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REFLEXÕES ANGUSTIADAS SOBRE A CATALOGAÇÃO [Fevereiro/2009] Eliane Serrão Alves Mey Acabei de ler há uns quinze dias um belíssimo livro intitulado “As cruzadas vistas pelos árabes”, de Amin Maalouf (1). Além de uma obra fundamentada em textos históricos, a narrativa flui suave e bem escrita pelas mãos do autor. Fica-nos da leitura a impressão de que os ocidentais conseguiram estabelecer-se em parte do Oriente Médio, durante dois séculos na Idade Média, pela absoluta desunião entre os povos árabes. Fanatismo de um lado, brigas de poder o mais das vezes e ganância de todos permitiram que etnias mais despreparadas e incultas, como os franceses, ingleses e outros europeus medievais, dominassem civilizações mais antigas e detentoras de muito maior conhecimento. Tais fatos literariamente retratados, com as devidas proporções, remetem à Biblioteconomia e em especial à área da Representação em nosso país. Na catalogação brasileira de hoje, vivemos um momento de fanatismo, disputas de poder e alguma ganância, o que sempre, historicamente, redunda em perda para todos. Bibliotecários carentes de uma identidade profissional (2) catalogadores sem identidade e com muitas crenças diferentes, até mesmo opostas, debatem a catalogação e

Reflexões angustiadas sobre catalogação

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Reflexões angustiadas sobre catalogação

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REFLEXES ANGUSTIADAS SOBRE A CATALOGAO

REFLEXES ANGUSTIADAS SOBRE A CATALOGAO

[Fevereiro/2009]

Eliane Serro Alves Mey

Acabei de ler h uns quinze dias um belssimo livro intitulado As cruzadas vistas pelos rabes, de Amin Maalouf (1). Alm de uma obra fundamentada em textos histricos, a narrativa flui suave e bem escrita pelas mos do autor. Fica-nos da leitura a impresso de que os ocidentais conseguiram estabelecer-se em parte do Oriente Mdio, durante dois sculos na Idade Mdia, pela absoluta desunio entre os povos rabes. Fanatismo de um lado, brigas de poder o mais das vezes e ganncia de todos permitiram que etnias mais despreparadas e incultas, como os franceses, ingleses e outros europeus medievais, dominassem civilizaes mais antigas e detentoras de muito maior conhecimento. Tais fatos literariamente retratados, com as devidas propores, remetem Biblioteconomia e em especial rea da Representao em nosso pas.

Na catalogao brasileira de hoje, vivemos um momento de fanatismo, disputas de poder e alguma ganncia, o que sempre, historicamente, redunda em perda para todos. Bibliotecrios carentes de uma identidade profissional (2) catalogadores sem identidade e com muitas crenas diferentes, at mesmo opostas, debatem a catalogao e entre si. H anos Gorman (1975)(3) j levantava o problema, em texto referente ao de Osborn (1941)(4), distinguindo quatro tipos de catalogadores (no necessariamente nesta ordem): o decadente, o piedoso, o mecanicista inflexvel e o funcionalista. Vale relembr-los.

O decadente, ou perfeccionista da representao, para nossa sorte, encontra-se em vias de extino (nada a ver com a poluio ambiental, porm com a documental). O acmulo e a diversidade de registros do conhecimento no mais permitem que qualquer ser catalogrfico se perca em mincias da descrio bibliogrfica. Nem mesmo os catlogos mais automatizados e bem feitos do mundo atingem a perfeio.

O piedoso aquele nosso sobejamente conhecido, cujo texto sagrado so as AACR2 (5). Segundo Gorman: H evidncias convincentes de que a catalogao seja uma forma de religio para algumas pessoas. Agora, devido a novas tendncias, mudar automaticamente para o cdigo RDA (6), porm continuar a inclinar-se e a genufletir sempre para o norte, em direo ALA (7) e Library of Congress dos Estados Unidos da Amrica do Norte (que participa ativamente da elaborao dos cdigos para lngua inglesa, mas tambm cria suas prprias regras e interpretaes).

O mecanicista inflexvel, se algum dia foi um catalogador, hoje freudianamente se projeta como um analista de sistemas. Existe um momento ainda a ser pesquisado na Biblioteconomia (pelo menos na nossa), em que os bibliotecrios chegam ao nvel mais baixo de auto-estima, considerando-se menores do que os analistas de sistemas, os engenheiros, os economistas, os professores de Letras e Lingstica, os jornalistas, enfim, de que quaisquer uns no bibliotecrios. E o catalogador mecanicista inflexvel acreditou, to fanaticamente quanto o piedoso e seu cdigo, que a mquina resolveria todos os problemas e que um novo sistema de informaes, um novo software, um novo banco de dados foi, e ser sempre a soluo de todos os registros do conhecimento acumulados espera da fada com sua varinha mgica. Todavia, a fada h muito se desencantou; e a varinha mgica, qui transformada em computador mgico, tornou-se a vassoura da bruxa, que leva os seres, os registros do conhecimento e os catlogos a se tornarem perdidos no ciberespao. Volto j ao tema, objeto central desta reflexo um tanto custica e muito angustiada, porm de corao aberto.

O funcionalista do qual falava Gorman, ah! este tambm no mais existe. Extinguiu-se por falta de espao no meio biblioteconmico. Resolver problemas, administrar bibliotecas, atender seu usurio da melhor forma possvel, buscar novos usurios? No. Precisamos fazer estatsticas, demonstrar custos-benefcios, desenvolver estudos de usurios (na verdade, estudos de uso de colees existentes), comprar menos, gastar menos, usar estratgias mercadolgicas, atrair clientes, gerir informaes (e at conhecimentos, dizem alguns!), enfim, gerenciar uma biblioteca como se fosse uma empresa lubrificada e lucrativa. No h lugar para funcionalistas, nem para idealistas. Estes, definitivamente, se no se aposentaram, foram enterrados vivos, menosprezados pelos demais como sendo apenas bibliotecrios.

Se a isso chegamos a ponto de perdermos nossa identidade, sem sabermos o que somos e a que viemos, alguns grupos de estudos, no Brasil e no exterior, preocupam-se com o tema e, provavelmente, porque educao se faz a longo prazo, esperam-se novas geraes que compreendam a Biblioteconomia em todo seu valor e potencial.

Minha preocupao maior se volta catalogao, no por ela em si mesma, porque vai relativamente bem e renovada, obrigada; mas por seu papel e pelo que perderemos irreversivelmente a continuarmos no caminho ora trilhado.

Uma digresso necessria: sou bibliotecria e professora de biblioteconomia (precisamente catalogao), agora aposentada, nos ltimos trinta anos. Cansei de ser chamada de referencial terico, porque na verdade s escrevi dois textos realmente tericos na rea de catalogao: minha dissertao de mestrado que, graas pessoa e orientadora maravilhosa Profa. Cordlia Robalinho Cavalcanti, saiu melhor que a encomenda; e algumas (poucas) partes da minha tese de doutorado, das quais gosto particularmente. Da segunda derivaram-se dois artigos tericos, que acredito serem praticamente desconhecidos. Todos os outros trabalhos se dirigem graduao, ao ensino de catalogao, sem maiores pretenses. Sinto-me triste quando me citam com relao a esses textos menores, porque significa que no consegui, absolutamente, passar minha mensagem. Ensinei o que pude e pensava, mas no convenci ningum (exceto uns dois ou trs, que no chegam aos cinco dedos de uma das mos). E, cada vez mais, nisso acredito e disso me apercebo. Agora aposentada, sinto-me livre para os desabafos e para escrever o que penso. (Sempre podem dizer que fiquei gag.)

Primeiro, a guerra entre cls, semelhante quelas guerras rabes ao tempo das cruzadas. Fulano pode traduzir o cdigo, Beltrano no pode; Cicrano faz isso ou fez aquilo e assim por diante. Tal pessoa, ao despender seu tempo traduzindo um texto para uso geral, cometeu um lapso na quarta palavra da terceira linha do vigsimo pargrafo e, com isso, a traduo no digna de confiana. E vo por a afora as crticas, as picuinhas, as mediocridades e, em conseqncia, nada avana; seja pela crtica, seja pelo medo de ser criticado. Os cls nunca se juntam para um objetivo comum. Em resumo, os FRBR esto disponveis e em uso h dez anos, as ISBDs h mais de trinta e... no existem tradues em portugus do Brasil. As AACR2 saram em 1978, constantemente atualizadas, e a traduo brasileira, apenas em 1983-1985. Depois das mudanas de 1988, nossa edio s veio a pblico em 2004, baseada no texto de 2002. Andamos sempre atrs da carruagem, sem sequer pensar nas necessrias adequaes ao contexto brasileiro. A vem a segunda guerra: o cdigo precisa ser traduzido e entendido ipsis litteris e ipsis verbis. No importa o uso no Brasil, mesmo que fruto de acordos (o Brasil sempre est em apndice ou nota de rodap).

No bastassem as guerras entre os cls de catalogadores fiis e piedosos, iniciam-se as sublevaes locais: uso o cdigo, com adaptaes, uso o cdigo, mas com referncias bibliogrficas; no uso o cdigo, porque no gosto dele; no uso o cdigo, porque meu sistema no permite (como se nos dias de hoje isto fosse admissvel); uso o cdigo, mas com as restries do meu sistema; ou a melhor de todas: no uso o cdigo, porque no atende ao meu usurio. preciso dizer que: se seu sistema no permite, exige adaptaes, cria restrio, seu sistema que no serve. No h essa de adaptaes, referncias bibliogrficas e assemelhados. Apenas quem desconhece o cdigo e todas as outras normas internacionais se permite aquelas assertivas. Se conhecesse, saberia que existe um elenco mnimo de informaes para identificao do registro do conhecimento e um elenco mnimo de informaes para recuperao por meio de pontos de acesso. Cada um escolhe o tamanho de seu registro. Porm, como em todas as linguagens, inclusive as de automao, existe uma semntica e uma sintaxe. Isso faz lembrar a msica de Noel Rosa:

voc que atende ao apito de uma chamin de barro, por que no atende ao grito to aflito da buzina do meu carro? Pois , todo mundo atende ao apito de seu micro, com todas as sintaxes exigidas no mais conversacional dos programas; porm, ao grito aflito da sintaxe catalogrfica, essas mesmas pessoas nada ouvem e se recusam a atender!

E agora chegamos ao problema maior: a mania, desde a dcada de 1970 (alis, acho que isso moda ainda dos anos 70, como se esses anos nos trouxessem boas lembranas), de cada um desenvolver seu sistema! Pensei que o surto epidmico tivesse acabado, que as pessoas finalmente percebessem que o melhor sistema aquele em que se pode cooperar com seus iguais, seja em reas multidisciplinares, seja em reas especializadas. Qual o melhor sistema para Medicina? Aquele que permite o dilogo com a BIREME, a OMS, a OPAS, outras bibliotecas/centros de informao latino-americanos na rea de sade e, at, com a National Library of Medicine. Qual o melhor sistema para bibliotecas universitrias? Aquele que permite dialogar, trocar figurinhas (isto , registros bibliogrficos), com o maior nmero possvel de outras bibliotecas universitrias. E para bibliotecas pblicas e escolares? O sistema gratuito da Biblioteca Nacional, pelo volume e atualidade dos registros bibliogrficos brasileiros da BN. E para as Bibliotecas Nacionais? Os sistemas das prprias Bibliotecas Nacionais. No h cabimento algum em desenvolver sistemas novos para algo que j existe e est gratuitamente disponvel!!!

No tenho nada contra todos os profissionais bibliotecrios empreendedores ganharem rios de dinheiro em consultorias diversas. Consultem vontade, ganhem muito, valorizem a profisso, organizando acervos com sistemas j existentes. Parece um pouco tarde para reinventar a roda e um pouco cedo para criao de novos paradigmas por quem desconhece a rea.

Por favor, queiram ter a gentileza de raciocinar: por que gastar novamente dinheiro pblico, que j foi gasto, para constituir um novo sistema, certamente imperfeito como o so todos os outros? Por que gastar dinheiro pblico com recatalogaes muitas vezes pessimamente realizadas e interminveis, se estas j se encontram prontas e disponveis na internet? No entendo e no posso avalizar tais idiossincrasias.

E por tudo isso que no me considero referencial terico. Sou apenas uma bibliotecria velhota aposentada, enquanto todos aqueles que conviveram comigo continuarem a desenvolver e a vender novos sistemas. Uma circunstncia deprimente.

Para revert-la, basta uma nica iniciativa: COOPERAR. (Bom, na verdade duas: tambm acalmar as pulses egotistas). Cooperao, mais do que uma atividade, um pensamento, uma reflexo, uma atitude. E isso o que importa, no fim de tudo.

NOTAS

(1) MAALOUF, Amin. As cruzadas vistas pelos rabes. So Paulo: Brasiliense, 2007._

(2) Um dos mais importantes sobre o tema:

Oliveira, Zita Catarina Prates de. O bibliotecrio e sua auto-imagem. So Paulo: Pioneira, 1983. 98 p.

Entre os mais recentes, selecionaram-se apenas trs sobre a questo da identidade, entre muitos de literatura significativa:

WALTER, Maria Tereza M. T. Bibliotecrios no Brasil: representaes da profisso. 2008. Tese (doutorado)Universidade de Braslia, Departamento de Cincia da Informao e Documentao, 2008. Disponvel em: . Acesso em: nov. 2008.

SOUZA, Francisco das Chagas de. O ensino de biblioteconomia no Brasil e aspectos de sua dimenso curricular: um exame dos ditos e no ditos na coleo documentos ABEBD. In: ENANCIB, 9., 2008, So Paulo. [Anais]. Disponvel em: < >. Acesso em: nov. 2008.

GUIMARAES, J. A. C. (Org.) ; FUJITA, Maringela Spotti Lopes (Org.) . Ensino e pesquisa em Biblioteconomia no Brasil: a emergencia de um novo olhar. So Paulo: Cultura Acadmica, 2008. 264 p.

(3) GORMAN, Michael. Osborn revisited, or, The catalog in crisis; or, Four catalogers, only one of whom shall save us. American Libraries, v. 6, n. 10, Nov. 1975.

(4) OSBORN, Andrew D. The crisis in cataloging. In: CARPENTER, M.; SVENONIUS, E. (eds.). Foundations of cataloging. Littleton: Libraries Unlimited, 1985. p. 92-103.

(5) AACR2: Anglo-American cataloguing rules.

(6) RDA: Resource description and access. Volto ao tema em texto prprio.

(7) ALA: American Library Association. Editora e detentora dos direitos autorais dos cdigos anglo-americanos._

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Eliane Serro Alves Mey ([email protected]) - Graduao em Biblioteconomia pela Universidade de Braslia (1978), mestrado em Cincias da Informao pela Universidade de Braslia (1986) e doutorado em Cincias da Comunicao pela Universidade de So Paulo (1999). Atualmente professora adjunta aposentada da Universidade Federal de So Carlos. Publicou seis livros, vrios artigos em peridicos nacionais e internacional, assim como apresentaes em congressos nacionais e internacionais, o ltimo na ndia em dezembro de 2008.