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Quinta Turma

Quinta Turma - Superior Tribunal de Justiça - O … DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 564 Recebida a inicial (fl . 96 do Apenso 1), o paciente foi interrogado (fl . 129 do Apenso 1),

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Quinta Turma

HABEAS CORPUS N. 111.180-SP (2008/0157717-0)

Relator: Ministro Jorge Mussi

Impetrante: Clauder Corrêa Marino

Impetrado: Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo

Paciente: Luiz Carlos Ferreira (preso)

EMENTA

Habeas corpus. Homicídio qualifi cado supostamente praticado

por militar contra civil. Sentença absolutória proferida pela auditoria

militar. Anulação do julgamento pelo Tribunal de Justiça Militar

do Estado de São Paulo. Inobservância do efeito devolutivo restrito

à fundamentação do apelo. Decretação de nulidade não arguida no

inconformismo ministerial. Desrespeito ao entendimento constante

da Súmula n. 160 do STF. Constrangimento ilegal evidenciado.

Concessão da ordem.

1. O efeito devolutivo do recurso de apelação criminal encontra

limites nas razões expostas pelo recorrente, em respeito ao princípio da

dialeticidade que rege os recursos no âmbito processual penal pátrio,

por meio do qual se permite o exercício do contraditório pela parte

que defende os interesses adversos, garantindo-se, assim, o respeito à

cláusula constitucional do devido processo legal.

2. Da leitura da fundamentação do aresto objurgado, conclui-se

que o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo extrapolou

os limites de cognição do apelo interposto pelo Ministério Público,

pois declarou, de ofício, nulidade que sequer havia sido objeto de

insurgência pelo Parquet nas suas razões recursais, ampliando o efeito

devolutivo do reclamo, e agravando, independentemente de provocação,

a situação do paciente, procedimento que vai de encontro ao princípio

da proibição da reformatio in pejus, e que constitui manifesta afronta ao

Enunciado da Súmula n. 160 do Supremo Tribunal do Federal.

3. Ordem concedida para anular o acórdão objurgado,

determinando-se que outro seja proferido nos limites da irresignação

ministerial, e como consequência, para anular o julgamento do paciente

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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pelo Tribunal do Júri, realizado em decorrência da decisão colegiada

ora anulada, bem como o acórdão que considerou o paciente indigno

para o ofi cialato.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das

notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos

do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Adilson Vieira Macabu

(Desembargador convocado do TJ-RJ), Gilson Dipp, Laurita Vaz e Napoleão

Nunes Maia Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 15 de março de 2011 (data do julgamento).

Ministro Jorge Mussi, Relator

DJe 25.04.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Jorge Mussi: Trata-se de habeas corpus com pedido de

liminar impetrado em favor de Luiz Carlos Ferreira, contra acórdão proferido

pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo que, ao apreciar a

Apelação Criminal n. 4.501/94 interposta pelo Ministério Público, anulou a

decisão que absolveu o paciente nos autos do Processo-Crime n. 44.040/91,

da 4ª Auditoria da Justiça Militar daquele Estado, no qual foi denunciado pela

suposta prática do delito disposto no artigo 205, § 2º, inciso IV, combinado

com o artigo 53, caput, ambos do Código Penal Castrense, determinando a sua

submissão a novo julgamento.

Sustenta o impetrante que o paciente é vítima de constrangimento ilegal,

ao argumento de que o aresto ofendeu o entendimento constante da Súmula

n. 160 do Supremo Tribunal Federal, pois acolheu, contra o réu, nulidade não

arguida em recurso da acusação.

Busca demonstrar que os fundamentos expostos no inconformismo

ministerial são diversos do adotado no aresto objurgado, o qual decidiu pela

nulidade da sentença por não ter discorrido a respeito de todas as provas

constantes dos autos, enquanto o recorrente postulou a condenação do paciente.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 563

Requer, assim, a concessão da ordem para que seja anulado o acórdão

vergastado, para que outra decisão seja proferida nos limites da apelação

interposta pelo órgão ministerial.

O pleito sumário foi inicialmente negado, sobrevindo o deferimento da

liminar, nos termos da decisão de fl . 55.

Dispensadas as informações, o Ministério Público Federal, em parecer de

fl s. 38-42, manifestou-se pela denegação da ordem.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Jorge Mussi (Relator): Conforme relatado, com este habeas

corpus pretende-se, em síntese, a anulação do acórdão referente ao recurso de

apelação interposto pelo Ministério Público, por meio do qual o paciente foi

submetido a novo julgamento pela suposta prática do delito de homicídio.

Segundo consta dos autos, o paciente foi denunciado porque teria cometido

o delito disposto no artigo 205, § 2º, inciso IV, combinado com o artigo 53,

caput, ambos do Código Penal Militar, extraindo-se da peça acusatória os

seguintes trechos:

Consta das inclusas peças de informação que no dia 07 de fevereiro de 1991, por volta das 7:30 horas, na Estrada da Capelinha, próximo a Skol - Bairro da Capelinha, em Guarulhos-SP, o 1º. Ten. PM RE n. 841.396-7 Luis Carlos Ferreira, qualifi cado as fl s. 04, de folga e empregando o revólver marca Taurus, calibre 38, número 335.931, pertencente à Polícia Militar do Estado de São Paulo, agindo em concurso e com identidade de propósitos com elemento não identifi cado, desferiu tiros no civil Luiz Carlos Sarroche, causando-lhe lesões corporais que por sua natureza e sede acarretaram-lhe a morte, conforme laudo de exame necroscópico de fl s. 11-3.

Segundo se apurou, no dia dos fatos, o denunciado utilizando-se de seu veículo Chevrolet, tipo Opala, cor azul, placas JI-4154-SP, juntamente com co-autor não identifi cado, transportou a vítima até o local que é ermo e, impossibilitando qualquer reação da vítima que se achava desarmada, disparou-lhe diversos tiros, provocando-lhe a morte.

Consta ainda que o veículo foi reconhecido pelas testemiunhas (fl s. 41) e o exame de confrontação balística concluiu que um dos projéteis foi disparado pelo revólver acima mencionado, conforme laudo de fl s. 14-8. (fl s. 02-03 do Apenso 1).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

564

Recebida a inicial (fl . 96 do Apenso 1), o paciente foi interrogado (fl . 129

do Apenso 1), sobrevindo a instrução processual (fl s. 136-139, 146 e 154-156

do Apenso 1).

Diante do não arrolamento de testemunhas pelos patronos inicialmente

contratados pelo paciente, seus novos advogados impetraram habeas corpus

perante o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo, com o objetivo de

ver processada justifi cação requerida perante a 4ª Auditoria Militar, por meio da

qual se pretendia ouvir pessoas indicadas pela defesa, tendo a Corte concedido

“a impetração para que o pedido de justifi cação seja desentranhado, autuado e

processado regularmente” (fl s. 375-378 do Apenso 2).

Por meio da sentença de fl s. 411-418 do Apenso 2, o paciente restou

absolvido das acusações formuladas, sob os fundamentos abaixo transcritos:

A temerária denúncia imputou ao acusado, em razão de meros indícios de autoria do delito, posto que, tanto na Corregedoria quanto no Inquérito Policial Militar de fl s. 163 e seguintes, como no Inquérito Policial de fl s. 263 e seguintes, não se obteve, sem sombra de dúvida a prova da autoria do delito. E, não bastasse isso, eventual dúvida, quanto à referida autoria foi esta espancada na Justifi cação Criminal, juntada aos autos em autos apartados.

Definitivamente, as testemunhas arroladas pela Defesa na Justificação Criminal, Tereza Cristina Almeida Ferreira, Sueli Guerreiro de Assis e Celso Luiz de Oliveira esclareceram que no dia e hora mencionados na inaugural, o automóvel Opala Placas JI 4154-SP não estava sendo dirigido pelo réu, que na ocasião dormia. Como se vê no depoimento de Tereza e de Sueli, referido automóvel estava com o cunhado do acusado que havia pedido emprestado à esposa do réu na inciência deste.

No mais, a arma do acusado, pertencente à Corporação estava ao alcance de Paulo que, por via de conseqüência a autoria do delito somente a este poderia ser atribuída e, consoante informações, também, eventual punibilidade de Paulo está possivelmente extinta pela morte do agente.

Isso posto e em face do mais do que consta dos autos consta o Conselho Especial de Justiça, por votação unânime, absolve o réu 1º Ten PM Luiz Carlos Ferreira ex vi da letra c do artigo 439 do Código de Processo Penal Militar.

Irresignado, o Ministério Público apelou, arguindo, preliminarmente,

a nulidade da justifi cação judicial apresentada pela defesa, ao argumento de

que não teria observado o procedimento previsto no artigo 866 do Código de

Processo Civil, e pugnando, no mérito, pela condenação do paciente (fl s. 422-

426 do Apenso 2).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 565

Em decisão majoritária, o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São

Paulo deu provimento ao apelo ministerial, anulando o processo em tela a partir

do julgamento.

Foi esta a motivação do julgado:

A preliminar teve decisão unânime. Como bem fundamentou o Exmo. Procurador de Justiça a fase para argüir a nulidade da Justifi cação foi ultrapassada sem qualquer manifestação do Ministério Público. Não é agora, após o julgamento que deve ser argüida, em fase de apelação. Entendendo da mesma forma os Exmos. Senhores Juízes, sem discrepância de votos, a rejeitaram.

Quanto ao mérito, não restou dúvida quanto a materialidade, aliás, reconhecida pela própria defesa. A autoria deve ser debatida. A r. sentença, entretanto, não demonstra a existência de debates e em seu segundo parágrafo já dá motivos ao que se decidiu neste Tribunal. Vejamos o que diz: “A temerária denúncia imputou ao acusado, em razão de meros indícios a autoria do delito, posto que, tanto na Corregedoria quanto no Inquérito Policial Militar de fl . 163 e seguintes, como no Inquérito Policial de fl . 263 e seguintes, não se obteve, sem sombra de dúvida a prova da autoria do delito (...)”. Ora, a “temerária” denúncia foi recebida pelo Meritíssimo Juiz Auditor. Até bem recebida, pois atendeu ao previsto no artigo 30 Código de Processo Penal Militar. Do que consta desse artigo, respeitante ao assunto, a denúncia deve ser apresentada sempre que houver “indícios de autoria”. E houve.

Pretende a decisão entretanto que contenha “sem sombra de dúvida a prova de autoria do delito”.

Ora, se assim fosse, desnecessária a instrução criminal.

Constata-se, entretanto, que ela se realizou e na oportunidade o acusado nem sequer apresentou testemunhas para a sua defesa (fl . 259). Preferiu, já terminada a instrução, requerer a juntada de Justifi cação Criminal pela qual se imputa a autoria do delito ao seu cunhado, que faleceu e, somente após esse fato. Note-se que este Tribunal, ao não acolher a Preliminar de Nulidade da Justifi cação Criminal só o fez pela sua apresentação inoportuna, sem entrar no mérito.

Do que consta da ata de sessão de julgamento (fl . 407-409), bem como da r. sentença (fl s. 411-418), ao descrever o julgamento, não se verifi ca exploração ampla das provas contidas nos autos. A decisão só analisa a Justifi cação Criminal, sem se importar com as demais provas colhidas na instrução criminal, elaborada pelo próprio juízo de 1º grau.

Por essa razão a maioria dos senhores Juízes decidiram anular o Processo a partir do julgamento, inclusive. O Exmo. Senhor Juiz Relator, Dr. Leitão da Silveira, negou provimento ao Apelo. O feito deve retornar à Auditoria de origem para que se proceda novo julgamento explorando todas as provas do Processo (fl s. 459-465 do Apenso 3).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

566

Antes da realização do novo julgamento determinado pelo Tribunal de

Justiça Militar, adveio a Lei n. 9.299/1996, por meio da qual os crimes dolosos

contra a vida praticados por militares contra civis passaram a ser apreciados

pela Justiça Comum, razão pela qual o Juiz Auditor Substituto da 4ª Auditoria

Militar declinou da sua competência, tendo os autos sido remetidos para a Vara

do Júri e Execuções Criminais da comarca de Guarulhos-SP.

Houve, então, o aditamento da peça vestibular para que nela constasse “a

correta capitulação do delito como sendo artigo 121, § 2º, inciso IV, c.c. artigo

29 caput, ambos do Código Penal” (fl . 517 do Apenso 3).

A exordial acusatória foi parcialmente acolhida, sendo o paciente

pronunciado pela prática do delito de homicídio simples (fls. 550-552 do

Apenso 3), pelo qual posteriormente veio a ser condenado à pena de 06 (seis)

anos de reclusão, em regime semiaberto, em razão do veredicto dado pelo

Tribunal do Júri (fl . 646 do Apenso 4).

Inconformados, Ministério Público e defesa apelaram, tendo o Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo negado provimento aos recursos, mantendo o

édito repressivo, tal como prolatado (fl . 730 do Apenso 4).

Transitada em julgado a condenação, o Parquet ingressou com representação

para fi ns de julgar o paciente indigno para o ofi cialato (fl s. 49-50), a qual foi

julgada procedente, consoante se depreende da certidão acostada à fl . 53.

Pois bem. De tudo quanto foi exposto, tem-se que assiste razão ao

impetrante.

Inicialmente, cumpre ressaltar que quando se trata de recursos no processo

penal, é certo que as insurgências podem ser dotadas de efeito suspensivo, a

depender da via recursal e da decisão que é alvo de impugnação. Todas, porém,

são munidas do efeito devolutivo, por meio do qual toda a matéria posta em

discussão perante o Poder Judiciário, ou apenas parte dela, é levada à apreciação

do órgão recursal competente, consagrando-se a garantia ao duplo grau de

jurisdição. Trata-se da aplicação do princípio resumido no brocardo tantum

devolutum quantum appellatum, que se refere à extensão do conhecimento da

irresignação.

Como é cediço, o efeito devolutivo da apelação encontra limites nas

razões expostas pelo recorrente, em respeito ao princípio da dialeticidade que

rege os recursos previstos no âmbito do processo penal pátrio, por meio do

qual se permite o exercício do contraditório pela parte detentora dos interesses

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 567

adversos, garantindo-se, assim, o respeito à clausula constitucional do devido

processo legal.

A respeito do tema, eis a lição de Ada Pellegrini Grinover, Antonio

Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes:

O princípio da dialeticidade - que impregna todo o iter procedimental - tem aspectos próprios no que diz com os recursos: o recorrente deverá declinar os motivos pelos quais pede o reexame da decisão, porque somente assim a parte contrária poderá apresentar suas contra-razões, formando-se o imprescindível contraditório em matéria recursal. (Recursos no processo penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 36).

Mais adiante, quando dissertam especifi camente sobre o efeito devolutivo

do recurso de apelação criminal, os aludidos doutrinadores disciplinam:

A apelação, como todo recurso, devolve ao Tribunal o conhecimento da matéria impugnada e da que pode ser conhecida de ofício. O âmbito dessa devolução depende, essencialmente, da extensão da impugnação formulada pelo recorrente, podendo a apelação, conforme salientado, ser plena ou parcial. Pode, também, confi gurar-se, pela soma de apelações parciais da acusação e da defesa, outra hipótese de devolução plena. Frise-se, contudo, que a restrição existente na apelação parcial é relativa à extensão do conhecimento e não à sua profundidade, podendo o Tribunal examinar, nos limites da impugnação, aspectos não suscitados pelas partes ou tópicos não apreciados pelo juiz inferior; pode, ainda, produzir prova ou admitir prova nova, desde que observado o contraditório (Op. cit., p. 121).

Portanto, tendo em vista que o recurso de apelação, nos termos do artigo

515 do Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente ao processo penal

(artigo 3º da Lei Processual Penal), devolve para o órgão ad quem apenas o

exame da matéria impugnada, que se restringe aos limites da irresignação

(excetuando-se, naturalmente, as matérias de ordem pública, examináveis de

ofício), o Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo não poderia anular

a sentença absolutória proferida em favor do paciente, diante de mácula não

arguida pelo órgão acusatório, como fez.

Com efeito, ao contrastar o recurso de apelação interposto pelo Ministério

Público e o acórdão proferido pela Corte impetrada, verifi ca-se que a anulação

do feito a partir do julgamento, inclusive, decorreu do reconhecimento, pelo

Tribunal Militar, de que não teria havido a “exploração ampla das provas

contidas nos autos” (fl . 461 do Apenso 3).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

568

Contudo, das razões do apelo ministerial, constata-se que o órgão

acusatório insurgiu-se, apenas e tão somente, contra o procedimento seguido

na justifi cação criminal apresentada pela defesa, pugnando, no mérito, pela

condenação do paciente. Não se verifica na aludida insurgência qualquer

alegação no sentido de que a sentença absolutória seria nula por ausência de

fundamentação, ou porque não teria examinado todas as provas colhidas no

curso da instrução.

Ao contrário, o Ministério Público examinou diretamente os elementos

de convicção colhidos no curso do processo, para requerer, ou a anulação da

justifi cação acostada aos autos - o que foi rejeitado em preliminar em razão da

preclusão do pedido -, ou a reforma da sentença, com a consequente condenação

do paciente pelo crime de homicídio narrado na denúncia.

Assim, da leitura da motivação do aresto objurgado, conclui-se que a Corte

Castrense extrapolou os limites de cognição do apelo interposto pelo órgão

acusatório, pois declarou, de ofício, nulidade que sequer havia sido objeto de

insurgência pelo Parquet nas suas razões recursais, ampliando o efeito devolutivo

do reclamo, e agravando, independentemente de provocação, a situação do

paciente, procedimento que vai de encontro ao princípio da proibição da

reformatio in pejus, e que constitui manifesta afronta ao Enunciado da Súmula n.

160 do Supremo Tribunal do Federal, verbis:

É nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício.

Nesse sentido, inclusive, foi o posicionamento de um dos integrantes do

Órgão Colegiado responsável pela prolação do acórdão objurgado à época do

seu julgamento, exarado nos seguintes termos:

(...) Ao contrário da Justiça Comum, esta Especializada não está jungida a soberania do Tribunal do Juri. Na Justiça Comum quando for o caso determina-se novo julgamento quando o Tribunal entender que a decisão do Juri foi contrária a prova dos autos. Isto não ocorre nesta Especializada que tem o poder de confi rmar ou reformar a sentença recorrida respeitando-se a livre convicção do juízo na apreciação do conjunto das provas. seria despautério exigir-se que o julgador tivesse a necessidade, como in casu, de fazer prova negativa, isto é, demonstrar inexistir prova sufi ciente para condenação nos autos. Há de respeitar-se a efi ciência e autoridade do julgado que representa, na sua plenitude, o exercício da atividade jurisdicional. De mais a mais, como conciliar a decisão vencedora com a Súmula n. 160 do Supremo Tribunal Federal? (fl s. 463-464 do Apenso 3).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 569

Com efeito, na hipótese dos autos, ao se deparar com a insurgência

ministerial pugnando pela nulidade do procedimento de justifi cação acostado

aos autos da ação penal, bem como, de forma subsidiária, pela condenação do

paciente, o Tribunal de origem não poderia ter anulado o feito em razão de

nulidade não arguida, mormente porque prejudicial ao acusado. Ou acolhia a

nulidade referente ao procedimento de justifi cação - sumariamente rejeitada

em preliminar do julgamento em razão do instituto da preclusão -, ou, caso

fosse constatada a impropriedade do édito proferido pela Auditoria Militar,

daria provimento à insurgência para, de forma fundamentada, condenar o

acusado nos termos da denúncia, em respeito ao princípio que veda a reformatio

in pejus.

A propósito, vale colacionar outro trecho da lição doutrinária de Ada

Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance

Fernandes:

De forma geral, não pode o Tribunal, em face do princípio da personalidade dos recursos, fi xado no art. 574 CPP, combinado com o art. 599, decidir além do que foi pedido pela parte e em seu prejuízo. Com isso impede-se, em recurso da defesa, que venha a sua situação a ser agravada (art. 617 CPP). Também não pode o Tribunal julgar além do que foi pedido em recurso da acusação, prejudicando o acusado (Op. cit., p. 122).

E ainda, insta destacar o posicionamento doutrinário de Marcellus Polastri

Lima:

Como já visto anteriormente, em fase de recurso, no que diz respeito à nulidade, não havendo arguição pelo MP, se contra a defesa, mesmo ante o princípio da devolução, o STF não permite o seu reconhecimento, como se vê da Súmula n. 160, que estabelece: É nula a decisão que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício.

Portanto, no caso de recurso defensivo, o Tribunal poderá, de ofício, reconhecer a nulidade, desde que a favor do réu, ou seja, contra a acusação, ou também poderá assim agir e, neste caso, mesmo contra o réu, se for hipótese de “recurso de ofício” (para aqueles que ainda o admitem). Mas, se não houver recurso da acusação pleiteando a nulidade, e o recurso de defesa não pleiteou, e se o reconhecimento da mesma, de algum modo, prejudicar a defesa, o Tribunal fi ca impedido de declarar a nulidade, mesmo se for absoluta (Manual de Processo Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 915).

Nesse sentido é a jurisprudência desta Corte de Superior Justiça:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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Processual Penal. Recurso especial. Difamação. Nulidade acolhida de ofício. Matéria não suscitada no recurso do querelante. Súmula n. 160 do Pretório Excelso. Nulidade. Ocorrência.

I - De acordo com a Súmula n. 160 do Pretório Excelso: “É nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício.”

II - “Não pode o órgão julgador de segunda instância reconhecer, de ofício, nulidade não invocada no recurso da acusação, mesmo sendo ela de caráter absoluto (aplicação da Súmula n. 160 do STF), devendo fi car limitado à matéria impugnada pelo recorrente.” (HC n. 73.180-SC, 5ª Turma, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG).

III - No presente caso restou evidente a infringência à Súmula editada pelo e. Supremo Tribunal Federal, porquanto declarada a incompetência absoluta do juízo que havia, em decisão anteriormente proferida, rejeitado a denúncia, sem que tal matéria tenha sido veiculada nas razões do recurso manejado pelo querelante.

Recurso especial provido.

(REsp n. 941.910-RS, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 18.12.2007, DJe 12.05.2008).

Habeas corpus - nulidade por incompetência absoluta do juízo reconhecida de ofício pelo Tribunal. Decisão já transitada em julgado. Aplicação da Súmula n. 160 do Supremo Tribunal Federal. Princípio ne bis in idem a que se atribui maior importância. Prejuízo concreto do paciente. Ordem concedida.

1 - Não pode o órgão julgador de segunda instância reconhecer, de ofício, nulidade não invocada no recurso da acusação, mesmo sendo ela de caráter absoluto (aplicação da Súmula n. 160 do STF), devendo fi car limitado à matéria impugnada pelo recorrente.

(...)

5 - Ordem concedida para cassar o acórdão em relação ao paciente, restabelecer o processo, determinar o trancamento de ação penal contra ele iniciada na Justiça Federal e prosseguir na execução da pena iniciada, examinando-se, inclusive, a possibilidade, ou não, de progressão de regime.

(HC n. 73.180-SC, Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), Quinta Turma, julgado em 23.08.2007, DJ 1º.10.2007, p. 313).

Na mesma esteira, cumpre colacionar o seguinte julgado do Supremo

Tribunal Federal:

Nulidade. Recurso da acusação. Causa de pedir. O Órgão julgador, ao apreciar recurso da acusação versando sobre nulidade, esta jungido as causas de pedir nele

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 571

contidas, sendo-lhe defeso considerar ato em relação ao qual se mostre silente. “E nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofi cio” - Verbete de n. 160 que integra a Súmula do Supremo Tribunal Federal. A referências a nulidade direciona a pesquisa não sobre o instituto em si, ou seja, a existência de pleito no sentido de ve-la declarada, mas as causas de pedir veiculadas.

(HC n. 72.677, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 06.06.1995, DJ 04.08.1995 p. 22.448 Ement Vol. - 01794-04 p. 00655).

É evidente, portanto, o constrangimento ilegal a que está sendo submetido

o paciente, uma vez que se encontra em vias de perder seu posto e patente junto

à Polícia Militar do Estado de São Paulo, diante de condenação que decorreu

da anulação ilegal da sentença que o absolveu, já que realizada pelo Tribunal de

origem extrapolando os limites de cognição do recurso do Parquet.

Ante o exposto, concede-se a ordem para anular o acórdão objurgado,

determinando-se que outro seja proferido nos limites da irresignação ministerial,

e como consequência, para anular o julgamento do paciente pelo Tribunal do

Júri, realizado em decorrência da decisão colegiada ora anulada, bem como do

acórdão proferido na Indignidade para o Ofi cialato n. 026/08.

É o voto.

HABEAS CORPUS N. 140.435-RS (2009/0124773-1)

Relatora: Ministra Laurita Vaz

Impetrante: Adriana Hervé Chaves Barcellos - defensora pública

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Paciente: Ronaldo Flortes dos Santos

EMENTA

Habeas corpus. Execução penal. Remição da pena. Estudo e trabalho concomitantes. Possibilidade. Necessidade de observância da jornada máxima de 08 (oito) horas diárias, prevista no art. 33 da Lei n.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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7.210/1984. Precedentes. Aferição da existência de período excedente. Inviabilidade. Ordem denegada.

1. O Superior Tribunal de Justiça, interpretando o disposto no art. 126 da Lei de Execução Penal, pacifi cou o entendimento de que a frequência a curso de ensino formal é causa de remição da pena. Súmula n. 341 desta Corte.

2. A remição deve guardar correspondência com a jornada de trabalho prevista no art. 33 da Lei n. 7.210/1984, que é de, no mínimo, 06 (seis) e, no máximo, 08 (oito) horas por dia remido.

3. Assim, não se revela possível reconhecer duas vezes a remição da pena, em decorrência de trabalho e estudo realizados no mesmo período, se não for ultrapassado o limite diário de 08 horas. Precedentes.

4. Na hipótese, não há como se aferir a existência de frações de tempo a serem consideradas para fi ns de remição da pena, sobretudo em relação ao período em que o apenado trabalhou e estudou concomitantemente, o que torna inviável a concessão da ordem nos termos pleiteados.

5. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, denegar a ordem. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi, Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ) e Gilson Dipp votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 05 de maio de 2011 (data do julgamento).

Ministra Laurita Vaz, Relatora

DJe 17.05.2011

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Laurita Vaz: Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar,

impetrado em favor de Ronaldo Flortes dos Santos, contra acórdão do Tribunal de

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Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que negou provimento ao agravo em

execução interposto pelo Paciente.

Nas razões do presente writ, a Impetrante alega, em suma, que

não existe vedação legal à remição pelo estudo e pelo trabalho realizados

concomitantemente. Aduz, para tanto, que “[...] o preso trabalhava e estudava

nestas condições porque devidamente autorizado a tanto. Não pode agora a

autoridade judiciária alterar o ‘pacto’, frustando a expectativa que o apenado

depositou na recompensa de seu esforço” (fl . 06).

Requer, em liminar e no mérito, a cassação do acórdão impugnado e a

concessão do benefício da remição pelos dias de estudo.

À fl . 61, o eminente Ministro Paulo Gallotti, no exercício eventual da

Presidência, solicitou informações à Autoridade Impetrada, que foram prestadas

à fl . 66, com a juntada de peças processuais pertinentes à instrução do feito.

O pedido liminar foi indeferido nos termos da decisão de fl s. 80-81.

O Ministério Público Federal manifestou-se às fl s. 84-88, opinando pela

denegação da ordem.

É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora): De início, impede salientar que a

remição da pena, regulada nos arts. 126 a 130, da Lei n. 7.210/1984, é medida

de reinserção social que, fundada no primado do trabalho, tem por objetivo o

abreviamento do tempo do cárcere por meio do próprio mérito do apenado.

Nesse contexto, entendendo o relevante papel desse instituto para a

adequada ressocialização do condenado, este Superior Tribunal de Justiça,

mediante uma interpretação (analogia) in bonam partem do art. 126 da Lei da

Execuções, passou a considerar o ensino formal como causa de remição da pena.

Confi ra-se:

Execução penal. Habeas corpus. Remição. Art. 126 da Lei n. 7.210/1984. Dias remidos em razão da freqüência em curso regular. Possibilidade.

I - A norma do art. 126 da LEP, ao possibilitar a abreviação da pena, tem por objetivo a ressocialização do condenado, sendo possível o uso da analogia in bonam partem, que admita o benefício em comento, em razão de atividades que não estejam expressas no texto legal.

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II - Dessa forma, a remição da pena pode se dar também em decorrência da realização de atividade estudantil. A matéria, inclusive, está cristalizada no Enunciado da Súmula n. 341 desta Corte: “A freqüência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto”.

Ordem concedida (HC n. 103.265-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Ficher, DJe de 06.10.2008).

Habeas corpus. Execução penal. Remição. Atividade estudantil. Possibilidade. Reintegração do condenado à sociedade. Súmula n. 341 do Superior Tribunal de Justiça.

1. “A freqüência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto”. Aplicação do Enunciado da Súmula n. 341 desta Corte Superior.

2. Ordem concedida para, cassando o acórdão impugnado, restabelecer a decisão proferida pelo Juízo das Execuções, concessiva do benefício da remição da pena em relação aos dias de estudo efetivamente cursados (HC n. 89.888-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 07.04.2008).

Referido entendimento, a propósito, restou consolidado no Enunciado n.

341 da Súmula desta Corte Superior de Justiça, in verbis:

A freqüência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto.

Portanto, atualmente, pode o apenado remir parte de sua condenação seja

pelo trabalho, seja pela frequência à atividade de ensino formal, conforme a

jurisprudência pacifi cada nesta Corte.

Na hipótese dos autos, contudo, busca o Paciente o reconhecimento do

direito à remição pelo estudo e pelo trabalho realizados concomitantemente.

Confi ram-se, por oportuno, as judiciosas informações prestadas pelo Juízo

das Execuções Criminais, in verbis:

1. O apenado se encontra cumprindo pena desde 04 e abril de 2007;

2. O apenado foi benefi ciado com remição da pena, por trabalho, referente ao período de 28.06.2007 a 14.03.2008 e de maio de 2008 a 11 de dezembro de 2008;

3. Em 02 de dezembro, o apenado postulou a concessão de remição, por estudo, referente ao período de março a agosto de 2008;

4. Em 30 de janeiro de 2009, a então Juíza da VEC indeferiu o pedido, pois o apenado não poderia ser benefi ciado duas vezes com remição de pena, referente

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ao mesmo período, determinando a elaboração de novo atestado de efetivo estudo, excluindo o período em que já foi benefi ciado com remição;

5. Em 10 de março de 2009 foi enviado novo atestado de efetivo estudo, sendo concedido sessenta e quatro dias de remição (fl . 67).

Inconformada com o indeferimento do pleito pelo Juízo singular, a Defesa

interpôs agravo em execução, que restou desprovido pela Corte de origem,

mediante a seguinte fundamentação, ad litteram:

[...]

Sem razão o agravante.

Ainda que possível a remição pelo estudo, em interpretação analógica do disposto no art. 126 da LEP, incabível sua cumulação com os dias trabalhados por consistir concessão dobrada de benefício sem qualquer sustentação legal.

Uma vez limitada pelo art. 33 da LEP a carga horária máxima de trabalho em 08h, e aqui não há que se fazer distinção entre trabalho físico e intelectual, é lógico que o sentido foi vedar o exercício desordenado de atividades como se fosse uma conta corrente (fl . 77).

Segundo o § 1º do art. 126 da Lei de Execução Penal, a contagem para fi ns

de remição da pena será efetuada à razão de 01 (um) dia de pena por 03 (três)

dias de trabalho. A remição deve, ainda, guardar correspondência com a jornada

de trabalho prevista no art. 33 da Lei n. 7.210/1984, que é de, no mínimo, 06

(seis) e, no máximo, 08 (oito) horas por dia remido.

Assim, não se revela possível reconhecer duas vezes a remição da pena,

em decorrência de trabalho e estudo realizados no mesmo período, se não

for ultrapassada a jornada máxima de trabalho prevista no art. 33 da Lei de

Execuções Penais.

A propósito, ao apreciar caso similar ao ora versado, a eminente Ministra

Maria Th ereza de Assis Moura denegou a ordem sob os seguintes fundamentos,

in litteris:

[...]

A hipótese, contudo, é peculiar e demanda a análise de questão jurídica diversa, qual seja, a possibilidade de o condenado obter a remição pelo trabalho e pelo estudo, concomitantemente.

A teor do art. 33, caput, da Lei de Execução Penal, “a jornada normal de trabalho não será inferior a 06 (seis) nem superior a 08 (oito) horas”.

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Dispõe o art. 126 do mesmo diploma legal:

Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena.

§ 1º A contagem do tempo para o fi m deste artigo será feita à razão de 01 (um) dia de pena por 03 (três) de trabalho.

Assim, a remição se dá por dias trabalhados, não por horas, prevendo a lei o desconto de um dia a cada três de trabalho, exigindo-se, para cada dia, o labor de no mínimo 06 (seis) e no máximo 08 (oito) horas. Raciocínio semelhante deve ser adotado para a hipótese de remição da pena pelo estudo.

No caso concreto, após a retifi cação dos cálculos feita pelo órgão competente, o magistrado concluiu que o paciente, no mesmo período, trabalhou 06 (seis) horas e estudou 02 (duas) horas diárias, o que se mostra dentro do limite previsto no art. 33 da Lei de Execução Penal.

Contudo, o Juiz declarou, em relação ao mesmo período, a remição pelo trabalho, pois foi atingido o limite mínimo de 06 (seis) horas, e pelo estudo, somando as horas de vários dias (duas horas por dia). Equiparou três dias de estudo (seis horas) a um dia de trabalho.

Todavia, penso que não se revela possível reconhecer duas vezes a remição da pena em decorrência de trabalho e estudo realizados no mesmo período. Seria o mesmo que afi rmar que trabalhar 06 (seis) horas e estudar 02 (duas) horas no mesmo dia tem mais valor do que trabalhar 08 (oito) horas diárias, o que não se pode admitir.

Não mais se discute, no âmbito desta Corte, o valor do estudo para fi ns de remição da pena, todavia, devem ser observados os limites impostos pela lei.

Assim, na eventual hipótese de 04 (quatro) horas de trabalho e 02 (duas) de estudo no mesmo dia, é possível que se somem ambos os períodos para completar a jornada mínima de 06 (seis) horas diárias, considerando-se um dia para fi ns de remição.

Contudo, a forma como procedeu o magistrado a quo, a meu ver, extrapola a previsão legal e benefi cia o paciente em detrimento daqueles que trabalham 08 (oito) horas diárias, violando o princípio da isonomia. Irretocável, assim, o acórdão que cassou o provimento de primeiro grau.

Referido julgado restou assim ementado, in verbis:

Habeas corpus. Execução penal. Remição da pena pelo estudo. Súmula n. 341-STJ. Trabalho e estudo concomitantes. Possibilidade. Necessidade de observância do limite máximo de 08 (oito) horas diárias. Princípio da isonomia. Ordem denegada.

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1. O Superior Tribunal de Justiça, interpretando o disposto no art. 126 da Lei de Execução Penal, pacifi cou o entendimento de que a realização de atividade estudantil é causa de remição da pena.

2. “A freqüência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto” (Súmula n. 341-STJ).

3. Não se revela possível reconhecer duas vezes a remição da pena em decorrência de trabalho e estudo realizados no mesmo período.

4. Embora seja possível ao condenado trabalhar e estudar no mesmo dia, as horas dedicadas a tais atividades somente podem ser somadas, para fi ns de remição, até o limite máximo de 08 (oito) horas diárias, sob pena de violação do princípio da isonomia.

5. Habeas corpus denegado (HC n. 89.201-SP, 6ª Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 1º.02.2010).

No mesmo sentido:

Habeas corpus. Execução penal. Remição da pena. Estudo e trabalho concomitantes. Benefício em dobro. Impossibilidade. Interpretação sistemática da regra. Art. 33, da Lei n. 7.210/1984. Necessidade de observância do limite máximo de 08 (oito) horas diárias. Ordem denegada.

1. O Superior Tribunal de Justiça, interpretando o disposto no art. 126 da Lei de Execução Penal, pacifi cou o entendimento de que a realização de atividade estudantil é causa de remição da pena. Súmula n. 341 desta Corte.

2. Não se revela possível reconhecer duas vezes a remição da pena em decorrência de trabalho e estudo realizados no mesmo período, porque a remição deve guardar correspondência com a jornada de trabalho prevista no art. 33, da Lei de Execuções Penais.

3. Assim, nada impede que condenado estude e trabalhe no mesmo dia, contudo, as horas dedicadas a tais atividades somente podem ser somadas, para fi ns de remição da reprimenda, até o limite máximo de 08 (oito) horas diárias.

4. Ordem denegada (HC n. 124.922-RS, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 28.06.2010).

Na hipótese, não há como se aferir a existência de frações de tempo a serem

consideradas para fi ns de remição da pena, sobretudo em relação ao período em

que o apenado trabalhou e estudou concomitantemente, o que torna inviável a

concessão da ordem nos termos pleiteados.

Ante o exposto, denego o presente habeas corpus.

É como voto.

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HABEAS CORPUS N. 175.857-PA (2010/0106258-0)

Relatora: Ministra Laurita Vaz

Impetrante: Venino Tourão Pantoja Júnior

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Pará

Paciente: Robson da Conceição Sousa (preso)

EMENTA

Habeas corpus. Latrocínio. Processual Penal. Prisão processual. Excesso de prazo para o julgamento da apelação. Recurso há aproximadamente seis meses sem tramitação, a despeito de anterior advertência sobre a possibilidade de confi guração de excesso de prazo no caso. Demora injustifi cada. Constrangimento ilegal evidenciado. Writ parcialmente concedido.

1. Paciente, na hipótese, segregado processualmente desde o dia 06.06.2008, e posteriormente sentenciado e condenado à pena de 24 anos de reclusão, pela prática do crime de latrocínio.

2. Impetração em que a única alegação é a de excesso de prazo, não tendo sido impugnados os fundamentos do ato que mantém a prisão do Paciente. Também não foram impugnados, na inicial, os motivos e fundamentos da condenação, nem trazida cópia das razões da apelação. Não foi feita, ainda, qualquer menção a eventual ausência de autoria, erro na capitulação do delito ou na dosimetria da pena.

3. Portanto, considerados os documentos trazidos aos autos, apenas há como se cotejar o alegado excesso de prazo no julgamento da apelação – protocolizada em 22.03.2010 – com relação ao fato de que o Paciente foi condenado pelo delito de latrocínio, à pena de 24 anos de reclusão.

4. E, assim analisados os dados, não há como se inferir que a demora no julgamento da apelação, no caso, deve ensejar a soltura do Paciente, mormente porque sequer ultrapassado prazo objetivo para eventual progressão de regime.

5. É certo, todavia, que a análise da apelação não tem prazo fi xado na lei processual. Porém, em se tratando de condenado preso,

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a demora desmotivada para o julgamento do recurso consubstancia constrangimento ilegal, sanável pela via do habeas corpus.

6. Mais. Depois de prestadas as informações pelo Tribunal a

quo, datadas de 18.10.2010 – ou seja, há quase 06 (seis) meses –, não sobreveio nenhum novo andamento no feito. Muito embora tenha havido a advertência sobre a provável confi guração de constrangimento ilegal no caso, não se revelou terem sido envidados quaisquer esforços para que a apelação pudesse ser julgada com a urgência que o caso requer.

7. É de se reconhecer, portanto, que a demora injustificada confi gura, sem estreme de dúvidas, afronta ao Princípio da Duração Razoável do Processo, previsto no art. 5º, inciso LXXVII, da Constituição da República: acrescido pela Emenda Constitucional n. 45/2004 (“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”).

8. Ordem parcialmente concedida, para determinar ao Tribunal Impetrado que proceda ao imediato julgamento da apelação criminal interposta pelo ora Paciente.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conceder parcialmente a ordem, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi, Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ) e Gilson Dipp votaram com a Sra. Ministra Relatora.

Brasília (DF), 05 de maio de 2011 (data do julgamento).

Ministra Laurita Vaz, Relatora

DJe 18.05.2011

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Laurita Vaz: O eminente Ministro Hamilton Carvalhido,

em ocasião na qual exercia a presidência desta Corte, ao analisar o pedido

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580

liminar formulado na presente sede processual – impetrada no dia 08.07.2010 –,

assim resumiu a controvérsia e decidiu referida pretensão (fl s. 46-47):

Habeas corpus impetrado em favor de Robson da Conceição Sousa, condenado à pena de 24 anos de reclusão, em regime fechado, e ao pagamento de 80 dias-multa, pela prática dos crimes tipificados nos artigos 157, parágrafo 3º, 288, parágrafo único, na forma do artigo 69 do Código Penal.

O excesso de prazo para o julgamento do recurso de apelação funda a impetração.

Alega o impetrante que, “(...) em 22.03.2010, os autos foram protocolados no Tribunal coator, para julgamento do recurso interposto através do Ofício número 015/10-GJ, conforme certidão explicativa de lavra do cartório da Vara Criminal da Comarca de Mocajuba-PA, sendo que até a presente data não consta o registro do recurso de apelação no Tribunal ad quem, o que, data máxima vênia, entende o impetrante que o ora paciente está sofrendo patente constrangimento ilegal em função do excesso de prazo aqui delineado, mormente pelo fato de ser réu preso (...)” (fl . 02).

Requer, liminarmente e no mérito, a expedição de alvará de soltura.

Tudo visto e examinado, decido.

Desprovida de previsão legal específica (artigos 647 a 667 do Código de Processo Penal), a liminar em sede de habeas corpus, admitida pela doutrina e jurisprudência pátrias, reclama, por certo, a demonstração inequívoca dos requisitos cumulativos das medidas cautelares, quais sejam, o periculum in mora e o fumus boni iuris.

In casu, consta do andamento processual da Apelação Criminal n. 201030109595 que em 30 de junho de 2010 determinou-se a abertura de prazo para o oferecimento de razões recursais, uma vez que, nessa fase processual, o apelante constituiu advogado para atuar no feito, em substituição ao membro da Defensoria Pública que o patrocinava.

Em respeito ao devido processo legal, foi conferida igual oportunidade ao apelado para, querendo, ratifi car as contrarrazões já ofertadas.

Somente após o atendimento de tais providências, dar-se-á o normal prosseguimento ao feito, circunstâncias que excluem, portanto, o quantum de evidência da plausibilidade jurídica do pedido necessária ao acolhimento do pleito cautelar initio litis.

Gize-se, ademais, que o notório volume invencível de pleitos que assoberba os Tribunais, de modo a permitir que se reconheça a força maior na determinação da demora dos julgamentos, exclui a afirmação ex ante de caracterização de constrangimento ilegal.

Liminar indeferida.

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RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 581

Solicitem-se informações ao egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Pará, a serem prestadas com a maior brevidade possível.

Com a resposta, ao Ministério Público Federal.

Publique-se.

Nas informações de fls. 52-72, nada se esclareceu sobre as razões da

demora no julgamento.

No dia 04.10.2010, solicitei informações pormenorizadas acerca do

tramitação da apelação, especialmente as razões da demora na sua análise e a

previsão para a realização da sessão (fl . 80).

À fl . 101, esclareceu-se que “[c]onforme certidão da Secretaria da 2ª

Câmara Criminal Isolada, ocorreu um equívoco e os autos permaneceram

paralisados até o dia 13.10.2010”, bem assim que os autos foram feitos conclusos

ao Ministério Público em 18.10.2010.

Parecer do Ministério Público Federal às fl s. 76-78, pelo não conhecimento

ou, alternativamente, pela denegação.

É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora): A ordem deve ser parcialmente

concedida.

Inicialmente, quanto ao pedido para que seja expedido alvará de soltura,

este não pode ser concedido.

Muito embora o Paciente esteja preso desde o dia 06.06.2008, é de se

considerar que já foi proferida sentença no caso, tendo havido condenação “à

pena de 24 anos de reclusão, em regime fechado, e ao pagamento de 80 dias-

multa, pela prática dos crimes tipifi cados nos artigos 157, parágrafo 3º, 288,

parágrafo único, na forma do artigo 69 do Código Penal” (fl . 46).

Acrescente-se que a única alegação na impetração é a de excesso de prazo,

não tendo sido impugnados os fundamentos do ato que mantém a prisão do

Paciente. Também não foram trazidos aos autos os motivos da impugnação à

condenação, nem as razões da apelação. Não foi feita, ainda, qualquer menção a

eventual ausência de autoria, erro na capitulação do delito ou na dosimetria da

pena.

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582

Portanto, considerados os documentos trazidos aos autos, apenas há como se cotejar o alegado excesso de prazo no julgamento da apelação – protocolizada em 22.03.2010 – com relação ao fato de que o Paciente foi condenado pelo delito de latrocínio, à pena de 24 anos de reclusão.

E, assim verifi cados apenas os dados constantes dos autos, não há como se inferir que a demora no julgamento da apelação, no caso, deve ensejar sua soltura, mormente porque sequer ultrapassado prazo objetivo para eventual progressão de regime.

Nesse sentido, deesta Turma, o seguinte precedente, em que também se alegava excesso de prazo na apelação de Paciente condenado pelo delito de Latrocínio:

Habeas corpus. Latrocínio. Condenação. Apelação criminal. Excesso de prazo no julgamento. Demora injustifi cada. Constrangimento evidenciado.

1. Não se mostra razoável que o apelo criminal, interposto pelo paciente no mês de novembro de 2006, quede inerte por mais de 02 (dois) anos após seu retorno do Parquet com o respectivo parecer, sem que neste intervalo tenha havido qualquer movimentação no sentido de sua inclusão na pauta de julgamentos.

2. Ausentes dos autos os fundamentos pelos quais foi vedado ao paciente apelar em liberdade, não se mostra plausível sua soltura.

3. Ordem parcialmente concedida, determinando-se ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo o julgamento da Apelação Criminal n. 993.06.017652-8 (HC n. 104.681-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ de 23.03.2009).

Há um outro fundamento da impetração, entretanto, que deve prosperar.

Segundo relatório de andamentos da apelação – obtido do site que o Tribunal de Justiça do Estado do Pará mantém na internet, que ora faço juntar – verifi ca-se que desde quando o Relator do recurso de apelação informou a esta Corte que os autos foram encaminhados ao custus legis, não há nenhuma outra

tramitação no processo.

Frise-se e repita-se: desde que foram prestadas as informações, datadas de 18.10.2010 – ou seja, há quase 06 (seis) meses –, não há nenhum novo andamento no feito.

Assim, muito embora tenha havido a advertência sobre a provável configuração de constrangimento ilegal no caso, revela-se que não foram envidados quaisquer esforços para que a apelação pudesse ser julgada com a

urgência que o caso requer.

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Portanto, a demora injustifi cada no caso confi gura, sem estreme de dúvidas,

afronta ao Princípio da Duração Razoável do Processo, previsto no art. 5º, inciso

LXXVII, da Constituição da República: acrescido pela Emenda Constitucional

n. 45/2004 (“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a

razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua

tramitação”).

No pretérito, o Superior Tribunal de Justiça, nas palavras do saudoso

Ministro Jesus Costa Lima, assim já se manifestou:

É lamentável que a liberdade - bem tão precioso - deixe de sensibilizar o julgador, agilizando o julgamento da causa. Imagine-se, por exemplo, se o recurso vier a ser provido e os pacientes absolvidos (HC n. 3.819-RN, 5ª Turma, DJ de 23.10.1995).

A morosidade é excessiva e incompreensível, razão pela qual devem ser

realizados todos esforços para que o julgamento do recurso interposto pelo ora

Paciente ocorra imediatamente.

Nesse sentido, mutatis mutandis:

Processual Penal. Habeas corpus. Condenação. Art. 157, § 2º, inciso I, c.c. art. 14, inciso II, ambos do Código Penal. Demora no julgamento da apelação criminal. Constrangimento ilegal caracterizado.

I - O excesso de prazo no julgamento de apelação criminal, quando injustifi cado, consubstancia-se em constrangimento ilegal sanável via habeas corpus (princípio constitucional da duração razoável do processo - art. 5º, inc. LXXVIII, da CF).

II - Na espécie, o impetrante interpôs apelação criminal em 23.06.2006, aguardando, até a presente data, julgamento. Flagrante, portanto, o constrangimento ilegal.

Ordem parcialmente concedida para que o e. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgue a Apelação Criminal n. 979.766.3/0 (HC n. 96.981-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 1º.09.2008).

Habeas corpus. Crimes de falsificação de documento público e particular, falsidade ideológica e uso de documento falso. Pleito de revogação da prisão preventiva. Superveniência de sentença condenatória. Réu foragido após a prática do delito. Necessidade da custódia demonstrada. Garantia da aplicação da lei penal e conveniência da instrução criminal. Garantia da ordem pública. Quadrilha organizada para a prática criminosa, sob o comando do paciente. Probabilidade de reiteração na conduta delituosa. Excesso de prazo para o julgamento do recurso de apelação da defesa. Constrangimento ilegal confi gurado.

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1. O decreto de prisão preventiva do Paciente, mantido pela sentença condenatória, está fundamentado na garantia da aplicação da lei penal e na conveniência da instrução criminal, em virtude da fuga do réu, ainda na fase inquisitorial, que foi preso em outro Estado da Federação.

2. Demonstrada a necessidade da custódia cautelar do Paciente, ainda, para garantir a ordem pública, evitar a reiteração e a continuidade da atividade ilícita da organização criminosa, que se encontrava estruturada, sob o comando do Paciente, para a prática reiterada de diversos crimes.

3. Evidenciada a demora injustifi cada no julgamento do apelo defensivo, por fato que não pode ser atribuído à Defesa, é de se reconhecer o constrangimento ilegal por excesso de prazo.

Precedentes esta Corte.

4. Ordem concedida tão-somente para determinar que o e. Tribunal de Regional Federal da 5ª Região julgue a apelação relativa aos autos do Processo Criminal n. 2006.83.00.012131-0, no prazo de 30 (trinta) dias (HC n. 88.120-PE, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 28.09.2009).

Ante o exposto, concedo parcialmente a ordem, tão somente para determinar

ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará que julgue a apelação interposta pelo

Pacient, de imediato.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 185.450-PR (2010/0171870-4)

Relator: Ministro Gilson Dipp

Impetrante: Patrick de Oliveira Barriel

Advogado: Patrick de Oliveira Berriel

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Paraná

Paciente: Vera Petrovitch (preso)

EMENTA

Processo Penal. Habeas corpus. Homicídio qualifi cado. Excesso

de prazo na designação do júri. Excepcionalidade do mandamus.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 585

Desaforamento. Comoção social. Parcialidade dos jurados. Gravidade

concreta do delito. Segregação cautelar. Fundamentação concreta.

Razoabilidade. Constrangimento ilegal não evidenciado. Ordem

denegada.

I. A concessão de habeas corpus em razão da confi guração de

excesso de prazo é medida de todo excepcional, somente admitida em

casos restritos.

II. Na hipótese, a admissibilidade da acusação foi estabilizada há

pouco mais de 01 ano, quando os autos foram baixados à comarca de

origem para serem submetidos ao Plenário do Júri, após o julgamento

do recurso em sentido estrito, devendo ser considerado este marco como

novo prazo para se aferir possível violação ao princípio constitucional

da vedação à irrazoável duração do processo. Inteligência da Súmula

n. 21-STJ.

III. Não se vislumbra constrangimento ilegal quando o juízo

singular não submete de imediato o feito a julgamento perante o

Tribunal popular, promovendo o desaforamento do caso para outra

comarca, buscando resguardar a imparcialidade dos jurados e, em

última análise, assegurar efetiva garantia aos princípios constitucionais

da presunção de inocência e da paridade de armas, quando denota

grande comoção social pela repercussão que a conduta delituosa

apontada causou.

IV. Fere a boa técnica processual manter a cautelaridade da

custódia e depois conceder a liberdade provisória quando a instrução

já está encerrada, a admissibilidade da acusação foi provida em grau

de recurso e os autos aguardam tão somente a defi nição do foro

processante, uma vez provido o desaforamento do caso pelo Tribunal

Estadual.

V. Demonstrada a periculosidade concreta da paciente, pela

narrativa da conduta a ela atribuída na exordial acusatória, com modus

operandi a infl igir à vítima um sofrimento extremamente acentuado e

inaceitável, bem ainda fuga do distrito da culpa, tendo sido localizada

já em outro Estado da Federação, não se justifi ca revogação da cautela

fundamentadamente decretada.

VI. Ordem denegada, nos termos do voto do Relator.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

586

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça.

“A Turma, por unanimidade, denegou a ordem”. Os Srs. Ministros Laurita

Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi e Adilson Vieira Macabu

(Desembargador convocado do TJ-RJ) votaram com o Sr. Ministro Relator.

Sustentaram oralmente: Dr. Patrick de Oliveira Berriel (p/ pacte) e

Ministério Público Federal.

Brasília (DF), 03 de maio de 2011 (data do julgamento).

Ministro Gilson Dipp, Relator

DJe 19.05.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Gilson Dipp: Trata-se de habeas corpus substitutivo de

recurso ordinário, com pedido liminar, impetrado em favor de Vera Petrovitch,

contra acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que

denegou a ordem no Habeas Corpus n. 687.368-1.

Consta dos autos que a paciente, juntamente com mais dois outros corréus,

foi denunciada em 09.05.2007, perante o Juízo da Vara Criminal da Comarca

de Curitiba – Foro Regional de Campina Grande do Sul-PR, como incursa nas

sanções do art. 121, § 2º, incisos III (asfi xia) e IV (surpresa), c.c. art. 29, ambos

do Código Penal, por fatos ocorridos no mês de abril de 2006.

Concluído o sumário de culpa em 19.11.2007, convencida da existência

do crime e de indícios sufi cientes de autoria, a magistrada de primeiro grau

julgou procedente a exordial acusatória e pronunciou os réus, submetendo-os a

julgamento perante o Tribunal do Júri em data a ser posteriormente designada.

Naquela oportunidade, atenta ao dispositivo legal insculpido no então

vigente § 1º do art. 408 do CPP, a juíza singular manteve a custódia preventiva

anteriormente decretada com fundamento na garantia da ordem pública e para

resguardar a aplicação da lei penal.

Não se conformando com a pronúncia, bem ainda com a manutenção da

cautela restritiva da liberdade, os acusados interpuseram recurso em sentido

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 587

estrito no Tribunal a quo, alegando, em síntese, no que interessa, falta de

requerimento ministerial quanto à custódia preventiva e inocorrência dos

requisitos autorizadores previstos no art. 312 do CPP.

O inconformismo foi julgado no dia 18.06.2009, ocasião em que foi

negado provimento à tese defensiva.

Opostos embargos, sustentava-se omissão quanto ao excesso de prazo

transcorrido, uma vez que a instrução criminal ainda não tinha sido concluída, e

requeria a concessão de efeitos infringentes para cassar o decreto prisional.

Os aclaratórios foram rejeitados em sessão de julgamento ocorrida no dia

23.07.2009.

A Defesa ainda impetrou writ na Corte Estadual, que denegou a ordem

em 19.08.2010. O decisum restou assim ementado:

Habeas corpus homicídio qualificado. Prisão preventiva excesso de prazo para o julgamento pelo Tribunal do Júri. Ação penal com complexidade acima da média. Representação pelo desaforamento. Aplicação do princípio da razoabilidade. Constrangimento ilegal inexistente. Ordem denegada (fl . 203, sem destaque no original).

Neste mandamus, alega-se constrangimento ilegal ao argumento de excesso de prazo na manutenção da custódia cautelar da acusada, a qual estaria recolhida à disposição da Justiça desde 25.05.2007.

Afi rma que no dia 14.10.2009 os autos foram baixados ao juízo criminal processante. Contudo, a defesa da paciente ainda não teria sido intimada para indicar as testemunhas que seriam ouvidas perante o Conselho de Sentença, pois o cartório cientifi cou patrono diverso, que nunca representou os interesses da acusada em Juízo.

Aduz que a vara de origem informou equivocadamente ao Tribunal de origem que a acusada requereu o desaforamento da sessão de julgamento, quando tal pedido teria sido protocolado pelo corréu e também de ofício pelo Juízo a quo, jamais pela paciente.

Assim, decorridos mais de 03 anos da custódia preventiva, a Defesa assevera que não foi intimada para os fi ns do art. 422 do CPP e ainda não ocorreu o julgamento no Tribunal do Júri “por práticas atribuíveis unicamente ao Estado, que é o detentor da custódia da Paciente e que tem o poder/dever de oferecer a prestação jurisdicional ao réu preso em um prazo minimamente

razoável” (fl . 05).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

588

Dito de outra forma, assevera que “o Juízo coator recebeu os autos há exato

01 (um) ano, não intimou a defesa para que se pronunciasse na forma prevista

no Código de Processo Penal e ainda assim, pleiteou o desaforamento do caso,

aumentando ainda mais esta abusiva e excessivamente longa prisão preventiva”

(fl . 06).

Com estas considerações, requer, liminarmente e no mérito, a concessão da

ordem para o fi m de expedir alvará de soltura e deferir à acusada a faculdade de

aguardar em liberdade a tramitação do processo.

A medida de urgência foi indeferida à fl . 06.

As informações foram prestadas à fl . 12, acompanhadas dos documentos

de fl s. 13-22.

A Subprocuradoria Geral da República manifestou-se às fl s. 26-29 pela

denegação da ordem.

É o relatório.

Em mesa para julgamento.

VOTO

O Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator): Trata-se de habeas corpus substitutivo

de recurso ordinário, com pedido liminar, impetrado em favor de Vera Petrovitch,

contra acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que

denegou a ordem no Habeas Corpus n. 687.368-1.

No Juízo da Vara Criminal da Comarca de Curitiba – Foro Regional

de Campina Grande do Sul-PR, a paciente foi denunciada como incursa nas

sanções do art. 121, § 2º, incisos III (asfi xia) e IV (surpresa), c.c. art. 29, ambos

do Código Penal, por fatos ocorridos no mês de abril de 2006.

Concluído o sumário de culpa, a magistrada de primeiro grau julgou

procedente a exordial acusatória e pronunciou a ré, submetendo-a a julgamento

perante o Tribunal do Júri em data a ser posteriormente designada.

Naquela oportunidade, atenta ao dispositivo legal insculpido no então

vigente § 1º do art. 408 do CPP, a juíza singular manteve a custódia preventiva

anteriormente decretada com fundamento na garantia da ordem pública e para

resguardar a aplicação da lei penal.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 589

Não se conformando com aquela decisão, bem ainda com a manutenção da

cautela restritiva da liberdade, foi interposto recurso em sentido estrito, julgado

no Tribunal a quo no dia 18.06.2009, ocasião em que foi negado provimento à

irresignação.

Opostos embargos declaratórios, foram eles rejeitados.

A Defesa ainda impetrou writ na Corte Estadual, que denegou a ordem

em julgamento assim ementado:

Habeas corpus homicídio qualificado. Prisão preventiva excesso de prazo para o julgamento pelo Tribunal do Júri. Ação penal com complexidade acima da média. Representação pelo desaforamento. Aplicação do princípio da razoabilidade. Constrangimento ilegal inexistente. Ordem denegada (fl . 203, sem destaque no original).

Neste mandamus, alega-se constrangimento ilegal ao argumento de excesso

de prazo na manutenção da custódia cautelar da acusada, a qual estaria recolhida

à disposição da Justiça desde 25.05.2007.

Afi rma que no dia 14.10.2009 os autos foram baixados ao juízo criminal

processante. Contudo, a defesa da paciente ainda não teria sido intimada para

indicar as testemunhas que seriam ouvidas perante o Conselho de Sentença,

pois o cartório cientifi cou patrono diverso, que nunca representou os interesses

da acusada em Juízo.

Aduz que a vara de origem informou equivocadamente ao Tribunal de

origem que a acusada requereu o desaforamento da sessão de julgamento,

quando tal pedido teria sido protocolado pelo corréu e também de ofício pelo

Juízo a quo, jamais pela paciente.

Assim, decorridos mais de 03 anos da custódia preventiva, a Defesa

assevera que não foi intimada para os fi ns do art. 422 do CPP e ainda não

ocorreu o julgamento no Tribunal do Júri “por práticas atribuíveis unicamente

ao Estado, que é o detentor da custódia da Paciente e que tem o poder/dever

de oferecer a prestação jurisdicional ao réu preso em um prazo minimamente

razoável” (fl . 05).

Dito de outra forma, assevera que “o Juízo coator recebeu os autos há exato

01 (um) ano, não intimou a defesa para que se pronunciasse na forma prevista

no Código de Processo Penal e ainda assim, pleiteou o desaforamento do caso,

aumentando ainda mais esta abusiva e excessivamente longa prisão preventiva”

(fl . 06).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

590

Com estas considerações, requer a concessão da ordem para o fi m de

expedir alvará de soltura e deferir à acusada a faculdade de aguardar em liberdade

a tramitação do processo.

Passo à análise da irresignação.

Inicialmente, há que se ressaltar, a concessão de habeas corpus em razão

da confi guração de excesso de prazo é medida de todo excepcional, somente

admitida nos casos em que a dilação a) seja decorrência exclusiva de diligências

suscitadas pela acusação; b) resulte da inércia do próprio aparato judicial, em

obediência ao princípio da razoável duração do processo, previsto no art. 5º,

inciso LXXVIII da Constituição Federal; ou c) implique em ofensa ao princípio

da razoabilidade.

Esta conclusão decorre do entendimento de que o período de encerramento

da instrução criminal e o conseqüente pronunciamento judicial sobre a acusação

imputada nos autos, fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, não

deve ser entendido como prazo peremptório, eis que subsiste apenas como

referencial para verifi cação do excesso, de sorte que sua superação não implica

necessariamente um constrangimento ilegal, podendo ser excedido com base em

um juízo de razoabilidade.

Prosseguindo no exame da impetração, observa-se que a admissibilidade

da acusação somente foi estabilizada depois de julgado pelo Tribunal Estadual o

inconformismo da defesa com a decisão de pronúncia, o que ocorreu há pouco

mais de 01 ano, quando os autos foram baixados à comarca de origem para

serem submetidos ao Plenário do Júri.

Assim, no que tange ao alegado excesso de prazo na formação da culpa,

eventual atraso encontra-se superado, por incidência do Enunciado Sumular n.

21 desta Corte Superior, assim grafado:

Pronunciado o réu, fi ca superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução.

Neste aspecto, é de ser considerado este novo marco para se aferir possível

violação ao princípio constitucional da vedação à irrazoável duração do processo

apartir do retorno do feito ao juízo de primeiro grau, após a confi rmação da

sentença de pronúncia.

Nesta fase da marcha processual, a indesejável demora na realização do

Júri encontra-se justifi cada em razão da quantidade de acusados (03 ao todo),

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 591

patrocinados por advogados diferentes, e da representação pelo desaforamento, conforme destacado no voto condutor do writ originário, à fl . 205.

Verifi ca-se que o feito somente não foi submetido ao Conselho de Sentença porque a magistrada singular, para garantir a imparcialidade do julgamento, provocou o Tribunal ad quem a desaforar o caso para outra comarca.

O pedido de desaforamento, com efeito, só é possível quando o processo se encontrar preparado para o julgamento pelo Júri e isto ocorre após a decisão de pronúncia ou depois de proferido acórdão confi rmatório daquela decisão.

A propósito, confi ra-se julgado desta Corte:

Processo Penal. Habeas corpus. Homicídio duplamente qualificado. Prisão preventiva. Falta de fundamento. Preconstituição de prova. Ausência. Excesso prazo. Responsabilidade do Estado. Reconhecimento.

1. O writ pressupõe a apresentação de prova preconstituída, sem a qual resta prejudicado o exame da cautelaridade da prisão preventiva.

2. O pedido de desaforamento acarreta delonga no julgamento, justifi cando a dilação processual.

3. O julgamento encontra-se designado para data próxima.

4. Ordem denegada.

(HC n. 52.070-RJ, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 08.03.2007).

As razões que levaram a juíza singular a adotar tal providência encontram-

se elencadas no fragmento abaixo, extraídas da decisão de fl s. 199-202, in verbis:

No caso dos autos, durante todo o sumário de culpa os réus Pero e Vera foram mantidos presos preventivamente tendo em vista terem se evadido do distrito da culpa e em razão da repercussão dos fatos, dada a brutalidade com que foi praticado contra a pequena vítima, havendo reiteradas manifestações da população local pela condenação dos réus.

Prova disso é que o plenário da Câmara de Vereadores de Quatro Barras, recentemente inaugurado, recebeu o nome de Giovana dos Reis Costa, em homenagem à vítima, o que comprova que a história e o sentimento de vingança não foram apagados da memória da comunidade.

Além disso, em várias oportunidades esta magistrada tem sido abordada por moradores da cidade questionando quando os réus vão a julgamento e expressando seu repúdio à conduta dos mesmos.

Tais circunstâncias permitem presumir a parcialidade do júri, que autoriza o desaforamento do processo sob pena de manifesto prejuízo à sua defesa (grifei).

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

592

Dos fundamentos acima destacados, denota-se a comoção social que

tomou conta daquela comunidade e a repercussão que os fatos causaram, pela

gravidade concreta como o delito foi cometido, conclusão que emana da leitura

da narrativa contida na denúncia, ipsis literis:

Em data não precisada nos autos, porém no início do mês de abril de 2006, os denunciados Vera Petrovitch, Pero Petrovitch Theodoro Vichi e Renato Michel, além da adolescente C.M., reuniram-se na residência localizada na rua Agnelo Florêncio Ribeiro, n. 419, Jardim Patrícia, Quatro Barras, neste Foro Regional e comarca e acertaram que precisavam encontrar uma criança do sexo feminino (virgem) para extrair o seu sangue, a fi m de que fossem realizados “trabalhos” para dar sorte e fertilidade a um parente deles que iria se casar no dia 14 de abril de 2006, na cidade de Curitiba.

Depois de acertarem todos os detalhes, o denunciados Renato Michel foi para Curitiba-PR e os demais permaneceram em Quatro Barras, sendo que alguns dias após, a denunciada Vera Petrovitch, foi para Curitiba, na casa de sua fi lha, a fi m de ajudar nos preparativos para o casamento de seu fi lho. Mas antes de sair, orientou o denunciado Pero Petrovitch Theodoro Vichi e a adolescente C.M,, de como deveriam proceder para escolher a vítima e coletar o seu sangue, sendo que tal procedimento teria que ser feito na semana do casamento.

No dia 10 de abril de 2006, no final da tarde, o denunciado Pero Petrovitch Theodoro Vichi e a adolescente C.M, atraíram a vítima Giovana dos Reis Costa, de apenas nove anos de idade, a qual estava vendendo rifa de páscoa, para ingressar no interior da casa deles, localizada na Rua Agnelo Florêncio Ribeiro, n. 419, Jardim Patrícia, Quatro Barras, neste Foro Regional e comarca.

Assim que a vítima ingressou na residência, o denunciado Pero fez contato com o denunciado Renato, o qual rumou para Quatro Barras.

Com a chegada de Renato, os denunciados em companhia da adolescente, seguindo orientações passadas pela denunciada Vera, levaram a vítima, que estava conversando normalmente com eles, para um quarto, instante em que, todos, agindo com dolo (intenção de matar), seguraram a vítima, a qual resistiu e a despiram.

Com a pequena vítima já nua, sendo segura pelos denunciados e a adolescente, deitaram-na no chão, instante em que teve sua boca tampada com a mão para não gritar, sendo que teve suas pernas abertas, instante em que um dos agentes introduziu em sua vagina um objeto cilíndrico liso, tendo em sua ponta algumas ranhuras, com o fi to de colher o sangue para a realização de um “trabalho” para trazer sorte aos noivos que iriam se casar dali a quatro dias.

Com a introdução do objeto na vagina da vítima, houve a ruptura da pela que separa a vagina do ânus, formando um único orifício e a vítima, devido à forte dor, começou a debater e tentou gritar, instante em que um dos agentes começou a apertar o seu pescoço, até que ela veio a desfalecer.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 593

Após a colheita do sangue da vítima, os denunciados e a adolescente limparam o local e lavaram o corpo da vítima, o qual foi amarrado com fi os de luz e colocado em um saco de lixo, sendo o mesmo levado pelos denunciados Pero e Michel, de carro, até um terreno baldio, onde o mesmo foi jogado.

Em virtude dos atos praticados pelos denunciados e pela adolescente, a vítima sofreu as lesões corporais descritas no laudo de necropsia de fl s. 258 e verso (fl s. 28-31, grifei).

Vê-se que, longe de infl igir constrangimento ilegal à acusada, por não

submeter de imediato o feito a julgamento perante o Tribunal popular, a

magistrada de primeiro grau buscou resguardar a imparcialidade dos jurados

que formaram o Conselho de Sentença e, em última análise, assegurar efetiva

garantia aos princípios constitucionais da presunção de inocência e da paridade

de armas entre acusação e defesa, certamente maculados no seio daquele grupo

social, de onde seriam escolhidos os juízes naturais da causa.

Tamanha brutalidade em condutas delituosas somente se observa nos

casos envolvendo violência cometidas por indivíduos ligados ao tráfi co de

drogas, quando as vítimas não são apenas executadas, mas freqüentemente

decapitadas, desmembradas, mutiladas, submetidas a todo tipo de sevícias antes

de serem mortas.

Noutro giro, há notícia nos autos que a paciente, antes do decreto prisional,

teria deixado o distrito da culpa sem informar à autoridade policial onde poderia

ser encontrada para colaborar nas investigações criminais, tendo sido localizada

já em outro Estado da Federação, em clara demonstração de que pretendia

furtar-se à aplicação da lei penal.

Não por outro motivo foi imposta a segregação cautelar à paciente, como

garantia da ordem pública, além de necessária para assegurar a aplicação da lei

penal, conclusão que se denota nos fundamentos extraídos do acórdão recorrido,

por ocasião do julgamento do recurso em sentido estrito:

No que tange à manutenção da prisão dos recorrentes Vera e Pero pela decisão de pronúncia, não traduz constrangimento ilegal, fundamentada que está na necessidade de garantir a aplicação da lei penal e a ordem pública, como se vê:

(...) entendo que deva ser mantida a prisão dos réus Pero e Vera pois, muito embora tenham tentado demonstrar que apenas deixaram a cidade atendendo uma recomendação da delegada, tal alegação, além de não comprovada, não justifi ca terem permanecido foragidos durante quase um ano, tendo sido presos ao acaso.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

594

De fato, a suposta alegação de que a delegada tenha orientado os réus a deixar a cidade não signifi ca que deveriam fugir sem deixar pistas de seu paradeiro.

Vale lembrar, aliás, que na época da fuga o réu Pero respondia a outra ação penal e encontrava-se em liberdade provisória, circunstâncias que permitem afi rmar que não pretendem prestar contas à sociedade e que, em liberdade, novamente virão a se evadir, frustrando a aplicação da lei; aliás, a interceptação telefônica deixa claro que os réus zombam não apenas da autoridade policial mas também do juízo e em alguns trechos que ainda se vangloriam do episódio quando noticiam com satisfação que vão aparecer na televisão para falar sobre tão bárbara acusação.

Não é demais lembrar, ainda, que a ré Vera responde a outros inquéritos policiais no Estado de São Paulo e uma ação penal por estelionato neste Juízo, sendo necessária a manutenção de sua prisão para evitar que em liberdade venha a cometer novos delitos (...).

Sufi ciente mostra-se a motivação enunciada, alinhada, aliás, com a deliberação desta Câmara no julgamento do Habeas Corpus n. 441.298-4, impetrado em favor de Vera, de minha relatoria:

(...)

Já em relação aos fundamentos do decreto preventivo, os mesmos se mostram suficientes para embasar a prisão da paciente, em especial para assegurar a aplicação da lei penal.

Conforme já analisado na decisão que indeferiu a liminar, entende-se como sufi ciente e válida a fundamentação contida no decreto de prisão preventiva ora combatido, o qual, embora não contendo prolongados - e, às vezes, enfadonhos - argumentos, se mostra sufi ciente para o fi m pretendido, especialmente na parte em que menciona o fato de estar a ré foragida.

(...)

Muito embora asseverem os impetrantes que a paciente somente deixou o distrito da culpa por recomendação da própria autoridade policial - e aqui nem se mostra necessária a discussão acerca da veracidade desta “recomendação” - o fato é que a mesma tinha noção da gravidade dos fatos investigados, tanto que efetivamente deixou o distrito da culpa com medo de represálias (fl . 34). E assim sendo, seria imprescindível que informasse à autoridade policial o local onde poderia ser encontrada, pois somente “abandonar” o distrito em que estava sendo investigado crime tão bárbaro não demonstra, salvo prova em contrário, o mínimo de intenção de colaborar com as investigações.

(...)

Ademais, pela repercussão dos fatos e pela afi rmação da própria paciente, era público e notório que a mesma estava sendo investigada pela morte de Giovanna

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 595

dos Reis Costa e, mesmo assim, deixou o distrito da culpa sem informar a autoridade policial acerca de sua localização, contrariando o afi rmado na exordial no sentido de que sempre colaborou com as investigações, se apresentou em todas as ocasiões que foi chamada pelas autoridades policiais” (fl . 03), somente sendo encontrada no Estado de São Paulo. Não é o que indicam as certidões dos ofi ciais de justiça de fl s. 360 e 726, tampouco o relatório da Polícia do Estado de São Paulo juntado às fl s. 816-817.

(...)

Não havendo modificação do quadro fático-processual determinante da segregação dos réus Vera e Pero, imperiosa mostra-se mesmo a manutenção das suas custódias, caminhando que está o processo para o seu deslinde perante o Tribunal do Júri (fl s. 170-175, grifei).

Também não faria sentido manter a cautelaridade da custódia, por garantia

da ordem pública e, principalmente, para se assegurar a aplicação da lei penal,

e conceder à acusada neste momento a liberdade provisória, quando a instrução

já está encerrada, a admissibilidade da acusação foi provida em grau de recurso

e os autos aguardam tão somente a defi nição do foro processante, eis que

mediante consulta ao sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado do

Paraná constata-se o julgamento do Desaforamento n. 668.063-9, em sessão

realizada no dia 15.04.2011, quando por unanimidade de votos deferiram o

pedido nele formulado, deslocando-se o Júri para o Foro Central da Comarca da

Região Metropolitana de Curitiba-PR.

Adotar esta solução seria um tamanho contra-senso em termos de técnica

jurídica; afi nal, o processo cautelar tem por fi nalidade assegurar a efi cácia prática

de uma providência cognitiva ou executiva e, quando tal desiderato, em tese,

fi nalmente está perto de atingir o resultado almejado, a concessão da liberdade

provisória à acusada redundaria no abortamento do quanto se almejou desde

o início da segregação, qual seja, efetivamente assegurar-se o cumprimento de

eventual sanção penal.

Ademais, a periculosidade da paciente restou sobejamente demonstrada na

exordial acusatória, pelo modus operandi como teria sido praticado o delito que

está sendo-lhe imputado, a demonstrar a gravidade concreta da conduta a ela

atribuída, a qual, se confi rmada pelos juízes constitucionalmente competentes,

certamente infligiu à vítima um sofrimento extremamente acentuado e

inaceitável quando advindo de um comportamento humano.

Por oportuno, colhe-se o seguinte julgado nesta Corte, no julgamento de

matéria semelhante:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

596

Habeas corpus liberatório. Pacientes pronunciados por homicídio qualifi cado e homicídio qualificado tentado. Prisão preventiva decretada em abril/2006. Pronúncia em jan/2008. Inexistência de excesso de prazo para submissão dos acusados a julgamento pelo Tribunal Popular. Desaforamento requerido pelo MPF. Demora da defesa para se manifestar sobre o referido pedido (aproximadamente 01 ano). Súmula n. 64-STJ. Desaforamento acolhido pelo TJPE. Necessidade da custódia cautelar devidamente demonstrada. Pacientes foragidos, um deles por 02 anos. Periculosidade concreta, ante o modus operandi do delito, a notícia de ameaças à vítima sobrevivente, às testemunhas e, inclusive, aos possíveis jurados na comarca de origem, tanto que aceito o pedido de desaforamento. Garantia da ordem pública, da aplicação da lei penal e da instrução criminal perante o Tribunal do Júri. Parecer do MPF pela denegação da ordem. Ordem denegada.

1. A concessão de habeas corpus em razão da confi guração de excesso de prazo é medida de todo excepcional, somente admitida nos casos em que a dilação (I) seja decorrência exclusiva de diligências suscitadas pela acusação; (II) resulte da inércia do próprio aparato judicial, em obediência ao princípio da razoável duração do processo, previsto no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal; ou (III) implique em ofensa ao princípio da razoabilidade.

(...)

3. Nada recomenda a soltura dos acusados quando se aproxima a fi nalização do processo, pois presentes ainda os motivos para a prisão cautelar; registre-se que, no caso, os pacientes já demonstraram a intenção de ser furtar à aplicação da lei penal, tendo um deles permanecido foragido por 02 anos e o outro por 03 meses, quando foi preso em fl agrante pelo delito de porte ilegal de arma.

4. A periculosidade dos acusados restou evidente, não só pelo modus operandi do delito (à emboscada, com diversos disparos de arma de fogo), mas também pela ameaça à vítima sobrevivente, bem como às testemunhas e até mesmo aos possíveis jurados, considerações que levaram ao acolhimento do pedido de desaforamento pelo TJPE.

5. Parecer do MPF pela denegação da ordem.

6. Ordem denegada.

(HC n. 160.276-PE, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Quinta Turma, julgado em 15.04.2010, DJe 17.05.2010).

Feitas estas considerações, não vislumbro o apontado constrangimento

ilegal.

Diante do exposto, denego a ordem.

É como voto.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 597

HABEAS CORPUS N. 188.631-PA (2010/0197765-0)

Relator: Ministro Gilson Dipp

Impetrante: Anete Denise Pereira Martins e outro

Advogado: Anete Denise Pereira Martins e outro(s)

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Pará

Paciente: Luiz Cláudio Ruff eil Rodrigues

EMENTA

Processo Penal. Habeas corpus. Estelionato. Peculato. Direito

Penal Militar. Trancamento da ação penal. Medida excepcional.

Inépcia da denúncia. Ausência de justa causa não evidenciada de

plano. Revolvimento do conjunto fático-probatório. Presença de

indícios de autoria e materialidade do delito. Ordem denegada.

I. Na hipótese, o Parquet, apesar de não descrever

pormenorizadamente a conduta criminosa, relatou os fatos a serem

apurados na instrução criminal e estabeleceu o vínculo entre o

denunciado e conduta imputada, pois na qualidade de Comandante

Geral da Polícia Militar - ofi cial superior de maior posto da Corporação

- competia a ele a presidência do Centro Social onde, em tese, teriam

ocorridos os delitos em análise.

II. Sendo o presidente da entidade o ordenador das despesas

ocorridas em sua contabilidade e não podendo ocorrer qualquer

pagamento naquele âmbito sem a sua aquiescência, o qual em momento

algum suspendeu os atos irregulares cometidos pelo 1º denunciado,

recai sobre a sua conduta omissiva, em princípio, a coautoria dos

delitos em comento.

III. O habeas corpus é medida excepcional para o trancamento

de investigações e instruções criminais, quando demonstrada,

inequivocadamente, a absoluta falta de provas, a atipicidade da

conduta ou a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, o que não

se verifi ca. Precedentes.

IV. O acatamento dos argumentos trazidos na presente impetração

demandaria aprofundado exame do conjunto fático-probatório dos

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

598

autos, peculiar ao processo de conhecimento e inviável em habeas

corpus, remédio jurídico-processual, de índole constitucional, que tem

como escopo resguardar a liberdade de locomoção contra ilegalidade

ou abuso de poder, marcado por cognição sumária e rito célere.

V. Ordem denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça.

“A Turma, por unanimidade, denegou a ordem”. Os Srs. Ministros Laurita

Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi e Adilson Vieira Macabu

(Desembargador convocado do TJ-RJ) votaram com o Sr. Ministro Relator.

Sustentaram oralmente: Dr. Roberto Lauria (p/ pacte) e Ministério

Público Federal.

Brasília (DF), 26 de abril de 2011 (data do julgamento).

Ministro Gilson Dipp, Relator

DJe 16.05.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Gilson Dipp: Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso

ordinário, com pedido liminar, impetrado em favor de Luiz Cláudio Ruffeil

Rodrigues, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que denegou

a ordem no Habeas Corpus n. 2010.3.002335-7, nos termos da seguinte ementa:

Habeas corpus. Exclusão do paciente da ação penal. Em sede de habeas corpus só é possível trancar ação penal em situações especiais, como nos casos em que é evidente e inafastável a negativa de autoria, quando o fato narrado não constitui crime, sequer em tese, e em situações similares, onde pode ser dispensada a instrução criminal para a constatação de tais fatos, situação que não se confi gura na espécie. Ordem denegada. Unanimidade (fl . 35).

Consta dos autos que o paciente, então Comandante Geral da Polícia

Militar do Estado do Pará, e outro acusado, à época Diretor do Centro Social

Fasceso, foram denunciados perante a Justiça Militar Estadual como incurso nas

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 599

penas dos arts. 251, § 3º (estelionato), e 303, § 1º (peculato), todos do Código Penal Militar.

Ao argumento de ausência da individualização da conduta, bem ainda omissão quanto ao nexo de causalidade entre o resultado penalmente punível imputado ao acusado, na exordial acusatória, foi impetrado writ no Tribunal a

quo, com a fi nalidade de excluí-lo da ação penal em trâmite. Contudo, a ordem foi denegada.

Nesta impetração, alega-se constrangimento ilegal reiterando os mesmos fundamentos deduzidos na Corte de origem, asseverando que o acusado está sendo processado em razão de uma responsabilidade puramente objetiva, pois o Parquet limitou-se a apontar sua responsabilidade unicamente em razão do cargo ocupado, presumindo-o responsável pelas irregularidades apuradas na investigação preliminar que culminou na acusação.

Assevera que a denúncia é genérica, eis que não atribui nenhum fato concreto e impõe ao acusado uma ação penal sabidamente natimorta.

Afi rma que a imprecisão da exordial acusatória inviabiliza o exercício da ampla defesa além de ser fruto de “emanações intelectuais divorciadas da prova dos autos” (fl . 19).

Por fim, aduz atipicidade da conduta narrada na denúncia e busca o reconhecimento da inépcia na respectiva peça ministerial, a obstar o prosseguimento da ação penal, por ausência de justa causa.

Nestes termos, requer liminarmente, seja sobrestada a instrução criminal e, no mérito, a exclusão do paciente da ação penal.

A liminar foi indeferida à fl . 49.

As informações foram prestadas às fls. 58-59, acompanhadas dos documentos de fl s. 60-74.

A Subprocuradoria Geral da República manifestou-se às fl s. 78-81 pela denegação da ordem.

É o relatório.

Em mesa para julgamento.

VOTO

O Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator): Trata-se de habeas corpus substitutivo

de recurso ordinário, com pedido liminar, impetrado em favor de Luiz Cláudio

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

600

Ruff eil Rodrigues, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que

denegou a ordem no Habeas Corpus n. 2010.3.002335-7.

Consta dos autos que o paciente, então Comandante Geral da Polícia

Militar do Estado do Pará, e outro acusado, à época Diretor do Centro Social

Fasceso, foram denunciados perante a Justiça Militar Estadual como incurso nas

penas dos arts. 251, § 3º (estelionato), e 303, § 1º (peculato), todos do Código

Penal Militar.

Ao argumento de ausência da individualização da conduta, bem ainda

omissão quanto ao nexo de causalidade entre o resultado penalmente punível,

imputado ao acusado na exordial acusatória, foi impetrado writ no Tribunal a

quo, com a fi nalidade de excluí-la da ação penal em trâmite. Contudo, a ordem

foi denegada.

Nesta impetração, alega-se constrangimento ilegal reiterando os mesmos

fundamentos deduzidos na Corte de origem, asseverando que o acusado está

sendo processado em razão de uma responsabilidade puramente objetiva, pois

o Parquet limitou-se a apontar sua responsabilidade unicamente em razão do

cargo ocupado, presumindo-o responsável pelas irregularidades apuradas na

investigação preliminar que culminou na acusação.

Assevera que a denúncia é genérica, eis que não atribui nenhum fato

concreto e impõe ao acusado uma ação penal sabidamente natimorta.

Afi rma que a imprecisão da exordial acusatória inviabiliza o exercício da

ampla defesa além de ser fruto de “emanações intelectuais divorciadas da prova

dos autos” (fl . 19).

Por fim, aduz atipicidade da conduta narrada na denúncia e busca o

reconhecimento da inépcia na respectiva peça ministerial, a obstar o

prosseguimento da ação penal, por ausência de justa causa.

Nestes termos, requer liminarmente, seja sobrestada a instrução criminal e,

no mérito, a exclusão do paciente da ação penal.

Passo à análise da irresignação.

Inicialmente, transcreve-se trecho da peça acusatória, no que se refere à

imputação feita ao paciente, relevante para este julgamento:

I - Relatam os presentes autos de IPM, iniciados por meio de representação anônima direcionada ao Gabinete da Exma. Sra. Governadora do Estado, diversas irregularidades administrativas praticadas pelo Ten. Cel. PM Luiz Fernando Gomes

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 601

Furtado enquanto Diretor do Centro Social Fasceso e pelo então comandante Geral da PM Luiz Cláudio Ruff eil Rodrigues.

II - Tais irregularidades consistem em: aquisição de terrenos com valores superfaturados baseados em laudos de avaliação considerados irregulares pela Caixa Econômica Federal, pagamentos de serviços de engenharia sem a devida comprovação da execução, contratação de serviços de conservação e limpeza com preços superfaturados, improbidade no pagamento de diárias, contratação direta de prestadores de serviço e concessão de empréstimos em desacordo com o estatuto, as quais foram profundamente apuradas e comprovadas pela Auditoria Geral do Estado.

(...)

No que concerne a participação do 2º denunciado nos fatos em tela tenho duas considerações a fazer:

Na qualidade de Comandante Geral da PM, segundo o Estatuto do Fasceso (art. 7º) o Conselho Diretor será constituído por cinco (05) ofi ciais superiores da PM-PA, da ativa ou da inatividade residentes em Belém-PA, de livre escolha do comandante geral.

§ 1º O presidente do Conselho será o oficial superior de maior posto e antiguidade da Corporação.

(Art. 13) Compete ao Diretor Presidente:

(Item n. 04) Autorizar despesas dentro dos recursos disponíveis. Desse modo entendo ser o mesmo o responsável pela autorização de despesa, por se tratar de Ofi cial de maior posto da Corporação sendo impossível o 1º denunciado executar pagamentos em nome do Fasceso sem aquiescência do 2º;

Às fl s. 734 e seguintes dos autos o 2º denunciado informou que “tão logo tomou conhecimento das denúncias oriundas do relatório da Auditoria Geral do Estado determinou a instauração de sindicância a fi m de verifi car sua consistência e materialidade”, porém vejo que o mesmo, no exercício das funções de Comandantes Geral e principal gestor do FASCESO, em momento algum suspendeu os atos irregulares cometidos pelo 1º denunciado, recaindo sobre a sua conduta omissiva a coautoria dos delitos em comento (fl s. 23-32, negritei).

Vê-se que o Parquet, apesar de não descrever pormenorizadamente a

conduta criminosa, relatou os fatos a serem apurados na instrução criminal e

estabeleceu o vínculo entre o denunciado e conduta imputada, pois na qualidade

de Comandante Geral da Polícia Militar do Estado do Pará - ofi cial superior

de maior posto da Corporação - competia a ele a presidência do Centro Social

Fasceso onde, em tese, teriam ocorridos os delitos em análise.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

602

Segundo o estatuto social daquela entidade, o presidente é o ordenador

das despesas ocorridas em sua contabilidade, sendo impossível ocorrer qualquer

pagamento naquele âmbito sem a sua aquiescência, o qual “em momento algum

suspendeu os atos irregulares cometidos pelo 1º denunciado, recaindo sobre a

sua conduta omissiva a coautoria dos delitos em comento” conforme asseverado

na acusação.

Assim, a exordial descreve comportamento penalmente relevante e o nexo

de causalidade com o resultado imputado ao acusado.

Com efeito, a inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a

relação entre os fatos delituosos e a sua autoria ofende o princípio constitucional

do devido processo legal, tornando inepta a denúncia, uma vez que esta deve

conter elementos mínimos que garantam ao acusado o direito à ampla defesa e

ao contraditório.

Entretanto, tal mácula não se verifi ca na hipótese, pois não se exige, em

casos como o presente, uma descrição minuciosa e individualizada da conduta

do agente, que poderá no decorrer da instrução criminal defender-se dos fatos

imputados e eximir-se da acusação.

In casu, a acusação descreve fato criminoso, com todas as circunstâncias,

satisfazendo os requisitos do art. 41 do CPP. Conforme se observa da peça

acusatória, os fatos narrados revelam indícios sufi cientes para justifi car uma

apuração mais aprofundada.

Além disso, o presente remédio constitucional é medida excepcional

para o trancamento de investigações e instruções criminais, quando restar

demonstrada, inequivocadamente, a absoluta falta de provas, a atipicidade da

conduta ou a ocorrência de causa extintiva da punibilidade, o que não se verifi ca

na espécie.

Esta é o entendimento reiterado nesta Corte, de acordo com os seguintes

precedentes:

Habeas corpus. Homicídio culposo na direção de veículo automotor. Trancamento da ação penal. Ausência de justa causa. Inocorrência. Alegação de culpa do outro condutor. Exame incompatível com a via eleita. Ordem denegada.

1. O trancamento da ação penal pela via do habeas corpus é medida de índole excepcional, cabível somente nas hipóteses em que desponte, de plano, a atipicidade da conduta, a existência de causa de extinção de punibilidade e a ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 603

(...)

4. Ordem denegada.

(HC n. 109.072-DF, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 02.04.2009, DJe 03.08.2009).

Processual Penal. Habeas corpus. Homicídio. Autoria intelectual. Ausência de justa causa para persecução penal. Inocorrência.

I - O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC n. 901.320-MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25.05.2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC n. 87.324-SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18.05.2007). Ainda, a liquidez dos fatos constitui requisito inafastável na apreciação da justa causa (HC n. 91.634-GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05.10.2007), pois o exame de provas é inadmissível no espectro processual do habeas corpus, ação constitucional que pressupõe para seu manejo uma ilegalidade ou abuso de poder tão fl agrante que pode ser demonstrada de plano (RHC n. 88.139-MG, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 17.11.2006).

II - Tratando-se de denúncia que, amparada nos elementos que sobressaem do inquérito policial, expõe fatos teoricamente constitutivos de delito, e não havendo tranqüila prova constituída em sentido contrário, é imperioso o prosseguimento do processo-crime.

Ordem denegada.

(HC n. 136.830-AL, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 19.08.2009, DJe 14.09.2009).

Processual Penal. Habeas corpus. Extorsão mediante seqüestro seguida de morte. Indeferimento de diligência requerida em alegações fi nais. Reiteração de pedido. Não-conhecimento. Utilização de prova emprestada. Interceptações telefônicas. Possibilidade. Condenação amparada em vasto conteúdo probatório produzido perante o juízo da causa. Oportunizada à defesa a possibilidade de se manifestar sobre a prova emprestada. Ausência de qualquer mácula. Prova produzida por determinação de outro juízo buscando apurar crime diverso. Interceptações devidamente autorizadas cujo alvo era o próprio agente. Prova lícita. Ausência de ilicitude das demais provas por derivação. Provas insufi cientes para embasar a condenação. Estreita via do writ. Pedido parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegada a ordem.

(...)

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

604

6. A estreita via do habeas corpus, carente de dilação probatória, não comporta o exame de teses que demandem o aprofundado revolvimento do conjunto fático-probatório colhido nos autos da ação penal cognitiva, tal como a carência de provas para embasar o édito condenatório.

7. Pedido parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegada a ordem.

(HC n. 93.521-SP, Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), Sexta Turma, julgado em 27.03.2008, DJe 14.04.2008).

Noutro giro, o acatamento dos argumentos trazidos na presente impetração,

demandaria, por óbvio, aprofundado exame do conjunto fático-probatório dos

autos, peculiar ao processo de conhecimento e inviável em habeas corpus, remédio

jurídico-processual, de índole constitucional, que tem como escopo resguardar a

liberdade de locomoção contra ilegalidade ou abuso de poder, marcado por

cognição sumária e rito célere.

Nesse sentido:

Habeas corpus. Dispensa de licitação fora das hipóteses legais. Trancamento da ação penal. Participação na conduta típica sufi cientemente demonstrada pela denúncia. Inépcia. Inexistência. Ausência de justa causa não-evidenciada de plano. Análise sobre a materialidade do delito que não pode ser feita na via eleita, sobretudo após a superveniência de sentença condenatória. Ordem denegada.

1. Narrando a denúncia fatos configuradores de crimes em tese, de modo a possibilitar a defesa dos acusados, não é possível o trancamento da ação penal na via do habeas corpus, mormente quando a alegação de falta de justa causa demanda o reexame do material cognitivo constante nos autos.

2. Acolher a alegação de atipicidade da conduta porque o contrato fi rmado com dispensa de licitação observou o disposto ao inciso X do art. 24 da Lei n. 8.666/1990, demanda exame acurado da prova, própria da fase instrutória da ação penal, uma vez que tal situação fática não se encontra evidenciada de forma inequívoca nos autos.

3. Quando a versão de inocência apresentada é contraposta por elementos indiciários apresentados pela acusação, incabível o deslinde da controvérsia na via estreita do habeas corpus, sobretudo após a superveniência da sentença condenatória de primeiro grau que, apreciando detalhadamente os fatos ocorridos, vislumbrou a responsabilidade criminal da Paciente.

4. Recurso desprovido. Pedido de reconsideração da decisão que indeferiu a liminar julgado prejudicado (HC n. 94.619-PE, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 15.12.2009, DJe 08.02.2010).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 605

Assim, sendo plausível o relato acerca da infração, bem como que o

paciente concorreu, em tese, para a sua prática, inexiste motivo que justifi que o

arquivamento prematuro do processo.

A pretensão da impetrante não possui o efeito que se procura alcançar, de

trancar a ação penal a que responde o paciente. A exordial acusatória apresenta

uma narrativa congruente, descrevendo conduta que, ao menos em tese,

confi gura crime, de forma que resta afastada a pecha de inepta, a confi gurar o

alegado constrangimento ilegal.

Por tais razões, denego a ordem.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 192.240-SP (2010/0223699-4)

Relator: Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ)

Impetrante: Fábio Tofi c Simantob e outro

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Paciente: Eduardo Soares Pompeu

EMENTA

Processual Penal. Habeas corpus. Prisão preventiva. Fundamentos.

Gravidade genérica do delito. Periculosidade abstrata do sujeito.

Credibilidade da Justiça pela prisão do agente. Inidoneidade.

1. A decisão que indefere a liberdade provisória ao acusado

portador de circunstâncias pessoais favoráveis, deve ser idoneamente

fundamentada nos requisitos do art. 312, do CPP.

2. A gravidade do delito, bem como as considerações de

periculosidade abstrata do agente, não confi guram causas capazes de

determinar a segregação cautelar. Precedentes.

3. Ordem concedida.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

606

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Senhores Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, em conceder a ordem, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.

Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Napoleão Nunes Maia Filho e Jorge Mussi votaram com o Sr. Ministro Relator.

Ausente, justifi cadamente, o Sr. Ministro Gilson Dipp.

Sustentou oralmente: Dr. Fabio Tofi c Simantob (p/ pacte).

Brasília (DF), 07 de junho de 2011 (data do julgamento).

Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ), Relator

DJe 17.06.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ-RJ): Trata-se de habeas corpus impetrado em 17.12.2010, em favor de Eduardo

Soares Pompeu, denunciado perante o MM. Juízo do 1º Tribunal do Júri da Comarca de São Paulo-SP, como incurso nas sanções do art. 121, § 2º, II e IV, do CP.

Indeferido pelo MM. Juízo de piso o pedido de prisão preventiva em desfavor do paciente, o Ministério Público interpôs o Recurso em Sentido Estrito perante o eg. Tribunal de Justiça de São Paulo, ao qual foi dado provimento por unanimidade, em julgamento da c. 8ª Câmara de Direito Criminal, para determinar a segregação cautelar do denunciado.

Na presente impetração, alega o impetrante que o ora paciente estaria sofrendo constrangimento ilegal, porquanto (i) não estão presentes os requisitos autorizadores da prisão anterior ao trânsito em julgado, (ii) o v. acórdão guerreado não apresenta fundamentação idônea para a determinação da preventiva e (iii) o paciente compareceu a todos os atos processuais realizados durante mais de um ano, sem interferir na instrução criminal ou furtar-se às obrigações processuais.

A liminar foi indeferida em 21.12.2010, pelo eminente Ministro Ari

Pargendler, na presidência desta Corte Superior, ao fundamento de que

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 607

não havia elementos sufi cientes para a convicção sumária da concessão da

medida urgente.

Inconformada, a defesa apresentou pedido de reconsideração, apreciado pelo

eminente Ministro Felix Fischer, em 18.01.2011, ainda durante o recesso forense,

no exercício da presidência deste Superior, ao qual foi negado provimento.

Ainda insatisfeita, a defesa deu entrada, no protocolo desta Corte, em

mais um pedido de reconsideração, apreciado por esta relatoria em 18.02.2011,

e indeferido ante a inexistência de elemento novo capaz de alterar a situação

jurídica do paciente.

A autoridade indigitada como coatora prestou informações às fl s. 2.426-

2.486, em 18.02.2011, tendo sido os autos diretamente encaminhados ao

Ministério Público Federal.

Em 15.03.2011, o impetrante juntou aos autos petição com pedido

expresso de intimação para fi ns de sustentação oral da presente ordem na sessão

de julgamento.

No dia 17.03.2011, juntou-se o parecer do Ministério Público, opinando

pela concessão da ordem, cuja ementa é a seguinte:

Habeas corpus. Homicídio. Pedido de concessão de liberdade provisória. Ausência de requisitos justificadores da preventiva. Constrangimento ilegal confi gurado. Parecer pela concessão da ordem (fl . 2.601).

Por fi m, em 25.05.2011, foi juntado aos autos o Ofício n. 3.403 do Supremo

Tribunal Federal, solicitando informações acerca do presente writ, porquanto o

impetrante apresentou, ao Excelso, ordem de habeas corpus onde alega o excesso

de prazo para julgamento deste mandamus.

É, no essencial, o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do

TJ-RJ) (Relator): Inicialmente, são necessários esclarecimentos a respeito da

tramitação do presente habeas corpus, em razão da impetração de outra ordem

perante o Supremo Tribunal Federal, onde requer-se a concessão da ordem

liberatória, per saltum, sob a alegação de excesso de prazo para o julgamento

deste writ.

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608

A presente ordem foi impetrada perante esta c. Corte no mesmo dia em

que fui convocado para compor, na forma regimental, os quadros deste Tribunal

Superior.

Em razão do recesso forense e do fim de semana, os autos foram

encaminhados por meu gabinete, imediatamente, ao eminente Ministro

Presidente que, em 48 (quarenta e oito) horas, apreciou a medida liminar

requerida, declinando a devida fundamentação de seu indeferimento.

Ainda durante as férias legais dos magistrados desta Corte, o impetrante

formulou pedido de reconsideração que, também, foi diretamente encaminhado

à presidência para apreciação.

Conclusos os autos ao eminente Ministro Felix Fischer em 17.01.2011

(fl. 1.959), foi apreciado o pedido formulado, com decisão lavrada no dia

18.01.2011, da qual a defesa se deu por intimada no dia 19.01.2011, conforme

certidão de fl . 1.963.

Reiterando seu inconformismo, o impetrante apresentou novo pedido

de reconsideração em 10.02.2011, apreciado e remetido à publicação, por esta

relatoria, no dia 15.02.2011, conforme termo de fl . 2.423.

Juntadas as informações no dia 18.02.2011, foram os autos no mesmo dia

encaminhados em vista ao Parquet, para que opinasse na causa.

Os autos retornaram do Ministério Público Federal em 17.03.2011 (fl .

2.601), tendo sido encaminhados conclusos a meu gabinete em 1°.04.2011, pela

r. Coordenadoria deste Órgão Julgador.

Considerando o acervo a mim atribuído, quando da honrada convocação

para compor esta c. Corte Superior, contando com ações de habeas corpus que

remontavam ao ano de 2005, esta relatoria tem envidado todos os esforços a

fi m de entregar a prestação jurisdicional em prazo razoável, nos termos da novel

orientação constitucional. Assim, temos, por repetidas vezes, fi gurado entre os

gabinetes com maior produtividade jurisdicional, tanto deste Órgão julgador,

quanto do Superior Tribunal de Justiça.

Realizados estes esclarecimentos preliminares, rechaço veemente e

peremptoriamente a alegação de excesso de prazo, por parte da defesa, no HC n.

108.423, que ora tramita perante o Supremo Tribunal Federal.

Quanto ao mérito, razão assiste ao impetrante.

Com efeito, o MM. Juízo singular negou o pedido de prisão preventiva em

decisão assim fundamentada:

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 609

Quanto ao pedido de prisão preventiva, por ora não se vislumbra a presença dos requisitos legais para que ela pudesse ser decretada.

(...)

Também, o fato de o ora réu haver fugido imediatamente após o crime, não é sufi ciente para se afi rmar que ele pretende furtar-se ao processo e à aplicação da Lei Penal, tanto que, posteriormente apresentou-se perante a Autoridade Policial que, fez pedido de prisão temporária.

Nesse passo é relevante observar que o mandado de prisão temporária foi expedido em 31 de dezembro de 2009 às 00:10 horas (fls. 332) e esse mesmo mandado, curiosamente, foi cumprido antes mesmo de ter sido expedido, em 30 de dezembro de 2009 (fl s. 335).

Além do mais, o réu é primário, possui emprego fixo e residência certa, não havendo, a princípio, risco para a instrução criminal (fl . 374) (grifo nosso).

Após um ano da liberação do paciente, transcorrendo o processo em seu

curso normal, sem qualquer interferência ou interrupção do andamento por atos

da defesa ou do denunciado, o eg. Tribunal a quo houve por bem dar provimento

ao Recurso em Sentido Estrito ministerial, para decretar sua prisão preventiva.

Ora, não bastasse o fundamento do MM. Juiz de piso, afirmando

expressamente que o acusado se apresentou, por iniciativa própria, à Autoridade

Policial, e propiciou o cumprimento do mandado assecuratório antes mesmo

de sua expedição, o próprio andamento da ação penal demonstra ausentes os

requisitos da segregação cautelar.

Colhe-se do v. acórdão, verbis:

Diante de crime tão grave, seguido de fuga do réu do local dos fatos, o Poder Judiciário não pode tardar na resposta da cautelaridade, sob a inevitável condição de cair em descrédito, a par do que surge a automática insegurança social.

(...) há evidente perigo social decorrente da demora em se aguardar o provimento defi nitivo, porque até o trânsito em julgado da decisão condenatória o sujeito já terá cometido inúmeros delitos.

(...) a brutalidade do delito provoca comoção no meio social, gerando sensação de impunidade e descrédito pela demora na prestação jurisdicional, de tal forma que, havendo fumus boni iuris, não convém aguardar-se até o trânsito em julgado para só então prender o indivíduo.

Em tais circunstâncias, com essas evidências irrefutáveis, mantê-lo solto só estaria contribuindo para o desprestígio da justiça, insegurança social, já que o agente detentor de personalidade tão insensível com a vida humana, a qualquer momento, em mínima situação de divergência, não pensará em ceifar outra vida,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

610

ainda mais porque, caso em liberdade, contaminado será com o sentimento de impunidade.

Primariedade e bons antecedentes não são condições impeditivas do reconhecimento da periculosidade do agente, haja vista tudo o que já se falou.

(...) Quando procurado pela polícia, não foi localizado em seu endereço, e somente depois de se assessorar quanto à defesa técnica é que compareceu ao Distrito Policial (fl s. 814-817) (grifo nosso).

A decretação da prisão de um acusado deve estar fundamentada,

concretamente, nas peculiaridades do caso, a partir dos requisitos autorizadores

previstos no art. 312, do CPP.

Não se mostram idôneos os fundamentos baseados na periculosidade abstrata

do agente, na gravidade genérica do delito ou na alegação de clamor social e na

credibilidade da Justiça, para alterar o status libertatis de um cidadão contra o qual

ainda não se tenha sentença penal condenatória transitada em julgado.

A respeito do assunto, colhem-se os precedentes:

Criminal. Habeas corpus. Roubo qualifi cado. Réu preso em fl agrante. Liberdade provisória indeferida. Necessidade de resguardar a instrução criminal e garantir a aplicação da lei penal. Mera indicação dos requisitos. Gravidade genérica do delito. Ausência de outro processo-crime em curso. Paciente que não apresentou comprovantes de residência e identidade. Necessidade do preenchimento dos requisitos do art. 312 do CPP. Constrangimento ilegal evidenciado. Ordem concedida.

I. O Juiz processante, ao receber o auto de prisão preventiva, deverá analisar a ocorrência dos requisitos que autorizam a prisão preventiva, nos termos do art. 312 do CPP, fazendo-se mister a confi guração empírica dos referidos requisitos, hábil a revelar a necessidade de resguardar o resultado da persecução penal.

II. Juízo valorativo sobre a gravidade genérica do crime imputado ao paciente que não constitui fundamentação idônea a autorizar a prisão cautelar, se desvinculados de qualquer fator concreto ensejador da configuração dos requisitos do art. 312 do CPP.

III. A mera menção aos requisitos legais da segregação, à necessidade de manter a credibilidade da justiça e de coibir a prática de delitos graves não se prestam a embasar a custódia acautelatória.

(...)

VI. Deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como a decisão que indeferiu o pedido de liberdade provisória, determinando-se a expedição de alvará de soltura em favor do paciente, se por outro motivo não estiver preso, sem

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 611

prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.

VII. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator (HC n. 200.677-DF, Rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, Dje de 16.05.2011).

Habeas corpus. Roubo tentado. Prisão em fl agrante. Condenação. Vedação do apelo em liberdade. Ausência de idônea fundamentação. Considerações abstratas acerca da gravidade do crime, da periculosidade do agente e da reprimenda imposta. Impossibilidade. Ausência de razoabilidade na duração da constrição cautelar. Constrangimento evidenciado.

1. A prisão provisória, dentre as quais se inclui aquela decorrente de sentença condenatória recorrível, é medida de exceção, somente podendo subsistir quando presentes e expressamente indicadas as hipóteses trazidas pelo art. 312 do Código de Processo Penal como justifi cativas para o cerceamento prévio da liberdade dos acusados.

2. Considerações acerca da gravidade abstrata do crime em tese cometido e do clamor social por ele provocado - além de menção à suposta periculosidade do réu, comprovadamente primário e sem antecedentes criminais - não são argumentos idôneos a sustentar a manutenção da medida de cautela sob a rubrica da garantia da ordem pública (Precedentes).

(...)

4. Ordem concedida, para que o paciente aguarde em liberdade o julgamento de eventuais recursos, determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu benefício, se por outro motivo não estiver preso (HC n. 182.433-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, Quinta Turma, DJe de 28.03.2011).

Oportuno ressaltar que, em audiência agendada, a defesa foi recebida por

esta relatoria, em 27.05.2011, apresentando cópia da decisão de pronúncia do

MM. Juízo do 1º Tribunal do Júri da Comarca de São Paulo-SP, que decidiu

por afastar as circunstâncias qualifi cadoras do delito, restando o réu pronunciado

por homicídio simples (art. 121, caput, do CP).

Contra tal decisão, o Ministério Público já interpôs novo Recurso em

Sentido Estrito, a ser julgado pelo eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Assim, não se vislumbra, a priori, que seja determinada a realização da

sessão de julgamento perante o Tribunal do Júri, razão pela qual, também, não se

justifi ca a manutenção da prisão preventiva.

Pelo exposto, concedo a ordem, para cassar o v. acórdão, outorgando a

liberdade provisória em favor do paciente, nos autos da Ação Penal n.

052.10.000434-4, se por outro motivo não estiver preso.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

612

Informe-se ao eminente Ministro Relator do HC n. 108.423, do excelso

Supremo Tribunal Federal, sobre os termos do presente julgado.

É como voto.

HABEAS CORPUS N. 199.729-CE (2011/0050911-7)

Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho

Impetrante: Camille Coelho Muniz

Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Ceará

Paciente: Luiz Antonio de Farias

EMENTA

Habeas corpus. Crime de responsabilidade de prefeito. Desvio de

servidores para prestação de serviço particular. Art. 1º, II do DL n.

201/1967. Pena de 06 anos de reclusão, em regime inicial semiaberto.

Inadmissibilidade de dosimetrar-se a pena-base acima do mínimo

legal com fundamento em elementos do próprio tipo. Entendimento

consolidado no STF e no STJ. Gravidade concreta da conduta do

agente não evidenciada com dados objetivos. Afi rmação de maus

antecedentes em face de inquéritos e ações penais em curso. Súmula n.

444-STJ. Ressalva do ponto de vista do relator. Parecer do MPF pela

denegação do writ. Habeas corpus deferido para, mantida a condenação

do paciente, decotar-se da pena o aumento derivado da consideração

daqueles elementos.

1. A pena deve ser fi xada com estrita observância dos arts. 59 e

68 do CPB, porquanto a fuga aos parâmetros estabelecidos legalmente

ou a ausência de justa fundamentação no primeiro momento da

dosimetria constitui constrangimento ilegal sanável pela via do habeas

corpus, quando não houver necessidade de dilação probatória, pois

pode submeter o apenado a prisão por tempo superior ao que seria

admissível e adequado para a prevenção e reprovação do delito.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 613

2. É entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça

que não se admite que elementos integrantes do próprio tipo criminal

sejam considerados como fatores de justificação da exacerbação

da sanção para além do seu mínimo legal, em atenção à garantia

processual penal que veda a duplicidade de avaliação desses elementos,

expressa na vetusta e conhecida locução ne bis in idem.

3. A jurisprudência das Cortes Superiores afirma que há

constrangimento ilegal quando Ações Penais e Inquéritos Policiais

em curso são considerados na majoração da pena-base, a título de

maus antecedentes, má conduta social ou personalidade voltada para o

crime, orientação a ser seguida, neste caso, com a ressalva do ponto de

vista do Relator, em face da Súmula n. 444-STJ.

4. A motivação egoística do agente e a obtenção de proveito ilícito

com a prática do delito constituem elementos essenciais do tipo do art.

1º, II do DL n. 201/1967; as circunstâncias e a gravidade do ilícito

devem ser estimadas com fundamento em dados concretos, reveladores

da intensidade do dolo objetivamente evidenciado na conduta do

agente, e não apenas em referências vagas e na consideração abstrata

da relevância do número de servidores supostamente desviados ou da

lesão patrimonial resultante dessa mesma conduta, neste caso, aliás,

não demonstrada.

5. Parecer ministerial pela denegação da ordem.

6. Ordem de habeas corpus que se defere para, mantida a

condenação do paciente, decotar-se da pena a ele imposta a elevação

quantitativa que decorreu da consideração de elementos do tipo e de

referências vagas a respeito das circunstâncias e das consequências do

crime, bem como excluir da pena-base o acréscimo relativo aos maus

antecedentes que derivou de Ações Penais ou Inquéritos Policiais

inconclusos.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, conceder a ordem, nos termos do voto

do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Jorge Mussi, Adilson Vieira Macabu

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

614

(Desembargador convocado do TJ-RJ) e Gilson Dipp votaram com o Sr.

Ministro Relator.

Ausente, justifi cadamente, a Sra. Ministra Laurita Vaz.

Brasília (DF), 05 de maio de 2011 (data do julgamento).

Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Relator

DJe 13.05.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho: 1. Trata-se de habeas corpus,

com pedido de liminar, impetrado em favor de Luiz Antônio de Farias, em

adversidade ao acórdão proferido pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado

do Ceará que negou provimento ao apelo defensivo, nos termos da seguinte

ementa:

Apelação criminal. Crime de responsabilidade. Art. 1º, inciso II, do Decreto-Lei n. 201/1967. Ex-prefeito. Preliminar de nulidade. Acórdão substituído por sentença do juízo de primeiro grau. Manutenção da decisão colegiada. Impossiblidade. Ausência de provas. Improcedência.

I - Findo o mandato eletivo do prefeito municipal, não há que se falar mais em foro por prerrogativa de função, em virtude da inconstitucionalidade do artigo 84, § 1º do CPP, declarada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de ação direta com efeitos ex tunc.

II - Havendo provas sufi cientes que apontam para a ocorrência do crime de responsabilidade, em especial, o grande número de depoimentos testemunhais, não há que se falar em ausência de provas.

III - Existência de circunstâncias judiciais desfavoráveis autoriza a fi xação da pena acima do mínimo legal. In casu, a pena-base, fi xada acima do limite mínimo, foi devidamente fundamentada pelo juiz a quo.

IV - Apelo improvido (fl s. 17).

2. Infere-se dos autos que o paciente foi condenado, como incurso nas

sanções do art. 1º, II da Lei n. 201/1967, à pena de 06 anos de reclusão, em

regime inicial semiaberto, por ter, na qualidade de Prefeito do Município

de Hidrolândia, utilizado indevidamente, em diversas ocasiões, os servidores

públicos municipais em atividades particulares, em proveito próprio.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 615

3. Aduz a impetração, em síntese, ilegalidade na fi xação da pena-base do paciente, estabelecida em 06 anos de reclusão, porquanto utilizados processos em andamento para configurar maus antecedentes, em contraposição à jurisprudência uníssona desta Corte (Súmula n. 444-STJ). Afirma, ainda, ser inadmissível a consideração das circunstâncias e consequências do delito como desfavoráveis com base em elementos próprios do tipo penal, citando jurisprudência em abono de sua tese.

4. Deferida a liminar (fl s. 35-37), o MPF, em parece subscrito pelo ilustre Subprocurador-Geral da República Francisco Dias Teixeira manifestou-se pela denegação da ordem (fl s. 47-51).

5. É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (Relator): 1. Aduz a impetração,

em síntese, ilegalidade na fi xação da pena-base do paciente, estabelecida em 06

anos de reclusão, porquanto utilizados processos em andamento para confi gurar

maus antecedentes, em contraposição à jurisprudência uníssona desta Corte

(Súmula n. 444-STJ). Afirma, ainda, ser inadmissível a consideração das

circunstâncias e consequências do delito como desfavoráveis com base em

elementos próprios do tipo penal, citando jurisprudência em abono de sua tese.

2. É de se ter claro que se a pena deve ser fi xada com estrita observância

dos arts. 59 e 68 do CPB. A fuga dos parâmetros estabelecidos legalmente ou a

ausência de fundamentação válida no momento da dosimetria da pena constitui

constrangimento ilegal passível de ser sanado por meio de habeas corpus, sempre

que não houver necessidade de dilação probatória, pois pode submeter o apenado

a prisão por tempo superior ou inferior ao que seria admissível e adequado para

a prevenção e reprovação do delito. Nesse sentido:

Habeas corpus. Dosimetria. Incêndio em casa habitada. Pena-base. Aplicação acima do mínimo legalmente previsto. Manutenção pelo Tribunal de origem. Possibilidade de exame na via do remédio constitucional. Culpabilidade acentuada, motivos e consequências do crime. Circunstâncias judiciais desfavoráveis. Sanção motivada. Coação ilegal não demonstrada.

1. A revisão da pena imposta pelas instâncias ordinárias via habeas corpus é possível, mas somente em situações excepcionais, de manifesta ilegalidade ou abuso de poder reconhecíveis de plano, sem maiores incursões em aspectos circunstanciais ou fáticos e probatórios.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

616

2. A aplicação da pena-base acima do mínimo encontra-se justifi cada pela consideração não somente da culpabilidade acentuada do paciente, mas também em razão da presença de outras circunstâncias judiciais desfavoráveis, como os motivos e consequências do ilícito.

3. Ordem denegada (HC n. 111.341-MS, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 09.11.2009).

3. Ao fi xar a pena-base do paciente, o Magistrado sentenciante assim

dispôs:

Culpabilidade evidenciada em delito punido com reclusão.

O réu é primário, mas registra vasta folha de antecedentes criminais e já foi inclusive condenado em outros processos, ainda não transitados em julgado (v.g. Proc. n. 2004.3.5344-6).

Não há elementos nos autos para avaliar a conduta social/personalidade do agente. O delito foi cometido por motivos ambiciosos e egoísticos, as circunstâncias do crime são igualmente desfavoráveis ao agente, que se utilizou de grande número de servidores públicos em seu benefício particular. As conseqüências do delito são graves eis que foram utilizados, e não devolvidos, substanciais recursos públicos.

Tendo analisado as circunstâncias judiciais, tenho como necessária e sufi ciente para reprovação e prevenção do crime, nos termos do art. 59 do Código Penal, a fi xação da pena-se em 06 (seis) anos de reclusão, fi cando acima do mínimo legal (02 anos), contudo bem abaixo do máximo (12 anos), em razão da existência de diversas circunstâncias desfavoráveis ao agente (fl s. 15-16).

4. Cumpre destacar que compartilho do entendimento de que Ações Penais em andamento, principalmente quando (a) há decisão condenatória em

primeiro grau e (b) os fatos são contemporâneos e relacionam-se a delitos de espécies

semelhantes a que originou a condenação, bem como Inquéritos Policiais em curso, constituem dados objetivos da biografi a do acusado, servindo como referência segura na primeira fase da dosimetria da pena.

5. Assim, mais do que as outras circunstâncias judiciais do art. 59 do CPB, frutos da avaliação subjetiva do Magistrado, sempre cercada de incertezas, a existência de Ações Penais e Inquéritos Policiais serve melhor ao critério da segurança jurídica, pois sem esses dados deixam-se as variáveis da dosimetria insubmissas a critérios objetivos de controle, com prejuízo para o condenado.

6. Revela-se desproporcional e até mesmo injusto considerar-se primário e possuidor de bons antecedentes não só aquele que jamais respondeu a outro processo como o que possui diversas Ações Penais e algumas condenações que,

por questões processuais, ainda não lograram transitar em julgado.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 617

7. Todavia, a jurisprudência das Cortes Superiores afirma que há

constrangimento ilegal quando Ações Penais em andamento e Inquéritos

Policiais em curso são considerados na majoração da pena-base, a título de

maus antecedentes, má conduta social ou personalidade voltada para o crime.

Confi ram-se, a propósito, o seguintes julgados:

Penal. Habeas corpus. Art. 14 da Lei n. 10.826/2003. Dosimetria. Pena-base acima do mínimo legal. Fundamentação inadequada. Pena aquém do mínimo. Atenuante. Impossibilidade. Súmula n. 231-STJ. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

1. A pena deve ser fi xada com fundamentação concreta e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre convencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c.c. o art. 93, inciso IX, segunda parte da Lex Maxima). Ela não pode ser estabelecida acima do mínimo legal com supedâneo em referências vagas e dados não explicitados (Precedentes do STF e STJ).

2. In casu, verifica-se que a r. decisão de primeiro grau apresenta em sua fundamentação incerteza denotativa ou vagueza, carecendo, na fixação da resposta penal, de fundamentação objetiva imprescindível.

3. Em respeito ao princípio da presunção de inocência, inquéritos e ações penais em andamento, por si, não podem ser considerados como maus antecedentes, sendo inadequada sua valoração em sede de conduta social ou culpabilidade, para fi ns de exacerbação da pena-base (Precedentes).

(...).

Ordem concedida para fi xar a pena privativa de liberdade em 02 (dois) anos de reclusão e determinar que o e. Tribunal a quo fi xe as condições que entender de direito para a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (HC n. 103.021-DF, Rel. Min. Felix Fischer, DJU 29.09.2008).

Habeas corpus. Direito Penal. Crime de roubo circunstanciado. Condenação. Dosimetria da pena. Inidoneidade da fundamentação judicial apresentada para justifi car, no caso, as circunstâncias desfavoráveis do acusado. Culpabilidade, maus antecedentes e personalidade delitiva. Precedentes do STJ.

1. O julgador deve, ao individualizar a pena, examinar com acuidade os elementos que dizem respeito ao fato, para aplicar, de forma justa e fundamentada – observado o critério trifásico –, a reprimenda que seja necessária e sufi ciente para reprovação do crime.

2. Consoante jurisprudência desta Corte, em respeito ao princípio da presunção de inocência, inquéritos e processos em andamento não podem ser considerados como maus antecedentes para majorar a pena-base, assim como processos com trânsito em julgado emanados de fatos posteriores aos narrados na denúncia.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

618

Resta, assim, evidenciada a ilegalidade na exasperação da pena-base, no que diz respeito aos maus antecedentes.

3. Da mesma forma, não se afigura adequada a majoração da pena-base em razão da personalidade delitiva e da culpabilidade do agente pela falta de indicação de elementos sufi cientes para a sua aplicação.

4. Ordem concedida para afastar da condenação o acréscimo da pena-base em razão do reconhecimento indevido dos maus antecedentes e da personalidade do ora Paciente. E, de ofício, concedida para afastar, também na primeira fase de aplicação da pena, o aumento empregado em razão da culpabilidade, diante da ausência de fundamentação adequada (HC n. 72.024-DF, Rel. Min. Laurita Vaz, DJU 30.06.2008).

Habeas corpus. Roubo agravado. Emprego de arma, concurso de agentes e restrição à liberdade das vítimas. Dosimetria. Pena-base. Má personalidade. Consideração de condenações ainda não transitadas em julgado. Descabimento. Paciente tecnicamente primário. Constrangimento ilegal evidenciado.

1. Não podem ser consideradas, para caracterização de maus antecedentes, má personalidade ou má conduta social, condenações ainda sem trânsito em julgado, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência. Precedentes deste STJ (...) (HC n. 103.020-DF, Rel. Min. Jorge Mussi, 03.08.2009).

8. A matéria, inclusive, foi objeto de enunciado sumular desta Corte

Superior, Enunciado n. 444 da Súmula de Jurisprudência deste STJ, segundo o

qual é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar

a pena-base.

9. Dessa forma, atento à função primordial desta Corte de ser a diretriz

uniformizadora da jurisprudência nacional, ressalvo o meu ponto de vista

pessoal para aderir ao posicionamento dominante e expungir da pena-base o

acréscimo relativo aos maus antecedentes.

10. Por outro lado, o ilustre Magistrado singular utiliza-se de referências

vagas e inerentes ao próprio tipo penal quando do aumento da pena-base acima

do mínimo legal com relação à valoração dos motivos, considerados ambiciosos

e egoísticos.

11. Nesse particular, é fi rme o entendimento desta Corte de que elementos

próprios do tipo penal não podem ser utilizados como circunstâncias judiciais

desfavoráveis para o fi m de majorar a pena-base, sob pena de bis in idem. Vê-se

que, in casu, o MM. Juiz de primeiro grau embasou em elemento próprio do

crime para elevar a pena-base, o que não se coaduna com a sistemática admitida

pela legislação penal.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 619

12. A motivação egoística do agente e a obtenção de proveito ilícito com a

prática do delito constituem elementos essenciais do tipo do art. 1º, II do DL

n. 201/1967; as circunstâncias e a gravidade do ilícito devem ser estimadas

com fundamento em dados concretos, reveladores da intensidade do dolo

objetivamente evidenciado na conduta do agente, e não apenas em referências

vagas e na consideração abstrata da relevância do número de servidores

supostamente desviados ou da lesão patrimonial resultante dessa mesma

conduta, neste caso, aliás, não demonstrados.

13. Assim, fi xa-se a pena-base no mínimo legal, 02 anos de reclusão,

tornando-a assim defi nitiva em razão da ausência de circunstâncias agravantes

e atenuantes ou de causas de aumento ou diminuição; anoto que a motivação

egoística e a obtenção de proveitos ilícitos constituem sem dúvida alguma

elementos próprios do tipo penal, vale dizer, sem a presença desses elementos,

seria questionável a própria confi guração do crime do art. 1º, II do DL n.

201/1967.

14. Diante da redução pena, merece, ainda, pequeno ajuste o regime

prisional fi xado. O regime a ser considerado, no caso, em razão do quantum da

pena aplicada, é o aberto.

15. Ante o exposto, concede-se a ordem de habeas corpus para, mantida a

condenação do paciente, decotar-se da pena imposta a elevação quantitativa que

decorreu da consideração de elementos do tipo e de referências vagas a respeito

das circunstâncias e das consequências do crime, bem como, com ressalva do

ponto de vista do relator, excluir da pena-base o acréscimo relativo aos maus

antecedentes que derivou de Ações Penais ou Inquéritos Policiais inconclusos.

16. É o voto.

RECURSO EM HABEAS CORPUS N. 23.500-SP (2008/0092455-0)

Relator: Ministro Jorge Mussi

Recorrente: Sérgio Scabora

Advogado: Rogério Delphino de Britto Catanese e outro(s)

Recorrido: Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

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620

EMENTA

Recurso ordinário em habeas corpus. Uso de documento

ideologicamente falsifi cado e peculato (artigos 304 e 312, caput, do

Código Penal). Cartões de ponto supostamente falsifi cados utilizados

em processo trabalhista. Competência da Justiça Federal.

1. O uso de documento ideologicamente falso em processo

trabalhista extrapola a simples esfera de interesses individuais dos

litigantes, pois evidencia a intenção de induzir em erro a Justiça do

Trabalho.

2. No caso dos autos, ao valer-se de cartões de ponto em tese

ideologicamente falsifi cados perante a Justiça Trabalhista para obter

verbas que foram consideradas improcedentes, o recorrente ofendeu

diretamente a prestação jurisdicional, ou seja, serviço público federal,

motivo pelo qual compete à Justiça Federal, nos termos do artigo 109,

inciso IV, da Constituição Federal, processar e julgar o delito de uso

de documento falso. Doutrina. Precedentes.

Efeitos do reconhecimento da incompetência da Justiça Estadual.

Anulação da sentença condenatória proferida pelo juízo incompetente.

Possibilidade de ratifi cação dos atos processuais anteriores.

1. Conquanto o tema ainda enseje certa controvérsia, prevalece

o entendimento de que, constatada a incompetência absoluta, os

autos devem ser remetidos ao Juízo competente, que pode ratifi car

ou não os atos já praticados, nos termos do artigo 567 do Código de

Processo Penal, e 113, § 2º, do Código de Processo Civil. Doutrina.

Precedentes.

2. Na hipótese em exame, já foi proferida sentença condenatória

pelo Juízo absolutamente incompetente, no que se refere a delito de

uso de documento falso, pelo que se impõe a anulação tão somente

do édito repressivo quanto ao ponto, facultando-se a ratifi cação, pela

Justiça Federal, dos demais atos processuais anteriormente praticados,

inclusive os decisórios não referentes ao mérito da causa.

3. Anulada a condenação no que tange ao ilícito de falso, resta

prejudicado o exame da alegação de ausência de perícia nos cartões

de ponto, pois caberá à autoridade judiciária federal confi rmar ou não

os atos previamente realizados no feito, ou seja, somente se poderá

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 621

vislumbrar alguma ilegalidade a ser reparada se houver a validação,

pelo Juízo competente, de tudo quanto foi feito no processo até então.

Inexistência de conexão entre os crimes de falso e de peculato. Não

incidência da Súmula n. 122 do Superior Tribunal de Justiça. Competência

da Justiça Estadual para processar e julgar o paciente no que se refere ao

delito previsto no artigo 312 do Código Penal.

1. Muito embora o Enunciado da Súmula n. 122 deste Superior

Tribunal de Justiça estabeleça que “compete à Justiça Federal o

processo e o julgamento unifi cado dos crimes conexos de competência

federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código

de Processo Penal”, o certo é que no caso em apreço não se pode falar

que os delitos em tese praticados pelo paciente sejam conexos, não se

enquadram em nenhuma das hipóteses de conexão previstas no artigo

76 do Código de Processo Penal.

2. Assim, não há quaisquer motivos que justifi quem a competência

da Justiça Federal para apreciar o crime de peculato em tese cometido

pelo recorrente, cujo exame permanece na esfera da Justiça Estadual.

Peculato-apropriação (artigo 312, caput, do Código Penal). Acusado

que teria se apropriado de cartões de ponto pertencentes à autarquia

municipal da qual era superintendente. Ausência de valor patrimonial

dos bens supostamente apropriados. Necessidade de que a coisa objeto do

peculato tenha expressão econômica. Falta de justa causa para a persecução

criminal. Trancamento da ação penal. Recurso provido.

1. O crime de peculato-apropriação encontra-se disposto no caput

do artigo 312 do Código Penal, verbis: “apropriar-se o funcionário

público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou

particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em

proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa”.

2. Conquanto a moralidade administrativa também seja tutelada

no peculato, nele se exige que a Administração Pública sofra algum

dano patrimonial.

3. Tal como como nos crimes contra o patrimônio, o objeto

jurídico do delito contido no artigo 312 do Código Penal deve ter

expressão econômica, ou seja, a coisa móvel, assim como o dinheiro e

o valor, precisa ter signifi cação patrimonial.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

622

4. Isso porque o que diferencia o peculato dos ilícitos patrimoniais

previstos no Código Penal é o fato de que nele o delito é praticado por

funcionário público, prevalecendo-se de suas funções, e em violação

a um dever de fi delidade que existe entre ele e o órgão ao qual está

vinculado.

5. Desse modo, embora o peculato tutele a moralidade

administrativa, não se pode olvidar que mantém sua natureza

patrimonial, distinguindo-se dos crimes contra o patrimônio em razão

da qualidade do sujeito ativo, do título da posse e da pluralidade de

condutas, razão pela qual nele também se exige que o objeto material

tenha expressão econômica, sob pena de atipicidade da conduta.

6. Na hipótese vertente, o recorrente foi condenado porque

teria se apropriado de cartões de ponto de autarquia da qual era

superintendente. No entanto, os mencionados comprovantes de

horário não possuem, em si, qualquer signifi cação econômica, sendo

desprovidos de valor patrimonial, não podendo, assim, ser objeto do

crime de peculato-apropriação.

7. Desse modo, vislumbra-se a ausência de justa causa para a ação

penal no que se refere ao crime previsto no caput do artigo 312 do

Código Penal, pelo que se impõe o trancamento da ação penal quanto

ao ponto.

8. Recurso provido para, reconhecendo a competência da Justiça

Federal para processar e julgar o crime de uso de documento falso, anular

a sentença condenatória proferida pelo Juízo Estadual, facultando-se a

ratifi cação dos atos processuais anteriormente praticados, bem como

para trancar a ação penal no tocante ao crime de peculato-apropriação,

ante a ausência de justa causa para a persecução penal.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta

Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas

taquigráfi cas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos

do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Adilson Vieira Macabu

(Desembargador convocado do TJ-RJ), Gilson Dipp, Laurita Vaz e Napoleão

Nunes Maia Filho votaram com o Sr. Ministro Relator.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 623

Sustentou oralmente: Dr. Adib Kassouf Sad (p/ recte).

Brasília (DF), 05 de maio de 2011 (data do julgamento).

Ministro Jorge Mussi, Relator

DJe 24.06.2011

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Jorge Mussi: Trata-se de recurso ordinário em habeas

corpus interposto por Sérgio Scabora, contra acórdão proferido pela 15ª Câmara

do 7º Grupo da Seção Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo, que denegou a ordem nos autos do HC n. 1.124.822.3/9-00, mantendo

a condenação do paciente à pena de 04 (quatro) anos e 02 (dois) meses de

reclusão, em regime semiaberto, além do pagamento de 31 (trinta e um) dias-

multa, pela suposta prática dos delitos previstos nos artigos 304 e 312, caput, do

Código Penal.

Segundo consta dos autos, o paciente foi denunciado e posteriormente

condenado porque teria usado cartões de ponto ideologicamente falsos nos

autos de reclamação trabalhista, além de ter se apropriado, em proveito próprio,

de bem móvel de que tinha a posse em razão do cargo, já que teria subtraído os

documentos comprobatórios de seu horário de trabalho da autarquia municipal

em que exercia a função de superintendente.

Alega o recorrente a incompetência da Justiça Estadual para processá-lo

e julgá-lo, uma vez que o suposto uso de documento ideologicamente falso

teria ocorrido nos autos de ação trabalhista ajuizada perante Vara do Trabalho,

vinculada ao Tribunal Regional do Trabalho, o que atrairia a competência da

Justiça Federal para apreciar o feito.

Sustenta que a ação penal em tela seria absolutamente nula em face da

inequívoca defi ciência de defesa, já que o advogado que o patrocinou durante o

processo não teria se manifestado acerca da impugnação do Ministério Público

à oitiva de uma testemunha e não teria acompanhado a audiência de inquirição

de pessoa arrolada pelo acusado, além de ter apresentado alegações fi nais em

descompasso com o teor dos fatos narrados na denúncia, e de ter oferecido

recurso de apelação intempestivamente.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

624

Defende a existência de mácula no processo em face da inobservância do

disposto no artigo 514 do Código de Processo Penal, que prevê o oferecimento

de defesa preliminar nos crimes de responsabilidade praticados por funcionários

públicos.

Afirma que não se teria demonstrado o suposto objeto do peculato,

tampouco o valor do prejuízo em tese acarretado, e que, na espécie, deveria

incidir o princípio da insignifi cância.

Argumenta que não teria sido realizada a perícia dos cartões de ponto,

e que tal prova seria indispensável para a comprovação do delito de falsidade

ideológica.

Aponta que o defensor teria sido intimado da sentença condenatória antes

do próprio acusado, o que confi guraria nulidade.

Assevera que não haveria provas da prática de conduta típica e antijurídica,

o que revelaria a necessidade de absolvição, que o crime de falsidade deveria ser

absorvido pelo de falsidade, e que a pena-base teria sido ilegalmente fi xada acima

do mínimo legal, pois inexistentes quaisquer justifi cativas para a majoração da

reprimenda.

Requer o provimento do recurso para se seja declarada a nulidade do

processo ou, alternativamente, para que seja reduzida a sanção imposta ao

recorrente.

Contra-arrazoada a irresignação (fls. 315-321), o Ministério Público

Federal, em parecer de fl s. 329-340, manifestou-se pelo desprovimento do

inconformismo.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Jorge Mussi (Relator): Conforme relatado, com este recurso

ordinário constitucional pretende-se, em síntese, a decretação da nulidade da

ação penal que culminou com a condenação do recorrente ou, alternativamente,

a redução da pena que lhe foi imposta.

Segundo consta dos autos, o recorrente foi acusado da prática dos delitos

de uso de documento ideologicamente falso e de peculato, extraindo-se da peça

acusatória os seguintes trechos:

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 625

Consta do incluso inquérito policial que no dia 19 de abril de 2001, no Fórum Trabalhista de Amparo, localizado na Rua Prudente de Morais, n. 286, Centro, nesta cidade e Comarca, Sérgio Scabora, qualifi cado às fl s. 328, fez uso de documento falso, nos autos da Ação Trabalhista n. 352/2001, apresentando documento que sabidamente continha informações não verídicas.

Conforme se apurou, o acusado trabalhou como Superintendente do SAAE de Amparo no período de 1º.01.1997 até 31.05.2000. Na data dos fatos ingressou com ação trabalhista em face da autarquia pedindo, dentre outras coisas, pagamento de horas extras e férias não gozadas.

Ocorre, que, na qualidade de chefe máximo da autarquia, pediu para que o porteiro do SAAE batesse seu cartão de ponto sempre por volta das 06:00 h. e, novamente, às 18:00, inclusive aos sábados, domingos e feriados.

Porém, o denunciado não trabalhava em tempo integral todos os dias da semana, sequer tirando férias. Tais documentos públicos, já pertencentes à autarquia, usados pelo acusado, contêm informações que confi guram falsidade ideológica.

Consta também do incluso inquérito policial que, em data e horário não determinados de maio de 1999, no interior da autarquia SAAE, localizada na Rua José Bonifácio, n. 300, Centro, nesta cidade e Comarca, o acima acusado, Sergio Scabora, na qualidade de funcionário público, apropriou-se de bem móvel de que tinha a posse em razão do cargo, em proveito próprio.

Conforme se apurou, aproveitando-se do cargo de Superintendente da SAAE, o denunciado subtraiu da autarquia documentos comprobantes do horário de trabalho, mais comumente chamados de cartões de ponto, os quais foram usados com o intuito de pedir o pagamento de horas-extras em ação trabalhista. Tais documentos, públicos, pertencem à empresa e seus empregados não podem subtraí-los nem levá-los para casa (fl s. 66-67).

Ao ofertar a denúncia, o Ministério Público Estadual se manifestou

pela inaplicabilidade, ao caso, do artigo 514 do Código de Processo Penal (fl s.

338-341 do Apenso II), tendo o magistrado de origem, ao receber a denúncia,

afastado a necessidade de apresentação de defesa preliminar, sob o fundamento

de que o acusado não mais exercia cargo público no SAAE (fl . 400 do Apenso

II).

Após a instrução (fl s. 453-457, 466-468, 479-483 e 492-493 do Apenso

III), as partes ofertaram alegações fi nais (fl s. 499-512 e 517-529 do Apenso

III), sobrevindo sentença na qual o recorrente restou condenado à pena de 04

(quatro) anos e 02 (dois) meses de reclusão, em regime semiaberto, além do

pagamento de 31 (trinta e um) dias-multa, pela suposta prática dos delitos

previstos nos artigos 304 e 312, caput, do Código Penal.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

626

Após a intimação do recorrente e de seu advogado (fl s. 543-verso e 544

do Apenso III), a defesa apresentou recurso de apelação (fls. 546-575 do

Apenso III), que não foi recebido ao argumento de que seria manifestamente

intempestivo (fl s. 577-587 do Apenso III).

Irresignado, o recorrente ofertou recurso em sentido estrito (fl s. 589-601

do Anexo III), o qual também não foi recebido ante a interposição fora do prazo

legal (fl s. 630-636 do Apenso III).

Ainda inconformada, a defesa requereu carta testemunhável, a qual foi

julgada incabível pelo Juízo de origem, consoante a decisão de fl s. 245-248.

Remetidos os autos ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a 15ª

Câmara do 7º Grupo da Seção Criminal negou provimento ao recurso, em

acórdão que foi assim resumido:

Carta testemunhável. Inconformismo com decisão que não recebeu recurso em sentido estrito, que, por sua vez, foi interposto contra decisão de não recebeu recurso de apelação de sentença condenatória. Inadmissibilidade. Intempestividade do recurso em sentido estrito impede o seu conhecimento. Requisito de admissibilidade recursal que não comporta exceção em nosso sistema processual. Recurso improvido.

Inicialmente, no que se refere à apontada incompetência da Justiça

Estadual para processar e julgar o recorrente, tem-se que a irresignação merece

parcial acolhida, vislumbrando-se a competência da Justiça Federal para apreciar

o feito apenas no que se refere ao crime de uso de documento ideologicamente

falso.

Com efeito, consoante consta dos anexos apensados aos autos, os cartões de

ponto supostamente falsifi cados ideologicamente e subtraídos pelo recorrente

da autarquia municipal foram utilizados em reclamação trabalhista ajuizada

perante a Vara do Trabalho de Amparo-SP.

Ao julgar a mencionada ação, a Justiça Trabalhista considerou inválidos os

cartões de ponto, sob os seguintes argumentos:

Os cartões de ponto de fl s. 11-18, juntados aos autos pela reclamante, de propriedade da Autarquia Municipal reclamada, são considerados inválidos, formal e materialmente, pelo Juízo ao desiderato de comprovar a jornada de trabalho praticada pelo reclamante.

Inicialmente, necessário dizer-se da impropriedade dos cartões de ponto de fl s. 11-18, de propriedade da reclamada, permanecerem na posse do reclamante.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 627

Os documentos de fl s. 11-18, trazendo o timbre da reclamada S.A.A.E. Serviço Autônomo de Água e Esgotos Amparo-SP, assim como os documentos de fl s. 123-196, são, inegavelmente, de propriedade da reclamada e não há qualquer justifi cativa válida para que permanecessem na posse do reclamante.

A posse indevida de cartões ponto pelo reclamante face à susceptibilidade de adulteração lança, sobre os cartões de fl s. 11-18, ainda que de forma presumida, o estigma de invalidade.

Em segundo lugar, os documentos de fl s. 11-18 não foram, sequer, assinados pelo reclamante. A assinatura do empregado, no cartão de ponto, é tida, por este Juízo, como condição mínima de autenticidade art. 131, caput, do Código Civil e art. 74, § 2º da CLT.

Nesse sentido, Valentin Carrion, em Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, 26ª edição, 2001, fl. 123 (Registro de entrada e saída. Deve ser anotado pelo próprio empregado e, sendo mecânico, conterá sua assinatura, para autenticá-lo.

Em terceiro lugar, os cartões de ponto de fl s. 11-18 não foram preenchidos pelo próprio reclamante.

Reconheceu o reclamante, fl. 26, que: o batimento dos cartões de ponto, juntados com a inicial, era feito pelo vigia e não pelo reclamante; mesmo que o reclamante estivesse em viagem em serviço, o vigia anotaria seu cartão ponto, sem necessidade da presença física do reclamante na empresa.

A segunda testemunha do reclamante informou, f. 28: primeiramente, que quando o reclamante não anotava o cartão ponto o depoente era solicitado pelo reclamante para que o fi zesse; ao depois, que o próprio depoente preencheu os cartões de ponto juntados com a inicial.

Os cartões de ponto de fls. 11-18, além de não serem preenchidos pelo reclamante, eram anotados sem a presença física do reclamante no estabelecimento da reclamada.

De se indagar como o vigia, responsável pela anotação dos horários de trabalho do reclamante em cartão de ponto, saberia com certeza: quais os horários praticados pelo reclamante quando em viagem em serviço; que o reclamante estivesse viajando em serviço.

Em quarto lugar, muitos dos cartões de ponto de fl s. 11-18 sequer trazem a indicação do período de tempo (mês/ano) a que se referem (...).

Em quinto lugar, mesmo os cartões de fls. 11-18 que contém indicação de período de tempo (mês/ano) a que se referem, não necessariamente correspondem ao período de tempo referido.

O próprio reclamante reconheceu, em depoimento pessoal, fl s. 25-26, que: as etiquetas brancas presentes no cabeçalho dos cartões de ponto eram emitidas pelo próprio reclamante no computador de uso pessoal do reclamante; não tem

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

628

certeza, mas acredita que as etiquetas não foram todas elaboradas de uma vez; o Documento 05, fl . 11, contém palavras manuscritas pelo reclamante que foram posteriormente sobrepostas pela etiqueta; os cartões de ponto, juntados com a petição inicial, não continham a anotação dos meses a que se referiam; o depoente colocou os meses posteriormente; o depoente não tem certeza se as anotações dos meses, constantes dos cartões de ponto juntados com a inicial, correspondem aos meses efetivamente trabalhados; desta feita, o reclamante atribui possível diferença na tinta de marcação do cartão de ponto da inicial com o cartão de ponto dos demais funcionários da reclamada à imprecisão dos meses a que se referem os cartões de ponto apresentados pelo reclamante na petição inicial; atribui o fato de haver dois cartões de ponto (Documentos 08 e 09, de fl s. 11-12), referente ao mês janeiro/1998, ao fato de ter preenchido os cartões de ponto, juntados com a inicial, no que tange aos meses, no ano de 2000, as etiquetas foram confeccionadas pelo depoente após o preenchimento de muitos cartões ponto.

Em sexto lugar, o padrão de preenchimento dos cartões de ponto de fls. 11-18, juntados aos autos pelo reclamante, é totalmente diverso do padrão de preenchimento dos cartões de ponto de fl s. 123-196, juntados aos autos pela reclamada.

(...)

De todo o exposto, ante os inúmeros vícios e máculas presentes aos cartões de ponto de fl s. 11-18, este Juízo não reconhece qualquer validade: nos cartões de ponto de fl s. 11-18; nas anotações de horário presentes nos cartões de ponto de fl s. 11-18 (fl s. 388-390 do Apenso II).

Adiante, o magistrado singular aduziu que:

O reclamante permaneceu na posse indevida de documentos (cartões de ponto de fl s. 11-18) pertencentes à Autarquia Municipal reclamada, confi gurando, possivelmente, os ilícitos previstos no art. 312 e 314 do Código Penal.

Reconheceu o reclamante, em depoimento pessoal, que fez inserir as etiquetas nos cartões de ponto de fls. 11-18 a posteriori, sendo que as anotações de período de tempo assinaladas pelo reclamante em cartões de ponto não tem correspondência exata com os meses constantes dos cartões. O reclamante inseriu, em documentos públicos (fl s. 11-18), declaração diversa da que deveria ser escrita. Tem-se como possivelmente confi gurado o ilícito tipifi cado no art. 299 do Código Penal.

Determina-se, em conseqüência, após o trânsito em julgado da presente sentença, a expedição de ofício ao Ministério Público Estadual para as providências que entender cabíveis, com cópias: da petição inicial; dos documentos de fl s. 11-18 juntados aos autos pelo reclamante; da contestação; dos documentos de fl s. 123-124 juntados aos autos pela reclamada; da presente sentença (fl s. 395-396 do Apenso II).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 629

O Juízo da Vara do Trabalho de Amparo-SP encaminhou, então, à

Promotoria de Justiça local, a sentença proferida e cópia da documentação

utilizada pelo ora recorrente na reclamação trabalhista, para que fossem tomadas

as providências cabíveis (fl s. 345 do Apenso II).

Atendendo à requisição do órgão ministerial, foi instaurado inquérito

policial (fl . 307 do Apenso II), que serviu de base ao oferecimento da denúncia e

posterior condenação do recorrente na ação penal em tela.

Dessa forma, muito embora em caso de eventual procedência da ação

trabalhista fosse o Município o responsável pelos ônus da sucumbência, o certo

é que os cartões de ponto supostamente falsifi cados pelo recorrente foram

utilizados como meio de prova perante a Justiça do Trabalho.

Assim, não há que se falar em ofensa exclusiva a interesses patrimoniais

da municipalidade, pois ao valer-se dos cartões de ponto em tese subtraídos

e falsifi cados na Justiça Trabalhista para obter verbas que foram consideradas

absolutamente improcedentes, o ora recorrente ofendeu diretamente a prestação

jurisdicional, ou seja, serviço público federal.

Constata-se, portanto, o interesse da União e a consequente competência

da Justiça Federal para processar e julgar o crime de falso, nos termos do artigo

109, inciso IV, da Constituição Federal.

A propósito, confi ra-se a lição de Renato Brasileiro, na obra Competência

Criminal:

A Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar não são pessoas jurídicas, mas sim integrantes da pessoa jurídica de direito público interno que é a União, como partes do Poder Judiciário da União. Portanto, eventual delito contra elas cometido é praticado, em última análise, em detrimento do serviço jurisdicional da União, justifi cando a competência da Justiça Federal com base no art. 109, inciso IV, da CF/1988 (Salvador: Jus Podivm, 2010, p. 262).

No mesmo sentido são os precedentes da Terceira Seção desta Corte

Superior de Justiça:

Penal e Processo Penal. Confl ito negativo de competência. Falsidade ideológica em processo trabalhista. Súmula n. 165-STJ. Competência da Justiça Federal.

1. A falsidade ideológica em processo trabalhista confi gura afronta à Justiça do Trabalho, cuja competência para julgamento é da Justiça Federal, nos temos do que preceitua o Enunciado n. 165 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

630

2. Confl ito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da Vara Criminal de Passo Fundo, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, ora suscitado.

(CC n. 109.021-RS, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, julgado em 10.03.2010, DJe 19.03.2010).

Confl ito de competência. Processo Penal. Uso de documento falso como prova em processo trabalhista. Ofensa a interesse da União. Analogia com a Súmula n. 165-STJ. Competência da Justiça Federal, o suscitante.

1. Empregada a falsidade como meio de prova perante a Justiça do Trabalho, o interesse supostamente violado escapa da simples esfera individual dos litigantes na ação trabalhista.

2. Havendo clara intenção do indiciado em induzir em erro a Justiça do Trabalho, é de se reconhecer a ofensa a interesse da União e a conseqüente competência da Justiça Federal.

3. Aplicação, por analogia, da Súmula n. 165-STJ: Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de falso testemunho cometido no processo trabalhista. Precedentes.

4. Confl ito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 2ª Vara de Ribeirão Preto-SJ-SP, o suscitante.

(CC n. 85.803-SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, julgado em 08.08.2007, DJ 27.08.2007, p. 188).

Na mesma esteira já decidiu esta colenda Quinta Turma:

Habeas corpus. Processual Penal. Uso de documento falso em reclamação trabalhista. Ofensa a interesse da União. Competência da Justiça Federal. Precedentes desta Corte.

1. Na hipótese dos autos, muito embora o documento falso tenha sido utilizado pelo Paciente no intuito de afetar a relação trabalhista, a falsidade foi empregada como meio de prova perante a Justiça do Trabalho, extrapolando, portanto, a simples esfera individual dos litigantes na ação trabalhista.

2. Resta evidenciado, assim, a intenção de induzir em erro a Justiça do Trabalho, devendo, portanto, ser reconhecida a ofensa a interesse da União e, por conseguinte, a competência da Justiça Federal.

Precedentes desta Corte.

3. Ordem denegada.

(HC n. 117.722-PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 17.03.2009, DJe 13.04.2009).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 631

Ainda quanto ao ponto, é imperioso assinalar que a competência da Justiça

Federal, porque estabelecida em virtude da natureza da infração penal praticada,

é material e, como tal, é considerada absoluta, tendo como características o fato

de estar fi xada em norma constitucional, apresentando como fundamento o

interesse público, motivo pelo qual é improrrogável, podendo ser conhecida a

qualquer tempo, e até mesmo de ofício pelo juiz.

Acerca da competência absoluta, estes são os ensinamentos de Ada

Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance

Fernandes:

Nos casos de competência determinada segundo o interesse público, o sistema jurídico-processual não tolera modifi cações nos critérios estabelecidos, muito menos em virtude da vontade das partes. Trata-se aí de competência absoluta, isto é, que não pode ser modifi cada. Iniciado o processo perante o juiz incompetente, este pronunciará a incompetência, a qualquer tempo e independentemente de alegação das partes (art. 109 do CPP), enviando os autos ao juiz competente. E, segundo o Código, todos os atos decisórios serão nulos pelo vício de incompetência, salvando-se os demais atos do processo, aproveitados pelo juiz competente (art. 567 do CPP) (As nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 38).

Reconhecida a incompetência absoluta da Justiça Estadual para processar

e julgar o delito de uso de documento falso imputado ao recorrente, cumpre

examinar se a ação penal deve ser anulada na íntegra, ou se podem ser mantidos

os atos decisórios não meritórios praticados.

Conquanto o tema ainda enseje certa controvérsia, prevalece o

entendimento de que, constatada a incompetência absoluta, os autos devem ser

remetidos ao Juízo competente, que pode ratifi car ou não os atos já praticados,

nos termos do artigo 567 do Código de Processo Penal, e 113, § 2º, do Código

de Processo Civil, verbis:

Art. 567. A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.

Art. 113. A incompetência absoluta deve ser declarada de ofício e pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de exceção.

§ 2º Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

632

Sobre o tema, Renato Brasileiro assim se pronuncia:

Grande parte da doutrina entende que o dispositivo do art. 567 aplica-se exclusivamente nas hipóteses de incompetência relativa, na medida em que, nas hipóteses de incompetência absoluta, ter-se-ia a anulação dos atos decisórios e também dos atos probatórios. Nas palavras de Aury Lopes Jr., “não basta o juiz competente proferir uma nova sentença. Isso é golpe de cena. A garantia da jurisdição (incluindo o juiz natural) e do devido processo, impõe que todo processo e todos os seus atos sejam praticados na frente do juiz nauiral, competente e de forma válida”.

Não obstante, na esteira do que dispõe o Código de Processo Civil, em seu art. 113, § 2º (“declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente”), a jurisprudência sempre entendeu que, mesmo para os casos de incompetência absoluta no processo penal, somente os atos decisórios seriam anulados, sendo possível, por conseguinte, a ratifi cação dos atos não-decisórios. Ocorre que, a partir do julgamento do HC n. 83.006-SP, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir a possibilidade de ratifi cação pelo juízo competente inclusive quanto aos atos decisórios. (Op. cit., p. 53-54).

Esta tem sido a orientação adotada por esta Turma:

Habeas corpus. Processual Penal. Crime de tráfi co ilícito de entorpecentes. Denúncia originalmente recebida na Justiça Federal. Internacionalidade. Inexistência. Declinação de competência para a Justiça Comum Estadual. Ratifi cação da denúncia. Possibilidade. Ordem denegada.

1. Reconhecida a incompetência do Juízo para processar o feito, não há qualquer óbice à ratifi cação da denúncia, bem como do despacho que a recebe, no órgão jurisdicional competente.

2. Precedentes dos Tribunais Superiores.

3. Habeas corpus denegado.

(HC n. 76.946-SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 17.02.2009, DJe 16.03.2009).

Com idêntica orientação, veja-se o julgado do Supremo Tribunal Federal:

Ementa: habeas corpus. 2. Crimes de estelionato. 3. Alegações de: a) ausência de indícios de autoria e materialidade; b) falta de fundamentação da preventiva; c) violação ao princípio do juiz natural; e d) excesso de prazo da prisão preventiva. 4. Prejudicialidade parcial do pedido, o qual prossegue apenas com relação à alegada violação ao princípio do juiz natural. 5. Em princípio, a jurisprudência

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 633

desta Corte entendia que, para os casos de incompetência absoluta, somente os atos decisórios seriam anulados. Sendo possível, portanto, a ratifi cação de atos não-decisórios. Precedentes citados: HC n. 71.278-PR, Rel. Min. Néri da Silveira, 2ª Turma, julgado em 31.10.1994, DJ de 27.09.1996 e RHC n. 72.962-GO, Rel. Min. Maurício Corrêa, 2ª Turma, julgado em 12.09.1995, DJ de 20.10.1995. 6. Posteriormente, a partir do julgamento do HC n. 83.006-SP, Pleno, por maioria, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 29.08.2003, a jurisprudência do Tribunal evoluiu para admitir a possibilidade de ratifi cação pelo juízo competente inclusive quanto aos atos decisórios. 7. Declinada a competência pelo Juízo Estadual, o juízo de origem federal ao ratifi car o seqüestro de bens (medida determinada pela Justiça Comum), fez referência expressa a uma série de indícios plausíveis acerca da origem ilícita dos bens como a incompatibilidade do patrimônio do paciente em relação aos rendimentos declarados. 8. No decreto cautelar, ainda, a manifestação da Juíza da Vara Federal Criminal é expressa no sentido de que, da análise dos autos, há elementos de materialidade do crime e indícios de autoria. 9. Ordem indeferida.

(HC n. 88.262 segundo julgamento, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 18.12.2006, DJ 30.03.2007 RTJ Vol - 00201-02 p. 00682).

Na hipótese dos autos, como visto, já foi proferida sentença condenatória

pelo Juízo Estadual, absolutamente incompetente, no que se refere ao delito de

uso de documento falso, pelo que se impõe a anulação tão somente do édito

repressivo quanto ao ponto, facultando-se a ratifi cação, pela Justiça Federal, dos

demais atos processuais anteriormente praticados, inclusive os decisórios não

referentes ao mérito da causa.

Anulada a condenação no que tange ao ilícito de falso, resta prejudicado

o exame da alegação de ausência de perícia nos cartões de ponto, pois caberá à

autoridade judiciária federal confi rmar ou não os atos previamente realizados no

feito, ou seja, somente se poderá vislumbrar alguma ilegalidade a ser reparada se

houver a validação, pelo Juízo competente, de tudo quanto foi feito no processo

até então.

Por outro lado, no tocante ao crime de peculato, não se vislumbra a

incompetência da Justiça Estadual para processar e julgar o recorrente.

Isso porque, muito embora o Enunciado da Súmula n. 122 deste Superior

Tribunal de Justiça estabeleça que “compete à Justiça Federal o processo e o

julgamento unifi cado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não

se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”, o certo é que

não se pode falar que os delitos em tese praticados pelo paciente sejam conexos.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

634

Com efeito, os ilícitos de uso de documento ideologicamente falso e

de peculato, na forma como foram narrados na exordial acusatória, não se

enquadram em nenhuma das hipóteses de conexão previstas no artigo 76 do

Código de Processo Penal, verbis:

Art. 76. A competência será determinada pela conexão:

I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;

II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;

III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares infl uir na prova de outra infração.

Ora, por certo o caso dos autos não se enquadra na chamada conexão

intersubjetiva por simultaneidade, por concurso ou por reciprocidade (artigo 76,

inciso I), pois não se tratam de crimes praticados por diversos agentes, mas sim

de delito supostamente cometido única e exclusivamente pelo ora recorrente.

Também não há que se falar em conexão objetiva, lógica ou teleológica

(artigo 76, inciso II), pois as infrações em exame não foram praticadas para

facilitar ou ocultar outras, tampouco para conseguir impunidade ou vantagem

em relação a qualquer delas.

Finalmente, não se vislumbra a chamada conexão instrumental (artigo 76,

inciso III), pois a prova de cada um dos ilícitos não interfere nem infl uencia na

dos outros.

Assim, não há quaisquer motivos que justifi quem a competência da Justiça

Federal para apreciar o crime de peculato em tese cometido pelo recorrente, cujo

exame permanece na esfera da Justiça Estadual.

A propósito:

Habeas corpus. Receptação. Alegação de excesso de prazo da prisão. Pleito prejudicado. Afirmação de incompetência do juízo. Improcedência. Busca e apreensão. Inexistência de nulidade da prova.

(...)

2. O paciente é acusado de haver cometido o crime de receptação por ter guardado, juntamente com sua companheira, na sua residência, localizada na Cidade de Viamão-RS, diversas mercadorias objeto de furto.

Jurisprudência da QUINTA TURMA

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3. Se a apreensão dos objetos, apontados como receptados, se deu na Comarca de Viamão, onde se consumou a infração, ali, em princípio, deve tramitar a ação penal, segundo a regra contida no art. 70 do Código de Processo Penal.

4. É bem verdade que a existência de conexão pode conduzir ao deslocamento da competência. Todavia, o Juízo da Comarca de Viamão assentou que os fatos ali apurados guardam autonomia em relação ao que se examina no processo-crime em curso na Comarca de Canoas.

5. Nesse contexto, afigura-se acertada a tramitação, em separado, das referidas ações penais, visto que, pela leitura das denúncias, embora os feitos possam ter alguma relação, por partirem da mesma investigação policial, certo é que possuem objetos distintos. O primeiro apura fato pontual: a apreensão, na residência do ora paciente, de algumas mercadorias furtadas, sendo imputado, a ele e a sua companheira, o crime de receptação. O segundo, em curso na Comarca de Canoas, cuida de quadrilha armada composta por dezesseis pessoas, dentre elas o ora paciente, especializada na subtração de caminhões e veículos.

6. Cumpre salientar que, dentre os veículos tidos por subtraídos pela quadrilha, apurados pelo Juízo de Canoas, não consta, ao que se vê da respectiva denúncia, o caminhão cujas mercadorias teriam sido receptadas pelo paciente na cidade de Viamão, circunstância que reforça a inexistência de conexão entre os feitos.

7. Não se olvide que o Código de Processo Penal, no seu artigo 80, faculta a separação de processos, ainda que conexos, quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar distintas, ou por outro motivo relevante reputado pelo juiz.

(...)

9. Ordem parcialmente prejudicada e, na parte conhecida, denegada.

(HC n. 160.623-RS, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 16.11.2010, DJe 06.12.2010).

Cumpre analisar, subsidiariamente, as diversas máculas apontadas na

irresignação, e que contaminariam o édito repressivo prolatado contra o

recorrente no que se refere ao delito do caput do artigo 312 do Código Penal.

Contudo, antes de mais nada, é imperioso verifi car se a apropriação de

cartões de ponto pertencentes à autarquia municipal confi gura, ou não, o ilícito

previsto no artigo 312 do Código Penal.

Quanto ao ponto, sustenta-se no reclamo que não se teria demonstrado o

suposto objeto do peculato, tampouco o valor do prejuízo em tese acarretado à

municipalidade, e que, na espécie, deveria incidir o princípio da insignifi cância.

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O crime de peculato-apropriação encontra-se disposto no caput do artigo

312 do Código Penal, verbis:

Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

Sobre o bem jurídico tutelado no ilícito em análise, Cezar Roberto

Bitencourt aduz que:

Bem jurídico penalmente protegido, segundo a doutrina tradicional, é a Administração Pública, particularmente em relação a seu próprio interesse patrimonial e moral. A tutela penal pretende, na realidade, abranger dois aspectos distintos: em primeiro lugar, objetiva garantir o bom funcionamento da Administração Pública, bem como o dever do funcionário Público de conduzir-se com lealdade e probidade; em segundo, visa proteger o patrimônio mobiliário do Poder Público. Ganha, destaque, enquanto objeto da proteção penal, a probidade administrativa, embora em se tratando de crime material, não possa dispensar a produção de um dano patrimonial.

A existência abstrata ou concreta de um crime - contra a Administração Pública - pressupõe a realização de uma conduta imoral, ainda que nem toda imoralidade possa, por si só, caracterizar um delito. Pode-se afi rmar, com base nisso, que a prática de peculato caracteriza crime, em primeiro lugar, por uma lei específi ca prever a possibilidade de punição (art. 312 do CP), mas essa lei só resta legitimada porque o peculato ofende princípios fundamentais do pacto social democrático. Um servidor, por exemplo, que desvia verbas, em proveito próprio ou alheio, pratica ato de improbidade administrativa, pois, além de lesar o patrimônio do erário público, ofende os princípios gerais da Administração Pública (Código Penal Comentado. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 977).

Das lições acima reproduzidas, depreende-se que, conquanto a moralidade

administrativa também seja tutelada no peculato, nele se exige que a

Administração Pública sofra algum dano patrimonial.

Com efeito, tal como nos crimes contra o patrimônio, o objeto jurídico do

delito contido no artigo 312 do Código Penal deve ter expressão econômica,

ou seja, a coisa móvel, assim como o dinheiro e o valor, precisa ter signifi cação

patrimonial.

Nesse sentido, Alberto Silva Franco e Rui Stoco lecionam que “o objeto

material do peculato é a mesma coisa móvel de que já se falou a respeito do

Jurisprudência da QUINTA TURMA

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furto, da apropriação indébita e do roubo” (Código Penal e sua Interpretação.

Doutrina e Jurisprudência. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p.

1.435).

E, ao tratar do objeto material do delito de furto, os mencionados

doutrinadores asseveram que:

Não há furto se a coisa objeto da ação delitiva não tiver valor econômico. A antiga concepção doutrinária, calcada em Manzini, no sentido de que a coisa deve ter vallor, no mínimo afetivo, está ultrapassada diante da conscientização, na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, de que o Direito Penal deve atender aos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade. Isso porque a subtração de objeto de mero valor sentimental não induz lesão signifi cativa ao bem jurídico patrimônio, carecendo a conduta de tipicidade material. Pela mesma razão, a subtração de coisas de ínfi mo valor econômico não confi guram o crime de furto (Op. cit., p. 782).

A corroborar tal compreensão, confi ra-se, mais uma vez, a lição de Cezar

Roberto Bitencourt, que ao tratar do objeto jurídico do crime de peculato-

apropriação, consigna:

O objeto material da ação penal tipifi cada deve ser dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que o agente tem a posse (abrangendo a detenção e a posse indireta, desde que lícita) em razão do cargo (ratione offi cii). A exemplo do que ocorre com a apropriação indébita, o funcionário público apodera-se do objeto material que se encontra em sua posse, agindo como se proprietário fosse, praticando atos de animus domini. Dinheiro é elemento material descritivo do tipo; valor e outro bem móvel são elementos normativos, sendo este de valoração jurídica e aquele de valoração extrajurídica. Dinheiro pode ser representado por moeda metálica ou papel-moeda de curso legal no país; valor é qualquer título, papel de crédito ou documento negociável ou conversível em dinheiro ou mercadoria, como ações, apólices, títulos da dívida pública, vale postal, letras de câmbio, nota promissória etc. Bem móvel, fi nalmente, é toda e qualquer coisa passível de ser apreendida e deslocada de um lugar para outro (de loco ad locum). Evidentemente, a exemplo do crime de furto, a energia elétrica, ou qualquer outra forma de energia, de valor econômico, também é equiparada à coisa móvel, podendo ser igualmente objeto material do crime de peculato (Op. cit., p. 980-981).

Tem-se, assim, que no crime de peculato-apropriação, a exemplo do que

ocorre com os delitos contra o patrimônio, o objeto material deve possuir, em

si, alguma signifi cação econômica, sob pena de a conduta praticada ser atípica.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

638

Isso porque o que diferencia o peculato dos ilícitos patrimoniais previstos

no Código Penal é o fato de que nele o delito é praticado por funcionário

público, prevalecendo-se de suas funções, e em violação a um dever de fi delidade

que existe entre ele e o órgão ao qual está vinculado.

Desse modo, embora o peculato tutele a moralidade administrativa, não se

pode olvidar que mantém sua natureza patrimonial, distinguindo-se dos crimes

contra o patrimônio em razão da qualidade do sujeito ativo, do título da posse e

da pluralidade de condutas.

A propósito, merecem menção, novamente, os ensinamentos de Cezar

Roberto Bitencourt:

O crime de peculato, recepcionado pelo nosso CP, apresenta as seguintes fi guras típicas: a) peculato-apropriação (1ª parte do caput); b) peculato-desvio (2ª parte); c) peculato-furto (§ 1º); d) peculato culposo (§ 2º). O crime de peculato, na precisa descrição do caput do art. 312 - peculato próprio - consiste no apossamento ou desvio (destinação diversa), por parte de funcionário público, de coisa móvel (dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel), pública ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, em proveito próprio ou alheio.

A semelhança do crime de peculato com a apropriação indébita, que tem natureza patrimonial, é pouco mais que aparente, pois ambos apresentam uma diferença estrutural. O peculato, aparentemente uma fi gura imprópria de crime contra a Administração Pública, é mais que uma apropriação indébita qualifi cada pela condição de funcionário público do seu agente ativo. Na verdade, decorre: a) da qualidade do sujeito ativo - funcionário público, no crime de peculato; b) do título da posse, que no peculato deverá estar relacionado com o cargo ou serviço, enquanto que na apropriação indébita pode ser de qualquer natureza; c) da pluralidade de condutas previstas para as modalidades do peculato (Op. cit., p. 980).

No caso dos autos, de acordo com a inicial acusatória, o recorrente teria, “na

qualidade de funcionário público”, se apropriado “de bem móvel de que tinha a

posse em razão do cargo, em proveito próprio”, uma vez que teria subtraído da

autarquia municipal “documentos comprovantes de horário de trabalho, mais

comumente chamados de cartões de ponto, os quais foram utilizados com o

intuito de pedir o pagamento de horas extras em ação trabalhista” (fl . 67).

Ao condenar o recorrente, o Juízo de origem, sem tecer quaisquer

comentários sobre a natureza dos bens objeto do crime em tese cometido,

afi rmou que “não resta a menor dúvida de que o réu apropriou-se, indevidamente,

dos referidos documentos, de modo que praticou o crime previsto no art. 312,

caput, do Código Penal” (fl . 125).

Jurisprudência da QUINTA TURMA

RSTJ, a. 23, (223): 559-640, julho/setembro 2011 639

Por sua vez, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao repelir a

alegação de que não teria sido apontado o valor do objeto do peculato, atestou

que “tanto nos casos de furto como de peculato, o que importa não é o valor

da coisa em si, mas o que ela pode representar”, asserindo que, na hipótese em

tela, “o cartão de ponto subtraído, efetuada sua alteração, poderia resultar em

prejuízos elevados à Municipalidade”, tanto que só de horas extras indevidas o

recorrente teria pleiteado, na Justiça Trabalhista, o pagamento de R$ 96.536,70

(fl . 259).

Como visto, o recorrente foi condenado porque teria se apropriado de

cartões de ponto de autarquia da qual era superintendente. No entanto, os

mencionados comprovantes de horário não possuem, em si, qualquer signifi cação

econômica, sendo desprovidos de valor patrimonial.

De fato, não se pode afirmar, como pretendeu a Corte a quo, que a

destinação dada aos mencionados documentos comprovariam a sua importância,

e que o valor da coisa propriamente dita seria irrelevante para a caracterização

do delito de peculato, bastando que o objeto pudesse ter alguma representação

econômica.

Consoante asseverado alhures, para que reste confi gurado o crime de

peculato-apropriação, é imprescindível que o funcionário público se aproprie

de coisa que possua signifi cação patrimonial, de modo que simples cartões de

ponto, ainda que posteriormente utilizados para pleitear verbas trabalhistas

indevidas, não podem ser considerados como objeto material do ilícito em tela,

porque não possuem qualquer valor monetário, já que, por si só, não são capazes

de representar acréscimo ao patrimônio do agente ou de quem quer que seja.

Nessa ordem de ideias, é imperioso consignar que, ainda que não se admita

a aplicação do princípio da insignifi cância nos crimes contra a Administração

Pública, o certo é que no peculato-apropriação o bem objeto da conduta do

funcionário público deve possuir, em si mesmo, algum signifi cado patrimonial,

ainda que ínfimo, o que não se verifica no tocante aos comprovantes de

frequência supostamente apropriados indevidamente pelo ora recorrente.

Desse modo, vislumbra-se a ausência de justa causa para a ação penal no

que se refere ao crime previsto no caput do artigo 312 do Código Penal, pelo que

se impõe o trancamento da ação penal quanto ao ponto.

Trancado o feito com relação ao crime de peculato-apropriação, resta

prejudicado o exame das alegações de nulidade da ação penal por defi ciência

de defesa, pela inobservância do artigo 514 do Código de Processo Penal, pela

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

640

inversão na ordem de intimação do acusado e de seu defensor, e pela ilegalidade

na dosimetria da pena.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso para, reconhecendo a competência

da Justiça Federal para processar e julgar o crime de uso de documento falso,

anular a sentença condenatória proferida pelo Juízo Estadual, facultando-se

a ratifi cação dos atos processuais anteriormente praticados, bem como para

trancar a ação penal no tocante ao crime de peculato-apropriação, ante a

ausência de justa causa para a persecução penal.

É o voto.