321
LEONARDO DAVID QUINTILIANO AUTONOMIA FEDERATIVA: DELIMITAÇÃO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO TESE DE DOUTORADO PROFESSOR ORIENTADOR: SÉRGIO RESENDE DE BARROS Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo São Paulo 2012 Versão corrigida em 19 de fevereiro de 2013. A versão original, em formato eletrônico (PDF), encontra-se disponível na CPG da Unidade.

QUINTILIANO, Leonardo David - Autonomia Federativa; Delimitação Do Direito Constitucional Brasileiro (Tese USP)

Embed Size (px)

Citation preview

  • LEONARDO DAVID QUINTILIANO

    AUTONOMIA FEDERATIVA: DELIMITAO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

    TESE DE DOUTORADO

    PROFESSOR ORIENTADOR: SRGIO RESENDE DE BARROS

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo So Paulo

    2012

    Verso corrigida em 19 de fevereiro de 2013. A verso original, em formato eletrnico (PDF), encontra-se disponvel na CPG da Unidade.

  • 2

    LEONARDO DAVID QUINTILIANO

    AUTONOMIA FEDERATIVA: DELIMITAO NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

    Tese apresentada Banca Examinadora da Facul-dade de Direito da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Direito do Estado (Direito Consti-tucional), sob a orientao do Professor Associa-do SRGIO RESENDE DE BARROS.

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo So Paulo

    2012

  • 3

    Autorizo a reproduo e a divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudo e de pesquisa, desde que citada a fonte.

    Catalogao da Publicao Servio de Biblioteca e Documentao

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    Quintiliano, Leonardo David. Autonomia federativa: delimitao no Direito Constitucional brasi-leiro / Leonardo David Quintiliano. So Paulo: L. D. Quintiliano, 2012. 321 p.; 30 cm.

    Tese (Doutorado) Faculdade de Direito do Largo So Francisco, USP, 2012. Orientador: Prof. Associado Srgio Resende de Barros. Notas de rodap Inclui bibliografia

    1. Formas de Estado 2. Estatalidade 3. Descentralizao poltica 4. Fede-ralismo 5. Diviso do poder 6. Estados federados 7. Autonomia federa-tiva 8. Repartio de competncias 9. Federalismo brasileiro 10. Poder constituinte autnomo 11. Competncias administrativas 12. Competn-cias legislativas 13. Competncias jurisdicionais 14. Competncias finan-ceiras 15. Polticas pblicas 16. Competncias polticas

    CDU 342.24(81)(043)

  • 4

    DEDICATRIA

    Aos contribuintes paulistas e brasileiros, especialmente aos cidados mais simples, sobre os quais recai a maior carga tributria. So vocs os principais respon-sveis pelo meu aprendizado - em parte, aqui expressado -, nos dez anos de estudos cont-nuos, na Graduao e na Ps-Graduao da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, bem como pelo estgio de doutorado em Lisboa. No posso olvidar, diariamente, que uma parte de seu trabalho dirio, materializada no pagamento de pesados tributos, que me permitiu alcanar esta etapa acadmica, intangvel para a sua imensa maioria.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Todo ttulo acadmico comporta dois tipos de agradecimento. Um, que se apega ao sujeito, ao idealizador da pesquisa, seu produto humano. Outro, que repousa no objeto da pesquisa, em seu produto formal. O primeiro destina-se a todos os que participa-ram do desenvolvimento cognitivo do pesquisador, porquanto todo sujeito cognoscente , ao mesmo tempo, produtor e produto, obreiro e obra. O segundo reserva-se queles que tornaram possvel a feitura de seu trabalho.

    Dentre aqueles que tiveram importncia fundamental em meu desenvol-vimento acadmico, destaco o Professor Srgio Resende de Barros, amigo, orientador e, sobretudo, grande jurista, cujos ensinamentos e caminhos por ele abertos, especialmente as monitorias de Direito Constitucional, moldaram no apenas um acadmico, mas uma viso do mundo e do Direito.

    Na segunda qualidade, agradeo a todos que contriburam para a elabora-o da presente tese e sua apresentao: ao Professor Srgio Resende de Barros, pela orien-tao; aos Professores Rubens Beak e Nina Beatriz Stocco Ranieri, pelas observaes e sugestes dadas na etapa de qualificao; ao Professor Carlos Blanco de Morais, pela re-cepo em Lisboa e por toda a sua orientao; aos funcionrios da FADUSP, especialmen-te da Biblioteca e da CPG, especialmente Maria de Ftima Silva Cortinhal, pela orienta-o e solicitude; mestranda Fabiana Teixeira Rodrigues e doutoranda Circe Ins Dietz, pelas obras que, com dificuldade, trouxeram-me; s Doutoras Ana Carolina Cavalcanti de Albuquerque e Cristina Godoy Bernardo de Oliveira, pelas orientaes burocrticas e aca-dmicas necessrias para a converso do mestrado em doutorado direto e para a obteno da bolsa PDSE da CAPES; aos Mestres Irineia Maria Braz Pereira Senise e Rafael Lima Sakr, pela colaborao no processo de reviso.

  • 6

    EPGRAFES

    Equilibrar duas foras submet-las a uma lei que, mantendo o respeito uma pela outra, as ponha de a-cordo. Proudhon

    (PROUDHON, Pierre-Joseph. Trad. F. Trindade. So Paulo: Nu-Sol: Imaginrio, 2001. p. 98.)

    Os polticos da moda querem que o Brasil se torne In-glaterra ou Frana; eu quisera que ele no perdesse nunca os seus usos e costumes simples e naturais, e an-tes retrogradasse do que se corrompesse. Jos Bonifcio

    (ANDRADA E SILVA, Jos Bonifcio de. 1763-1838. Org. introd. Jorge Caldeira. Coleo Formadores do Brasil. So Paulo: Ed. 34, 2002. p. 240.)

  • 7

    RESUMO

    QUINTILIANO, L. D. Autonomia federativa: delimitao no Direito Constitucional brasileiro. 321 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito do Largo So Francisco, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    O federalismo conhece, na experincia moderna, diversas formaes e conformaes, se-gundo a ideologia que o permeia e a necessidade histrica que o explica e que o implica. Embora no seja possvel falar em um modelo puro ou autntico de federalismo, h uma caracterstica que lhe essencial, cuja falta negaria sua prpria razo de ser: a coexistncia, sob o mesmo poder soberano, de duas ou mais sociedades polticas dotadas de estatalida-de. A estatalidade informada pela existncia de um poder poltico de inaugurar determi-nada ordem jurdica. No Estado dito unitrio, trata-se da soberania. No Estado dito federa-tivo, a soberania convive com o poder poltico dos Estados federados - a autonomia federa-tiva. Assim como a soberania, a autonomia federativa um poder poltico constituinte, mas, ao contrrio daquela, tambm poder poltico constitudo (competncia), limitado pe-lo poder soberano. A autonomia federativa implica, ainda, a competncia para constituir competncias polticas e governamentais. Tais limites so postos pelo poder soberano na Constituio do Estado federativo, que define o grau de autonomia federativa. Esse poder tem sofrido oscilaes ao longo das Constituies republicanas brasileiras, havendo, em todas elas, considervel disparidade entre a autonomia federativa formal (que o texto reve-la) e a autonomia federativa real (que se pratica), causada, sobretudo, pelo antagonismo dos interesses polticos e econmicos que determinam, em ltima instncia, a descentrali-zao poltico-governamental. A presente tese prope a conceituao e a delimitao da autonomia federativa formal no Direito Constitucional brasileiro posto pela Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988.

    Palavras-chave: 1. Formas de Estado 2. Estatalidade 3. Descentralizao poltica 4. Federalismo 5. Diviso do poder 6. Estados federados 7. Autonomia federativa 8. Repartio de competncias 9. Federalismo brasileiro 10. Poder constituinte autnomo 11. Competncias administrativas 12. Competncias legislativas 13. Competncias juris-dicionais 14. Competncias financeiras 15. Polticas pblicas 16. Competncias polticas

  • 8

    ABSTRACT

    QUINTILIANO, L. D. Federative autonomy: delimitation in Brazilian Constitucional Law. 321 f. Dissertation (Doctorate) - Faculty of Law, University of So Paulo, So Paulo, 2012.

    Federalism has had, in the modern experience, different frames and meanings, according to the ideology embedded into it and the historical necessity that explains and implies it. Although it is not possible to advocate a pure or authentic model for federalism, there is an essential feature, whose absence would deny its own reason for being: the coexistence, un-der the same sovereign power, of two or more political societies with statehood. Statehood is constituted by a political power capable to create a particular legal order. In so-called unitary states, such political power is the sovereignty. In federal states, the sovereignty of nation-state coexists with the political power of federated states - the federative autono-my. Like sovereignty, federative autonomy is a constitutional-political power. However, in contrast to the former, federative autonomy is also constituted political power (compe-tence), limited by the sovereign power. The federative autonomy also implies the compe-tence to establish political and governmental powers. These limits are set by the sovereign power in the Constitution of the federal state, which defines the degree of federative au-tonomy. Such power has oscillated along the Brazilian republican constitutions. All of them revealed considerable disparity between the formal federative autonomy (which the legal text provides) and the real federative autonomy (which is practiced), which was caused, mainly, by the antagonism between political and economic interests. Such interests ultimately determine political and governmental decentralization. This dissertation advo-cates the conceptualization and delimitation of formal federative autonomy in the Brazilian Constitutional Law set forth by the Constitution of the Federative Republic of Brazil.

    Keywords: 1. Forms of State. 2. Statehood 3. Political decentralization 4. Federalism 5. Division of power 6. Federated states 7. Federative autonomy 8. Devolution of com-petences 9. Brazilian federalism 10. Autonomy constituent power 11. Administrative competences 12. Legislative competences 13. Jurisdictional competences 14. Financial competences 15. Public policies 16. Political competences.

  • 9

    RESUM

    QUINTILIANO, L. D. Autonomie fdrative: dlimitation dans le cadre du Droit Constitutionnel brsilien. 321 p. Thse (Doctorat) Facult de Droit de lUniversit de So Paulo Largo de So Francisco, So Paulo, 2012.

    Le fdralisme, dans lexprience moderne, connait des plusieurs formes et des conforma-tions diverses, selon lidologie que le traverse et le besoin historique que lexplique et lentrane. Malgr quil ne soit pas possible de considrer lexistence dun modle pur ou bien authentique de fdralisme, il y a une caractristique essentielle lui, dont le manque serait la ngation de sa propre raison dtre: la coxistence, sous le mme pouvoir souvera-in, de deux ou encore plus des ordres des societs politiques dotes des condition tatique. Cette condition est caractris par lexistence dun pouvoir politique capable dinaugurer un ordre juridique determin. Il sagit de la souverainet, dans ltat dit unitaire, tandis que dans ltat dit fdratif, la souverainet cohabite avec le pouvoir politique des tats fdrs lautonomie fdrative. Lautonomie fdrative, lexemple de la souverainet, est un pouvoir politique constituant. Mais, au contraire de celle-l, il sagit aussi dun pou-voir politique constitu (comptence), limit par le pouvoir souverain. Lautonomie fdra-tive entrane, encore, la comptance pour constituer des comptences politiques et gouver-namentales. Telles limites sont poses par le pouvoir souverain dans la Constitution de ltat fdratif, que dfine le grade dautonomie fdrative. Ce pouvoir a souffert des os-cillations tout le long des Constitutions rpublicaines brsiliens, o il y a, dans chacune, considrable disparit entre lautonomie fdrative point de vue de la forme (ce que le tex-te revle) et lautonomie fdrative rele (celle qui est mise en pratique), provoque, sur-tout, par lantagonisme entre des interts politiques et aussi conomiques que dterminent, la fin, la dcentralisation politique-gouvernamentale. La prsente thse se propose donner le concept et aussi la dlimitation de lautonomie fdrative point de vue de la forme dans le cadre du Droit Constitutionnel brsilien, tabli par la Constitution de la Rpublique Fdrative Brsilienne de 1988.

    Mots-clefs: 1. Formes dtats. 2. Condition tatique. 3. Dcentralisation politique. 4. Fdralisme. 5. Division de pouvoir. 6. tats fdrs. 7. Autonomie fdrative. 8. Rpartition de comptences. 9. Fdralisme brsilien. 10. Pouvoir constituant autonome. 11. Comptences administratives. 12. Comptences legislatives. 13. Comptences jurisdic-tionnelles. 14. Comptences financires. 15. Politiques publiques. 16. Comptences politi-ques.

  • 10

    ABREVIATURAS E SIGLAS

    ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ADI Ao Direta de Inconstitucionalidade AL Alagoas

    Art. Artigo

    CESP Constituio do Estado de So Paulo CRFB-88 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 DJ Dirio da Justia DJe Dirio da Justia eletrnico EC Emenda Constituio ES Esprito Santo

    EUA Estados Unidos da Amrica j. Julgamento LFRFA Lei Fundamental da Repblica Federal da Alemanha MA Maranho

    MT Mato Grosso PB Paraba PE Pernambuco RJ Rio de Janeiro RO Roraima RS Rio Grande do Sul SC Santa Catarina SP So Paulo

    STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justia STM Superior Tribunal Militar TCE Tribunal de Contas do Estado TCU Tribunal de Contas da Unio TO Tocantins

    TSE Tribunal Superior Eleitoral URSS Unio das Repblicas Socialistas Soviticas

  • 11

    SUMRIO

    INTRODUO ________________________________________________________ 18

    PARTE 1 - O FEDERALISMO COMO DIVISO DO PODER ESTATAL: ASPECTOS ESSENCIAIS DE SUA EVOLUO ___________________________ 32

    1.1. Evoluo do poder poltico "estatal" e sua limitao _____________________ 34

    1.2. Uma questo terminolgica: federalismo, federao ou federalizao? _______ 44

    1.3. Federalismo e ideologia ___________________________________________ 46

    1.4. Das formas de descentralizao do poder estatal ________________________ 50

    1.5. A contradio do federalismo: descentralizao vs. vocao centrpeta do poder estatal _____________________________________________________________ 57

    1.6. O federalismo contemporneo: uma proposta de reconstruo dogmtica luz das novas experincias federativas __________________________________________ 61

    1.7. Poder, funo, competncia e autonomia - uma necessria distino terminolgica __________________________________________________________________ 83

    1.8. Os mecanismos intraestatais de concretizao do federalismo - o problema da repartio de competncias ____________________________________________ 86

    PARTE 2 - A AUTONOMIA FEDERATIVA COMO PODER COERCITIVO DO ESTADO FEDERADO __________________________________________________ 90

    2.1. A estatalidade do estado federado e seus pressupostos ___________________ 92

    2.2. O poder poltico coercitivo no estado federado - a autonomia federativa_____ 104

    2.3. Contedo essencial da autonomia federativa __________________________ 111

  • 12

    PARTE 3 - A AUTONOMIA FEDERATIVA NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO - UMA PROPOSTA DE DELIMITAO ____________________ 145

    3.1. A evoluo da autonomia federativa no direito constitucional brasileiro _____ 147

    3.2. Aspectos pontuais do federalismo brasileiro ___________________________ 156

    3.3. A tcnica de diviso de competncias adotada pela repblica federativa do brasil _________________________________________________________________ 172

    3.4. Autonomia federativa, um "mito"? __________________________________ 185

    3.5. Proposta de delimitao da autonomia federativa _______________________ 190

    3.6. Competncia constituinte dos estados-membros ________________________ 193

    3.7. Competncias governamentais dos estados-membros ___________________ 227

    3.8. Competncias polticas dos estados-membros _________________________ 263

    3.9. Mecanismos de cooperao ________________________________________ 265

    3.10. A soluo dos conflitos federativos pela aplicao dos princpios implcitos do federalismo ________________________________________________________ 267

    CONCLUSO ________________________________________________________ 278

    APNDICE A - ESQUEMATIZAO: ELEMENTOS ESSENCIAIS DO ESTADO FEDERADO E CONTEDO DA AUTONOMIA FEDERATIVA______________290

    APNDICE B QUADROS DEMONSTRATIVOS DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS DELIMITADORAS DA AUTONOMIA FEDERATIVA __ 291

    NDICE DAS FONTES _________________________________________________ 297

  • 13

    NDICE ANALTICO

    INTRODUO ________________________________________________________ 18

    PARTE 1 - O FEDERALISMO COMO DIVISO DO PODER ESTATAL: ASPECTOS ESSENCIAIS DE SUA EVOLUO ___________________________ 32

    1.1. EVOLUO DO PODER POLTICO "ESTATAL" E SUA LIMITAO ___ 34 1.1.1. O poder estatal como resultado da negao da liberdade individual pela sociedade poltica ________________________________________________ 34

    1.1.2. A diviso do poder como forma de limitao do exerccio da soberania: o surgimento do federalismo _________________________________________ 39

    1.2. UMA QUESTO TERMINOLGICA: FEDERALISMO, FEDERAO OU FEDERALIZAO? _________________________________________________ 44 1.3. FEDERALISMO E IDEOLOGIA ___________________________________ 46

    1.4. DAS FORMAS DE DESCENTRALIZAO DO PODER ESTATAL ______ 50 1.4.1. Desconcentrao, descentralizao e autonomia ___________________ 50

    1.4.2. Descentralizaao no Estado unitrio e no Estado federativo __________ 52

    1.4.3. A descentralizao federativa __________________________________ 55

    1.5. A CONTRADIO DO FEDERALISMO: DESCENTRALIZAO VS. VOCAO CENTRPETA DO PODER ESTATAL ________________________ 57 1.6. O FEDERALISMO CONTEMPORNEO: UMA PROPOSTA DE RECONSTRUO DOGMTICA LUZ DAS NOVAS EXPERINCIAS FEDERATIVAS _____________________________________________________ 61

    1.6.1. Tipologia federativa contempornea ____________________________ 62

    1.6.1.1. Federalismo clssico ____________________________________ 63 1.6.1.2. Federalismo trino _______________________________________ 63 1.6.1.3. Federalismo sobreposto __________________________________ 65

    1.6.2. Caracterizao moderna do Estado federativo _____________________ 66

    1.6.2.1. Autonomia poltico-governamental _________________________ 69 1.6.2.2. Repartio constitucional de competncias ___________________ 70 1.6.2.3. Participao da vontade das ordens jurdicas parciais na vontade criadora do ordem jurdica nacional _______________________________ 70 1.6.2.4. Constituio escrita e rgida _______________________________ 74

  • 14

    1.6.2.5. Pluralidade de poderes constituintes e de poderes de autogoverno _ 77 1.6.2.6. Fixao constitucional de receita prpria para os Estados federados 77 1.6.2.7. rgo encarregado do controle de constitucionalidade das leis ___ 78 1.6.2.8. Ausncia de previso constitucional do direito de secesso. ______ 79 1.6.2.9. Existncia de nacionalidade nica __________________________ 80 1.6.2.10. Pluralismo poltico _____________________________________ 82 1.6.2.11. Concluso ____________________________________________ 82

    1.7. PODER, FUNO, COMPETNCIA E AUTONOMIA - UMA NECESSRIA DISTINO TERMINOLGICA ______________________________________ 83 1.8. OS MECANISMOS INTRAESTATAIS DE CONCRETIZAO DO FEDERALISMO - O PROBLEMA DA REPARTIO DE COMPETNCIAS __ 86

    PARTE 2 - A AUTONOMIA FEDERATIVA COMO PODER COERCITIVO DO ESTADO FEDERADO __________________________________________________ 90

    2.1. A ESTATALIDADE DO ESTADO FEDERADO E SEUS PRESSUPOSTOS _ 92

    2.1.1. Povo _____________________________________________________ 93

    2.1.2. Territrio __________________________________________________ 94

    2.1.3. Receita independente ________________________________________ 96

    2.1.4. Poder poltico coercitivo ______________________________________ 98

    2.2. O PODER POLTICO COERCITIVO NO ESTADO FEDERADO - A AUTONOMIA FEDERATIVA ________________________________________ 104

    2.2.1. Conceito de autonomia federativa _____________________________ 105

    2.2.2. Pressupostos ______________________________________________ 107

    2.2.3. Limites __________________________________________________ 108

    2.3. CONTEDO ESSENCIAL DA AUTONOMIA FEDERATIVA __________ 111 2.3.1. Competncia constituinte ____________________________________ 111

    2.3.1.1. Conceito _____________________________________________ 112 2.3.1.2. Processo constituinte ___________________________________ 112 2.3.1.3. Poder constituinte autnomo _____________________________ 116 2.3.1.4. Limitaes ao poder constituinte autnomo _________________ 117 2.3.1.5. Controle de constitucionalidade ___________________________ 120

  • 15

    2.3.2. Competncia governamental _________________________________ 121

    2.3.2.1. Competncia legislativa _________________________________ 124 2.3.2.2. Competncia administrativa ______________________________ 128 2.3.2.3. Competncia jurisdicional _______________________________ 131 2.3.2.3. Competncia para formulao de polticas pblicas ___________ 134 2.3.2.5. Competncia financeira _________________________________ 136

    2.3.3. Competncia poltica _______________________________________ 140

    PARTE 3 - A AUTONOMIA FEDERATIVA NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO - UMA PROPOSTA DE DELIMITAO ____________________ 145

    3.1. A EVOLUO DA AUTONOMIA FEDERATIVA NO DIREITO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ___________________________________ 147

    3.2. ASPECTOS PONTUAIS DO FEDERALISMO BRASILEIRO ___________ 156

    3.2.1. Caractersticas do Estado federativo brasileiro ____________________ 156

    3.2.2. Entes federados e entes federativos: uma distino dogmtica necessria no ordenamento brasileiro ___________________________________________ 157

    3.2.3. Os entes federados e os entes federativos da Repblica Federativa do Brasil _____________________________________________________________ 159

    3.2.3.1. Unio _______________________________________________ 159 3.2.3.2. Estados-membros ______________________________________ 162 3.2.3.3. Municpios ___________________________________________ 164 3.2.3.4. Distrito Federal _______________________________________ 169

    3.2.4. Forma federativa de Estado? Um conceito positivamente indeterminado, mas zeteticamente determinvel ____________________________________ 170

    3.3. A TCNICA DE DIVISO DE COMPETNCIAS ADOTADA PELA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL ______________________________ 172

    3.3.1. A evoluo da diviso formal de competncias no Estado brasileiro __ 172

    3.3.2. Repartio de poderes, ou de deveres? __________________________ 175

    3.3.4. Classificao ______________________________________________ 177

    3.3.4.1. Quanto funo estatal atuada ____________________________ 178 3.3.4.2. Quanto ao destinatrio __________________________________ 178 3.3.4.3. Quanto ao compartilhamento _____________________________ 179

  • 16

    3.3.4.4. Quanto enunciao ___________________________________ 182 3.3.4.5. Quanto extenso da matria ____________________________ 182 3.3.4.6. Quanto explicitude ___________________________________ 183 3.3.4.7. Quanto condicionalidade _______________________________ 183

    3.3.5. Caractersticas das competncias no Direito Constitucional brasileiro _ 184

    3.4. AUTONOMIA FEDERATIVA, UM "MITO"? ________________________ 185

    3.5. PROPOSTA DE DELIMITAO DA AUTONOMIA FEDERATIVA _____ 190 3.6. COMPETNCIA CONSTITUINTE DOS ESTADOS-MEMBROS ________ 193

    3.6.1. Os princpios constitucionais no Direito brasileiro - aspectos histricos 193

    3.6.2. Conceito de princpios constitucionais no Direito brasileiro _________ 195

    3.6.3. A interpretao dos princpios limitadores do poder constituinte autnomo: simetria de princpios, ou princpio da simetria? _______________________ 203

    3.6.4. Princpios constitucionais expressos na CRFB-88 _________________ 208

    3.6.5. Regras condicionantes do poder constituinte autnomo ____________ 215

    3.6.5.1. Normas sobre o Poder Executivo estadual ___________________ 218 3.6.5.2. Normas do processo legislativo ___________________________ 218 3.6.5.3. Normas sobre organizao, composio e fiscalizao dos Tribunais de Contas estaduais ___________________________________________ 223

    3.6.6. A interpretao das regras limitadoras do poder constituinte autnomo 225

    3.6.7. Controle de constitucionalidade _______________________________ 226

    3.7. COMPETNCIAS GOVERNAMENTAIS DOS ESTADOS-MEMBROS___ 227 3.7.1. Competncias legislativas ____________________________________ 227

    3.7.1.1. Competncias expressas _________________________________ 228 3.7.1.2. Competncias residuais _________________________________ 230 3.7.1.3. Competncias suplementares _____________________________ 231 3.7.1.4. A autonomia municipal como condicionante da competncia legislativa estadual ___________________________________________ 241 3.7.1.5. Competncias supletivas ________________________________ 246 3.7.1.6. Competncias implcitas ________________________________ 247 3.7.1.7. Competncias delegadas ________________________________ 248 3.7.1.8. Competncias legislativas delimitadas por normas infraconstitucionais: leis federais transitivas nacionais e federativas _____ 251 3.7.1.9. Leis estaduais transitivas ________________________________ 252

    3.7.2. Competncias administrativas ________________________________ 252

  • 17

    3.7.3. Competncias jurisdicionais __________________________________ 254 3.7.4. Competncias financeiras ____________________________________ 257

    3.7.5. Competncias para a formulao de polticas pblicas _____________ 261

    3.8. COMPETNCIAS POLTICAS DOS ESTADOS-MEMBROS ___________ 263 3.9. MECANISMOS DE COOPERAO _______________________________ 265 3.10. A SOLUO DOS CONFLITOS FEDERATIVOS PELA APLICAO DOS PRINCPIOS IMPLCITOS DO FEDERALISMO _________________________ 267

    CONCLUSO ________________________________________________________ 278

    APNDICE A - ESQUEMATIZAO: ELEMENTOS ESSENCIAIS DO ESTADO FEDERADO E CONTEDO DA AUTONOMIA FEDERATIVA______________290

    APNDICE B QUADROS DEMONSTRATIVOS DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS DELIMITADORAS DA AUTONOMIA FEDERATIVA __ 291

    NDICE DAS FONTES _________________________________________________ 297

    1. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS _________________________________ 297 2. TESES E DISSERTAES ________________________________________ 314 3. DICIONRIOS __________________________________________________ 315 4. INTERNET _____________________________________________________ 315

    5. LEGISLAO ___________________________________________________ 316 6. DEBATES PARLAMENTARES ____________________________________ 319

    7. JURISPRUDENCIA ______________________________________________ 319

  • 18

    INTRODUO

    O presente trabalho traz uma proposta de conceituao e de delimitao da autonomia federativa na Repblica Federativa do Brasil, estabelecida pela Constituio de 1988, luz do texto constitucional - mediante o emprego da metodologia hermenutica tradicional , da evoluo histrica dos institutos envolvidos e do direito comparado.

    Desvendar a autonomia federativa condio necessria para entender a forma de Estado adotada pela CRFB-88, para resolver os constantes conflitos federativos e - at mesmo - para afirmar se o federalismo no Brasil , de fato, um "mito" jurdico.1

    O Estado brasileiro federalizou-se em 1889.2 Por um lado, tal processo deveu-se influncia do ideal de prosperidade que a classe poltica, poca dominante, as-sociou ao modelo estadunidense. Por outro, teria a superestrutura jurdico-constitucional conformado uma vocao brasileira, ditada por fatores histricos e geogrficos.

    Adotou-se a contradio dialtica que sustenta o federalismo: descentra-lizou-se, para se manter a unificao. Tal processo, contudo, deu-se menos custa da des-centralizao do poder central, que dos Municpios, os quais experimentavam larga auto-nomia desde a Colnia, concentrando a execuo de servios pblicos.

    Num primeiro momento, os Estados-membros conheceram formalmente grande autonomia, equacionando os interesses das oligarquias regionais. O desenvolvimen-to do Estado moderno, porm, chamado a um maior intervencionismo, os ventos das revo-lues sociais do incio do sculo XX e a instabilidade geopoltica do mesmo perodo de-terminaram nova centralizao.

    medida que um novo ponto de equilbrio entre os interesses oligrqui-cos obtido, segue-se a revoluo e, em conseqncia, o federalismo sofre oscilaes. As-sim, num segundo momento, o Estado brasileiro adota o sistema cooperativo, incorporando o modelo alemo de repartio vertical de competncias, evoluindo, em pouco menos de meio sculo, para um federalismo misto de engenharia complexa -, institudo pela

    1 Expresso usada por Santi Romano. ROMANO, Santi. Fragmentos de un diccionario juridico. Trad. S. S.

    Melendo; M. A. Redn. Buenos Aires: Ed. Europa-Amrica, 1964. p. 225 s. 2 Com efeito, o Estado brasileiro assume a forma federativa de Estado, formalmente, desde o Decreto n. 1, de

    15 de novembro de 1889. Na CRFB-88, a "forma federativa" encontra-se expressa no prprio nome do Esta-do (Repblica Federativa do Brasil), bem como, implcita e explicitamente, em diversas passagens no texto constitucional. Dentre elas, h que se destacar a previso expressa da "forma federativa de Estado" como clusula ptrea (artigo 60, 4, I).

  • 19

    CRFB-88. Passados mais de vinte anos da inaugurao da nova ordem jurdico-

    constitucional, no entanto, a autonomia federativa e o prprio federalismo brasileiro ainda so vistos, por parte da doutrina nacional, como verdadeiros "mitos" jurdicos.3

    O mito implica a distncia entre a realidade ideal e a ideia realizada.4 Ou, como afirma Habermas, uma "tenso entre a ideia e a realidade".5 Cada grupo de inte-resses possui um ideal federativo, de autonomia, mas o federalismo realizado apenas um, resultante do equilbrio de foras contrrias, que o Direito positiva sob a forma de uma en-genharia de repartio de competncias, ou - melhor seria dizer - de poderes. Tal processo divisrio, que definir a autonomia federativa do Estado federado, equaciona os interesses antagnicos dos diversos protagonistas do pacto federativo (sociedade civil, representada especialmente pelos grupos econmicos e a sociedade poltica, com destaque s elites pol-ticas regionais).6

    Assim, para os grupos menos contemplados na equao de interesses que resulta no pacto federativo atual, assim como para cada esprito subjetivo, o federalismo realizado um mito, distante que est do modelo idealizado.

    Essa avaliao, contudo, interessa mais para a Cincia Poltica que para o Direito Constitucional. Esse deve se preocupar com outro hiato (talvez, outro mito): a dis-tncia entre a ideia realizada e a experincia praticada.

    Trata-se do desencontro entre texto e realidade. A forma de Estado de-corre de uma vontade poltica positivada em um conjunto de normas constitucionais orga-

    3 Cf. CHAGAS, Magno Guedes. Federalismo no brasil: o poder constituinte decorrente na jurisprudncia do

    supremo tribunal federal. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 2006. p. 62-3. Carlos Blanco de Morais adota a expresso federalismo nominal. MORAIS, Carlos Blanco de. Autonomia legislativa regional: fundamentos das relaes de prevalncia entre actos legislativos estaduais e regionais. Lisboa: Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1993. p. 48. 4 Santi Romano define o mito (jurdico) como "uma no-verdade, um erro, uma utopia, um 'universal fants-

    tico', no racional, que nasce da necessidade de entender o que no se entende e de express-lo, por meio de imagens, quando no se pode express-lo com termos prprios: 'um conceito que quer ser imagem e uma i-magem que quer ser conceito', e implica, portanto, uma contradio, 'uma impotncia potente'. ROMANO, Santi. Fragmentos de un diccionario juridicocit. p. 227-8 5 HABERMAS, Jurgen. Um ensaio sobre a constituio da europa. Prefcio J. J. Gomes Canotilho. Lisboa:

    Edies 70, 2012. p. 54 6 Cf. RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Sobre o federalismo e o estado federal. Revista dos Tribunais. Cader-

    nos de Direito Constitucional e Cincia Poltica, So Paulo, ano 3, n. 9, p. 87-98, out./dez. 1994. p. 87. Por essa razo, discordamos da afirmao de Irineia M. B. P. Senise de que uma maior autonomia aos Estados implica, necessariamente, maior equilbrio federativo. o equilbrio de foras regionais e centrais que deter-mina o equilbrio federativo, e no a imputao jurdica artificial de maior ou de menor autonomia federativa. Cf. SENISE, Irineia Maria Braz Pereira. Formao de estados federados. 2011. 160 f. Dissertao (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito do Largo So Francisco, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011. p. 30.

  • 20

    nizatrias. Mas toda norma produto da interpretao do texto normativo, diante de certa realidade. Como o texto comporta equivocidade e a realidade, subjetivismo, haver, no m-nimo, em cada Estado, dois federalismos: um federalismo formal, que o texto revela, e um federalismo real, que a experincia desvela.

    Em todo Estado, a infraestrutura econmica e poltica determina, em l-tima instncia, a superestrutura jurdica, a qual envolve no apenas o texto, mas sua inter-pretao prevalente. O federalismo real condicionado pelo equilbrio de interesses polti-cos e, sobretudo, econmicos. J o federalismo formal, em sua maior parte, estabelecido pela sociedade poltica. Ambos refletem a conjuntura poltica, social e econmica, que constituem a causa de sua adoo.7

    Consistindo grande parte desses interesses na busca pela concentrao do poder poltico e, ou, econmico, os protagonistas do pacto federativo precisam recorrer a engodos ideolgicos8 para velar tais interesses, especialmente porque, para a sociedade po-ltica, o discurso centralista lhe contrrio. As oligarquias precisam convencer o eleitor de que possuem o poder de mudar sua situao, de atender aos seus interesses, o que implica maior autonomia e menor centralizao.

    Deve-se, porm, distinguir dois tipos de discurso jurdico: o cientfico, que independe dos grupos de presso e apega-se ao rigor de metodologia prpria, e o jur-dico-formal, que pode facilmente socorrer-se de sofismas ou de equvocos, para atuar o Di-reito, segundo interesses latentes.9

    preciso, portanto, analisar o atual sistema brasileiro sob o prisma cien-tfico, tentando expurgar o discurso que vela tais engodos. Por essa razo, a presente tese prope uma delimitao da autonomia federativa formal, tentando preencher as lacunas, incertezas e contradies presentes no atual texto constitucional, com a anlise histrico-conceitual e comparada dos institutos envolvidos.

    7 Cf. LEMBO, Cludio. In: CAGGIANO, M. H.; RANIERI, N. (orgs.). As novas fronteiras do federalismo.

    So Paulo: Imprensa Oficial, 2008. p. 11. KATZ, Ellis. American federalism and the challenges of the mo-dern world. Ibid., p. 29. Por isso, preciso que "a autonomia [atribuda] contribua para solucionar e no para agravar as oposies latentes". CORREIA, J. M. Srvulo. O futuro do regionalismo poltico. In: Aores: uma reflexo jurdica. Lisboa: Coimbra Editora, 2011. p. 56 8 Expresso utilizada por Srgio Resende de Barros, para expressar o desvio consciente de determinada dou-

    trina, em oposio inconscincia tpica da ideologia. BARROS, Srgio Resende de. Contribuio Dialtica para o Constitucionalismo. Campinas/SP: Millennium, 2008. p. 164-5. 9 Segue-se a diviso proposta por Alar C. Alves, que se refere aos equvocos (ou paralogismos) como esp-

    cies de falcia (raciocnio incorreto em sua forma ou em seu contedo) involuntria e, aos sofismas, como espcies de falcia voluntria. ALVES, Alar Caff. Lgica - pensamento formal e argumentao: elementos para o discurso jurdico. Bauru-SP: Edipro, 2000. p. 292-6.

  • 21

    Tenciona-se, assim, munir o intrprete dos elementos necessrios para, mediante a comparao entre ambos os discursos, descortinar os equvocos ou os sofismas presente na interpretao limitadora dada pelo Poder Judicirio autonomia federativa i-naugurada pelo novo regime jurdico-constitucional.

    De fato, a despeito da mudana constitucional e da nova repartio de competncias, o STF mostrou-se extremamente conservador na interpretao da autonomia federativa, pouco inovando em sua delimitao, se comparada sua jurisprudncia atual com aquela verificada no regime anterior. Tal postura, como no poderia ser diferente, in-fluencia tambm a doutrina.

    Dessarte, na disputa com a Unio, os Estados-membros tm levado des-vantagem. Ocorre que, sob o aspecto formal, em meio aos reclamos das oligarquias polti-cas estaduais por maior autonomia, a Assembleia Nacional Constituinte de 1988 aumentou o nmero de competncias estaduais, em tendncia descentralizadora. No entanto, ironi-camente, conquanto os Estados-membros possuam a competncia residual, outra tese pre-valece no STF: in dubio pro Unio.

    O discurso jurdico do STF baseia-se, em grande parte, na construo de um contraprincpio federativo, uma vez que, em ato de verdadeira alquimia jurdica, transformou a excepcional simetria de princpios constitucionais em princpio constitucio-nal da simetria, tolhendo significativamente a autonomia estadual.10 Dentre as limitaes mais relevantes, est a vedao de os Estados-membros disporem sobre sua diviso de po-deres, o que resulta na hipertrofia do Poder Executivo estadual e na atrofia de seu Poder Legislativo. 11

    10 Cf, e.g., ADI 2800/RS, Relator Ministro Maurcio Corra, j. 17.3.2011; ADI 2730, Relator Ministro Cr-

    men Lucia, j. 5.5.2010; ADI 2329/AL, Relatora Ministra Crmen Lucia, j. 14.4.2010; ADI 3930/RO, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, j. 16.9.2009; ADI 3307/MT, Relatora Ministra Crmen Lucia, j. 2.2.2009; ADI 2192/ES, Relator Ministro Ricardo Lewanowski, j. 4.6.2008; ADI 3647/MA, Relator Ministro Joaquim Barbosa, j. 17.9.2007; ADI 2480/PB, Relator Ministro Seplveda Pertence, j. 2.4.2007; ADI 425/TO, Relator Ministro Maurcio Corra, j. 4.9.2002; ADI 2012/SP-MC, Relator Ministro Marco Aurlio, j. 4.8.1999. 11

    Tal condio foi definitivamente consolidada pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal, que, em grande parte de seus julgados, mantm uma posio restritiva acerca da competncia legislativa dos Estados e, via reflexa, da iniciativa legislativa parlamentar. Tal postura em nada parece destoar daquela adotada no regime constitucional anterior. Essa posio restritiva da Suprema Corte sob gide da Constituio de 1967/69 muito bem ilustrada por Jos Levi Mello do Amaral Jnior. AMARAL JNIOR, Jos Levi Mello do. Memria jurisprudencial: Ministro Aliomar Baleeiro. Braslia: Supremo Tribunal Federal, 2006. p. 100-4. Entre os inmeros julgados, podem-se citar os seguintes: ADI 1594/RN, Relator Ministro EROS GRAU, j. 4.6.2008; ADI 858/RJ, Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, j. 13.2.2008; ADI 1448/RJ, Relator Ministro JOAQUIM BARBOSA, j. 16.8.2007; ADI 3167/SP, Relator Ministro EROS GRAU, j. 18.6.2007; ADI 2029/SC, Relator Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, j. 4.6.2007; ADI 2336/SC, Relator Ministro NELSON JOBIM, j. 3.10.2002; ADI 1391 MC/SP, Relator Ministro CELSO DE MELLO, j. 1.2.1996.

  • 22

    O princpio da simetria, que ora nega e que ora afirma a natureza prpria da federao a unidade de diversidades -, interessa principalmente s faces da socie-dade civil que se beneficiam do centralismo. Todavia, a referida reduo da competncia legiferante dos Estados comeou a despertar o descontentamento da sociedade poltica, es-pecialmente dos membros do Poder Legislativo, praticamente reconduzido sua original funo histrica de rgo apenas fiscalizador e homologatrio. Em uma de suas manifesta-es, as Assembleias Legislativas do pas deram incio ao movimento que objetiva o en-caminhamento conjunto de uma Proposta de Emenda Constituio, dando "vida" ao arti-go 60, inciso III, da CRFB-88, como forma simblica de pressionar o Congresso Nacional a rever o atual sistema de repartio de competncias, ampliando a autonomia estadual.12

    Com efeito, embora dotados de competncia constituinte e contemplados com competncias para o desempenho de todas as funes estatais, o rol de competncias faticamente explorveis pelos Estados-membros, conquanto, prima facie, parea infinito, mostra-se consideravelmente reduzido, diante, de um lado, da quase exaustiva enumerao das competncias da Unio e, de outro, da autonomia municipal.

    No se pretende nem seria cabvel em um trabalho cientfico - adentrar o mrito da referida propositura e dos valores polticos envolvidos. Entretanto, cumpre tambm Cincia do Direito tomar como dado de investigao as tendncias normativas, como forma de atenuar o descompasso temporal entre o objeto estaticamente descrito - o ordenamento jurdico - e a realidade dinmica, que, de forma constante, sobre ele atua.

    A iniciativa indita das Assembleias Legislativas no apenas sinaliza o descontentamento da sociedade poltica com o atual arranjo federativo, mas atesta, tam-bm, a relevncia da investigao cientfica acerca da matria, de modo a perscrutar a di-menso da autonomia formal consagrada aos Estados federados pela CRFB-88.

    Em primeiro lugar, preciso saber de que autonomia se trata. Mesmo os Estados unitrios apresentam alguma forma mnima de descentralizao. E toda descentra-lizao, por inferncia lgica, implica o reconhecimento de certo grau de autonomia. A au-tonomia dos Estados-membros brasileiros seria, assim, prpria do regime federativo? Uma

    12 A Assembleia Legislativa do Estado de So Paulo aprovou os Decretos-legislativos n 1890 e 1891, ambos

    de 17 de junho de 2009, para encaminhamento de Proposta de Emenda Constituio Federal, nos termos do artigo 60, inciso III, da CRFB-88, alterando-se os artigos 22, 24, 26, 61 e 220 da CRFB-88. Dita proposta tenciona dar nova redao aos dispositivos constitucionais pertinentes repartio de competncias legislati-vas, em especial aos artigos 22; 24; 61, 2; 132 e 220 da CRFB-88. Em outras palavras, pretendem as As-sembleias Legislativas dos Estados-membros a ampliao da autonomia federativa, sobretudo de sua compe-tncia legislativa.

  • 23

    resposta afirmativa importa no necessrio reconhecimento do Estado brasileiro como um Estado federativo.

    Num segundo momento, necessrio delimitar a referida autonomia, mediante a aplicao da hermenutica tradicional e, aps uma delimitao extrada do sis-tema constitucional vigente, as aparentes lacunas devem ser preenchidas com o sentido his-trico dos valores que informam a organizao poltica do pas, o qual deve ser resgatado luz da histria do Direito Constitucional brasileiro e da teoria geral do federalismo. 13

    A tarefa no fcil, dado que carece a doutrina nacional e a estrangeira de uma concordncia acerca de um paradigma14 da forma federativa de Estado, o que se deve no apenas profuso de arranjos federativos contemporneos, mas ao prprio dina-mismo de tais modelos, que, muitas vezes, a Cincia descritiva esttica - no consegue acompanhar. Soma-se a essa caracterstica a complexidade crescente que o desenvolvi-mento do Estado moderno incorpora s suas instituies, exigindo uma constante revisita-o das teorias cientficas.15

    Era de se esperar, portanto, uma confuso doutrinria sobre o tema. Con-fuso essa feita pela prpria doutrina de muitos pases cuja forma de Estado no obtm o consenso da doutrina nacional, como no caso da Rssia, do Reino Unido, da Alemanha e da ustria.16 Alm disso, a necessidade de imprimir maior efetividade aos poderes aut-nomos, de garantir maior participao popular na formulao de polticas pblicas, de as-segurar maior proteo s minorias, de tentar alcanar maior equilbrio entre os poderes lo-cais e central, de dar uma resposta ao significativo avano tecnolgico e globalizao dos meios de comunicao - tentando-se uniformizar culturas, em alguns casos, acentuar-lhes as diferenas, em outros -, tem gerado arranjos constitucionais federativos cada vez mais complexos, como o caso da Blgica e o processo de integrao regional, como o caso da

    13 No basta, portanto, estudar o atual sistema de repartio de competncias como mera estrutura; exige-se,

    de outro modo, que se o faa como processo. Cf. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da repblica federal da alemanha. trad. Lus A. Heck. Porto Alegre: Srgio Antnio Fabris, 1998. p. 28. 14

    Emprega-se aqui o termo paradigma no mesmo sentido de Thomas Kuhn - como padro ou modelo cient-fico aceito. KUHN, Thomas S. A estrutura das revolues cientficas. trad. Beatriz V. Boeira e Nelson Boei-ra. 5. ed. So Paulo: Perspectiva, 1998. p. 43 s. 15

    Como afirmou recentemente Ellis Katz, os sistemas federativos so to diversos quanto o prprio mundo. KATZ, Ellis. American federalism and the challenges of the modern world. In: CAGGIANO, M. H.; RANI-ERI, N. (orgs.). As novas fronteiras do federalismo. So Paulo: Imprensa Oficial, 2008. p. 29. 16

    Na Rssia, e.g., parte da doutrina considerava-a um Estado unitrio (Pletnef e Timaschev), outra parte en-tendia tratar-se de Estado federal (Magerovski e Durdenevski). O mesmo aconteceu com a Alemanha. F. Sti-er-Somlo e W. Jellinek entendiam que a Alemanha era um Estado federativo. J F. Giese, Fritz Poetzch, E. Jacobi e Max Wenzel recusavam a ideia. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios constituio de 1946...cit. t. 2, p. 140-1.

  • 24

    Unio Europeia, levando alguns autores a falar em neofederalismo.17 Alm disso, dedicando-se especialmente a uma apreciao crtica do pro-

    cesso federativo, ressente-se a doutrina de mais teses com carter dogmtico. inegvel que o pensamento cientfico, em particular no mbito das ci-

    ncias humanas, no pode estar preso a frmulas lgico-matemticas; tampouco reco-mendvel abandonar o esprito crtico que, lanando mo de uma viso dialtica do proces-so poltico, permite ao sujeito uma compreenso mais profunda de sua essncia. O pensa-mento humano, contudo, limitado. Precisa, antes de adentrar a essncia do objeto, conhe-cer sua aparncia, pois no reconhecimento dessa que a mente humana produz as primei-ras relaes associativas, etapa sem a qual impossvel para o sujeito inferir qualquer ou-tro tipo de relao do objeto analisado.

    Faz parte desse processo a individualizao do objeto, fase em que a mente isola as caractersticas sensveis aos sentidos humanos, da decorrendo uma etapa de decomposio do todo em partes, para, aps entender o mecanismo individual de atuao de cada parte, poder melhor entender o todo e as relaes desse todo como parte de um sistema ainda mais complexo e dinmico.

    Embora esse seja o mtodo recorrente nas Cincias Exatas e Biolgicas, h, por parte das Cincias Humanas, certa resistncia em sua aceitao, em grande parte provocada pela forma absolutista com o que o positivismo jurdico foi recebido, como mtodo cientfico propugnador de um Direito puro, isolado de qualquer interferncia me-tajurdica.

    No essa viso que se prope, tampouco ela reflete a real proposta de um positivismo jurdico consciente. O mtodo lgico-formal , antes de tudo, uma etapa necessria de compreenso da realidade, sem a qual o prprio uso da lgica-dialtica resta-r prejudicado. De fato, se a real compreenso dos mecanismos de atuao de qualquer ins-tituto poltico s possvel pelo uso de uma lgica-dinmica, seu emprego s possvel mediante uma lgica-formal, pois o raciocnio associativo no consegue trabalhar em abs-trato, apenas em concreto. 18

    17 Cf. SIDJANSKI, Dusan. Fdralisme (et neo-fdralisme). ALEXANDROU, Franoise. Dictionnaire in-

    ternational du fdralisme. Sous la direction de Denis de Rougemont. Bruylant, Bruxelles: Franois SAINT-OUEN, 1994. p. 76-9; S, Luis. A crise das fronteiras: estado, administrao pblica e unio europeia. Lis-boa: Cosmos, 1997. p. 257. 18

    Como bem alerta Alar Caff Alves, no se trata de negar a lgica formal, mas de reconhecer a sua limita-o. Com efeito, conquanto til at certo ponto, a dimenso formal do pensamento inexoravelmente limita-

  • 25

    Por isso, o recorte epistemolgico dogmtico no elide a importncia de retratar, a partir do processo histrico federativo, os elementos estticos transponveis para o plano abstrato, a fim de serem concretamente aplicados, o que torna possvel a delimita-o da autonomia federativa. Afinal, repetindo-se as palavras de Sampaio Dria, "no h, na cincia, enigmas indecifrveis, desde que sejam suscetveis de uma prova lgica."19

    Assim, a primeira parte deste trabalho se preocupa em encontrar os ele-mentos essenciais do federalismo, mediante a anlise da doutrina clssica e contempornea sobre o tema. Descrevem-se os aspectos essenciais de sua evoluo, as dificuldades termi-nolgicas, seu papel ideolgico e os princpios envolvidos, o que permite uma melhor compreenso das diferentes formas de descentralizao do poder estatal. O estudo prece-dente cotejado com as experincias federativas modernas, com o intuito de se descortinar aspectos comuns e essenciais para sua caracterizao ou no como Estados federativos.

    preciso ter em mente que o federalismo , antes de tudo, uma ideologi-a. Difundida, sobretudo, a partir da Constituio dos Estados Unidos da Amrica de 1787, a ideologia federativa esteve, por muito tempo, associada experincia norte-americana. Tal associao, ainda hoje presente, levou parte da doutrina a recusar o carter federativo a Estados compostos criados de forma diversa, como foi o caso dos Estados Unidos do Bra-sil, em 1891.

    O federalismo surge, no entanto, anteriormente experincia norte-americana. Esta lhe garantiu aplicabilidade e visibilidade, a qual foi rapidamente captada pelos observadores polticos.20

    Mas o federalismo, enquanto ideologia, veicula princpios aplicveis no

    tiva. Nela no h espao para o vasto campo das cincias, sobretudo das cincias sociais. preciso, sim, co-nhec-la e tentar alcanar sua limitao, de modo a super-la pela busca de novos princpios e novas dimen-ses que so exatamente aquelas que implicam as contradies e a histria, e tudo o mais decorrente. Ensi-na, ainda, Alar Caf Alves, que uma perspectiva dialtica somente ser fecunda se polarizar a forma e o contedo do pensamento numa relao dinmica e dialtica, onde o contedo [a matria do pensamento] se expande com o tempo e com a histria, entrando em contradio com a forma que mais esttica e conserva-dora. ALVES, Alar Caf. Lgica: pensamento formal e argumentao. Elementos para o discurso jurdico. Bauru, SP: Edipro, 2000. p. 395. 19

    DRIA, Antonio de Sampaio. Principios constitucionaes. So Paulo: So Paulo Editora, 1926. p. 16. 20

    Com efeito, traos federativos eram encontrados em sociedades protoestatais, como a Confederao Helv-tica, datada de 1291, que se transforma em Estado federativo apenas em 1848. Cf. BARACHO, Jos Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Belo Horizonte: FUMARC/UCMG, 1982. p. 173. REPOSO, An-tonio. Cantoni e confederazione in svizzera: un dialogo continuo. In: RASON, Nino O.; PEGORARO, Lucio (org.). Esperienze federali contemporanee. Quaderni Giuridici del Dipartimento di Scienze Politiche dell' Universit degli studi di Trieste. Milo: CEDAM, 1996. p. 5. Alm da Sua, alguns autores j identificavam traos federativos em sociedades antigas e medievais, como na Grcia, Lcia, Holanda e Alemanha. Cf. SE-CONDAT, Charles-Louis, Baron de la Brde et de MONTESQUIEU. De lesprit des lois... cit. p. 139.

  • 26

    apenas forma federativa de Estado. O Estado federativo a expresso material que con-templa o maior nmero de elementos presentes na ideologia federativa - e, qui, seu n-cleo essencial -, mas no correto afirmar que o federalismo informa to-somente o Estado federativo.

    Ademais, os elementos presentes no federalismo serviram de inspirao para o atendimento de necessidades histricas determinadas, como a necessidade de pre-servao da unidade na diversidade, como se d na Blgica, na Espanha, na Itlia, entre ou-tros, ou mesmo como forma de acomodao de interesses locais e regionais, como se deu no Brasil.21

    Essa variedade de modelos federativos dificulta a tarefa de encontrar um paradigma federativo que permita divisar as diferentes formas de Estado. A nica ideia que se mostra universalizvel a concepo, inicialmente delineada por Paul Laband e, depois, por Jellinek, no sentido de que o Estado federativo seria um Estado composto de Estados.

    De fato, a comparao entre o Estado federativo e o Estado unitrio des-centralizado revela muitos elementos comuns, pois todos eles incorporam traos do iderio federalista, tais como os princpios da subsidiariedade, da cooperao, da lealdade e da preservao da unidade na diversidade.

    Alm disso, eles costumam apresentar problemas tambm comuns, como a dificuldade de se encontrar um critrio de partio mais bem delimitado e um melhor e-quilbrio entre a concesso de maior autonomia e uma repartio de receitas proporcional, desafio esse dificultado com a democratizao e, sobretudo, com o crescente aumento do papel do Estado moderno, em grande parte provocado por crescentes demandas interven-cionistas.

    O nico trao que realmente distingue o ente federado dos demais entes dotados de autonomia o seu comportamento como Estado. Com essa concepo, poss-vel deslocar o foco da preocupao investigativa para o Estado federado, ao contrrio da anlise usualmente feita do federalismo, centrada na pluralidade de ordenamentos jurdicos ou de focos de poder.

    O referido descolamento leva autonomia federativa, considerada a pe-dra-de-toque do Estado federativo, pois seu contedo que determina o grau de descen-

    21 Cf. TELLO, Pilar Jimnez. Variantes del federalismo en europa: el estado autonmico espaol. In: CAG-

    GIANO, M. H.; RANIERI, N. (orgs.). As novas fronteiras do federalismo. So Paulo: Imprensa Oficial, 2008. p. 81-3.

  • 27

    tralizao deste ltimo. Entretanto, assim como outros conceitos que gravitam em torno do federalismo, no h, quanto sua exata definio, um consenso doutrinrio, a despeito da antiguidade de sua teorizao e da diversidade de experincias concretas que a histria a-presenta.

    A CRFB-88, seguindo o modelo apresentado pelas demais Constituies federativas brasileiras, no explicita qualquer conceito de autonomia federativa, tampouco apresenta critrios claros e objetivos para sua delimitao.

    Decorrente da adoo dessa forma de Estado, a autonomia federativa tambm vem prevista explcita e implicitamente ao longo do texto constitucional, especi-almente nos artigos 23, 24 e 25 do texto permanente e do artigo 11 do ADCT. O legislador constituinte, no entanto, adotou frmulas imprecisas e conceitos indeterminados para deli-mit-la. Dentre eles, impende destacar a necessidade de observncia dos princpios consti-tucionais previstos na Constituio federal pelo poder constituinte dos Estados-membros, sem haver uma definio clara de quais so e - mesmo, o que so - os princpios constitu-cionais que devem ser "observados" pelos Estados-membros.

    Alm disso, o contedo da autonomia federativa, que abrange no apenas a competncia constituinte, tambm encontra-se margeado por conceitos indeterminados, como "normas gerais", "interesse local", "peculiaridades dos Estados".22

    O uso de construes imprecisas nesse campo agravada pela falta de normas de orientao para soluo de conflitos federativos de competncias. A falta de de-finio desses conceitos e dos parmetros delimitadores da autonomia federativa serve a um fim conhecido, que a criao de insegurana jurdica, a qual d a margem necessria para as constantes composies de interesses entre a sociedade poltica e a sociedade civil.

    Por essa razo, a segunda parte do trabalho detm-se na busca de uma de-limitao universalizvel de autonomia federativa. Ali se constata que sua qualidade, e

    22 Tal uso indiscriminado e - qui - intencional de conceitos de contedo indeterminado no privilgio do

    Brasil, mas se verifica igualmente em outros Estados, mesmo no estritamente federativos, como a noo de interesse especfico em Portugal (at a Reforma constitucional de 1997), a clusula de prevalncia na Espa-nha e os princpios gerais e fundamentais na Itlia. Cf. MORAIS, Carlos Blanco. Poderes legislativos regio-nais em direito comparado: um balano a duas dcadas de autonomia legislativa. In: A autonomia no plano jurdico. Actas do I Centenrio da autonomia dos Aores. Jornal de Cultura, 1995, p. 97-114. No mesmo sen-tido, mas especificamente de Portugal, cf. MEDEIROS, Rui. A tentativa fracassada de alargamento da com-petncia legislativa regional na reviso de 2004 e a prxima reviso constitucional. In: Aores: uma reflexo jurdica. Lisboa: Coimbra Editora, 2011. p. 21.

  • 28

    no seu grau, que determina a existncia ou no de estatalidade23, essencial configurao do Estado federativo. Tal afirmao importante, pois dela decorre o reconhecimento de que h Estados federativos menos descentralizados que Estados unitrios.

    Apenas os entes subestatais dotados de estatalidade podem ser considera-dos Estados federados. A busca pelo contedo dessa estatalidade exige um retorno Teo-ria Geral do Estado, o que permite isolar seus elementos essenciais, chegando-se, assim, a um conceito moderno de autonomia federativa.

    A articulao lgica dos elementos analisados at esse ponto possibilita a adoo da tese de que a autonomia federativa o poder poltico coercitivo constitudo de criar uma ordem jurdica, constituindo as competncias mnimas necessrias24 para a auto-determinao da sociedade por ela regida, no exerccio das quais atua como Estado.

    A tese adotada exige desdobramentos e a delimitao de um contedo mnimo para sua caracterizao, o que se faz mediante a adoo de teses subsidirias.

    A segunda parte serve, assim, como premissa maior da presente tese. Na ltima parte encontra-se a sntese, a subsuno do modelo brasileiro atual ao padro encon-trado na experincia histrico-comparada. Interpretou-se o sistema de repartio de compe-tncias mediante o emprego das tcnicas fornecidas pela hermenutica tradicional. Isoladas as lacunas e as contradies que as interpretaes gramatical, sistemtica, histrica e teleo-lgica no foram capazes de resolver, recorreu-se s partes anteriores para promover a a-dequada integrao normativa luz dos princpios informadores do federalismo institucio-nal.

    23 O termo estatalidade no consta do lxico portugus, pouco empregado na doutrina brasileira e mais u-

    sual na doutrina alem. No Brasil, o termo empregado, dentre outros autores, por Gilberto Bercovici. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituio. So Paulo: Max Limonad, 2003. p. 146. Outros autores empregam formas compostas, como condio de Estado, carter de Estado. Pontes de Miranda emprega o termo dado real do Estado. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Coment-rios constituio de 1946... cit. t. 1. p. 40. O mesmo se verifica na doutrina francesa, onde no h um voc-bulo equivalente para o termo estatalidade. Neste trabalho, emprega-se estatalidade como neologismo for-mado a partir do adjetivo estatal seguido do sufixo formador de substantivos abstratos (-idade), por parale-lismo com a forma inglesa statehood e com a forma alem staatlichkeit. A doutrina alem tambm costuma empregar o termo staatscharakter (carter de Estado). Cf. STERN, Klaus. Das staatsrecht... cit. p. 484. GR-ZESZICK, Bernd. Der gedanke des fderalismus in der staatsund verfassungslehre vom westfalischen frie-den bis zur weimarer republik. In: HRTEL, I. (org.). Handbuch fderalismus: Fderalismus als demokratische rechtsordnung und rechtkultur in deutschland, europa und der welt. t. 1. Grundlagen des fderalismus und der deutsche bundesstaat. Heidelberg: Springer, 2012. p. 92. 24

    Ou seja, abrangendo a legislao, a administrao e a jurisdio. Essa tambm a concluso de Pontes de Miranda, ao comentar Jellinek: Assim, na autonomia constitucional estaria o trao distintivo [entre Estados-membros e os Domnios britnicos, que no podem mudar de Constituio]. Dela deveriam ser corolrios a legislao, a administrao e a jurisdio." PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios constituio de 1946... cit. t. 1. p. 62.

  • 29

    A pesquisa se deu sob o influxo da linha de pesquisa do federalismo, em-pregando-se os mtodos zettico25 e dogmtico.

    A natureza do tema exigiu que houvesse menos recurso lgica silogsti-ca tradicional, priorizando-se a reconstruo histrico-evolutiva dos institutos envolvidos, para - s a partir de ento - alcanar a delimitao proposta.

    Para tanto, o uso do mtodo dialtico fez-se necessrio, a despeito do predomnio da dogmtica jurdica na presente pesquisa, eis que inerente prpria matria abordada.26 Acentuou-se, porm, o carter dialtico na pesquisa zettica, imprescindvel para obteno dos dados a serem tomados como premissas no enfrentamento das questes-objeto formuladas.27

    Sob a perspectiva dogmtica, analisaram-se os institutos envolvidos me-diante o emprego da lgica formal, com as tcnicas especficas de interpretao (lgico-gramatical, sistemtico, histrico e teleolgico) do ordenamento jurdico-constitucional. Ainda sob o influxo do dogmatismo, utilizaram-se classificaes mais apropriadas ao estu-do proposto, de modo a isolar tecnicamente conceitos distintos, diminuindo-se as confu-ses semnticas comumente encontradas no estudo dogmtico do federalismo, abordando-se criticamente as classificaes e os conceitos propostos pela doutrina.

    J o mtodo zettico foi empregado para a melhor compreenso dos fe-nmenos poltico-jurdicos envolvidos, para sua anlise crtica e, em algumas hipteses, para o preenchimento de lacunas ou para a soluo de antinomias, atravs das seguintes subdivises:

    a) Zettica emprica pura, mediante a utilizao do mtodo histrico-conceitual, buscando-se compreender o conceito de autonomia federativa (e todos os que

    25 Cf. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito. 2. ed. So Paulo: Editora Atlas,

    1994. p. 39-51. 26

    o que se infere dos ensinamentos de Georges Politzer: (...) a lgica da identidade, tambm chamada l-gica formal ou da no-contradio, necessria, apesar de no ser suficiente, Ignor-la ou ridiculariz-la dar as costas realidade. POLITZER, Georges; BESSE Guy; CAVEING, Maurice. Princpios fundamentais de filosofia. 2. ed. Trad. J. C. Andrade. So Paulo: Fulgor, 1963. p. 81. 27

    Afinal, h que se considerar as lies de Tercio Sampaio Ferraz Jnior: (...)os juristas, em termos de um estudo estrito do direito, procurem sempre compreend-lo e torn-lo aplicvel dentro dos marcos da ordem vigente. Esta ordem que lhes parece como um dado, que eles aceitam e no negam, o ponto de partida ine-lutvel de qualquer investigao. Ela constitui uma espcie de limitao, dentro da qual eles podem explorar as diferentes combinaes para a determinao operacional de comportamentos juridicamente possveis (...) verdade que o jurista terico, por outro lado, no pode desprezar as investigaes a respeito de qual o di-reito efetivo de uma comunidade, quais os fatores sociais que condicionam sua formao, qual sua eficcia social, qual sua relevncia como instrumento de poder, quais os valores que o justificam moralmente, etc. Ou seja, ele se vale tambm da pesquisa zettica. Mas, apesar disso, em sua perspectiva prepondera o aspecto dogmtico". FERRAZ JNIOR, Tercio Sampaio. Introduo ao estudo do direito...cit. p. 48. Sublinhei.

  • 30

    em seu torno gravitam) a partir dos modelos constitucionais utilizados no Brasil e na expe-rincia estrangeira, de modo no apenas para apreender seu significado histrico, mas tam-bm para precisar sua conceituao, garantindo-se, assim, a acuidade do estudo.28 Recor-reu-se ao mtodo dedutivo para a formulao de propostas ou de respostas a partir da evo-luo histrico-positiva do federalismo, lgica-formal, pela observao direta dos fatos (causalidade linear) e lgica dialtica, analisando-se os mesmos institutos envolvidos em seu dinamismo (causalidade circular), tencionando captar suas transies e contradies.

    b) Zettica emprica aplicada, analisando-se o fenmeno da diviso verti-cal do poder, sob a perspectiva de atuao do sistema de repartio de competncias (su-perestrutura) nos campos poltico e econmico (infraestrutura), bem como considerando os desafios e as limitaes na busca de uma atuao legislativa que vise contemplao dos anseios dos Estados-membros por maior autonomia.

    c) Zettica analtica pura, mediante a crtica dos fundamentos emprega-dos pela doutrina e pela jurisprudncia para delimitao da autonomia federativa, em espe-cial a adoo de uma tipologia de princpios constitucionais e a interpretao de conceitos indeterminados no consentnea com a harmonizao constitucional necessria.

    d) Zettica analtica aplicada, preocupando-se com a instrumentalidade dos princpios incidentes e sopesveis, notadamente os princpios condicionantes da auto-nomia federativa.

    A tese apresentada no apenas defende posicionamentos jurdicos, mas traz uma contribuio original ao estado da arte do tema da autonomia federativa, especi-almente por:

    1) analisar paralelamente o fenmeno do federalismo em trs perspecti-vas: ideal, formal e real;

    2) correlacionar as dificuldades tericas trazidas pelo complexo meca-nismo de repartio de competncias introduzido pela CRFB-88 com fatores tcnico-legislativos, polticos, histricos e econmicos;

    28 Vale lembrar a lio de Carlos Maximiliano, a qual, por refletir de forma precisa a inteno deste estudo,

    convm citar na ntegra: A histria da Constituio, em geral, e a de cada um dos seus dispositivos, em par-ticular, auxiliam a interpretar os dizeres controvertidos. Estudem-se as origens do cdigo fundamental, as fontes de cada artigo, as causas da insero das diversas providncias na lei, os fins que se tiveram em mira ao criar determinado instituto, ou vedar certos atos. Tente-se compreender o estatuto brasileiro luz da Hist-ria e da evoluo dos princpios republicanos, examinando quais as ideias dominantes na poca do advento do novo regime, o que se pretendeu manter, o que se preferiu derrogar. MAXIMILIANO, Carlos. Coment-rios constituio brasileira. 5. ed. atual. So Paulo: Freitas Bastos, 1954. v. 1. p. 130.

  • 31

    3) propor a atualizao e reviso, quando til, de parte da classificao de institutos afins comumente adotada, bem como da terminologia usualmente empregada, di-ferenciando os processos de federao, de federalizao e de descentralizao;

    4) trazer uma abordagem do federalismo sob a perspectiva do Estado fe-derado, e no sob a perspectiva do Estado federativo;

    5) analisar zeteticamente e reconstruir dogmaticamente a estrutura do Es-tado federativo e do Estado federado, luz dos novos arranjos federativos e das necessida-des presentes no Estado moderno;

    6) propor novo conceito de autonomia federativa, inferido a partir da comparao entre modelos histricos e contemporneos de descentralizao poltico-governamental das sociedades estatais e protoestatais;

    7) aplicar esse novo conceito ao Estado brasileiro posto pela CRFB-88, delimitando as competncias que constituem a autonomia federativa, buscando-se auferir subsdios tericos gerais aplicveis soluo de conflitos federativos e aptos a infirmar engodos ideolgicos latentes no discurso jurdico, apresentados sob a forma de equvocos lgicos ou de sofismas;

    8) propor nova interpretao para a soluo de antinomias e para a inte-grao normativa, mediante o emprego de princpios informadores do federalismo, tais como o princpio do interesse predominante, da subsidiariedade e, em especial a prevaln-cia da autonomia federativa, no caso de dvidas;

    9) propor nova interpretao e aplicao de conceitos equvocos, como as expresses "princpios", normas gerais e interesse local;

    10) propor um alcance limitado pela realidade institucional contempor-nea e pela nova ordem jurdico-constitucional das concepes de "forma federativa de Es-tado e de separao dos poderes.

  • 32

    PARTE 1

    O FEDERALISMO COMO DIVISO DO PODER ESTATAL: AS-PECTOS ESSENCIAIS DE SUA EVOLUO

    provvel que os homens teriam sido obrigados a vi-ver sempre sob o governo de um s, se no tivessem imaginado uma forma de constituio que tem todas as vantagens internas do governo republicano e a fora exterior do monrquico. Falo da repblica federativa.

    (SECONDAT, Charles-Louis, Baron de la Brde et de MONTESQUIEU. De lesprit des lois. Introd. notas e variantes por Gonzague Truc. Paris: Garnier Frres, 1949. t. 1. p.137. Traduzi)

  • 33

    A histria do federalismo praticamente se confunde com a histria do constitucionalismo moderno. Ambos fixam suas razes mais profundas na experincia nor-te-americana, em que Estados preexistentes abdicam de parte de sua liberdade em prol de uma entidade superior, capaz de garantir a independncia conquistada.

    Dessa forma constitudo, como um "Estado de Estados", o federalismo passou a ser percebido de modo esttico, como forma de descentralizao do poder, influ-enciando o constitucionalismo moderno com sua utilizao ideolgica de manuteno da unidade na diversidade, ou da diversidade na unidade, como ocorreu no Brasil, aps a Proclamao da Repblica, e com sua utilizao ideolgica de limitao do poder estatal.

    Em alguns Estados, essa ltima funo passou a ter tanta importncia no constitucionalismo moderno, quanto prpria separao de poderes, razo pela qual o federalismo tambm passou a ser designado como diviso vertical do poder, contrapondo-se diviso horizontal promovida pela separao de poderes.

    Entender a funo ideolgica e o desenvolvimento histrico do federa-lismo essencial para se buscarem, nas experincias federativas, categorias prprias e comuns dessa forma de Estado, que permitam induzir o que seria a forma federativa de Estado, protegida com clusula de imutabilidade pelo artigo 60, 4, inciso I, da CRFB-88, e a prpria autonomia que caracteriza os Estados componentes - a autonomia federa-tiva.

    Como se ver, os conceitos de autonomia federativa e de federalismo complementam-se, implicam-se, como numa relao causal-consecutiva: aquele, enquanto poder estatal limitado; este, enquanto limitao do poder estatal.

  • 34

    1.1. EVOLUO DO PODER POLTICO "ESTATAL" E SUA LIMITAO

    O desenvolvimento do federalismo liga-se diretamente limitao do poder estatal. Quer no plano terico, quer no plano concreto, as solues federativas cons-tituram respostas para necessidades concretas de tal limitao.

    Mesmo no caso dos Estados Unidos da Amrica, donde o federalismo emerge como necessidade histrica de proteo, a ser obtida com a sinergia da Unio de Estados preexistentes, seus tericos buscaram, nas experincias histricas e nas teorias j desenvolvidas, mecanismos de limitao do poder estatal.

    Sendo o Estado federativo caracterizado pela multiplicidade de "poderes estatais", sua compreenso requer um estudo prvio do que vem a ser tal poder, como se originou e por que se busca limit-lo.

    1.1.1. O poder estatal como resultado da negao da liberdade individual pela socie-dade poltica

    O Estado, enquanto sociedade poltica, um conjunto de relaes de po-der e um produto da interao dessas relaes.29 Tal concepo, comumente negligenciada, explica o erro comum em se atribuir a sociedades apolticas (sociedades meramente civis) o nome de Estado. 30

    As sociedades polticas constituem uma negao das sociedades civis, as quais, numa perspectiva contratualista, originam-se a partir da negao da sociedade natu-ral.

    Num primeiro momento, a negao da sociedade natural se d mediante o abandono da esfera de autodeterminao do indivduo em prol da vida em sociedade. Primeiro, o indivduo negou a si prprio, para viver em famlia. Depois, negou a famlia, para viver em cls, os quais foram negados para uma vida nas tribos. A negao das tribos leva origem das formas mais complexas de sociedade civil, como a civitas e a polis, ex-

    29 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios constituio de 1946... cit. t. 1 . p .

    45; BARROS, Srgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilizao. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 3. Sobre o conceito de "Estado" cf., ainda, KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. Trad. Lus Carlos Borges. So Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 278 ss. Paulo Bonavides oferece um conceito marxista. BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado. So Paulo: Malheiros, 2007. p. 156. 30

    Tal negligncia se deve, sobretudo, viso exclusivamente jurdica do Estado difundida a partir do sculo XIX, tendo como expoentes Carl Friedrich e Paul Laband, a despeito de uma viso concreta do Estado. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituio. So Paulo: Max Limonad, 2003. p. 44-5.

  • 35

    presses mais estudadas da Cidade Antiga. Essa no conhecia, ainda, o poder poltico esta-tal, o qual pressupe uma relao de oposio desigual entre dois sujeitos. No existe o poder em si. Poder exprime conceito relativo, a implicar a necessria sujeio de um indi-vduo a uma vontade exterior.31

    Na civitas e na polis, a nica vontade exterior que sujeitava o indivduo era a divina e a de seus antepassados. No se verificava ali, portanto, um poder poltico, mas um poder divino.

    As relaes existentes na antiga sociedade civil no eram, desse modo, relaes de poder poltico, pois a sociedade no exercia uma coero institucional sobre os indivduos, mas uma mera coao natural.32

    Deveras, a cidade antiga desconhecia a liberdade individual, a liberdade- oposio33. O civis (cidado) no possua direitos contra a cidade, mas em face dela e dos seus deuses. Dada sua origem na religio, nela no se verifica a relao de sujeio entre o civis e a autoridade poltica, mas entre a civitas (cidade poltica), constituda por cada civis, e o poder divino.34 Por essa razo, no se encontra entre os autores antigos qualquer noo que se refira ao conceito moderno de soberania, ligado noo de coero institucional.

    31 Cf. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. t. 3. Estrutura constitucional do estado. 4. ed. Co-

    imbra: Coimbra Editora, 1998. p. 26. CAETANO, Marcello. Manual de cincia poltica e direito constitu-cional. 6. ed. rev. amp. t. I. Lisboa: Coimbra Ed., 1972. p. 5-6. 32

    Srgio Resende de Barros entende que a coero derivaria da coao natural. Essa seria o resultado da fora de coeso natural da sociedade sobre seus membros, do todo sobre as partes, que, uma vez instituciona-lizada, receberia o nome de coero. BARROS, Srgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civiliza-o...cit. p. 57-9. 33

    Como explica Srgio Resende de Barros, o civis (cidado) participava da liberdade da civitas (cidade pol-tica), mas no era livre por ter ao parte do poder poltico, mas por ter parte na ao do poder poltico. No havia direito in civitatem (contra a cidade), mas apenas in civitate (na cidade).". Segundo o mesmo autor, a liberdade dos antigos 'consistia em exercer coletiva, porm, diretamente muitas partes do inteiro' poder da polis. Por exemplo, 'deliberar na praa pblica sobre a guerra e a paz; concluir com os estrangeiros tratados de aliana; votar as leis, pronunciar as sentenas, examinar as contas, os atos, as gestes dos magistrados, fa-z-los comparecer ante todo o povo, acus-los e conden-los ou absolv-los'. No entanto, 'ao mesmo tempo que era tudo isso o que os antigos chamavam liberdade, eles admitiam como compatvel com essa liberdade coletiva a sujeio completa do indivduo autoridade da multido reunida'. Em suma, a liberdade dos anti-gos era liberdade coletiva e no, como na poca de Constant, liberdade individual. Como disse terminante-mente Condorcet citado por Constant 'os antigos no tinham noo alguma dos direitos individuais' . BARROS, Srgio Resende de. Direitos humanos...cit. p. 148-9. Grifos do autor. 34

    Tal afirmao bem retratada nas palavras de Fustel de Colanges: "A cidade havia sido fundada como uma religio e constituda como uma igreja. Da sua fora; da tambm a sua onipotncia e imprio absoluto que exercia sobre seus membros. Em sociedade estabelecida sobre tais princpios, a liberdade individual no podia existir. O cidado estava, em tudo, submetido cidade, sem reserva alguma; pertencia-lhe inteiramen-te. A religio, que dera origem ao Estado, e o Estado, que sustentava a religio, apoiavam-se mutuamente e formavam um s corpo; esses dois poderes associados e vinculados constituam um poder quase sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente submetidos. (...) Nada no homem havia de inde-pendncia. Seu corpo pertencia ao Estado e destinava-se sua defesa (...)." COLANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituies da Grcia e de Roma. Trad. Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca. So Paulo: Hemus, 1975. p. 182. Grifei.

  • 36

    Essa liberdade-participao ou liberdade coletiva requeria, portanto, um conceito prprio que prescindisse da existncia de uma oposio entre o poder da plis ou da civitas e outros poderes35. Surge, assim, a noo de autarquia, extensvel civitas ro-mana, dada a semelhana de suas organizaes estatais:

    A plis uma comunidade formada de vrias aldeias. Tem, por assim dizer, o fim de autarquias, sendo constituda no apenas para garantir a existncia, mas tambm o bem-estar. Toda a plis, portanto, assim como as primeiras comunida-des, provm da natureza, que tambm seu fim ltimo: se a natureza de cada coisa o fim que a originou, o mesmo se diz do homem, do cavalo ou da famlia, quando atingem seu pleno desenvolvimento. Alm disso, o destino e o fim de to-dos os seres constituem seu maior bem. E a autarquia ao mesmo tempo um fim e um ideal.36

    35 Georg Jellinek explica que a Antiguidade desconhecia o conceito de soberania ou outro equivalente, em

    razo de faltar ao mundo antigo o nico dado capaz de trazer conscincia o conceito de soberania: a oposi-o entre o poder do Estado e outros poderes. JELLINEK, Georg. Allgemeine staatslehre. Berlim: O. Hring, 1905. p. 426. No mesmo sentido, afirma Srgio Resende de Barros, "no houve na prtica antiga e, portan-to, no houve na sua teoria a ideia de um poder supremo, soberano, embasado em si e por si mesmo, sem lei que o vinculasse base social; ou seja, um poder solutus a legibus. A ideia de soberania, como marca de uma sociedade poltica por ela diferenciada moderna. Recuando ao mximo, chega ao fim do medievo." BARROS, Srgio Resende de. Direitos humanos... cit. p. 121. 36

    Aristote. Politique. Trad. Francesa Barthlemy Saint-Hilaire. Troisime dition. Paris: Librairie Philoso-phique de Ladrange, 1874. Fotocpia disponvel em: . Acesso em: 23 nov. 2010. p. 197. Aristotle. Politica. Oxford: Clarendon Press, 1957. I . 1252b. Eis o excerto em seu original: " pi pi, pi pi - pi pi, , . pi pi , pi pi . , : - , , pi pi pipi . . ". Disponvel em: Perseus Digital Library < http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0057 >. Acesso em: 1 mai. 2010. O tre-cho em alfabeto latino pode ser assim representado: "I d ek pleinon komn koinonia tleios polis, idi psis chousa pras ts autarkeas os pos eipen, ginomni mn to zin neken, osa d to eu zn. Di psa plis fsei stin, eper ka ai prtai koinonai. Tlos gr fti ekeinon, i d fsis tlos estn: oon gr kaston esti ts genseos telesthesis, tftin famn tn fsin enai ekstou, sper anthrpou ppou oikas ti t o neka ka t tlos vltiston. I d autarkea ka tlos ka vltiston". As tradues de Poltica traduzem o termo (autarquia) como autossuficincia (cf. obras acima citadas), ou decompem seu sentido em expresses com-postas como faculdade de bastar a si mesma (Cf., e.g., ARISTTELES. Poltica. Coleo A Obra Prima de cada autor. So Paulo: Martim Claret, 2004. p. 10). Neste trabalho, optou-se pela traduo livre do excer-to em anlise, a partir do original grego, a fim de acentuar a distino entre o termo empregado por Aristte-les - (cuja representao em alfabeto latino autarkia) e o termo (cuja representao la-tina autarcha). Ambos os termos deram origem ao termo moderno portugus autarquia, que herdou ambos os significados: o derivado etimologicamente de autrkeia, que denota autossuficincia, e possui a forma correspondente, mas pouco utilizada, autarcia, e o derivado etimologicamente de autarcha (composto de u - si mesmo e comandar), significando, portanto, autocomando, autonomia, com a forma corres-pondente e tambm pouco empregada autocracia. Cf. BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionrio e-timolgico-prosdico da lngua portuguesa. So Paulo: Saraiva, 1963. v. 1. verbetes autarcia e autarquia. FREIRE, Laudelino. Grande e novssimo dicionrio da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1957. verbetes autarcia e autarquia. p. 388. Sobre a etimologia do termo na lngua grega, cf. CHANTRAI-NE, Pierre. Dictionnaire tymologique de la langue grecque. 2 v. Paris: ditions Klincksieck, 1983. v. 1. verbete , p. 104, e , p. 85. O francs distingue ortograficamente ambos os termos, empregando au-tarcie, autarchie para o sentido de autarkeia, e autocratie para denotar o mesmo que autarcha. Com efeito, o termo empregado por Aristteles (cuja origem etimolgica autrkeia) em nada se assemelha s noes de soberania ou de autonomia. Esses ltimos referem-se a uma forma de poder. J autarquia, no sentido por ele

  • 37

    Reunindo as autoridades que hoje correspondem ao Estado e Igreja e dominando a alma e o corpo do indivduo, a sociedade antiga, nas palavras de Fustel de Coulanges, havia sido "feita para durar", pois tinha um poder "infinitamente maior que o Estado Moderno". Ela, no entanto, no durou. O mesmo autor aponta duas causas princi-pais para seu desparecimento: a evoluo intelectual do indivduo, que passa a contestar a organizao social que o oprime com fundamento na crena religiosa, e a prpria opresso resultante, que desperta nos grupos postos margem da sociedade o interesse em destruir tal organizao. 37

    No regime antigo, a misria era quase desconhecida e a igualdade entre os homens era mais regra que exceo. O indivduo atendia s necessidades do patriarca e era por ele mantido. Mas as revolues geradas pelas classes oprimidas romperam essa or-dem de coisas e devolveram o homem ao estado de natureza.38

    Nesse estado, a igualdade entre os homens logo desaparece, medida que as famlias, retiradas de suas terras conquistadas em funo de seu trabalho contnuo, pre-cisavam agora recorrer fora para garantia de subsistncia com paz e segurana. A desi-gualdade natural dos homens cria uma primeira acumulao de propriedade e, em decor-rncia, uma nova relao de poder estabelecida: a vassalagem, na qual o indivduo trans-fere parcela do poder soberano sobre si a outro indivduo - o suserano - em troca da garan-tia de sua prpria liberdade.39

    Tais relaes progressivas de vassalagem, que caracterizavam o Feuda-lismo, constituiriam embries do Estado moderno, medida que a relao de sujeio veri-

    empregado, no consiste em uma forma de poder (tal como a variante autarcha, que se refere a poder abso-luto, no mesmo sentido do termo grego autokrteia, do qual derivou autocracia), mas o fim mesmo da polis. No conhecendo o grego ou o romano a liberdade individual j que sua vontade se confundia com a vonta-de da cidade e a vontade de seus deuses no era a soberania elemento essencial da polis, pois, constituindo a polis e o cidado o mesmo poder, no h como op-los um ao outro. No havendo, portanto, poderes anta-gnicos, o elemento essencial da civitas ou da polis era a autarquia, o ideal e fim de autossuficincia. 37

    COLANGES, Fustel de. A cidade antiga... cit. p. 187. 38

    Ibid., p. 267. 39

    Na resposta para a inquietante indagao sobre a origem da desigualdade entre os homens, numa perspec-tiva antropolgica, Rousseau escreve: As coisas nesse estado [ideal de natureza] poderiam ter permanecido iguais se os talentos fossem iguais e se, por exemplo, o emprego do ferro e o consumo dos alimentos estives-sem sempre em perfeito equilbrio. Porm a proporo que nada mantinha logo foi rompida; o mais forte rea-lizava mais obras; o mais esperto tirava melhor partido da sua; o mais engenhoso encontrava meios de abre-viar o trabalho; o lavrador tinha mais necessidade de ferro, ou o ferreiro mais necessidade de trigo e, traba-lhando igualmente, um ganhava muito enquanto o outro labutava para viver. assim que a desigualdade na-tural se desdobra sensivelmente com a desigualdade de combinao, e as diferenas dos homens, desenvolvi-das pelas das circunstncias, ficam mais sensveis, mais permanentes em seus efeitos, e comeam a influir na mesma proporo sobre a sorte dos particulares. ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. trad. M. E. Galvo. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 216 s.

  • 38

    ficada nos feudos, em meio a um cenrio marcado pela constante insegurana, de um lado, e pela atividade de tributao, de outro, daria origem a uma nova organizao da sociedade poltica.40 Nela, o poder soberano do indivduo sobre si (que se confunde com a prpria li-berdade no estado de natureza) negado pelo poder soberano do rei, o qual no concebi-do apenas como o senhor de suas posses, mas tambm como a personificao do poder da sociedade poltica.

    Com a ascenso da burguesia e a limitao dos poderes do rei, o poder coercitivo institucional passa a ser exercido por uma nova estrutura supraindividual, des-personalizada, representativa da vontade daquela sociedade poltica - o Estado. Da porque os conceitos de Estado e soberania so geralmente tidos como indissociveis.41

    Desse modo, para alguns, somente a partir do Mercantilismo possvel falar-se em Estado, como uma forma de sociedade poltica autnoma e independente da sociedade civil.42 Nela, a reao do indivduo revelar-se- pela mais-valia scio-

    40 Para Heller, o feudalismo no conheceu propriamente o Estado, ante a ausncia de uma ordem jurdica uni-

    tria, de um poder estatal unitrio. Cf. HELLER, Hermann. Teoria do estado. trad. L. G. da Motta. So Pau-lo: Mestre Jou, 1968. p. 162. 41

    Num ltimo momento, o poder do indivduo negado pela organizao poltica soberana ou sociedade po-ltica, que hoje se confunde com o prprio Estado. Vrias teorias foram construdas para justificar essa nega-o do poder individual pelo Estado (poder soberano): a fora como forma de legitimao do Estado (Hob-bes), a existncia de vnculos jurdicos (Rousseau, Kant e Fichte), a vontade divina (Santo Agostinho e Sta-hl), ou a necessidade moral (Plato, Aristteles e Hegel). Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcan-ti. Comentrios constituio de 1946. 3. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960. t. 1 . p . 52. So-bre as formas e evoluo do poder, cf. ainda BURDEAU, Georges. Trait de science politique... t. 1. cit. p. 248-304. Cf. tambm, do mesmo autor, o tomo 2 - Ltat, p. 41-68. 42

    A respeito do surgimento do Estado moderno, no h consenso. Segundo Celso D. de Albuquerque Mello, o primeiro Estado teria surgido na Idade Mdia, na primeira metade do sculo XIII, com Frederico II da Su-bia, no reino da Siclia, que teria criado a primeira monarquia absoluta. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional pblico. 13. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. v. 1. p. 340. Alguns, como Carl Schmitt, apenas reconhecem a existncia do Estado a partir do sculo XVII, concomitante ao apareci-mento da ideia e prtica da soberania, enquanto outros apontam a paz de Westflia como marco do apareci-mento dos Estados modernos. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. So Paulo: Saraiva, 2010. p. 55. Pontes de Miranda entende que o Estado moderno surge com o fim do feudalis-mo, marcado pelo rompimento com a ideia de conjunto, e pela adoo da ideia de unidade, incompatvel com o Estado Moderno. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios constituio de 1946. 3. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960, t. 1, p. 46-7. No mesmo sentido, Georges Burdeau, que i-dentifica o Estado como o poder institucionalizado, aquele que o governante possui no como uma prerroga-tiva que lhe prpria, mas como um poder a si outorgado por outro poder superior. BURDEAU, Georges. Trait de science politique... t. 1. cit. p. 256-7. Tambm Rubens Beak entende que somente a partir da veri-ficao emprica de que alguns senhores feudais (...) acabaram por se afirmar perante outros que se pode-ria falar no surgimento do Estado moderno. BEAK, Rubens. Estado de direito, formas de estado e constitui-o. Em Tempo Revista da rea de Direito do UNIVEM, Marlia, v. 10, p. 85-98, 2011. p. 87. Aqui, adota-se a tese de que s se pode falar em Estado com o incio do capitalismo mercantil, momento em que irrom-pem, a partir das organizaes polticas anteriores, dois aspectos distintos de uma mesma sociedade: a socie-dade poltica e a sociedade econmica, pois, apenas nesse momento torna-se ntida a contradio desses po-los, marcada por uma relao de sujeio institucionalizada, que caracteriza o poder estatal. Cf. BARROS, Srgio Resende de. Contribuio dialtica... cit. p. 40.

  • 39

    econmica, em virtude da qual esse mesmo indivduo, agora como agente econmico, po-der negar o absolutismo, fazendo irromper a separao entre sociedade civil e sociedade poltica43.

    Por outro lado, a ideia de soberania tambm evolui. De um atributo pes-s