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TEMA REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI Saramandaia gera debate sobre as representações do real na cultura latino-americana e evoca a obra de Dias Gomes e o contexto dos anos 1970

REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

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TEMA

REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI Saramandaia gera debate sobre as representações do real na cultura latino-americana e evoca a obra de Dias Gomes e o contexto dos anos 1970

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Caderno Globo Universidade, n. 3 –Rio de Janeiro, Globo, 2013 ISSN 2316-7432Tema: Realismo mágico no século XXI

Disponível na web http://bit.ly/15OkgFh

CONSELHO EDITORIAL

Alice-Maria Reiniger – Globo

Beatriz Azeredo – UFRJ/Globo

Galeno Amorim – Observatório do Livro e da Leitura

Helena Nader – SBPC

Heloisa Buarque de Hollanda – UFRJ

Lucia Araújo – Fundação Roberto Marinho

Luiz Eduardo Soares – Uerj

Maria Adelaide Amaral – Globo

Maria Immacolata Vassallo de Lopes – USP/Obitel

Marialva Barbosa – UFRJ/Intercom

Sérgio Besserman – PUC-Rio

Viviane Mosé – Usina Pensamento/Rádio CBN

Realização Comunicação − GloboSérgio Valente, diretorDiretoria de Responsabilidade Social

Beatriz Azeredo, diretora; Viridiana Bertolini, gerente; Viviane Tanner, supervisoraEquipe

Alvaro Marques, Fatima Gonçalves, Gisele Gomes, Juan Crisafulli, Julia Fernandes e Letícia CastroDiretoria de Produção EditorialAndrea Doti, diretora; Ariadne Guimarães, supervisora Editores Graziella Beting e Paulo JebailiPesquisaCedoc RevisãoViviane RoweProjeto gráfico e editoraçãoRefinaria DesignCapa e desenhos6B Estúdio

As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Todo material incluído nesta revista tem a autorização dos autores ou de seus representantes legais. Nenhuma parte dos artigos da revista pode ser reproduzida sem a autorização prévia do Globo Universidade, dos autores ou seus representantes legais.

Sobre o Globo Universidade

Esta publicação é uma iniciativa do Globo Universidade, área da Globo dedicada ao relacionamento com o meio acadêmico.

Criado em 1999, o Globo Universidade tem como missão compartilhar experiências para somar conhecimento. Para isso, estabelece parcerias com universidades do Brasil e do exterior, promove debates e seminários, edita publicações e dá apoio a pesquisas, contribuindo para a produção e divulgação científica, além da formação de futuros profissionais.

A proposta do Caderno Globo Universidade é disseminar informação e ampliar o alcance dos encontros presenciais da área, sistematizando e difundindo o conhecimento gerado. Com isso, os encontros ganham uma versão perene para atingir mais leitores e transformar-se em um documento de consulta em bibliotecas, universidades e centros de pesquisa.

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sumárioNesta edição ............................................................................................................................................................................................................................ 6

Artigos.............................................................................................................................................................................................................................................. 8

Dramaturgia Beatriz Resende, da UFRJ

SUBVERSIVO MIDIÁTICO, INTELECTUAL E POPULAR ............................................................................................................... 10

Vertentes Vera Lúcia Follain de Figueiredo, da PUC-Rio

REALISMO MARAVILHOSO: O REALISMO DE OUTRA REALIDADE ................................................................................16

Realismos Vera Lúcia Follain de Figueiredo, da PUC-Rio

FANTÁSTICO, MARAVILHOSO E MÁGICO: UMA DIFERENCIAÇÃO .................................................................................23

Literatura Ana Lúcia Trevisan, da Universidade Presbiteriana Mackenzie − SP

CAMINHOS DA REPRESENTAÇÃO DO REAL .......................................................................................................................................... 26

História Júlio Pimentel Pinto, da USP

A FICÇÃO E SUAS LUZES REVELADORAS ..................................................................................................................................................32

Humor Elias Thomé Saliba, da USP

OS TONS DE COMÉDIA DE SARAMANDAIA .............................................................................................................................................. 38

Imaginário Luiz Costa Pereira Junior, jornalista

SANTO ANTÔNIO JÁ FOI VEREADOR NO BRASIL ............................................................................................................................ 44

Televisão Mauro Alencar, pesquisador e membro da Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York (Emmy)

A MAGIA DA AMÉRICA LATINA .............................................................................................................................................................................50

Entrevistas ................................................................................................................................................................................................................................. 56

RICARDO LINHARES ....................................................................................................................................................................................................... 58

JOSÉ WILKER ..........................................................................................................................................................................................................................64

LIMA DUARTE ........................................................................................................................................................................................................................70

FERREIRA GULLAR ........................................................................................................................................................................................................... 76

EDNARDO ................................................................................................................................................................................................................................... 82

DIAS GOMES ............................................................................................................................................................................................................................88

Debate ..........................................................................................................................................................................................................................................94

Galeria ....................................................................................................................................................................................................................................... 102

Exposição ...............................................................................................................................................................................................................................110

Linguagem ............................................................................................................................................................................................................................. 114

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Um homem que solta formigas pelo nariz, uma mulher que explode de tanto comer, um professor que vira lobisomem, um jovem que nasceu com asas e outro que, quando fica nervoso, coloca o coração pela boca. Zico Rosado, Dona Redonda, Aristóbulo, João Gibão e Seu Cazuza são perso-nagens da ficção que entraram para a história da televisão brasileira.

Quase 40 anos depois de criados, esses tipos inesquecíveis voltaram às telas, com o remake da novela Saramandaia, e mostraram que, mesmo em tempos de reality shows, ainda há espaço para o realismo maravilhoso no século XXI.

Essa vertente literária, que marcou a produção latino-americana dos anos 1940 a 70, teve na novela escrita por Dias Gomes em 1976 seu principal representante na teledramaturgia.

Na época da exibição da novela, o Brasil vivia sob a ditadura militar. Saramandaia tinha, então, nas palavras do próprio autor, o duplo propósito de driblar a censura imposta pelo regime e experimentar uma linguagem nova na televisão. Os símbolos e metáforas presentes no texto ajudavam a revelar os absurdos da própria realidade do país. Na fictícia cidade de Bole-Bole, onde se passa a trama, por trás da fantasia não faltavam coronéis autoritários, disputas políticas e jovens sonhando com mudanças. Tudo culminando com uma grande alegoria da liberdade, quando João Gibão revelou suas asas e sobrevoou a cidade.

Em 2013, Saramandaia voltou à televisão em versão atualizada. Livremente inspirada na obra de Dias Gomes, a nova novela, exibida entre junho e setembro de 2013, foi escrita por Ricardo Linhares e dirigida por Denise Saraceni. O autor trouxe o microcosmo de Bole-Bole para a realidade atual. Contando com recursos técnicos muito mais elaborados, Linhares criou novos enredos e personagens – como o homem que literalmente fincou raízes em casa, uma mulher que se derrete de amor e outra que cria galinhas imaginárias.

Imprimindo uma linguagem contemporânea à trama, Linhares mostra que hoje as lutas podem ser outras, mas o recurso ao simbolismo fantástico como representação do real é de total atualidade. A Bole-Bole de 2013 tem políticos corruptos e afeitos a conchavos,

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Nesta edição // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

jovens manifestantes que querem moralizar a vida pública, amores secretos e gente diferente vitimada pela intolerância dos outros. Sem deixar de lado o humor e o insólito que marcaram a novela desde sua origem.

Para aprofundar a discussão sobre as diferentes vertentes do realismo e do fantástico na literatura e na televisão, as características do gênero e o legado de Dias Gomes na história da dramaturgia brasileira, o Globo Universidade realizou, nos meses de exibição da novela, dois seminários e uma mesa-redonda – no Rio de Janeiro, em Paraty e em São Paulo –, reunindo professores e especialistas em dramaturgia, literatura e televisão. Esta edição do Caderno Globo Universidade reúne as palestras e debates realizados durante esses encontros. Também traz artigos complementares, que analisam o contexto histórico, político e cultural dos anos 1970. Além disso, por meio de entrevistas e depoimentos, atores, músicos e escritores, parceiros ou contemporâneos de Dias Gomes, analisam sua trajetória e sua obra.

Na seção Galeria de Personagens, são apresentados os tipos inesquecíveis criados pelo dramaturgo, além das novidades da versão atual e a descrição dos efeitos especiais utilizados hoje. Uma série de fotografias mostra como foi a exposição dedicada ao universo de Saramandaia, realizada em junho no Museu de Arte do Rio (MAR), e uma homenagem a Dias Gomes, na Casa do Autor Roteirista de Paraty, montada durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho. No final, decriptamos o saramandês, dialeto típico da cidade, que mostrou ter sobrevivido a quase quatro décadas, sem perder o vigor.

Boa leitura

Saramandaia volta à televisão com novas metáforas e alegorias

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artigosA imaginária Bole-Bole:

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DIAS GOMES, O DRAMATURGO DO POVO

Com intensa atuação política, o autor da primeira versão de Saramandaia construiu uma obra com grande densidade, capaz de deixar personagens gravados no imaginário popular

Dias Gomes começou a ganhar projeção como autor com as radionovelas nos anos 1940. Intelectual e militante da esquerda, produziu peças na década de 1960 com acentuado teor político, o que o tornou alvo constante da censura durante o regime militar.

Em 1969, foi convidado a trabalhar na televisão. Apesar dos cortes e das proibições, suas telenovelas conseguiram atingir expressivas camadas da população. Em Saramandaia, de 1976, ele adotou o realismo fantástico como forma de falar, por metáforas, sobre temas referentes ao contexto nacional da época e, assim, escapar do jugo dos censores.

No artigo a seguir, a professora Beatriz Resende discorre sobre a trajetória profissional de Dias Gomes e as marcas deixadas por sua obra na dramaturgia brasileira.

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Beatriz Resende é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora titular de Poética do Departamento de Ciências da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É autora de: Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI (Casa da Palavra/FBN, 2008), Apontamentos de crítica cultural (Aeroplano/DNL, 2002), organizou o volume A literatura latino-americana no século XXI (Aeroplano, 2005), entre outros

DRAMATURGIA

SUBVERSIVO MIDIÁTICO, INTELECTUAL E POPULARBeatriz Resende, da UFRJ

Na semana em que a nova versão de Saramandaia estreou, em junho de 2013, o Brasil vivia um momento especial. Diversos segmentos da população saíram às ruas para se manifestar, usando como meio de mobilização as redes sociais. Tudo isso não poderia ser mais oportuno para a reestreia de uma obra de Dias Gomes, que foi chamado de “dramaturgo do povo”.

Saramandaia voltou a público atualizada, sintonizada com o novo século, com os novos espectadores, com as novas técnicas. O que liga o momento atual a Saramandaia, em especial, é a perplexidade, a dificuldade em encontrar explicações usando argumentos e instrumentos de análise e compreensão tradicionais. Os cientistas políticos e historiadores são os primeiros a reconhecer essa perplexidade. O espanto diante do inusitado. Assim aconteceu com Saramandaia, quando foi lançada, em 1976. Mas vou começar por Dias Gomes e sua dramaturgia para chegar até ela.

Alfredo Dias Gomes nasceu em 1922 em Salvador – isso é importante, pois ele sempre manteve esse sotaque, não mais baiano, mas um tom local para falar do geral, do internacional, do mundial – e morreu em 1999 num acidente de automóvel, em São Paulo. Consagrado como dramaturgo, roteirista de telenovelas, intelectual influente, eleito membro da Academia Brasileira de Letras, Dias Gomes foi figura decisiva no debate obscuro que, muitas vezes, opunha literatura e narrativa televisiva. Em 1998, publicou sua biografia, a que deu o nome de Apenas um subversivo.1

Dias Gomes começou a escrever dramaturgia em 1940. De sua obra inicial ficaram menos os textos do que os personagens, como Zeca Diabo ou Dr. Ninguém. De 1944 até o golpe militar, em 1964, Dias adaptou obras literárias e criou dramaturgia para o rádio.

A relativa liberdade que a arte experimentou durante os primeiros anos do regime militar nos faz crer que foi só em 1968, com o terrível AI-5,2 que a repressão se voltou contra a intelectualidade. Não foi bem assim. O momento imediato ao golpe também foi violento,

1 GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.2 Ato Institucional nº 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo Costa e Silva, que concedia

ao presidente da República poderes para fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos de qualquer cidadão por dez anos, entre outras medidas.

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José Mayer e Denise Milfont na minissérie

O pagador de promessas

especialmente com os membros do Partido Comunista, ao qual o dramaturgo era filiado desde 1945. O regime se voltou fortemente contra o PCB e os militares e políticos que apoiavam o governo do presidente deposto João Goulart. Em 1964, demitido da Rádio Nacional, foi para a lista negra do governo militar e tornou-se alvo da censura.

Antes disso, ele havia criado uma de suas mais importantes obras, O pagador de promessas, montada em 1960, no final do governo Juscelino Kubitschek. A peça foi encenada pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), de São Paulo, com Leonardo Villar e Nathália Timberg, e direção de Flávio Rangel. Em 1962, foi transformada em filme, dirigido por Anselmo Duarte, com Leonardo Villar no papel do personagem Zé do Burro. Foi o primeiro filme brasileiro a receber a Palma de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Cannes, na França.

Zé do Burro é um pequeno agricultor que faz uma promessa a Iansã e a Santa Bárbara – que representam a mesma divindade, no candomblé e no catolicismo. Ele deve carregar uma cruz, de sua cidade, no interior da Bahia, até uma igreja em Salvador, mas é impedido por poderosos, traído pela imprensa, a favor dos políticos dominantes, e, sobretudo, por uma igreja, naquele momento muito perversa e afastada do povo. A cena final é muito importante: Zé do Burro tenta convencer a todos de que precisa cumprir a promessa, mas não consegue. Quando ele está chegando ao Pelourinho, leva um tiro, vindo não se sabe de onde, e morre. O povo, então, coloca o corpo sobre a cruz e entra com ele na igreja. O filme

termina com essa cena.Em 1988, O pagador de promessas foi

transformado em minissérie, com o ator José Mayer interpretando Zé do Burro, e um interessante novo personagem: um outro padre, libertário nos moldes da Teologia da Libertação, perseguido pela igreja dos poderosos, que fica solidário ao protagonista.

De 1960 a 1964, Dias escreveu quase todas as suas peças de maior importância. A invasão, de 1960, trata de um grupo de moradores de uma favela, desabrigados por uma enchente, que ocupa um prédio abandonado. Em 1962, escreveu a peça A

revolução dos beatos e Odorico, o bem-amado. Esse personagem, Odorico Paraguaçu, rendeu muitas produções, da novela O bem-amado, de 1973, ao seriado que foi ao ar de 1980 a 1984. A peça O berço do herói também é dessa época. No meu entendimento, é a mais bem construída peça de Dias Gomes do ponto de vista dramático, e também a mais severa com as Forças Armadas. Trata-se da história da construção do mito de um herói, Jorge Roque, soldado fugido da guerra, que reaparece para atrapalhar os planos do poderoso Sinhozinho Malta, de sua amante Porcina, a falsa viúva do falso herói, e de toda Asa Branca, uma pequena cidade-Estado. Impedida pela censura, em 1965, não chegou a ser encenada.

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Paulo Gracindo interpreta Odorico Paraguaçu na novela O bem-amado

Viriam ainda outras peças marcadas por um tom crítico, mais direto. O santo inquérito, de 1966; Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, escrita em parceria com Ferreira Gullar e montada em 1968; O rei de Ramos, de 1978; Campeões do mundo, de 1979, e outras.

Em 1969, Dias Gomes foi convidado pela Globo para escrever novelas. Em em seu livro de memórias, Apenas um subversivo, o autor comenta esse episódio: “Minha situação econômica não me permitia sequer hesitar. Tinha várias peças proibidas, e as que ainda não estavam sê-lo-iam certamente. Não me seria permitido prosseguir com minhas experiências teatrais, pois minha dramaturgia vivia do questionamento da realidade brasileira, e essa realidade era banida dos palcos, considerada subversiva em si mesma pelo regime militar [...] Por outro lado, seria uma incoerência. Minha geração de dramaturgos ‒ a dos anos 1960 ‒ erguera a bandeira do teatro popular, que só teria sentido com a conquista de uma grande plateia popular, evidentemente. Um sonho impossível, o teatro se elitizava cada vez mais, falávamos para uma plateia a cada dia mais aburguesada, que insultávamos em vez de conscientizar. Agora ofereciam-me uma plateia verdadeiramente popular, muito além dos nossos sonhos. Não seria inteiramente contraditório virar-lhe as costas? Só porque era agora um autor famoso?”.3

Assim, Dias Gomes se juntou ao grupo que gerou uma expressão bem-humorada, “os comunistas do dr. Roberto” [em referência ao jornalista Roberto Marinho (1904-2003), presidente das Organizações Globo], que eram intelectuais militantes, atuantes em movimentos de cultura popular, que acabaram perseguidos, censurados, demitidos, e foram decisivos nos anos 1970 para a construção de uma dramaturgia televisiva. Entre eles estão Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, Paulo Pontes, Ferreira Gullar e o próprio Dias Gomes.

Em seguida a uma série de sucessos, Dias Gomes criou, em 1975, a telenovela Roque Santeiro, escrita a partir da peça censurada O berço do herói. A novela também foi vetada, àquela altura com 40 capítulos escritos. Roque Santeiro só iria ao ar, reescrita, em 1985, após a abertura política.

Alegoria em construção realista

Em 1976, foi ao ar Saramandaia. Observa-se que a dramaturgia de Dias Gomes, apesar do recurso constante a espaço e personagens alegóricos, tem uma construção realista. É o exemplo do que chamamos hoje de “teatro naturalista” ‒ encenado de forma realista ‒ no momento em que questionamos tudo isso e em que se fala em teatro dramático e pós-dramático. Também suas telenovelas desenvolvidas no tom de Janete Clair ‒ que foi mulher dele de 1950 a 1983, quando ela morreu ‒ foram realistas.

Janete Clair também começara pela radionovela e, a partir de 1960, iniciou a criação de telenovelas, primeiro na Tupi depois na Globo. Foi a autora que parou o país com

3 GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Op. cit. p. 255-256.

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O astro e a quem se atribui muitas vezes os “100 pontos de audiência”. As telenovelas seguiam predominantemente esse padrão de melodrama, de que Janete se tornara a melhor criadora. Foi Beto Rockfeller (de Cassiano Gabus Mendes e Bráulio Pedroso), em 1968/69, que pela primeira vez rompeu com esse modelo.

Quando Dias Gomes criou Saramandaia, em 1976, tudo mudou. Primeiro o horário: foi exibida às 22h, em vez de 20h. Cenários, figurinos e uso de recursos tecnológicos mudaram a linguagem visual, até ali bastante realista. A trilha sonora, deslumbrante, tinha como tema a música Pavão Mysteriozo, do cantor Ednardo. Ver entrevista na página 82.

A linguagem literária foi a do realismo fantástico, do real imaginário. O fantástico se tornara a proposta da América Latina, sobretudo com Gabriel García Márquez. Além da linguagem peculiar, o fantástico e o absurdo serviram a nós, no Brasil, também como maneira de burlar a censura. Um exemplo: em 1974, o dramaturgo Marcílio Moraes concorreu ao prêmio do Serviço Nacional de Teatro (SNT) com a peça Mumu, a vaca metafísica. O primeiro lugar foi para a peça Rasga coração, de Oduvaldo Vianna Filho. O segundo, para Resistência, de Maria Adelaide Amaral, e o terceiro, para Mumu, a vaca metafísica. O prêmio era a encenação da peça. Rasga coração não foi apenas censurada, mas o texto desapareceu e levou muito tempo para ser recuperado. O mesmo para a peça de Maria Adelaide Amaral. Marcílio recebeu, então, o prêmio de encenação. Mumu, a vaca metafísica era uma peça do absurdo, passada em 1974, narrando um período de dez anos de uma família, de 1964 até então, em que os membros iam desaparecendo. Só que falava isso usando o absurdo, adotando uma linguagem que ficava entre a dos dramaturgos Eugène Ionesco e Samuel Beckett. Ao final, quando desaparece o último membro da família, a cortina do fundo do palco se abre e aparecem os corpos pendurados em ganchos de açougue. Foi exatamente no momento em que esse tipo de morte começava a acontecer nos porões da ditadura. Mas os censores não entenderam e a peça foi encenada.

Algumas constantes da obra de Dias permanecem e são intensificadas em Saramandaia. O mote inicial da novela é a troca de nome da cidade. Há um movimento de jovens contestadores que querem mudar o ridículo nome do local de Bole-Bole para Saramandaia, que não significa nada e, por isso mesmo, vai se encher de significações. “Os comunistas”,

como xinga uma personagem, se opõem aos tradicionalistas, chefiados por Zico Rosado, coronel que expele formigas pelo nariz.

Trata-se de uma cidade do interior, imaginária como Asa Branca (de Roque Santeiro) e Sucupira (de O bem-amado). Mudar a cidade é mudar o país. A troca de nome, diz o prefeito (que não é apoiado nem desapoiado, pois não tem partido, segundo afirma), “é o povo que vai decidir”. Guimarães Rosa já sacudira a literatura brasileira, em Grande Sertão: Veredas, de 1956, com esse local mundializado, com essa linguagem da pequena cidade que fala da existência humana, com neologismos criados a

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Janete Clair e Dias Gomes, que foram casados por 33 anos, tinham estilos

diferentes de dramaturgia

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partir da linguagem local, na construção de uma nova proposta de literatura.

Assim é a linguagem dos personagens de Saramandaia, com expressões como: “cervejamos”; “perneando” pela cidade; “derrepentemente”; ou o verbo “desmorreu”, para o personagem Cazuza, que, literalmente, bota o coração pela boca. Ou seja, o grotesco convive com o fantástico.

A novela sacode os espectadores que veem o país na cidade. Divertem-se com o cômico, mas, sobretudo, são seduzidos por personagens geniais: Ary Fontoura, que se transforma em lobisomem, Wilza Carla, a Dona Redonda, que explode... Em meio a tudo isso, uma das prostitutas, interpretada por Dina Sfat, à certa altura, diz: “Tanta coisa importante para discutir e ficam discutindo política”. O final, com João Gibão subindo aos ares com suas asas, é, sobretudo, um final de esperança no futuro.

Para terminar, cito um antropólogo indiano radicado nos Estados Unidos, Arjun Appadurai.4 Ao tratar da condição global, Appadurai apresenta a cultura, a arte e a literatura do antigo Terceiro Mundo como inscritas no “futuro como condição global”. A partir de estudos sobre a realidade de países periféricos e comunidades pobres da África, afirma que são três as preocupações que formatam essa compreensão do futuro: imaginação, antecipação e aspirações. Chamo a atenção para o quanto essas questões são decisivas na construção da produção artística, em geral, e literária, em particular, e como se relacionam com a criação artística entre nós. O futuro de que fala o autor não é um espaço neutro, mas, sim, construído por afeto e sensações, e são propriedades humanas como as que enunciam ‒ imaginação, antecipações e aspirações ‒, que o formata. O futuro moldado aqui e agora por tais expressões de sensibilidade é o que organiza um país pelo que ele chama de “ética da possibilidade”, em oposição à “ética da probabilidade”, constituída unicamente por números, que é “amarrada pelas formas amorais do capital global, Estados corruptos e aventureirismos particulares de todo tipo”. O autor diz, ainda: “Por ética da possibilidade, quero dizer de modos de pensar, sentir e agir que aumentam os horizontes de esperança, que expandem o campo da imaginação, que produzem uma maior equidade do que chamei a capacidade de aspirar e que alarga o campo da cidadania informada, criativa e crítica”.

Essa formulação, que vê o futuro como fato cultural, me parece política, não se refere ao simples gosto do novo pela novidade. Concluo, apontando as possibilidades atuais da nossa arte e cultura como uma ética. Mais ainda, como um encontro entre ética e política a ser buscado com a imaginação como instrumento. Afinal, como diz a letra de Pavão Mysteriozo: “eles são muitos, mas não sabem voar”.

4 APPADURAI, Arjun. The future as cultural fact: essays on the global condition. Londres: Verso Books, 2013. Sem tradução no Brasil.

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Asa Branca, em Roque Santeiro, é mais uma das cidades imaginárias de Dias Gomes

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SARAMANDAIA E A FICÇÃO LATINO-AMERICANA

Texto de Dias Gomes pode ser associado à vertente literária do realismo maravilhoso, que é uma forma de afirmação da identidade do continente

Surgido em meados do século XX, o realismo maravilhoso resgata o encantamento dos conquistadores do século XVI com o novo continente, que descortina inúmeras possibilidades imaginativas, a partir de seu cotidiano marcado pela diversidade.

Nessa nova narrativa hispano-americana, as relações de causalidade e de temporalidade são rompidas, assim como as barreiras entrepostas entre real e irreal, racional e irracional, que norteiam a lógica ocidental. Numa ambiência em que o natural e o sobrenatural dialogam em pé de igualdade, o fato histórico convive de forma simbiótica com o mito e com a lenda.

Para a professora Vera Lúcia Follain de Figueiredo, Saramandaia se encaixa nessa vertente literária, que teve poucos adeptos no Brasil. No artigo a seguir, ela percorre o caminho de construção dessa nova forma de realismo.

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VERTENTES

REALISMO MARAVILHOSO: O REALISMO DE OUTRA REALIDADEVera Lúcia Follain de Figueiredo, da PUC-Rio

A vertente da ficção latino-americana que se convencionou chamar de “realismo maravilhoso” consistiu numa afirmação identitária da América Latina e, ao mesmo tempo, numa revisão crítica da modernidade ocidental. O “maravilhoso” foi interpretado como elemento identificador da cultura latino-americana, como traço característico que a distinguia do mundo europeu. Resgatava-se, assim, a visão que os conquistadores tiveram da América quando aqui chegaram, no século XVI: nas cartas dos viajantes, a imaginação preenchia as lacunas deixadas por tudo aquilo que escapava ao mundo já codificado pelo “saber oci-dental”, os relatos testemunhais se deixavam invadir pela fábula, que conferia ao novo, ao diferente, o estatuto de maravilha. Por esse viés, o realismo maravilhoso, sem deixar de ter um potencial crítico em relação à modernização desigual e excludente ocorrida na América Latina, colocava em destaque a força da cultura latino-americana, marcando positivamente o efeito singular das nossas misturas, simbioses e sincretismos.

Foi o escritor cubano Alejo Carpentier que, chamando a atenção para o trabalho de invenção do ser histórico da América, cunhou a expressão “real maravilhoso” para designar a realidade latino-americana.1 Carpentier reportou-se à perplexidade dos conquistadores diante das particularidades do Novo Mundo, à dificuldade que encontraram para nomear o que viam, imprimindo ao estatuto do maravilhoso um novo sentido. Para ele, visto de dentro, por outra ótica, o maravilhoso abriria caminho para a redescoberta da América, e caberia aos escritores latino-americanos a missão de revelar esse novo mundo, forjando uma nova linguagem, apta para expressá-lo, capaz de dar conta dos insólitos acontecimentos que pontuam a nossa história cotidiana.

1 Em 1949, no prólogo do livro El reino de este mundo. Edição recente em português: CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Vera Lúcia Follain de Figueiredo é doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e professora-adjunta da mesma universidade. É autora de: Da profecia ao labirinto: imagens da história na ficção latinoamericanacontemporânea (Uerj/Imago, 1994), Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema (Editora PUC Rio/7Letras, 2010), entre outros

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Diante da outra cara da modernidade – aquela que se traduzia na violência das duas grandes guerras mundiais –, a crença numa superioridade da cultura europeia ficara abalada. Se a Europa convulsionada, na primeira metade do século XX, não indicava caminhos a seguir, criou-se espaço para a valorização do que na cultura latino-americana fugia àquele modelo de racionalidade. Intelectuais e artistas latino-americanos buscaram, então, pensar a multitemporalidade do subcontinente a partir de outro paradigma. A permanência de traços arcaicos, em função da assimilação incompleta dos valores modernos, passa a ser considerada como positiva, promovendo-se o resgate do imaginário coletivo contra a esterilidade da razão burguesa. Descartada a perspectiva evolucionista, o Novo Mundo podia ser visto com outros olhos: tratava-se de reinterpretá-lo numa perspectiva que valorizasse a nossa diferença, mas também contribuísse para mudar o que precisava ser mudado. A América, graças à sua pluralida de de tempos, seria ainda um território aberto à correção dos rumos da história.

A ideia predominante era a de que haveria uma vantagem na nossa resistência à aceleração do tempo, nem que fosse a possibilidade de reencantamento do mundo pelas narrativas que faziam emergir formas de temporalidade e de historicidade irredutíveis ao Ocidente exaurido pelo racionalismo. Nesse contexto, Carpentier lembrava que, na história da América, heróis e rebeldes das guerras de independência misturaram-se com aventureiros que partiam em busca da fonte da eterna juventude ou do El Dorado, compondo-se, desse modo, um “caudal de mitologias”. Segundo o escritor cubano, “pela virgindade da paisagem, pela formação, pela ontologia, pela presença fáustica do índio e do negro, pela revelação que propiciou a sua descoberta, pelas fecundas mestiçagens, a história da América Latina seria uma crônica do real maravilhoso”.2

Daí a rejeição do modelo narrativo do romance realista europeu, a recusa do princípio de causalidade linear que o preside. Sendo o novo romance uma expressão do real americano, deveria trabalhar com uma causalidade difusa, romper com a continuidade causa/efeito no espaço e no tempo. Seguindo essa linha, o realismo maravilhoso contestava a disjunção dos elementos contrapostos,

desfazendo as oposições entre real/irreal, racional/irracional que norteiam a lógica her-dada do Ocidente. Inaugurava-se, assim, um novo conceito de realismo capaz de abarcar a realidade díspar da América, tirando partido de seus diferentes ritmos temporais, sem hierarquizá-los. Para configu rar o que seria uma nova realidade histórica, subvertia os padrões convencionais da racionalidade ocidental: essa nova realidade histórica requeria que se colocasse, em pé de igualdade, tanto o acontecimento histórico quanto o mito e a lenda. Misturavam-se o tempo sucessivo da história e o tempo circular do mito, e essa mistura permitia a elipse de ideias como anacronismo e atraso, responsáveis pelo nosso complexo de inferioridade. Na América Latina, existiriam uma força e uma rique za imaginativa capazes de servir de resistência aos golpes da histó ria.

No Brasil, onde o realismo maravilhoso teve poucos adeptos, Dias Gomes expressou bem essa atmosfera na telenovela Saramandaia, exibida pela Globo em 1976: o personagem

2 CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 79.

O NOVO MUNDO PODIA SER VISTO

COM OUTROS OLHOS: TRATAVA-SE

DE REINTERPRETÁ-LO NUMA

PERSPECTIVA QUE VALORIZASSE A

DIFERENÇA LATINO-AMERICANA

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João Gibão, enfrentando dificuldades na dimensão histórica, escapa, pelo mito, da perseguição que lhe movem, isto é, pondo em uso suas asas – marca de nascença que o diferenciava dos demais seres humanos. Além disso, personagens morrem e retornam, incorporando-se à circularidade do tempo mítico. O tempo sucessivo é abalado pela simultaneidade do passado e do presente: de madrugada, personagens insones veem passar pelas ruas da cidade figuras como Tiradentes e d. Pedro I.

Como se vê, na ficção do realismo maravilhoso, tudo é possível: os elementos sobrenaturais não provocam maiores reações nem nas personagens nem no leitor. Ao contrário do que ocorre na literatura fantástica, que mantém a dicotomia entre as instâncias natural e sobrenatural bem acentuada, o leitor, no realismo maravilhoso, não se sente impelido a decifrar os fatos insólitos: aceita-os como elementos integrados no universo ficcional. O evento extraordinário não provoca qualquer efeito emotivo de medo ou terror. Provoca estranhamento: “O insólito, narrado em ótica racional, deixa de ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorporar-se ao real: a maravilha está na realidade”, como observou Irlemar Chiampi.3

Assim, em História de Garabombo, o invisível, do escritor peruano Manuel Scorza, o personagem principal, como qualquer camponês de origem indí gena, não é ouvido, suas reivindicações nunca são contempladas: passa dias inteiros na delegacia, aguardando atendimento, porque as autoridades entram e saem sem olhar para ele. O povo conclui, então, que Gara bombo se tornara invisível aos olhos dos poderosos e o convoca para missões arriscadas na luta contra os latifundiários, obtendo sucesso, porque Garabombo passava entre os guardas sem ser visto. Ao final do roman ce – escrito a partir das lutas dos camponeses peruanos na década de 1960 –, no confronto entre mito e história, vence a história, ou seja, os camponeses são subjugados, mas essa vitória é relativizada pela abertura de uma possibilidade mítica, pela alusão a um campo de força, pleno de magia, próprio do oprimido, onde o racionalismo do opressor não penetra.

O realismo maravilhoso, apesar da realidade opressiva que des creve, não deixa, então, de apresentar uma visão utópica da América Lati na, na medida em que afirma a nossa diferença e tira vantagem da mistura que nos caracteriza, utilizando-a como signo para abolir fron teiras – entre o visível e o invisível, a vigília e o sonho, a vida e a morte –, deixando em aberto a possibilidade de uma saída pela resistência à aceitação plena dos cânones da civilização ocidental.

3 CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no ro mance hispano-americano. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 59.

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Sônia Braga e Juca de Oliveira interpretaram o casal Marcina e João Gibão em Saramandaia de 1976

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Em Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, Macondo é a fundação da utopia e é também a sua degradação. Mas como o ro mance é representação do ato fundador, conforme observou Carlos Fuentes,4 o ato de narrar introduz o tempo mítico, com a natureza simultânea e renovável que lhe é característica. O mito poético nos socorre da ação degradante da história porque torna possível a recriação: o que se procura quebrar é, exatamente, o tempo linear da história, sua irreversibilidade. O anacrônico torna-se signo

positivo no romance, já que é a maneira de gerar a utopia da qual se depreende a singularidade da América.

García Márquez busca, com sua estratégia narrativa, reencontrar a perspectiva do cronista oral que passa ao largo da disjunção entre realidade e ficção, mito e história. Afirma, desse modo, uma outra temporalidade, não tributária da concepção de tempo retilíneo da modernidade europeia, pois o tempo, em várias obras do autor, descreve um movimento circular – é destruição, mas também renascimento, alusão a uma América que nasce da morte de culturas au tóctones e que, desde aí, vem renascendo das cinzas de seus projetos abortados. Essa circularidade, no entanto, não é só o que permite renascer,

mas, paradoxalmente, configura-se como labirinto, isto é, como o que nos aprisiona em idas e voltas, como uma artimanha do tempo que se nega a permitir os desdobramentos dos grandes feitos, que acabam desfeitos, como se vê em O general em seu labirinto. No realismo maravilhoso, a temporalidade mítica, responsável pela nossa vitalidade, ao minar a sucessividade do eixo da história, pode constituir-se também num beco sem saída.

Na esteira dessa desconstrução do tempo retilíneo, a obra de García Márquez desencadeia todo um processo de subversão dos padrões convencionais da racionalidade ocidental, diluindo antinomias que lhe deram sustentação, quebrando hierarquias estabelecidas. Se os mitos produzem história e a história produz novos mitos, não há como hierarquizar essas narrativas. A partir daí, recusa-se também a divisão que organiza a ficção dentro da realidade, fazendo voar essa partilha, ao romper os círculos que circunscreviam um espaço e um tempo próprio da ficção, desregulando a relação estabelecida pela velha ordem dos discursos. A realidade latino-americana é representada a partir das narrativas que o autor resgata e costura, entremeando fios de relatos de procedência variada, lançando mão do amplo repertório de histórias que a mistura de culturas diversas no solo americano oferece a quem sabe escutar. Por isso, em mais de uma ocasião, García Márquez declarou que não há,

4 FUENTES, Carlos. Eu e os outros: ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 231.

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Gabriel García Márquez, um dos grandes expoentes

do realismo maravilhoso na América Latina

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em nenhum de seus livros, uma linha que não tenha origem num fato real, acrescentando que “os escritores da América Latina e do Caribe têm de reconhecer, com a mão no coração, que a realidade escreve melhor”.5

Fruto da confluência do poético e do prosaico, seus textos inscrevem-se nesse mar de práticas narrativas que constroem o que chamamos de realidade, deslocando o lugar que a modernidade reservara para a literatura, isto é, como uma prática definida do escrever que oferece prazer apenas a um grupo de aficionados. A literatura do autor reintegra-se no imaginário coletivo, inserindo-se de maneira descentralizada numa rede de textos também não hierarquizados. As próprias obras do autor deslizam por gêneros e suportes diversos. A reescritura dos textos dissolve as fronteiras entre os gêneros narrativos e entre os diferentes suportes: as histórias podem deslizar do jornal, do cinema e da televisão para o livro e vice-versa. Abala-se, assim, a centralidade conferida à literatura pela modernidade, diluindo-se os limites entre os campos da produção cultural. No entanto, tal descentramento parte do próprio escritor e não de projetos transmidiáticos elaborados pelo mercado de bens simbólicos, visando maximizar os lucros. A arte de contar está acima de toda e qualquer divisão, por isso a mesma matéria ficcional dá origem a diferentes narrativas que já são reescrituras de narrativas primeiras por meio das quais tentamos imprimir sentido ao caos dos acontecimentos.

Quebram-se, desse modo, hierarquias instituídas pelo paradigma estético modernista, inclusive a que se estabelece pela oposição entre alta cultura e cultura de massa. Cabe lembrar o interesse de Gabriel García Márquez pela radionovela O direito de nascer, e a admiração confessada pelo seu autor, como se vê no seguinte trecho de Viver para contar, que se reporta ao início da carreira de García Márquez, quando dificuldades financeiras o atormentavam: “A única coisa que devolveu meu sossego foram os amores contrariados de O direito de nascer, a radionovela de dom Félix B. Caignet, cujo impacto popular reviveu minhas velhas esperanças com a literatura de lágrimas”.6

Inserido num contexto cultural em que a autonomia do campo literário encontra inúmeros obstáculos, a começar pelo reduzido número do público leitor, o escritor colombiano contrapôs-se ao desprezo que a intelectualidade latino-americana conferia à radionovela, reconhecendo o potencial do novo gênero pela cumplicidade que estabelece entre o popular e o massivo. A admiração que nutre por dom Félix B. Caignet pode ser mais bem compreendida ainda se levarmos em conta o comentário feito por García Márquez após a experiência de adaptar um texto para novela de rádio: “Foi uma aula magistral para as minhas ambições insaciáveis de ser um narrador em qualquer gênero”.7

A “ambição insaciável” de ser um narrador em qualquer gênero implica desafiar as disposições estéticas tal como definidas pelas elites culturais modernas. Afastando-se tanto da “má consciência” dos intelectuais quanto da “boa consciência” dos comerciantes da cultura,

5 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Crônicas 1961-1984. Obra Jornalística 5. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2006. p. 203.

6 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2003. p. 408.7 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Viver para contar. Op. cit. p. 410.

A ARTE DE CONTAR ESTÁ ACIMA

DE QUALQUER DIVISÃO, POR ISSO

A MESMA MATÉRIA FICCIONAL DÁ

ORIGEM A DIFERENTES NARRATIVAS

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para usar a oposição irônica cunhada por Jesús Martín-Barbero,8 García Márquez passa ao largo das compartimentalizações que sustentaram os paradigmas de valor instituídos com a chamada modernidade estética. Para além dos limites impostos pelas divisões hierárquicas, optou por ser um narrador e, ao assumir sem culpa a boa e velha arte de contar histórias, que a estética modernista relegara à cultura de massa, contribuiu para resgatar a literatura da solidão a que se condenara ao fazer questão de apartar-se radicalmente do gosto do público.

No momento em que a Globo apresenta uma releitura de Saramandaia, ficção brasileira inscrita no universo do realismo maravilhoso, talvez caiba indagar se não foi também, movido pela ambição de ser um narrador em qualquer gênero, a exemplo de Gabriel García Márquez, que Dias Gomes aceitou escrever telenovelas. Quando questionado, em uma entrevista, sobre essa opção, o dramaturgo declarou: “A minha geração de dramaturgos nos anos 1950-60 sonhou com um teatro político popular. A geração Guarnieri, Vianninha, eu, Boal, nunca conseguimos fazer um teatro popular, isto é, de plateia popular. Enquanto fazíamos no palco uma peça contra a burguesia, na plateia estava sentada a própria burguesia. Era uma contradição que nós nunca conseguimos resolver”.

E sem deixar de considerar que o sonho do teatro popular não foi resolvido pela televisão, já que são gêneros diferentes, acrescentou: “Não vamos discutir o mérito das novelas, algumas são boas, outras são ruins, alguns filmes são bons, outros são ruins, alguns romances são bons, outros não prestam. Então, por que é que esse fenômeno (o sucesso das telenovelas) se dá aqui no Brasil? Porque socialmente havia um papel a ser desempenhado e que foi desempenhado pela telenovela”.9

8 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício do cartógrafo: travessias latino-americanas da comunicação na cultura. São Paulo: Loyola, 2004.

9 RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000. p. 329.

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Seu Encolheu (Matheus Nachtergaele) e Dona

Redonda (Vera Holtz), de Saramandaia,

personagens de ficção inscrita no universo do

realismo maravilhoso

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REALISMOS

FANTÁSTICO, MARAVILHOSO E MÁGICO: UMA DIFERENCIAÇÃO

Em seminário do Globo Universidade, a professora Vera Lúcia Follain de Figueiredo apontou diferenças entre os termos usados para designar as diferentes vertentes do realismo. A seguir, ela explica a distinção entre os conceitos

Globo Universidade – Ao falar sobre essa corrente do realismo, a senhora faz distinções entre os

termos fantástico, mágico, maravilhoso. No que eles se diferem?

Vera Follain – Ao preferir a designação “realismo maravilhoso”, estou priorizando a especificidade dessa vertente da literatura na América Latina. O termo remete à nossa entrada na História, ao choque entre duas temporalidades diversas: a dos povos autóctones e a dos conquistadores. O tempo percebido como marcha regulada pelo progresso é uma invenção da civilização ocidental, ajustando-se com dificuldade à realidade latino-americana, na qual são vivenciados de forma mais aguda os efeitos negativos de um progresso desigual, capaz de criar novas contradições, deixando intactas bases arcaicas. Visto como parte integrante da realidade, o maravilhoso, na América Latina, serve a uma releitura da nossa multitemporalidade e do efeito singular dos nossos sincretismos. Já as denominações realismo fantástico e realismo mágico não se vinculam necessariamente ao contexto latino-americano. Assim, obras do escritor do romantismo alemão E.T.A. Hoffman e também contos de Edgar Allan Poe são classificados, por alguns teóricos, como realismo fantástico. Já o termo realismo mágico foi cunhado em 1925 pelo crítico de arte alemão Franz Roh,1 para descrever um tipo de pintura caracterizada pela atmosfera onírica, que recorria a imagens inverossímeis, como, por exemplo, os quadros de Marc Chagall, que apresentavam vacas voando, músicos entre nuvens, burros sobre telhados.

1 ROH, Franz. Nach-Expressionismus. Magischer: Realismus Probleme del Neuesten Europaischen Malerei. Leipzig: Klinkhardt & Bierman, 1925.

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GU – É equivocado, então, tratá-los como equivalentes? É muito comum as pessoas usarem o

complemento conforme aprenderam ou ouviram com mais frequência.

VF ‒ As noções de fantástico, mágico e maravilhoso não se restringem ao universo artístico e são usadas indiscriminadamente na comunicação cotidiana, como se fossem sinônimos. Por outro lado, no campo da literatura, ainda que se tenha tentado, não se conseguiu estabelecer um critério demarcatório objetivo que permitisse identificar e catalogar as obras segundo cada uma dessas denominações. Os sistemas teóricos de classificação existentes, muitas vezes, divergem entre si, variando de acordo com o aspecto que se prioriza ao descrever as obras. Assim, pode-se dar mais ênfase aos componentes formais das narrativas ou aos temáticos, privilegiar o tipo de efeito que provoca no leitor ou as variáveis culturais que favorecem o seu surgimento ou lhe imprimem determinadas características. Como fantástico, mágico e maravilhoso são noções que se interseccionam, o tipo de abordagem determina a escolha por um ou outro termo.

GU – Que autores fazem essa diferenciação?

VF ‒ Um dos autores que procuraram estabelecer uma distinção entre a literatura fantástica, considerada como um gênero, e o maravilhoso, foi Tzvetan Todorov, cujo livro Introdução à literatura fantástica 2 tornou-se uma referência, nos anos 1970, para os interessados no assunto. Partindo de estudos anteriores, como os de Roger Caillois3 e Pierre-Georges Castex,4 o autor considera que o fantástico dura o tempo de uma hesitação, isto é, caracteriza-se pela hesitação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem se enquadra ou não no âmbito do que se chama de realidade. Para ele, no fim de uma narrativa de tipo fantástico, o leitor pode optar por assumir que as leis da realidade se mantêm e que explicam os fenômenos, ou optar por admitir que os acontecimentos remetem a outras esferas. No primeiro caso, estaríamos perante o estranho, no segundo, do maravilhoso: gêneros entre os quais o fantástico se situaria. Ainda segundo Todorov, no maravilhoso puro, de que os contos de fada são um exemplo, ao contrário do que acontece na narrativa fantástica, não seria a atitude face aos acontecimentos narrados o que importa, mas a própria natureza desses acontecimentos.

Na América Latina, além de textos de Alejo Carpentier, dentre eles o prólogo do romance El reino de este mundo (1949),5 podemos citar o livro O realismo maravilhoso: forma e ideologia no ro mance hispano-americano (1980), de Irlemar Chiampi6 – obra fundamental para a compreensão da importância do maravilhoso na constituição de um novo conceito de realismo capaz de abarcar a realidade díspar da América.

2 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica 2. ed. Col. Debates, nº 98. São Paulo: Perspectiva, 2003.3 CALLOIS, Roger. Au coeur du fantastique. Paris: Gallimard, 1965.4 CASTEX, Pierre-Georges. Le conte fantastique en France. Paris: José Corti, 1951.5 CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. Op. cit.6 CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. Op. cit.

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GU – Que obras seriam representa-

tivas do realismo maravilhoso e não

do fantástico?

VF ‒ Podemos citar várias obras de Gabriel García Márquez, dentre elas, Cem anos de solidão e A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada; obras do peruano Manuel Scorza, como Bom dia para os defuntos e História de Garabombo, o invisível; os romances Pedro Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo, e Paradiso, do cubano Lezama Lima.

GU – Existe algum tipo de interseção

entre o realismo maravilhoso e o surrea-

lismo? Quais seriam os pontos de con-

vergência e de afastamento entre eles?

VF ‒ As críticas feitas pelas vanguardas europeias ao racionalismo ocidental abriram espaço para a valorização do chamado mundo primitivo como alternativa aos males da civilização. Nesse sentido, cabe lembrar as viagens de surrealistas ao México, na primeira metade do século passado: Antonin Artaud, por exemplo, considerando que a cultura racionalista da Europa fracassara, viajou para o Méxi co, em 1936, para buscar as bases de uma cultura mágica que ainda poderia brotar das forças do solo índio. O surrealismo, sem dúvida, perseguia o maravilhoso, mas, como observou Carpentier, os europeus precisavam fabricá-lo de forma premeditada, isto é, na arte tudo era calculado para produzir o insólito. Em contrapartida, os escritores latino-americanos viam o insólito surgir da própria realidade, permeando a nossa história, inscrevendo-se no cotidiano. A diferença entre surrealismo e realismo maravilhoso fica evidente quando García Márquez, no artigo Fantasía y creación artística en América Latina y el Caribe,7 declara que, na América Latina e no Caribe, os artistas têm tido de inventar muito pouco e que seu problema, ao contrário, consistia em fazer crível a realidade que descreviam. Acrescenta, ainda, que sempre foi assim desde nossas origens históricas, não havendo, em nossa literatura, escritores menos críveis e ao mesmo tempo mais apegados à realidade que nossos cronistas das Índias. Também eles teriam se confrontado com o fato de que a realidade ia mais longe que a imaginação.

7 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Fantasía y creación artística en América Latina y el Caribe. In: Texto Crítico, julio-septiembre 1979, nº 14, p. 3-8. Centro de Investigaciones Lingüístico-Literarias. Universidad Veracruzana, México. Disponível em: http://bit.ly/14HQi5g.

Vera Lúcia Follain de Figueiredo // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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O personagem de Marcos Palmeira, Cazuza, ressuscita durante seu cortejo fúnebre

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artigo

O SER HUMANO E SUA RELAÇÃO COM O MUNDO

Sob o gênero fantástico, relatos perpassam as esferas do impossível e nem por isso deixam de relatar experiências do sujeito em seu contexto

Revelar ou resgatar o drama humano. Nesse propósito, a literatura percorre vários caminhos, que podem, inclusive, extrapolar os limites da realidade palpável. Criar situações insólitas não diz menos sobre a alma humana e o modo como é afetada pelo mundo ao redor. No artigo a seguir, a professora Ana Lúcia Trevisan aborda a construção do imaginário pela literatura e as vertentes do realismo fantástico.

Dos contos de fada às histórias com criaturas monstruosas, o fantástico passou por transformações ao longo do tempo e, especialmente no século XX, tendeu a falar mais das dimensões existenciais do homem, como em A metamorfose, de Franz Kafka. Ganhou força e expressividade na literatura latino-americana e, no Brasil, também se faz presente em registro de escritores como Machado de Assis, passando por Dias Gomes, até autores atuais, a exemplo de Andréa del Fuego.

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LITERATURA

CAMINHOS DA REPRESENTAÇÃO DO REALAna Lúcia Trevisan, da Universidade Presbiteriana Mackenzie − SP

A literatura transita por diferentes latitudes e temporalidades de forma singular, consegue abarcar geografias diversas e momentos específicos, revelando o humano, magistralmente, na esfera de sua singularidade e na perspectiva universal. As formas de expressão literária traduzem o mundo em belas palavras imaginativas e, tantas vezes, alcançam um poder de representação capaz de inundar a realidade, redimensionando-a. As obras literárias deixam entrever no percurso das palavras as muitas vozes da cultura e da história; conseguem, até mesmo, apresentar traços de verdades do tempo presente, refletindo mentalidades multifacetadas de diferentes sujeitos históricos.

As formas de representar o real no âmbito da arte literária não estão obrigadas a recorrer tão-somente às formulações estéticas de tipo realista, afinal, o real que se expressa na ficção é sempre, em si mesmo, uma quimera muito bem construída, mas, ainda assim, uma quimera que se faz pura essência significativa de realidade. Em tantos momentos a literatura, deliberadamente, explicita-se como impossibilidade e escolhe imagens e situações que não encontram resposta no mundo que todos concebemos como real. No entanto, é possível afirmar que, nesse momento, ela deixa de representar ou significar?

Quando pensamos o longo percurso da história literária, identificamos os relatos míticos, os contos populares, os contos de fada como manifestações importantes que fazem parte de uma memória imaginativa universal. O imaginário de diferentes povos está permeado por tais formulações narrativas que legitimam, pelo viés do fantástico e do maravilhoso, os sentidos da cultura e da identidade de diferentes povos. Inegável a ideia de que nos constituímos como sujeitos também pela nossa capacidade de imaginar, de interagir com formas de representação do real, que não pertencem necessariamente à nossa experiência empírica.1

1 HUSTON, Nancy. A espécie fabuladora. São Paulo: L&PM, 2010.

Ana Lúcia Trevisan é doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) na área de Literatura Espanhola e Hispano-Americana. É professora do programa de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP). É autora de: O espelho fragmentado de Carlos Fuentes (Editora Mackenzie, 2008), escreveu o capítulo “Literatura latino-americana e arquétipos míticos: uma proposta de análise”, de Linguagens da Religião: desafios, métodos e conceitos centrais (Paulinas, 2012), entre outros

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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Ana Lúcia Trevisan

Na história da literatura universal, sob o gênero fantástico, surgem diferentes tipos de relatos que se definem por gravitar, em suas temáticas, na esfera do impossível, do absurdo ou do sobrenatural. O gênero, reconhecidamente movediço, possui uma dimensão ambivalente, percebida na proliferação de nomes que tentam definir seu status e nas formulações narrativas a ele vinculadas. Os limites entre os termos “realismo fantástico”, “realismo mágico” ou “maravilhoso”, “neofantástico” são sutis, assim como as fronteiras com os reconhecidos gêneros vizinhos: o “fantasy” e a “ficção científica”. A pluralidade de obras e de reflexões teóricas sobre o universo do fantástico não deve apontar para o hermetismo, ao contrário, nada mais impactante e inteligível do que esse gênero capaz de descrever a realidade dos fatos e dos sentimentos humanos por meio de imagens não empíricas, por meio do encantamento perene provocado pelos sentidos simbólicos e metafóricos.

O clássico mundo maravilhoso, explicitado na forma do “era uma vez” dos contos de fada, redimensionou-se em novas construções narrativas que provocaram os leitores a experimentar possibilidades de compreensão do real, marcadas pelo universo imaginativo do medo, da dúvida e das ambiguidades. A literatura foi invadida por fantasmas, mortos-vivos, vampiros e lobisomens, criaturas fantásticas que significaram a força motriz da literatura fantástica do século XIX, com suas nuances de incerteza e dubiedade. No século XX, essas figuras monstruosas também se reconfiguraram e o monstro deixou de ser exterior ao homem, não mais escondido ou envolto em brumas ou mansões mal-assombradas. O monstruoso passou a habitar a interioridade dos sujeitos, a traduzir-se em marcas no seu corpo e o homem surgiu, a partir de alguns relatos fantásticos do século XX, como a própria imanência do fantástico. O homem e suas angústias existenciais, seu mundo moderno caótico, suas guerras,

suas ditaduras e sua rotina mecânica e burocrática tornaram-se em si mesmo a imagem do absurdo, do insólito. Depois da obra A metamorfose, de Franz Kafka, a literatura fantástica não pode mais ser vista ou lida da mesma maneira, pode-se dizer que naquela manhã Gregor Samsa despertou e viu que havia se transformado em um inseto gigante e a literatura fantástica também.

Esse “inseto gigante” também possui uma história nas letras hispânicas, nas quais percebemos a constância e a permanência do gênero na obra de escritores latino-americanos como Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Carlos Fuentes, Bioy Casares, Gabriel García Márquez, entre outros. Por sua vez, a literatura brasileira percorre um caminho expressivo fortemente marcado pelo realismo e, no âmbito do fantástico, ainda que as produções sejam importantes, elas são também pontuais. Grandes nomes da literatura brasileira, desde Machado de Assis e Aluísio Azevedo até as produções contemporâneas de Afonso Arinos, Guimarães Rosa ou Lygia Fagundes Telles, têm dialogado com o gênero de diferentes formas, seja pelo viés de uma tradição do fantástico do século XIX, seja pelo regionalismo ou pelo lendário. Ainda assim, os grandes nomes da literatura brasileira não chegam a postular na totalidade de suas

O escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), autor

de A metamorfose, obra que mudou a literatura fantástica do século XX

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obras uma tradição do fantástico. Esse é um campo dos estudos literários bastante instigante, que precisa e merece ser mais bem explorado pela crítica. Destaca-se, nesse sentido, em 2003, o escritor e crítico literário Braulio Tavares,2 que publicou uma antologia de contos fantásticos brasileiros em que demonstra a permanência do gênero na literatura brasileira. Em 2009, o também escritor e estudioso Roberto de Sousa Causo3 organizou uma antologia de contos brasileiros de ficção científica. São tentativas contemporâneas de resgatar uma possível tradição do gênero e refletir sobre novos autores que estão surgindo.

A forma de expressão do fantástico presente na obra dos brasileiros Murilo Rubião e José J. Veiga, assim como do colombiano Gabriel García Márquez, pode ser evocada quando nos detemos na obra Saramandaia, de Dias Gomes. Todos esses autores dialogam de forma bastante expressiva com uma tradição do fantástico que utiliza as imagens e situações insólitas para resgatar o drama humano, seja nas suas circunstâncias políticas, seja nas dimensões históricas das diferentes épocas. Pode-se dizer, ainda, que a obra Saramandaia mantém uma tradição que remonta à literatura povoada de imagens de um Brasil imaginário de Guimarães Rosa ou Jorge Amado, mas que se estreita na relação com a prosa de Murilo Rubião e José J. Veiga, uma vez que estabelece uma mesma perspectiva de fantástico, reveladora de imagens alegóricas que compõem um cenário político. Faz história das mentalidades por meio do absurdo cotidiano.

O texto de Saramandaia se constrói a partir de uma das formas de expressão do gênero fantástico em que os elementos considerados insólitos estão inseridos na ordem da narrativa de forma naturalizada. Não existe espanto ou medo declarado diante de um homem com asas; sua mãe, no caso, simplesmente reconhece a necessidade premente de apará-las. O fato absurdo integra as relações de causa e consequência, afinal, se as asas crescem, devem ser aparadas. Todo o absurdo em Saramandaia está plenamente incorporado e aceito no cotidiano; o homem que quase coloca o coração pela boca pode morrer por ter engolido errado o seu próprio coração e, posteriormente, pode “desmorrer” por causa de um solavanco que faz o coração voltar a bater no lugar certo – em ambas as situações insólitas, as relações de causa e consequência continuam organizando a ação. O espantoso passa a ser justamente a ausência de espanto e de questionamento dos eventos insólitos.

Em Saramandaia, o absurdo se incorpora à realidade e essa inserção se torna uma referência explícita ao referente extraliterário. Os fatos insólitos são metáforas do mundo exterior e explicitam uma camada mais profunda do real, pois remetem aos muitos absurdos, não alheios à vida das pessoas, mas intrínsecos a seu cotidiano. Na dinâmica narrativa das situações insólitas naturalizadas, traduz-se, talvez, de modo contundente, uma forma de representação do Brasil naqueles anos em que surgiu a obra de Dias Gomes. Afinal, qual seria a melhor maneira de representar o absurdo dos tempos ditatoriais? Talvez por meio de imagens absurdas e aceitas como normais. Nos regimes em que imperam governos arbitrários e controladores, a realidade fica subordinada a falseamentos, a mentiras e silêncios. As

2 TAVARES, Braulio. Contos fantásticos. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.3 CAUSO, Roberto Souza. Os melhores contos de ficção científica: fronteiras. São Paulo: Devir, 2009.

NO GÊNERO FANTÁSTICO,

ELEMENTOS CONSIDERADOS

INSÓLITOS SÃO INSERIDOS DE FORMA

NATURALIZADA NA NARRATIVA

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pessoas sabem que a realidade posta é uma impostura, mas seguem convivendo com essa realidade, na verdade, sabidamente, não real.

Dias Gomes mergulha profundamente na realidade brasileira por meio da sua narrativa postulada como fantástica e, nesse sentido, muitas de suas imagens dialogam com a obra de José J. Veiga, no que se refere à alusão aos poderes arbitrários presentes na vida das pessoas comuns e, por mais absurdos que pareçam, surgem incorporados à rotina. Também é possível identificar nesta obra de Dias Gomes a consonância com certas imagens insólitas construídas por Murilo Rubião. Vale lembrar a personagem do conto “Barbara”,4 que possui uma voracidade de desejos e um marido submisso sempre pronto a atender-lhes

– fica bastante evidente a relação com Dona Redonda. O aspecto simbólico de João Gibão, o homem alado, também encontra ressonância na obra de García Márquez, na imagem do senhor alado que um dia cai no quintal de uma família caribenha.5 Não se trata de perceber semelhanças aleatórias, mas sim de entender a presença de certos tópicos do insólito latino-americano, que rompem a ordem da racionalidade e congregam valores metafóricos na sua inserção no plano ficcional.

Saramandaia, de Dias Gomes, pertence a uma tradição de fantástico que fez e ainda faz muito eco na literatura brasileira. Partindo da ressalva de que toda a produção artística contemporânea é algo que sempre escapa quando arriscamos uma definição mais pontual, é possível assinalar, hoje, nomes na literatura brasileira como Sergio Sant’Anna, Rubens Figueiredo, Andréa del Fuego, Alberto Mussa e até mesmo, em algum sentido, Milton Hatoum, que

possuem uma narrativa que envereda pelos caminhos da literatura fantástica – assinalando que não se trata de uma perspectiva do gênero vinculada às formas tradicionais de relatos do século XIX. Observamos que os autores contemporâneos assinalados apresentam o elemento insólito em sua obra sempre vinculado às questões de ordem identitária, histórica, lendária ou mesmo existencial. Rubens Figueiredo, no volume de contos O livro dos lobos (2009),6 mergulha no insólito e constrói metáforas de buscas existenciais. No caso de Milton Hatoum, observam-se, na novela Órfãos de Eldorado (2008)7, um diálogo com as tradições míticas indígenas da Amazônia e uma explicitação do insólito no seio das mitologias brasileiras, o mesmo caminho percorrido por Alberto Mussa no romance O senhor do lado esquerdo (2011),8 porém, nesta obra, são as tradições míticas africanas que ganham o relevo sobrenatural. No belo romance Os Malaquias (2010),9 de Andréa del Fuego, os dramas de

4 RUBIÃO, Murilo. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.5 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada.

Rio de Janeiro: Record, 1972.6 FIGUEIREDO, Rubens. O livro dos lobos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.7 HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.8 MUSSA, Alberto. O senhor do lado esquerdo. Rio de Janeiro: Record, 2011.9 DEL FUEGO, Andréa. Os Malaquias. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010.

Andréa del Fuego, autora do romance Os Malaquias:

presença do insólito em drama familiar

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uma família encontram significados reveladores por meio de uma forma de insólito que oscila de modo surpreendente entre os regionalismos e um sentido metafórico imprevisível, profundamente humano.

Escrever sobre literatura significa pensar as múltiplas perspectivas que orientam tanto os processos de escritura quanto de leitura, pois, nas relações estabelecidas entre as obras, autores e leitores, repousa uma possibilidade interpretativa da arte literária, em suas mais diferentes épocas. A voz do autor nos diz muito sobre cada época, porém, as formas de recepção da literatura, os interesses variados dos leitores, são também importantes para compreender o panorama complexo dos contextos literários. Afinal, escrevem-se, compram-se e leem-se obras que desafiam, aquietam, consolam ou simplesmente divertem e, nessa dinâmica, os sentidos e valores da literatura vão sendo redefinidos. A literatura fantástica também pertence a essa dinâmica de leitores e leitura, afinal, ler o fantástico hoje significa cotejá-lo com muitas experiências de leitura e, no caso de Saramandaia, observa-se uma nova leitura televisiva e, logicamente, o contemporâneo se impõe na criação do enredo e da trama. Nesse sentido, a boa literatura sempre dá a resposta e observamos que o texto de Dias Gomes ganha força na sua nova leitura televisiva justamente pela força da palavra dos personagens de Bole-Bole. O falar bolebolense é desde sempre muito impactante e, nesse encantamento discursivo, acentua-se o elo de encantamento com os acontecimentos e personagens insólitos. A construção estética do fantástico de Dias Gomes se reforça no discurso marcado pelo humor, pelas palavras inventadas e tão naturais, o absurdo também se insinua na fala dos personagens – é o “desmorrer”, é o “desengordar” ou são os “ares mudancistas”, enfim, as novas combinações de palavras são a força simbólica do texto e conduzem os leitores e telespectadores no percurso metafórico e alegórico de Saramandaia, transformando a experiência do fantástico em puro prazer, em deleite de encantamento reflexivo.

Ana Lúcia Trevisan // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

Cenário de Saramandaia, leitura televisiva do fantástico contemporâneo

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artigo

AS FRONTEIRAS PERMEÁVEIS DA REALIDADE

Enquanto o país reinava no futebol na década de 1970, a teledramaturgia buscava formas de driblar a marcação cerrada dos censores da ditadura militar

Mesmo fictícia, a cidade de Bole-Bole da primeira versão de Saramandaia dizia respeito a um tempo e a uma geografia bem definidos. A estratégia narrativa concebida por Dias Gomes, ao recorrer a elementos metafóricos, enfatizava o pertencimento do Brasil ao continente latino-americano, marcado por regimes ditatoriais na década de 1970. O tom de fábula, com personagens e situações improváveis, contribuiu para que Saramandaia escapasse da proibição da censura – que já havia inviabilizado outras obras do autor –, sem que a mensagem política fosse suprimida da trama.

No artigo a seguir, o historiador Júlio Pimentel Pinto explica o contexto político brasileiro e latino-americano da época e discute como Dias Gomes, por meio de sua trama, propõe uma nova percepção histórica para seu tempo.

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Mobilização em Bole-Bole: obra manifesta

desejo de mudança da situação vigente

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Júlio Pimentel Pinto // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

HISTÓRIA

A FICÇÃO E SUAS LUZES REVELADORASJúlio Pimentel Pinto, da USP

O Brasil, nos anos 1970, apesar do sol, era sombrio. As sombras não encobriam, por exemplo, os campos de futebol – tanto que 90 milhões de brasileiros iniciaram a década embalados pela recente conquista do tricampeonato mundial.

Mas as tais sombras se impunham, com assustadora constância, a outro entretenimento querido do país, as telenovelas, que se consolidaram justamente no início daquela década, com Irmãos Coragem, de Janete Clair, e passaram a ocupar nossas noites tropicais, durante e depois do jantar. Mais do que afirmação de um novo produto cultural, vivia-se a constituição de novos hábitos, novos rituais domésticos: a família se reunia diante do aparelho de televisão e acompanhava o autoritarismo de um coronel que governava a fictícia cidade de Coroado com mão de ferro, rejeitando o vento da mudança que Jerônimo Coragem representava.

O impacto foi imenso: nas eleições de 1970 (a novela começara em junho daquele ano e prosseguiria até junho do ano seguinte), quando o sufrágio ainda era no papel, choveram votos para o protagonista da novela das oito. Inevitável: o protesto dos eleitores chamou a atenção e o microcosmo da cidade imaginária não demorou a ser encoberto pelo vulto da censura, empenhada em obscurecer os parcos sonhos de telespectadores e seu fascínio político, nem sempre consciente, por heróis da teledramaturgia.

Começava aí uma longa e triste história de censura e autocensura às telenovelas. Censura comandada pelo aparato oficial que os governos militares criaram para regrar as artes e o cotidiano dos brasileiros e autocensura definida pelos próprios canais de televisão, preocupados em não confrontar o temível regime e em não sofrer as perdas financeiras que os cortes de cenas e capítulos provocavam.

Houve o caso extremo de uma novela integralmente vetada, antes de ir ao ar e com mais de 30 capítulos já gravados – aconteceu em 1975, quatro anos depois do pioneirismo de Irmãos Coragem e quando as intervenções dos censores já haviam se tornado rotineiras. No encerramento do Jornal Nacional de 27 de agosto daquele ano, o apresentador do telenoticiário leu breve comunicado, em que informava que Roque Santeiro, que estrearia dali a minutos, havia sido cancelada. Em meio a menções às supostas ofensas que o roteiro comportava (à moral, aos bons costumes, à Igreja...), ganhava forma o espectro da censura.

Júlio Pimentel Pinto é doutor e livre-docente em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor no Departamento de História da mesma universidade. É autor de: A leitura e seus lugares (Estação Liberdade, 2004), Uma memória do mundo. Ficção, memória e história em Jorge Luis Borges (Estação Liberdade, 1998), entre outros

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O autor de Roque Santeiro era Alfredo de Freitas Dias Gomes, ou simplesmente Dias Gomes, e as restrições de censores a seus textos não eram novas. Já em 1942, no contexto do Estado Novo de Getúlio Vargas, sua peça de teatro Pé de cabra havia sido censurada. Logo no segundo ano do regime militar, 1965, outra peça, O berço do herói, fora proibida no dia da estreia – tal qual ocorreu, dez anos depois, com Roque Santeiro, que, em boa medida, era uma adaptação de O berço do herói para a televisão e para os novos tempos. Como autor de telenovelas, Dias Gomes também conhecera de perto a ação da censura: O bem-amado (1973), por exemplo, já passara pelo crivo censor e tivera trechos e até a música de abertura proibidos.

Cerca de oito meses depois do cancelamento de Roque Santeiro, estreou Saramandaia. Os censores provavelmente se inquietaram com o novo enredo, que envolvia disputas políticas, figuras autoritárias e personagens preocupados em promover mudanças na fictícia cidade de Bole-Bole. Mas Saramandaia – exibida às 22 horas, e não no horário mais nobre das 20 horas – lidava com mitos populares, flertava livremente com tradições folclóricas, provocava risos e, lógico, algum estupor. Durou 160 capítulos e se encerrou junto com o ano de 1976 – ano que se iniciara com a prisão e morte sob tortura do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, um dos órgãos decisivos do aparato repressivo da ditadura.

Saramandaia era uma novela política? Sem dúvida, embora a estratégia narrativa empregada por Dias Gomes volatilizasse o teor político direto e imediato, ao mesclá-lo com elementos fabulosos, que devem ter neutralizado parte do temor dos homens do regime: um sujeito que soltava formigas pelo nariz; outro que escondia – motivo de pilhéria e vergonha – um par de asas; outro, ainda, que cuspia fogo; uma mulher imensa, à beira de uma (literal) explosão; um lobisomem.

Pelé, festejado na campanha do tricampeonato no México, em 1970: apesar

do triunfo nos gramados, país vivia tempos sombrios

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Os críticos, sempre ansiosos por rotular rapidamente o que viam – rótulos, não esqueçamos, substituem a reflexão sobre o específico pela generalização e, assim, nos dispensam de pensar –, elegeram uma expressão para designar o que passava nas telas: “realismo mágico”. O tal realismo mágico, de resto, andava na moda. Nove anos antes de Saramandaia, uma obra do colombiano Gabriel García Márquez havia entrado, para não mais sair, na lista dos livros mais vendidos de todos os tempos: Cem anos de solidão. Sucesso de crítica e de público, o extraordinário romance de García Márquez dava ressonância ampla a um conjunto de transformações que a narrativa hispano-americana atravessava havia cerca de três décadas.

Desde os anos 1940, a representação realista, voltada à descrição informativa e ocasionalmente documental da experiência passada e presente, parecia esgotada no romance. Por caminhos diversos e erráticos, autores de várias partes do continente ensaiavam novos caminhos, buscavam interpretar (mais do que analisar) e compreender (mais do que explicar) as mudanças e os surtos de paralisia por que cada país ou região passava, as angústias sociais, os combates tantas vezes inglórios, tecidos à luz do sol e na obscuridade dos porões. Em suma, a complexidade da América Latina. Complexidade composta pelas heranças coloniais, metamórficas e resistentes, pelos difíceis e inconclusos processos de formação e consolidação nacional, pela epopeia de construção das nacionalidades, pelos sonhos e pesadelos na relação com Europa e Estados Unidos, pelos impressionantes contrastes internos, pelo dificultoso reconhecimento de si mesma.

Para alguns, o que a América Latina buscava era um espelho, ou uma identidade. Esse espelho, porém, podia estar enterrado – como sugeriu o mexicano Carlos Fuentes, que publicara, em 1962, o vertiginoso romance A morte de Artemio Cruz – e essa identidade podia ser falsa ou insuficiente. Identidades, sabemos, não são naturais; são construções históricas e, como tal, correspondem às preocupações e aos dilemas do tempo que as gerou. Devido a isso, são limitadas, artificiais e datadas.

Entre a década de 1940 e o princípio dos anos 1970, escritores de toda a América Latina, dentro e fora da ficção, formularam conceitos e cunharam termos capazes, no seu entender, de expressar uma realidade singular. O mexicano Alfonso Reyes relembrou as origens fabulosas do continente e o venezuelano Arturo Uslar Pietri metaforizou, com fôlego heraclitiano, o continente como dotado de “cultura aluvional”. Um cubano, Alejo Carpentier, falou em “real maravilhoso americano”: América como assombro, antítese e tensão. E outro cubano, José Lezama Lima, usou “protoplasma incorporativo” para se referir ao caráter (auto)fágico e insaciável da expressão americana, sempre pronta a absorver novos elementos e – neles ou por intermédio deles – se transformar.

Mesmo sem saber que já fazia pelo menos 30 anos que a crítica ao realismo tradicional e o anseio americanista impunham-se na narrativa hispano-americana, milhões e milhões de leitores acompanharam com paixão a saga dos Buendía – a família condenada a cem anos de solidão, no livro de García Márquez – e acreditaram ver ali a face de um continente. Um continente maltratado, desordenado, incerto quanto a seu passado e futuro. Uma realidade que continha componentes inesperados, exposta num relato que embutia um

DESDE OS ANOS 1940, A

REPRESENTAÇÃO REALISTA,

VOLTADA À DESCRIÇÃO INFORMATIVA

E OCASIONALMENTE DOCUMENTAL,

PARECIA ESGOTADA NO ROMANCE

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olhar inquieto, capaz de apreender o que havia de insólito e de assombroso no dia a dia, nas crenças e nos anseios de cada um. O cotidiano e o maravilhoso misturados, irreversível e reciprocamente imbricados.

O termo “realismo mágico” não foi criado na América Latina – ele surgiu na Alemanha dos anos 1920 –, mas foi amplamente empregado pela crítica dos anos 1960 para designar essas novas estratégias narrativas. Da mesma forma como ocorreu com os críticos brasileiros que não hesitaram em assim definir Saramandaia, nem sempre, porém, o uso da expressão veio acompanhado de efetiva compreensão de seu amplo significado. Porque, mais do que um rótulo, o termo mostrava a preocupação de reconhecer que a representação realista não precisava recorrer a dicotomias ou a descrições de realidades passadas estáticas e previsíveis; que o trabalho de representar não precisava explicitar seu conteúdo ou sua mensagem para se comunicar de forma eficaz.

Foram os leitores de García Márquez, somados a muitos outros milhões de pessoas, que assistiram ao primeiro capítulo de Saramandaia, em 3 de maio de 1976. E esses espectadores se surpreenderam e se divertiram com os personagens improváveis, com a trama rocambolesca, com os efeitos especiais tecnicamente difíceis de serem produzidos na época. Talvez o que mais tenha espantado os espectadores – mesmo que não tenham se dado conta de imediato – é que, por trás do aparato mágico e irreal, tudo parecia real. O jogo de máscaras prestava-se, na verdade, a um desmascaramento e decorria de uma estratégia narrativa escolhida justamente para burlar o controle da censura e as limitações à liberdade de expressão.

Buscar a referência narrativa no recente romance hispano-americano já era um gesto político de Dias Gomes. Não apenas pelo empenho de construir um relato fortemente metafórico, mas, sobretudo, por seu sentido mais geral: identificar o Brasil como parte de uma América Latina então marcada por regimes ditatoriais e por um contexto alastrado de dominação interna e submissão externa. Ou seja, Bole-Bole, mesmo imaginária, estava inserida numa territorialidade e numa temporalidade precisas.

Também os acontecimentos prodigiosos contidos na novela não surgiam de forma aleatória ou eram mera manifestação delirante: eles correspondiam a uma espécie de ordem mítica – articulada e dotada de lógica e dinâmica internas – e expunham a proximidade (e não o antagonismo) entre natural e sobrenatural, mostrando que o maravilhoso pode ter lugar na

realidade e que a realidade pode ser – e é – misteriosa. Assim, ao eleger as trilhas do realismo mágico,

Saramandaia, na verdade, ia longe: descartava o compromisso mimético na representação para pleitear uma nova percepção histórica. No lugar do reconhecimento imediato do passado ou do presente, pelo espectador, preferia semear enigmas, lançar ironias, formular conjecturas, expor ambiguidades. Não optava pelo didatismo – em geral, simplista –, e sim pelo lúdico e pelo paródico para plantar questionamentos, sugerir que o mundo pudesse ser visto e compreendido de forma

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Protesto dos “mudancistas”, na primeira versão de

Saramandaia, de 1976

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alternativa; em síntese, para mostrar a história como ela efetivamente é: marcada pela pluralidade, recheada de incertezas e enganos, construída e ininterruptamente reconstruída por discursos, que são representações com maior ou menor compromisso com a verdade pura – verdade, que, já disse Pôncio Pilatos e repetiu Noel Rosa, existe, mas é inacessível: mora num poço.

Claro que alguns elementos presentes na representação podiam ser mais facilmente identificados: a farsa do poder, por exemplo, e seus labirintos escusos. Ou a derrisão do homem perante o tempo. Ou o caráter estruturador que a comunidade exerce, definindo o maior valor do público e do coletivo, em prejuízo da aposta nas ações individuais. Ou, ainda, a crença numa espécie de redenção histórica, cujo lugar é o futuro, e que pode ser capaz de nos livrar das aflições e vergonhas do presente para que consigamos alcançar uma condição superior e utópica – o voo de João Gibão, cena épica e categórica do encerramento da novela de 1976, embute precisamente esse anseio.

Saramandaia não escapou, é claro, da censura. Sofreu cortes aqui e ali, mas não foi cancelada, como a trama anterior de Dias Gomes, nem descaracterizada, como ocorreu com tantos filmes, peças, canções ou novelas. Os censores, experientes na decifração de narrativas convencionais, se atrapalharam diante da novidade e não conseguiram penetrar com sucesso nos códigos de uma telenovela que velava o acontecimento em si, ao mesmo tempo em que explicitava seu trabalho de representação, a instância de enunciação do discurso estético. Saramandaia, ao deslocar seus personagens no tempo e no espaço, parecia indeterminar a condição e a posição de seus protagonistas, parecia extraí-los da realidade, mas o sistema artístico que os ordenava imediatamente os colocava de volta no tempo e no espaço presentes, reinstaurando a torpe realidade de um sistema fechado.

Num dos mais belos ensaios já escritos sobre o ofício do historiador, o italiano Carlo Ginzburg afirma que a principal condição para o exercício da crítica (que, a princípio, é o trabalho de todos que escrevem ou leem) é a distância, é a capacidade de sentir – e provocar – algum estranhamento.1 Ao sugerir o assombro e a fantasia como forma de interpretar o sombrio Brasil dos anos 1970, Dias Gomes, na verdade, tentava iluminá-lo com uma luz que é mais reveladora do que normalmente se supõe: a da ficção.

1 GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Seu Cazuza, prestes a colocar o coração pela boca, em Saramandaia, versão 2013

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RISOS PARA ABORDAR O ABSURDO NO COTIDIANO

A novela Saramandaia faz parte de uma tradição humorística brasileira, já presente em folhetins publicados em jornais do século XIX e na literatura de cordel

Com a cena política brasileira marcada por eventos violentos e disparatados, nos anos 1970, Dias Gomes se viu diante do desafio estético e político de criar uma linguagem que expressasse a realidade, atingisse o grande público e driblasse a marcação cerrada dos censores.

A comédia foi o tom adotado para produzir um universo paralelo ao dia a dia já marcado pelo absurdo. Personagens improváveis traziam a veia do humor, resgatando a tradição cômica na história cultural brasileira, manifestada em folhetins e cordéis.

No artigo a seguir, o professor Elias Thomé Saliba, especialista em história do humor, explica o contexto em que esse universo foi arquitetado e analisa os elementos cômicos presentes na obra, como as falas dos habitantes da cidade imaginária.

Cena de Saramandaia em que Dona Redonda

quebra cadeira centenária por excesso de peso

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HUMOR

OS TONS DE COMÉDIA DE SARAMANDAIAElias Thomé Saliba, da USP

Em 1982, em resposta à pergunta sobre se algumas de suas narrativas adotavam o realismo fantástico, Dias Gomes declarou: “Detesto esses rótulos. Se nessas histórias a realidade e o absurdo se entrelaçam, é porque, no Brasil, o fantástico é lugar-comum. Já disse que o Brasil é o país que desmoraliza o absurdo, porque o absurdo acontece. E não é possível entender e espelhar a nossa realidade dentro das regras do realismo puro”.1

Apesar de reconhecer os elementos de absurdo em outros textos, o autor estava se referindo a Saramandaia. A telenovela foi exibida em 1976, enquanto o governo Geisel (1974-79) ensaiava uma “distensão lenta e gradual” com tonalidades farsescas – haja vista a Lei Falcão, que limitou a propaganda partidária ao nome e à foto do candidato, para diminuir as chances das oposições. Eventos como a morte sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, ou do operário Manoel Fiel Filho, produziam uma comoção silenciosa ou meio abafada na opinião pública. Também foi um ano pródigo em eventos rotulados como “terrorismo de direita”, com bombas explodindo em editoras, casa de jornalistas, associações profissionais.

Tudo se aproximava do absurdo ou pelo menos do inacreditável. Dias Gomes estava, nesse contexto, duplamente constrangido: pela censura onipresente e pelo desafio estético – e, obviamente, político – de encontrar uma linguagem que expressasse tal realidade. A comédia era uma das saídas para esse impasse e Saramandaia reatou os laços não apenas com a trajetória dramatúrgica de Dias Gomes, mas com uma longa (embora pouco reconhecida) tradição cômica na história cultural brasileira. Pouco reconhecida porque seus criadores, autores de roteiros para o teatro de revista, rubricas para burletas, letras de marchinhas de carnaval, folhetins picantes e anúncios publicitários, impressos e radiofônicos, atuavam em um campo fronteiriço, com um pé na cultura culta e outro na popular.2

Saramandaia pode assim ser vista como catalisadora de elementos já existentes na cultura brasileira, sobretudo em suas manifestações cômicas. Muitos de seus personagens

1 “O Brasil é um país que ridiculariza o absurdo”. Entrevista publicada no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 22.06.1982. In: DIAS GOMES, Luana e Mayra (Org.). Encontros Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012. p. 98.

2 Cf. SALIBA, Elias Thomé. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Elias Thomé Saliba é doutor e livre-docente em História Cultural pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de Teoria da História na mesma universidade. Autor de: Raízes do riso (Companhia das Letras, 2008), As utopias românticas (Estação Liberdade, 2004), escreveu o capítulo “A dimensão cômica da vida privada na República”, vol. 3 de História da vida privada no Brasil (Companhia das Letras, 2012), entre outros

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guardam elementos tanto do folhetim e do cordel quanto do teatro cômico brasileiro. Basta um exemplo de um dos nossos primeiros folhetins humorísticos: A Família Agulha, de Luis Guimarães Junior, que, durante os primeiros meses de 1870, divertiu inúmeros leitores, os quais sempre aguardavam ansiosamente os próximos capítulos, destilados semanalmente no Diário do Rio de Janeiro. Ali, a comédia surge pela argúcia do autor em captar, pela via do fantástico, o traço típico ou aquele efêmero instante-tipo de cada personalidade: Anastácio Temporal Agulha é o herói rocambolesco, que morre e ressuscita; Eufrásia Sistema, mulher de Anastácio, de uma magreza raquítica, é reduzida a um pé tamanho 47 – o que motiva a paixão do marido; Bernardino Agulha, filho

do casal, tem tremedeira constante, já que se torna afilhado de um catatônico fugido do hospício; por fim, Dona Januária Opípara (provável antecedente ficcional da Dona Redonda ou da rediviva Dona Bitela, de Saramandaia), que é enorme e só fala por meio de receitas de bolos e quindins.3

Outra fonte da dimensão humorística em Saramandaia pode ser identificada no universo fantástico e cômico do cordel. Suas heranças ancestrais, provenientes dos chamados contos maravilhosos, já foram bastante estudadas.4 No caso da telenovela de 1976, tais fontes ficam explícitas, em primeiro lugar, pelo tema musical, a canção Pavão Mysteriozo, de Ednardo, claramente inspirada num livreto da literatura cordelista.

Se as narrativas e fábulas desse tipo constituem, como dizia Italo Calvino, uma “explicação geral da vida, alimentada pela lenta ruminação das consciências camponesas até os nossos dias, fornecendo sentido à vida humana quando o pensamento racional ainda não se formara de todo”,5 no seu procedimento mais moderno, visível em Saramandaia, elas se transformam em recursos que buscam outra lógica, diferente da racionalidade das falas dominantes, hegemônicas ou – no caso específico daquela época – autorizadas pela censura.

O próprio Dias Gomes dizia que essa novela “tinha o duplo propósito de driblar a censura e experimentar uma linguagem nova na TV – o realismo absurdo” –, e que isso “decorria de uma visão pessoal de nosso país, que não pode ser entendido sem se levar em conta essa conotação insólita, já que o absurdo faz parte de nosso dia a dia”.6 Certamente, também é por aí que Saramandaia resvala no tom jocofantástico com uma particularidade bem brasileira, a modalidade de paródia, que consiste em tomar expressões metafóricas da fala em seu sentido literal. (O teatro de revista usava muito tal recurso, embora de forma mais prosaica.)7 Dias Gomes apontou algumas das metáforas de fácil apreensão, como a

3 Cf. SALIBA, Elias Thomé. Peripécias da Família Agulha. In: Caderno 2, O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. D-6, 21 abr. 2004.

4 PROPP, Vladimir. Raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: Martins, 1987; MEYER, Marlyse. Folhetim. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

5 CALVINO, Italo. Fábulas italianas. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 6 GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Op. cit., p. 286.7 Ver SALIBA, Elias Thomé. Belle Époque tropical. In: História Viva, São Paulo, n. 28, 2004, p. 80-84.

Dona Januária Opípara, personagem do folhetim

humorístico Família Agulha, publicado em 1870 no Diário do Rio de Janeiro

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das asas de João Gibão e a alegoria aos anseios de liberdade. Alusões – presentes também nas características de personagens como Seu Cazuza, Dona Redonda, Marcina e Zico Rosado – multiplicam-se, numa modalidade que resvala naquela comicidade que provoca o estranhamento da realidade – uma realidade menos óbvia e, daí, talvez mais verdadeira.8

Língua saramandaienseO estranhamento também é provocado pelo uso de neologismos anárquicos nos

diálogos. Todos os personagens de Saramandaia fazem uso de uma língua própria. É uma fala direta, sintética, que mistura um uso licencioso das palavras com alguns arcaísmos, acrescidos de uma espécie de glossolalia de cunho lúdico que serve, muitas vezes, simplesmente para driblar o silêncio, designando tacitamente aquilo que todo mundo já sabe. É quando o coronel Zico Rosado, em face da neutralidade do prefeito Lua Viana, arremata: “O senhor pode não ter culpa dos antecedentes, mas é responsável pelos subsequentes”. É óbvio que muito dessa fala estropiada foi criada por Dias Gomes para driblar a censura. Ele próprio relembra o encontro que teve com um censor quando quis saber o motivo do corte de um diálogo claramente inofensivo, no roteiro de Saramandaia, e recebeu como resposta: “O diálogo em si não é problema. O problema é o que o senhor estava pensando quando o escreveu!”.9

Além de responder às pressões da censura onipresente, a fala saramandaiense também incorporava e recriava uma difusa fala popular. Em vez do silêncio imposto pela censura, é melhor falar, ainda que seja por intermédio de uma algaravia pitoresca. A língua saramandaiense contrasta ainda com o discurso empolado do professor Aristóbulo – que ninguém entende, provoca bocejos e cochilos, mas acaba elogiado: “É o nosso Rui Barbosa”, comenta um dos personagens. Como em outras criações de Dias Gomes, há também na língua saramandaiense a duplicidade típica da oralidade popular, que usa o artifício da língua erudita para nela embutir a fala subalterna e reprimida, por meio de arcaísmos e hibridismos sintáticos.10 Embora o uso geral do dialeto seja anárquico, certos vocábulos ganham ênfase expressiva exatamente por esse uso inesperado. Convenhamos que “desmorrer”, “desmudar” e “desmemoriamento” são muito mais enfáticos e sintéticos do que “ressuscitar”, “mudar novamente” ou “perder a memória”.

Em um dos diálogos de João Gibão com o arcebispo, revela-se também o caráter de imperativo abstrato da autoridade que enxerga a diferença como uma ameaça a seu poder. “Eu sou diferente do senhor”, diz o arcebispo. “Eu não tenho asas e nem premonição para fazer tocar os sinos sem tocar na corda!” Gibão é direto: “Mas eu também não sou capaz de fazer uma porção de coisas que o senhor faz!”

8 O estranhamento, como procedimento narrativo, foi utilizado em diferentes épocas. O tema é recorrente e pode ser encontrado em “grandes teorias humorísticas” e em ensaios marginais. Cf. SALIBA, Elias Thomé. Introdução. In: Raízes do riso. Op. cit.

9 Cf. GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Op. cit., p. 277.10 Entre muitos, sobretudo GOODY, Jack. A domesticação da mente selvagem. Petrópolis: Vozes, 2012.

OS PERSONAGENS FALAM UMA

LÍNGUA PRÓPRIA, QUE INCORPORA

E RECRIA UMA DIFUSA FALA POPULAR

MISTURADA A ARCAÍSMOS E

HIBRIDISMOS SINTÁTICOS

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Esses exemplos deixam visível o quanto as palavras, quando do seu uso autorizado e normativo, servem para classificar comportamentos e pessoas radicalmente distintos e obscurecer ou ocultar suas diferenças.

O fato de algumas dessas palavras e expressões acabarem incorporadas ao uso corriqueiro da língua e até serem assimiladas aos dicionários é de difícil comprovação – mas é significativo que, especialmente na cultura brasileira, muitas palavras tenham surgido das criações cômicas ou humorísticas. “Urucubaca”, por exemplo, foi inventada e desenhada por Max Yantok (1881-1964), a partir da junção de “urubu” com “cubaca” (cheiro ruim, catinga, no baixo calão) em 1915, e hoje se tornou corriqueira.11 Esse caráter performático das criações culturais é mais facilmente reconhecível nas produções humorísticas, porque, como demonstraram recentes pesquisas, o que é engraçado e diverte é mais facilmente absorvido do que aquilo que deprime ou entristece.12

Para além desse recurso ao nominalismo oblíquo, lembre-se que a maioria dos personagens somente vai realizar plenamente sua identidade quando “desocultar” suas diferenças, como o professor Aristóbulo e João Gibão, que somente irão realizar-se como pessoas quando se libertarem de seus segredos. Óbvio que muito dessa libertação virá com o amor e com sua consumação integral (Aristóbulo

com Risoleta e Gibão com Marcina) no mesmo sentido do arquétipo da princesa longínqua de Tristão e Isolda.13 Mas, enquanto no mito primitivo o obstáculo está na espada do rei Marcos e na estrutura da sociedade cortesã, em Saramandaia, o empecilho é dado pelas próprias diferenças – hiperbolizadas pela licantropia14 de Aristóbulo ou pelas asas de Gibão. Quando os dois personagens se encontram, nos seus “perneamentos” noturnos, são tomados por surpreendentes paramnésias: primeiro os dois veem d. Pedro I – provavelmente caminhando para o riacho do Ipiranga – e depois Tiradentes sendo conduzido ao patíbulo. Parece que apenas eles passam por essas epifanias, relances da história brasileira difusamente associados à independência e à liberdade. Projeções de seus próprios sonhos de libertação confusamente incorporadas nas visões oníricas?

11 Cf. SALIBA, Elias Thomé. In: Raízes do riso. Op. cit., p. 110. 12 Cf. HURLEY, Matthew M. (et al.). Inside Jokes; using humor to reverse-engineer the mind. Cambridge: M.I.T.

Press, 2012.13 O estudo clássico sobre o amor cortês é de ROUGEMONT, Denis. L’amour et l’Occident. Paris: Plon, 1978;

atualizado em ILLOUZ, Eva. Consuming the romantic utopia: love and cultural contradictions of capitalism. Califórnia: California University Press, 2009; e O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

14 Transformação de homem ou mulher em lobo, mito que remonta à Antiguidade; sua versão narrativa clássica está em Metamorfoses, de Ovídio (século VIII).

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Elias Thomé Saliba

Urucubaca, personagem criado pelo cartunista Max

Yantok em 1915, da junção das palavras “urubu” e “cubaca”, tornou-se de

uso corriqueiro

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O estranhamento está presente na trama, nos diálogos e na própria linguagem da telenovela. Embora tal procedimento – também conhecido como desfamiliarização – já estivesse, de alguma forma, presente nas criações populares brasileiras, ele só ganhou notoriedade quando foi teorizado pelos formalistas russos e, depois, por Bertold Brecht. Hoje, o chamado “efeito de estranhamento”, tido como vanguardista, tornou-se comum – o que não acontecia na época da telenovela. É por isso que, recentemente, críticos, como Fredric Jameson, ou até historiadores, como Carlo Ginzburg, chegaram a propor alguns “estranhamentos do efeito do estranhamento”, mostrando que ele ia muito além da mera técnica, procedimento literário ou recurso dramatúrgico, tornando-se parte de uma visão de mundo que incorporava fortes elementos da oralidade e das culturas populares.15

Falou-se muito no realismo fantástico de Saramandaia, mas, pelos exemplos aqui apontados, ela não estaria mais próxima dos folhetins cômicos, de larga (embora obscurecida) tradição na história cultural brasileira? A comédia, em sua modalidade de folhetim fantástico, não seria uma forma consagrada, e pouco reconhecida, de responder ao desafio de representar uma realidade que, em si mesma, já se apresentava como absurda, desfamiliarizando-a e afastando-se dos modos convencionais e batidos de se representar a história brasileira?

De qualquer forma, Saramandaia, exibida há quase 40 anos, ainda guarda uma intensidade de representação que serve como testemunho ímpar não apenas da história da televisão brasileira, mas também como um retrato onisciente, e meio constrangido, do Brasil do fim dos anos 1970. Consta que, no fim do ano de exibição de Saramandaia, quando ocorreram eleições em muitos municípios brasileiros, um dos nomes que mais apareceram nas cédulas, ainda de papel, foi o de um tal de João Gibão!

Decididamente, a vida, daquela vez, imitava a arte. Acrescentando-se apenas aquele pitaco bem brasileiro: a vida imitava a comédia.

15 Cf. GINZBURG, Carlo. Tolerância e comércio: Auerbach lê Voltaire. In: O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007; e Estranhamento: pré-história de um procedimento literário. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; e JAMESON, Fredric. Estranhamentos do efeito de estranhamento. In: Brecht e a questão do método. São Paulo: Cosacnaify, 2013. p. 57-123.

Elias Thomé Saliba // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

A consumação do amor de Aristóbulo e Risoleta, em Saramandaia, remonta ao arquétipo de Tristão e Isolda

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artigo

AS MARAVILHAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA

Presente não apenas nas tramas da ficção, o inusitado aparece muitas vezes no cotidiano e pode ser observado em relatos da história do continente anteriores à era das navegações

Histórias como Saramandaia são realistas, de um “realismo surrealista”, que é uma forma de familiaridade com o não conhecido. Essa pode ser uma síntese do artigo de Luiz Costa Pereira Junior, que percorre os possíveis caminhos para que a ligação entre a América Latina e o realismo maravilhoso se estabeleça.

Referências aparecem antes mesmo da compreensão formal do continente, em épocas de cartografias imprecisas e crenças consolidadas. As novas terras, para o europeu, sinalizavam maravilhas existentes além das fronteiras da geografia e da razão. Depois, a literatura e a própria narrativa dos fatos confirmaram a intimidade com que o cotidiano convive com o fantástico.

Santo Antônio em detalhe da iluminura

de manuscrito flamengo do século XVI: em

cidade pernambucana, virou vereador

J Paul Getty Museum/Open Content Program/Reprodução

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Luiz Costa Pereira Junior // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

IMAGINÁRIO

SANTO ANTÔNIO JÁ FOI VEREADOR NO BRASILLuiz Costa Pereira Junior, jornalista

Santo Antônio foi vereador de Igarassu, cidade da região metropolitana do Recife (PE), e o foi por quase 60 anos. O santo ganhava salário, tinha cadeira no plenário e até apoio de colegas. A Câmara de Vereadores seguia uma resolução de 1951 que regularizara o estabelecido em Carta Régia de 1754, do rei de Portugal, d. José I. A medida foi mantida até o Ministério Público brecar o santo salário em 27 de abril de 2008, sob protesto dos parlamentares e discurso de repúdio da Presidência da Casa. O sagrado dinheiro mensal, que até 2008 ainda era repassado a uma instituição de caridade pernambucana, não foi a única honraria conferida a Santo Antônio no Brasil. Em 1705, ele foi promovido a capitão pelo governador da Bahia.

O surrealismo da coisa pode ser mais comum na vida americana do que se supõe e menos imotivado do que se poderia crer. A América Latina é irrigada por episódios em que a imaginação assume a forma de real e parece ocupar um lugar especial no pensamento. Muito do nosso universo cotidiano lembra uma imensa Saramandaia, obra máxima do realismo mágico na TV brasileira, que Dias Gomes assinou nos anos 1970 e foi revivida em 2013.

Dias Gomes propôs um pacto de suspensão que não soou absurdo ao público televisivo de seu tempo, seguindo os passos da literatura latino-americana dos anos 1960. E fez conviver um homem que espirra formigas com a dona que termina explodindo de tanta gordura, o lobisomem fidalgo e um rapaz alado com a mulher que, literalmente, pega fogo quando excitada. Os mutantes de Saramandaia são o que são porque, sendo todos diversos em convivência, ainda assim muita coisa nos separa na sociedade – constitui, portanto, perda de tempo pôr reparo na bizarria alheia.

Não é possível olhar a vida latino-americana com olhos outros, constatou Gabriel García Márquez1 ao receber o Nobel de Literatura, em 1982. Márquez destinou todo seu discurso de agradecimento na Academia Sueca, em Estocolmo, à exclusiva missão de explicar por que sua literatura se pôs a serviço do realismo mágico. Márquez recorre à memória do general Antonio Lopes de Santa Anna (1794-1876), três vezes ditador do México, que fez enterrar, com funeral, a perna que perdera numa batalha, não se sabe bem se em 1846 ou 48.

1 GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. La realidade americana no se compreende con ojos europeus. In: El Tiempo. Bogotá, Colômbia, 9 jan 1982. p. 6A. Republicado em Comunicação & Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra / Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, vol. 2 (n. 1-2): 141-144, mar/jun 1984.

Luiz Costa Pereira Junior é jornalista, doutor em Filosofia e Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e editor da revistaLíngua Portuguesa (editora Segmento). Autor de: A Apuração da Notícia (Vozes), A vida com a TV − O poder da televisão no cotidiano (Senac São Paulo, 2002), entre outros

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Em No reino deste mundo,2 de 1949, em que o cubano Alejo Carpentier (1904-1980) quis tratar o maravilhoso sem fugir a fatos históricos precisos, as lutas dos escravos do Haiti são um capítulo do extraordinário. De lá é François Mackandal, organizador da resistência aos canavieiros do século XVIII e mestre em fugas das senzalas.

Vindo da Guiné, Mackandal fazia sumir das fazendas grupos inteiros de escravos, sem deixar rastro, e os boatos davam conta de sua imortalidade e seus dons: o líder negro seria capaz de evaporar, virar plantas ou animais. Se o gado aparecia envenenado, como de fato o foi em 1757, o vulgo tomava o caso por obra de Mackandal. Se um

fazendeiro enfartava, era coisa de Mackandal. Maneta depois de uma batalha com jagunços, logo é aceita a versão de que brotara nele um novo braço, invisível.

Quando foi preso, em 1758, nenhum senhor de escravos quis matá-lo de cara. Era preciso liquidar o mito, não só o homem. Montou-se, então, um palanque numa praça para queimá-lo diante de todos os escravos do país. No dia da execução, o ar suspenso dos esperançosos por uma fuga mágica se misturava ao dos fazendeiros, para quem a morte de Mackandal desiludiria a multidão, e ao do próprio condenado, que manteve a gravidade exigida pelo momento, enquanto as chamas o consumiam.

Num último esforço de dor, Mackandal soltou seu único grito. Já cozidas pelo fogo, as cordas que o prendiam se desfizeram com o movimento do corpo e ele caiu, morto, com a nuvem de fumaça encobrindo a queda. Para quem via a cena de baixo, a imagem era a de Mackandal saltando no ar, evaporando. O sinal fora dado: uma tentativa de fuga em massa se desencadeou. Foi assim a libertação dos escravos do Haiti.

Carpentier não inventou o relato. Só queria mostrar que, se nos detivermos ao rigor dos fatos, podemos ainda assim experimentar uma modalidade de fantástico que, na América Latina, não haverá de nos faltar.

O próprio Ocidente que invadiu a América trouxe consigo um imaginário carregado de significações próprias. O esforço do uruguaio Guillermo Giucci, no livro Viajantes do Maravilhoso,3 é o de configurar que o extraordinário ocidental se apoiou na falta de conhecimento ou de hábito, quando não na Bíblia.

O mercador Marco Pólo (1254-1324), lembra Giucci, relata um monte na saída de Cambalu, a caminho de Catai, na Ásia, com “pedras negras que ardiam como madeira”. Quando bem acesas, mantinham o fogo de um dia para o outro.

2 CARPENTIER, Alejo. O Reino deste mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.3 GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 14.

Professor Aristóbulo transformado em

lobisomem: personagens mutantes de Saramandaia

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Para o leitor de hoje, a tal pedra negra tem silhueta mais mundana, a do carvão. O maravilhoso ocidental não exige a concordância entre o objeto e o narrado. O rinoceronte e o unicórnio são o mesmo animal, mas a imaginação europeia garantiu independência ao mito em relação a seu modelo. A raridade ignorada credencia a mirabilia.

Na Idade Média, o maravilhoso foi útil. Fundamentava, por exemplo, o milagre religioso. A descrição de monstros preparou o caminho para a assimilação de feitos espantosos na Bíblia. Seria produto não da ignorância, mas de uma racionalidade que buscou justificar o maravilhoso da fé.

Em Cidade de Deus, Santo Agostinho aclimata prodígios pagãos ao ideário cristão: os frutos de Sodoma se desmancham em fumaça cinza quando apertados e as éguas da Capadócia são fecundadas pelo vento. Em Agripento, um sal se dilui no fogo e chamusca na água. Os garamantes, que habitaram o Saara na atual Líbia, entre 500 a.C. e 500 d.C., têm uma fonte que esfria de dia e aquece à noite.

Para os europeus medievais, os relatos extraordinários eram menos uma preferência instintiva pelo maravilhoso do que uma tentativa de redimir monotonias, de compensar carências, de dar sentido à própria ignorância ou apenas confirmar a Bíblia.

Esse imaginário afetou a visão inaugural da América, antes mesmo das grandes navegações. No século XII, o monge beneditino francês Lambert de Saint-Omer (1061-1125) apresentou um mapa-múndi que incluia um continente austral gigante. Séculos antes, o Comentário ao Apocalipse de João, do monge asturiano Beato de Liébana (c.730-798), inspirou mapas de um quarto continente habitado por ciápodos (skia-podos, sombra-pé). Uma das possíveis fontes do nosso saci-pererê, ciápodos eram seres com uma perna só, cabeça tão ao chão que seus cabelos criariam raízes e um pé tão largo que podiam deitar de costas e, com a extremidade à contraluz, adormecer à própria sombra.

Numa época em que se acreditava em tudo o que as Escrituras diziam, o Éden se instalou na superfície do planeta, relatam Jorge Magasich-Airola e Jean-Marc de Beer, em América mágica.4 “O Paraíso é um lugar situado entre as terras orientais”, localiza Santo Isidoro de Sevilha (560-636), no livro XIV (De Terra et partibus) das Etimologias. Um périplo do século XIV situa o Paraíso ao sul da África, dizem Magasich-Airola e Beer. A ignorância brutal do planeta fertiliza a imaginação.

Não é, portanto, por efeito apenas retórico que o almirante genovês Cristóvão Colombo (1451-1506) afirmaria em sua carta ao papa Alexandre VI, de fevereiro de 1502: “Acreditei e acredito no que acreditaram e acreditam tantos santos e sagrados teólogos: ali, naquela região, se encontra o Paraíso Terrestre”.

A Inquisição ainda se atormentaria com a questão. O português Pedro de Rates Henequim foi preso em 1771 e condenado à morte ao se recusar a renunciar às ideias que propagara, como relata Hernâni Donato no ensaio “No Brasil, o paraíso”.5 A pena de Henequim foi

4 MAGASICH-AIROLA, Jorge; BEER, Jean-Marc de. América mágica – quando a Europa da Renascença pensou estar conquistando o Paraíso. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

5 DONATO, Hernâni. No Brasil, o Paraíso. Palestra dada em 27 de março de 2007. In: Cem anos do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo: IHGSP, 2013. p. 823-836.

O MARAVILHOSO

OCIDENTAL NÃO

DEMANDA QUE HAJA

CONCORDÂNCIA ENTRE

O OBJETO E O NARRADO

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a de afogamento, executada na manhã de 21 de junho de 1774, para, ao longo da tarde, seu corpo ser enforcado, em seguida incinerado e, ao fim do dia, ter suas cinzas lançadas o mais longe de Lisboa, pelas águas do Tejo. A virulência do trato se deveu a um único crime: afirmar que o Éden não findara com a expulsão de Adão e Eva, mas jazia oculto no Brasil à espera da retomada. Para a Coroa portuguesa, a ameaça era política, não só religiosa: Deus estaria indicando ter privilegiado um lado do Atlântico português, estabelecendo qual deles era, afinal, importante.

A permanência do Jardim do Éden teve vigor secular. O jurista, bibliófilo e historiador Antonio de León Pinelo (1589-1675), conselheiro real da Espanha com prestígio no Peru, que se tornaria juiz do tribunal de La Contratación Pública, em Sevilha, gastou 88 capítulos num total de 838 páginas, hoje conservadas na Biblioteca Real de Madri, para provar que o endereço do Paraíso era a América, em El Paraiso en el Nuevo Mundo (1656). Adão, escreveu Pinelo, fora feito por Deus com barro sul-americano, e o maracujá foi o que encantou Eva, não a maçã. Só a madeira robusta do continente inato permitiria a Noé construir sua arca, feita sobre a vertente ocidental dos Andes peruanos. Sua arca tinha capacidade para 28.125 toneladas e as primeiras chuvas começaram em 28 de novembro de 1656 do começo do mundo, segundo a datação judaica. O dilúvio que se seguiu fez o barco sair do chão nove dias depois, para navegar a região do Amazonas rumo à Ásia, em que aportou em 27 de novembro de 1657. Quando se certificou de que todos saíram da arca para povoar o mundo, Noé navegou de volta à América.6

O europeu tomou as novas terras como extensão ou confirmação das maravilhas com que o pensamento ocidental projetava a vida além-Europa. Chegava-se ao novo continente predisposto. O navegador florentino Américo Vespúcio (1454-1512) relatou, em Cartas del viaje, 7

de 1502, o encontro com índios de 132 anos e de até um século e meio, que raramente adoeciam. O capuchinho francês Claude d’Abbeville (?-

1632) esteve no Maranhão em 1612, o suficiente para compor História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas. Publicada em 1614, a obra traz índias tupinambás que, aos 80 e aos 100 anos, amamentavam os netos. Relatos do gênero alimentaram exploradores que, como Juan Ponce de León (1460?-1521), acreditaram na fonte da juventude.

A semelhança fonética com um deus chamado Zomé fez o jesuíta Manuel da Nóbrega concluir, em 1549, que São Tomé em pessoa pregara o Evangelho entre os nativos brasileiros.8 A crença do Éden na América estimulou a lenda secundária segundo a qual o Paraíso, sendo obra divina do início do mundo, só poderia ser imune a doenças e males físicos. Mesmo instituições religiosas mandavam para o Brasil seus doentes, caso do próprio Nóbrega, jesuíta gago que padecia de perda de sangue nas pernas, e de José de Anchieta, que ficara corcunda após uma queda de escada na biblioteca da escola.9

6 MAGASICH-AIROLA, Jorge; BEER, Jean-Marc de. América mágica. Op. cit. p. 59-60; DONATO, Hernâni. No Brasil, o Paraíso. Op. cit. p. 827.

7 VESPUCIO, Américo. Cartas del viaje. Madrid: Alianza Editorial, 1986.8 MAGASICH-AIROLA, Jorge; BEER, Jean-Marc de. América mágica. Op. cit. p. 73-74.9 DONATO, Hernâni. No Brasil, o Paraíso. Op. cit. p. 829.

AS NOVAS TERRAS ERAM

COMO EXTENSÃO OU

CONFIRMAÇÃO DAS MARAVILHAS

DA VIDA ALÉM-EUROPA

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Luiz Costa Pereira Junior

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Os casos americanos de relato fantástico parecem vir em traje factual, contam com a confiança mágica na palavra dada, um sincero encarar como plausíveis variados tipos de bizarria, de relatos fantásticos demais, com um “realismo surrealista”, que é uma forma de familiaridade com o não conhecido. Não, não é possível olhar o outro sem imaginar-se outro. Haveria na linguagem latino-americana uma preferência instintiva pela imaginação, uma busca pelo inusitado que nos é habitual, mas essa preferência seria na verdade outra forma de pensar realidades a que não se está habituado.

Histórias fictícias como Saramandaia ou jornalísticas como a do santo vereador traduzem uma visão de homem que desconfia das instituições e toma a condição humana como a de seres vulneráveis ao mundo. Num país e num continente de tantas incertezas, de tanto obstáculo a planejamentos duradouros, de amanhãs imprevisíveis e promessas que sabemos de antemão irrealizáveis, nosso imperativo é fazer pelota com garantias cem por cento.

A aceitação e até ampliação do “maravilhoso” de herança europeia encontraria terreno fértil nesta parte do continente, marcado pela confluência (ora abundância) de outros imaginários e tipos de pensamento, que só a cultura da mestiçagem e do drible permitiria.

O latino-americano é feito de hibridismos, da habilidade para habitar-se do estranho. Um comportamento fruto de nossa mestiçagem cultural e da necessidade de evitar o ônus das hierarquias rígidas entre desiguais levaria a uma contaminação do interno pelo externo, a um relacionamento deflacionário com o ignorado, com o “outro”, a uma conduta que funde o conhecido ao não conhecido, a matéria ao espírito.

Autores como Dias Gomes ajudam a mostrar que a fantasia da imaginação, naturalizada à realidade, pode ser uma viga do nosso entendimento continental. A forma como incorporamos múltiplas lógicas de pensamento encarnadas nos idiomas que aqui entraram em contato (português, tupi, banto, espanhol, quíchua, guarani etc.) e o jeito como invertemos a rigidez das hierarquias sociais podem nos ter forjado uma espécie de “naturalidade” com o pensamento mágico, a mesma que fez parlamentares e instituições encararem um santo vereador com familiaridade.

O fato é que nossa relação com o mundo e as pessoas é determinada mais pelas versões dadas pela linguagem do que pelos acontecimentos reais. O real é linguagem. Se ela rompe com as lógicas de raciocínio que herdou, como volta e meia se vê na América Latina, é de se acreditar que ela cria um efeito de real que, em produtos da linguagem (narrativas, relatos orais, textos, roteiros de TV), parece não raro mais real do que o real – Saramandaia é, por isso, exemplo e acalanto.

Nessas horas, mesmo a mais fria das regras da razão tende a ser mais genuína quando vira festa da imaginação.

É real, mas é outra coisa.

O navegador Américo Vespúcio relata encontro com índios com mais de 130 anos de idade

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A CULTURA POPULAR NAS TELAS

Depois de uma longa trajetória como autor de textos para teatro e rádio, Dias Gomes foi para a televisão, veículo no qual ampliou o espaço ficcional de seus personagens

Visado pela censura, Dias Gomes estreou na televisão usando pseudônimo. Aos poucos, ajudou a transformar a linguagem da teledramaturgia, que passou, na década de 1970, por um processo de modernização e aprimoramento técnico e estético.

Até aquela época, as novelas eram melodramas ambientados geralmente no exterior, com situações e personagens distantes da realidade brasileira. O autor baiano chegou trazendo ingredientes do universo que conhecia bem: a cultura popular, com seus folclores e mitos, o sincretismo religioso e os conflitos do homem moderno. Associando essa realidade com situações de alegoria e absurdo, sem dispensar o humor e a sátira característicos de seus textos, criou novelas que revelaram uma face do Brasil pouco mostrada na televisão.

No artigo a seguir, Mauro Alencar, especialista em teledramaturgia, mostra como o autor conseguiu, em suas novelas, criar uma nova mitologia para os brasileiros.

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Mauro Alencar // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

TELEVISÃO

A MAGIA DA AMÉRICA LATINAMauro Alencar, pesquisador e membro da Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York (Emmy)

“Eles são muitos, mas não podem voar!”Ednardo, em Pavão Mysteriozo

O conceito do fantástico surgiu na literatura europeia do século XIX, apesar de apresentar características em obras anteriores. Na Odisseia, de Homero, por exemplo, há muitos acontecimentos incomuns, como o encontro do herói Odisseu com as sereias.

Na literatura dos viajantes dos séculos XV e XVIII, encontramos os temas do fantástico, do real maravilhoso.

Durante o Romantismo, diversas obras trabalharam com suas premissas, tais como a união entre a realidade e um mundo fantasioso, em que há o estranhamento pela nova ordem das coisas. A percepção do extrassensorial é vista, por exemplo, em diversos contos, romances e poesias de Edgar Allan Poe, como em O corvo e A queda da casa de Usher. Outras duas bases importantes para o fantástico na Europa são o rico cânone das fábulas e contos infantis e a literatura dos viajantes, marcada pela descrição de espaços, seres e situações que, para a realidade europeia recém-saída da Idade Média, era uma manifestação próxima aos mitos e lendas do passado.

Na transição do século XIX para o XX, com a efervescência do positivismo, a literatura fantástica atuou como um contraponto aos preceitos antropocêntricos. Enquanto o positivismo pregava uma absoluta crença no ser humano, transformando-o em núcleo de todo o universo, o realismo fantástico exerceu o papel de uma janela para o sobrenatural e para o sincrético, estabelecendo um mundo dotado de dois planos: o perceptível e o sensorial.

Com o horror da Primeira Guerra Mundial, quando caía por terra todo o determinismo dos positivistas, pintores, filósofos, escritores e artistas se voltaram para os meandros do inconsciente (influenciados pelos então recentes trabalhos de Sigmund Freud), o que originaria o surrealismo, no qual o realismo fantástico assume proporções sem limites, visto que ambos admitem a existência de outros vértices para um mesmo universo, tais como o subjetivismo, o sensorial e, principalmente, o onírico.

Mauro Alencar é mestre e doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela Universidade de São Paulo (USP) e membro da International Academy of Television Arts & Sciences (Academia Internacional das Artes e Ciências da Televisão), em Nova York, instituição responsável pelo Emmy Awards. Autor de: A Hollywood brasileira – Panorama da telenovela no Brasil (Senac-RJ, 2002), Um século de Paulo Gracindo − o eterno bem-amado (Gutenberg Brasil, 2012), coleção Grandes Novelas (Editora Globo/Globo Marcas), entre outros

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Entretanto, o termo “realismo fantástico” foi empregado pela primeira vez em 1925, pelo crítico alemão Franz Roh.1 O conceito servia para agrupar pintores alemães pós-expressionistas, cuja principal característica era a pintura de objetos comuns, mas a partir de olhares múltiplos, maravilhados, como uma mágica recriação da realidade. Na literatura, a década de 1920 foi fundamental para a consolidação do realismo fantástico como gênero narrativo. São obras basilares desse momento Les enfants terribles, de Jean Cocteau, L’avventura novecentista, de Massimo Bontempelli, além de A metamorfose, de Franz Kafka.

O narrador fantástico caracteriza-se pelo uso de uma retórica que prescinde das leis e da lógica do mundo físico, mas que, sem maiores explicações, atravessa o frágil limiar do real e do imaginário e apresenta uma ação absurda e/ou sobrenatural, cujo conflito é resolvido por meios não convencionais. Em O médico e o monstro, Robert Louis Stevenson apontou o duelo entre o bem e o mal ao dividir um personagem em dois perfis antagônicos: o dr. Jekyll – virtuoso e civilizado –, e o Mr. Hyde – selvagem e demoníaco.

O realismo fantástico e o realismo mágico têm diversas características em comum, mas a principal distinção é a maneira de se encarar os acontecimentos fora da ordem do real. No realismo mágico, todo tipo de anormalidade é interpretado como manifestação natural, com explicações até intuitivas (o que submete personagem e ação à ordem da natureza, cujas leis de vigência são alheias à lógica humana). Já no realismo fantástico, acontecem episódios grotescos, estranhos, sobrenaturais e mágicos que são identificados pelos personagens da narrativa como um desvio da normalidade, um momento de quebra da lógica racional humana. Entretanto, nesse gênero, tais rupturas causam perplexidade e espanto, ainda que também sejam consideradas parte da realidade.

Entre os anos 1940 e 1970, o realismo fantástico confundiu-se ao mágico e tornou-se um grande vetor para a produção hispano-americana. Autores como Jorge Luis Borges (Pierre Menard, autor do Quixote), Alejo Carpentier (O reino deste mundo), Arturo Uslar Pietri (Treinta hombres y sus sombras), Julio Cortázar (O jogo da amarelinha) e outros trabalharam esse limite entre realismo fantástico e mágico para expor o choque cultural de uma América Latina encantada pelos ecos europeus (tecnologia) e rica por sua origem multifacetada e repleta de crenças (mistificação). Contudo, foi a capacidade de parábola do realismo fantástico/mágico que o levou a uma segunda geração (dos quais são grandes representantes Gabriel García Márquez – Cem anos de solidão – e Mario Vargas Llosa – Tia Júlia e o escrevinhador), que se valeu de infinitas possibilidades para resistir culturalmente às restrições de diversos governos ditatoriais.

No Brasil, o realismo fantástico/mágico teve seus pontos de efervescência em obras como a de Jorge Amado (Dona Flor e seus dois

1 ROH, Franz. Nach-Expressionismus. Magischer: Realismus Probleme del Neuesten Europaischen Malerei. Op. cit.

Les enfants terribles: realismo fantástico consolidado como

gênero narrativo

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Mauro Alencar

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maridos), Murilo Rubião (O pirotécnico Zacarias), José J. Veiga (O relógio Belisário), Aníbal Machado (Acontecimentos em Vila Feliz) e José Cândido de Carvalho (O coronel e o lobisomem), mas não foi tão predominante quanto em países vizinhos (como Argentina e Chile).

A televisão absorveu esses ecos latino-americanos. Alguns autores, como Ivani Ribeiro, mantinham em seus textos toques de realismo fantástico, mas sempre subordinados ao melodrama folhetinesco. Os estranhos (TV Excelsior, 1969) desenvolve uma trama de ficção científica na qual um escritor, Plínio Pompeu (Pelé), é surpreendido por habitantes de outro planeta (Gama Y-12) que estão na Terra. No entanto, assim como já ocorrera na literatura latino-americana, o realismo fantástico foi empregado na televisão para driblar a censura do regime militar. Assim, mensagens de liberdade chegavam ao público sem que os censores notassem qualquer intenção “subversiva”.

A Globo iniciou o processo de modernização e industrialização da telenovela no início dos anos 1970. Para tanto, promoveu radicais contribuições ao gênero, como a consolidação de temáticas nacionais, a introdução de novas tecnologias, o aperfeiçoamento da estética (cenários, vinhetas, trilhas sonoras, figurinos e aberturas), a integração de autores da literatura e do teatro à telenovela, entre outros. Quanto à linguagem, muitas foram as iniciativas, mas a aposta no realismo fantástico talvez tenha sido uma das mais ousadas até então. Quem trouxe a ideia de se trabalhar o realismo fantástico como cerne de uma telenovela foi um certo autor baiano, muito conhecedor das crenças e mitologias do brasileiro: Dias Gomes.

Nascido em 1922, encontrou em sua juventude o talento de escrever para o teatro. Sempre com temáticas muito próprias, seus textos revelam uma outra face do Brasil, não raro negada: o coronelismo, a vida do cangaço, o questionamento da fé e da religião, o oportunismo dos poderosos, dos contraventores, ante o povo humilde e de boa índole, mas de baixa educação. Tudo isso sem esquecer o humor e a ironia característicos do autor. E, por esses motivos, Dias Gomes foi um dos maiores alvos da censura que imperou no regime militar.

O autor, que aos 15 anos escreveu sua primeira peça, teve uma longa sequência de grandes obras no teatro, além de ter desempenhado várias funções em emissoras de rádio. Em 1969, Dias Gomes estreou na televisão de um modo curioso. Para poder trabalhar, já que estava muito visado pela ditadura, o autor iniciou sua carreira de novelista com o pseudônimo de Stela Calderón. Sob a supervisão da cubana Glória Magadan, escreveu para o horário das dez (que ajudou a consolidar com novelas de grande sucesso) A ponte dos Suspiros, adaptada do romance de Michel Zevaco. De acordo com a linha de produção novelística da época na Globo, a história estava ambientada numa Veneza de 1500, com situações e personagens distantes da realidade brasileira.

No entanto, a grande chance na televisão – veículo em que Dias ampliou o espaço ficcional de seus personagens – chegou ainda em 1969, com a saída de Glória Magadan. Com Verão vermelho (1970), ambientada na Bahia, Dias conseguiu falar de seu universo: conflitos do homem moderno, sincretismo religioso, temas polêmicos. Logo em seguida, Assim na Terra como no Céu (1970/71) discutia o abandono do sacerdócio e a juventude dourada

RETÓRICA DO FANTÁSTICO

PRESCINDE DAS LEIS E DA

LÓGICA DO MUNDO FÍSICO

Mauro Alencar // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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de Ipanema. Em Bandeira 2 (1971/72), mostrou um universo até então desconhecido do grande público de televisão, o subúrbio do Rio, e criou o bicheiro Tucão, magistralmente interpretado por Paulo Gracindo, um dos personagens mais carismáticos da história da telenovela. O tema da novela, misturando jogo do bicho, escola de samba e a invasão de uma garagem por uma família de retirantes, conquistou também a audiência masculina.

Em 1973, Dias Gomes escreveu a sarcástica e brilhante novela O bem-amado, a primeira em cores do Brasil. A mola propulsora era o texto teatral que ele escrevera na década de 1960 que se baseava num fato real, ocorrido no Espírito Santo em 1906. O coronel Odorico Paraguaçu se elegera prefeito de Sucupira prometendo construir um cemitério para a cidade (a despeito da oposição, que, se eleita, construiria um estádio de futebol, o Sucupirão). Mas, como ninguém morria em Sucupira, Odorico decidiu “encomendar” quem inaugurasse a obra ao temível matador Zeca Diabo (Lima Duarte). Porém, Zeca Diabo reassumira sua vida pacata, fazendo jus ao nome de batismo: José Tranquilino da Conceição.

Logo após esse arrebatador sucesso, Dias Gomes escreveu, em 1974, a novela O espigão, mostrando os problemas do progresso desordenado e discutindo a natureza numa época em que poucos tinham consciência ecológica. Em 1975, Dias Gomes estrearia no horário das oito da noite com a novela Roque Santeiro, que, censurada antes da estreia, teve de esperar

dez anos para que, com a coautoria de Aguinaldo Silva, se tornasse um inesquecível sucesso.

Devido à censura a Roque Santeiro, Dias escreveu Saramandaia (1976), o ícone do realismo fantástico na teledramaturgia brasileira (ainda que O bem-amado tenha algumas características, como o voo de Zelão das Asas – Milton Gonçalves).

Ao misturar elementos da cultura popular (como a lenda do lobisomem) e situações de alegoria e absurdo (como um homem ser capaz de colocar o coração pela boca), Saramandaia recriou uma nova mitologia para os brasileiros, apontando nossas raízes ligadas ao

sincretismo religioso e racial presente na América Latina. O propósito é bastante nítido e Dias Gomes, no texto do Boletim de Programação da Globo acerca da estreia da novela, esclareceu a premissa que o norteou na criação de Saramandaia: “Usamos elementos do absurdo dentro da realidade, com uma dose muito grande de cultura popular. É quase uma questão de visão do nosso mundo latino, onde o absurdo é tão frequente dentro do nosso cotidiano, que o realismo com que se poderia retratar a nossa realidade não pode prescindir do fantástico. (...) Nessa experiência procuramos recriar o que está sendo feito em literatura e em teatro, mas partindo de nossas raízes populares, isto é, utilizando o absurdo existente na literatura de cordel e nos mitos populares nordestinos”.2

O diálogo com a literatura de cordel é primordial para a criação do perfil dos personagens da trama. O cordel O pavão misterioso (escrito por José Camelo de Melo Rezende por volta de

2 Boletim de Programação. Rio de Janeiro: Globo, 1976, p. 2.

Roque Santeiro: trama com novas possibilidades e brechas para o onírico

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Mauro Alencar

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1923) retrata a Condessa Creuza, a mais bela moça da Grécia, que fora trancada pelo pai no quarto mais alto de um sobrado. Uma vez por ano, a moça aparece ao público por uma hora, o que causa grande comoção nos populares. Um retrato da desafortunada condessa chega à Turquia e acaba encantando Evangelista. Apaixonado, ele vai para a Grécia na tentativa de resgatar Creuza de seu infortúnio e, para isso, encomenda a um engenheiro um par de asas para conseguir alcançar o quarto da amada. Essa história, com forte apelo popular e influência de crendices e clássicos da literatura, como As mil e uma noites, teve boa receptividade durante a exibição de Saramandaia, vendendo 50 mil exemplares.

Walter Avancini, diretor-geral da novela, após passagem por clássicas produções, como Selva de pedra (1972) e O semideus (1973), prosseguia com sua busca por novas linguagens (Gabriela e O grito, de 1975) para a compreensão da sociedade brasileira. Não existia, na produção audiovisual brasileira, um departamento de efeitos especiais. Portanto, tudo era um constante desafio: “soluções caboclas”, “uma busca, um laboratório”, nos dizeres do próprio Walter Avancini por ocasião da estreia da novela.

A crítica social e política estava presente nas alegorias e situações absurdas que se sucediam a cada capítulo. A explosão de Dona Redonda era uma perfeita metáfora à crescente tensão acumulada nas pouco diplomáticas relações dos militares para com os opositores ao regime ditatorial. A figura de Zico Rosado era uma alegoria sobre o poder e seus comandantes que, ao fim, sucumbem devido às próprias limitações.

Com o fim das ditaduras militares na América ao longo dos anos 1980 e 1990, o realismo fantástico assumiu novas proporções tanto na literatura quanto na televisão. Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares tornam-se os principais nomes dentro desse novo contexto e conduzem até o século XXI toda a herança deixada por Dias Gomes (na telenovela), Alejo Carpentier, Arturo Uslar Pietri, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez (na literatura).

Tramas como Roque Santeiro (1985/86), O sexo dos anjos (1989/90, de Ivani Ribeiro), Vamp (1991, de Antonio Calmon), Pedra sobre pedra (1992, de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares), Deus nos acuda (1992/93, de Sílvio de Abreu), Fera ferida (1993/94, de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares), A indomada (1997, de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares), Meu bem querer (1998/99, de Ricardo Linhares), Um anjo caiu do céu (2001, de Antonio Calmon), Porto dos milagres (2001, de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares), Sete pecados (2007/08, de Walcyr Carrasco) e Tempos modernos (2010, de Bosco Brasil) apontam novas possibilidades e brechas para o onírico mesmo em uma realidade tão fragmentada, robotizada e problemática quanto a que vivemos neste início de século.

Atualmente, o remake de Saramandaia escrito por Ricardo Linhares traz à tela toda a temática do realismo fantástico, estabelecendo uma ponte entre o antigo e o novo: os mesmos personagens e suas alegorias criados por Dias Gomes agora são atualizados e inseridos em novos contextos por Linhares. O realismo fantástico ganhou força ao simbolizar uma possibilidade de sonho e subjetividade dentro de um contexto cosmopolita sufocante e caótico. Tornou-se uma janela em forma de parábola para refletir e abstrair os (des)caminhos de nossa sociedade.

Walter Avancini: diretor em busca de novas linguagens para a teledramaturgia

Mauro Alencar // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Nome do Autor

entrevistas

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Nome do Autor // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

entrevistasJoão Gibão, com suas asas escondidas:

uma metáfora para a liberdade

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RICARDO LINHARES FALA SOBRE O PROCESSO DE CRIAÇÃO DE SARAMANDAIA

“DIAS GOMES CRIAVA METÁFORAS CONTRA A DITADURA MILITAR, EU FAÇO CONTRA A DA INTOLERÂNCIA”

Com 30 anos de carreira na televisão, o escritor e roteirista Ricardo Linhares assina sua 16ª novela realizando um projeto antigo: fazer o remake de Saramandaia. Linhares participou dos três seminários realizados pelo Globo Universidade discutindo o realismo fantástico, que teve nessa novela seu principal representante na teledramaturgia nacional. O autor falou sobre as diferenças entre as duas versões da obra, de 1976 e 2013, o significado e os desafios de transpor a realidade de Bole-Bole, nascida durante a ditadura militar, para o século XXI

entrevista

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Ricardo Linhares // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

Globo Universidade – Dizem que Dias Gomes

detestava que os atores acrescentassem impro-

visos a seus textos e, quando isso acontecia,

ele mandava um recado desaforado dizendo:

“Dispenso colaborações”. Como é que você

agora resolve escrever uma obra livremente

inspirada em um texto dele?

Ricardo Linhares – Bem, há muita lenda nisso.

Nenhum autor gosta muito que o ator mexa em

seu texto – a não ser aqueles que conseguem me-

lhorá-lo. De toda forma, o projeto de reescrever

essa novela parte de uma grande ousadia, porque

vivemos, na televisão, uma época de muito realis-

mo – vide os programas de reality show –, em que

as pessoas esperam ver a realidade, o cotidiano da

vida na tela. Saramandaia tem uma ousadia formal

e de conteúdo muito grande, pois vai contra essa

corrente mais naturalista das novelas dos últimos

anos – que responde a esse anseio do público. Sa-

ramandaia quebra com esse realismo. Mas não faz

nenhum sentido pegar um texto de Dias Gomes,

ou de qualquer outro autor, escrito em outro con-

texto, e simplesmente reproduzi-lo.

O que me fascinou na obra original de Dias Go-

mes, a que eu assisti quando era adolescente e ficou

marcada, não só para mim, como para a história da

telenovela brasileira, foram os tipos emblemáticos

que ele criou: Zico Rosado, João Gibão, Dona Re-

donda, Cazuza, Marcina, Risoleta, Aristóbulo... Eu

quis resgatar esses tipos para o jovem que não pôde

assistir à primeira versão. O que fiz agora foi pegar

do texto de Dias Gomes os personagens emblemá-

ticos e a ideia do plebiscito para mudar o nome da

cidade. O resto é todo novo. Metade da novela é

minha, metade é do Dias.

GU – Você também acrescentou outros perso-

nagens à trama...

RL – Eu criei vários personagens que também

têm traços de realismo mágico, como o de Tar-

císio Meira, por exemplo, um homem que tem

raízes. Ou a personagem da atriz Lília Cabral,

Vitória, uma mulher que literalmente se derrete

de amor. Ela é apaixonada pelo personagem de

José Mayer, Zico Rosado, um caso do passado

que hoje se transformou em uma história de

amor e ódio. Apesar disso, quando ela chega per-

to dele, começa a se derreter de amor. Há tam-

bém a personagem de Fernanda Montenegro, a

Candinha, que cria galinhas imaginárias, só vis-

tas por ela e pelo público. Essa característica não

existia na primeira versão, e nem o caso de amor

dela por Tibério. Aliás, nem os núcleos dessas

duas famílias fazia parte. Criei todo um universo

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Personagem de Fernanda Montenegro, que ganhou novas características na versão atual, revê antigo amor pelo tablet da neta

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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ricardo Linhares

dentro da mesma temática do realismo mágico,

para proporcionar à novela e à história coisas que

faltavam naquela época, como o romance. Dias

Gomes sofreu uma marcação muito grande da

censura, não só politicamente como em termos

de comportamento. Ele não podia, por exemplo,

mostrar relacionamentos adúlteros naquela épo-

ca, e hoje em dia abro a novela com o caso de

Zico Rosado e Vitória – ele é casado e ela, viúva.

Esse adultério era uma coisa impensada na época.

A novela era uma me-

táfora da ditadura, sem

uma história de amor

empolgante. Por isso

criei todo esse núcleo

de personagens novos

e tirei outros que esta-

vam muito datados, cujas histórias, antigas, não

fariam nenhum sentido hoje, como uma velha

disputa entre coronéis. A novela tem um ritmo

muito ágil, que é o da vida atual, da dramaturgia

contemporânea brasileira, americana e universal.

A única maneira de fazermos isso hoje em dia é

recriando o texto, com novos personagens, novas

tramas, em um novo contexto também.

GU – É possível dizer que um dos aspectos

que você pegou da obra de Dias Gomes é o do

amor ao diferente, entre diferentes? A intole-

rância ao diferente?

RL – Se Dias Gomes usou a novela, na sua épo-

ca, como uma metáfora da ditadura militar, eu

a transformei na metáfora da ditadura da into-

lerância, na qual continuamos vivendo, e talvez

ainda continuemos por muito tempo. Eu quis

aproveitar os personagens que têm um traço de

“diferencice”, como dizemos nos textos, que fo-

gem do padrão, para tratar justamente do pre-

conceito que as pessoas têm com quem foge do

comum, com quem tem comportamentos não

usuais na sociedade. Como o João Gibão com

suas asas, ou o Aristóbulo, que só é aceito na ci-

dade enquanto não se assume como lobisomem.

No momento em que, por uma peripécia da

trama, ele acaba se revelando lobisomem dian-

te da cidade inteira, no meio de uma festa, ele

passa a ser rejeitado pelas pessoas porque foge do

comum. Eu quis aproveitar isso nesses persona-

gens, assim como a Marcina, que é mal olhada

porque pega fogo quando fica excitada. Apro-

veito isso para tratar de um tema que considero

atual, a intolerância, que existe em qualquer lu-

gar do mundo, em qualquer sociedade, a quem

foge dos padrões.

GU – A Dona Redonda é uma encarnação

desse preconceito?

RL – É uma encarnação, porque ela é muito

cruel com as pessoas. É incapaz de olhar para

si mesma criticamente, mas é capaz de criticar

todo mundo na cidade, colocar apelidos hor-

rorosos nas pessoas. Ela é uma personagem de

má índole. Só que, quando o João Gibão tem a

visão de que ela vai explodir e as pessoas come-

çam a ficar com medo de que ela entre em suas

casas, ou na igreja, ela passa a sofrer o bullying

que antes praticava e sente o peso da ditadura da

intolerância na própria pele. Isso tudo faz parte

da liberdade de poder pegar o texto do Dias Go-

mes, ou de qualquer outro autor, e atualizá-lo.

GU – Os personagens têm um jeito diferente

de falar. De onde vem o “saramandês”?

RL – Os personagens têm essa maneira especial

de falar, que não é corriqueira. Eu quebro com o

naturalismo urbano habitual das novelas, embora

não use expressões nordestinas nem interioranas.

É, digamos assim, uma língua peculiar, uma mis-

tura de diversas influências. Os personagens falam

que “vão ter um conversório” e não uma conversa,

ALÉM DA RENOVAÇÃO QUE TROUXE

À TELEDRAMATURGIA, SARAMANDAIA

TEVE UMA IMPORTÂNCIA

HISTÓRICA NO PERÍODO QUE O

BRASIL ESTAVA VIVENDO

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61

assim como eles têm uma “problemática”, em vez

de um problema. Parte do vocabulário vem da

obra do Dias, remetendo a O bem-amado, outra

parte é inventada por mim na hora de criar os

diálogos. Isso dá um sabor diferente à novela, que

tem uma ousadia formal, técnica e de conteúdo.

[Leia mais sobre o assunto na página 114.]

GU – Dias Gomes escreveu em sua autobio-

grafia que Saramandaia foi a novela que

lhe deu mais prazer em escrever, mas depois

reconheceu que tinha escrito coisas para re-

cursos técnicos que a televisão só viria a ter

muito tempo depois. A televisão, na época

dele, era quase teatral. Os novos recursos tec-

nológicos possibilitaram voos mais altos do

realismo mágico?

RL – Muito mais. Antes era tudo muito mecâ-

nico. Hoje muito disso é feito por computador.

Quem assiste à novela se espanta, pois não dá

para perceber isso. Toda a cidadezinha de Sara-

mandaia que se vê do alto não existe, foi criada

pela computação da Globo.

GU – Mas é importante que ela não exista, né?

RL – Com Saramandaia, Dias Gomes estava

à frente do seu tempo – apesar de eu não gos-

tar muito dessa expressão, já que ele foi muito

importante naquela época em que viveu, tinha

de estar lá, mas, em termos de realizações, es-

tava à frente. Saramandaia teve uma grande

importância histórica no período que o Brasil

estava vivendo. Além da renovação que trouxe

à teledramaturgia, ela tem um mérito histórico

enorme, como metáfora da ditadura e da liber-

dade. Essa metáfora da liberdade permanece.

Eu mudei o foco, porque ditadura militar não

existe mais e nunca mais vai existir, só que o an-

seio pela liberdade, principalmente do jovem, é

fundamental. Dias fazia referência a isso com a

libertação do João Gibão, por exemplo. Mas eu

mudei totalmente a maneira de contar a histó-

ria. Na primeira versão, o público só descobria

que ele tinha asas quando, na última cena do

último capítulo, ele voa. Eu já abro a novela

mostrando suas asas. A Dona Redonda explo-

dia bem no começo da novela do Dias, que ti-

nha 160 capítulos, e isso só acontece na reta

final da minha. Ela, aliás, não tinha nenhuma

importância dentro da história. Entrava apenas

para chamar alguém de “comunista” e acabou,

não tinha trama. Eu aumentei esse papel, crian-

do um antagonismo entre ela e o Gibão.

Ricardo Linhares // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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Ricardo Linhares diante de estátua do “Santo Dias”, padroeiro de Bole-Bole, em homenagem do autor a seu antecessor

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GU – Há uma citação de Dias Gomes em que

ele diz que é subversivo, independentemente

de ser comunista. E diz que ser subversivo “vai

além da militância política, é algo ligado ao

sonho. Sem os sonhadores, a humanidade não

anda. E hoje a juventude não sonha, porque

acha que é coisa antiga”. Hoje em dia, na Co-

lômbia, por exemplo, a nova geração passou

a implicar muito com essa linguagem do rea-

lismo mágico, por achar que ela não dá mais

conta de uma representação latino-americana

e, ao contrário, coloca a América Latina num

gueto de representação. Você acha que hoje há

menos interesse pelo realismo mágico?

RL – Quanto à questão política, acho que hou-

ve, de fato, um momento de alienação grande

da juventude brasileira, mas esse momento já

passou. Dos anos Collor [início da década de

1990] para cá, iniciou-se uma mobilização po-

lítica muito forte e isso está na novela: o desejo

de mudar e de começar um novo tempo, sem

os dinossauros da velha-guarda. Quanto ao

sonho, a parte não realista, como disse antes,

sinto que hoje em dia o público da televisão

brasileira é apegado à realidade. Não é à toa

que os reality shows fazem tanto sucesso. As pes-

soas querem ver na televisão algo que as ajude

na vida real. Não precisa nem ser realista. O

público não quer ver o fantástico, sobretudo o

brasileiro de televisão aberta, pois, em termos

mundiais, os seriados de sucesso americanos e

ingleses têm vampiros, reinos mágicos etc. Mas

não se deve confundir realismo mágico com o

fantástico. Uma das características do realismo

fantástico é fazer crítica social e política. Bole-

-Bole é um retrato, em menor escala, de uma

grande cidade ou até de um grande país, e de

todos os seus conflitos e problemas sociais, po-

líticos e comportamentais.

GU – No universo do realismo fantástico,

teoricamente pode-se criar tudo. Mas a fic-

ção tem uma lógica, um limite, sua realidade

própria. Até onde a imaginação pode ir para

criar uma obra que não seja vista pelo público

como um “delírio absoluto”?

RL – De fato, pode-se fazer tudo, mas existe

uma realidade interna, é a credibilidade. Em

Saramandaia, o Cazu-

za levanta, ressusci-

ta, mas ninguém se

pergunta se ele teve

uma catalepsia. Ele

simplesmente ressus-

citou. O que aconte-

ceu foi que, quando

colocou o coração de

volta na boca, ele en-

trou por um lugar er-

rado. Mas, durante o

cortejo, quando o cai-

xão caiu no chão, seu

coração voltou para o

lugar certo. Então, é

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ricardo Linhares

Personagem de Tarcísio Meira lê García Márquez rodeado por sua família:

núcleo todo é novo na trama

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Ricardo Linhares // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

simples. Dentro da lógica da novela, isso é rea-

lista. Para os personagens, isso é a realidade. Para

quem está vendo de fora, é um realismo mágico.

Mas, para quem vive ali, aquilo não é engraçado,

não é mágico, é simplesmente o dia a dia deles.

Assim como o fato de o personagem de Tarcísio

Meira ter raízes. As pessoas perguntam: “Está

coçando muito?”, como se fosse uma verruga.

Ninguém acha que é uma coisa do outro mundo

alguém ter raízes. O público em casa vai ter essa

sensação porque está vendo uma obra que foge

aos padrões do realismo habitual.

GU – Isso está de acordo com o que diz Ga-

briel García Márquez, que, além de romancis-

ta, é jornalista. Ele diz, em sua autobiografia,

que escrevia o realismo fantástico como quem

dava uma notícia, e escrevia as notícias como

quem contava coisas fantásticas. Esse era o

segredo da dobradinha.

RL – Um dos grandes desafios ao refazer Sara-

mandaia é pegar essa linguagem do realismo

mágico da novela original do Dias Gomes, que

era atemporal, e colocá-la dentro de um contexto

contemporâneo. Ele misturava elementos de vá-

rias épocas, apareciam d. Pedro, Tiradentes e, ao

mesmo tempo, situava a novela em Pernambuco,

mas não a contextualizava exatamente em sua

época, no contexto em que vivia. Eu situo Sara-

mandaia nos dias de hoje. Ela é completamente

contemporânea – os personagens têm tablet, celu-

lar, mas também um carro antigo, é tudo mistura-

do. Meu grande desafio é pegar esses personagens

que botam formiga pelo nariz e colocá-los dentro

de um contexto contemporâneo.

Clã dos Rosado, fundadores de Bole-Bole

Glo

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depoimento

Ele foi o protagonista Roque Santeiro na versão finalmente liberada da trama, de 1985.

Recentemente, voltou a interpretar um personagem criado por Dias Gomes, ao fazer o

matador Zeca Diabo da versão cinematográfica de O bem-amado (Guel Arraes, 2010).

Mas sua história com o dramaturgo é bem anterior. Tendo iniciado a carreira como locutor

de rádio no Ceará, José Wilker estreou na televisão com a novela Bandeira 2, de 1971,

convidado justamente por seu autor, Dias Gomes.

Na Globo, além de atuar, também dirigiu programas e novelas. Como ator, participou de mais

de 60 filmes – entre eles Dona Flor e seus dois maridos (1976) e Bye bye Brasil (1979) –,

além de dirigir o longa Giovanni Improtta, de 2013, e trabalhar como crítico de cinema.

Em depoimento realizado durante a mesa-redonda “Dias Gomes e o realismo fantástico

em Saramandaia”, na Casa do Autor Roteirista em Paraty (RJ), em julho de 2013,

José Wilker falou sobre a importância de Dias Gomes na televisão brasileira

JOSÉ WILKERO ator que Dias Gomes levou para a televisão

Luci

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SORTE E PREVISÃODepois de assistir ao primeiro capítulo de Saramandaia, uma coisa

me veio à mente. Não sei se foi intencional, mas a novela começou como uma homenagem ao cineasta Federico Fellini e acabou como mais um participante das passeatas pelas ruas do Brasil nos dias de hoje. Então pensei o seguinte: Dias Gomes e Ricardo Linhares são pessoas que têm não só uma sorte incrível, como uma capacidade de prever absolutamente notável.

Dias Gomes começou a escrever numa época em que o Brasil achava que éramos todos irmãos, brancos, negros, mulatos, judeus, índios etc. E ele escreveu uma peça sobre o preconceito racial [Dr. Ninguém, 1943]. Um pouco antes, numa época em que o Brasil, de certa maneira, namorava o eixo Roma-Berlim e praticamente aderia a Hitler na Segunda Guerra Mundial, ele escreveu uma peça contra o nazismo [Amanhã será outro dia, 1942]. As duas peças foram ofertadas a duas pessoas que eram, digamos assim, símbolos do que se fazia de melhor em teatro no Brasil e eram concorrentes, Jayme Costa e Procópio Ferreira. Procópio Ferreira acabou encenando as duas, só que com algumas alterações. O médico negro de Dr. Ninguém passou a ser um branco filho de uma lavadeira, e o antinazismo de Amanhã será outro dia foi eliminado. A peça foi cortada em 14, 15 páginas e esse tema ficou de fora,

José Wilker // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // José Wilker

sumiu. Dias tinha apenas 20 anos e era contra determinados sistemas, mesmo sem saber que era contra.

Dias é um cara de sorte, é um cara com a extraordinária capacidade de prever, porque, logo em seguida, começou-se a discutir o preconceito de raças no Brasil, e o país se colocou contra o nazismo, assumiu a posição pró-Aliados durante a Segunda Guerra.

Nos anos 1960, foi na casa de Dias Gomes que começaram a se reunir diariamente os cineastas Leon Hirszman, Cacá Diegues e Joaquim Pedro de Andrade. Eles discutiam como fazer um novo tipo de cinema. Foi então, na casa de Dias, que nasceu o movimento que eles chamaram de Cinema Novo.

O dramaturgo escreveu logo em seguida uma peça de teatro que foi um grande sucesso, chamada O pagador de promessas, montada no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), que era uma renovação do teatro brasileiro. Em seguida, Dias adaptou a peça para o cinema e O pagador de promessas ganhou a Palma de Ouro em Cannes, foi indicado ao Oscar e conquistou prêmios em ‘trocentos’ festivais pelo mundo afora. O Cinema Novo rejeitou Dias, rejeitou Anselmo Duarte e colocou-os no ostracismo. Dias Gomes estava à frente.

Dias começou a fazer peças de teatro, porque ficou confinado depois dessa época do antinazismo ao rádio, e lá foi muito feliz, porque teve a oportunidade de ler toda a literatura moderna ocidental acessível da época, desde Shakespeare até os mais recentes, e adaptou, durante vários anos, mais de 500 obras para o rádio. Ele dramatizou essas obras. Ele estava à frente.

Diante da proibição de duas novas peças não aceitas nem pela esquerda nem pela direita, Dias Gomes resolveu aderir à televisão – e também não foi aceito, nem pela esquerda nem pela direita. Pela esquerda não foi aceito porque diziam que ele tinha aderido ao sistema, tinha se vendido; e o sistema não aceitava o que ele queria por ser reconhecidamente comunista. Ele era de esquerda. Então, ele foi encontrando caminhos para contar suas histórias. No caso de Saramandaia, a novela foi quase um ataque de nervosismo de Dias. Tinham acabado de

Cena da minissérie O fim do mundo, escrita por Dias Gomes e Ferreira Gullar, exibida em 1996

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proibir Roque Santeiro, que era um texto ‘reproibido’, porque já havia sido censurado como O berço do herói, em 1965, por Carlos Lacerda [então governador do estado da Guanabara]. Mas Dias foi se esgueirando, transitando onde podia, em um limbo qualquer, e inventou Roque Santeiro para a televisão, que foi novamente proibida. Com raiva, ele falou: ‘Vou esculhambar’, e escreveu Saramandaia.

Da parte de Dias Gomes – de acordo com um depoimento que ouvi dele –, em Saramandaia ele não tinha, conscientemente, vontade de criar um novo estilo, uma nova dramaturgia ou um novo modo de ver o Brasil. Era uma vontade de esculhambar. ‘Quero saber agora o que a censura vai proibir, porque essa novela é uma tal confusão, um tal caos, uma tal loucura, que se proibir é porque são malucos, vão assinar o atestado de maluquice.’ Só que nisso ele criou um gênero, criou um sistema, criou um modo de contar a história do Brasil. Isso é da maior importância, da maior sensibilidade.

CENSURASobre a proibição de Roque Santeiro, em 1975, nós fizemos passeata, mil

manifestações contra a censura, e ninguém entendeu o motivo da interdição. O que aconteceu, segundo Dias, foi o seguinte: sua peça O berço do herói já havia sido censurada, em 1965. E Roque Santeiro foi proibida no dia da estreia por conta de um telefonema grampeado.

Dias Gomes ligou para o historiador Nelson Werneck Sodré para avisar que ia fazer Roque Santeiro. E falou: ‘Estou sacaneando os milicos, estou armando uma história... Eles proibiram O berço do herói porque tinha um personagem, o Roque, que era um cabo do exército covarde. Eu tirei então a patente do Roque e resolvi transformá-lo em um santeiro, aquele que fabrica santos. Ou seja, eu vou contar a mesma história e os babacas vão liberar’. Só que os ‘babacas’ grampearam o telefone de Werneck e Dias, e proibiram. Só que, publicamente, o Exército, durante a ditadura, não podia admitir que tinha grampeado o telefone. Então eles inventaram toda uma lógica, toda uma construção para explicar a proibição da novela.

Censurada em 1975, a novela Roque Santeiro teve José Wilker

como personagem-título na versão liberada dez anos depois

José Wilker // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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SOBRE TELEDRAMATURGIAGostaria de ler algumas palavras do próprio Dias Gomes, que me parecem ser

um resumo, para o futuro, do que ele havia feito até então. Perguntaram a ele o que achava da dramaturgia de televisão. Ele falou o seguinte:

Acho que a dramaturgia universal está em crise. Aliás, acho que todas as artes estão em crise. Nós vivemos um fim de século, um característico fim de século em que realmente não há nada. Nós esperamos que vá acontecer alguma coisa e certamente irá acontecer. Talvez no início do século XXI. Mas nós vivemos em todas as artes uma espécie de entreato, uma espécie de tempo de espera, muito propício ao charlatanismo, aos neo qualquer coisa, que escondem uma crise de criatividade. Nós não temos no momento um grande movimento artístico de parte nenhuma, como o romantismo, o modernismo. Nós não temos. Temos o chamado neomodernismo que não é nada, é apenas um rótulo para encobrir o grande vazio em que nós estamos. Então, não é só a nossa dramaturgia que está em crise, é a dramaturgia universal, a americana, a francesa, europeia etc.

Com relação à televisão, ela faz parte desse contexto cultural e evidentemente não podia escapar a essa crise. No caso específico da novela, acho que falta a inquietação, a busca de novos formatos, de novas técnicas, como durante os anos 1970, quando a novela firmou a sua linguagem popular e de meio de expressão popular, uma linguagem própria e que não era mais aquela linguagem radiofônica do início, nem a do mau teatro, nem uma cópia do cinema. Então,

Em seu primeiro papel na TV, Wilker contracena com Paulo Gracindo em Bandeira 2, de Dias Gomes

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // José Wilker

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nos anos 1970, houve uma busca de linguagem, e com isso houve experiências. Cada novela era uma experiência nova, que não se sabia se ia dar certo ou não, era cercado de grande expectativa. A Globo, por exemplo, onde se desenvolveu mais essa busca de linguagem, tinha um horário, às 22h, que não interferia na programação. Quer dizer, se não desse certo, não derrubava a programação toda, onde se podia fazer uma experiência nova. Quase todas as novelas que eu escrevi naquela época foram ao ar embaixo de enorme apreensão.

A primeira novela que eu fiz assim, Bandeira 2 [exibida de outubro de 1971 a julho de 1972], passada em um submundo de bicheiros e de escola de samba, foi debaixo de enorme expectativa. Achávamos que o público não estava preparado para receber isso, porque o público de novela era um público romântico e tal. E eu fui botar o herói velho, bicheiro, um mau-caráter e tudo. No entanto, a novela deu certo. Com isso, se dá um passo adiante. Como sempre aí se assimila aquilo que tinha sido contestado. E quase todas as experiências nessa ocasião – foram vários depois de mim, foram vários autores de teatro para a televisão, como Jorge Andrade, Lauro César Muniz etc. E cada um se animou a fazer uma experiência nova e tal. E a maioria dos autores, como eu e Jorge Andrade, de quem falei agora, levava a sua temática teatral para a televisão.

O bem-amado é uma peça de teatro; Roque Santeiro, também; O espigão [novela exibida de abril a outubro de 1974] no início era uma peça de teatro que depois eu desenvolvi. Então, isso, no meu caso, era mais uma questão de segurança. Eu ia para um meio cuja linguagem eu não dominava, eu tinha já nome no teatro, tinha uma responsabilidade. Eu digo: muito bem, pelo menos na temática eu vou me segurar, não vou abrir mão da minha temática, ninguém vai dizer o que vou escrever. 1

Se hoje isso o que Dias fala pode parecer melancólico, ao mesmo tempo é o que permite a Ricardo Linhares, por exemplo, escrever hoje Saramandaia, que é uma coisa nova.

MODERNISMODias Gomes nasceu em 1922. Mesmo ano da Semana de Arte Moderna,

que de alguma maneira disparou para nós a modernidade. Dias, nascido em 1922, disparou para nós uma certa liberdade, inventividade, criatividade. Acho que devemos, por obrigação a Dias, continuar insistindo nessa modernidade, inventividade, criatividade e liberdade.

1 GOMES, Dias. Luana e Mayra Dias Gomes (orgs.). Encontros Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012. p. 152-153.

José Wilker // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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LIMA DUARTEDe Zeca Diabo a Sinhozinho Malta, uma longa parceria

Grande amigo de Dias Gomes, Lima Duarte deu vida a vários dos personagens idealizados

pelo dramaturgo e ajudou a transformá-los em tipos inesquecíveis da televisão brasileira.

Os dois se conheceram no fim dos anos 1940, quando Lima ainda trabalhava como

sonoplasta de rádio. Em 1972, ele foi para a Globo, como diretor de novelas. No ano

seguinte, foi com um texto de Dias Gomes que estreou como ator na emissora. Desde então,

não parou. Em mais de 40 anos, fez papéis memoráveis em diversas novelas e minisséries,

foi apresentador de programas, além de manter uma importante carreira paralela em

teatro e cinema. É hoje um dos atores mais premiados do Brasil.

No encontro promovido pelo Globo Universidade em Paraty, Lima Duarte relembrou

a amizade com Dias Gomes, os personagens que criaram juntos, falou sobre realismo

fantástico e terminou recitando um conto de Julio Cortázar

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depoimento

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Lima Duarte // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

ZECA DIABOEu tinha acabado de dirigir a novela O bofe [de Bráulio Pedroso e

Lauro César Muniz, exibida entre julho de 1972 e janeiro de 1973, na Globo], quando Dias Gomes me chamou para trabalhar como ator na primeira versão de O bem-amado [exibida entre 22 de janeiro e 5 de outubro de 1973, na Globo]. Dias Gomes, que era meu amigo, chegou e me disse: ‘Lima, tem um personagem para você, são só três capítulos. É um cangaceiro feroz, terrível, que volta para a cidade de Sucupira para matar alguém, a pedido do prefeito, para inaugurar o cemitério local, recém-construído por ele’. Eu perguntei: ‘Só isso?’ E ele: ‘Só isso. São três ou quatro capítulos, e ele não mata ninguém’.

Saí dali pensando como fazer um matador que não mata... Comecei a compor o personagem: arranjei um olhar de matador, um bigode, fui a um churrasco no interior de São Paulo e arranquei o chapéu de um caipira. Para finalizar, fui a uma tinturaria em frente à Estação da Luz, em São Paulo, e pedi: ‘Você tem algum terno que largaram e não vieram buscar?’ Comprei o terno. O figurino era tudo escuro: roupa, chapéu. No primeiro capítulo, eu entrava pela cidade a cavalo e, conforme ia avançando, as portas se fechavam, entreabriam-se as janelas, as crianças corriam... Todo o clima de que o matador estava chegando. Até que eu parei, corri os olhos por toda Sucupira, desci do meu cavalo, entrei no bar com aquele andar de matador, olhar

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Page 72: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

de matador, e disse [com voz fina]: ‘O senhor me dê uma cachacinha, fazendo o favor?’ Ele falava desse jeito, com uma voz fina, pedindo sempre ajuda a seu ‘Santo Padinho’. Ou seja, ele não é um matador, ele é vítima de uma estrutura social viciada que foi levado ao crime, à morte, ao assassinato, mas basicamente é um puro, um bom. No final, o personagem ficou tão legal que não puderam tirar mais da novela. Ele fez muito sucesso.

SINHOZINHO MALTA

Outro personagem criado por Dias Gomes que fiz e também ficou famoso foi o Sinhozinho Malta, da novela Roque Santeiro. O elenco original dessa novela, em 1975, tinha eu como Sinhozinho Malta, Francisco Cuoco como Roque Santeiro, Beth Faria fazendo Porcina, um grupo completamente diferente da versão exibida depois, em 1985. O que aconteceu em 1975 foi que, no dia da estreia da novela, o ministro da Justiça Armando Falcão – o famoso ‘nada consta’ – proibiu a exibição: ‘A novela está proibida, não vai para o ar’, disse ele ao Jornal Nacional. Proibiram a exibição em cima da hora, de propósito, e a Globo teve de colocar um filme no horário das oito.

No dia seguinte, todo o elenco foi convocado para a sala do diretor-geral da emissora, que disse: ‘Vocês sabem, é uma cláusula do contrato de vocês; mediante um motivo de grande força maior, eu posso dispensar todo mundo e os contratos são todos rompidos, de maneira que os senhores estão todos despedidos. Foram contratados para essa novela, como não vai ter novela, vão todos para a rua. A não ser que vocês me façam uma novela rapidinho para botar no ar em dez, 15 dias, para cobrir o horário das 20h’, que era o mais importante da Globo. ‘Está aqui a [autora] Janete Clair, que vai falar com vocês sobre o que ela tem e o que podemos fazer’. A Janete disse então: ‘Eu tenho aqui uma novela que tem dois personagens exatamente para o Cuoco, que era o Roque Santeiro, e para o Lima, que era o Sinhozinho Malta: um é motorista de praça, o outro é um viúvo muito triste, muito melancólico, pai de uma porção de filhos e grande capitão da indústria. Eu penso que o Lima deve fazer o motorista e o Cuoco, o capitão de indústria’. E seguiu assim, distribuindo papéis para o elenco inteiro de

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // Lima Duarte

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Como Zeca Diabo, ao lado de Ida Gomes, em O bem-amado, de 1973

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Roque Santeiro original. Aí o Cuoco disse: ‘Um momentinho. Eu não vou fazer pai de ninguém’ – naquele tempo, galã tinha dessas coisas – ‘Não vou ser pai de ninguém, não faço’. A Betty Faria também disse que ia fazer outros trabalhos. Resultado: ninguém topou. Aí o diretor, Daniel Filho, teve a ideia: ‘Vamos fazer o seguinte: o Lima faz o industrial, e o Chico Cuoco faz o chofer de táxi’. E assim fizemos a novela que se chamou Pecado capital, talvez o maior sucesso de Janete Clair [exibida entre novembro de 1975 e junho de 1976]. E foi uma novela feita correndo, em 15 dias, só para cobrir o buraco deixado por Roque Santeiro.

Dez anos depois, quando veio a abertura ‘lenta e gradual’, iniciada no governo Ernesto Geisel [1974-1979], foi-nos permitido fazer o Roque Santeiro, mas aí só fiquei eu do elenco original, como Sinhozinho Malta. Entraram a Regina Duarte como viúva Porcina e o José Wilker como Roque Santeiro. E fizemos essa versão de Roque Santeiro [exibida de junho de 1985 a fevereiro de 1986], que foi um sucesso.

SARAMANDAIAQuase fiz Saramandaia, em 1976. Como disse antes, Dias Gomes era

um grande amigo – desde a época em que eu fazia rádio e teatro com ele na velha rádio Tupi, em 1947. Eu era o operador de som, e ele era o autor. Eu fazia a sonoplastia de vários programas. Quando, já na televisão, eu estava fazendo Pecado capital, que se tornara o must da ocasião, a grande novela, ele chegou e disse: ‘Lima, preciso de você em Saramandaia, você não vem comigo?’ E eu respondi: ‘Não sei, estou fazendo essa novela aí...’ E ele: ‘Não dá um jeito de você sair?’ E como eu ia sair? Disse a ele: ‘A novela é da sua mulher, fala para ela me matar que vou para Saramandaia’. Aí ele não teve coragem de pedir isso a ela.

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No papel de Sinhozinho Malta, com a viúva Porcina (Regina Duarte)

em Roque Santeiro, em 1985

O ator encarna o empresário Salviano Lisboa, em Pecado capital

Lima Duarte // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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Page 74: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

REALISMO MÁGICOEu gostaria de falar um pouco sobre realismo mágico. Ou fantástico,

ou crítico. É o seguinte:

Há tempos que penso nisso, mas nunca me ocorreu falar, assim, de público, porque me parece que a idiotice é um tema um pouco pesado, especialmente se é o idiota quem expõe o tema. Na verdade, não existe nada de mau em ser-se um idiota, só que, às vezes, eu me sinto à parte, e uma grande vontade de atravessar essa larga e ensolarada avenida, e ir até o outro lado, onde estão reunidos todos em um grande entendimento, sensibilidade, delicadeza e cuidado, e estar ali com eles, sentindo que sou um deles, e que não há nada de mau em ser um idiota.

Na verdade, não há nada de bom também. E não há nada de mau. Por exemplo, eu às vezes vou ao teatro, a um espetáculo de mimos checos e bailarinos tailandeses, com a minha mulher e meus amigos. Ah... mal eu me sento na poltrona, sou acometido por uma grande euforia, uma

felicidade por estar vivo, por estar ali onde pessoas extraordinárias vão fazer e dizer coisas maravilhosas, provocando um lugar de encontro onde estaremos todos felizes, lidando com ideias... E, às vezes, eu aplaudo até me doerem as mãos, me vêm lágrimas aos olhos e rio alto, e comento com os amigos, e vejo que quando aquele velho pescador faz avançar sobre o proscênio um peixezinho fosforescente e ele busca, e busca, à guisa de juventude, o peixezinho vai, vai... é inaudito! E vem o intervalo e eu comento com a minha mulher e meus amigos. Muito amáveis, dizem que gostaram muito também, que tudo aquilo foi muito bom, maravilhoso. Eu aplaudi muito. Aquele momento do peixinho fosforescendo é uma coisa maravilhosa. Os mimos checos são muito hábeis, bem- -humorados, é maravilhoso. Os meus amigos concordam todos. Mas, de repente, um diz: ‘As vestes são um pouco descuidadas, há um pouco de mau gosto...’

Esse momento tem alguma coisa de tumor, fundo e úmido, porque eu começo a recair na consciência de que sou um idiota, e qualquer coisa basta para alegrar-me da quadriculada vida. Me afasto, esfregando as mãos, pressuroso, procuro reter nos olhos, ainda, aquele peixinho fosforescendo e avançando sobre o proscênio, e meus amigos comentam: ‘Mas, se você fica assim diante de um peixinho fosforescente, o

Veja Lima Duarte recitando o texto de Julio Cortázar, durante a mesa na Casa do Autor Roteirista, em Paraty: http://glo.bo/17fXSVq

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Depoimento // Lima Duarte

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Escritor argentino Julio Cortázar, autor do conto interpretado por Lima Duarte

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que vai acontecer quando você vir o John Gielgud fazendo o Mercador de Veneza, de Shakespeare?’

Eu não sei. Eu acho que a idiotice não é uma coisa que se gasta, ela se renova todos os dias. Ela vem sempre. De manhã eu começo a ser idiota, idiota, e vou sempre... Por exemplo, outro dia estava no Bois de Boulogne e vi num daqueles lagos um pato nadando, e ele tinha um olhar tão petulante, aquela curva do pescoço era uma coisa tão elegante, tão nobre, que eu me pus de joelhos a ver aquele pato e aquela linha maravilhosa que o peito dele tangendo a água abria, e se perdia no infinito. Era tão lindo... Eu vi também uma folha seca dançando nos limites de um banco, maravilhosa. Eu não sei, eu não acho que o olhar de um pato seja menor só por eu me lembrar do Fischer-Dieskau cantando O anel do Nibelungo, ou Kiri Te Kanawa cantando O mio babbino caro. Eu não sei.

Então, os amigos falam comigo, dizem que eu devo ser mais sóbrio e eu sou, me comporto, fico quieto, até o próximo peixezinho fosforescente, a próxima folha seca, assim, sempre assim, porque eu sou um idiota. Sempre assim.

Esse texto, ‘Você tem que ser realmente idiota para’, é de um dos maiores autores do realismo mágico latino-americano, o belga-franco-argentino Julio Cortázar [1914-1984]. Consta do livro A volta ao dia em oitenta mundos. Uma homenagem ao autor, no mês em que se completam 50 anos do lançamento da primeira edição de seu grande livro, Rayuela – O jogo da amarelinha. Essa sua obra é lapidar no terreno do realismo mágico. É um livro que tem 155 capítulos, que podem ser lidos na sequência ou alternadamente. O livro torna-se assim um livro total, um livro absoluto – de qualquer maneira que se lê, se tem uma história.

Para saber mais:

CORTÁZAR, Julio. A volta ao dia em 80 mundos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

O jogo da amarelinha. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Lima Duarte // Depoimento // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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ção

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ção

Livro de contos de Cortázar, editado no Brasil, e edição especial comemorativa dos 50 anos de O jogo da amarelinha, lançada na Argentina

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FERREIRA GULLAR FALA SOBRE AS PARCERIAS COM DIAS GOMES

“O HUMOR DELE QUASE SEMPRE TINHA UM CERTO VENENO. SOBRETUDO QUANDO SE TRATAVA DE RESPONDER A CERTAS CRÍTICAS” Por Ariadne Guimarães

Quando Ferreira Gullar voltou ao Brasil, após seis anos no exílio, Dias Gomes lhe ofereceu um emprego no Grupo de Dramaturgia da Globo. Ele o ajudaria a escrever roteiros para novelas e o que mais aparecesse. A proposta amiga resultou em duas novelas (Araponga e o remake de Irmãos Coragem), duas minisséries (Dona Flor e seus dois maridos e As noivas de Copacabana) e muitas histórias. Em entrevista ao Caderno Globo Universidade, o poeta, jornalista e crítico de arte recorda o processo criativo do escritor, o “patrulhismo” dos compa-nheiros de esquerda, que não aceitavam um gênio a serviço da TV, e a singularidade daquele que era, ao mesmo tempo, solidário e satírico

entrevista

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Ferreira Gullar // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

Globo Universidade – Dias Gomes se autode-

finia como um “anarco-marxista-ecumênico e

sensual”. E fazia questão de dizer que não es-

tava brincando. Quais são as lembranças que

o senhor tem do autor?

Ferreira Gullar – Dias foi meu amigo durante

muitos anos. Éramos muito próximos. Ele era

uma pessoa solidária. De modo que as lembran-

ças são sempre afetuosas – ou então do traba-

lho que realizamos juntos. O humor dele qua-

se sempre tinha um certo veneno. Sobretudo

quando se tratava de responder a certas críticas.

Suas respostas guardavam um sarcasmo que o

caracterizava. Ele era também uma pessoa  que

não se ressentia, entendia que era assim mesmo,

que isso costuma acontecer na área intelectual,

especialmente no teatro. Não se envenenava.

Ao contrário, ele reagia gozando, porque tinha

consciência da qualidade do que fazia. Ninguém

faz o teatro que o Dias fazia sem ter consciência

do que está fazendo.

GU – O senhor mencionou a consciência do

próprio trabalho.

FG – Ele tinha muita consciência do que fazia.

Uma visão crítica sobre sua produção. Tanto que

depois corrigia, refazia. No meu trabalho com

ele isso ficou evidente. Além do mais, Dias tinha

um domínio grande da técnica, da dramaturgia.

Era criativo. A maneira como fazia coisas para

televisão, especiais, seriados, séries... A maneira

como ele inventava as cenas e o transcurso da

história era impressionante pela espontaneidade

e pela relativa facilidade com que montava tudo.

GU – Quais são suas recordações do processo

criativo de Dias Gomes?

FG –  A gente trabalhava junto a história, a

proposta inicial. Depois, ele fazia uma espécie

de roteiro inicial para discutirmos. Quando

chegava a hora de escrever, cada um ia para

sua casa e escrevia o que tinha de escrever. De-

terminadas cenas ele fazia, outras eu. Depois,

trocávamos ideias. A gente lia, discutia, mas

o trabalho de escrever era isolado. Não tinha

outra maneira de fazer.

GU – Existem muitas semelhanças nas tra-

jetórias de Dias Gomes e de Ferreira Gullar.

Dois nordestinos que foram parar no Rio,

você do Maranhão e ele da Bahia. Uma con-

vicção política de esquerda e o amor às letras.

FG – Há uma diferença básica. Dias era essen-

cialmente um dramaturgo, que não é o meu

caso. Eu sou preponderantemente um poeta.

E também dramaturgo. Em Dias, a dramatur-

gia era a aspiração fundamental. E ele dedicou

a vida inteira a isso. Desde garoto, começou a

escrever teatro. Depois, passou a escrever para

rádio e televisão. Aquilo era, de fato, a vida dele.

Por isso mesmo, tinha esse domínio, algo que

surgia de seu talento natural. Algo que não se in-

venta. A pessoa nasce poeta, nasce dramaturgo,

nasce pintor. Você aprende, desenvolve a técni-

ca, aprimora o modo de fazer, mas, se não nas-

ceu dramaturgo, não vai conseguir se inventar o

dramaturgo. E Dias o era, essencialmente.

Tínhamos afinidade em uma série de coisas, a

nossa maneira de encarar a dramaturgia, a nar-

rativa, o humor era semelhante. Mas é claro que

existiam coisas específicas em cada um. Eu acho

que isso enriquecia nosso trabalho porque, mui-

tas vezes, eu dava um desenvolvimento para de-

terminadas cenas que ele não daria e vice-versa.

GU – Em um trecho publicado em sua auto-

biografia, Dias Gomes diz: “Eu levei para a te-

levisão a minha temática, o meu universo tea-

tral, o único modo que tinha de me conservar

fiel a mim mesmo. Quase todas as novelas que

fiz foram, basicamente, extraídas das minhas

Page 78: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

78

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ferreira Gullar

peças”. Como o senhor avalia essa transposi-

ção do teatro na TV?

FG – A novela é uma diluição da linguagem,

uma adaptação da dramaturgia. Um filme, uma

peça de teatro, tem uma hora e meia, duas ho-

ras de duração, no máximo. Não existe uma

peça que dure 200 dias, 200 capítulos. Não

há dramaturgia para 200 capítulos. Isso não é

culpa de nenhum autor de novela. O gênero é

isso. O que se deve observar é que Dias, embo-

ra enfrentando as dificuldades inerentes ao gê-

nero, nunca deixou que suas obras chegassem a

esse risco de diluição da linguagem teatral. Ele

nunca deixou, nunca vendeu barato. As novelas

dele são das melhores escritas no Brasil. Sem

nenhuma dúvida. Têm uma consistência, uma

qualidade superior à maioria. Não estou dizen-

do que são as únicas, mas as que ele escreveu

estão entre as melhores que foram escritas para

a televisão brasileira.

GU – O senhor foi parceiro de Dias Gomes

em duas telenovelas [Araponga e o remake de

Irmãos Coragem] e duas minisséries [Dona

Flor e seus dois maridos e As noivas de Copa-

cabana]. Como foi a construção dessas obras?

Araponga, por exemplo, foi uma trama inova-

dora em muitos aspectos.

FG – Dias foi chamado pelo Boni [então dire-

tor-geral da Globo] para fazer uma nova novela e

me ligou: “Olha, Gullar, eu tenho uma ideia aqui.

Vamos conversar”. A ideia era fazer uma trama

baseada em tráfico de órgãos. Discordei. Fazer

uma novela de 180, 200 capítulos sobre tráfico de

órgãos?! Depois de um tempo, ele acabou ceden-

do. “Bom, vamos pensar. A gente se fala.” Dois,

três dias depois, ele voltou a me ligar. Tinha um

novo assunto: “Um policial, agente da ditadura,

que foi torturador e está aposentado, se tortura a

si mesmo.” Achei ótimo, muito engraçado mes-

mo. Dias mandou, então, fazer a pesquisa sobre

o período do regime militar e descobriu que os

agentes, em geral, usavam pseudônimos com no-

mes de aves: canário, sabiá... Ele resolveu botar o

nome do personagem principal de Araponga, o

que é muito engraçado, já que esse é um pássaro

que berra alto para burro! Imagina, o cara é um

Milton Gonçalves e Ana Maria Nascimento Silva em Araponga, novela de

Gullar e Dias Gomes

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Ferreira Gullar // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

agente clandestino, que deseja se encobrir, e bota

o nome de Araponga, um bicho escandaloso!

GU – A minissérie As noivas de Copacaba-

na alcançou grande êxito no início dos anos

1990. A obra chegou a ser comercializada em

mais de 20 países. 

FG – As noivas de Copacabana tem uma peque-

na história. Primeiro, ele propôs a história de

um assassino em Niterói que matou várias noi-

vas. Ele ficava noivo e depois matava as noivas.

Ele leu a história no jornal e achou que pode-

ria ser um negócio legal, uma minissérie. Mas,

quando ele ia mandar a sinopse para a Globo,

mudou de ideia. Na época, ele disse que havia

desistido porque o cara só havia matado uma

noiva. Na mesma hora, falei: “E daí? Essa ideia

do personagem era interessante”. Aí ele falou:

“Não, mas também tem um problema, que é

para fazer 12 capítulos, matar 12 noivas...”.

Aí eu disse: “Dias, não estou te reconhecendo.

Não tem de ser 12 noivas! No primeiro capítu-

lo, ele conhece a noiva. No segundo, namora a

noiva. No terceiro, casa e, no quarto, mata. São

no máximo três ou quatro noivas”. Ele acabou

aceitando. Fez a sinopse e mandou para o Boni.

No final, das histórias enviadas, foi justamente

a das noivas a escolhida. Dias começou a traba-

lhar no esboço de uma sinopse maior, quando

aconteceu algo inesperado. Uma noite, eu li-

guei a televisão e passou um filme americano

de um cara que matava noivas. Aí eu liguei para

ele e falei: “Pô, o cara aprova o negócio e bota

no ar no dia seguinte uma história parecida?”.

Disse, então, que já tinha uma solução para o

problema. “Vamos fazer a versão brasileira des-

sa história, casos que se passam no Rio de Ja-

neiro, com as cenas todas localizadas na cidade

do Rio. Daí é que surgiu o título As noivas de

Copacabana, porque a primeira cena é de uma

noiva que aparece morta numa igreja da pra-

ça Serzedelo Correia, em Copacabana. Outro

personagem vive vendendo coisas no Leme, no

calçadão. Fizemos uma história carioca. Isso

resultou em algo muito positivo e deu ainda

uma veracidade maior à história, que foi um

Cena de As noivas de Copacabana, enredo que nasceu a partir de notícia de jornal

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Page 80: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

80

sucesso. Quando terminou a exibição da minis-

série, recebemos uma carta da direção da Globo

nos cumprimentando pela alta qualidade e o

êxito de público e crítica. Mas isso se deve à

qualidade do Dias, à dramaturgia dele, à capa-

cidade de síntese, de humor, de dramaticidade

e de fabulação que ele tinha.

GU – Um dos pontos curiosos na trajetória de

Dias Gomes é a reação dos intelectuais, prin-

cipalmente de esquerda, à decisão do autor de

trabalhar com a televisão. Algo que ele reba-

teu com veemência, por considerar contradi-

tório virar as costas a “uma plateia verdadei-

ramente popular”, como ele descreveu a TV.

FG – Quando isso aconteceu, eu estava no exí-

lio. Eu não testemunhei isso. Acho o argumento

bem retorquido. Se o sujeito tem a possibilidade

de falar para um público gigantesco, um públi-

co enorme, de milhões de pessoas, vai deixar de

falar quando o objetivo do teatro dele era justa-

mente esse, de atingir o maior número possível

de pessoas? Eu acho que isso ele conseguiu. Ele

não só defendeu isso quando foi criticado, como

ele fez. Os personagens que ele criou são alta-

mente críticos à sociedade brasileira, à política

brasileira, à corrupção, todos esses problemas

que estão de novo aí são criticados nos trabalhos

recentes nas minisséries e nas novelas. Então, eu

acho que ele tinha toda a razão.

GU – Textos que continuam atuais.

FG – Sim, claro. Ele tinha essa capacidade cria-

dora. Seus personagens ficavam para sempre.

Araponga, por exemplo, tornou-se o sinônimo

de espião, de polícia. E os tantos outros? Ele

criou personagens da vida brasileira. Isso é uma

coisa rara. Não são piadas. São personagens que

têm consistência com relação à nossa sociedade,

à nossa vida, nossos costumes e nossos proble-

mas como sociedade. Algo muito sério.

GU – Com esse tipo de inovação, o senhor

considera que Dias Gomes trouxe ruptura

à televisão?

FG – Sim. Inclusive, ele foi muito imitado. Não

com a qualidade que lhe era característica. Mas

muitos personagens que ele criou foram imita-

dos por outros autores. Isso é natural também

porque ele era um criador. O que ele fazia sem-

pre trazia algo próprio. Em cada novela, em cada

seriado, sempre tem personagens e situações

muito originais, criativas. Dias nunca foi para o

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ferreira Gullar

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previsível. Os personagens são originais, as situa-

ções são originais. O tempo todo você se sente

descobrindo. E isso faz toda a diferença.

GU – Dias Gomes também foi responsável

pela introdução do realismo mágico na TV,

com Saramandaia. Como o senhor avalia

esse momento na obra do escritor?

FG – O senso de humor está presente em tudo o

que o Dias faz. E Saramandaia é especial. Nesse

trabalho, ele levou essa característica a uma exa-

cerbação. Ele chega ao surrealismo, praticamente,

a uma linguagem nada preocupada com a veraci-

dade, com a verossimilhança. E isso está adequa-

do a uma qualidade também especial, já mencio-

nada – a originalidade. Suas peças não se parecem

umas com as outras. Cada obra é uma criação

nova. É claro que tinha uma coisa comum, que é

o senso de humor, o sentido dramatúrgico.

GU – Esse texto está fazendo quase 40 anos.

Ele continua atual, em sua opinião?

FG – Sim, por causa da criatividade. Não é o

realismo primário, buscando os detalhes do dia

a dia. É algo que requer realmente inspiração no

sentido geral do termo. Para criar aqueles perso-

nagens tem de ter uma capacidade criativa mui-

to própria, muito especial. Uma imaginação de

dramaturgia enorme. Essa é a característica do

Dias Gomes. Essa habilidade de fazer um perso-

nagem da vida popular brasileira, um latifundiá-

rio ou uma mulher gorda que explode, com esse

senso de humor permanente.

GU – Isso também está presente em textos

como O bem-amado e Roque Santeiro?

FG – O berço do herói [obra teatral que foi

transformada na novela Roque Santeiro] é uma

obra-prima. É originalmente uma peça de teatro

que foi montada e depois proibida pela censura.

Dias a levou para a televisão e assim surgiu Ro-

que Santeiro. O interessante é pensar que tudo

isso nasceu de um pequeno trecho que ele leu

em Os sertões, de Euclides da Cunha. Pouco mais

de cinco linhas, em que o autor fala de um ca-

pelão de uma igreja do interior que foi assaltada

por bandidos. O rapaz defende a igreja e termi-

na morto. Depois do episódio, os moradores do

lugar passam a cultuar o jovem e o transformam

em herói. O culto torna a cidade conhecida.

Dias pegou isso e deu uma outra dimensão.

Sucede que na peça o cara de repente aparece

vivo. E aí? O que fazer com a cidade que vivia

do mito do herói? Vai se acabar? A economia

local vive em função disso. O turismo, os ho-

téis, tudo se mantém do culto desse herói. Se

ele não morreu, não é herói. Então, os caras

que dominam a economia da cidade – que são

os que ganham dinheiro com esse mito – deci-

dem matar o capelão que reapareceu vivo. Essa

é uma história excelente, porque na verdade

carrega uma coisa simbólica. A sociedade mon-

tada sobre a mentira, que, diante da verdade,

tem que destruí-la, para que não se saiba, de

fato, o que é aquilo. É algo muito mais pro-

fundo, muito mais rico em significação do que

uma mera piada, uma mera brincadeira.

Ferreira Gullar // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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Page 82: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

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entrevista

As memórias de um cordel lido na infância e o desejo de falar sobre a tão sonhada liberdade durante os tempos da ditadura militar. Foi a partir dessa combinação que a música Pavão Mysteriozo foi criada pelo compositor e cantor Ednardo. Lançada em 1974, a canção só alçou voo dois anos depois, ao virar tema de abertura de Saramandaia, e tornou-se um dos maiores sucessos entre as trilhas sonoras da teledramaturgia brasileira. A seguir, o autor fala sobre as circunstâncias em que a canção foi composta

O COMPOSITOR EDNARDO NARRA OS VÁRIOS VOOS DE SEU PAVÃO MYSTERIOZO

“TÍNHAMOS DE FALAR POR MEIO DE METÁFORAS PARA ESCAPAR DA TESOURA DA CENSURA”Por Paulo Jebaili

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Page 83: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

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Ednardo // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

Globo Universidade – Como foi a gênese

de Pavão Mysteriozo? A canção foi criada a

partir de uma história de cordel?

Ednardo – O que me levou a fazer essa músi-

ca foi a percepção daquele tempo da ditadura

militar, em que tínhamos de falar sempre por

códigos – quero dizer, por meio de metáforas –

para escapar da tesoura da censura. Inclusive a

própria obra de Dias Gomes teve de partir para

essa coisa do realismo fantástico, falar por meio

de metáforas. E assim com vários outros cole-

gas, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chi-

co Buarque. Eu tinha gravado essa música em

1973, e foi lançada em 1974, no disco O roman-

ce do Pavão Misterioso. Nessa época, para falar

sobre essa tão desejada “namorada”, que seria a

liberdade, eu teria de inventar um mecanismo de

voo. Aí rememorei um cordel que eu tinha lido

na adolescência: Romance do Pavão Misterioso,

que é um dos mais conhecidos do gênero. Ele

tem uma linguagem muito simples e ao mesmo

tempo sofisticada, colocada de forma ritmada.

O cordel para mim parecia um cinema, e este, de

fato, o é – e aí eu pensei em fazer uma ponte en-

tre essas duas coisas. Quando o disco foi lança-

do, poucas pessoas tomaram conhecimento dele,

o próprio pessoal da gravadora achava estranha

aquela coisa de misturar maracatu com cordel.

GU – Como estava sua carreira nessa época?

E – O meu produtor era o Walter Silva, um

grande produtor e jornalista, também conhe-

cido como Pica-Pau. Foi ele quem lançou Elis

Regina, Jair Rodrigues, Milton Nascimento. Ele

nos procurou por causa de um programa de TV

semanal que eu, Belchior, Rodger Rogério e Teti

fazíamos em São Paulo. Era dirigido e produzi-

do pelo jornalista Júlio Lerner. A nossa função

era ilustrar musicalmente a vida dos convidados.

Foram, se não me engano, quatro meses e meio

de programa e por ele passaram pessoas mara-

vilhosas, tipo Paulo Autran, Aldemir Martins,

um grande artista plástico, Luiz Gonzaga. Um

desses entrevistados era o Walter Silva, pelo tra-

balho que fazia com os artistas. E o Júlio Lerner

disse para o Walter, “esse pessoal aqui é bacana”,

aquela conversa entre produtores. O Walter nos

chamou em sua casa e disse: “Vou gravar um dis-

co com vocês”. E fez o primeiro disco da gente,

chamado Meu corpo minha embalagem todo gasto

na viagem [1973]. A gravadora ainda colocou

um subtítulo Pessoal do Ceará. Na sequência, o

Walter produziu o O romance do Pavão Misterio-

so, já em outra gravadora.

GU – Há uma discussão sobre a autoria desse

cordel. Ele é atribuído por uns a João Camelo

de Melo Resende e, em outras citações, como

sendo de João Melchíades Ferreira da Silva.

E – O que eu imagino é que tem um autor ori-

ginal, e o outro depois fez uma edição nova e

aumentada colocando versos novos. Isso até hoje

é uma indagação. Quando a gente pesquisa na

internet, existem as duas versões. Me parece que,

na época, o autor original, ao fazer esse cordel,

se indispôs com alguns políticos – cidade peque-

na, do interior, principalmente naquele tempo

[por volta dos anos 1920], sabe como é, né? – e

foi proibido de escrever cordel. Depois teve esse

outro colega dele, que, diante da proibição, re-

solveu contribuir para divulgar, e deve ter escrito

mais algumas coisas.

GU – E qual das duas você leu?

E – Eu li as duas. Uma que meu pai me apresen-

tou aos 12 anos de idade. E outra que comprei

quando eu estava passando naquelas regiões do

centro de Fortaleza, em que eles botam no varal

os cordéis. Mas tem um detalhe: eu não peguei

nenhum verso de nenhum dos dois cordéis. Ali

Page 84: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

84

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Ednardo

foi apenas o leitmotiv. O que está escrito [em

Pavão Mysteriozo] fui eu que me debrucei sobre

o assunto, pensando na parte mais primordial

dele, que é a busca da liberdade.

GU – Como foi o processo de composição?

E – Saiu de uma vez. Eu fui buscando as memó-

rias que tinha das leituras, juntando com a situa-

ção social e política da época, da ditadura militar,

aquele cerceamento geral da liberdade das expres-

sões. E aí vieram todas as ideias ao mesmo tempo

e a música saiu em menos de dez, 12 minutos.

GU – E qual o motivo da grafia Mysteriozo?

E – Foi como estava no primeiro folheto de cor-

del que eu li, que era uma grafia antiga. Quando

o meu pai me mostrou, estava essa grafia com Y

e com Z. E eu, para criar um link com a obra,

mantive a grafia.

GU – A música foi parar na trilha de Sara-

mandaia dois anos depois de ter sido lançada.

Isso é algo inusitado, não?

E – Foi incrível. O que o Walter Silva me falou

foi que ele havia se encontrado casualmente com

o Dias Gomes e com o Walter Avancini, que era o

diretor da novela. Eles comentaram que, para esca-

par da censura, estavam pensando em escrever uma

história na linha do realismo fantástico, que tinha

Gabriel García Márquez como grande expressão. E

o Walter Silva disse: “Olha, eu tenho uma produ-

ção de dois anos atrás, de um compositor que nin-

guém conhece, lá do Nordeste, Ednardo”. E ele foi

lá e deu o disco de presente para os dois. Eu sequer

sabia que eles tinham conversado. Eu estava fazen-

do um show na minha cidade, lá em Fortaleza, em

maio de 1976. Estava tomando banho e a televisão

ficou ligada no quarto do hotel. De repente, escuto

a minha música como abertura da novela. Rapaz,

foi um susto, mas um susto agradável.

GU – De que forma a música na abertura da

novela impactou a sua carreira?

E – Colocou num outro patamar. Ter sua mú-

sica tocada todas as noites no Brasil inteiro, eu

não podia imaginar a repercussão que poderia

vir dessa situação. Mas, para mim, foi uma fe-

licidade muito grande ter gravado essa música e

as pessoas estarem no momento certo. Até hoje

acho que essa música tem um elo com o povo

brasileiro, de uma maneira geral.

GU – O fato de ter sido interpretada por ar-

tistas de gerações diferentes, como Ney Ma-

togrosso, Oswaldo Montenegro e Fernanda

Takai, comprova isso, não é?

E – São mais de 30 regravações. Teve Elba Ra-

malho, o Paul Mauriat, na França. Um amigo

meu estava trabalhando no Japão e foi a um

show de um pessoal que costuma tocar músicas

brasileiras. De repente, começaram a cantar Pa-

vão Mysteriozo em japonês; ele chegou a gravar

no celular, mas, assim que chegou ao Brasil, rou-

baram o aparelho dele. Mas, pelo menos, ficou o

registro que pessoas a cantam em vários lugares.

GU – Pavão Mysteriozo escapou de cortes,

mas você teve problemas com a censura?

E – Quem é que não teve? Cite um artista

daquela época que não fosse alvo da censura. E

muitas vezes não se sabia por quê. Era a paranoia

da época. O pessoal [da censura] imaginava

que qualquer música era uma espécie de hino

revolucionário. Eu tive de refazer várias músicas,

tive discos que ficaram oito meses, um ano, presos

na censura. E outros que, mesmo liberados,

eram riscados. Parece que o pessoal botava um

estilete nas faixas. Eu chegava, às vezes, para dar

uma entrevista numa rádio e os discos estavam

riscados, impossível de serem tocados. Eu cheguei

a fazer uma música quando a minha primeira

Assista à entrevista de Ednardo no programa Sarau, da Globo News: http://bit.ly/18k6px4

Page 85: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

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filha nasceu. O nome da minha mulher é Rosa. E

da minha mãe, Maria. E eu, vendo a minha filha

mamar no seio da minha mulher, achei aquele

insight maravilhoso. Juntei o nome das três como

quem junta três gerações de mulheres. Rosa, Maria

e Joana. E fiz um lance sobre o ato de mamar, do

amor. Esse disco ficou preso na censura, tive de ir

a Brasília me explicar. Eles acharam que era alusão

à maconha. Rosa, Maria e Joana.

GU – Como isso interferia no processo criativo?

E – Você tinha de inventar coisas para escapar da

proibição, dessa coisa sem sentido de proibir as

artes e o pensamento.

GU – A obra, quando ganha o mundo, pas-

sa a ter outras leituras possíveis. Você tomou

conhecimento de algum desdobramento de

Pavão que o surpreendeu?

E – Um grupo do Chile, Inti-Aymará & Nacha,

gravou. Vários grupos de rock fizeram leituras

Pavão Mysteriozo Ednardo

Pavão misterioso Pássaro formoso Tudo é mistério Nesse teu voar Ai, se eu corresse assim Tantos céus assim Muita história Eu tinha pra contarPavão misterioso Nessa cauda Aberta em leque Me guarda moleque De eterno brincar Me poupa do vexame De morrer tão moço Muita coisa ainda Quero olharPavão misterioso Pássaro formosoTudo é mistério Nesse teu voar Ai, se eu corresse assim Tantos céus assim Muita história Eu tinha pra contarPavão misterioso Meu pássaro formoso No escuro dessa noite Me ajuda a cantar Derrama essas faíscas Despeja esse trovão Desmancha isso tudo Que não é certo, nãoPavão misterioso Pássaro formoso Um conde raivoso Não tarda a chegar Não temas, minha donzela Nossa sorte nessa guerra Eles são muitos Mas não podem voar

alucinantes. Essa música vai sendo repassada

intergerações e com vários tipos de abordagem.

Teve um ano em que o pessoal que faz esse des-

file em São Paulo do orgulho gay, GLBT [gays,

lésbicas, bissexuais e transgêneros], fez da música

o hino do evento [na Parada Gay de 2002, can-

tada por Laura Finocchiaro]. Teve

a história de que foi tocada num

ritual dos índios no Xingu. Quem

me contou foi a Ana Maria Bahia-

na, jornalista, que tinha ido com a

Tania Quaresma, que é cineasta, e

com o músico Egberto Gismonti

fazer uma visita ao Alto Xingu, na-

quele ritual Quarup. Aquela coisa

maravilhosa, naquele terreiro enor-

me, e depois os caciques chegaram

para o Egberto, que estava tocando

flauta, e pediram para ele tocar Pa-

vão Mysteriozo. São histórias que a

gente fica sabendo.

Ednardo // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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Page 86: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Nome do Autor

MÚSICA

SONORIDADES SARAMANDISTAS

Música instrumental ganha espaço na trilha atual, inclusive no tema de abertura, composto pelo maestro e produtor Sérgio Saraceni

Para quem assistiu a Saramandaia em 1976, a lembrança de Pavão Mysteriozo, de Ednardo, é quase instantânea. Apesar de a canção ter se grudado à própria memória da novela, na versão atual, a música do personagem João Gibão continua na trilha, mas não na abertura. Um dos motivos para tal mudança é a dimensão que o papel do personagem, interpretado por Juca de Oliveira na obra de Dias Gomes, exerce na trama atual. Em entrevista ao jornal O Globo,1 o autor Ricardo Linhares explica que a canção está mais ligada ao personagem do que à história: “Encaixa-se perfeitamente ao tema do personagem. Não está mais na abertura, porque não representa a novela como um todo”. Houve, no entanto, o cuidado de manter a música, que é tocada logo na cena inicial do personagem, agora vivido por Sérgio Guizé.

Outro motivo é a concepção estética adotada por Linhares e pela diretora de núcleo da novela, Denise Saraceni. O maestro e produtor da trilha da novela, Sérgio Saraceni, explica que a opção pela música instrumental apareceu logo que a trilha foi idealizada. “A Denise e o Ricardo, que é muito ligado em música, queriam uma pegada de cinema, em vez de muitas canções tocando o tempo todo.” A proposta abrangeu inclusive o tema de abertura, algo pouco comum na teledramaturgia. “Foi uma quebra de paradigma”, observa Sérgio Saraceni, compositor da obra. “É um instrumental e bastante atrevido, um negócio diferentão”, acrescenta.

1 BOERI, Natália. Sons de Bole Bole. In: Revista da TV, O Globo, 07/07/2013, p. 9.

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Trilha Sonora

André Abujamra interpreta o maestro Cursino: opção

por músicos de verdade

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Page 87: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

Nome do Autor // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

Ele conta que a primeira versão feita já foi a aprovada. Com forte presença de instrumentos de sopro e percussão, também traz cantos indígenas. Segundo Saraceni, um recurso para atender a um pedido dos criadores da novela. “Eles não queriam nenhum sotaque que desse a impressão de ‘ah, isso aqui é nordestino, isso é carioca, isso é gaúcho...’. A intenção era de que fosse algo notadamente brasileiro, mas não de uma região específica”, explica.

Há também músicas cantadas que pontuam as cenas da trama. É o caso de A cor do desejo, na voz de Ney Matogrosso. A composição de Júnior Almeida e Ricardo Guima aparece nas cenas românticas de Zico Rosado (José Mayer) e Vitória Vilar (Lília Cabral). Mas a música instrumental também marca os encontros do casal. “Nos primeiros capítulos, há uma cena longa de Lília nas ruínas, relembrando a adolescência. Ali é tocado o Prelúdio nº 4 de Chopin, que eu adaptei com orquestra de cordas”, conta o maestro.

Outra peculiaridade da versão atual é a presença de músicos contratados para tocar de verdade em algumas cenas. Eles aparecem nas duas bandas da cidade, cada qual conduzida por um maestro. Ambos dividem uma barbearia que é também lan house. Mas, negócios à parte, têm orientações políticas opostas. André Abujamra interpreta o maestro Cursino, defensor da manutenção do nome da cidade de Bole-Bole. Músico de formação, Abujamra foi integrante das bandas Os Mulheres Negras e Karnak. Mas coleciona várias experiências como ator. Participou de filmes como Sábado, de Ugo Giorgetti (1995), e Durval Discos, de Anna Muylaert (2002). Na TV, viveu o terapeuta Tiago, em Beleza pura, de Andréa Maltarolli (2008).

Já Zéu Britto encarna o maestro Totó, que pertence à ala saramandista da cidade. Formado em teatro, Britto tem extensa folha de participações na dramaturgia. No cinema, atuou em Saneamento básico, de Jorge Furtado (2007), e na TV, era o poeta Argileu Palmeira, na segunda versão de Gabriela, de Walcyr Carrasco (2012). Como músico, em 2012, lançou o CD e DVD Saliva-me ao vivo, que tem participação de Ivete Sangalo.

Trilha Sonora // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

Curiosidades da trilha original

» A atriz Sônia Braga gravou a música-tema de sua personagem Marcina, Sou o estopim, de Antônio Barros e Cecéu.

» Canção da meia-noite, composta por Zé Flávio, fez sucesso com o grupo Almôndegas, ao qual pertenciam os irmãos Kleiton e Kledir. A música, que tem como refrão: “Um vampiro, um lobisomem, um saci-pererê”, foi regravada anos mais tarde pela dupla.

» Geraldo Azevedo interpreta duas músicas na trilha da novela. Malaksuma, composição dele, e Juritis borboletas, em parceria com Carlos Fernando.

Zéu Britto, de batuta, ao centro: Totó no ritmo da mudança em Saramandaia

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Page 88: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

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entrevista

Autodidata, ele escreveu sua primeira peça aos 15 anos de idade. Sonhador, aos 20 planejava viver do ofício de escrever. Contestador, filiou-se ao Partido Comunista e passou a sofrer com a censura; entrou para a lista negra do governo nos anos 1940 e foi perseguido pela ditadura nos anos 1960 e 70. Experimentador, viu na televisão uma maneira nova de se expressar e fazer arte popular. Crítico, inventou uma forma de denunciar a realidade social do país por meio do humor e de metáforas. A seguir, trechos de entrevistas e textos de Dias Gomes

DIAS GOMES, POR ELE MESMO, EM DEPOIMENTOS, ENTREVISTAS, ARTIGOS

“O BRASIL É O PAÍS QUE DESMORALIZA O ABSURDO, PORQUE O ABSURDO ACONTECE”

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Page 89: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

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Dias Gomes // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

“Há uma arte, que não é realista, e que pode chegar,

por processos diferentes, a uma verdade artística não menos

legítima. Entretanto, há perigos de ambos os lados. Se uma

concepção estreita e dogmática do real pode conduzir a um frio

e estéril naturalismo, também o rompimento com a realidade

pode levar à mesma frieza e inexpressividade de uma arte desprovida de verdade

humana, desumanizada.” 1967, EM ARTIGO PUBLICADO PELA

REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

“Creio que a novela mais importante é sempre a próxima. Sou um homem eternamente insatisfeito e assim vou morrer.”1974, EM ENTREVISTA À REVISTA VEJA

“A busca de uma linguagem própria para a telenovela sempre foi o sentido de minha pesquisa na televisão. A telenovela não é cinema ou teatro. Para mim é uma arte popular, uma maneira nova de se expressar. E a telenovela, como surgiu no Brasil, é um fenômeno único. Ela é inerente ao nosso tempo. Acho que esta afirmação irá chocar muita gente, mas acredito que se possa captar muito mais o nosso tempo através da telenovela do que através do teatro ou cinema.” 1974, EM ENTREVISTA À REVISTA VEJA

“Se eu não fosse escritor, não sei o que seria, porque, além de não descobrir em mim nenhuma vocação para qualquer outro tipo de atividade, escrever é o único remédio que conheço contra a angústia. Pelo menos o único que faz efeito em meu organismo.” 1978, EM ENTREVISTA CONCEDIDA A FERREIRA GULLAR E MOACYR FÉLIX, NA REVISTA ENCONTROS COM A CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

“Se nessas histórias a realidade e o absurdo se entrelaçam, é porque, no Brasil, o fantástico é lugar-comum. Já disse que o Brasil é o país que desmoraliza o absurdo, porque o absurdo acontece. E não é possível entender e espelhar a

nossa realidade dentro das regras do realismo puro.” 1982, EM ENTREVISTA PUBLICADA NO SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS

“Havia muito preconceito, eu fui talvez o primeiro intelectual a ir para a TV fazer novela. Os intelectuais de respeito me

apoiaram. Os intelectualoides, que vivem olhando para trás, torceram o nariz. A vantagem da TV foi ter me permitido

levar meu universo para a telenovela. Quando, em 1975, fiz a adaptação de O berço do herói, que era de 1965, procurei

disfarçar um pouco e transformei o militar num fazedor de santo. A novela foi proibida e, quando Roque Santeiro foi ao ar, em 1985, ninguém entendeu a razão. Só no ano passado eu descobri o motivo da censura. É que o SNI gravou uma

conversa telefônica entre mim e o Nélson Werneck Sodré em que eu dizia que estava tapeando os censores.”

1989, EM ENTREVISTA AO JORNAL O GLOBO

Page 90: REALISMO MÁGICO NO SÉCULO XXI

CRONOLOGIA

1922 Alfredo de Freitas Dias Gomes nasce em Salvador

1935 Muda-se com a família para o Rio de Janeiro

1937 Com 15 anos, escreve sua primeira peça, A comédia dos moralistas

1939 A comédia dos moralistas é premiada pelo Serviço Nacional de Teatro

1942 Estreia no teatro, com Pé de cabra, encenada por Procópio Ferreira

1943 Ingressa na faculdade de Direito (que não concluirá). Procópio Ferreira encena Amanhã será outro dia. Assina um contrato exclusivo de autoria para a Companhia de Procópio Ferreira e escreve as peças: João Cambão, Zeca Diabo, Dr. Ninguém, Um pobre gênio e Eu acuso o céu 

1944 Muda-se para São Paulo e começa a trabalhar em rádio, adaptando clássicos da literatura

1945 Escreve o romance Duas sombras apenas. Filia-se ao Partido Comunista

1946 Escreve o romance Um amor e sete pecados

1947 Escreve o romance A dama da noite

1948 Escreve o romance Quando é amanhã

1950 Volta para o Rio de Janeiro. Casa-se com Janete Clair

1953 Viaja para a União Soviética. Na volta, é demitido da rádio onde trabalhava

1954 Escreve a peça Os cinco fugitivos do juízo final, encenada por Jayme Costa e Bibi Ferreira. Escreve outras peças sob pseudônimo para escapar da perseguição política

1960 TBC encena O pagador de promessas, com direção de Flávio Rangel. Escreve a peça A invasão

1962 A versão cinematográfica de O pagador de promessas recebe a Palma de Ouro no Festival de Cannes e em outros cinco festivais internacionais. Escreve A revolução dos beatos, O bem-amado e O berço do herói

1964 Com o golpe militar, é demitido da Rádio Nacional, onde era diretor artístico e é acolhido na editora Civilização Brasileira

“Não, não experimento a sensação de dever cumprido, estou muito longe disso, sei que no momento de fechar as contas estarei em débito. Consigo pilotar meu barco ao sabor dos ventos, mas sei que há muito mar pela frente, talvez nunca chegue ao porto. Tomara mesmo que não, pois o melhor da viagem é estar nela” 1998, EM SUA AUTOBIOGRAFIA, APENAS UM SUBVERSIVO

CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Entrevista // Dias Gomes

“Não gosto de analisar sucessos ou insucessos. Parece-me que essa é uma função dos críticos. Sou um criador, não um analista. Confesso que não possuo inclinação para esse tipo de trabalho. E prefiro desmistificar o sucesso, quebrar o seu encanto, o seu mistério, com análises sociológicas quase sempre furadas. Para mim, tudo isso é uma mágica. E ninguém exige do mágico uma autoanálise.”1982, EM ENTREVISTA AO SUPLEMENTO LITERÁRIO DE MINAS GERAIS

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Yara Lins, José Mayer e Denise Milfont em O pagador de promessas, minissérie adaptada para a TV em 1988

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“O artista, ao engajar-se, não abdica da menor parcela de

sua liberdade, ao contrário, ele a ganha, permanentemente. Pois a liberdade não

é um estado, mas um ato. O artista engajado exerce a liberdade sob a forma

de libertação contínua. E a exerce de uma maneira integral, como artista e como homem, já que o homem pode

existir sem o artista, mas o artista jamais pode abdicar de sua qualidade e

sua experiência humana.”1967, EM DEPOIMENTO À REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

1965 Censura proíbe a peça O berço do herói na noite de estreia

1966 Escreve O túnel, encena O santo inquérito (direção de Ziembinski) e escreve, com Ferreira Gullar, Dr. Getúlio: sua vida e sua glória. É perseguido pela ditadura e responde a vários processos

1969 Estreia na Globo escrevendo a adaptação do romance A ponte dos Suspiros, com o pseudônimo Stela Calderón

1970 Faz as novelas Verão vermelho e Assim na terra como no céu

1971 Estreia a novela Bandeira 2. Desliga-se do Partido Comunista

1973 Estreia O bem-amado, primeira novela em cores do Brasil

1974 Escreve a novela O espigão. A peça O marginal é adaptada para o cinema por Carlos Manga

1975 Escreve a primeira versão de Roque Santeiro, uma adaptação de O berço do herói. A novela é censurada no dia da estreia, com 51 capítulos escritos e 20 gravados

1976 Estreia Saramandaia. Passa dois meses na Penn State University, nos Estados Unidos, como escritor convidado

1977 Escreve a peça As primícias, que só será encenada em 1979

1978 Escreve a novela Sinal de alerta e as peças Phallus e O rei de Ramos

1979 Escreve o seriado Carga pesada e a peça Campeões do mundo

1980 Estreia o seriado O bem-amado, no ar até o fim de 1984

1983 Escreve a novela Eu prometo. Sua esposa, Janete Clair, morre em decorrência de um câncer

Paulo Gracindo e Marília Pera, em Bandeira 2, novela exibida em 1971

Wilza Carla vive Dona Redonda no momento de sua explosão, na primeira versão de Saramandaia

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1984 Casa-se com Bernardete Lys

1985 Estreia a novela Roque Santeiro, dez anos depois da interdição pela censura. Sua peça O rei de Ramos é adaptada para o cinema (O rei do Rio)

1986 Escreve a peça Olho no olho

1987 Estreia a sinopse e os 20 primeiros capítulos da novela Mandala, que também tem problemas com a censura

1988 O pagador de promessas é adaptada para minissérie, escreve a peça Meu reino por um cavalo, encenada no ano seguinte no Rio de Janeiro

1990 Estreia Araponga, escrita em parceria com Ferreira Gullar e Lauro César Muniz

1991 É eleito para a Academia Brasileira de Letras. Escreve um romance, A derrocada

1992 Escreve a série As noivas de Copacabana, com Ferreira Gullar e Marcílio Moraes

1995 Escreve Decadência e a segunda versão de Irmãos Coragem, de Janete Clair, em parceria com Marcílio Moraes

1996 Escreve a novela O fim do mundo

1998 Escreve a minissérie Dona Flor e seus dois maridos. Publica sua autobiografia, Apenas um subversivo

1999 Morre, em São Paulo, em um acidente de carro

Fontes:

GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

GOMES, Dias. Luana e Mayra Dias Gomes (orgs.). Encontros Dias Gomes. Rio de Janeiro:

Beco do Azougue, 2012.

Site Memória Globo: memoriaglobo.globo.com.

Miguel Falabella e Patrícia Novaes na trama policial As noivas de Copacabana

Edson Celulari, protagonista de Decadência, minissérie de 12 capítulos, exibida em 1995

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“O Partido [Comunista] fazia-me lembrar muito o colégio de padres maristas onde fiz o curso primário. Por seu culto à disciplina partidária, por sua obediência religiosa à ortodoxia marxista-leninista, por sua cega admiração por tudo que viesse da União Soviética. Era como a infalibilidade do Papa, indiscutível. Minha índole contestadora tinha dificuldade em adaptar-se [...] Eu era e sempre seria um péssimo militante.” 1998, EM APENAS UM SUBVERSIVO

“Saramandaia tinha o duplo propósito de driblar a censura e experimentar uma linguagem nova na TV – o realismo

absurdo. Trabalhando com símbolos e metáforas, eu tornava difícil o trabalho dos censores, embora não evitasse

cortes e mais cortes (eu aprendera a usar um estratagema: como os critérios da censura eram extremamente variáveis

e os censores eram trocados frequentemente, eu repetia uma cena vetada 20 capítulos adiante e, se novamente

cortada, voltava a repeti-la até vê-la aprovada). Quanto ao absurdo sincretizado ao realismo, que alguns julgavam mera

adesão ao modismo, já que, na literatura, estávamos em pleno boom do realismo fantástico, ele já existia, em doses mais discretas, em minha obra. Em O pagador (a absurda promessa de Zé do Burro), em O bem-amado (a absurda

dificuldade de Odorico para inaugurar um cemitério por falta de defuntos) e, em ambas as peças, o absurdo universo

que gere a ação. E isso decorria, antes de tudo, de uma visão pessoal de nosso país, que não pode ser entendido

sem se levar em conta essa conotação insólita, já que o absurdo faz parte do nosso dia a dia.”

1998, EM APENAS UM SUBVERSIVO

“Deus é um bom dramaturgo, não se pode negar, sabe jogar com suas personagens,

sabe torná-las verossímeis dentro da inverossimilhança da vida, essa tragédia farsesca. Consegue fazer com que seus intérpretes lutem

por seus papéis desesperadamente na ilusão de poder melhorá-los com uma contribuição

pessoal, quando Ele, cioso de sua obra, não admite cacos, atitude que apoio integralmente.

Só um reparo: repete-se muito, pois todas as suas peças têm sempre o mesmo e previsível desfecho – a morte. Sei que é antiético falar

mal de um colega, mas Deus sofre de milenar falta de imaginação.”

1998, EM APENAS UM SUBVERSIVO

“Um exemplo flagrante das influências que sofro enquanto escrevo é o caso Watergate na época em que eu estava escrevendo O bem-amado. O escândalo se adaptava sob medida para a personalidade de Odorico Paraguaçu, com suas espionagens no confessionário da igreja. A colaboração do presidente Nixon foi inestimável. Espero um dia poder agradecê-lo.”1974, EM ENTREVISTA À REVISTA VEJA

Dias Gomes // Entrevista // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Artigo // Nome do Autor

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Nome do Autor // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

debateSeminário na USP, em agosto, fecha ciclo de eventos

promovidos pelo Globo Universidade

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debate

Três eventos captaram relatos com enfoques diversos relacionados à obra

de Dias Gomes. Professores, escritor, atores e público expuseram pontos

de vista e interagiram a partir de experiências pessoais e profissionais.

A seguir, uma síntese do que foi debatido no seminário “O realismo

fantástico em Saramandaia”, realizado no Museu de Arte do Rio

(MAR), em 21 de junho de 2013; na mesa-redonda da Casa do

Autor Roteirista na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip),

em 5 de julho; e na Escola de Comunicações e Artes da Universidade

de São Paulo (ECA-USP), em 29 de agosto

UMA OBRA, VÁRIAS HISTÓRIAS

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Mesa-redonda realizada em Paraty contou com a

presença de Lima Duarte (esq.), José Wilker,

Ricardo Linhares e o jornalista Edney Silvestre

(dir.), como mediador

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Debate // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

Pergunta da plateia para Ricardo Linhares: A estreia de Saramandaia coincidiu com manifestações que ocorreram pelo país naquela semana.1 Ela é uma obra fechada ou foi sendo escrita enquanto ia ao ar?

RL: Foi uma coincidência. Eu comecei a trabalhar em Saramandaia exa-tamente um ano antes da estreia. O primeiro capítulo, que trata justa-mente de uma manifestação, com jovens saindo às ruas para exigir o fim da corrupção, foi escrito meses antes das passeatas de junho de 2013. No universo da novela, o plebiscito para a mudança do nome da cidade é uma simbologia para a ruptura com os políticos corruptos antigos, os dinossauros da velha guarda, representados pelo Zico Rosado [José Mayer]. Os jovens querem a mudança de nome porque acabaram de eleger um novo prefeito, que se diz apolítico. Para zerar o passado cor-rupto de Bole-Bole, eles querem propor o plebiscito para o povo decidir democraticamente se a cidade deve continuar se chamando Bole-Bole ou Saramandaia. Isso não poderia ser abordado por Dias Gomes, pois ele vivia sob censura, jamais poderia dizer que existia um político corrupto. Eu transformei o Zico Rosado, que antes era um coronel, em político, o ex-prefeito da cidade que acaba de perder a eleição justamente pela mobilização dos jovens – algo que tem eco no Movimento dos Caras--Pintadas2, nas Diretas Já3 – tanto que eles entoam o grito “Saramandaia já”. No entanto, quando eu escrevi os primeiros capítulos, já havia uma efervescência no mundo inteiro, com protestos tomando as ruas de várias cidades, em Londres, Barcelona, a ocupação de Wall Street, a Primavera Árabe... No primeiro capítulo, as personagens falam: “Vamos viver a pri-mavera saramandense”. Jamais imaginaria que estaríamos vivendo uma série de protestos na mesma época. A novela estreou quando já estava com 40 capítulos escritos.

1 Em junho de 2013, motivados pelo reajuste no preço das passagens de ônibus, metrô e trens em diversas cidades, milhões de pessoas foram às ruas se manifestar contra o aumento. A mobilização deflagrou uma série de protestos pelo país com pautas e reivindicações variadas.

2 Como ficou conhecido o movimento estudantil de 1992 que foi às ruas pedir o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, envolvido em denúncias de corrupção.

3 Movimento civil que reivindicava a volta das eleições diretas, ocorrido em 1983-1984, e motivou diversas passeatas e comícios em todo o país.

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Vera Follain comenta com Ricardo Linhares:

Se você pensar como a sociedade lida de forma mágica com a tecnologia, todo o encantamento pelos novos modelos de celular, pelos tablets... A for-miga que sai do nariz do Zico Rosado é um aspecto do maravilhoso, mas a maneira encantatória como lidamos com a tecnologia também desperta a sensação de maravilha.

RL: As pessoas hoje querem essa tecnologia. A atual Bole-Bole tem uma lan house. Ao mesmo tempo em que tem um cara que bota formiga pelo nariz, a mulher que explode ou o que coloca o coração pela boca, há um computador conectado em rede do lado. Essa mistura do moderno e o arcaico é o grande diferencial para Saramandaia não se transformar em uma obra de época. Isso afastaria completamente o público. Eu faço até uma brincadeira com o personagem de Tarcísio Meira e o de Fernanda Montenegro, que viveram um grande amor no passado e só vão se ver pela primeira vez depois de 30 anos por meio do tablet dos netos, que desco-brem essa história. É uma brincadeira com os novos tempos, com a nova tecnologia, mas mantendo o homem com raízes em casa.

Beatriz Resende comenta:

Acho que há, sobretudo na literatura, nos últimos tempos, uma concessão grande ao realismo, ao facilmente decodificável. A literatura brasileira cor-re esse risco, e talvez a reação a isso seja a volta do maravilhoso cotidiano,

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do virtual. Outra prática interessante é a de tomar o real, mas um real rasurado, rasgado, confundido. Acho que realmente está na hora de dar um basta a esse real muito fácil de ser vendido.

Ricardo Linhares comenta:

A gente tem de ter essa ruptura, essa experimentação. Mas, em uma televi-são aberta, isso é uma grande ousadia. Por isso eu fiz e propus uma novela mais curta e num horário tardio, quando acredito que a gente possa vir com essa ruptura necessária. Ao mesmo tempo, o público gosta de filmes como Avatar, que são uma grande fantasia – mas isso não é realismo mági-co. Não se pode esquecer essa diferença entre a fantasia existente nos vam-piros ou guerreiros imaginários que fazem sucesso em filmes e seriados hoje em dia e o que se entende por realismo mágico, que envolve um contexto político, social, de crítica, de sátira. É diferente.

Pergunta da plateia para Ricardo Linhares: Uma das coisas mais geniais em Dias Gomes é como ele consegue fazer a gente amar os vilões. Eu queria que você falasse dos vilões de Saramandaia e o que eles estão falando concretamente hoje.

RL: Na obra de Dias, não só Saramandaia, os anti-heróis, mais do que vi-lões, são sujeitos carismáticos. Dias construiu o Sinhozinho Malta, o Zico Rosado, o Odorico Paraguaçu, e todos eles passaram a fazer parte da his-tória da televisão, justamente porque são multifacetados. Eu não os consi-dero vilões, são personagens que são anti-heróis. Quem é o herói de Roque Santeiro? O padre progressista? Sinhozinho Malta fez sacanagem com todo mundo, Roque Santeiro era falso e fingido. Cadê o herói? Os personagens de Dias, todos ricos, cheios de problemas de caráter, de características po-sitivas e negativas, são personagens que permanecem até hoje.

Pergunta da plateia para Lima Duarte ou José Wilker: Assim como o realismo fantástico traz muito do universo da literatura de cordel, gostaria de saber se, como atores, vocês se baseiam em figuras populares para criar seus personagens, se bebem nas fontes do imaginário popular?

JW: Eu, como ator, não me fixo em nenhuma fonte específica. Para represen-tar, para criar um personagem, você tem de se inspirar na sua vida e naquilo

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que sua vida lhe proporcionou de informação. Informação que você adquire tanto em bula de remédio quanto em dicionário. Você vai lendo, vai acumu-lando e, de repente, usa. Eu não sei até hoje qual é a fonte que eu, ator, uso para o acúmulo de informações até chegar ao personagem. Eu acredito que existam atores – e os respeito imensamente, admiro e invejo – que se inspiram em pessoas, em certos tipos que conheceram e tentam imitá-los. Mas eu sou incapaz de fazer isso, sou incapaz de imitar. Quando eu tive de interpretar o político Tenório Cavalcanti, para o filme O homem da capa preta [de Sérgio Rezende, 1986], fiquei assustado, pois eu conheci Tenório Cavalcanti e pedi para sair do filme – só fiquei porque o diretor me convenceu. O mesmo para fazer Tiradentes, em Os Inconfidentes [de Joaquim Pedro de Andrade, 1972].

Pergunta da plateia para Lima Duarte ou José Wilker: Como é construir um personagem com uma característica fantasiosa? Como fazer para trazer a verdade desse personagem?

LD: O personagem precisa ser empático, para que seja baseado em grandes emoções e, assim, poder explodir. Você tem de fazer seu personagem com ardor, com sangue, com verdade e, se o homem quiser explodir, explode! Quando faço meu personagem, quero que ele seja baseado em coisas gran-des, que ele sonhe grande, que ele seja o maior que todo mundo já viu. Na televisão, é assim.

Pergunta para Mauro Alencar: Dias Gomes teve outras incursões no realismo fantástico além de Saramandaia?

MA: Sim. Em O bem-amado, o Zelão das Asas voa no último capítulo, na promessa que ele faz a Bom Jesus dos Navegantes. Era o Milton Gonçalves,

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que voava em cima de um caixote. O [diretor] Régis Cardoso dizia: “Voa, Milton, imagina que você está voando”. E ele ficava se balançando em cima de um caixote. Já o Juca de Oliveira foi alçado por um guindaste e, pela primeira vez, uma revista da época sobre televisão, chamada TV Guia, fez um making of sobre o voo do Gibão. Porque as outras produções que vieram, como o Sítio do picapau amarelo, só foram possíveis porque a Glo-bo abriu um departamento de efeitos especiais a partir de Saramandaia. O saudoso Geraldo Casé [que adaptou as histórias de Monteiro Lobato para a televisão] dizia que o Sítio era uma consequência do que haviam aprendido com Saramandaia. Graças ao Walter Avancini, que era um destemido.

Pergunta para Ana Lúcia Trevisan: Essa nova versão de Saramandaia faz com que o público telespec-tador, que também é leitor, se interesse por outros autores do realismo fantástico?

ALT: Eu acho que essa linguagem do fantástico, com esses absurdos inseri-dos, não é uma linguagem artificial a todos nós. O [escritor argentino Julio] Cortázar tem um texto bonito em que diz que todo mundo experimenta, na narrativa dos sonhos, o contato com o fantástico. Quando a gente sonha, a gente voa, conversa com quem já morreu e não sente medo. Essa experiência não é estranha à nossa vivência. Então, acho que textos como esse, que tal-vez agora reapareçam, podem servir, sim, de estímulo. Quem sabe? A gente sempre quer ter fé nisso, de que as pessoas se interessem e queiram saber mais sobre essa linguagem – que aparentemente é estranha, mas, quanto mais você vai entrando, pensando e vivenciando a narrativa, vê que aquilo é a sua vida. Que os absurdos também a permeiam.

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Dona Redonda prestes a explodir na versão recente de Saramandaia

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JOÃO GIBÃO

Protagonista da primeira versão de Saramandaia, João Gibão (vivido por Juca de Oliveira em 1976 e por Sergio Guizé em 2013) nasceu com asas. Complexado, é obrigado a cortá-las e ocultá-las sob um gibão de couro. Irmão do prefeito Lua Vianna, João Gibão é vereador de Bole-Bole e tem visões premonitórias. É autor do projeto de lei para mudança do nome da cidade para Saramandaia – ideia surgida durante um sonho. É proprietário de uma loja de pássaros e toca trombone na banda do maestro Totó.

Na versão original, a novela terminou com a cena de João Gibão sobrevoando a cidade – e só então foi revelado ao público de que era feita sua corcunda. “Sua determinação de deixar crescer as asas e voar era uma clara alegoria a nosso anseio de liberdade”, explicou Dias Gomes, em referência à ditadura militar. Sinal dos tempos, no remake, Ricardo Linhares optou por revelar ao espectador, desde o início, qual é o “defeito” que o personagem carrega nas costas.

Dias Gomes conta, em sua autobiografia, que, durante eleições para prefeito, vice-prefeito e vereadores realizadas no fim de 1976 no Brasil, um dos nomes mais votados foi João Gibão.

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ARISTÓBULO CAMARGO

Professor de latim e presidente do Centro Cívico Bolebolense, o personagem de Ary Fontoura em 1976 e de Gabriel Braga Nunes em 2013 não dorme há mais de dez anos. Sua insônia crônica o faz perambular pela cidade durante a madrugada. Sétimo filho de uma família de seis mulheres, Aristóbulo transforma-se em lobo na virada das noites de quinta para sexta-feira.

Orador oficial dos tradicionalistas, pronuncia rebuscados discursos em prol da manutenção do nome da cidade. É apaixonado por Risoleta (Dina Sfat na primeira versão, Débora Bloch na segunda), dona do prostíbulo de Bole-Bole.

Nos anos 1970, a caracterização do personagem que se transforma em lobisomem era feita pelo maquiador Eric Rzepecki, colando pelos no corpo de Ary Fontoura. A penugem era colocada em diferentes etapas, sendo cada uma delas filmada, de modo que as cenas, editadas em sequência e entremeadas a outros quadros, dessem a impressão do crescimento dos pelos e da transformação de homem em lobo. Hoje, o ator Gabriel Braga Nunes utiliza próteses de silicone produzidas a partir de um molde do corpo do ator feito em fibra de vidro. O processo de encaixe das várias peças dura aproximadamente cinco horas.

O cemitério de mais de 3 quilômetros por onde passeia durante as noites também é fruto de efeitos especiais. O cemitério cenográfico tem, na realidade, apenas oito tumbas. O resto é tecnologia.

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CAZUZA

Cazuza Moreira (Rafael de Carvalho/Marcos Palmeira) é vereador, dono da farmácia local e está sempre envolvido em discussões políticas. Tradicionalista ferrenho e bajulador de Zico Rosado, ele se exalta a cada vez que se fala em rebatizar Bole-Bole.

O problema é que, nesses momentos de grande exasperação, seu coração teima em sair pela boca. Com a ajuda dos amigos, ele geralmente consegue segurar o queixo, cerrar os lábios e engolir o coração novamente. Certa vez, porém, essa manobra falhou e o órgão não voltou para o lugar correto. Cazuza foi considerado morto, com direito a velório e cortejo pelas ruas da cidade. Mas um tranco no caixão fez o defunto levantar-se. Ele “desmorreu”, como dizem os locais.

Na década de 1970, para criar o efeito do coração saindo, a cena era feita usando uma bexiga azul, colocada dentro da boca do ator. Em seguida, era utilizada a técnica do chroma key, pela qual a cor azul da bexiga era substituída pela imagem de um coração batendo de verdade.

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DONA REDONDA Dona Redonda era personagem secundária na versão de Dias Gomes. Mas ficou tão gravada na memória dos telespectadores que, no remake, tornou-se uma das principais. Vivida por Wilza Carla no passado, a rabugenta Dona Redonda não para de comer e engordar. Com apetite insaciável, não se preocupa com sua saúde ou seu aspecto físico.

Entretanto, na altura do capítulo 26 da primeira novela, ela explode – em cena que se tornou antológica na história da telenovela brasileira. Na época, para conseguir gravar a sequência, um enorme balão inflável foi vestido com o figurino de Dona Redonda, sendo preenchido por um compressor conforme ela andava, até arrebentar. A explosão, que causou uma cratera na cidade, teve o efeito de um terremoto e fez espalhar pedaços de seu corpo por toda Bole-Bole.

Para criar a nova Dona Redonda, a atriz Vera Holtz passa mais de quatro horas se preparando. Próteses de silicone são aplicadas em seu corpo, para transformá-la na obesa personagem, que tem mais de 250 quilos. Quando a resmungona e fofoqueira Redonda anda, o chão da cidade treme. Católica fervorosa, faz parte da Liga das Senhoras Decentes de Bole-Bole.

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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Personagens

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TIBÉRIO VILAR

O personagem vivido por Tarcísio Meira não existia na versão original da novela, é uma criação de Ricardo Linhares. Patriarca da família, ele guarda um grande segredo: sua paixão proibida e não consumada por Candinha, do arqui-inimigo clã dos Rosado.

Tibério, que já foi um vigoroso fazendeiro, hoje passa o tempo todo sentado em uma poltrona. Essa reclusão fez com que brotassem raízes de suas pernas. Permanece pregado ao solo, como se estivesse se transformando em uma árvore, e galhos e folhas se desprendem de seu corpo.

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CANDINHA

A personagem interpretada em 2013 por Fernanda Montenegro é a matriarca dos Rosado. Na primeira versão, foi vivida por Maria Veloso. Era a Vó Candinha, uma senhora com quase 90 anos, surda e com sinais de decrepitude. Falava sozinha, resmungando coisas incompreensíveis.

A Candinha do século XXI mudou. Além da história do amor por Tibério, de que ela se privou em nome da família, a personagem ganhou uma característica típica do realismo maravilhoso: conversa com galinhas imaginárias, que a acompanham por toda a parte, porém, só são visíveis para ela e para o público.

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Personagens // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

VITÓRIA

A personagem de Lilia Cabral é nova em Saramandaia. Segundo Linhares, Dias Gomes não teria conseguido exibir uma história como a dela, em tempos de censura. Seria um atentado à moral. Filha de Tibério, Vitória Vilar também viveu, como o pai, uma paixão por um membro da família rival – Zico Rosado. Com a diferença que o amor dela foi – e ainda é – consumado, não apenas furando a eterna rivalidade entre as famílias como configurando adultério por parte do personagem de José Mayer, casado. Como não poderia deixar de ser, Vitória também tem um quê mágico: quando está com Zico Rosado se derrete de amor – literalmente.

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BELISÁRIO

De Belisário, na primeira versão da novela, conhecia-se apenas a história trágica: era um senhor de engenho que fora assassinado por cangaceiros remanescentes do bando de Corisco. Na versão atual, o personagem de Luiz Henrique Nogueira foi esquartejado em uma emboscada e os bandidos deixaram sua cabeça na porta de casa. A viúva, Dona Pupu (Aracy Balabanian), a recolheu e colocou em uma redoma de vidro. E assim Belisário “vive”, interagindo com Pupu em seus pensamentos e devaneios – às vezes, ela até o tira para dançar. Visitas falam com ele, que, entretanto, não responde, pois perdeu as cordas vocais quando foi “despescoçado”.

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DRAMATURGIA EM CARTAZO realismo fantástico de Saramandaia e a obra de Dias Gomes foram tema de duas exposições, no Rio de Janeiro (Museu de Arte do Rio – MAR) e em Paraty (Casa do Autor Roteirista), que ocorreram paralelamente aos seminários do Globo Universidade.

Veja, a seguir, imagens dessas exposições

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Exposição // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE // Exposição

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Nome do Autor // Artigo // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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Exposição // CADERNO GLOBO UNIVERSIDADE

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o Nesta coluna, a exposição fotográfica sobre Dias

Gomes em Paraty

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linguagemSARAMANDÊS NA BOCA DO POVODeceptude, besteirices, apenasmente... São frequentes os neologismos nos diálogos de Saramandaia. O uso diferente da norma culta cria expressões e dá um colorido à linguagem dos personagens na trama. Essa faceta já havia aparecido na obra de Dias Gomes, nas falas de Odorico Paraguaçu, em O bem-amado, de 1973. Neste caso, porém, os termos acentuavam o traço caricato do prefeito da fictícia Sucupira, em seus arroubos de soar algo erudito. Em Saramandaia, os neologismos estão incorporados ao modo de falar dos habitantes de Bole-Bole e independem das condições socioeconômicas e culturais dos personagens. Veja alguns exemplos do dialeto “saramandês”.

Zico Rosado

Providenciamentos

EQ

UIV

AL

E A

PROVIDÊNCIAS

Bastantemente SUFICIENTEMENTE

Apenasmente APENAS, TÃO-SOMENTE

Pratrasmente TEMPOS ATRÁS

Calunientos CALUNIADORES

Desaforenta DESAFORADA

Talqualmente DE MODO SEMELHANTE

Cazuza

Sonambulista

EQ

UIV

AL

E A

SONÂMBULA

Nervosura NERVOSISMO

Deceptude DECEPÇÃO

Besteirices BESTEIRAS, TOLICES

Divergenciamentos DIVERGÊNCIAS

Peladice NUDEZ

Cismância CISMA

Risoleta

Deslembrar

EQ

UIV

AL

E A

ESQUECER

Amolativos AMOLAÇÕES, PROBLEMAS

Desfeitiada DESTRATADA, ALVO DE DESFEITAS

Aliasmente ALIÁS, A PROPÓSITO

Desmembratório DESMEMBRAMENTO

Safadices SAFADEZAS

Acautelatórios CUIDADOS

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