quase o mesmo queganhar na loteria, mas, por algum motivo, as pessoas acreditavam que, num site como VocFaz Meu Tipo, era possvel achar a pessoa com a qual gostariam de dividir uma vida inteira.

    Delrio? Ou a esperana era mesmo a ltima a morrer?Esse era o lado B das coisas. Era muito fcil resvalar para o cinismo e a zombaria, mas

    bastava recuar um pouco para que se tivesse uma viso que lhe dava uma pontada no corao:cada um daqueles perfis era uma vida. Algo bvio, mas a verdade era que, do outro lado detodo aquele amontoado de clichs, de todas aquelas splicas de afeto e admirao, havia outroser humano essencialmente idntico, com seus sonhos, desejos e aspiraes. Aquelas pessoasno se cadastraram no site, pagaram uma taxa e preencheram os perfis s porque no tinhamnada melhor para fazer. Eram pessoas solitrias que, a cada noite, digitavam sua senha e iamclicando em perfis na esperana de que, daquela vez, fosse diferente, de que enfimencontrassem, por mais nfimas que fossem as chances, a pessoa mais importante de suasvidas.

    Uau, pensou Kat, e se deu alguns minutos para digerir a ideia.Dali a pouco, ainda um tanto perdida nos prprios pensamentos, ela seguiu clicando nos

    diversos perfis, mas com displicncia e excessiva rapidez, as fotos se misturando num mesmoe indistinto borro, at que vislumbrou a foto dele.

    Por um segundo, talvez dois, seu crebro teve dificuldade para acreditar no que os olhostinham visto. Outro segundo foi preciso para que o dedo parasse de clicar no mouse, e maisoutro para que as fotos de perfil parassem gradualmente de rolar na tela.

    Kat respirou fundo. No podia ser.Ela vinha navegando to depressa, pensando nos homens que existiam do outro lado das

    imagens, na vida deles, nas carncias e esperanas. A cabea vinha funcionando a mil porhora, divagando, atentando apenas superficialmente para o que se passava na tela, mas aindaassim tendo uma viso panormica. Como policial, essa viso lateral das coisas era ao mesmotempo uma vantagem e um fraqueza. Permitia que ela enxergasse todo o leque depossibilidades, de rotas de fuga, de cenrios alternativos, bem como a realidade que seescondia atrs dos obstculos, dos subterfgios e das ambiguidades.

  • Mas havia momentos em que essa mesma capacidade lhe impedia de enxergar o bvio.Lentamente, ela foi clicando na seta de voltar, retornando aos perfis anteriores.No, no podia ser ele.A imagem no passara de um vislumbre. Depois de toda aquela ruminao sobre o amor

    verdadeiro, a cara-metade, a pessoa com quem ela gostaria de passar o resto da vida... nadamais natural que a imaginao lhe pregasse semelhante pea. Dezoito anos j haviam sepassado. Por vezes, quase sempre estimulada pelo lcool, ela tinha pesquisado o nome dele noGoogle, mas no encontrara nada alm de algumas matrias mais antigas que ele havia escrito.Nada mais recente. Isso a deixava com a pulga atrs da orelha, pois Jeff era um timojornalista. No entanto, o que mais ela poderia fazer? Certa vez, ficara tentada a fazer umainvestigao mais profunda. No seria difcil levantar a ficha dele, mas tambm no seriacorreto abusar de sua posio para fins pessoais. Tambm poderia ter recorrido aos serviosde Stacy, mas... para qu, afinal?

    Jeff era passado.Investigar a vida de um ex-caso, ainda que fosse com uma simples pesquisa no Google, era

    o que havia de mais pattico. Tudo bem, Jeff era mais do que um ex-caso. Muito mais.Inconscientemente, Kat tocou o anular da mo direita. Sem aliana. Mas nem sempre foraassim. Jeff tinha cumprido risca todo o ritual de um pedido de casamento. Consultara o sogroantes de qualquer outra coisa. Ajoelhara-se diante dela, mas sem nenhum espalhafatoadicional. Nada de alianas escondidas em sobremesas ou mensagens no placar eletrnico doMadison Square Garden. Fizera um pedido classudo, romntico e tradicional, pois sabia queessa era a vontade dela.

    Os olhos dela comearam a marejar.Kat seguiu voltando os perfis, naquele pot-pourri de rostos e estilos de cabelo, naquela

    ONU de possveis candidatos a marido. Mas parou de repente e ficou olhando para a telacomo se receasse prosseguir, mal conseguindo respirar.

    Um gemido lhe escapou dos lbios.Todo o sofrimento do passado voltou tona num piscar de olhos e ela agora sentia no

    peito as mesmas pontadas de dezoito anos antes, como se Jeff tivesse acabado de sair pelaporta s suas costas. Kat ergueu a mo trmula e tocou o rosto dele na tela.

    Jeff.Ainda to lindo, o filho da puta. Tinha envelhecido um pouco, os cabelos ficando grisalhos

    nas tmporas, mas, puxa, como lhe caam bem aquelas mechas. O que no chegava a sernenhuma surpresa. Kat sempre tivera a convico de que Jeff era daqueles que ficariam cadavez mais bonitos com a idade. Ela acariciou o rosto dele, uma lgrima j escorrendo.

    Caramba.Achou que precisava se recompor, recuar um passo e ver as coisas com um pouco mais de

    perspectiva, mas as paredes rodavam sua volta e no havia nada que ela pudesse fazer a

  • respeito. Voltando a mo ainda trmula para o mouse, clicou sobre a foto de perfil paraampli-la.

    Jeff usava uma camisa de flanela com as mos enterradas nos bolsos da cala jeans, osolhos de tal modo azuis que algum poderia procurar em vo pelos contornos de um par delentes. To lindo, to absurdamente lindo. Estava em plena forma fsica. Ao constatar isso,Kat sentiu mais uma pontada nas profundezas de seu ser. Arriscou uma olhadela na direo doquarto. J morava naquele apartamento poca de Jeff. Outros homens haviam passado porsua cama depois dele, mas nenhum tinha conseguido lhe dar o mesmo prazer que o noivo, nemchegaram perto disso. Ela sabia que isso no soava bem, mas que, com Jeff, todas as partesde seu corpo pareciam cantarolar de alegria. No se tratava de uma tcnica especial,tampouco de tamanho. O que fazia a diferena no sexo com Jeff era a confiana, por menosertico que isso pudesse parecer. Era a confiana que tinha nele que fazia a cama incendiar.Kat se sentia segura nos braos do noivo. Sentia-se uma mulher bonita, resoluta, corajosa,livre. s vezes, ele gostava de brincar com ela, tentava control-la, impunha sua vontade, masjamais fazia com que Kat se sentisse vulnervel ou insegura.

    Ela nunca mais havia conseguido se entregar a outro homem da mesma maneira.Kat engoliu em seco e abriu o resto do perfil. Sua mensagem pessoal era curta e perfeita:

    Vamos ver no que vai dar.Nenhuma presso, nenhum plano grandioso. Nenhuma pr-condio, nenhuma garantia,

    nenhuma expectativa absurda.Vamos ver no que vai dar.Automaticamente, ela correu os olhos para o campo de estado civil. Ao longo dos ltimos

    dezoito anos, perguntara-se um milho de vezes o que teria sido feito de Jeff, portanto aprimeira dvida era a mais natural de todas: se ele agora estava frequentando um site derelacionamentos, o que teria acontecido sua vida sentimental?

    Pensando bem, o que teria acontecido vida dela?Estado civil: Vivo.De novo, uau.Ela tentou imaginar a sequncia dos fatos: Jeff levando uma mulher para o altar,

    construindo uma vida com ela, amando-a e, a certa altura, perdendo-a para a morte. Difcil dedigerir. Pelo menos por enquanto. Sua mente bloqueava. Tudo bem. Vamos l, ento. De nadaadiantava ficar ruminando aquilo.

    Outro susto logo em seguida: Um filho.No informava a idade ou o sexo do filho, mas isso no fazia a menor diferena. Cada

    revelao, cada fato novo a respeito do homem por quem ela fora profundamente apaixonadaabalava seu mundo. Jeff tinha vivido toda uma vida sem ela. Mas por que ela estava surpresa?Queria o qu? O trmino da relao entre eles havia sido ao mesmo tempo repentino einevitvel. Ele que fora embora, mas a culpa tinha sido dela. De um segundo a outro, ele noestava mais l, assim como a vida e o futuro que ela carinhosamente planejara.

  • Mas agora ele estava de volta, um entre os cem, talvez duzentos homens cujos perfis elahavia aberto at ento.

    A pergunta era: o que ela ia fazer?

  • captulo 2

    FALTAVAM POUCAS HORAS PARA que Gerard Remington pedisse Vanessa Moreau emcasamento quando o mundo mergulhou na escurido.

    Como tudo em sua vida, o pedido havia sido meticulosamente planejado.Primeiro passo: aps uma extensa pesquisa, ele tinha comprado o anel de noivado 2,93

    quilates, lapidao francesa, nvel VVS1 de pureza, cor F, aro de platina, um halo de pedrasmenores em torno do diamante central das mos de um renomado joalheiro do Distrito dosDiamantes de Manhattan, na Rua 47 Oeste, no naquelas lojas maiores, de preos exorbitantes,mas num simples balco de fundos numa esquina da Sexta Avenida.

    Segundo passo: o voo 267 da JetBlue sairia s 7h30 da manh do aeroporto Logan deBoston e pousaria s 11h31 em St. Maarten, onde ele e Vanessa tomariam um teco-teco parachegar ilha de Anguilla s 12h45.

    Terceiro passo, quarto passo, etc.: eles se instalariam num dos chals de dois andares doViceroy, com vista para a baa de Meads, depois dariam um mergulho na piscina de bordainfinita, fariam amor, tomariam um banho e se vestiriam para jantar no Blanchards. A reservaj estava feita para as 19h e Gerard havia telefonado de antemo para garantir que elestivessem na casa o vinho preferido de Vanessa: um Chteau Haut-Bailly Grand Cru Class2005, um bordeaux da apelao Pessac-Lognan. Consultara o calendrio de fases e sabia quea lua estaria praticamente cheia naquela noite. A uns 200 metros mais adiante na praia eletinha pedido que medissem a distncia , havia um abrigo de telhado de palha que, durante odia, era usado para o aluguel de snorkels e esquis. noite, no ficava ningum ali. Um floristalocal fora incumbido de decorar a varanda dianteira com 21 copos-de-leite brancos a florpreferida de Vanessa na quantidade de semanas desde que eles haviam se conhecido. Umquarteto de cordas tocaria Somewhere Only We Know, da banda Keane, a msica dele e deVanessa. Por fim, como ambos eram apegados s tradies, Gerard se ajoelharia e faria opedido. Ele podia imaginar com ntida clareza a reao de Vanessa. Ela ofegaria, surpresa. Osolhos se encheriam de gua. Ela levaria as mos ao rosto, ao mesmo tempo perplexa eradiante.

    Voc entrou no meu mundo para mud-lo definitivamente, diria Gerard. Como o maiseficiente dos catalisadores, voc pegou esse naco amorfo de argila e o transformou em algomuito mais forte, muito mais feliz, muito mais cheio de vida do que eu jamais havia julgadopossvel. Eu te amo. Eu te amo com todas as foras do meu ser. Tudo em voc me encanta. Seu

  • sorriso trouxe cor e textura para a minha vida. Neste mundo no existe mulher mais linda emais apaixonante do que voc. Vanessa, voc aceita me fazer o homem mais feliz do mundo ese casar comigo?

    Gerard ainda vinha lapidando o texto queria que ficasse perfeito quando tudoaconteceu. Mas cada palavra daquele esboo era verdadeira. Ele realmente amava Vanessa.Era louco por ela. Nunca havia sido um homem romntico. Ao longo de sua vida, as pessoastinham o hbito de desapont-lo. A cincia, no. A bem da verdade, contentava-se com asolido, lutando contra micrbios e micro-organismos, desenvolvendo novos remdios econtra-agentes que pudessem vencer aquelas batalhas. Adorava quando ficava sozinho em seulaboratrio na Benesti Pharmaceuticals, debatendo-se com alguma equao ou frmula noquadro-negro. Era um cientista old school, como diziam os amigos. Gostava dos quadros-negros. Achava que o ajudavam a pensar. O cheiro de giz, a poeira, a sujeira nos dedos, afacilidade de apagar as coisas... Porque, na cincia, quase nada era permanente. Era nessesmomentos de solido que Gerard se sentia mais contente.

    Contente, mas no feliz.Vanessa havia sido o primeiro acontecimento em sua vida que o deixara de fato feliz.Ele abriu os olhos e pensou nela. Tudo se elevava dcima potncia com Vanessa.

    Nenhuma outra mulher tivera sobre ele o mesmo efeito, nem mental nem emocionalmente. Emuito menos fisicamente. Nenhuma outra mulher chegava aos ps da sua Vanessa.

    Diante daquela escurido, achou que ainda estivesse em casa, mas o frio era demais. Elesempre mantinha o termostato ajustado nos 22,5 graus. Sempre. Vanessa costumava zombardele por causa do excesso de preciso. Ao longo da sua vida, alguns viam naquelanecessidade de ordem um tipo de fixao anal ou at mesmo um pouco de TOC. Vanessa, noentanto, o compreendia. Admirava o jeito dele, achava at que se tratava de um bnus. issoque faz de voc um cientista to brilhante e um homem to carinhoso. Ela exps sua tese: Aspessoas que hoje colocamos no panteo das artes, da cincia e da literatura eram os malucosda sua poca. Mas agora, com todos esses diagnsticos e medicaes que surgem a cada dia,as pessoas so dopadas de volta uniformidade, ficam todas iguais umas s outras. Agenialidade vem daquilo que incomum.

    E voc me acha incomum?, ele havia perguntado.Da melhor maneira possvel, meu amor.No entanto, por mais que se regalasse com aquela lembrana, Gerard no pde deixar de

    estranhar o cheiro sua volta. Um bolor, uma umidade que lembrava...Terra. Terra fresca.Subitamente, foi tomado pelo pnico. Ainda no breu total, tentou erguer as mos para o

    rosto, mas no conseguiu. Algo prendia seus pulsos. Uma corda. No, algo mais fino que umacorda. Um arame, talvez. Tentou mover as pernas. Elas tambm estavam amarradas.Contraindo os msculos do abdmen, conseguiu lanar as pernas para o alto, mas elasatingiram alguma coisa. De madeira. Logo acima dele. Como se ele estivesse...

  • Gerard estremeceu de medo.Onde ele estava? Onde estava Vanessa? Tem algum a? berrou. Tem algum a?Tentou se sentar, mas o peito estava imobilizado por um cinto. No havia como se mexer.

    Tentou esperar que os olhos se acostumassem ao breu, mas no teve pacincia. Algum me ajuda! Socorro!De repente, ouviu alguma coisa. Logo acima dele. Um arranhar, arrastar... Seriam passos?Algum parecia estar caminhado acima dele.Gerard comeou a raciocinar. Escurido. Cheiro de terra. A resposta era evidente, embora

    no fizesse nenhum sentido.Estou debaixo da terra, concluiu. Enterrado ou soterrado.Foi a que ele realmente comeou a gritar.

  • captulo 3

    KAT NO ADORMECEU. Ela apagou.Na manh seguinte, assim como em todos os outros dias teis da semana, foi despertada s

    seis horas por uma msica aleatoriamente escolhida por seu iPod: naquele dia, BulletproofWeeks, de Matt Nathanson. No passava despercebido o fato de que ela ainda dormia namesma cama que havia dividido com Jeff durante todos aqueles anos. O quarto ainda tinha aboiserie da poca. O ex-proprietrio, um violinista da Filarmnica de Nova York, decidiratransformar os 60 metros quadrados do apartamento num arremedo de barco, forrando asparedes de madeira escura e colocando escotilhas no lugar das janelas. Ela e Jeff costumavamrir daquilo, volta e meia fazendo alguma piadinha ridcula do tipo hoje que esse barco vaivirar! ou Cad o bote salva-vidas?.

    O amor torna algo entediante em relativamente palatvel. Este lugar... costumava dizer Jeff. No tem nada a ver com voc.Naturalmente, ele via a noiva universitria como uma pessoa bem mais alegre e solar do

    que a escurido deprimente daquele pseudobarco, mas agora, dezoito anos depois, quem visseo tal apartamento acharia que ele encaixava muito bem com ela. Dizem que marido e mulheracabam ficando parecidos ao longo de um longo casamento; da mesma forma, Kat dava aimpresso de que havia mimetizado seu triste entorno.

    Ela cogitou contar mais alguns carneirinhos na cama, mas a aula comearia em quinzeminutos. Aqua, o diminuto e esquizofrnico travesti que fazia as vezes de professor, jamaisperdoava faltas que no se justificassem com um atestado de bito. Alm disso, era bemprovvel que Stacy estivesse por l, e ela no via a hora de colocar a amiga a par dos ltimosacontecimentos.

    Kat vestiu sua malha de ioga, pegou uma garrafinha de gua e j saa na direo da portaquando viu o computador esquecido sobre a mesa.

    Que mal haveria em dar uma rpida espiada?O Voc Faz Meu Tipo continuava aberto, mas ela j havia sido automaticamente

    desconectada em razo do longo perodo de inatividade. Eles anunciavam uma excelenteoferta introdutria para novos usurios quem mais faria jus a uma oferta introdutria? :um ms de acesso ilimitado fosse l o que isso significasse por apenas 5,74 dlaresdiscretamente debitados em seu carto de crdito (ahn?). Por sorte, Stacy j tinha pago umano inteiro. Oba.

  • Kat entrou de novo no site. Deparou com as mensagens de alguns pretendentes, masignorou-as por completo. Foi direto para a pgina de Jeff, que, claro, ela havia includo na sualista de favoritos.

    Apertou o boto de ENVIAR MENSAGEM. Os dedos permaneceram imveis sobre oteclado.

    O que ela poderia dizer?Nada. Pelo menos no naquele momento. Precisava pensar e o tempo estava se esgotando.

    A aula j ia comear. Ela balanou a cabea, levantou-se e desceu para a rua. Como faziatodas as segundas, quartas e sextas, foi correndo pela Rua 72 e entrou no Central Park. Oprefeito do Strawberry Fields como era conhecido o artista performtico que, quase tododia, fazia arranjos florais sobre o mosaico de John Lennon e vivia das gorjetas dos turistas j comeava o novo trabalho do dia. Estava ali quase sempre, mas nunca to cedo.

    Bom dia, Kat cumprimentou ele, e lhe entregou uma rosa. Bom dia, Gary disse Kat, recebendo a flor.Apressando-se, seguiu pelo terrao de Bethesda. O Lago ainda estava tranquilo nenhum

    barco vista , mas, no centro, a fonte cintilava feito uma cortina de contas de cristal. Kattomou o caminho sua esquerda e alcanou a gigantesca esttua de Hans Christian Andersen.Tyrell e Billy, os mesmos dois sem-teto que se sentavam ali todas as manhs se querealmente no tivessem um teto, pois nada impedia que morassem no San Remo e se vestissemassim apenas por vontade prpria , estavam, como sempre, jogando seu poquerzinho.

    A bunda est tima hoje, hein? comentou Tyrell. A sua tambm retrucou Kat.Adorando a brincadeira, Tyrell ficou de p, rebolou de forma provocativa e deixou as

    cartas carem quando resolveu bater a mo espalmada na mo de Billy. O companheiro orepreendeu:

    Recolhe isso a, anda! Calma, meu amigo disse Tyrell, e acrescentou para Kat: Indo para a aula? Sim. Quantas pessoas hoje? Oito. A Stacy j passou por aqui?Bastou a meno do nome de Stacy para que os dois homens tirassem o chapu para levar

    ao peito num gesto de reverncia. Deus misericordioso... resmungou Billy.Kat franziu a testa para ele e Tyrell enfim respondeu: At agora, no.Dobrando direita, Kat circundou o Conservatory Water. Havia corridas de

    nautimodelismo j cedo. Do outro lado da casa de barcos, ela encontrou Aqua sentado depernas cruzadas no cho. Ele estava de olhos fechados. Filho de pai afro-americano e mejudia, gostava de descrever seu tom de pele como mocha latte com um pouco de chantilly.

  • Tinha um corpo mido, superflexvel, e estava completamente imvel, algo inimaginvel parao garoto hiperativo que Kat havia conhecido muitos anos antes.

    Voc est atrasada comentou ele sem abrir os olhos. Como que voc faz isso? Isso o qu? Ver voc com os olhos fechados? . Um truque secreto dos mestres de ioga. Chama-se espiar. Vai, senta a logo.Kat obedeceu. Stacy apareceu dali a um minuto, mas Aqua no lhe disse absolutamente

    nada. As aulas costumavam ocorrer no amplo gramado central do parque, mas, quando Stacyse integrou ao grupo e comeou a demonstrar sua flexibilidade em pblico, os homens ficarambastante interessados na ioga ao ar livre. Aqua no havia gostado nada disso e decretara queas aulas matinais eram exclusivamente para mulheres, passando a d-las do outro lado da casade barcos. O lugar cativo de Stacy ficava bem rente parede, a fim de obstruir o campo deviso de qualquer marmanjo a distncia.

    Aqua foi conduzindo as duas por uma srie de ssanas. Todas as manhs, fizesse sol,chuva ou neve, ele dava sua aula naquele mesmo lugar. No cobrava uma taxa fixa; as pessoaslhe davam o que julgavam ser uma quantia justa. Era um excelente professor: didtico, gentil,estimulante, sincero, engraado. Corrigia uma postura Adho Mukha ou Guerreiro 2 com o maissutil dos toques e tudo se endireitava por dentro.

    Na maioria das vezes, Kat se entregava por completo aos exerccios. O corpo trabalhavaduro. A respirao ficava mais lenta. A mente se aquietava. No dia a dia, ela comia mal, bebiaregularmente e fumava seu charuto de vez em quando. O trabalho podia ser um pico de toxina.Mas ali, com a voz suave de Aqua, tudo se dilua num profundo oceano de paz e tranquilidade.

    No naquele dia.Ela tentava se entregar ao momento, perder-se naquela cantilena zen que ficava ridcula na

    boca de qualquer outra pessoa que no fosse Aqua, mas o rosto de Jeff aquele rosto que elaconhecia to bem e que voltara a ver havia to pouco insistia em assombr-la. Aqua j tinhapercebido que ela estava distrada. Observando-a com ateno, postara-se ao lado dela e alificara apenas para corrigir as poses, em silncio.

    Ao fim das aulas, com as alunas na postura do relaxamento, Aqua as enfeitiava com suasinstrues. Cada parte do corpo delas ia obedecendo s palavras dele, a cabea vagando pelonada. Em seguida, ele lhes desejava um dia especialmente abenoado. As alunas aindacontinuavam ali por algum tempo, respirando fundo, reanimando devagar os msculosformigantes. Quando abriam os olhos, tal como Kat fazia agora, Aqua j no estava mais l.

    Voltando vida, as alunas foram se levantando aos poucos para recolher seus tapetinhos,incapacitadas at de falar. Stacy foi ao encontro de Kat e elas seguiram juntas para umacaminhada em torno do lago de nautimodelismo.

    Lembra daquele cara com quem eu estava mais ou menos saindo? perguntou Stacy. Patrick?

  • Ele mesmo. Parecia um cara bacana. , mas... tive que botar para correr. Descobri uma coisa gravssima a respeito dele. O qu? O cara faz spinning.Kat revirou os olhos. Poxa, Kat, o cara faz spinning. Daqui a pouco vai fazer o qu? Exerccios de

    fortalecimento vaginal?Era divertido caminhar com Stacy. Depois de um tempo, nem se notavam mais os olhares

    indiscretos e os assobios dos homens que iam passando por ela. No que fosse preciso fazerum esforo deliberado para ignor-los. Eles simplesmente deixavam de existir. Caminhar aolado de Stacy era o mais prximo que Kat chegaria de um exerccio de camuflagem.

    Kat? Oi. Voc no vai me dizer o que est acontecendo?Nesse momento, um grandalho de academia, desses que tm as veias estufadas e os

    cabelos emplastrados de gel, parou diante de Stacy e baixou os olhos para os peitos dela. Isso, sim, um para-choque de responsa.Stacy parou tambm e baixou os olhos para a virilha dele. Isso, sim, uma mala pequena.E cada um foi para seu lado.Ok, a verdade era que nem todos deixavam de existir. Stacy reagia de maneiras diferentes

    a cada tipo de abordagem. Detestava os atirados, os cafonas e os grosseiros de modo geral.Mas os tmidos, os que simplesmente admiravam o que estavam vendo, bem, para esses elasempre dava uma colher de ch. Ora sorria de volta, ora acenava, do mesmo modo que fazemas celebridades quando querem ser simpticas com os fs.

    Ontem noite entrei naquele site enfim revelou Kat.Stacy sorriu. J? Pois . Uau. Voc foi rpida no gatilho. Ento, encontrou algum? No exatamente. O que aconteceu? Encontrei meu ex-noivo.Stacy estacou e arregalou os olhos. Como que ? O nome dele Jeff Raynes. Voc j teve um noivo? Muito tempo atrs.

  • Mas... noivo? Voc? Tipo aliana e tudo? Por que tanta surpresa? Sei l. Quer dizer, quanto tempo faz que a gente se conhece? Uns dez anos. Pois . Nunca vi voc minimamente interessada por ningum, como se tivesse alergia ao

    amor.Kat meio que deu de ombros Eu tinha 22 anos. Caramba. Nem sei o que dizer. Voc. Noiva. Ser que d pra gente pular essa parte? Tudo bem, desculpa. Quer dizer ento que ontem noite voc viu o perfil do cara

    naquele site? Exatamente. E disse o qu? Disse o qu para quem? Para o tal do Jeff, ora! Nada. Nem um al? No. Por que no? Ele me largou. Um noivo... Stacy balanou a cabea. Por que voc nunca me falou desse cara antes?

    Sei l, estou me sentindo meio trada. Trada por qu? No sei. Quer dizer... Sempre achei que, nessa questo de amor, voc fosse to cnica

    quanto eu.Kat retomou a caminhada. Como voc acha que eu me tornei cnica? Touch.Elas ocuparam uma mesa no Le Pain Quotidien do Central Park, mais ou menos na altura

    da Rua 69 Oeste, e pediram caf. Desculpa, de verdade disse Stacy.Kat abanou a mo, como se no se importasse. Inscrevi voc naquele site porque queria que desse uma trepada. S Deus sabe quanto

    voc anda precisando de uma. Voc e a maioria das mulheres que eu conheo. isso que voc entende por um pedido de desculpas? questionou Kat. Minha inteno no era trazer de volta lembranas ruins. No se preocupe. Estou bem.Stacy fitou-a com ceticismo.

  • Quer se abrir comigo? Claro que quer! Alm do mais, eu estou morrendo de curiosidade.Me conte tudo.

    Kat desfiou toda a histria de Jeff. Contou como eles tinham se conhecido na UniversidadeColmbia, como haviam se apaixonado, falou sobre a certeza de que aquele amor seria parasempre, j que tudo era fcil entre eles, tudo era certo, depois o pedido de casamento, areviravolta causada pelo assassinato do pai dela, a necessidade de isolamento, o trmino darelao quando Jeff fora embora, a fragilidade e, talvez, o orgulho que a impediram de correratrs do noivo.

    Terminado o relatrio, Stacy disse: Uau.Kat tomou um gole de caf. E agora, quase vinte anos depois, voc reencontra o cara num site de relacionamentos... Pois . Solteiro?Kat franziu a testa. So pouqussimos os casados nesse site. Claro, claro. Ento, qual a dele? Divorciado? Ele fica sentado em casa se remoendo

    que nem voc? Eu no fico me remoendo retrucou Kat, e acrescentou: Ele vivo. Uau. Pare de falar uau. Quantos anos voc tem? Sete?Stacy ignorou o rompante. O nome dele Jeff, certo? Certo. Ento, quando esse Jeff se mandou, voc ainda era apaixonada por ele?Kat engoliu em seco. Era, claro. Voc acha que ele ainda amava voc tambm? Pelo que tudo indica, no. Pare com isso, mulher. Pense bem. Esquece, s por um segundo, que o cara deu um p na

    sua bunda. Sei no, acho que no vai dar. Sou daquelas para quem os gestos falam mais do que mil

    palavras.Inclinando-se na direo dela, Stacy disse: So poucas as pessoas neste mundo que conhecem o lado B do amor e do casamento

    melhor do que esta que vos fala. Voc sabe disso, certo? , eu sei. A gente aprende muita coisa sobre os relacionamentos quando o nosso trabalho , de

    certo modo, acabar com eles. Mas a verdade que quase todos os relacionamentos tm os

  • seus pontos fracos. Todos tm as suas fissuras, as suas rachaduras. Isso no quer dizer queeles sejam um mau negcio, uma perda de tempo, nada disso. A gente j viveu o bastante parasaber que tudo na vida complexo. No existe preto nem branco, mas um monte de tons decinza. Apesar disso, a gente sempre espera que o relacionamento seja qualquer outra coisa,menos complexo.

    Tudo isso verdade. Mas ainda no entendi aonde voc quer chegar.Stacy se aproximou ainda mais. Quando voc e o Jeff terminaram, ele ainda era apaixonado por voc? E no me venha

    com essa histria de gestos que falam mais alto. Ele ainda a amava?Foi ento que, praticamente sem refletir, Kat respondeu: Sim.Stacy encarou a amiga por alguns segundos. Kat? O que foi? Voc est careca de saber que no sou uma pessoa religiosa, mas isso est parecendo

    sabe o qu? Essas coisas de destino, de carma, sei l.Kat tomou mais um gole do caf. Voc e o Jeff so solteiros. Ambos esto livres. Tm at uma ferida em comum. Emocionalmente vulnervel... relembrou Kat.Stacy refletiu um instante. No, no foi isso que eu quis... Quer dizer, foi, sim. Pelo menos em parte. Vulnervel

    no bem a palavra certa. Realista talvez seja melhor. Stacy sorriu e olhou para longe. Caramba...

    O que foi?Ainda sorrindo, Stacy virou-se para Kat. Isso at podia ser um conto de fadas.Kat ficou em silncio. S que melhor. Voc e o Jeff se amaram no passado, no foi?Kat permaneceu muda. Voc no est vendo? Vocs podem mergulhar nisso com os olhos bem abertos. At

    podem construir um conto de fadas, mas com um p na realidade, entende? Enxergando asfissuras da relao, os pontos fracos. J com uma bagagem de vida nas costas. Com maisexperincia. Com expectativas mais realistas. Uma perspectiva sobre os erros cometidos nopassado. Kat, preste ateno. Stacy tomou as mos da amiga entre as suas quando viu que elachorava. Desta vez pode ser bom. Muito bom.

    Kat ainda no conseguia dizer uma palavra sequer; no confiava na prpria voz. Noqueria pensar naquilo. No entanto, entendia perfeitamente o que Stacy tinha dito.

    Kat? Quando chegar em casa, vou mandar uma mensagem para ele.

  • captulo 4

    SOB A DUCHA DO chuveiro, Kat ficou pensando no que escrever em sua mensagem para Jeff.Ruminou uma dezena de possibilidades, cada uma pior que a outra. Detestava sentir-se assim.Detestava preocupar-se com o que escrever para um homem, como se ainda estivesse nocolgio e quisesse deixar um bilhete no armrio de um gatinho. Argh. A gente nunca superaisso?

    Um conto de fadas, dissera Stacy. S que real.Ela vestiu o jeans e o blazer do uniforme policial, depois calou os sapatos. Prendeu os

    cabelos num rabo de cavalo. At ento, no havia tido coragem de cortar os cabelos bemcurtos, mas gostava de prend-los para afast-los do rosto. Era assim que Jeff tambmgostava. A maioria dos homens preferia v-la de cabelos soltos; Jeff, no. Adoro o seu rosto:as mas salientes, os olhos...

    Kat afugentou os pensamentos.Precisava se apressar para o trabalho. Mais tarde voltaria a se preocupar com a maldita

    mensagem.Ao passar pelo computador, no entanto, teve a impresso de que ele sorria ironicamente,

    como se a desafiasse a sair de casa sem entrar na internet, o protetor de tela fazendo suaincessante coreografia de linhas. Ela se deteve e conferiu as horas no relgio.

    Fique livre disso logo, falou consigo mesma.Sentou-se diante do computador, reabriu o Voc Faz Meu Tipo e constatou que tinha outros

    tantos candidatos compatveis sensacionais. No se deu o trabalho de examin-los. Foidireto para o perfil de Jeff, clicou na foto dele, mais uma vez leu a mensagem pessoal que elehavia escolhido: Vamos ver no que vai dar.

    Kat ficou se perguntando: quanto tempo ele teria levado para chegar a algo assim tosimples, to neutro, to casual e to cativante? Um convite, nada mais que isso. Nenhumapresso. Ela clicou no cone para enviar uma mensagem direta. Uma janela se abriu com umcursor que piscava impacientemente.

    Isso, vamos ver no que vai dar, escreveu. Humpf bufou, e logo apagou sua primeira tentativa.Depois, fez mais algumas: Adivinha quem ?; Puxa, quanto tempo; E a, Jeff, como

    voc est?; Que bom ver voc por aqui. No, no, no e no. Cada uma mais ridcula que a

  • outra. Talvez fosse essa a natureza dessas coisas, pensou. Era difcil escrever de um modo aomesmo tempo seguro e descontrado quando se estava num site procura do amor da sua vida.

    Uma sbita lembrana a fez abrir um sorriso melanclico. Jeff tinha certa queda pelacafonice dos clipes dos anos 1980. poca, ainda no havia um YouTube que permitisseencontrar todo e qualquer vdeo num piscar de olhos. Era preciso descobrir em que dia e aque horas algum canal pretendia exibir um programa especial ou qualquer coisa parecida. Derepente, Kat imaginou que, naquele exato momento, Jeff poderia estar plantado diante de seuprprio computador, pesquisando algum vdeo das antigas, algo do Tears for Fears, doSpandau Ballet, do Paul Young, do John Waite...

    Isso, John Waite.Waite havia emplacado um grande sucesso logo nos primrdios da MTV, uma cano pop,

    quase new wave, que costumava deixar Kat comovida, mesmo atualmente, nas vezes em queesbarrava com ela no rdio ou num bar qualquer que tocava hits da dcada de 1980. Sempreque ouvia Missing You, revia mentalmente o clipe em toda a sua gloriosa breguice: Johncaminhando sozinho nas ruas, repetindo um milho de vezes que no sente nem um pouco afalta da ex I aint missing you at all , mas com tamanho sofrimento na voz que o versoseguinte, I can lie to myself, chega a ser redundante, desnecessariamente explicativo, pois bvio que ele capaz de mentir para si mesmo. De repente, John entra num bar e vai afogandona bebida sua evidente tristeza, recordando os bons momentos passados ao lado da mulheramada, mas sem abrir mo do insistente refro que no engana ningum. A mentira vai serepetindo em cada um dos seus passos at que, l pelo fim do vdeo, ele volta para casa ecoloca os fones de ouvido para curar sua dor de cotovelo com msica. a que se d umatragdia de propores shakespearianas e roupagem de novela mexicana: sua amada volta,bate porta, mas ele no pode ouvir porque est com os fones. Resignada, a mulher se mandaoutra vez e deixa John Waite to infeliz quanto antes, jurando que no sente falta de ningum,mentindo eternamente para si mesmo.

    Irnico, no?Esse vdeo havia se tornado uma espcie de piada recorrente entre ela e Jeff. Quando

    precisavam se separar, ainda que por pouco tempo, ele mandava recados dizendo I aintmissing you at all e s vezes ela respondia I can lie to myself.

    O amor e suas gracinhas.Mas, quando Jeff queria ser mais srio, assinava seus bilhetes com o ttulo da msica, o

    mesmo que Kat, quase subconscientemente, agora digitava no site: MISSING YOU.Por alguns segundos, ficou olhando para a mensagem, hesitando em mand-la.No. Pesado demais. Ele l, todo casual e sutil com seu maravilhoso Vamos ver no que

    vai dar, e ela vinha de MISSING YOU. No, no dava. Mais uma vez, apagou o que haviaescrito e substituiu pelo refro da msica: I aint missing you at all.

    No. Esquisito demais. Mais uma tentativa fracassada.Ok, chega.

  • Foi ento que uma ideia lhe ocorreu do nada. Abrindo uma segunda janela no navegador,encontrou um link para o velho clipe de John Waite. Fazia uns vinte anos que ela no viaaquilo, mas o vdeo ainda tinha o mesmo charme meloso de antes. Perfeito, pensou, e copiou olink para o campo de texto do site. Uma imagem da cena do bar imediatamente pipocou najanela.

    Dessa vez, ela preferiu no ruminar e apertou o boto de enviar. Logo se levantou da mesae, quase correndo, saiu para a rua.

    Kat morava na Rua 67, no Upper West Side. O 19 Distrito Policial, onde trabalhava,ficava na sua rua, mas do lado leste, no muito distante do Hunter College. Ir para o trabalhosignificava atravessar a p o Central Park, e para Kat no poderia haver itinerrio melhor. Adelegacia ficava no terceiro andar de um prdio histrico dos anos 1880, cuja arquitetura,segundo algum lhe dissera, era no estilo neorrenascentista. Nos seriados, os detetivesgeralmente tm alguma especializao, como em homicdios, mas, na vida real, essassubdivises j haviam cado em desuso. No ano em que o pai de Kat fora morto, osassassinatos na cidade beiravam quatrocentos casos, mas, naquele ano, pelo menos at ento,no haviam passado de doze. Os grupos dedicados exclusivamente aos homicdios j tinhamficado obsoletos.

    Assim que ela passou pela recepo da delegacia, Keith Inchierca, o sargento de planto,avisou:

    O capito quer falar com voc imediatamente.Ele apontou o polegar gorducho na direo das escadas, como se Kat no soubesse onde

    ficava a sala do capito.Saltando os degraus de dois em dois, ela foi at o segundo andar. Embora tivesse uma

    tima relao com o capito Stagger, raramente era convocada sala dele.Bateu de leve porta. Entre.A sala de Stagger era pequena e tinha as paredes pintadas de um tom claro de cinza. Ele se

    achava debruado sobre sua mesa, a cabea abaixada. Imediatamente, Kat sentiu a boca secarao se lembrar do dia, dezoito anos antes, em que Stagger batera sua porta com aquela mesmapostura. De incio, ela no compreendera. Sempre achara que saberia prever o momento emque receberia semelhante visita, que teria algum tipo de premonio. J havia imaginado acena um milho de vezes em sua cabea: seria tarde da noite e choveria forte quandoesmurrassem sua porta, e ela j saberia o que estava por vir ao atend-la. Fitaria o policialdiretamente nos olhos, sacudiria a cabea enquanto ele assentia de forma solene, depois cairiade joelhos, berrando No!.

    Quando Stagger apareceu para dar a notcia divisora de guas da sua vida, que a fez seroutra pessoa, o sol brilhava sem nenhum pudor no horizonte. Ela j estava de sada para tomaro trem da linha C at a biblioteca do campus, onde precisava fazer uma pesquisa sobre o

  • Plano Marshall. Ainda se lembrava disso. O maldito Plano Marshall. Ento, abriu a porta e lestava Stagger, parado sua frente com a cabea abaixada, exatamente como agora, e ela nemsuspeitava de nada. Ele no conseguia encar-la. Para ela, a inslita e vergonhosa realidadeera que Stagger estava ali para v-la. J fazia algum tempo que Kat vinha desconfiando de umaquedinha. Os policiais mais jovens, sobretudo aqueles que tinham seu pai como uma figurapaterna, frequentemente se apaixonavam por ela. Portanto, ao deparar com Stagger sua porta,foi isto que Kat pensou: mesmo sabendo que ela era noiva de Jeff, o cara estava prestes afazer uma sutil investida. Nada de exageros ou grosserias. Stagger o primeiro nome dele eraThomas, mas ningum o chamava assim no fazia esse tipo. Sem dvida teria algo doce paradizer.

    Ao perceber o sangue que sujava a camisa dele, Kat estranhou, mas ainda assim nosuspeitou de nada. Foi ento que Stagger disse as palavras que detonaram em seu peito feitouma bomba, reduzindo a p o mundo que ela conhecia antes:

    A notcia no nada boa, Kat.Stagger agora beirava os 50 anos, era casado e tinha quatro filhos, todos homens.

    Fotografias se espalhavam por sua mesa. Numa delas, ele aparecia ao lado de seu falecidoparceiro, o detetive de homicdios Henry Donovan, pai dela. Assim eram as coisas. Aspessoas morriam no exerccio do trabalho e fotos delas estavam por toda parte. Para uns, umasingela homenagem; para outros, uma dolorosa lembrana. Na parede atrs de Stagger, haviaum pster do filho mais velho dele, de 16 anos, jogando lacrosse. Ele e a mulher tinham umacasa no Brooklyn. Uma vida boa, supunha Kat.

    Queria falar comigo, capito?Fora do DP, Kat o chamava de Stagger, mas nunca no trabalho. No dava mesmo. Ele

    ergueu um rosto avermelhado e ela automaticamente recuou um passo, receando ouvir asmesmas palavras do passado, mas, dessa vez, adiantou-se.

    O que foi? Monte Leburne.Foi como se o nome tivesse sugado todo o ar da sala. Ao cabo de uma vida essencialmente

    intil, dedicada apenas destruio, Monte Leburne vinha cumprindo sua pena vitalcia peloassassinato de Henry Donovan.

    O que tem ele? Est morrendo.Kat apenas meneou a cabea. Precisou de alguns segundos para reorganizar os

    pensamentos, depois perguntou: Morrendo do qu? Cncer no pncreas. Desde quando? No sei. E por que s agora voc est me contando isso?

  • Sua voz saiu mais spera do que ela pretendia. Stagger a encarou e ela fez um gesto comose pedisse desculpas.

    Acabei de descobrir. Venho tentando visit-lo. , eu sei. Antes ele permitia, mas, nos ltimos tempos... Tambm estou sabendo.Silncio. Ele ainda est no Clinton? perguntou Kat.Clinton era um presdio de segurana mxima no norte do estado de Nova York, prximo

    fronteira com o Canad, aparentemente o lugar mais frio, isolado e inspito do planeta. Ficavaa umas seis horas de carro de Manhattan. Kat j havia feito aquela deprimente viagem comdemasiada frequncia.

    No. Foi transferido para Fishkill.timo. Muito mais perto. Chegava-se l em noventa minutos. Quanto tempo ele ainda tem? No muito.Stagger se levantou e foi contornando sua mesa, talvez para oferecer um abrao de

    consolo, mas parou a meio caminho. Isso bom, Kat. Esse cara merece morrer. Alis, merece coisa pior.Ela balanou a cabea. No. Kat... Preciso falar com ele mais uma vez.Stagger assentiu devagar. Eu j esperava por isso. E a? J fiz a solicitao, mas Leburne no quer falar com voc. Que pena. Sou uma policial. Ele um assassino condenado, prestes a morrer, com um

    grande segredo. Kat. O que foi? Mesmo que agora voc consiga faz-lo falar... e voc sabe que no vai conseguir... ele

    no vai viver o bastante para ser julgado. Podemos fazer uma gravao. Uma confisso de leito de morte.Stagger a encarou com um olhar ctico. Preciso pelo menos tentar alegou Kat. Ele no vai receber voc. Posso pegar uma viatura emprestada?

  • Stagger fechou os olhos. Por favor, Stagger.Agora no dava para cham-lo s de capito. Seu parceiro vai dar conta do recado sozinho? Vai. Ela mentiu. Claro que vai. Parece que no tenho muita escolha disse Stagger, e soltou um suspiro de resignao.

    Tudo bem, pode ir.

  • captulo 5

    GERARD REMINGTON FINALMENTE viu a luz do dia.No fazia a menor ideia de quanto tempo havia ficado na escurido. A claridade explodira

    diante de seus olhos com a intensidade de uma supernova, ofuscando-o. Ele fechou os olhos,depois cogitou bloquear a luz com uma das mos, mas lembrou que elas estavam amarradas.Restava-lhe pisc-los para aliviar o incmodo e secar as lgrimas.

    Algum o fitava do alto. No se mexe disse uma voz masculina.Imvel, Gerard ouviu algo se arrebentar e se deu conta de que o homem estava cortando

    suas amarras. Por um breve instante, ficou esperanoso. Talvez aquele homem estivesse alipara salv-lo.

    Levante-se ordenou o sujeito. Tinha um leve sotaque, alguma coisa do Caribe ou daAmrica do Sul. Estou armado. Se tentar alguma besteira, a gente mata voc e enterra aquimesmo. Est me ouvindo?

    Apesar da secura na boca, Gerard conseguiu responder Sim.O homem saltou para fora do... da... como chamar aquilo? Uma caixa? Pela primeira vez,

    Gerard pde ver onde havia passado todas aquelas... horas? A tal caixa era algo entre umacova e um cubculo, com mais ou menos 1,5 metro de largura e de profundidade, e mais outros2,5 de comprimento. Ao ficar de p, Gerard constatou que se encontrava no meio de uma matacerrada. O cubculo estava enterrado no cho, uma espcie de bunker. Talvez algo para servirde abrigo durante uma tempestade ou um continer para o estoque de gros. Difcil dizer.

    Agora saia.Gerard estreitou os olhos para enxerg-lo melhor. O que viu no foi exatamente um

    homem, mas um adolescente alto e muito parrudo. Pensou ter notado um trao de portugus nosotaque dele, talvez fosse brasileiro, mas sabia que no era um conhecedor de lnguas paraafirmar o que quer que fosse. O rapaz tinha cabelos curtos e crespos. Vestia jeans e umacamiseta muito justa cujas mangas quase tinham o efeito de torniquetes, de tanto que apertavamos bceps inchados.

    E de fato estava armado.Gerard saiu da caixa para a mata. A distncia, viu um cachorro correndo ao longo de uma

    trilha, talvez um labrador cor de chocolate. O bunker praticamente sumiu quando o rapaz

  • voltou a fech-lo. De fora, viam-se apenas dois grandes aros de metal, uma corrente e umcadeado, tudo isso na tampa camuflada.

    Zonzo, Gerard perguntou: Que lugar este? Voc est fedendo comentou o rapaz. Tem uma mangueira do outro lado daquela

    rvore ali. V se lavar, fazer as suas necessidades, depois vista isto aqui.Ele entregou a Gerard um macaco de camuflagem. No estou entendendo nada.O parrudo armado se adiantou, parou frente dele e comeou a flexionar os trceps e os

    msculos do peitoral. Est a fim de levar porrada? No. Ento faa o que estou mandando.Gerard tentou engolir um pouco de saliva, mas a boca era um deserto de to rida. Ele

    olhou na direo da mangueira. Banho? Que nada. O que ele mais queria naquele momento eramatar a sede. Saiu correndo rumo tal rvore, mas os joelhos bambearam e, por pouco, no oderrubaram. Tempo demais dentro daquela cova. Forou-se a ficar de p pelos menos atchegar mangueira. Abriu a torneira e foi sorvendo avidamente a gua que saa dela. Tinhagosto de... bem, mangueira velha, mas ele no se importou.

    Esperava que, a qualquer momento, o parrudo comeasse a ladrar novamente e estranhouquando percebeu a sbita pacincia dele. Por algum motivo, isso o preocupava. Correu osolhos sua volta, esquadrinhando a rea procura de alguma clareira, estrada ou algo assim.Mas no havia nada. Que lugar seria aquele?

    Aguou os ouvidos procura de algum barulho revelador. De novo, nada.E Vanessa, onde estaria ela? Esperando por ele no aeroporto? Confusa, porm segura?Ou teria sido sequestrada tambm?Foi para o outro lado da rvore e despiu as roupas imundas. O rapaz ainda o observava de

    longe. Gerard ficou se perguntando quando havia ficado pelado na frente de outro homem pelaltima vez. Nas aulas de educao fsica do colgio, imaginou. Um sentimento estranhonaquelas circunstncias: timidez.

    Onde estaria Vanessa? Estaria bem?No havia como saber. Ele no sabia de nada. No sabia onde estava, no sabia quem era

    aquele rapaz, no sabia por que eles estavam ali. Gerard tentou organizar as ideias, pensarracionalmente no que poderia fazer. Teria que cooperar e fazer o possvel para no perder asfaculdades mentais. Era um homem inteligente, lembrou a si mesmo, e se sentiu mais confiantelogo em seguida.

    Alm da inteligncia, tinha uma noiva adorvel, um timo emprego e um futuro brilhante sua espera. O brutamontes estava armado, tudo bem, mas isso no chegava a ser preo para ointelecto de Gerard.

  • O rapaz enfim disse alguma coisa: Depressa.Gerard se limpou, depois perguntou: Voc tem uma toalha? No.Molhado, vestiu o macaco camuflado. Agora estava tremendo. Comeava a sentir os

    efeitos daquela combinao de medo, cansao, privao e confuso mental. Est vendo aquela trilha? indagou o brutamontes, apontando para o mesmo caminho em

    que Gerard tinha avistado o cachorro. Estou. V seguindo por ela at o fim. Se der um passo para o lado, leva bala.Gerard achou por bem obedecer. Fugir no era uma opo. Mesmo que ele no levasse

    uma bala nas costas, para onde iria? Talvez pudesse se embrenhar na mata at ficar a salvo,mas, depois disso, que direo tomar? No haveria como saber se estaria indo para umaestrada ou se afundando ainda mais no matagal.

    Fugir seria uma grande tolice, quanto a isso no havia dvida.Alm do mais, se a inteno daquelas pessoas era mat-lo supunha que havia mais

    algum alm do rapaz, pois ele dissera a gente , quela altura ele j estaria morto.Portanto, s havia uma coisa a fazer: manter a lucidez e a ateno.

    Ficar vivo para encontrar Vanessa.Gerard sabia que sua passada media aproximadamente 81 centmetros. Vinha contando os

    passos. Ao completar duzentos, o que equivalia a 162 metros, ele avistou uma interrupo nocaminho e, para alm dela, um descampado. Bastaram apenas mais doze passos para que sevisse fora da mata cerrada. No muito longe, ficava uma casa branca, dessas de fazenda.Podia ver que as janelas do pavimento superior tinham cortinas verde-escuras. Procurou pelosfios de uma rede eltrica, mas no encontrou.

    Interessante.Um homem se achava na varanda da casa, displicentemente recostado a um dos pilares

    com os braos cruzados sobre o peito, as mangas da camisa enroladas at a altura doscotovelos. Estava usando culos escuros e botas de trabalho. Os cabelos eram de um lourosujo e roavam os ombros. Assim que o avistou, sinalizou para que se aproximasse, depoissumiu no interior da casa.

    Gerard irrompeu na direo da varanda. Mais uma vez, notou as cortinas verdes. suadireita havia um celeiro, diante do qual o cachorro esperava com pacincia, deitado. Sim, eraum labrador cor de chocolate. Nas imediaes dele estava uma carroa cinzenta, mas semcavalo. Humm. Gerard tambm avistou um moinho de vento, o que fazia todo sentido. Essaseram suas pistas. Ainda no sabia o que fazer com elas ou talvez soubesse e isso apenastornasse a situao ainda mais confusa , mas, por ora, achou melhor no tirar concluses.

    Por fim, subiu os dois degraus da varanda. Hesitou um instante diante da porta aberta,

  • respirou fundo e passou ao hall da casa. A sala ficava sua esquerda. O homem de cabeloscompridos ocupava uma poltrona grande. Havia retirado os culos, deixando mostra osolhos castanhos injetados. Tatuagens cobriam os antebraos. Gerard examinou-as na esperanade encontrar alguma pista de quem era o sujeito, mas elas no lhe disseram nada.

    Meu nome Titus. Notava-se na voz dele uma certa cadncia, uma qualidade metlica,uma delicadeza que beirava a fragilidade. Por favor, sente-se.

    Gerard entrou na sala sob o olhar fixo do tal Titus. Mal havia se sentado quando outrohomem se juntou a eles. Um hippie, a julgar pelas roupas: bata africana multicolorida, boinade tric, culos cor-de-rosa. Ele foi para uma mesa prxima e abriu um MacBook Air. Todosos MacBook Air so idnticos, claro, por isso Gerard havia diferenciado o seu com umpequeno pedao de fita adesiva preta.

    L estava ela, a fita adesiva preta.Gerard franziu a testa. O que est acontecendo aqui? Cad a Vanessa? Sshh fez Titus.O chiado dele cortou o ar como a foice de um lavrador.Titus virou-se para o hippie, que meneou a cabea e disse: Tudo pronto.Por pouco Gerard no perguntou Pronto para qu?, mas ainda estava sob o impacto do

    comando de silncio.Titus abriu o sorriso mais apavorante que Gerard Remington j tinha visto na vida. Temos umas perguntinhas para fazer, Gerard.

  • captulo 6

    O NOME ORIGINAL DO PRESDIO de Fishkill era Hospital Estadual para Criminosos Insanos.Isso havia sido nos anos 1890, mas, em muitos aspectos, o lugar ainda tinha funcionado comohospital para doentes mentais at a dcada de 1970, quando as leis tornaram bem mais difcila internao em tempo integral como resultado do diagnstico de alguma psicopatia. Agora,Fishkill era um presdio de segurana mediana, embora abrigasse um pouco de tudo, desdeprisioneiros em regime semiaberto at aqueles do Bloco S, tal como eram chamadas as alas desegurana mxima.

    Localizada em Beacon, Nova York, pitorescamente aninhada entre o rio Hudson e asserras de Fishkill, a edificao de tijolos aparentes ainda era quase a mesma do passado, maso estado geral de abandono e as cercas de arame farpado agora davam ao lugar uma atmosferahbrida, algo entre o campus centenrio de uma universidade qualquer e um campo deconcentrao la Auschwitz.

    Kat recorreu lbia profissional e a seu distintivo dourado para atravessar a maioria dasbarreiras de segurana. Em Nova York, policiais de rua e investigadores eram diferenciadospela cor do distintivo: prata para os primeiros, ouro para os segundos. O de Kat tinha onmero de inscrio 8.115, o mesmo que havia pertencido a seu pai.

    Uma enfermeira mais idosa, vestida inteiramente de branco e com uma anacrnica touca nacabea, parou-a entrada da ala hospitalar. Sua maquiagem era uma atrao parte: sombraturquesa nos olhos, batom vermelho-neon nos lbios. Tinha-se a impresso de que algumderretera lpis de cera sobre as faces da mulher. Com um sorriso exageradamente doce, quedeixava mostra os dentes sujos de batom, ela avisou:

    O Sr. Leburne no est recebendo visitas.Mais uma vez, Kat brandiu seu distintivo. No pretendo me demorar... Sra. Steiner disse ela, lendo o nome no crach da

    enfermeira: SYLVIA STEINER, ENFERMEIRA REGISTRADA.A mulher tomou o distintivo em suas mos, inspecionou-o sem nenhuma pressa, depois

    ergueu o rosto para avaliar o de Kat, que manteve a expresso mais neutra possvel. No estou entendendo... O que voc quer com o Sr. Leburne? Ele matou meu pai. Ah. Ento voc veio para v-lo sofrer.No havia nenhuma recriminao no tom de voz dela. Era como se aquilo fosse a coisa

  • mais natural do mundo. No, no. S quero fazer algumas perguntas a ele.Sylvia Steiner conferiu o distintivo uma ltima vez e o devolveu. Venha comigo, corao.A enfermeira tinha um jeito meldico e angelical de falar que chegava a provocar

    arrepios.Kat foi conduzida at uma cela com quatro leitos, mas apenas um se encontrava ocupado.

    Monte Leburne estava deitado de olhos fechados no ltimo deles, junto parede da direita.Nos ureos tempos, ele fora um homem de propores titnicas, algo que vinha a calharsempre que algum crime demandava muita violncia fsica e pouco crebro. Ex-pugilista dospesos pesados, certamente havia levado uma boa dose de pancadas na cabea, mas tinha ospunhos certos para usar na intimidao, na extorso, na agiotagem, nas guerras de territrio, nodesbaratamento de greves sindicais e no diabo a quatro. Mas nem por isso havia sido capaz dese defender de um espancamento especialmente brutal por parte de uma famlia rival. Aps oincidente, seus chefes que sabiam apreciar uma fidelidade que por muito pouco nodescansava para a estupidez lhe deram uma arma e a misso fisicamente bem menos onerosade matar seus inimigos.

    Em outras palavras, Monte Leburne se transformara num matador de aluguel de nvelintermedirio. No era l muito inteligente, mas, no fim das contas, no era preciso muitotutano para apertar um gatilho e matar algum.

    Ele acorda e apaga, acorda e apaga explicou a Sra. Steiner.Kat se aproximou da cama. A enfermeira ficou parada alguns passos atrs. A senhora poderia nos deixar sozinhos por um instante?Sorriso doce. Voz angelical e arrepiante: No, corao, infelizmente, no.Kat olhou para Leburne e, por um momento, procurou na prpria alma algum indcio de

    compaixo pelo homem que matara seu pai. Se compaixo havia, estava muito bem escondida.De modo geral, o que ela sentia pelo infeliz era um dio ardente, mas, por vezes, percebia queodiar Leburne era o mesmo que odiar a arma do crime. Leburne era a arma do crime, no maisque isso.

    Mas as armas tambm deviam ser eliminadas, certo?Kat sacudiu de leve o ombro do homem e os olhos dele foram se abrindo aos poucos. Ol, Monte.Leburne levou um tempo para reconhecer quem o olhava do alto e se retesou assim que a

    ficha caiu. Voc no devia estar aqui, Kat.Ela tirou uma fotografia do bolso. Ele era o meu pai.Leburne j tinha visto aquela foto inmeras vezes. Kat a levava consigo sempre que o

  • visitava. No sabia muito bem por qu. Talvez porque quisesse comov-lo, mas homens queexecutam outros no so l muito propensos a comoo. O mais provvel era que fizesse issoem benefcio prprio, como se a foto fosse o pai em carne e osso, dando-lhe coragem eproteo.

    Quem foi que encomendou a morte dele? Foi o Cozone, certo?Sem erguer a cabea do travesseiro, Leburne questionou: Por que voc insiste em fazer as mesmas perguntas? Porque voc nunca responde.Leburne abriu seu sorriso de dentes podres. Mesmo a distncia, podia sentir o mau hlito. E hoje voc veio para qu? Para tirar de mim uma confisso de leito de morte? Voc no tem mais motivo para continuar escondendo a verdade, Monte. Claro que tenho.Ele estava se referindo prpria famlia. Era esse o trato: voc fica de bico fechado e a

    gente cuida da sua famlia para o resto da vida; mas, se der com a lngua nos dentes, todomundo morre, no sobra ningum para contar a histria.

    O velho toma l d c do crime organizado.Esse era o grande problema de Kat: no tinha nada para oferecer como moeda de troca.No era preciso ser mdico para saber que os dias de Leburne estavam contados. A morte

    j havia se aninhado em algum cantinho confortvel do corpo dele para carcomer seu caminhoat a inelutvel vitria. Leburne j estava meio esqueltico, dava a impresso de que, aqualquer momento, se desmancharia em p. A mo direita, a que ele usava para matar,estriava-se de veias gordas e salientes que mais lembravam mangueiras de jardim. Logo acimado pulso se espetava o acesso do soro intravenoso.

    Em meio a uma sbita crise de dor, contorcendo o rosto numa careta, ele mandou: V embora. No. Kat via sua ltima chance escorrer pelos dedos. Por favor. Ela procurava

    apagar da voz o tom de splica. Eu preciso saber. V embora.Kat se inclinou na direo dele. Preste ateno, Monte. Estou fazendo isso por mim mesma. J se foram dezoito anos.

    Preciso saber da verdade, s isso. Para jogar uma p de cal nessa histria e tocar minha vida.Por que o Cozone queria a morte do meu pai?

    Me deixe em paz... Posso dizer que voc contou tudo. O qu? Isso mesmo que voc ouviu disse Kat com firmeza. Assim que voc bater as botas,

    coloco o filho da puta na cadeia, falando que voc abriu o bico, que me fez uma confissocompleta.

    Leburne sorriu novamente.

  • Fala srio. Acha que estou blefando? No sei se est blefando. S sei que ningum vai acreditar em voc. Olhando para a

    Sra. Steiner, acrescentou: Alm disso, tenho uma testemunha. No tenho, Sylvia? Estou bem aqui, Monte.Outra crise de dor fez com que ele se retorcesse na cama. Estou muito cansado, Sylvia. Essa merda s est piorando.A Sra. Steiner rapidamente se aproximou da cama. Estou bem aqui, Monte repetiu, e tomou a mo dele.Em razo da maquiagem espalhafatosa, seu sorriso se assemelhava muito com o de um

    palhao. Tire essa mulher daqui, Sylvia, por favor. Ela j est de sada. A essa altura, a enfermeira j bombeava a cnula do soro,

    injetando algum tipo de narctico no organismo de Leburne. Agora procure descansar, ok? No deixe ela ficar aqui. Sshh, voc vai ficar aqui. A enfermeira olhou torto para Kat. Ela j est com um p

    na rua.Kat j ia protestando quando viu a mulher apertar alguns botes no controle do soro. No

    havia mais nada que ela pudesse fazer ali. Como previsto, Leburne pestanejou um instante eapagou por completo.

    Uma perda de tempo.Mas que diabos ela estava esperando? At mesmo o moribundo tinha caoado da ideia de

    uma confisso de leito de morte. Cozone sabia muito bem como calar seus asseclas. No havianenhum incentivo para que Leburne falasse. No havia antes, e agora muito menos.

    Kat j ia voltando para o carro quando ouviu s suas costas a mesma voz melosa de antes: Voc conduziu muito mal aquela conversa l dentro, corao.Kat se virou para a enfermeira de filme de terror com a touquinha branca e sua maquiagem

    de capeta. A senhora tambm no ajudou muito. Voc quer a minha ajuda? Como? Aquele l no sabe o que remorso, minha filha. Remorso de verdade. Na frente do

    padre, ele diz todas as palavras certas, mas tudo da boca para fora. S est tentando comprarseu lugarzinho no cu. Acontece que Deus no burro, no se deixa enganar assim tofacilmente. Mais um sorriso de dentes sujos. Monte matou muita gente, foi?

    Confessou ter matado trs. S que foram mais. Incluindo seu pai? Sim.

  • E seu pai era da polcia, assim como voc? Era.A Sra. Steiner fez um muxoxo de empatia. Sinto muito.Kat ficou em silncio. A enfermeira hesitou alguns segundos. Venha comigo disse por fim. O qu? Voc est querendo informaes, no est? Sim. Ento fique de longe e deixe que eu cuide de tudo.A Sra. Steiner girou e foi voltando para a enfermaria. Kat precisou apertar o passo para

    alcan-la. Espere, o que a senhora pretende fazer? Por acaso j ouviu valar do sono crepuscular? No, acho que no. Comecei minha carreira na enfermagem como assistente de um obstetra. Naquele tempo,

    a gente usava morfina e escopolamina como anestsicos. Essas substncias deixavam asparturientes num estado de seminarcose: elas permaneciam conscientes, mas depois no selembravam de nada. Alguns diziam que elas no sentiam dor nenhuma. Pode at ser, mas tenhoc minhas dvidas. Para mim, o mais provvel era que sentissem as dores, sim, mas depois seesqueciam delas. A enfermeira inclinou a cabea feito um cachorro ao ouvir um rudoestranho. Ser que existe dor quando a gente no se lembra dela?

    Kat achou que se tratava de uma pergunta retrica, mas a mulher parou onde estava e ficouali, esperando por uma resposta.

    No sei. Pense bem. Isso vale para qualquer experincia, tanto as boas quanto as ruins. Se voc

    no se lembra de nada depois, ser que no o mesmo que nada ter acontecido?Novamente ela ficou esperando por uma resposta. No sei repetiu Kat. Nem eu. Mas a questo interessante, voc no acha?Aonde diabos ela pretendia chegar com aquela histria?, pensou Kat, e respondeu: verdade. Todo mundo s quer saber de viver o presente. At entendo. Mas, se depois voc no se

    lembra desse presente, ser que ele aconteceu mesmo? Sei l. Foram os alemes quecomearam com o tal do sono crepuscular, achando que com isso estavam tornando o partomais suportvel para as mes. Mas estavam enganados. Depois de um tempo, essa prtica foiproibida, claro. Os bebs nasciam drogados. Pelo menos era isso que os mdicos alegavam. Ela se inclinou na direo de Kat como se quisesse confidenciar algo. Mas, c entre ns,acho que o motivo era bem outro.

  • O qu, ento? O problema no era o que acontecia com os bebs. A Sra. Steiner parou diante da

    porta da enfermaria. O problema eram as mes. Como assim? Elas tambm no gostavam do procedimento. Ficavam livres da dor, tudo bem, mas

    tambm no viviam a experincia do parto. Entravam numa sala e depois, quando davam porsi, j estavam com um beb no colo. Sentiam-se emocionalmente desconectadas, alheias aonascimento dos prprios filhos. Era desconcertante. Carregavam um beb na barriga por novemeses, entravam em trabalho de parto e depois... puf! A enfermeira estalou os dedos a ttulode nfase.

    Ficavam se perguntando se aquilo tudo tinha mesmo acontecido concluiu Kat. Exatamente. Mas o que isso tem a ver com Monte Leburne?A Sra. Steiner abriu um sorriso maroto. Voc sabe, aposto.Kat no sabia. Ou talvez soubesse, sim. A senhora acha que pode coloc-lo nesse estado de... sono crepuscular? Claro que posso. E depois o qu? Acha que posso tirar as informaes que preciso e ele no vai se

    lembrar de nada? Mas a morfina no l muito diferente do tiopentato de sdio. Voc sabe o que

    tiopentato de sdio, certo?Kat sabia, muito embora a substncia fosse mais conhecida como tiopental. Trocando em

    midos: soro da verdade. A coisa no funciona como a gente v no cinema prosseguiu a enfermeira. Mas,

    quando as pessoas esto sob o efeito... Bem, as mes costumavam tagarelar... s vezes atconfessavam coisas. Mais de uma vez, com o marido andando de um lado para outro na salade espera, confidenciavam que o filho no era deles. Ningum perguntava nada, claro. Elasdeixavam escapar o seu segredo e a gente fingia que no tinha ouvido. Mas, com o tempo,comecei a perceber que era possvel conduzir uma conversa, fazer perguntas e descobrir ummonte de coisas. Depois, claro, elas no se lembravam de patavina.

    A Sra. Steiner cravou os olhos nos de Kat, que sentiu calafrios na espinha. A enfermeiraabriu a porta sua frente.

    S tem um problema: no d para acreditar em tudo o que as pessoas dizem quandoesto sob o efeito da morfina. J vi acontecer um milho de vezes. O paciente fala comabsoluta convico alguma coisa que simplesmente no pode ser verdade. O ltimo quemorreu nesta enfermaria, por exemplo... Ele jurava que, toda vez que ficava sozinho, algumaparecia para sequestr-lo e lev-lo para o enterro de diferentes gatos. No estava mentindo.Tinha certeza de que era isso mesmo que acontecia, entende?

  • Entendo. Ento eu lhe pergunto: vamos em frente com isso?Kat no estava de todo convencida. Criada numa famlia de policiais, tinha plena

    conscincia dos riscos de infringir as regras.Por outro lado, que escolha tinha? Detetive? Tudo bem, vamos em frente.O sorriso se alargou nos lbios da Sra. Steiner. Se ouvir sua voz, Monte vai travar a lngua. Deixe que eu conduza a conversa. Quem

    sabe no conseguimos tirar dele alguma coisa de til para voc? Tudo bem. Vou precisar de mais detalhes sobre o assassinato do seu pai.Bastaram vinte minutos para que a Sra. Steiner acrescentasse escopolamina morfina que

    Leburne j vinha recebendo, depois conferisse os sinais vitais dele e fizesse os ajustesnecessrios. Parecia ter tanta prtica que Kat chegou a cogitar se seria a primeira vez que amulher fazia aquilo por motivos que no eram exatamente medicinais. Aos olhos dela, noescapava o potencial que havia ali para todo tipo de abuso. O argumento oferecido pelaenfermeira Se voc no se lembra de nada depois, ser que no o mesmo que nada teracontecido? lhe parecia demasiadamente simplista.

    Mas a Sra. Steiner prosseguia agindo sem nenhuma hesitao e no seria Kat quem aimpediria naquele momento. Acomodou-se num canto, fora do caminho da enfermeira.

    Monte Leburne havia despertado de novo, a cabea pesando inerte sobre o travesseiro. Nolugar da Sra. Steiner, ele via Cassie, sua irm que morrera aos 8 anos. Falava do quantoqueria rev-la quando ele prprio morresse tambm. Kat se espantou ao ver a enfermeira seaproveitar da situao para conduzir a conversa no sentido que desejava.

    Fique tranquilo, Monte, porque a gente vai se encontrar. Vou esperar por voc do outrolado. A menos que... Bem, a menos que haja algum problema por conta das pessoas que vocmatou.

    Homens ele disse. O qu? S matei homens. Nunca mataria uma mulher. Jamais. Nem mulher nem criana, Cassie.

    S matei homens. Homens do mal.A Sra. Steiner olhou de relance para Kat, depois se voltou para Leburne. Mas voc matou um policial. Esses so os piores. Como assim? Os policiais. So os piores de todos. Mas tanto faz. No estou entendendo, Monte. Explique para mim. Nunca matei policial nenhum, Cassie. Voc sabe disso.

  • Kat gelou. No, aquilo no estava certo.A Sra. Steiner pigarreou. Mas, Monte... Cassie... Desculpa por eu no ter defendido voc. Leburne comeou a chorar. Deixei

    que machucassem voc, no fiz nada para ajudar. No tem problema, Monte. Tem, sim. Protegi todo mundo, por que no a minha prpria irm? guas passadas. Agora estou num lugar muito melhor. Quero que voc venha para c

    tambm, para ficar comigo. Agora estou protegendo minha famlia tambm. Aprendi a lio. Papai no prestava... Eu sei. Mas, Monte, voc disse que no matou policial nenhum. Voc sabe que no matei. Mas... e o detetive Henry Donovan? Sshh. O que foi? Sshh. Eles vo ouvir. Foi fcil. De qualquer modo, eu estava ferrado. Como assim? Eu j estava ferrado por causa do Lazlow e do Greene. Fui pego com a boca na botija. Ia

    pegar priso perptua. Que diferena faria incluir mais um? Ainda mais se isso adiantava omeu lado, entende?

    Foi como se uma mo gelada tivesse se fechado sobre o corao de Kat, apertando-o. Atmesmo a enfermeira estava com dificuldade para manter a calma.

    Explique isso direito, Monte. Por que voc matou o detetive Donovan? isso que voc acha, ? Que eu matei o detetive? Eu s assumi a culpa. J estava

    ferrado, ser que voc no entende? Quer dizer ento que voc no atirou no detetive?Nenhuma resposta. Monte?Silncio. Ela j comeava a perd-lo. Monte, se no foi voc que matou o detetive, ento quem foi?Com uma voz distante, ele resmungou: Quem o qu? Quem matou o detetive Henry Donovan? Como que eu vou saber? Eles vieram me ver. No dia seguinte minha priso. Falaram

    para eu embolsar o dinheiro e assumir a culpa. Eles quem?Monte fechou os olhos. Estou com tanto sono... Monte, quem mandou voc assumir a culpa?

  • Eu nunca devia ter poupado o papai, Cassie. Depois de tudo o que ele fez com voc. Eusabia. A mame sabia. E a gente no fez nada. Me perdoe...

    Monte? To cansado... Quem mandou voc assumir a culpa? insistiu a Sra. Steiner.Mas Monte Leburne j havia apagado outra vez.

  • captulo 7

    KAT APERTAVA AMBAS AS mos no volante, concentrada no trnsito sua volta. Talvezconcentrada demais, mas essa era a nica maneira de aquietar os pensamentos. Seu mundohavia sado do eixo. A Sra. Steiner a alertara mais uma vez, dizendo que Monte Leburneestava desorientado pelas drogas, que no era prudente dar muito crdito ao que ele tinha dito.Tudo bem. Nada daquilo chegava a ser novidade, mas, na sua experincia de policial, ela japrendera uma coisa: a verdade tem l o seu cheirinho particular.

    Naquele momento, era esse o cheiro que tinham as palavras de Monte Leburne.Ela ligou o rdio e sintonizou num desses programas em que os comentaristas esto

    sempre cuspindo fogo, mas sempre com uma soluo fcil para os problemas do mundo. Katse irritava com essa simplificao excessiva das coisas, mas era exatamente por isso quegostava desse tipo de programa: distraa-se com eles. Na sua opinio, estavaminvariavelmente errados todos aqueles, da direita ou da esquerda, que tivessem algumaresposta fcil para dar ao que quer que fosse. O mundo era um lugar complexo. No havianada que se encaixasse em tudo.

    Voltando ao 19o Distrito, Kat foi direto para a sala do capito Stagger. No o encontroupor l. Poderia perguntar quando ele retornaria, mas no queria chamar muita ateno para simesma, pelo menos por enquan