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MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS, CULTURAIS E INTERARTES
RAMO DE ESTUDOS ROMÂNICOS E CLÁSSICOS: LITERATURA PORTUGUESA
Relações de poder em Milan Kundera e
Gonçalo M. Tavares
Alexandre Costa
M 2018
2
Alexandre Costa
Relações de poder em Milan Kundera e
Gonçalo M. Tavares
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,
orientada pelo Professor Doutor Pedro Jorge Santos da Costa Eiras
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
2018
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Alexandre Costa
Relações de poder em Milan Kundera e
Gonçalo M. Tavares
Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,
orientada pelo Professor Doutor Pedro Jorge Santos da Costa Eiras
Membros do Júri Professora Doutora Pedro Jorge Santos da Costa Eiras
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Professor Doutor Maria de Lurdes Morgado Sampaio
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Professora Doutora Zulmira da Conceição Trigo Gomes Marques Coelho Santos
Faculdade de Letras - Universidade do Porto
Classificação obtida: 19 Valores
5
O martelo do investigador não martela os pregos do Mistério do Mundo,
martela os pregos da própria cabeça do investigador.
Gonçalo M. Tavares, Breves Notas sobre a Ciência
6
Sumário
I. Introdução: o romance-reflexão e o poder…………………………………..…......8
II. Desenvolvimento: diferentes tipos de poder……………………………………..12
1 - A codificação do castigo: do controlo de pensamento à repressão…………………12
2 - Cárcere e vigilância: do quartel de Kundera ao hospício de Tavares……………….26
3 - Corpo, domínio e castigo: do “corpo simbólico” ao “corpo biológico” ……………37
4 - O poder que define a norma: da desordem à insignificância…………………………51
5 - Da luta pela identidade kunderiana à cidade em guerra de Tavares………………….63
III. Conclusão: a originalidade e as “ideias do mundo” ……………….……………82
Bibliografia……………….……………….……………….……………….………….85
7
Declaração de Honra
Declaro que a presente dissertação é de minha autoria e não foi utilizada
previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As
referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam
escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto
e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho
consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.
8
Agradecimentos
Este documento nunca poderia ter sido elaborado sem a contribuição de inúmeros
professores. Contudo, sinto ter tido particular sorte em me ter cruzado com dois.
À Professora Maria Luísa Malato, pelo voluntarismo, sabedoria e experiência,
absolutamente fulcrais no meu percurso académico.
Ao Professor Pedro Eiras, pela inspiração e eloquência, decisivos na minha
vontade de avançar neste estudo. Num sentido mais prático, pela disponibilidade para
colocar o seu conhecimento ao serviço de todas as fases deste trabalho.
Aos meus pais. À minha família.
Aos meus amigos. À Mafalda.
9
Resumo
As obras de Milan Kundera e Gonçalo M. Tavares são comummente tidas, pelos
seus críticos, como exemplos de ficções com forte vertente ensaística, ou seja,
relembrando o termo cunhado por Vergílio Ferreira, “romance-reflexão”. São também
montra de múltiplas relações de poder entre personagens e instituições, se por poder
entendermos a capacidade de uma entidade estabelecer controlo sobre a outra.
Isto acontece com recurso a diversos cenários narrativos: são temas recorrentes as
sociedades totalitárias, as guerras, mas também as instituições carcerárias. Em qualquer
destes contextos é comum a reflexão sobre o corpo e a identidade, e a forma como ambos
se relacionam com o conceito de norma, que assume papel decisivo na caracterização de
ambos.
Nesse sentido, esta dissertação explora a forma como as relações de poder surgem
nas obras destes dois autores.
10
Abstract
Milan Kundera’s and Gonçalo M. Tavares’ works are commonly considered, by
their critics, as examples of fictions with a strong essayistic component, recalling Vergílio
Ferreira’s concept, “reflection-novel”. They also show multiple relations of power
between characters and institutions, if by power we mean the capacity of an entity to take
control over another.
This happens resorting to multiple narrative scenarios: are recurrent scenarios like
totalitarian societies, wars, but also imprisonment institutions. In any of these contexts
are common the reflections about body and identity, and the way both relate to the concept
of normality, that has a decisive role on their characterization.
In this sense, this dissertation explores the way relations of power appear in the
works of those two writers.
11
I. Introdução: o romance-reflexão e o poder
Antes de investigar diferenças e pontos de contato, importa explicar a escolha de
dois autores de gerações e países diferentes para um estudo comparatista.
De um modo geral, unem-nos os géneros romanesco e ensaístico. Kundera escreve
romances, ensaio, e por vezes teatro. Tavares escreve romances e, embora nos
debrucemos fundamentalmente sobre a sua obra romanesca e ensaística, é curiosa a forma
como algumas obras parecem mais difíceis de catalogar. Nas palavras deste autor: “os
géneros literários podem ser muito limitadores do trabalho (...) se uma pessoa se sentar a
pensar «agora vou escrever um conto» ou «agora vou escrever um romance» é como se
sentasse com toda a tradição e com toda a formalização do que é um romance” (Tavares
2010c).
De facto, uma grande parte das obras de Tavares não parece ter fácil atribuição de
género. Por exemplo, quando questionado sobre O Atlas do Corpo e da Imaginação,
responde que “é um ensaio ficcional. Tenho um fascínio pelo «e» e um grande
desinteresse pelo «ou»” (Tavares 2013b). Se existem ensaios ficcionais, nas suas
palavras, talvez possam também existir ficções ensaísticas, ou seja, ficções cujo
desenrolar da narrativa sirva para incitar a reflexões sobre os temas em causa.
Estes contornos híbridos do género são fáceis de identificar também na obra
kunderiana, em que os acontecimentos da narrativa surgem, quase sempre, alternados
com reflexões do narrador. Diversas situações semelhantes serão citadas nas próximas
páginas, mas esta estrutura, em que a narrativa é constantemente comentada pelo narrador
heterodiegético, é transversal a quase toda a obra de Kundera. Contudo, quando
confrontado com a relação entre a sua forma de fazer romance e a filosofia, Kundera
refuta-a, alegando que “a filosofia desenvolve a sua reflexão num espaço abstracto, sem
personagens, sem situações” (1986: 28). Ou seja, o narrador kunderiano reflete com base
na narrativa, com “personagens e situações”, e não “num espaço abstrato”.
Luís Mourão também defende a existência de um papel reflexivo nos romances
tavarianos:
12
Eles [romances de Gonçalo M. Tavares] decorrem de um lugar dentro dessa autoria, um lugar onde
se pensa sob forma narrativa uma temática radicalmente diferente daquelas outras que já pertencem
ao território do autor. E se insisto neste aspeto é porque ele pode revelar o quanto o romance-
reflexão, hoje, vive um momento diferente do seu regime de significação. (2011: 49)
Segundo Mourão, os romances de Tavares acontecem “num lugar onde se pensa
sob forma narrativa”. Tavares aclara a sua posição no panorama do “romance-reflexão”:
Tenho muito respeito pela filosofia e pelos filósofos (...), mas precisamente por esse respeito tenho
de dizer que é evidente que não sou um filósofo. Penso que a filosofia e as ideias são muito
importantes para a escrita, não gosto de livros que não pensam e não nos fazem pensar (...) penso
que a literatura ainda é, e deve ser cada vez mais o espaço por excelência do pensamento, da
reflexão, enfim, da lucidez. E não precisa de ser pensamento filosófico, nada disso. Através de
uma história podemos fazer pensar. Mas claro que não é uma historieta qualquer (2007b)
Também Tavares parece, então, demarcar os seus romances da filosofia, ainda que
não se identifique com “livros que não pensam e não fazem pensar”. Talvez não ser “uma
historieta qualquer” implique uma procura reflexiva, uma tentativa de “fazer pensar”.
Kundera parece corroborar estas afirmações:
Sejamos mais precisos: todos os romances de todos os tempos se debruçam sobre o enigma do eu.
Logo que se cria um ser imaginário, um personagem, está-se automaticamente confrontado com a
pergunta: o que é o eu? (…) É uma das tais perguntas fundamentais sobre as quais o romance,
enquanto tal, se baseia. (1986: 37).
A associação de ambos àquilo que Mourão denomina de “romance-reflexão”
parece evidente. Vergílio Ferreira sugere este conceito em Espaço do Invisível: “dois tipos
de romance, com efeito, eu julgo deverem distinguir-se: o «romance-espectáculo» e o
«romance-problema»” (1987: 20). Ou seja:
O primeiro [romance-espectáculo] confronta-se particularmente com as coisas e pessoas, o
segundo [romance-problema] sobretudo com as ideias. Do primeiro fica-nos em saldo uma
imagem do mundo e da vida; do segundo, uma questão para reflectir (...) Em todo o caso, a
distância é infinita, sob este aspecto, entre um romance de Balzac e um romance de Kafka (idem:
28).
13
Ainda que as entrevistas sejam epitextos, e as ideias nelas presentes não tenham
de existir nas obras do autor (cf. “às vezes é interessante não saber nada sobre o percurso
do autor de um livro para não haver contaminação do percurso (…) pessoal” (Tavares
2010b)), as próprias palavras de Kundera e Tavares parecem destacar a importância da
vertente ensaística para a sua arte romanesca. Aliás, quando Tavares fala em “historieta”,
parece mesmo recuperar a expressão de Vergílio Ferreira:
Se a Europa está velha nós reconhecemos que desse modo a não seduzem já as expressões fáceis
da narrativa, da historieta, com os seus lances de sentimentalidade, do fácil imaginário, do enredo
estimulante (...) além de que o desgaste é uma lei inflexível para tudo o que é da vida humana, (...)
o que nos fala à reflexão estimula-nos muito mais do que o que fala simplesmente ao interesse
pelo espectáculo (Ferreira 1980: 23).
A historieta, para Ferreira, consiste em “expressões fáceis da narrativa”, num
“fácil imaginário”, ou seja, algo que facilmente associaríamos ao “romance-espetáculo”,
como é categorizado em Espaço do Invisível. A ligação de Kundera com esta forma de
romance parece presente em diversas análises ao trabalho do escritor checo. Por exemplo,
Mohsen Masoom escreve que “in his mature works of fiction, Kundera creates an
independent, self-contained world, which is constantly analyzed and questioned from a
philosophical point of view” (2010: 235). Essa constante análise do ponto de vista
filosófico parece fundamental para o entendimento da obra de Kundera, e coloca a sua
obra definitivamente naquilo que Ferreira defende ser o “romance-reflexão”, longe das
“historietas” e das “expressões fáceis da narrativa”.
O facto de estas narrativas terem uma componente de reflexão sobre a própria
ação torna a análise do crítico diferente da que pode ser feita a outras obras: antes de nós,
já o próprio narrador reflete sobre a ação. Ainda que seja o narrador, heterodiegético e
distante, e refletir sobre a narrativa, dissociar a ação da consequente reflexão é ignorar
pistas úteis para a compreensão da ação, e dar-lhes demasiada ênfase pode resultar numa
redução das possibilidades de análise do texto.
Esta relação entre as obras dos autores, na forma como o enredo é dependente da
reflexão, parece uma evidência. Ainda que os cenários sejam diferentes, em especial na
forma como Kundera explicita locais e datas, sendo Tavares é mais evasivo a esse nível,
os temas predominantes nas obras dos dois autores têm algumas semelhanças. São
comuns, por exemplo, os cenários de guerra, ou a ação de sistemas censórios.
14
Neste estudo, analisar-se-á a forma como ambos os autores tratam o tema do poder
nas suas obras, as diferenças e semelhanças, e como isto se relaciona com algumas das
suas narrativas. Importa, portanto, definir o conceito de poder, para identificá-lo nas
narrativas em causa.
Em “The conception of power: reconsidered”, do sociólogo americano Robert
Michael Regoli, são-nos apresentadas as dificuldades inerentes à definição do conceito:
“the more social scientists attempt to define power, the more complex it is found to be
“power is the ability to establish control over another” (Regoli 1974: 157). Isto significa,
portanto, que existem diversas definições possíveis. Entre algumas delas, destaquemos a
que é atribuída a Edward C. Banfield, em Political Influence: A New Theory of Urban
Politics: “power is the ability to establish control over another” (Banfield, apud Regoli
1974: 158). Na generalidade da obra de Kundera e Tavares, o estabelecimento de controlo
de uma entidade por outra é recorrente: do poder estatal ao poder emocional, de situações
coletivas a grupais, a presença do poder na obra dos dois autores parece uma evidência.
Não é este, por certo, o único tema que cruza a obra dos dois romancistas.
Contudo, pareceu ser esta a hipótese que oferecia possibilidades hermenêuticas mais
vastas. Tal como a definição de poder citada, parece suficientemente objetiva, mas ainda
assim generalista ao ponto de permitir a relação com alguns dos temas mais frequentes
nas obras dos dois autores. Nesse sentido foram estruturados os temas trabalhados ao
longo das seguintes páginas: o castigo, a cárcere, o corpo, a norma, e a identidade. Ainda
que cada um destes temas tenha âmbito próprio, oferecendo a possibilidade de uma mais
prolongada análise, todos são desenvolvidos dentro do contexto do poder.
Procura-se, nesse sentido, estudar de que forma o poder, as suas relações e
influências aparecem como elemento estruturante das obras ensaísticas e romanescas de
ambos os autores. Procura-se que o texto aclare essas relações, explorando possibilidades
de proximidade e afastamento entre Kundera e Tavares.
15
II. Desenvolvimento: diferentes tipos de poder
2.1 – A codificação do castigo: do controlo de pensamento à
repressão
Michael Foucault enuncia, em Vigiar e Punir, uma nova era para a justiça penal a
partir do século XVIII, falando do “projecto ou redação de códigos «modernos»: Rússia,
1769; Prússia, 1780; Pensilvânia e Toscana, 1786; Áustria, 1788; França, 1791, Ano IV,
1808 e 1810” (1975: 11): trata-se do fim das punições eminentemente físicas. O corpo
vai progressivamente saindo do foco punitivo: é dito que “desapareceu o corpo como alvo
principal da repressão penal” (idem: 12).
Esta mudança ganha reforçada importância porque a diferença passa, então, pela
tipologia do castigo, não na gravidade que lhe é imposto. Trocam-se fogueiras, chicotes
e apedrejamentos por situações em que “o sofrimento físico, a dor do corpo, não são mais
os elementos constitutivos da pena” (ibidem: 14). Não se trocou meramente a fogueira
pelo empalamento, ou a forca pela cadeira elétrica. É Foucault quem diz que “desaparece,
em princípios do século XIX, o grande espectáculo a punição física: o corpo supliciado é
escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da
sobriedade punitiva” (16).
Nos lugares citados no primeiro parágrafo, criou-se foco numa “nova ilegalidade”;
fez-se “derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos
bens” (65), e isso parece ter sido decisivo para esta mudança de paradigma. Assim, surge
a necessidade de encontrar um castigo que se adeque ao delito numa perspetiva moral e,
simultaneamente, numa perspetiva de correção. Como diz uma das definições de poder
citadas por Michael Regoli, “power is conceived of as a relationship between two actors,
where one actor is able to bring about a change in the second actor” (Goldhammer e Shils,
citados por Regoli 1974: 159). Ou seja, se determinados comportamentos são
transgressores, necessitam de mudança para serem integrados na ordem vigente. Nesse
16
sentido, o “one actor”, executor do poder, terá de encontrar o melhor caminho para
transformar o comportamento do “second actor”, indivíduo punido.
Ainda assim, antes da atribuição de um castigo, importa definir aquilo que
constitui, afinal, um comportamento transgressor. Como diz Foucault, o estabelecimento
de “leis fixas, constantes, determinadas da maneira mais precisa, de modo que os súditos
saibam a que se expõem, e que os magistrados não sejam mais do que o órgão da lei”
(1976: 75), é fundamental para estabelecimento de um sistema penal.
Assiste-se, então, a uma codificação mais nítida do castigo, que impeça que este
seja aplicado de forma diferente, em casos semelhantes. Foucault avança com a
possibilidade de um “tribunal [que] não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo
contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no
interior de instituições características do aparelho de Estado” (1979: 13). Também
Hannah Arendt diz que “o poder só nasce quando as pessoas agem em conjunto, e não
quando as pessoas se fortalecem individualmente” (1991: 35). A transgressão deixa de
colocar o objeto de punição contra meras vozes discordantes, individuais, cuja força é
questionável, para o colocar contra um corpo social. No fundo, ficam “de um só lado
todas as forças, todo o poder, todos os direitos” (Foucault 1976: 75) tornam o punido num
inimigo comum.
Entende-se, então, que ao subscrever um pacto (que, quando estabelecido, pune
um indivíduo sem rosto), pune-se um espectro, uma possibilidade de crime. O corpo do
criminoso deixa de ser o mais relevante, e a punição lembra menos a vingança: procura-
se antes que o castigado seja punido com base num código bem definido.
Ou seja: punir implica que o delito seja, antes de mais, “categorizado” entre outros
delitos, sendo-lhe previsto um castigo adequado. Simultaneamente, se encararmos o
castigo como forma de prevenção, ou forma de desencorajar futuros crimes, a esperança
da impunidade cresce à medida que qualquer ato passa impune. Mais do que punir a
disrupção à norma social, procuram-se desencorajar candidatos à sua repetição.
Talvez possamos, então, entender a punição como instrumento normativo. Se se
pune para erradicar comportamentos, também se pune para normalizar outros. Nas
palavras de Tavares, “o cidadão Bom é o cidadão normal” (2013a: 91). Definido o
comportamento “Bom”, importa fazê-lo norma, cortando os excessos. Então, “a
extravagância é intolerável ou pelo menos mal vista; a cidade é feita dos seus habitantes
e o seu normal funcionamento depende do normal funcionamento dos seus habitantes”
(idem). O código penal serve, portanto, como veículo de normalização social. Mais do
17
que ostracizar, premeia-se. Mais do que punir, valoriza-se. Existem comportamentos que,
por serem contrários aos punidos, talvez possam ser valorizados:
Voltemos a Foucault, que diz que “a verdade não existe fora do poder ou sem
poder” (1979: 10). A verdade parece ser produto de múltiplas coerções codificadas,
combinadas e posteriormente convertidas em leis:
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de
verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (ibidem).
A verdade é, então, cultural, é uma aquisição posterior. Serve como forma de
categorizar acontecimentos: verdadeiro e falso, bom ou mau. Existirá, então, liberdade
para inverter o sistema? Ou seja: em sociedades com sistemas culturais próximos ou,
arrisquemos, com “verdades próximas”, haverá a possibilidade de sobreviver num
sistema de crenças contrário? Diz também Tavares que “a Verdade é uma velocidade. A
Verdade passa por encontrar a velocidade certa da realidade, passa por colocar a realidade
a avançar a uma certa velocidade” (2013a: 121).
Talvez o sistema punitivo seja uma forma de ajustar a “velocidade”. Depois de
estabelecida a “velocidade” certa, passar-lhe os limites em qualquer um dos sentidos
oferece direito a exclusão. Uma exclusão que puna o infrator mas que, simultaneamente,
permita reafirmar a exposição pública da “velocidade certa”.
As ditaduras são, provavelmente, a exposição mais evidente dessa alteração
consciente de “velocidade”. Numa retrospetiva história e cultural percebemos, de forma
evidente, a forma como mudam os conceitos de certo e errado, de valorizado e punido: a
“velocidade” certa e errada, de que fala Tavares. Contudo, quando dentro desse mesmo
mundo existem “velocidades” fraturantes, os responsáveis pela imposição da
“velocidade” certa podem tomar posições de força, como veremos adiante. Arendt,
falando sobre organizações totalitárias, refere que:
Visam dar às mentiras propagandísticas do movimento tecidas em torno de uma ficção central – a
conspiração dos judeus, dos trotskistas, das 300 famílias, etc. –, realidade operante e a construir,
mesmo em circunstâncias não totalitárias, uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo
as regras de um mundo fictício. (1958: 481)
18
Talvez essa “ficção central”, de que fala Arendt, não seja mais do que uma
“velocidade” imposta pelos governos autoritários. Essa “velocidade” deverá guiar
comportamentos e crenças dos que a integram. Contudo, enuncia o dito popular que “cada
cabeça, sua sentença”; ou, pela lógica tavariana, que falava em “velocidade”, cada
indivíduo, conforme o seu sistema de crenças, poderá ter discursos “de verdade” próprios.
Como reagem as organizações totalitárias às vozes disruptoras da ordem social vigente?
Este é o cenário de parte considerável das narrativas de Kundera. Como se tornará
explícito mais à frente, essas narrativas têm um contexto histórico-social que quase
sempre as caracteriza, quer através de referências espaciais e temporais, quer através de
relatos históricos: falamos de Praga, da segunda metade do século XX. Simultaneamente,
quase sempre as personagens são vítimas do sistema coercivo pela tentativa, mais ou
menos deliberada, mais ou menos pessoal, de romper com esta “velocidade certa”.
Como diz Arendt, “a estabilidade do regime totalitário depende do isolamento do
mundo fictício criado pelo movimento em relação ao mundo exterior” (idem 1958: 581).
Ou seja, vozes discordantes, que se façam ouvir rompendo a narrativa instituída, são
ameaçadoras para a homeostasia de um regime totalitário, visto que “a estabilidade do
regime” depende desse isolamento.
The political condition has changed them so much that they are unable to recognise each other.
This is the dehumanising impact of the forces of history and politics on the human existence under
which man loses his identity and individuality. Depriving the individual of his identity is peculiar
to totalitarian power. How power deprives individual of identity and freedom constitutes
Kundera’s fundamental thematic obsession. (Asif 2014: 172)
Se este “depriving the individual of his identity” em contextos totalitários e o
“mundo fictício” de que fala Arendt surgem amiúde na obra de Kundera, na de Tavares,
talvez pela falta de conotação política dos textos, ou por a biografia do autor não ter
historial direto de repressão e exílio, a informação surge de forma menos evidente.
Contudo, em Jerusalém, terceiro livro da tetralogia O Reino, parte da ação parece remeter
para alguns destes temas, que Muhammad Asif, em A Study of the Theme of Power in the
Works of Franz Kafka and Milan Kundera, categoriza como kunderianos.
Jerusalém inicia-se com a história de Mylia, uma mulher que tenta entrar numa
igreja durante a madrugada, sendo depois descrita a sua relação com Theodor Busbeck,
médico e seu ex-marido. A dissolução de traços identitários é um dos temas abordados.
19
Falando sobre coveiros, que exerciam funções num cemitério, diz Tavares: “Eram dois
homens vestidos com o mesmo uniforme, o que revelava de imediato ordem e não crime”
(2005: 25). O uniforme é apresentado como um instrumento do poder. Fragmenta
vínculos identitários, anula particularidades, torna o sujeito num instrumento raso.
Mylia é apresentada como doente psiquiátrica. Aos dezoito anos, os pais levaram-
na a um psiquiatra, Busbeck, que viria a tornar-se seu marido. Além de ficar desde logo
evidente um poder institucional inerente à posição do médico perante a paciente (atente-
se nas palavras do próprio Theodor: “O médico deve estar a sós com os seus pacientes
(idem: 33)), o marido parece, nos anos vindouros, exercer uma espécie de custódia sobre
a mulher, que o leva a ter domínio sobre os seus destinos: “Theodor decidiu, precisamente
no dia 31 de Dezembro, no oitavo ano em que viviam juntos, internar a sua esposa, Mylia,
no piso dois do Hospício Georg Rosenberg, o mais conceituado da cidade” (63).
Ainda que se possa refletir sobre a possibilidade de Busbeck agir como médico ou
marido de Mylia, é dito que “Theodor decidiu”, sem que a posição de Mylia sobre o
assunto, ou um diagnóstico particularmente detalhado, tenha sido motivo para este
desfecho. Feita a decisão de Busbeck, psiquiatra e marido, consideravelmente mais velho,
não sobrou opção a Mylia senão ser internada. Parte da ação desenvolve-se, daí em diante,
no Hospício Georg Rosenborg.
Este não é um tema novo: a cárcere é o mote de, por exemplo, em O Alienista, de
Machado de Assis, a ação é um manicómio, tal como em Jerusalém. Escrito com mais de
um século de diferença, a narrativa passa-se também num manicómio: “a loucura, objeto
dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar
que é um continente” (Assis 1882: 28). Noutro exemplo, em Catcher in the Rye, de J. D.
Salinger, passa-se internato de um colégio. Aí o espaço é de emoções negativas: “It was
a terrible school, no matter how you looked at it” (1951: 3), diz o protagonista, Holden
Caulfield, antes da fuga da instituição. Em Norwegian Wood, de Haruki Murakami, o
cárcere assume papel inverso, o de um refúgio: “«Just living here is the convalescence»,
she said. A regular routine, exercise, isolation from the outside world, clean air, quiet”
(1987: 105), descreve Reiko, residente no local.
Ainda que a situação carcerária possa existir em diversas instituições de diferente
índole, como hospitais, escolas, conventos, prisões ou manicómios, importa esclarecer a
existência de diversos tipos de “total institutions”. Em Asylums: Essays on the Situation
of Mental Patients and Other Inmates, Erving Goffman aclara:
20
The total institutions of our society can be listed in five rough groupings. First, there are institutions
established to care for persons felt to be both incapable and harmless; (…) Second, there are places
established to care for persons felt to be both incapable of looking after themselves and a threat to
the community (…). A third type of total institution is organized to protect the community against
what are felt to be intentional dangers to it, with the welfare of the persons thus sequestered not
the immediate issue (…). Fourth, there are institutions purportedly established the better to pursue
some worklike task and justifying themselves only on these instrumental grounds (…) Finally,
there are those establishments designed as retreats from the world even while often serving also as
training stations for the religious (1961: 5).
Dentro desta categorização, o Georg Rosenberg parece encaixar entre a segunda
e a terceira categorias. Protegem-se os loucos de si próprios ou enclausura-se o perigo
para, cá fora, se poder viver sem problemas? A generalidade dos elementos do hospício
de Jerusalém parece enquadrar-se na segunda categoria. Num dos capítulos, intitulado
“Os loucos”, é feita uma descrição dos comportamentos de alguns dos pacientes. Como
diz Maria Isabel Bordini, em O Poder e a Violência em O Reino, este capítulo “apresenta
uma sucessão de diferentes vozes com marcas discursivas que denotam uma
racionalidade que se distancia da racionalidade convencional” (2014: 68). A generalidade
parece evidenciar alterações comportamentais que, no limite, os tornam desviantes do
padrão comportamental vigente: “Se partir o vidro com a mão vou sentir a mão. Witold
diz: se não sentes a alma parte o vidro com a alma. Ri-se.” (Tavares 2005: 80); ou ainda:
“Estou a varrer o hotel, diz Marksara. O hotel está sujo, tem migalhas e tem homens. E
tem beatas. Estou a varrer o hotel. Está cheio de homens, diz Marksara. E de beatas.”
(idem); “Marko vê televisão o dia inteiro. Desde o momento em que se levanta até se
deitar. Ninguém o consegue tirar dali. Pode acontecer qualquer coisa, diz.” (idem: 81).
Estes “loucos” parecem integrar-se na segunda categoria de Goffman, sem serem,
contudo, um risco para quem os rodeia. São loucos que afirmam categoricamente cenários
pouco prováveis: um chão pejado de beatas e homens, a possibilidade de usar a alma
como forma de partir um vidro, o controlo de novos acontecimentos pela assistência
obsessiva a uma televisão. Loucos que não se deixam convencer da sua impossibilidade
do que afirmam por via argumentativa, que os fizesse acreditar na sua demência. Como
diz Foucault, “não se pode supor, mesmo através do pensamento, que se é louco, pois a
loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento” (1972: 54).
No George Rosenberg esse procedimento parece ser substancialmente mais
complexo:
21
Havia, pois, como que um arredondamento da existência, o que era excessivo transformava-se em
alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocá-la para além desse
arredondamento. Como se cada existência, exactamente como um compartimento, tivesse um
caixote do lixo, um sítio específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os
hábitos, acções e, se possível, os pensamentos que não interessavam. Neste caso, que não
interessavam a quem vigiava: os médicos. (Tavares 2005: 104)
Talvez seja a isto que Foucault chama “a eliminação espontânea dos a-sociais”
(1972: 90), ou seja, uma neutralização dos “pensamentos que não interessavam a quem
vigiava”. Existe um código de conduta, o que também é condição sine qua non para a
existência de um código de comportamentos a erradicar.
Mylia parece, ao longo da narrativa, funcionar como uma personagem oprimida
pelo poder, do marido do Hospício (representado pelo responsável, Gomperz) e, em
última instância, pelo consenso entre ambos. É o que acontece quando Mylia se envolve
com outro doente, Ernst Spengler, doente esquizofrénico. A situação é exposta ao marido,
que reúne de emergência com Gomperz. Sobre isto, atentemos nas palavras de Goffman:
There is another form of mortification in total institutions; beginning with admission a kind of
contaminative exposure occurs. On the outside, the individual can hold objects of self-feeling -
such as his body, his immediate actions, his thoughts, and some of his possessions - clear of contact
with alien and contaminating things. But in total institutions these territories of the self are
violated; the boundary that the individual places between his being and the environment is invaded
and the embodiments of self profaned. (1961: 32)
O facto de o envolvimento de Mylia com Ernst ter sido exposto a Busbeck, seu
responsável para o hospício, deixa bem claro o carácter invasivo, a vários níveis, das
instituições carcerárias. Mais do que a perda do espaço corporal e do território próprio,
invadido pela entidade que promove a reclusão, essa entidade parece procurar a perda de
um espaço não-material: o do pensamento. A vigilância não acaba, portanto, nos atos.
Perceber aquilo que eles pensavam era também um objetivo; existia uma atenção excecional em
redor daquilo que nunca se vê: o interior da cabeça. Uma das mais perturbantes perguntas do doutor
Gomperz, a qualquer doente, era precisamente esta: em que está a pensar, meu caro? (Tavares
2005: 104)
22
A busca do Georg Rosenberg é, então, a de um controlo holístico. As ações que
importa controlar são provenientes de pensamentos errados: “Gomperz por vezes atrevia-
se mesmo a colocar a um paciente a seguinte questão: sabes em que deves pensar?” (idem:
105). Novamente, recordemos as palavras de Foucault, para quem a verdade não existe
fora das relações de poder: “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua «política
geral de verdade»: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros” (1979: 10). São as relações de poder, e a inibição de certos comportamentos
e ideias que legitimam a verdade instituída, que definem os comportamentos distantes
dos tidos como corretos. Note-se aliás que, umas páginas adiante, as funcionárias do
George Rosenberg são descritas como “portadoras de uma cabeça decente, como se dizia
por ali” (Tavares 2005: 171). Pede-se, então, aos funcionários de um hospital de pessoas
insanas que sejam capazes de manter a sensatez. Até porque, como diz Gonçalo M.
Tavares, a saúde pode bem ser definida como “o estado em que os músculos fazem o que
nós queremos e nós queremos algo de sensato” (idem: 60).
Parece haver poucas descrições de incapacidade muscular dos internados no
Hospício George Rosenberg. Ao longo da narrativa, nenhuma deformidade muscular é
descrita; os internados é que parecem não querer “algo de sensato”. Como refere Bordini,
“o hospício parece estar a serviço da racionalidade, isto é, quer instalar a racionalidade
na mente dos doentes e extrair aquilo que é irracional” (2014: 70), ou ainda, ao serviço
daquilo que Tavares apelida de “velocidade certa”.
Encontramos algumas semelhanças na ação de A Brincadeira, de Kundera. O
romance debutante do checo evidencia, desde logo, parte considerável dos traços
identitários das décadas que se seguiriam. De facto, Kundera escreve num período bem
identificado nas suas narrativas, enquanto Tavares oferece menos pistas sobre o local e o
tempo da narrativa. Os nomes das personagens kunderianas são checos, e as personagens
estão em (ou vão para) Praga, estão em (ou vão para) Paris, cidades com relação óbvia
com a biografia do autor. Neste aspeto, a obra tavariana é diferente:
Há personagens, ainda que secundárias, que passam de romance para romance, movimentando-se
numa mesma cidade que não tem nome nem localização precisa, e ao longo de um tempo em que
os acontecimentos charneira são, nos dois primeiros romances, a ocupação militar dessa cidade, e
no terceiro romance o período imediatamente a seguir a essa ocupação. O (pouco do) quotidiano
que é descrito, mas sobretudo o facto militar da ocupação mais os nomes alemães das personagens,
parecem situar a ação na segunda guerra mundial e num país vizinho da Alemanha. Nos dois
primeiros romances isto é apenas uma hipótese, no terceiro é uma certeza, pois há uma personagem
23
que vê fotografias dos campos de concentração nazis, algo de que só tomara conhecimento com o
fim da invasão. (Mourão 2011: 52)
Tavares escreve em locais que podiam existir em diversos pontos da Europa
Ocidental, surgindo a identificação histórica apenas em curtas referências, que nem de
perto chegam para que a narrativa possa ser identificada como romance histórico. Esta
vaga identificação de um tempo e de um lugar não existe em Kundera. Em A Brincadeira,
as referências a locais concretos são constantes. Atente-se: “Pavel partiu esta tarde para
Bratislava, eu amanhã de manhã cedo, de avião, para Brno” (Kundera 1967: 21), ou: “até
aos dezoito anos não conheci outra coisa que não fosse a casa bem ordenada da burguesia
provinciana, e o estudo, (…) quando depois cheguei a Praga, em 49, (…) Praga, a
faculdade, a cidade universitária” (22). Por muito que procuremos fugir aos epitextos de
Kundera, são inegáveis as semelhanças entre as palavras do narrador e a biografia do
checo. A narração autodiegética, ainda que seja Ludvik quem nos fala, relembra
invariavelmente a biografia do checo.
Ludvik, nos seus anos de juventude, apaixona-se por Marketa, colega do aparelho
partidário, descrita como “incapaz de olhar para além de uma coisa” (idem: 37), ou ainda
“inocentemente cândida” (38), como se a candura desculpasse Marketa de ter “um
intelecto que se recusava a funcionar” (ibidem). Esta incapacidade viria, aliás, a ser o
problema que desencadeia o ponto de viragem. O protagonista considera-se como alguém
com uma “funesta tendência para piadas descabidas” (35). Isto justifica a carta que
Ludvik escreve a Marketa, num afastamento temporário para um estágio fora de Praga:
No fundo, bem vistas as coisas, eu estava de acordo com o que Marketa dizia, também eu
acreditava até na revolução na Europa Ocidental; havia só uma coisa que eu não aprovava: que ela
estivesse contente e feliz enquanto eu sentia a falta dela. Então arranjei um postal e (para ferir,
chocar e confundir) escrevi: O optimismo é o ópio do género humano! O espírito são tresanda a
estupidez. Viva Trotski! Ludvik. (38)
Esta brincadeira parece remeter para o título do próprio livro. Os acontecimentos
sucedem-se, a relação com a ingénua rapariga termina e, meses mais tarde, já com Ludvik
de volta a Praga, uma chamada telefónica requisita a sua presença nas instalações do
Partido:
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Mandaram-me sentar. Sentei-me e percebi que as coisas não estavam bem. Os três camaradas, que
eu conhecia bem e com quem costumava conversar alegremente, ostentavam caras impenetráveis;
se é verdade que me tratavam por tu (regra entre camaradas), não era de súbito um tratamento
amigável, mas oficial e ameaçador. (…) encontrava-me portanto frente a três estudantes a tratar-
me por tu, que me fizeram uma primeira pergunta: se eu conhecia Marketa. Disse que sim.
Perguntaram-me se tínhamos trocado correspondência. Disse que sim. Perguntaram-me se me
lembrava do que tinha escrito. Disse que não me lembrava, mas de repente saltou-me diante dos
olhos o postal com o texto provocatório (…) Ah não te lembras?, perguntaram eles. (…) Ela não
te escreveu nada sobre o estágio?, perguntaram eles. É verdade, disse eu, escreveu. E então o quê?
Que gostava daquilo. E mais o quê? (idem: 40)
Relembre-se a inquisição do doutor Gomperz, responsável do hospício de
Jerusalém: “Em que estás a pensar, meu caro?”. A questão ganha um tom inquisitivo, e
salta para conclusões sobre as respostas:
E prosseguiram: Um cínico também pode ser alegre?, perguntou o outro. Não, disse eu. Então quer
dizer que tu não defendes a edificação do socialismo entre nós, disse um terceiro, Mas porquê?,
protestei. Porque para ti o optimismo é o ópio do género humano, rebentaram eles. O quê, o ópio
do género humano, disse eu ainda. Não tens safa. Escreveste isso! Marx chamou à religião o ópio
da humanidade, mas para ti o ópio é o nosso optimismo! (…) Deus do céu, onde é que vocês foram
inventar isso?, protestei. Negas o que escreveste? É natural que o tenha escrito a brincar, já foi há
dois meses, nem me lembro. Podemos refrescar-se a memória, disseram eles, e deram-me a ler o
meu postal (…) Camaradas, era só uma graça, disse eu, e senti que ninguém podia acreditar em
mim. (idem: 41)
Como refere Arendt, “a detenção do poder significa o confronto direto com a
realidade, e o totalitarismo procura constantemente evitar esse confronto” (1958: 519). E
“evitar esse confronto” pode começar numa escala mais pequena: evitando que Ludvik
comunique pensamentos que não defendam “a edificação do socialismo entre os seus
pares”. Até porque “se não lutarem pelo domínio global como objetivo último, correm o
sério risco de perder todo o poder que tenham conquistado” (520). Ou seja, cada opinião
dissonante deve ser perseguida à exaustão, porque é a existência de cada uma que
possibilita um coro de vozes discordantes.
Relembre-se, contudo, que Ludvik se expressava de forma irónica, como é patente
no discurso do narrador autodiegético: “foi no momento, duas linhas para gozar”
(Kundera 1967: 42). O humor parece ter uma relação trémula, então, com o poder, quando
este é obcecado com o controlo das ideias dos oprimidos. Por vezes, o humor afirma sem
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realmente o dizer, e desmente, afirmando-o. Como se controlar todos os pensamentos
acentuasse a dificuldade em lidar com um pensamento que se possa tornar mais difícil de
catalogar. Essa catalogação parece mesmo ser o objetivo final, quando Marketa, a
destinatária da carta de Ludvik, se justifica ao próprio: “És membro do Partido, e o Partido
tem o direito de saber quem tu és e como pensas” (idem: 46).
Talvez este possa ser o problema do poder com o humor. Alguém que se expressa
de forma irónica não revela “como pensa”; talvez revele precisamente o contrário. Essa
titubeação cria problemas de ordem hermenêutica, como destaca Ricardo Araújo Pereira:
Pelos vistos, o humor tem o poder de convencer algumas pessoas de que têm verdadeiro poder.
Entre essa gente crédula contam-se, por exemplo, ditadores, que o temem a ponto de o proibir.
Parece que, na Alemanha nazi, havia tribunais especiais para julgar os cidadãos que chamassem
Adolfo ao seu cavalo. (Pereira 2016)
Se, como diz Pereira, os ditadores proíbem o humor, é porque o identificam como
agente fatal à estabilidade do status quo. Importa, como diz Arendt, que “cada fragmento
de informação concreta que se infiltra através da cortina de ferro, construída para deter a
sempre perigosa torrente da realidade” (1958: 519), seja bloqueado à nascença, mesmo
que seja numa carta entre namorados.
Ludvik, contudo, só parece verdadeiramente preocupado com a traição aos seus
princípios ideológicos numa fase inicial. Rapidamente se apercebe do absurdo da situação
e começa a ter preocupações de índole mais prática:
Os meus esforços não tinham outro objectivo do que este: não ser posto fora do Partido e assim
considerado como seu inimigo; viver como inimigo reconhecido daquilo que eu escolhera na
adolescência, e que me era verdadeiramente caro, parecia-me desesperante. (…) A discussão que
se gerou no seguimento da minha intervenção voltou-se contra mim; ninguém veio em meu auxílio,
de tal modo que, no fim, todos (…), sim, todos, até ao último, levantaram a mão para aprovar não
apenas a minha exclusão do Partido, mas ainda (coisa que não esperava) a proibição de continuar
a estudar. (Kundera 1967: 50)
Note-se como as preocupações vão flutuando: se, numa fase inicial, Ludvik parece
preocupado com a exclusão da instituição que representa as suas ideologias, rapidamente
a preocupação se desloca para o seu próprio bem-estar. Ludvik é excluído do Partido e
isso impede-o de continuar a estudar. Curioso é que o castigo que lhe é imposto (em
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função de ter “pensado as coisas erradas”, como podia ser dito por Gomperz, em
Jerusalém; ou em função de incorrer na “velocidade errada”, como podia ter dito Tavares)
evidencie tantas semelhanças com o dado a outra personagem, mas de Jerusalém: Mylia.
Ludvik é expulso do partido e enviado para um quartel, nos arredores de Ostrava.
Lá, é dito pelo narrador que os cabelos eram rapados por igual medida, que existiam
uniformes próprios e generalizados, e que existiam aulas de educação política:
A despersonalização que nos infligiam parecia perfeitamente opaca nos primeiros dias.
Impessoais, impostas, as funções que exercíamos substituíram todas as manifestações humanas;
esta opacidade era, evidentemente, muito relativa até porque derivava não só das circunstâncias
reais mas de um defeito de habituação da vista (como quando se passa de uma zona iluminada para
uma zona escura); com o tempo, ela iria lentamente dissipar-se, e mesmo com a penumbra da
despersonalização, o humano nos homens tornou-se pouco a pouco imperceptível. (idem: 53)
A pensamentos errados, disformes, responde-se com uma “penumbra de
despersonalização”. Muito semelhante diz Gonçalo M. Tavares, quando descreve os
procedimentos clínicos do Hospício Georg Rosenberg:
Havia, pois, como quem um arredondamento da existência, o que era excessivo transformava-se
em alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocar para além desse
arredondamento. Como se cada existência, exactamente como um compartimento, tivesse um
caixote de lixo, um sítio específico, com formas adequadas, para onde se deveriam atirar os
hábitos, acções e, se possível, os pensamentos que não interessavam. Neste caso, os que não
interessavam a quem vigiava: os médicos. (2005: 104)
Para efeitos de análise, substituamos “médicos” por “camaradas”. Mudam o
oprimido e o opressor, mas o exercício de “arredondamento” ou de “despersonalização”
é semelhante. E essa preocupação não existe apenas no condicionamento do discurso:
trata-se, como referido, de um controlo holístico. A diferença do corpo pode ser um
indício da diferença nas ideias e no discurso, e talvez o desaparecimento dos contornos
individuais do corpo seja um passo para a diluição dos contornos mais perigosos do
discurso e dos atos. Como diz Tavares, em Atlas do Corpo e da Imaginação, “a ideia de
cegueira em relação ao próprio corpo, cegueira táctil, cegueira muscular, afasta o corpo
do próprio indivíduo, torna o corpo um verdadeiro saco que se transporta” (2013a: 184).
Tornar “o corpo num verdadeiro saco que se transporta” parece ser importante para a
uniformização comportamental. Aliás, segundo Barthes, o corpo parece
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consideravelmente mais difícil de dominar do que a linguagem: “my body is a stubborn
child, my language is a very civilized adult” (1990: 128). Essa dificuldade em escrutinar
os movimentos de um corpo que pode ser uma “stubborn child” pode incentivar um cerco
permanente às particularidades que este possa evidenciar.
Esta relação entre corpo e linguagem também é explorada por Tavares em
Jerusalém, quando, como acima citado, diz que é necessário “nós querermos algo de
sensato” para a existência de um estado tido como saudável. A descrição de Mylia, esposa
do psiquiatra Busbeck, parece explorar essa relação:
Mylia era saudável a nível físico e a nível espiritual: tinha um corpo eficaz que obedecia por
completo às suas vontades – dentro dos limites anatómicos humanos – (…) onde Mylia não era
saudável (…) era na cabeça, nas vontades. Ela era doente da cabeça, como os miúdos das
redondezas diziam (…) Busbeck era capaz de prever com pouco erro as suas reacções, os
arrebatamentos violentos (Tavares 2005: 63)
Repare-se como os comportamentos ilógicos, exemplificativos deste seu estado
mental débil, são essencialmente físicos. Os “arrebatamentos violentos” e as “reações”
sugerem uma qualquer reação física vigorosa. Assim como em A Brincadeira, Ludvik é
vítima de uma carta à sua paixão de então. Linhas antes, Ludvik queixa-se de que o
“funcionamento psíquico e filosófico do amor é tão complicado que num determinado
período da vida o homem tem de concentrar-se em controlá-lo” (Kundera 1967: 37). Mais
tarde, descreve como a falta de entusiasmo de Marketa em passar algum tempo consigo
o desanima. A carta que o viria a punir vem em sequência desse episódio:
Essa decisão não me convinha nada, porque eu contava exactamente com essas duas semanas para
as passar sozinho com Marketa em Praga e levar a nossa relação (que até então consistira em
passeios, conversas e alguns beijos) um pouco mais longe; (…) e fiquei louco de ciúmes por
Marketa não partilhar da minha aflição, nem se irritar com o estágio, pior ainda, ter a coragem de
me dizer que até gostava da ideia! (idem: 38)
Ainda que as punições impostas a Mylia e a Ludvik decorram, essencialmente, no
âmbito daquilo a que Tavares chama “querer algo de sensato”, na sua definição de
“saúde”, a relação com a corporalidade é inequívoca. Se o facto de Mylia ser “doente da
cabeça”, como é descrito a certo ponto da narrativa, tem consequências diretas em ações
(ou em “arrebatamentos violentos”), no caso de Ludvik a relação parece um pouco mais
28
intrincada: a ação que o leva ao quartel, em Ostrava, está ligada a outro tipo de
arrebatamento: o da paixão por Marketa, que o conduz a atos irrefletidos. Contudo, em
ambos os casos, a punição deve-se a uma vigilância prévia, quer dos comportamentos do
hospício, quer da correspondência de Ludvik com a namorada.
29
2.2 – Cárcere e vigilância: do quartel de Kundera ao hospício de
Tavares
Como foi referido, Mylia e Ludvik são inseridos em sistemas de cárcere por
motivos diferentes. Cada um desses sistemas apresenta tipos de organização diferentes, e
para entender as suas caraterísticas parece interessante recordar o exemplo que Michael
Foucault descreve, em Vigiar e Punir, com a descrição de diversos comportamentos de
controlo exaustivo (com sentinelas por todas as esquinas), no relato da eclosão da peste
numa cidade (não identificada) do século XVII. É especialmente curiosa uma passagem:
o responsável por cada quarteirão passa na rua e “pára diante de cada casa, manda colocar
todos os moradores às janelas (…) informa-se do estado de todos, um por um” (1979:
162). Mais do que proteger os potenciais infetados, assiste-se a uma espécie de
condescendência que assume que os indivíduos não têm capacidade de tomar as atitudes
corretas, estando distantes do jugo inquisitório dos fiscais:
Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão
inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os
acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia,
onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada
indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os
mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar. A ordem responde à
peste; ela tem como função desfazer todas as confusões; a da doença que se transmite quando os
corpos se misturam; a do mal que se multiplica quando o medo e a morte desfazem as proibições.
(idem: 163)
Ainda que Foucault esteja a descrever comportamentos de controlo de uma peste
no século XVII, esta descrição parece condizente com a realidade dos sistemas carcerários
no século XX. Também os movimentos são controlados, os acontecimentos registados,
sendo o cárcere um “dispositivo disciplinar” que procura evitar comportamentos tidos
como desviantes. A título de exemplo, atente-se nas palavras de Erving Goffman, quando
se refere a instituições totalitárias, como prisões, manicómios ou hospitais, no século XX:
30
When persons are moved in blocks, they can be supervised by personnel whose chief activity is
not guidance or periodic inspection (as in many employer-employee relations) but rather
surveillance - a seeing to it that everyone does what he has been clearly told is required of him,
under conditions where one person's infraction is likely to stand out in relief against the visible,
constantly examined compliance of the others. (…) In total institutions there is a basic split
between a large managed group, conveniently called inmates, and a small supervisory staff. (1961:
7)
Tudo isto, segundo Foucault, era característico do controlo da peste no século
XVII. Contudo, no século XIX, em especial na Europa, disseminou-se a circunscrição
dos doentes a instituições e a edifícios específicos (além de Vigiar e Punir, já citado,
descrito também em História da Loucura) em que, além de se juntarem outros indivíduos
com problemas semelhantes, existiam também vigilantes (cf. Goffman 1961). Segundo
Foucault, é já no século XIX que se dissemina a circunscrição aos espaços de exclusão,
em que se “projectam recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do
internamento” (1979: 165), mas, mais que isso, em que se procura “individualizar os
excluídos, mas utilizar processos de individualização para marcar exclusões” (idem).
Nesse processo de individualização, está presente a ambiguidade a que já foi feita
referência: mais do que proteger os indivíduos fora do espaço de internamento, vigiam-
se as atitudes dos indivíduos a que são atribuídas atitudes a punir. Esta exclusão tem como
objetivo a proteção dos indivíduos das próprias atitudes, especialmente em casos de
problemas “mentais”. Recorrendo à definição de “saúde” de Gonçalo M. Tavares (“o
estado em que os músculos fazem o que nós queremos e nós queremos algo de sensato”),
nem Mylia nem Ludvik tinham músculos que não fizessem o que ambos pretendiam: o
problema é que nenhum deles queria “algo de sensato” segundo a norma vigente.
Isso é o que foi regularmente realizado pelo poder disciplinar desde o começo do século XIX: o
asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correcção, o estabelecimento de educação vigiada, e
por um lado os hospitais, de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional
num duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo;
normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde deve
estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma
vigilância constante, etc.) (1979: 165).
31
Uma categorização faz-se mais facilmente por oposição a outra: assim se distingue
o bom do mau, ou o fácil do difícil, satisfazendo uma economia de pensamento que evite
posições intermédias sobre os assuntos em causa. A divisão binária, de que fala Foucault,
acaba por influenciar de forma decisiva o dualismo irredutível a que os indivíduos,
potenciais reclusos, são sujeitos. Atente-se nas palavras de Tavares, em entrevista:
Isso é algo muito perturbante, porque nós temos a cabeça muito virada para uma espécie de “sim-
não”, então se alguém é classificado como maldoso, nós quase que assumimos que a pessoa é 24
horas por dia maldosa. Mas a questão basicamente perturbante é que uma pessoa pode ter durante
50 anos os hábitos mais elogiáveis, mais bonitos, interessantes e generosos, e pode por dez
minutos, de repente, praticar um ato absolutamente terrível, de maldade pura. Portanto, muitas
vezes essa questão de que é um homem bom ou um homem mau… Se formos às quantidades,
mesmo as pessoas mais execráveis da história, na maior parte do seu tempo, tiveram atos normais,
até generosos, bondosos. (Tavares 2010b)
Como desenvolveremos mais adiante, em Jerusalém e A Brincadeira ser perigoso
ou inofensivo, louco ou não louco, tem consequências diretas no “onde deve estar”. Aliás,
é por pensarem e agirem de forma diferente que Mylia e Ludvik são categorizados como
distantes do comportamento pretendido, sendo afastados para instituições de vigilância
permanente. Nessas instituições os procedimentos dos responsáveis são semelhantes aos
existentes no controlo dos leprosos, na descrição de Foucault: é comum a “vigilância
permanente em todos os pontos”, o registo permanente de “todos os acontecimentos”, e
onde “cada indivíduo é constantemente localizado e examinado”. Existem, portanto, “um
conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, corrigir os
anormais” (Foucault 1979: 166).
Aliás, “é a força que define o bem e o mal, de cada vez que este vocabulário
parecer oportuno ao detentor da força” (Eiras 2005: 117). Mais do que punir em função
da ideia fechada de certo e do errado, os próprios conceitos dependem dos interesses dos
poderosos. Relembre-se o internamento de Mylia, decidido pelo “detentor da força”,
Busbeck: em Jerusalém, afirma-se que “Theodor decidiu” o internamento de Mylia.
Da necessidade de “medir, corrigir os anormais”, surge o mecanismo inovador de
Jeremy Bentham, o Panóptico, que Foucault descreve em Vigiar e Punir: “na periferia
uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se
abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma
atravessando toda a espessura da construção” (1979: 166). Na estrutura de Bentham,
32
idealizada no século XVIII, os detentores do poder procuram ver tudo, ininterruptamente,
e sem serem vistos. Induz-se no indivíduo vigiado um estado permanente de visibilidade:
trata-se de um “estado consciente e permanente (…) que assegura o funcionamento
automático do poder” (idem). Essa vigilância, de tão ininterrupta, torna-se
despersonalizada: mais do que o indivíduo detentor do poder ser o vigilante, é a própria
arquitetura que parece responsável pelo controlo. Como diz Foucault, “quem está
submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações
de poder” (idem: 168). Reforcemos: quem está submetido a um local fechado, em que o
código de “ideias corretas” está definido, talvez se deixe mais facilmente dominar por
elas, deixando que se instituam como suas.
Em Jerusalém, na ausência de comportamentos assumidos pelos detentores do
poder como saudáveis, é preciso fechar os prevaricadores num ambiente hermético, onde
sejam estimulados comportamentos tidos como corretos. O mesmo se passa com Ludvik:
perante a identificação, ainda que errada, da personagem enquanto trotskista, Ludvik é
enviado para um quartel onde, como já vimos, existem “aulas de educação política” e
uma permanente “penumbra de despersonalização”.
O que é um cárcere bem sucedido? Que procedimentos devem ser adotados para
trazer os “doentes da cabeça”, designação dada a Mylia, de volta a um estado pleno, que
lhes permita viver o status quo, sem grande resistência?
Certamente ele [o internamento] terá de início a função que se confiava aos hospitais no fim do
século XVIII. Permitir a descoberta da verdade da doença mental, afastar tudo aquilo que, no meio
do doente, possa mascará−la, confundi−la, dar−lhe formas aberrantes, alimentá−la e também
estimulá−la. Mais ainda que um lugar de desvelamento, o hospital (…) é um lugar de confronto.
A loucura, vontade perturbada, paixão pervertida, deve aí encontrar uma vontade reta e paixões
ortodoxas. (Foucault 1979: 70)
Procura-se a ortodoxia, um pensamento “limpo” de ideias distantes da “vontade
reta” imposta, e que possa criar problemas. Não parece existir nenhuma patologia de
ordem física com Ludvik ou Mylia. Contudo, mais do que o corpo funcionar, importa que
as ideias que o coordenam sejam as “corretas”. Como diz Tavares, “o que importa não é
apenas que um indivíduo sobreviva, mas que a felicidade do indivíduo sobreviva, se
mantenha. Saúde vista assim como um sinónimo de bem existir, eu diria: de bem não
morrer” (2013a: 298).
33
Os propósitos de Busbeck podem ser questionáveis. Pretende que Mylia se cure e
consiga “bem não morrer”, ou pretende ver-se livre de um comportamento instável que
se tornou num problema?
Ora, os propósitos do manicómio, expressos nas palavras do seu médico-gestor,
Gomperz, são muito claros: “era uma casa feita para eliminar mistérios, como dizia o
médico-gestor Gomperz. Procurara-se simplificar tanto os procedimentos como as
coisas” (Tavares 2005: 103). Vêem-se aqui resquícios da descrição foucaldiana de
manicómio: a tentativa de limar as arestas à própria existência, tornar a “vontade reta”,
as “paixões ortodoxas”. Citemos o narrador: “o que era excessivo transformava-se em
alvo médico: tentava eliminar-se essa coisa, pôr de fora, colocá-la para além desse
arredondamento” (105). Como refere Bordini, no Georg Rosenberg “há um processo de
imposição de uma determinada convencionalidade como se esta fosse racional, ou
melhor, como se esta fosse a verdade, uma instância total da qual não se pode escapar”
(2014: 72).
Esse arredondamento existencial relembra a obra kunderiana, e os episódios de
regimes totalitaristas nela presentes. Asif diz-nos que “how power deprives individual of
identity and freedom constitutes Kundera’s fundamental thematic obsession” (2014: 172).
Parece difícil fazer a mesma afirmação sobre a globalidade de uma obra tão heterogénea
quanto a de Gonçalo M. Tavares, mas Jerusalém convida a reparar na presença de uma
mesma luta pela individualidade. Mais adiante na narrativa, aliás, descreve-se uma fuga
do Georg Rosenberg por parte de Mylia, e do seu namorado, Ernst:
Mylia e Ernst, contentes com o anonimato no meio da confusão e com a sensação de que nada
interrompiam com a sua fuga. Não eram assim tão loucos, nem tão doentes: não perturbavam a
cidade. Sentados no café sorriam um para o outro. Estavam no mundo e ninguém reparava neles:
eis a alegria. (…) A porta aberta do café deixava entrar um frio desagradável, mas que divertia
aquele casal de namorados. Há quanto tempo não havia uma interferência da temperatura?
(Tavares 2005: 188)
Mylia e Ernst rejubilam, longe do Georg Rosenberg, longe da vigilância
permanente, como se lhes tivessem devolvido o direito aos gestos, à existência. O direito
à não ortodoxia. O frio que surge pela porta aberta do café “divertia” o casal: a alegria da
interferência externa, em quem se habituou a viver num ambiente altamente controlado.
Existe vento, heterogeneidade e ideias diversas.
34
Também Ludvik, no quartel para o qual é enviado por ideias discordantes do
regime vigente, relata um ambiente que procura uma aculturação socialista. Mais do que
a coerção, os responsáveis procuram o isolamento, para impedir que as ideias contagiem
outros. Os reclusos participam em atividades de culto à ideologia, como se os
responsáveis procurassem criar a ideia nas cabeças dos capturados:
Ainda que nos considerassem unanimemente inimigos confirmados do regime, todas as formas de
vida pública corrente nas colectividades socialistas eram praticadas no quartel; nós, inimigos do
regime, organizávamos reuniões improvisadas de dez minutos sob o controlo do comissário
político, participávamos diariamente em conversas sobre temas políticos, tínhamos a
responsabilidade dos jornais de parede, em que colávamos fotografias de políticos socialistas
enfeitadas à mão com palavras de ordem, sobre o futuro radioso. (Kundera 1967: 55)
Também os responsáveis do quartel meditam sobre o que Gomperz perguntava
aos seus doentes: “sabes em que deves pensar?”. Se Gomperz dá um passo mais
declarado, tentando dirigir o pensamento dos internados (“como o professor de uma
disciplina, como a matemática ou a gramática, fazia uma pergunta concreta sobre um
determinado conteúdo” (Tavares 2005: 105)), os responsáveis pelo quartel estabelecem
atividades de culto ao socialismo, como se assim fosse possível colocar as ideias do
regime na cabeça dos intervenientes.
Em Asylums: Essays on the condition of the social situation of mental patients and
other inmates, Goffman aclara:
He need not constantly look over his shoulder to see if criticism or other sanctions are coming.
(…) In a total institution, however, minute segments of a person's line of activity may be subjected
to regulations and judgments by staff; the inmate's life is penetrated by constant sanctioning
interaction from above, especially during the initial period of stay before the inmate accepts the
regulations unthinkingly. Each specification robs the individual of an opportunity to balance his
needs and objectives in a personally efficient way and opens up his line of action to sanctions. The
autonomy of the act itself is violated. Although this process of social control is in effect in all
organized society, we tend to forget how detailed and closely restrictive it can become in total
institutions. (1961: 38)
Como diz Goffman, a vida dos integrados no sistema carcerário é invadida por
atos impostos, na tentativa, pelos responsáveis do regime, de que os encarcerados se
tornem voluntários. Os exilados no quartel dedicam-se a atividades forçadas de louvor
35
aos líderes comunistas, até que este louvor suceda de forma voluntária. Gomperz procura
controlar os pensamentos dos internados no Georg Rosenberg, até que estes cheguem ao
que “devem pensar” autonomamente. Para os seus responsáveis, as instituições
funcionam como uma luz que alumia um caminho mais equilibrado, “saudável”.
Contudo, o receio do crescimento de ideias diversas, ou das “velocidades
diferentes”, de que falava Tavares, existe nos dois espaços de reclusão: “todos os quinze
dias rapavam-nos a cabeça com medo de que, com os cabelos, nos nascesse alguma
segurança deslocada” (Kundera 1967: 65). É o “arredondamento da existência” de que
fala Jerusalém. Rapam-se os cabelos e as ideias. Promove-se o uso de uniformes e de
ideias comuns, para esterilizar contornos mais perigosos do pensamento.
Ambos os romances descrevem uma relação amorosa que, por ser vivida em
clausura, assume contornos de proibição. Kundera, ao falar da vida no quartel de Ostrava,
relata as consequências do cárcere: “a tristeza que emanava do horizonte miserável da
nossa vida amorosa, todos ou quase todos a conhecíamos” (idem: 66). Se alguns tentavam
“escapar-lhe para as profundezas meditativas do seu foro interior”, outros “completavam
a sua cínica caça às pegas com o mais sentimental dos romantismos”, e outros ainda
“tinham em casa um amor que, à força de reminiscência concentrada, ganhava o brilho
mais resplandecente”, ou, por fim, alguns que “sonhavam em segredo que a rapariga que
apanharam já tonta num qualquer café nutria por eles um amor sagrado” (ibidem).
Talvez a possibilidade de períodos de evasão do quartel, em que os reclusos se
procuram a vida boémia, que choca contra os trâmites apertados da vivência do cárcere,
tenha mudado também a vivência da paixão comparativamente a Jerusalém. Ou, pelo
contrário, talvez os curtos períodos de não escrutínio contrastem com a permanente torre
panóptica erigida sobre os muros do Georg Rosenberg. Nessa vigilância, privilegia-se o
“fim das grades, fim das correntes, fim das fechaduras pesadas” (Foucault 1979: 167).
Talvez essa ilusão de não vigilância tenha levado Mylia e Ernst a um comportamento que
Gomperz descreve assim: “foi isto: a sua esposa Mylia e um outro paciente. Fizeram-no.
À frente de outros doentes” (Tavares 2005: 109). É esta a primeira referência que temos
ao caso de Mylia e Ernst, que daí em diante se desenvolve durante toda a narrativa do
manicómio. Essa aspereza contrasta com a forma como Ludvik conhece Lucia, quando
deambula sozinho pela periferia de Ostrava, num dos dias de folga do quartel:
Foi então que vi Lúcia pela primeira vez. Ela avançava na minha direcção; ia entrar no pátio do
cinema; porque não terei continuado o meu caminho ao cruzar-me com ela? Terá sido pela estranha
36
ociosidade do meu deambular? Terá sido a luz insólita do pátio naquele fim de tarde que me
demorou de impediu de volta à rua? Ou será que foi o ar de Lúcia? (…) Não sei. A verdade é que
tinha ficado pregado ao chão a olhar a rapariga (…) Sim, era sem dúvida essa lentidão de Lúcia
que me tinha de tal modo encantado, lentidão donde irradiava o sentimento resignado de que não
há fim que mereça que nos precipitemos e que era inútil estender as mãos impacientes para
qualquer coisa. (Kundera 1967: 68)
A abordagem crua de Jerusalém contrasta com um encantamento quase idílico. A
lentidão de Lúcia “irradia um sentimento” e de repente o pátio é dono de uma “luz
insólita”. Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso, fala sobre o
momento em que este súbito encantamento toma conta da realidade. A melancolia que
Ludvik sente, a caminhada absorta, dá origem a um “host of perceptions suddenly come
together to form a dazzling (…) the weather, the season, the light, the boulevard, (…) all
held within what already has its vocation as memory: a scene, in short, the hieroglyph of
kindliness (…), the good humor of desire” (1990: 23). O próprio narrador parece ter
consciência desse encantamento a posteriori. Talvez o pátio não brilhasse assim tanto,
talvez a memória mude a perceção dos acontecimentos: “bem sei que o amor tende a criar
a sua própria lenda, a mitificar depois os seus inícios” (Kundera 1967: 69).
Veja-se como Ludvik, sem dar conta, passa a incluir-se numa das categorias que
tinha definido para explicar a vivência amorosa dos prisioneiros no quartel: “a partir dessa
noite, tudo em mim se transformou; eu estava de novo habitado; subitamente alguém me
tinha arrumado como um quarto” (idem: 72). Tendo Ludvik conhecido Lúcia num dia,
para não mais a ver, esta descrição parece concordante com a forma como categorizava
alguns dos seus colegas, como já foi dito: “sonhavam em segredo que a rapariga que
apanharam já tonta num qualquer café nutria por eles um amor sagrado”.
O amor de Ernst e Mylia tem uma apresentação consideravelmente mais crua, e
resulta no nascimento de uma criança, que Busbeck acaba por adotar. Também isso é
revelador de como o manicómio, através da vigilância permamente, procura controlar
todos os eventos, procurando eliminar os que não se coadunam com o “arredondamento
da existência”. É assim que Gomperz volta a reunir com Busbeck para lhe dar a notícia
da gravidez da sua mulher: “Uma coisa destas não pode acontecer nesta instituição. O que
lhe tenho a dizer é isto: a sua esposa, Mylia, está grávida” (Tavares 2005: 118).
Além do evidente escrutínio de todos os passos de Mylia, subjacente a este tipo
de comunicações, evidenciando o carácter totalitário da instituição, assiste-se a uma
obliteração do direito à privacidade. Como diz Foucault, “poder a cada instante vigiar os
37
comportamentos de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo” (1979: 123), é o objetivo de uma
“disciplina que fabrica corpos submissos” (119).
Torna-se curioso verificar que o poder tem um espaço consignado onde funciona
e, para lá de uma barreira bem identificada, perde propriedades. Pode ser um país (veja-
se o “Airstrip One” orwelliano, em 1984), uma região (veja-se Londres de Huxley, em
Brave New World), ou um edifício. É assim que, em Jerusalém, Ernst e Mylia rejubilam
no ambiente não controlado no dia em que fogem do manicómio. É assim que, num
episódio que relembra a existência de uma barreira física que marca o começo e o fim do
poder, Lúcia se abeira do gradeamento do quartel, num dia que os prisioneiros, Ludvik
incluído, faziam exercícios no exterior.
Só então a vi. Era Lúcia. Encontrava-se de pé contra o gradeamento, no seu velho e gasto casaco
castanho (…), tinha calçado os elegantes sapatos negros de salto alto (meu presente). Ela
observava-nos, imóvel. Com um interesse crescente, os soldados comentavam o seu ar paciente e
punham nos seus comentários todo o desespero sexual de homens mantidos num celibato forçado.
Mesmo o suboficial acabou por dar conta da distraída efervescência dos soldados e, bem
rapidamente, da sua causa; enfureceu-se perante a sua própria impotência: ele não podia proibir a
rapariga de estar ali: fora da rede de arame estendia-se uma área de relativa liberdade que escapava
às suas injunções. (Kundera 1967: 103)
Fora da jurisdição da torre panóptica estende-se um novo mundo: um mundo “fora
da rede de arame”, um mundo em que Mylia e Ernst, no dia da fuga, estão “contentes com
o anonimato” (Tavares 2005: 127). No dia em que Lúcia fura o hermetismo do quartel
em Ostrava, Ludvik relata: “beijámo-nos através de uma malha de rede” (Kundera 1967:
103). Como se a relação entre ambos fosse uma agressão ao panóptico no seu ponto fraco:
os próprios limites geográficos. Ninguém pune Ludvik, ninguém escorraça Lúcia que, no
seu pleno direito, está fora do gradeamento do quartel. Ernst e Mylia, como já vimos,
tornando a sua relação ostensiva ao limite, dentro das paredes do Georg Rosenberg, são
expostos e punidos.
Tanto no Georg Rosenberg como no quartel de Ostrava, o apelo do exterior parece
assumir um papel fundamental no equilíbrio dos reclusos. Se n’A Brincadeira, como já
vimos, as saídas são periódicas, servindo como pretexto para comportamentos excessivos,
que contrabalançam a existência monótona e a “penumbra de despersonalização” do
quartel, em Jerusalém os doentes são mantidos em vigilância permanente. Não há, sequer,
registo de visitantes. Não sabemos se tal sucede por o marido da protagonista, Mylia, não
38
ter interesse em vê-la (“o seu ex-marido Theodor Busbeck pediu-me para lhe dizer que
aguarda as suas melhoras e deseja-as, mas que não a quer ver mais” (Tavares 2005: 174),
diz Gomperz a Mylia), se por não ser prática institucional. Contudo, o apelo do exterior
(cf. Kesey 1962) parece vir através das cartas que vão chegando aos internados:
Quando o correio chegava, os homens interrompiam os seus percursos mais ou menos
descontrolados, e rapidamente tentavam chegar aos envelopes, provocando depois os que nada
haviam recebido, numa crueldade que lá dentro era aceite como normal. (…) Uma carta era o
instrumento ideal para interromper a ordem e a limpeza geral do Georg Rosenberg: como um aceno
de mão do exterior, cada carta tornava-se num recuo do louco em direcção à sua vida passada;
mesmo que na carta se falasse do futuro o que estava em jogo era um processo de memória: lembra-
te que já estiveste cá fora (Tavares 2005: 176)
O apelo do exterior, em Kundera, surge através da presença de Lúcia na vida de
Ludvik: por vezes nas saídas do quartel, noutras através de cartas, ou mesmo através da
presença tímida junto ao gradeamento. Em Jerusalém o “aceno de mão do exterior” é
mais controlado. Não há relatos de correspondência vasculhada, ao contrário do que
acontece em A Brincadeira, onde o próprio Ludvik é por isso feito prisioneiro. Por outro
lado, as saídas dos reclusos não parecem ser um objetivo concreto das personagens
encarceradas ou, pelo menos, essa possibilidade é descrita com pouco entusiasmo.
Se “a disciplina às vezes exige a cerca” (Foucault 1979: 122), parece-nos lógico
que essa cerca não seja igual para militares ou para loucos. Esse “local heterogéneo a
todos os outros e fechado em si mesmo” (ibidem), deve ter em atenção que o “princípio
da clausura não é constante, nem indispensável, nem suficiente nos aparelhos
disciplinares” (ibidem). Dessa forma, a vivência desse encarceramento nas duas obras
parece ter características distintas. Atente-se, contudo, nas semelhanças:
Here is a significant way in which total institutions differ: many, like progressive mental hospitals,
merchant ships, TB sanitaria, and brainwashing camps, offer the inmate an opportunity to live up
to a model of conduct that is at once ideal and staff-sponsored model felt by its advocates to be in
the best interests of the very persons to whom it is applied; other total institutions, like some
concentration camps and some prisons, do not officially sponsor an ideal that the inmate is
expected to incorporate. (Goffman 1961: 64)
O “staff-sponsored model” de que fala Goffman é uma realidade inequívoca, tanto
no quartel de Ostrava, como no Georg Rosenberg. Esses locais são o que Renata Quintella
39
de Oliveira, em Um Olhar Perverso: Percorrendo o Reino de Gonçalo M. Tavares apelida
de “espaço(s) da normalização e da nulificação do ser” (2016: 234). Ainda que as
diferenças nos procedimentos sejam evidentes, existe um modelo a seguir: ambas são
instituições em que se cuida do pensamento, e em que se acredita que os reclusos sairão
preparados para uma vida melhor no exterior.
40
2.3. – Corpo, domínio e castigo: do “corpo simbólico” ao “corpo
biológico”
Falar do corpo é, antes de mais, falar de dentro do corpo. A análise revela uma
proximidade do objeto de estudo impossível de contornar: afinal, todas as análises partem
do próprio corpo. Como diz Paulo Cunha e Silva, em O Lugar do Corpo: Elementos para
uma cartografia fractal, sobre as várias possibilidades de estudo do corpo “ao traduzir-
se na aquisição de várias superfícies, permite uma recuperação de volume que fornece ao
corpo uma espécie de profundidade estratigráfica, uma profundidade que resulta da
acumulação de várias superfícies, várias imagens” (1995: 21). As “várias superfícies”
podem ser entendidas como diversas possibilidades de análise de um corpo.
Distingamos, então, duas possibilidades de estudo do corpo: um corpo simbólico,
a que Cunha e Silva atribui a possibilidade de “aquisição de várias superfícies”, e um
“corpo biológico”, em que as funções biológicas e motoras se evidenciam, oferecendo-se
a um estudo mais objetivo. A “profundidade estratigráfica”, de que fala Cunha e Silva,
parece ser vivenciada essencialmente num corpo simbólico, edificado por construções
culturais e temporais. O corpo biológico talvez seja condição para a existência de um
corpo simbólico, de várias camadas estratigráficas: “antes das necessidades primárias
(alimentação, abrigo, etc.) surge a necessidade do piso zero: ter um corpo que se
reconhece; em volta, para o mundo e depois para si próprio: eu estou aqui, pelo menos
tenho um corpo” (Tavares 2013a: 183).
Em Gonçalo M. Tavares as evidências de um “corpo biológico” parecem maiores
do que em Milan Kundera. Expliquemos melhor o uso da expressão “corpo biológico”:
são comuns, por exemplo, as personagens que correm ou se movem com particular vigor.
O corpo é frequentemente descrito enquanto instrumento produtor de movimento, e as
ações da narrativa que envolvem partes anatómicas concretas são recorrentes. Em Matteo
Perdeu o Emprego é dito que “Aaronson circulava – como um insecto obcecado – em
torno de uma rotunda” (Tavares 2010a: 9). Em A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-
Mau-Olhado, “a mãe sem cabeça corre no quintal e várias galinhas afastam-se” (2017a:
9). São frequentes movimentos vigorosos, ou ações que envolvem amputações ou cortes.
41
(e. g. A Máquina de Joseph Walser, com a amputação da mão do protagonista), ou em
que a decadência física é descrita com particular detalhe (e. g. Aprender a rezar na Era
da Técnica, e a doença de Lenz). Em Kundera, o corpo não parece assumir tanto
protagonismo. Em A Insustentável Leveza do Ser, Kundera fala dos “longos e frequentes
momentos em frente ao espelho” de Tereza:
Era o desejo de não ser um corpo como os outros corpos e de ver subir à superfície do rosto a
tripulação da alma vinda do ventre do navio. E isso não era fácil porque a alma, triste, receosa,
amedrontada, escondia-se bem lá no fundo das suas vísceras e tinha vergonha de se mostrar. (1984:
63)
O tempo ao espelho é, por excelência, o período de análise do corpo enquanto
matéria. Neste caso, o corpo parece surgir não enquanto produtor de movimento, mas
enquanto “ventre do navio” da alma. É um corpo simbólico, em que as “vísceras” servem
de esconderijo, e não são cortadas, como a cabeça de A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-
do-Mau-Olhado, e muito menos são protagonistas de corrida, como as pernas de
Aaronson, em Matteo Perdeu o Emprego. Em A Imortalidade, a protagonista, Agnès,
reflete sobre um corpo que envelhece:
Agnès considerava com inveja os homens idosos; tinha a impressão de que eles envelheciam de
uma maneira diferente: o corpo do seu pai transformava-se imperceptivelmente na sua própria
sombra, desmaterializava-se, continuando neste mundo apenas como uma alma
despreocupadamente incarnada. (Kundera 1990: 101)
O corpo é a sombra do envelhecimento do pai de Agnès, ou seja, o corpo
desmaterializa-se, perde relevância com o passar dos anos. Relevante é a velhice enquanto
símbolo da passagem dos anos, porque a matéria transforma-se “na sua própria sombra”.
Em Tavares o corpo parece ter uma componente motora bem mais evidente:
Pergunta Wittgenstein (pensar é perguntar): “Poderá uma máquina pensar? – Poderia uma máquina
ter dores? A resposta pode obrigar-nos a procurar máquinas com cartas características, mas a
resposta pode afinal ser mais simples: será o corpo humano “uma tal máquina?” Responde
Wittgenstein: o corpo humano é, de facto, “o que se aproxima mais de ser uma tal máquina.”
Máquina que tem dores e pensa. (Tavares 2005: 104)
42
Em Tavares o corpo tem dores e pensa mas, antes disso, é “o que mais se aproxima
de ser uma tal máquina”. É, no fundo, o que o autor diz ser um “corpo com anatomia fixa
e definida, separado do mundo por espessas fronteiras-linhas, e diferenciável, ele próprio,
em órgãos autónomos com funções específicas” (Tavares apud Studart, 2012: 26). Em
Kundera, talvez o corpo, primariamente, pense. Como é dito na narração do checo, é um
corpo que se “desmaterializa”: serve como instrumento e objeto reflexivo. Num dos
apartes de A Insustentável Leveza do Ser, o narrador aclara:
Como já disse, as personagens não nascem de um corpo materno como os seres vivos nascem, mas
de uma situação, de uma frase, de uma metáfora que contém em germe uma possibilidade humana
fundamental, que o autor pensa que nunca ninguém descobrira antes dele ou então que nunca
ninguém tratara de modo a dizer algo de essencial sobre ela. Mas não se costuma dizer que um
autor não pode falar senão de si próprio? (1984: 275)
Na obra kunderiana as personagens parecem nascer “de uma situação, de uma
frase, de uma metáfora”: o corpo é criado com base nessa metáfora. No fundo, a ideia
antecede o corpo, é responsável pelo seu surgimento. Se em Tavares o princípio parece
tantas vezes ser o movimento e a corporalidade, em Kundera estes existem meramente
em função da “possibilidade humana fundamental”, de que fala o narrador. Isto parece
coincidir com o que diz Kundera em A Cortina: “[o romancista] é um descobridor que,
tacteando, se força por desvendar um aspecto desconhecido da existência” (2005: 170).
Tateando, Kundera reflete e estabelece um enredo em que as personagens parecem
dependentes de uma ideia prévia. Daí que o corpo raramente seja descrito como
possibilidade mecânica. Uma “máquina que tem dores e pensa”, na conceção tavariana
anteriormente citada. Em O Livro do Riso e do Esquecimento, o autor reflete sobre a
“máquina que pensa”:
Desde James Joyce, disse ele, que já sabemos que a maior aventura da nossa vida é a ausência de
aventuras. Ulisses, que combateu em Tróia, voltava sulcando os mares, pilotava ele próprio o seu
barco, tinha uma amante em cada ilha, não, não é essa a nossa vida. A odisseia de Homero
transportou-se para dentro, interiorizou-se. As ilhas, os mares, as sereias que nos seduzem, Ítaca
que nos chama, hoje são apenas as vozes do nosso ser interior. (Kundera 1979: 91)
43
A odisseia “interiorizou-se”, e o corpo deixou de ser um instrumento de vivência
da aventura. Serve meramente para transportar as “vozes do nosso ser interior”, como diz
o narrador. O corpo surge como veículo de ideias.
Aprender a rezar na Era da Técnica é um livro no qual o “corpo biológico” de
Tavares surge como paradigma. O romance principia com Lenz a ser levado ao quarto da
empregada “mais bonita da casa” e a receber uma ordem do pai: “agora vais fazê-la, aqui,
à minha frente” (2007: 11). O verbo “fazer” não é escolhido ao acaso: remete para a ação.
O corpo de Lenz aprende, pela mão do pai, a executar. Era “como se [a empregada] não
estivesse feita” (ibidem) antes de Lenz seguir as ordens do pai, com “gestos de um
trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado” (12).
Subjugado ao poder do pai, o adolescente Lenz não parece ter grande alternativa que não
obedecer, de forma mecânica, a uma ordem.
Em A Insustentável Leveza do Ser, Tomas é protagonista de diversos encontros
amorosos, sem que isso pareça prejudicar a sua afeição pela mulher, Tereza. Ainda que
esta tomada de posição seja explicada de forma breve por Kundera, muito no começo da
narrativa (“Tomas pensava consigo próprio que ir para a cama com uma mulher e dormir
com ela são duas paixões não só diferentes, como quase contraditórias. O amor não se
manifesta através do desejo de fazer amor (…) mas através do desejo de partilhar o sono”
(1984: 23)), a explicação dada mais adiante expõe melhor a posição de Tomas:
O que é que procurava em todas essas mulheres? O que é que o atraía? (…) Há sempre uma
pequena percentagem de inimaginável. Quando via uma mulher vestida, embora, evidentemente,
pudesse fazer mais ou menos uma ideia de como seria depois de despida (…), restava sempre um
pequeno intervalo de inimaginável entre a inexactidão da ideia e a precisão da realidade, e era
precisamente essa lacuna que lhe tirava o sossego (…) Só na sexualidade é que o milionésimo de
diferente aparece como uma coisa preciosa, porque não é publicamente acessível e tem de ser
conquistado. (…) Não era, portanto, de forma nenhuma, o desejo da volúpia (…), mas o desejo de
apoderar-se do mundo (…) que o fazia andar atrás de mulheres. (idem: 250)
Tomas não cede ao “desejo de volúpia”; o instinto carnal pouco lhe parece dizer
na procura incessante de mulheres diferentes. Quer “apoderar-se do mundo”, alcançar o
ínfimo percentual que não consta do mundo “publicamente acessível”. Tomas procura,
então, o poder que só atinge o preenchimento da “lacuna que lhe tirava o sossego”.
A comparação da posição de Tomas, pragmática e de um adulto, com a de Lenz,
ainda imberbe e subjugado pelas ordens do pai, parece, assim, pouco justa. Contudo, o
44
narrador também descreve episódios da vida sexual de Lenz, relatando “o descontrolo
que a excitação sexual lhe provocava” (2011: 194). Aliás, o pragmatismo e a precisão de
Lenz parecem mesmo conhecer alguma hesitação quando confrontados com “tudo o que
poderia fazer, quando excitado sexualmente”. Quando confrontado com esta “força
paralela à sua vontade”, Lenz parece desconfortável com o que se assume não como “um
fazer, mas o oposto: algo era feito sobre ele” (ibidem). Lenz é uma personagem
controladora que nestes contextos parece perder algum do seu poder:
Eis pois o segundo mundo onde se sentia entrar quando excitado: um mundo que não compreendia
nem controlava. Enojava-o a surpresa que os elementos não controlados do mundo provocavam
no corpo e, deste modo, olhava para a sua própria excitação e desordem moral (…) da mesma
maneira que da janela olhava para uma tempestade. (…) Desprezava as pessoas que participavam
nesses seus momentos de desordem – a sua própria mulher e os homens invulgares que ele puxava
para a posição de observadores ou participantes (…) Apesar da coacção física e psicológica ser
sua, (…) Lenz olhava para os participantes e sentia-se alguém que obedeceu (idem: 196)
A sua “obsessão pelo domínio” (ibidem) parece condicionada pela entrada em
cena de um agente visceral, biológico, que o controla. Ser, de súbito, dominado pelo
próprio corpo, atemoriza-o. Fá-lo protagonizar atos e rodear-se de pessoas que
“claramente não eram do seu mundo físico e mental – homens ou mulheres rudes,
prostitutas, pedintes, ou até loucos” (idem: 195).
Ainda que Tomas protagonize também uma fixação sexual que nunca se esbate ao
longo da narrativa, certas reflexões, suas e do narrador, fazem parecer essa obstinação
assente em bases diferentes. Tomas reflete sobre a sua atividade, e nunca parece encontrar
motivos suficientes para se desfazer dos encontros ocasionais com mulheres.
Mas como? Tomas não podia acabar de vez com as suas amizades eróticas? Não, isso seria o seu
fim. (…) Ninguém melhor do que ele sabia que essas aventuras não punham Tereza minimamente
em questão. Privar-se delas, porquê? Era uma eventualidade que lhe parecia tão absurda como
renunciar a ir ao futebol. (1984: 31)
A posição de Tomas em relação a Tereza e a outras mulheres, tema central da
narrativa, parece sempre alicerçada numa posição teórica sólida, explorada ao limite pelo
narrador, que afirma: “O romance não é uma confissão de autor, mas uma exploração do
que a vida humana é nesta armadilha em que o mundo se converteu” (idem: 275). O corpo
45
biológico das personagens de Tavares expõe a sua própria fragilidade em lesões psíquicas
e físicas. Por vezes, a sua exatidão e pragmatismo só se parecem deixar vencer pela
“vontade paralela” que a lascívia e a corporalidade trazem. Muito diferente parece ser o
corpo de Kundera, de construção mais concetual e de simbolismos permanentes.
O facto de Lenz, protagonista de Aprender a rezar na Era da Técnica, ser
cirurgião durante parte da narrativa permite que sejam tecidas inúmeras considerações
sobre o corpo. O narrador descreve diversas situações que exaltam o poder da mão, o
mecanismo dos seus atos, ou em que esta sofre algum tipo de lesão (e. g. A Máquina de
Joseph Walser). Lenz evidencia-se dos demais, numa fase inicial, pelas intervenções que
realiza na sala de operações, recorrendo à sua mão direita:
Na sua mão direita o bisturi brilha; há um mais na combinação do instrumento médico com a mão
de Lenz que provoca nos assistentes de qualquer operação o direcionar do olhar em exclusivo para
aquela mão direita. (…) Alguns chegavam mesmo a falar de sessões de hipnotismo: a absoluta e
convincente lentidão da mão direita de Lenz. (…) O bisturi dentro do organismo procurava
reinstalar uma ordem que fora perdida (…) anunciava um novo Reino: recompunha as estradas do
organismo. (Tavares 2011: 27)
A mão direita de Lenz, que controla o bisturi, “anuncia um novo Reino” através
das alterações fisiológicas que promove num organismo doente, que padece de uma
“anarquia celular, uma desordem, um desrespeito interno de normas” (idem: 27). Lenz
reinstala a homeostasia num organismo que, a certo momento, foge da norma. A mão
direita de Lenz “era a linha recta, o endireitar do desvio” (29), “combatia a explosão e
reinstalava a precisão e a ordem” (32). Como refere Renata Quintella de Oliveira, “sua
mão direita, aquela que segura o bisturi, opera com precisão, (…) a precisão de uma
máquina” (2014: 283). A sua obsessão pelo domínio leva a que Lenz se torne, durante o
procedimento, “num respeitador das leis da cidade e das convicções gerais sobre bem e
mal” (Tavares 2011: 31), mesmo que sejam relatados outros episódios em que sente
prazer “em humilhar prostitutas, mulheres fracas ou adolescentes, pedintes que lhe batiam
à porta ou a própria mulher” (32). Lenz procura, essencialmente, a execução de uma tarefa
maquinal, reestabelecendo a ordem da forma que lhe compete, sem se sentir
especialmente incumbido de uma missão benigna: “O corpo define-se em confronto com
a técnica. A técnica define-se em confronto com o corpo” (Eiras 2013: 124).
Também Tomas, protagonista de A Insustentável Leveza do Ser, “era considerado
o melhor cirurgião do hospital” (1984: 229). As semelhanças com a narrativa de Tavares
46
ficam por aqui, porque os detalhes da relação de Tomas com a sua profissão ou as suas
motivações não são descritos. É descrito, contudo, o momento em que Tomas abandona
o posto no hospital. O mesmo sucede com Lenz, que abandona o hospital para se dedicar
à política: “agora, nas suas decisões, visava salvar por completo não um organismo ou
uma existência, mas sim, embora só parcialmente, as esperanças e os desejos de cada
cidadão” (2011: 161).
Se Lenz o faz de forma deliberada, Tomas é empurrado para fora da profissão por
motivos políticos, como mais adiante será explicado. Em Kundera, o narrador reflete
sobre os regimes comunistas da Europa Central (uma das suas obsessões temáticas), num
registo que mistura os seus apartes à narrativa com o pensamento de Tomas, para dizer
que “Tomas um dia passou para o papel as suas reflexões (…) e mandou-as para um
semanário” (Kundera 1984: 226). Depois de o texto de Tomas ter sido aceite e publicado,
é descrita a falta de satisfação da personagem, visto que “para modificar um pequeno
pormenor de sintaxe (…) tinham-lhe cortado tanto o texto que as suas reflexões ficavam
reduzidas a uma tese fundamental (demasiado esquemática e agressiva) e já não lhe
davam satisfação nenhuma” (ibidem).
Descreve-se assim, mais do que a ocupação territorial, a supressão da discussão
em liberdade (“Dois ou três meses mais tarde, os russos decidiram que discutir em
liberdade era uma coisa inadmissível numa província sua” (ibidem)), com consequências
diretas na vida de Tomas, meses mais tarde chamado pelo chefe do serviço. Este pede-
lhe que se retrate pelo artigo exposto naquela revista: “Não gostava mesmo de perdê-lo e
estou disposto a tudo para conservá-lo cá. Mas você tem de se retractar daquele seu
artigo” (idem: 227). Se Ludvik, em A Brincadeira, é encarcerado num quartel, com
Tomas, médico proeminente e homem da ciência, é tida outra abordagem: é-lhe pedido
pelas instituições que se retrate das suas ideias. As semelhanças, ainda assim, são
evidentes. Se Ludvik é vítima de uma interpretação errada das suas palavras, Tomas vê o
texto que envia ao semanário ser “cortado” e reduzido a “uma tese fundamental”.
Também a vida de Tomas, como a de Ludvik, é condicionada pelas instâncias
detentoras de poder. Tomas emprega-se numa clínica periférica de Praga, onde “não podia
operar e só fazia clínica geral” (ibidem: 233), naquilo que parece ser um
subaproveitamento das suas capacidades, como diz um dos seus chefes: “No Ministério,
toda a gente lamentava que um cirurgião da sua craveira estivesse reduzido a receitar
aspirinas num posto clínico dos subúrbios” (234). Esse mesmo homem propõe-lhe que
assine um texto escrito pelos seus responsáveis, no sentido de retomar as suas funções
47
como cirurgião: “Tomas leu-o e teve um choque. Era bem pior do que o que o seu antigo
chefe de serviço lhe exigira (…) Havia várias referências ao seu amor pela União
Soviética e à sua fidelidade ao Partido Comunista” (239). Tomas recusa, e para pôr fim
àquela perseguição, demite-se: “Tomas (…) não tinha a certeza de que aquela fosse a
melhor decisão mas, sentindo-se já ligado à sua resolução (…), obstinou-se nela e tornou-
se lavador de janelas” (241).
Lenz e Tomas abandonam a mesma actividade profissional e a relação do poder
com esse abandono, em ambos os casos, parece inequívoca. Tomas é vítima de um texto
que assinou para um semanário, Lenz abandona a sua posição de médico porque
ambiciona fazer parte de uma estrutura partidária.
Ainda que a mudança pareça radical, para Lenz trata-se apenas de uma
transferência de capacidades:
A capacidade dos aparelhos do seu gabinete médico para detectar a decadência das células
transferira-se, com naturalidade, dessa escala mínima para a escala normal da rua, e das máquinas
para o seu olho. A desordem moral e física dos habitantes comuns assustava-o da mesma maneira
profissional com que a falência física de uma célula, antes, o assustava nas consultas no hospital.
(Tavares 2011: 161)
Luís Mourão comenta que Lenz passa “do exercício da medicina para a política
para que a sua afirmação não se faça sobre um de cada vez, mas sobre inúmeros
simultaneamente” (2008). A sua personalidade ambiciosa parece impulsionar esta súbita
mudança de ramo profissional. Lenz procura viver junto dos poderosos, onde possa
afirmar-se no “mais alto patamar do domínio”: “Buchmann quer o poder, sabe como
manobrar junto dos poderosos para o conseguir, sabe como convencer os fracos a dar-
lho” (ibidem), e isso é revelado em situações de intervenção mais local, como a imposição
da ordem celular, ou em situações de intervenção mais ampla, como a imposição da
ordem na cidade. O denominador comum é o desejo de poder e de domínio, em diferentes
situações e circunstâncias, mas que se encontra inevitavelmente presente. Como diz Júlia
Studart, em A Literatura de Gonçalo M. Tavares: investigação arqueológica e um
dançarino sutil nas esferas O Bairro e O Reino, “para Lenz Buchmann, na era da técnica,
não interessa de onde vem o poder, o importante é instaurar formas de poder” (2012: 52).
A cidade e o corpo parecem ser dois sistemas de caos reinante em que,
ocasionalmente, um agente responsável terá de intervir, impondo a regularidade
necessária. O agente responsável será diferente nos dois contextos, mas o seu
48
reconhecimento como agente máximo, operador de mudanças e conhecedor do equilíbrio,
parece semelhante. O caos é inevitável: sobra reconhecer ou ajustar o seu ponto de
equilíbrio. Sobre este assunto, Cunha e Silva diz mesmo que “o caos é uma manifestação
da vitalidade cardíaca” (1995: 211), ou seja, condição impreterível do sistema: nem todo
o caos é mau. Júlia Studart refere que “um conceito de corpo político, tanto na conceção
medieval quanto na moderna, pode ser pensado na organização da cidade, logo, das
nações, impondo regras à imagem do corpo” (2012: 235). Estes paralelos baseiam-se no
pressuposto de que tanto a cidade como o corpo constituem sistemas abertos, ou seja, um
conjunto de elementos em relação interdependente e em interação dinâmica. Tavares
escreve que “uma cidade define-se, de facto, pelos entendimentos, isto é: graças a
sincronizações temporárias, de discurso e acções” (2013a: 172).
Esta afirmação talvez pudesse ser feita, de igual maneira, sobre o corpo: se estas
sincronizações são “temporárias”, sem por isso quebrarem as regras de ação que fazem
da cidade um sistema, estamos perante um sistema caótico que se reorganiza em função
da ocorrência de eventos aleatórios. Ou seja, “o caos e a constatação das suas vantagens,
permitem-nos substituir o adágio popular «antes quebrar que torcer» por outro, bem mais
inteligente, antes torcer que quebrar” (Silva 1995: 219). Tanto no corpo como na cidade
a aleatoriedade e as disrupções ocasionais da sucessão previsível dos acontecimentos dão
lugar, quase sempre, a novas organizações: “antes torcer que quebrar”. E ainda que ambos
os sistemas tenham leis de ação com algum grau de previsibilidade, estas não são
fechadas, e muito menos estanques. A disrupção de cada um dos sistemas requer uma
ação que lhes promova nova situação de homeostasia, que evite a sua falência. Emerge,
então, o conceito de “caos determinista”:
E se esta franja de acaso na caracterização do estado inicial é praticamente comum a todos os
sistemas, muitos existem em que a “extrema sensibilidade às condições iniciais" transforma a
pequena imprecisão inicial numa grande indeterminação final. Fala-se, então, do "caos
determinista", expressão que em si mesma encerra uma solução de compromisso entre a
radicalidade de um novo paradiqma - o caos - e o respeito conservador pelas conquistas da ciência
- o determinismo. (Silva 1995: 143)
Podemos, então, afirmar que tanto os responsáveis políticos, posição que Lenz
ambiciona e que interfere diretamente com a vida profissional de Tomas, como os
médicos, profissão de ambos os protagonistas numa fase inicial da narrativa, têm como
missão tornar o “caos determinista”, da cidade e do corpo, menos caótico e mais próximo
49
do “determinismo” enunciado. É na fixação às “condições iniciais” que os sistemas
permanecem em equilíbrio, evitando eventos disruptores, e é a “desordem moral e física”,
que relata Tavares, que deve ser combatida pelos responsáveis pela cidade e pelo corpo.
Se diversas vezes é relatado como Lenz ataca o foco da doença com o seu bisturi, os
protagonistas de Kundera, Ludvik e Tomas, são tidos pela ordem vigente como emissores
de uma mensagem “doente”, que pode alterar as leis do sistema e que, em função disso,
devem ser combatidas, como uma doença. Relembremos o conceito de “velocidade
certa”, a que aludia Tavares em Atlas do Corpo e da Imaginação: “a Verdade é uma
velocidade. A Verdade passa por encontrar a velocidade certa da realidade, passa por
colocar a realidade a avançar a uma certa velocidade” (2013a: 121). Ou seja, o médico
procura a “velocidade certa” do corpo, e o político a “velocidade certa” da cidade.
Em Aprender a rezar na Era da Técnica, o fim do poder coincide com a
decadência do corpo. Na noite em que o Partido de Lenz ganha as eleições, este começa
a prestar mais atenção a um problema que já o aflige há algum tempo: “este abrandamento
da autovigilância, por se encontrar no papel de quem permanentemente ataca, terminara
naquela noite. (…) E por essa razão começou a medir as dores de cabeça que sentia. Eram,
de facto, de uma intensidade invulgar” (Tavares 2011: 252). Lenz acede às insuportáveis
dores de cabeça, depois de uma longa batalha legislativa em que o seu Partido triunfa: “a
posição (…) era, na noite de eleições vitoriosas, a do combatente que aceita descansar
porque os dias anteriores tinham sido duros” (253).
Quando se descreve o corpo de Lenz no pós-operatório, o relato da perda de um
poder que julgava conquistado começa também pela mão direita. A mão que controlava
o bisturi ou acenava às multidões simboliza o fim (o próprio capítulo intitula-se “A mão
perde o peso”): “Desvia, então, ligeiramente o pescoço (…) e vê Julia Liegnitz, que (…)
lhe segura com as duas mãos a sua mão direita, a sua poderosa mão direita, que de repente
lhe parece morta, um cadáver autónomo” (idem: 260). A mão direita, incapaz, assume o
carácter de símbolo da decadência de Lenz: é um “cadáver autónomo”, como se a sua
morte, por si só, fosse suficiente para decretar a impossibilidade de continuar a ser
poderoso. É um símbolo da “visibilidade acrescida sobre a motricidade como agente”
(1995: 258): a mão que instala a “ordem celular”, a mão que acena nos comícios do
Partido, assume-se agora como símbolo da impossibilidade de Lenz, doente: “A mão tem
o privilégio único de dar forma ao informe” (ibidem), e na narrativa, a mão direita de
Lenz é o símbolo dos cargos onde exerce o poder:
50
A ideia da mão associada ao poder está muito presente no romance, quando pensamos na
caracterização e na postura do personagem protagonista. Como cirurgião, a mão é fundamental,
pois através dela Lenz exerce a sua profissão, opera seus pacientes com precisão e eficácia. Quando
Lenz Buchmann entra para a política, a mão terá outra figuração: ela representará, nesse momento,
o homem público, que acena aos cidadãos (Oliveira 2014: 284).
É a doença que torna o corpo num agente passivo: “Lenz Buchamann tinha um
cancro. Ou com mais exactidão: ele deixara de ser proprietário, o cancro tinha-o a ele – o
poderoso Lenz estava transformado num objecto” (Tavares 2011: 273). A doença atira-o
para uma posição passiva sobre a evolução do seu corpo: “não tirava os olhos do seu
próprio corpo, das suas reacções, da sua evolução” (ibidem). Lenz deixa de ser um homem
respeitado e ativo na cidade para passar a ser um espetador de uma doença que conquista
terreno dentro do seu próprio corpo, da mesma forma que, páginas antes, Lenz
conquistava respeito e seguidores na cidade. “Há já duas semanas que Lenz não se levanta
da cama” (287), escreve Tavares. Simultaneamente, Lenz perde poder dentro da sua
própria casa, para a presença ininterrupta de Julia e Gustav Liegnitz que, pela necessidade
de Lenz, vão tomando conta do espaço:
A decadência física de Lenz Buchmann era assim acompanhada por uma presença cada vez mais
vigorosa e por uma força que se impunha a cada metro quadrado da casa – a presença dos dois
irmãos Liegnitz. Em suma, a família Liegnitz avançava. Noutras condições, e visto de longe, tal
sucessão de acontecimentos e a notória ocupação do território por parte da família Liegnitz podia
parecer uma invasão, uma conquista hostil. No entanto, tudo se passava com uma harmonia
invulgar. (267)
Lenz Buchmann é descrito, nos capítulos anteriores, como uma personagem
obcecada pelo domínio. Mas, ao perceber que “a sua debilidade física era notória (266),
assiste com alguma passividade à ocupação da sua casa.
Curioso é um dos últimos episódios relatados pelo narrador, em que assistimos à
“decadência de Lenz Buchmann [que] parece atingir seu ponto derradeiro neste momento
em que ele não é mais capaz de realizar uma atitude mínima de soberania individual”
(2014: 180). Buchmann recebe a visita de um homem “vestido à civil e [que] nada (...)
denunciava, a não ser (…) a cruz que trazia no lado exterior da roupa” (Tavares 2011:
365). Lenz parece desagradado com a situação, aliás, “só pensava no momento em que
ficaria a sós com Julia e a insultaria por aquele atrevimento estúpido” (idem: 368), de
trazer um padre que “estava ali para lhe dar a extrema-unção” (ibidem: 366). Depois de
51
diversas descrições da crescente irritação de Lenz, com as palavras de “um hipnotizado
que tenta hipnotizar” (368), Lenz pede a presença do sacerdote junto de si: “com um
pequeno gesto, deu a entender que queria que o sacerdote (…) se aproximasse” (377). O
plano era simples: Lenz “reunindo naquele momento todas as forças que tinha no interior
da sua boca, avançava com uma cuspidela” (370), que permitisse exprimir todo o seu
repúdio pela situação, quando as palavras já lhe faltavam.
O que de facto aconteceu foi que o cuspo não chegou a ser projectado; e que de dentro do seu
corpo parecera uma cuspidela firme atirada contra os olhos do sacerdote tinha sido, de fora, do
exterior daquele corpo, visto enquanto um desleixo involuntário, um descontrolo da saliva que
fizera com que o seu rosto – o de Lenz Buchmann – ficasse sujo da própria saliva, imediatamente
acima e abaixo dos lábios e no queixo (…) Tanto o sacerdote quanto Julia não tinham ficado com
a mínima sensação da hostilidade de Buchmann em relação aquela visita. A insultuosa cuspidela
só acontecera no interior da cabeça e do corpo do Dr. Buchmann (370)
O corpo de Buchamnn perde território para a doença e capacidade de se expressar.
Isto acontece de forma progressiva em relação à sua casa e, com o avançar do cancro,
Lenz não consegue sequer exprimir o que sente em relação a eventos concretos, que o
vão condicionando. Neste caso, tenta usar o seu corpo como forma de passar a mensagem
de repúdio em relação à situação, como forma de agressão, e é traído pela sua própria
fraqueza: a “insultuosa cuspidela” dá origem, na perceção de quem o rodeava, a um
“descontrolo de saliva”. Quando Lenz perde a capacidade de se exprimir, de dar ordens,
o seu corpo parece surgir como última arma de arremesso possível.
Noutros romances de Kundera o corpo também pode servir como “arma de
arremesso”, mas de maneira diferente. Tomemos como exemplo A Lentidão. A certo
ponto, Immaculata protagoniza uma acesa discussão com outra personagem, Berck:
“Contigo acabou-se. Para sempre. Estou farta do cheiro que deitas pela boca. És o meu
pesadelo” (Kundera 1995: 76). O começo do capítulo seguinte relata como Immaculata
usa o corpo enquanto forma de revelar desprezo por outra personagem. Se, por exemplo,
Lenz procura cuspir numa personagem como forma de repulsa, Immaculata usa o seu
corpo enquanto arma, mas de maneira diferente:
É a primeira vez que se despe diante dele com uma tal ausência de pudor, uma tal ostentação de
indiferença. Este despir-se quer dizer: a tua presença aqui, à minha frente, não tem nenhuma, mas
nenhuma importância mesmo; a tua presença é igual à de um cão ou de um rato. Os teus olhares
não porão em movimento a mínima parcela do meu corpo. Era capaz de fazer fosse o que fosse à
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tua frente, de lavar os ouvidos ou o sexo, de me masturbar, mijar. É um não-olhos, um não-ouvidos,
um não-cara. (Kundera 1995: 77)
Não parece ocorrer a Immaculata a possibilidade de agredir fisicamente Berck. Se
Lenz procura a intervenção biológica, enquanto cirurgião, político, ou enquanto homem
doente que se revolta, Immaculata usa o seu corpo enquanto meio para um insulto: “a tua
presença é igual à de um cão ou de um rato”. Estas palavras, ditas desta forma, poderiam
ser um gravíssimo insulto: sê-lo-ão menos quando expressos através do corpo?
Em Kundera, assim como o corpo parece ser menos “biológico” que o das
personagens de Tavares, a descrição detalhada do processo de perda de poder não parece
existir em nenhum dos romances. Em qualquer uma das histórias o poder constitui uma
força permanente, assim como oferecer-lhe algum tipo de resistência uma condição de
vida: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”
(Kundera 1979: 9). Nos romances de Kundera a luta entre opressão e oprimidos parece
ser constante, e não apenas transitória: quando o corpo cede à morte, fá-lo sem o rasto de
decadência que é descrito a Lenz em Aprender a rezar na Era da Técnica.
Tomemos novamente como exemplo A Insustentável Leveza do Ser. Numa fase
muito inicial do romance, é dada a notícia da morte dos protagonistas, Tomas e Tereza:
Estava há três anos em Paris quando recebeu uma carta da Boémia. Era uma carta do filho e Tomas.
Tinha ouvido falar dela, procurara a sua direcção, dirigia-se-lhe porque ela era a amiga mais
chegada do pai. Dava-lhe a notícia a morte de Tomas e de Tereza. Segundo o que dizia na carta,
tinham passado os últimos anos de vida numa aldeia onde Tomas era motorista de camião. (…)
Os corpos tinham ficado completamente desfeitos. A polícia constatara que os travões estavam em
muito mau estado. (1984: 154)
Ao longo do romance, não são feitas mais referências ao acidente ou às suas
circunstâncias. A notícia da morte dos protagonistas é dada num parágrafo. Daí em diante,
e como a ação não é cronologicamente linear, intercalando episódios de períodos
diferentes com reflexões do narrador, são relatados episódios da vida de Tomas e Tereza,
como se a sua morte não fosse particularmente relevante para a sucessão de
acontecimentos. Se em Tavares a morte de Lenz acontece num processo gradual, em que
o declínio é progressivamente mais evidente, em Kundera a morte de duas personagens
centrais da narrativa ocupa um parágrafo, num momento pouco convencional: não surge
53
numa informação dada no começo da narrativa, mas também não é oferecida no final, até
porque não marca particularmente os acontecimentos daí em diante.
Em Aprender a rezar na Era da Técnica, o último capítulo acaba com a morte de
Lenz. Em Kundera, essa relação entre morte das personagens e fim de narrativa parece
mais ténue, porque o corpo simbólico sobrevive ao fim do corpo biológico: “Mas então,
que relação haveria entre Tereza e o seu corpo? O seu corpo teria algum direito de se
chamar Tereza? E se não tivesse, o que designaria então esse nome? Nada a não ser uma
coisa incorpórea, intangível?” (1984: 174).
O “seu corpo” talvez não tenha “algum direito de se chamar Tereza”, e talvez isto
esteja relacionado com o relato das suas vivências e reflexões muito para lá do anúncio
da sua morte. Depois da breve descrição da morte de Tomas e Tereza, continuam a ser
relatados episódios em que estas personagens surgem, sem qualquer referência adicional
à sua morte. Como se a morte do corpo das personagens não fosse especialmente relevante
quando, como anteriormente citado, estas “nascem de uma metáfora que contém em
germe uma possibilidade humana fundamental”. Sobrevive o “corpo simbólico” de
Tereza, o seu corpo que não ficou “totalmente desfeito”.
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2.4. – O poder que define a norma: da desordem à insignificância
Citemos Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo:
As formas de organização totalitária, em contraposição com o seu conteúdo ideológico e os slogans
de propaganda, são completamente novas. Visam dar às mentiras propagandísticas do movimento
tecidas em torno de uma ficção central – a conspiração dos judeus, dos trotskistas, das 300 famílias,
etc. –, realidade operante e a construir, mesmo em circunstâncias não totalitárias, uma sociedade
cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício. (1958: 481)
A manipulação da realidade desse “mundo fictício” parece constituir condição
fundamental para que a organização totalitária se enraíze, ganhe seguidores, e consiga
perpetuar-se. A propaganda totalitária tem como objetivo, então, “não a persuasão, mas a
organização” (478), ou seja, procura-se “a acumulação de força sem a posse dos meios
de violência”. Para isso parece ser relevante a construção de um “elemento de
plausibilidade” (ibidem) na construção das “mentiras propagandísticas”, e que permita
que o “mundo fictício”, ou a “ficção central” do regime totalitário, como define Arendt,
seja coerente, criando seguidores sem recorrer à violência.
Esta criação de narrativas paralelas procura produzir um efeito de plausibilidade
em quem as escuta, no sentido de tornar plausível o que se conta. Podemos exemplificar
numa escala maior – como a política –, através da criação de sociedades totalitárias, em
que a verdade pode ser manipulada ou restringida, no sentido de oferecer à população
elementos potenciadores do comportamento desejado (e. g. pacificação, indignação).
Como diz Arendt, “quando o totalitarismo detém o controlo absoluto, substitui a
propaganda pela doutrinação” (1958: 451). Talvez se possa procurar ações semelhantes
numa escala mais pequena, como numa organização, ou num espaço concreto, ou até num
corpo, corrigindo um desvio comportamental ou fisiológico. Tal situação foi explorada
através da análise à personagem Lenz, em Aprender a rezar na Era da Técnica, no
capítulo anterior.
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Em Vigiar e Punir, também Michael Foucault fala deste processo de
“normalização”:
A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições
disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela
normaliza. (…) O funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade
moderna revela (…) tem o seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar esses
novos mecanismos de sanção normalizadora. (1975: 153)
A normalização é refém de um quadro de valores pré-definido, que permita
estabelecer uma “homogeneização”. Apenas com base nos valores tidos como “corretos”
é possível estabelecer uma normativa. Novamente, tome-se como exemplo Lenz, que
procedia a cirurgias com o objetivo de reestabelecer a norma. Também Foucault comenta
como, a partir do século XVIII, a “homogeneidade” se tornou um imperativo:
Aparece, através das disciplinas, o poder da Norma. Nova lei da sociedade moderna? Digamos
antes que desde o século XVIII ele veio unir-se a outros poderes, obrigando-os a novas
delimitações (…) O Normal se estabelece como princípio de coerção no ensino, com a instauração
de uma educação estandardizada e a criação das escolas normais (…) a regulamentação é um dos
grandes instrumentos de poder no fim da era clássica. (…) Em certo sentido, o poder de
regulamentação obriga à homogeneidade (…) Compreende-se que o poder da norma funcione
facilmente dentro de um sistema de igualdade formal (idem: 154)
O “poder da Norma”, na terminologia foucaldiana, é fundamental para a criação
de instrumentos que permitam erradicar certos comportamentos e instaurar outros. E se
“o castigo disciplinar tem a função de reduzir os desvios” (150), importa questionar: que
desvios? Só se desvia quem estava noutro rumo, ou quem tem um caminho previamente
indicado. Este caminho parece ser, então, aquele para que a “homogeneização” e a
“educação estandardizada” apontam. Como é esse caminho? Quem o define?
A sua definição é necessária em qualquer código penal, de conduta, ou para a
manutenção de um estado de homeostasia num corpo. Contudo, definir o padrão de
normalização parece ser uma tarefa complicada e dependente de períodos históricos ou
de valores. George Orwell, em Por que Escrevo e Outros Ensaios, traça uma análise ao
sistema penal inglês, numa crónica datada de fevereiro de 1941:
56
O nosso direito penal está tão ultrapassado quanto os mosquetes na Torre. (…) Na Inglaterra, as
pessoas ainda são enforcadas e vergastadas com o açoite. (…) As pessoas aceitam-nos [os castigos]
quase como aceitam o tempo. Fazem parte «da lei», que se presume ser inalterável. (…) Não que
alguém imagine que a lei é justa. Toda a gente sabe que há uma lei para os ricos e outra para os
pobres. Mas ninguém aceita as implicações disto, toda a gente dá por garantido, que a lei, tal como
é, será respeitada, sentindo-se ultrajado quando isso não acontece. (1941a: 85)
Orwell relata castigos que lhe parecem ultrapassados à época. Como foi analisado
no capítulo 2.1, estes estão em permanente mutação, tal e qual como o estabelecimento
de comportamentos tidos como ilegais. Em função disso, também os comportamentos
desejados, a “norma”, de que fala Foucault, estão em mudança constante. Contudo, ainda
que “toda a gente” saiba que “há uma lei para os ricos e outra para os pobres”, essa lei é
aceite como uma verdade inequívoca, como se não tivesse sido estabelecida pela mão
humana. A aparente “invisibilidade” do aparelho normativo/coercivo e a sua
despersonalização (quem é o indivíduo que define o que é “correto”? quem
instrumentaliza a punição?) parecem contribuir para esta aceitação generalizada.
Noutro ensaio, Orwell descreve como uma sociedade totalitária incita a
determinados comportamentos e ideias:
O totalitarismo aboliu a liberdade de pensamento com uma intensidade que jamais se ouviu falar
em qualquer época anterior. E é importante ter consciência de que o seu controlo do pensamento
não é apenas negativo, é também positivo. Não se limita a proibi-lo de exprimir – ou até de pensar
– certos pensamentos; dita o que irá pensar, cria uma ideologia para si, tenta reger a sua vida
emocional, assim como tenta estabelecer um código de conduta. (1941b: 63)
Importa analisar, então, até que ponto os sistemas de poder têm capacidade de
incentivar determinados comportamentos, através da proibição de outros. Como descreve
Orwell, “isola-o [ao indivíduo] tanto quanto possível do mundo exterior, fecha-o num
mundo artificial” (idem), procurando o poder “controlar emoções e pensamentos dos seus
súbditos, pelo menos tão completamente quanto controla as suas acções” (ibidem).
Retomemos a ideia de aplicação da Norma numa escala maior ou numa mais
pequena. A primeira consiste na regulamentação estabelecida pelos sistemas de poder,
para punir e incentivar comportamentos (como refere Orwell, um “controlo de
pensamento positivo”). Se as alterações de comportamentos são feitas em instituições, a
norma é específica desse local. Recordemos o quartel de Ostrava em A Brincadeira, ou o
57
hospício Georg Rosenberg em Jerusalém. Também nelas podemos distinguir dois meios
de alterar ideias e comportamentos: controlo negativo e positivo. Se no Georg Rosenberg
se assume que os comportamentos são o motivo do internamento e que, em consequência
disso, constituem um alvo, no quartel de Ostrava reúnem-se presos políticos, portanto
com ideias distantes do regime comunista: as ideias a erradicar são as que fogem à
ideologia em vigor. Contudo, no âmbito do que Orwell chama “controlo de pensamento
positivo”, também são relatadas atividades de louvor aos líderes e aos motivos do regime.
Se em A Brincadeira o controlo do pensamento é feito pela sociedade totalitária,
e o quartel parece funcionar apenas como uma ramificação do controlo político e estatal,
em Jerusalém o controlo é numa escala menor. Quais são os comportamentos errados?
Ou, por oposição: como criar um “controlo de pensamento positivo”? O primeiro passo
parece, de facto, a delineação dos comportamentos desejados. Émile Durkheim, em The
Rules of Sociological Method, distingue dois tipos de comportamento: “those that are
entirely appropriate and those that should be different from what they are – normal
phenomena and pathological phenomena” (1895: 85). Como já observámos, definir com
isenção comportamentos errados ou patológicos depende da realidade contextual: do
sítio, do local, e dos valores de quem julga esses comportamentos. Talvez um
comportamento normal no cenário de guerra de O Reino não possa ser equiparado aos
comportamentos comuns na Praga da segunda metade do século XX, cenário da
generalidade dos romances de Kundera, quase sempre debaixo do domínio do regime
comunista. A resposta à pergunta que Durkheim faz sobre a relação entre fenómenos
normais ou patológicos – “does science have the means available to make this
distinction?” (ibidem) – parece, portanto, um rotundo não. Até porque, como é dito mais
à frente, “for science, good and evil do not exist” (86).
Quando se fala em saúde e doença, talvez o critério possa ser um pouco mais
objetivo. Durkheim aclara: “pain is commonly regarded as the index of sickness”
(ibidem); “health, consisting in the joyous development of vital energy, is recognisable
when there is perfect adaptation of the organism to its environment” (87); “manner in
which one mode rather than another affects our chances of survival” (88). Algumas destas
possibilidades poderão ser motivo de discussão, tanto que criam, entre si, alguns
paradoxos. Por exemplo: não existem comportamentos saudáveis em cuja dor é
inevitável? Promover a saúde consiste sempre em escolher comportamentos que
aumentem as “chances of survival”? Contudo, num sistema aberto (o corpo), em que tanto
se sabe sobre as condições concretas que permitem o “joyous development of vital
58
energy”, o aumento das hipóteses de sobrevivência, ou mesmo as condições para evitar a
dor que, como diz Durkheim, é “regarded as the index of sickness”, estas leis parecem
mais estáveis. Neste caso, talvez a ciência possa mesmo avançar com o que é bom e mau,
ao contrário do que é dito por Durkheim.
It can be seen that a fact can be termed pathological only in relation to a given species. The
conditions of health and sickness cannot be defined in abstract or absolutely. This rule is not
questioned in biology: it has never occurred to anybody to think that what is normal in a mollusc
should be also for a vertebrate. Each species has its own state of health, because it has an average
type peculiar to it, and the health of the lowest species is no less than that of the highest. The same
principle is applicable to sociology, although it is often misunderstood. The habit, far too
widespread, must be abandoned of judging an institution, a practice or a moral maxim as if they
were good or bad in or by themselves for all social types without distinction. (idem: 92)
O estabelecimento da norma, enquanto padrão de regras funcionais numa
sociedade ou entre corpos humanos, é complexo. Nesse sentido, o que é saudável e o que
é patológico terá que ser estabelecido em função da entidade, talvez até do contexto
social, cultural e histórico: os comportamentos saudáveis no regime comunista de Praga
talvez não sejam os mais adequados na guerra de O Reino.
Lenz, em Aprender a rezar na Era da Técnica, torna-se político depois de ser
médico. Luís Mourão descreve este processo:
Que esse inúmero ele [a cidade] o pense enquanto corpo esperando o seu bisturi re-ordenador,
como antes pensava o corpo doente como Cidade minada na sua racionalidade material, é não
apenas um conseguimento ficcional de cruzamento de metáforas e sua literalização paródico-
grotesca, mas também o colocar do político numa espécie de patamar de totalitarismo sem causa
totalitária. (2008)
O bisturi re-ordenador de Lenz não precisa de um manual axiológico para intervir
no corpo humano, talvez baste o manual anatómico. Contudo, como diz Mourão, afirmar
que se trata de uma transferência de capacidades parece já apontar para o cargo político
como “uma espécie de patamar de totalitarismo sem causa totalitária”. Segundo
Durkheim, é impossível julgar uma “practice or a moral maxim as if they were good or
bad in or by themselves”. O mesmo se passará em toda e qualquer ação na cidade que
Lenz ambiciona controlar. O bisturi de Lenz precisará de um conjunto de valores que
reordenem a sua orientação.
59
Sobre esta mudança de âmbito de atividade, Mourão afirma que Lenz “é ambas as
coisas de um modo rigorosamente não-humanista. Como médico, e cirurgião, apenas a
competência o motiva” (2008). Se para ser médico a competência pode chegar, para ser
político talvez não. Dois médicos competentes erradicarão a dor, a doença e a morte com
a mesma prontidão. Dois políticos com características idênticas poderão ter objetivos
diferentes na erradicação do que é “good or bad”, ou “good and evil”. A política requer a
identificação com ideias que fundamentem a sua prática: optando por uma posição,
abdica-se da contrária. Na prática da medicina os valores máximos parecem ser, de forma
generalizada, os da saúde e da vida.
Em A Máquina de Joseph Walser, o cenário bélico, pano de fundo das restantes
partes de O Reino, evidencia-se logo no começo: “Fala-se de armamento militar que
avança com apetite; é este o termo: apetite” (Tavares 2006: 11). Pouco depois, a
referência direta ao confronto surge: “como se a guerra fosse precisamente uma
concentração excessiva de milagres” (idem). O avanço das máquinas de guerra não parece
provocar grande impacto na vida de Walser, caracterizado pelo mutismo e pelo
alheamento. Nas palavras de Renata Quintella de Oliveira,
Os focos de interesse de Walser recaíam, apenas, sobre os seguintes pontos: a sua estranha coleção;
o jogo de dados com os colegas de trabalho e a inusitada relação que tinha com a “sua” máquina.
O comportamento do personagem era, predominantemente, de total alheamento: por vezes, várias
pessoas (incluindo Klober) lhe perguntavam: “O Senhor Walser está a ouvir?”, pois ele parecia
estar com a mente em outro lugar. (2016: 172)
O alheamento parece, de facto, uma evidência na caracterização da personagem.
O próprio Gonçalo M. Tavares manifesta a sua posição sobre o assunto:
Há os que o classificam como alguém frio, indiferente, que se afasta das coisas, e por outro lado,
esse afastamento em relação às coisas também pode ser uma definição de santidade. A definição
de santo mais ligado ao oriente, a ideia de a pessoa ser indiferente ao que acontece, estar distante
dos acontecimentos, não se envolver, é uma ideia muito religiosa, e de certa maneira é isso que
Joseph Walser faz. (2006)
Este lado de Walser que o “afasta das coisas” é percetível, por exemplo, na
ausência de reação aos longos discursos que o encarregado da fábrica, Klober, lhe dirige.
60
Walser parece despertar para um estado menos alheado em três circunstâncias: em frente
à sua máquina, nas noites de jogo, ou quando se encontra em frente à sua coleção.
O fundamento da sua existência real – aquela máquina – era aquilo que permitia à sua família
subsistir, era, portanto, aquilo que o salvava (…) mas salvando-o dia após dia essa máquina
ameaçava-o também constantemente, sem qualquer pausa. Uma falha na máquina que o salvava
monotonamente, poderia de um momento para o outro acabar-lhe com a vida (…) Joseph Walser
nunca percebia melhor o seu papel de empregado, a sua existência subserviente em relação ao
exterior, do que em frente à máquina, em plena execução do seu ofício. (Tavares 2006: 22)
A máquina é, praticamente, como um instrumento anexo ao corpo de Walser: “em
diversos momentos o som do motor e o seu trepidar confundem-se com o bater cardíaco
(…) é aí que Walser percebe a ligação que existe entre o seu corpo e a máquina” (idem:
58). Adicionalmente, a máquina parece quase assumir traços humanos, como se
oscilações dos estados de espírito o salvassem “dia após dia”, mas também pudessem
“acabar-lhe com a vida”. Como afirma Lígia Bernardino, em Limiares do Humano –
Estudo sobre Jorge de Sena, Maria Gabriela Llansol e Gonçalo M. Tavares, para Walser
“os objetos transcendem a mera condição utilitária, para se autonomizarem e adquirirem
um significado moral” (2014: 216). A atenção que dispensa à máquina parece não ser
meio, mas antes fim: nunca nos é descrito o que ela produz, ou sequer se o particular
esforço da personagem redunda numa maior abundância desse produto. É a execução da
máquina, por si, que cria esta relação entre o protagonista e o aparelho: “o organismo de
Walser ficava (…) melancólico, no momento em que o motor parava e ele percebia que
estavam ali, em jogo, afinal, duas coisas: ele e a máquina” (Tavares 2006: 59).
A melancolia de Walser no momento em que o mecanismo para parece ser
explicada por Hannah Arendt:
Neste movimento, os instrumentos perdem seu caráter instrumental, e desaparece a clara distinção
entre o homem e os seus utensílios. O que preside o processo de labor e todos os processos de
trabalho executados à maneira do labor não é o esforço intencional do homem nem o produto que
ele possa desejar, mas o próprio movimento do processo e o ritmo que este impõe aos operários.
Os utensílios do labor aderem a este ritmo até que o corpo e o instrumento passam a agitar-se no
mesmo movimento repetitivo (…) já não é o movimento do corpo que determina o movimento do
utensílio, mas sim o movimento da máquina que impõe os movimentos ao corpo. (Arendt, apud
Oliveira 2016)
61
Como comenta Oliveira, a relação entre Walser e a máquina parece tão intricada
que o que “preside o processo de labor” é o próprio mecanismo, não “o produto que ele
possa desejar”. O “movimento repetitivo” imposto (não sabemos se por Walser à
máquina, ou pela máquina a Walser) parece ser uma forma de introduzir um “movimento
repetitivo” num cenário bélico, como o descrito ao longo da narrativa: “a normalidade
prossegue mesmo por cima dos escombros; o organismo tenta manter hábitos nas
situações mais estranhas e confusas” (Tavares 2004: 117), como se de uma necessidade
biológica se tratasse. Entorpecer o corpo numa repetição rotineira talvez ajude a afastar a
imprevisibilidade: “o trabalho decorre de modo puro, sem ser conspurcado com o que
sofrem os outros” (57).
O espectro da guerra parece marcar decisivamente as três atividades (a máquina,
o jogo e a coleção) de Walser. Se a máquina parece representar a subserviência e a
possibilidade de se embrenhar numa repetição mecânica (relembremos que “só os mais
fortes tinham direito a ser redundantes e previsíveis” (55)), o jogo de dados parece
representar um outro tipo de submissão que, por paradoxal que pareça, se mistura com
uma sensação de controlo.
Todos os sábados, Walser junta-se a mais três companheiros de trabalho na casa
de Fluzst M., onde “jogava aos dados, a quantias baixas” (27). “os dados na mão
simplificavam o mundo” (28): os jogadores, em que Walser se incluía, sentiam evaporar-
se “um número de possibilidades: infinitas; ali, naquela mesa, cada um dos dados limitava
os caminhos” (ibidem). Se o trabalho de Walser, caraterizado pelos movimentos
repetitivos da máquina, representa uma espécie de subserviência aos desígnios
mecânicos, a presença dos dados na mão oferecia uma “exactidão que o excitava (…) era
afinal essa decisão profunda e forte que é decidir que se aceita, decidir que se está pronto
para a submissão absoluta” (ibidem). A submissão parece mesmo ser resposta a uma
espécie de apelo: um corpo que se submete ao desígnio do poder não perde recursos na
decisão autónoma, não se sujeita às consequências de tarefas que requeiram algum tipo
de perícia. No fundo, trata-se do apelo da não tomada de decisão. Sujeitando-se aos
desígnios da sorte, o corpo não traz consigo a responsabilidade de assumir uma posição.
O paralelo entre o trabalho de Walser e dos companheiros do jogo e o tipo de
submissão a que ali se sujeitam é feito pelo narrador: “aqueles homens estavam
habituados a obedecer durante a semana, e no sábado, estranhamente, entravam num outro
sistema de obediência” (idem: 29). Ainda assim, a dualidade de que fala Arendt, em que
62
parece indistinguível se o corpo controla o utensílio, ou se o utensílio se sujeita aos
desígnios do corpo, surge novamente como tema.
No momento em que manipulava os dois dados, antes de os largar na mesa, Walser sentia uma
excitação inexplicável, que não conseguia classificar (…) havia em Walser (…) uma sensação de
controlo que em mais nenhuma situação da sua vida se repetia. Naquele momento Walser sentia
que controlava o mundo, que o manipulava, que era capaz de fazer sim ou não apenas pela ligeira
alteração de movimento de um dos seus dedos. (Tavares 2004: 33)
Também os dados, além de significarem uma submissão aos desígnios da sorte e
do azar, representam uma forma de obter uma “sensação de controlo”. O poder cabe na
mão de Walser, que antes de lançar os dados sente uma “sensação de controlo”. Com os
dados na mão, Walser parece sentir, em momentos diferentes, que “controlava o mundo”,
ou que “está pronto para a submissão absoluta”. Walser, em momentos diferentes do jogo,
ocupa dois lugares diferentes na relação de poder: o de subjugado e o de poderoso. Como
diz Lopes de Freitas, em Parábolas do Absurdo nos «Livros Pretos» de Gonçalo M.
Tavares, “o jogo é (…) pólo do seu prazer porque lhe permite uma aproximação com a
experiência erótica, através da qual procura (…) construir a sua identidade” (2010: 34).
O facto de Walser conseguir, durante o jogo, sentir-se subjugado e poderoso, em períodos
diferentes, aproxima o ato da “experiência erótica”.
Diferente da forma como se relaciona com a máquina ou com o jogo de dados é a
forma como Walser se relaciona com a sua coleção, de pequenas peças metálicas, que
mantém no escritório de casa:
Tamanha perplexidade provocava uma necessidade imediata de segurança que apenas encontrava
quando fechado no escritório, em frente à sua colecção. Ali tudo estava completo. Nada havia por
explicar. (…) Nada a mais ou a menos. E só com esta exactidão se sentia apaziguado. Se o mundo
não fosse mais do que a sua colecção, Walser teria que ser descrito como um homem feliz; e
poderoso. (…) Porém, a guerra prosseguia (…) e as mortes entre os militares não paravam. (2004:
103)
A coleção de Walser parece surgir como contraponto para a desordem
característica dos tempos de guerra. Se a guerra faz eclodir conflitos imprevisíveis, onde
as mortes são recorrentes, na coleção de Walser a ordem e a simetria imperam: “Ao
registar aquela peça, ao incluí-la na sua colecção, estava, ao mesmo tempo, a retirá-la do
63
mundo, a retirá-la do alcance dos actos de outros homens” (109). As peças funcionam
como partículas do mundo exterior que Walser traz para o seu mundo de ordem, onde
“tudo estava completo”, onde Walser se sentia “feliz e poderoso”. Como diz Pedro Eiras,
“quanto mais desordenado o universo, mais rigorosa a colecção de Walser” (2015: 122).
Esta necessidade de manter um refúgio do ambiente de desordem parece ser parte
de uma necessidade de “normalidade”:
Em comparação com a administração de um país, individualmente, em tempo de guerra, cada
homem, por si, como que fundava um Ministério da Normalidade, que impunha, essencialmente,
repetições. Porque só as repetições acalmavam, só as repetições permitiam a cada indivíduo voltar
a encontrar-se humano no dia seguinte. (…) repetições até de actos não visíveis, não registáveis
pelos outros, como imagens e memórias do cérebro, tudo isso permitia (…) resistir no meio do
reino da desordem (Tavares 2004: 118)
“Resistir no meio do reino da desordem” parece fundamental num cenário bélico;
permite ao indivíduo “encontrar-se humano no dia seguinte”. Como diz Orwell, “acima
de tudo, a guerra torna óbvio para o indivíduo que ele não é totalmente um indivíduo”
(2008: 133). Manter comportamentos rotineiros é manter um espaço de resistência ao
“reino da desordem”. Se os hospitais, quartéis ou manicómios parecem querer impor um
conjunto de normas que permitam uma existência livre de comportamentos
transgressores, talvez possa existir um código de norma pessoal. Talvez a repetição de
hábitos pessoais ajude a fugir ao “reino da desordem”, ao caos que se abate sobre a cidade.
Contudo, como teoriza Durkheim, toda a realidade é contextual, não existindo
valores, por si só, associados aos atos (relembremos: “for science, good and evil do not
exist” (1895: 86)). Walser fecha-se no seu escritório e na sua coleção, para fugir à cidade,
onde eclode a guerra. Num hipotético cenário onde a guerra se prolongasse durante anos,
talvez o que o narrador considera a desordem do exterior deixasse de ser tão caótica assim,
assumisse contornos de norma. Kundera fala da banalização da novidade, quando esta se
prolonga no tempo, numa das derivas reflexivas de A Lentidão:
Aqui está onde os cortesões da actualidade se enganam. Não sabem que as situações que a História
encena só são iluminadas durante um número muito reduzido de primeiros minutos. Nenhum
acontecimento é actual em toda a sua duração, mas apenas durante um lapso de tempo brevíssimo,
no começo do começo. As crianças moribundas da Somália que milhões de espectadores olhavam
com avidez terão deixado de morrer? Que é feito delas? Terão engordado ou emagrecido? A
Somália existirá ainda? (1995: 68)
64
Esta reflexão poderia seguir-se a um episódio muito concreto de O Reino. Em Um
Homem: Klaus Klump um cavalo morto apodrece na rua: “ninguém toca num cavalo
morto que está na rua há mais de uma semana. As moscas tocam no cavalo morto, mas
nem os homens nem as mulheres nem as crianças tocam no cavalo morto” (2007: 26).
Antes da guerra, a imagem de um animal de largas dimensões morto a apodrecer na rua
seria abjeta. Em período de guerra, talvez existam preocupações mais prementes. Como
se se tratasse de “um muro altíssimo: ninguém percebe o que sucedeu: como se constrói
um muro no tempo? Como se tapa na cabeça das pessoas aquilo que aconteceu?” (idem).
Um muro que separa o período em que o cavalo morto na via pública seria
removido, e outro em que “o cavalo apodrecido no meio da rua, coberto por milhares de
moscas, não tinha vindo uma única vez no jornal” (34). Em Kundera, um muro de
banalização: “as crianças moribundas da Somália que milhões de espectadores olhavam
com avidez” não deixaram de morrer. Contudo, a sua existência deixou de ser novidade.
Como diz Kundera, “se estudamos, discutimos, analisamos uma realidade,
analisamo-la tal como aparece no nosso espírito, na nossa memória” (1993: 120). A
norma vigente é condicionada pela memória do que ocorreu anteriormente. Contudo,
Kundera diz também: “resignamo-nos à perda do concreto do tempo presente” (118), uma
vez que a realidade é volátil. Ou seja, a sucessão de novos acontecimentos condiciona a
memória dos anteriores, uma vez que “as situações mais queridas, mais importantes, estão
perdidas para sempre” (ibidem): o que sobra delas é, então, “o seu sentido abstracto (…)
mas o concreto acústico-visual da situação em toda a continuidade” (ibidem) está
irremediavelmente perdido. Numa situação de guerra, em que a realidade muda de forma
radical, a necessidade de adaptação dos envolvidos é grande (diz Tavares que “há na
experiência da guerra um longo (e extenso) desassossego das circunstâncias” (Tavares
2013a: 94)). Mediante esse desassossego, a perceção da realidade anterior muda, visto
que sobra apenas “o seu sentido abstrato”, condicionado pela realidade atual.
Para falar do poder da Norma, na terminologia foucaldiana, é incontornável
abordar o romance de Kundera de 2013 A Festa da Insignificância, que parece fugir um
pouco à rigidez dos temas políticos e da Praga totalitária da segunda metade do século
XX. Como é descrito por Alex Preston: “The book is a celebration of the unimportant and
superfluous (thus it centres on Kalinin, not Stalin) and every time we are promised a
passage that is momentous or meaningful, we are tugged back to the insignificance of the
title” (2015). À imagem do que se passa em boa parte dos romances de Kundera, a
65
narrativa não procura uma sucessão cronologicamente organizada de acontecimentos. O
narrador descreve uma pequena festa, organizada por Ramon, em que existem conversas
e relatos sem uma ordem temporal por parte das personagens, que quase sempre acabam
numa reflexão do narrador. Muito perto do final, é Ramon quem se dirige a D’Ardelo,
num capítulo de nome “A Festa da Insignificância”:
Há já muito tempo, D’Ardelo, que queria falar-lhe de uma coisa. Do valor da insignificância. (…)
Atualmente a insignificância surge-me de um modo completamente diverso, sob uma luz mais
forte, mais reveladora. A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Está connosco
sempre e em toda a parte. Está presente mesmo onde ninguém a quer ver: nos horrores, nas lutas
sangrentas, nas piores infelicidades. Exige-se-nos muitas vezes coragem para a reconhecer em
condições tão dramáticas e para a chamar pelo seu nome. (…) Aqui, neste parque, diante de nós,
olhe, meu amigo, ela está presente em toda a sua evidência, em toda a sua inocência (2013: 149)
Norma não significa insignificância, mas insignificância pode significar norma ou
banalidade: algo tão recorrente que perdeu relevância. Para efeitos didáticos, façamos o
exercício de trocar “insignificância” por “norma”, na citação que acima indicámos. Nesse
exercício, a norma pode ser entendida como “essência da existência”: parece ser
fundamental identificar o desvio à norma para manter o equilíbrio (na cidade ou no corpo,
como já vimos). Por outro lado, essa norma “está presente mesmo onde ninguém a quer
ver”, ou seja, talvez também esteja nos cenários mais transgressores, aparentemente fora
dos padrões da Norma. Não existe vida para lá dessa Norma, parece ser apenas uma
questão de tempo até que esta se manifeste, mesmo no maior “desassossego das
circunstâncias”. Relembre-se o cavalo que apodrece na rua em Um Homem: Klaus Klump.
Talvez a norma e a insignificância sempre lá tivessem estado, como em todos os
“horrores”, “lutas sangrentas”, ou “nas piores infelicidades”, apenas esperando a
oportunidade adequada para se mostrarem. Até porque, “num certo sentido, o cidadão
bom é o cidadão normal” (Tavares 2013a: 90). Se assim é, infiramos: a circunstância boa
é a circunstância normal – tudo o que passar do código normativo estabelecido deverá,
pelo menos, ser alvo de análise.
Seja imposto por uma entidade poderosa ou pela convenção social, o poder da
Norma, que estabeleça fronteiras entre o normal e o estranho, o comportamento desejado
e o motivo de coerção, parecem ser conceitos fundamentais de Tavares e Kundera.
66
2.5 - Da luta pela identidade kunderiana à cidade em guerra de
Tavares
Importa definir o conceito de “identidade”, pouco utilizado até agora neste estudo.
Ainda que a sua utilização seja recorrente, as tentativas de o definir parecem ser muitas e
pouco dadas a concordâncias.
Despite this vastly increased and broad-ranging interest in “identity,” the concept itself remains
something of an enigma. What Phillip Gleason (1983) observed remains true today: The meaning
of “identity” as we currently use it is not well captured by dictionary definitions, which reflect
older senses of the word. Our present idea of “identity” is a fairly recent social construct, and a
rather complicated one at that. Even though everyone knows how to use the word properly in
everyday discourse, it proves quite difficult to give a short and adequate summary statement that
captures the range of its present meanings. (Fearon 1999: 2)
Ou seja, a ausência de uma definição objetiva do termo leva a uma utilização
recorrente, mas também pouco clara: quantas identidades existem? O estudo de James
Fearon fala de duas conceptualizações possíveis: as que versam sobre uma identidade
individual, e as que descrevem a identidade de um coletivo.
No primeiro caso, temos como definição: “identity is «people’s concepts of who
they are, of what sort of people they are, and how they relate to other»” (Hogg e Abrams
1988, apud Fearon 1999). Esta definição parece considerar, essencialmente,
características individuais. Existe um determinado “sort of people they are”, isto
significará que existem outros “sorts”, que a este se opõem. Por outro lado, a forma como
o indivíduo “relate to other” parece também ser um traço demarcador da sua própria
identidade. Talvez as pessoas com quem se relaciona, a forma e a frequência com que o
faz, diga também muito da identidade de cada um.
Outras definições parecem fazer referência a uma identidade grupal: “by social
identity, I mean the desire for group distinction, dignity, and place within historically
specific discourses (or frames of understanding) about the character, structure, and
boundaries of the polity and the economy” (Herrigel, apud Fearon 1999). Procura-se uma
67
distinção, mas não individualizante: é um “desire for group distinction” e, portanto, uma
distinção que, separando de uns grupos, integre o indivíduo noutros diferentes. Por estar
relacionado com as “boundaries of the polity and the economy” parece existir uma clara
referência a uma identidade nacional, ou pelo menos, geograficamente limitada.
Contudo, talvez essas fronteiras possam ser de entendimento mais lato do que a
atribuição de uma nacionalidade, que parece um estatuto menos mutável. Como diz
Fearon, neste caso “an identity is just a social category, a group of people designated by
a label (or labels) that is commonly used either by the people designated, others, or both”
(1999: 8). Será possível uma entidade poderosa alterar, de forma deliberada, os traços
identitários de um grupo de indivíduos oprimidos?
Distintos desses traços identitários grupais são outros, mais individuais:
Personal identity is a set of attributes, beliefs, desires, or principles of action that a person thinks
distinguish her in socially relevant ways and that (a) the person takes a special pride in; (b) the
person takes no special pride in, but which so orient her behavior that she would be at a loss about
how to act and what to do without them. (idem: 9)
Estes traços são individuais, portanto dizem respeito a características cuja
variação não diz respeito, de forma direta, a variáveis sociais e económicas. Ainda que
estas possam ser influenciadas pelo contexto, essa variação passar-se-á de forma sempre
individual e específica. Como diz Fearon, “a simple answer to the question «what is
identity?» would be this: It is how one answers the question “who are you?” Or, my
identity is how I define who I am” (1999: 11). A resposta a esta pergunta, depende, claro,
do contexto: quem faz a pergunta e onde? Ainda que a identidade não se altere, a resposta
poderá ser diferente diante do opressor, do inimigo, ou na intimidade.
Contudo, este capítulo procura discutir a mudança de traços identitários em função
de relações de poder. Nesse sentido, para tornar a análise mais sólida, existe um
comportamento prévio, que seja alterado em função do contexto de poder em que se
encontra inserido. No fundo, procurar-se-á entender se os traços de personalidade ou a
“personal identity”, de que fala Fearon, poderão ser afetados pelas mudanças da
identidade coletiva. Por exemplo, responder que se é checo nos anos do regime comunista
ou na atualidade significará coisas diferentes. Contudo, até que ponto isso poderá influir
nos traços identitários de cada um dos indivíduos? Por outro lado, numa sociedade
68
totalitarista, existe a procura deliberada de alterar a identidade dos indivíduos, através de
alterações concretas? Se sim, existem consequências disso na identidade de cada um?
Há ainda outra possibilidade: as alterações não serem deliberadas, e acontecerem
em função dos acontecimentos. Exemplifiquemos: no capítulo anterior falou-se sobre o
surgimento do cadáver de um cavalo em Um Homem: Klaus Klump, e sobre como a
indiferença parece dominar a relação das pessoas com esse obstáculo: “o cavalo
apodrecido no meio da rua, coberto por milhares de moscas, não tinha vindo uma única
vez no jornal” (Tavares 2007: 34). O episódio é descrito como algo que, caso o contexto
não fosse de guerra, talvez tivesse pronta ação das autoridades. O narrador conta como a
cidade se adapta, e como eventos chocantes deixam de o ser, porque “a brutalidade
instalou-se e já não magoa ninguém” (59). A brutalidade passou a ser banalidade. Como
diz o narrador, “a cabeça foi deslocada para o presente. Temos os pensamentos
actualizados com o momento em que estamos: nem à frente, nem atrás. Uma cabeça
diária” (96). O padrão altera-se de dia para dia: o que é agora possível enquadrar no
registo da brutalidade? Será isso relevante para a construção da identidade?
Neste caso, o padrão parece ter-se alterado por via das circunstâncias. “Johana
está quieta e o jornal nas suas mãos inquieto. Quem foi morto hoje?” (12): já não se
questiona se alguém terá sido vitimado pela guerra, porque essa parece ser uma
inevitabilidade. Diz o narrador que “há demasiadas possibilidades para que aconteça
sempre o mesmo” (17), mas também, sobre a mãe de Johana, tida como louca, que
“interrompia de modo grande a vida normal, e as pausas eram alucinações” (18), ou seja:
existe uma vida “normal” em determinada personagem. Nas palavras de Fearon, o estudo
da identidade é relevante porque “identity [is seen] as interesting and important precisely
because it is thought to explain actions that other approaches, such as rational choice”
(1999: 26). Os traços identitários afiguram-se como forma de explicar ações racionais.
Nesse caso, talvez a mãe de Johana pareça mais caracterizada pelo mecanismo
inverso, pelas interrupções constantes e “de modo grande [d]a vida normal”. Esta é a
primeira descrição feita da personagem, como justificação da sua loucura: uma mulher
que interrompe a vida normal. Catharina tem uma identidade, composta por
comportamentos que constroem a sua “vida normal”, mas que lhes foge constantemente
e “de modo grande”. Talvez Catharina, a mãe de Johana, seja usada como forma de
explicar a cidade em guerra. Os traços característicos da guerra, com as ruas marcadas
pela presença de tanques e de mortos (como é descrito), são precisamente os inversos da
69
norma. O padrão é alterado, porque os eventos tidos como disruptores se propagam
indefinidamente, pelo menos, até que a guerra esteja terminada.
A descrição de Catharina parece condizente com este raciocínio, no qual a norma
é subitamente invertida numa cidade, e em que os tanques são o símbolo dessa disrupção:
Catharina, a mãe de Johana, gritava. Adorava mecanismos, matérias que terminavam de modo
previsto. Mas Catharina gostava de máquinas, gostava de interferir nelas. Queria intrometer-se
nessa vida fria, mas com algo de perverso: a ponta da agulha era colocada em água a ferver, e
depois Catharina levava-a até perto de um rádio ou de uma outra máquina, e tentava espetá-la num
orifício qualquer. (Tavares 2003: 19)
Esta “agulha” parece procurar a intromissão num mecanismo previsível, como o
da cidade, muito parecido com o comportamento descrito dos tanques que “entravam na
cidade” (11). Nesta cidade, em que “as mães já não se comovem quando um soldado viola
as filhas” (30), o mecanismo da previsibilidade, e das reações humanas inerentes, está
substancialmente alterado. Catharina, em sua casa, procura interferir de forma parecida
num rádio, ou noutra máquina semelhante. Aliás, o narrador traça uma analogia similar:
Catharina por vezes falava numa ideia doida. Via os tanques da janela, a passarem pela rua, e dizia
querer espetar a agulha, com a ponta queimada, no tanque. Dizia que os tanques tinham inúmeras
fendas. Ela queria consertar os tanques. Fazê-los disparar mais lentamente. Ou então fazê-los
disparar ao contrário, para dentro. Com uma agulha posso fazer a guerra rebentar para dentro, em
vez de para fora, dizia Catharina. (21)
Talvez a ideia não seja assim tão “doida”, como é descrito. Catharina parece, como
a generalidade das personagens, ansiar pelo fim da guerra (daí que queira “espetar a
agulha”), e quer destruir os tanques da mesma forma que estes parecem destruir a cidade:
através da quebra da sua própria identidade, fazendo-os “disparar mais lentamente”, ou
“disparar ao contrário, para dentro”. Os tanques invadiram as ruas, normalizaram
comportamentos, destruíram o normal mecanismo de funcionamento da cidade. Tavares
descreve como “uma cidade [se define], de facto, pelos entendimentos, isto é: graças a
sincronizações temporárias, de discurso e acções” (2013a: 182). A guerra desvirtua estas
sincronizações e constrói as suas próprias verdades. Catharina parece procurar também
desvirtuar essas sincronizações no funcionamento dos tanques. Como refere Sandra
70
Beatriz Salenave de Brito, em “O reino de Gonçalo M. Tavares como uma representação
da sociedade contemporânea”:
Ela queria consertar os tanques, fazendo-os rebentar para dentro, a tentativa alienada de
alcançar sua meta com a ponta de uma agulha quente manifesta o seu anseio racional em
acabar com a guerra. É o mesmo pensamento ingênuo que acompanha Joseph Walser,
(…) ainda que não esteja contribuindo de forma alguma no evento, analisa-o de maneira
crítica. (2017: 466)
Ou seja, Catharina não parece ser a única, ao longo da tetralogia de Tavares, cujos
comportamentos são condicionados pela guerra. Klaus Klump também evidencia
comportamentos que parecem ser potenciados pelo conflito:
Klaus abriu a gaveta onde um faqueiro de prata. Tinha as gengivas fracas de comer mal. A
personalidade é uma obra-prima que se faz dia e noite. Não demora meses, demora mais tempo
que a fazer um palácio. A personalidade é um trabalho onde se entra, requer esforço. As gengivas
de Klaus muito vermelhas. (…) As vitaminas são importantes para as tuas frases. Faltavam-lhe
vitaminas nas gengivas e as frases tinham perdido o lado exacto antigo. (…) A realidade era
incompatível com a linguagem sem vitaminas. (…) Klaus dizia que a paisagem se tinha tornado
imunda. Já não existiam paixões com prestígio a não ser o pensamento em vingar-se. (Tavares
2003: 29)
O narrador dá bastantes pistas dessa alteração circunstancial do comportamento
de Klaus. O protagonista “tinha as gengivas fracas de comer mal” muito provavelmente
pelo surgimento da guerra, até porque é dito pouco antes que “Klaus era de uma família
rica: os Klump” (idem: 24). A realidade que o narrador descreve não é condizente com as
“vitaminas”, “importantes para as frases”. Outro termo para descrever a realidade surge
depois: “paisagem”, que se torna “imunda”. A narrativa é clara: deixou de haver tempo
para cuidados elementares, e Klaus é vítima disso. Aliás, o narrador parece demonstrar
uma visão holística do indivíduo: se lhe faltam “vitaminas nas gengivas”, as frases
perdem “o lado exacto antigo”. As ações de Klaus são condicionadas pela “falta de
vitaminas” de um ponto de vista fisiológico. Estamos numa esfera ainda mais primária
do que a revolta contra a guerra, racional e ponderada: Klaus tem falta de vitaminas, e
essa falta de vitaminas condiciona “a personalidade”, que é “um trabalho onde se entra,
requer esforço”, e que de alguma forma está relacionada com a cor das suas gengivas.
71
Klaus não muda de cor de gengivas deliberadamente: muda porque lhe faltam
“vitaminas”. Talvez também a sua personalidade mude de cor: “Klaus foi vestido para
receber os pais. Mas havia ainda o corpo. E o corpo estava magro e os olhos diferentes,
olhos evidentes (…) O preso Klaus era um homem que já não hesitava” (53). Novamente,
é o corpo que muda, que mirra debaixo da roupa, mas é o “homem” que passa a não
hesitar. A personalidade vem a reboque das mudanças anatómicas, em especial das
condicionadas pela guerra.
Como diz Gonçalo Furão, em Entre “Bios” e “Política”: A tetralogia “O reino”
de Gonçalo M. Tavares, o narrador “inverte a relação de correspondência que
comummente existe entre claridade/ordem numa esfera de valoração positiva e
escuridão/caos de valor negativo” (2013: 30). A valorização positiva e negativa dos
comportamentos fica, subitamente, condicionada pelo conflito, oscila em função dele:
O dinheiro desvaloriza-se ao pé dos loucos. Klaus tinha dólares, mas agora estava nu: quando se
está nu não se tem dinheiro. O dinheiro torna-se abstracto de mais quando oito homens nus
coincidem no mesmo espaço. E tentam não morrer. (idem: 52)
Homens nus lutam pela sobrevivência, coincidindo no espaço e, de repente pouco
importa quanto dinheiro se tem. A nudez banaliza e banaliza-se: “as pernas das raparigas
perderam importância” (53). A exposição excessiva parece desvalorizar o corpo, mas
simultaneamente torna-o mais relevante que nunca, até porque “não há profissões, mas
as habilidades aumentaram” (ibidem). É fundamental ter um corpo, porque é o corpo que
permite fugir e reagir ao conflito. Contudo, a sua exposição parece perder relevância. A
guerra aproxima a condição humana da condição de “animal”:
Na guerra não há caridade e a dor diminui bruscamente de valor. No tédio a dor é um negócio de
diamantes, uma transacção capaz de causar o espanto de muitos. Na guerra não. A dor não é
nenhum prodígio na guerra, os animais sofrem, são amputados e avançam, porque as queixas são
apenas para os lentos. Na guerra os corpos estão mais perto uns dos outros, tanto dos amigos como
entre inimigos. (idem: 56)
A dor perde relevância na guerra, até porque “as queixas são para os lentos”.
Resistir à dor deixa de ser sinónimo de resistência, passa a ser um imperativo. Todos têm
um corpo, e a sua existência parece ser especialmente relevante neste período, até porque
“os corpos estão mais perto uns dos outros”. Emerge a tenacidade como imperativo moral:
72
sobrevivem mais e melhor à guerra os que sentem menos a dor, até porque, relembre-se,
“a brutalidade instalou-se e já não magoa ninguém”. Os poucos a quem a brutalidade
ainda “magoa” terão de se adaptar, ou talvez não sobrevivam.
No fundo, procura-se “mostrar a força nua, motivada pela densa vontade de
(sobre)viver a qualquer custo. A qualquer custo significa que sobreviver pode custar a
moral, a alteridade” (Eiras 2015: 113). Acima da moral ou dos traços identitários está a
sobrevivência, que assume revigorada importância mediante as circunstâncias, e de súbito
“os valores, a compaixão, a cultura constituem um excesso a justificar”. Em Um Homem:
Klaus Klump “os animais sabem a lei: a força, a força, a força. Quem é fraco cai e faz o
que o forte quer” (Tavares 2003: 22). A possibilidade desta queda incita o homem a
“mostrar a força nua” de que fala Eiras: “um homem insignificante com raiva torna-se
forte” (2015: 46).
Talvez isto explique a própria trajetória de Klump, um homem que, no começo da
narrativa, “quer fazer livros que perturbem os tanques em definitivo” (Tavares 2003: 13),
ou seja, uma personagem de comportamento pacífico, contrário ao do caos que se instala
na cidade. É o próprio narrador que o diz: “amigos de Klaus já haviam sido mortos.
Amigos de Klaus já tinham matado ou tentado matar. Klaus, esse, mantinha-se neutro.
Ainda não entraram na minha tipografia, dizia Klaus. (…) Klaus detestava a acção,
enojava-se com a terra” (idem: 23). Este perfil é contrastante com o do mesmo homem
que, páginas à frente, se encontra na prisão. Klaus encontra-se rodeado de “loucos”:
Os presos eram gente louca e velha que não abria os olhos. O homem de queixo com baba canta
uma canção infantil e repete-a quinze vezes. Klaus está sozinho. (…) Estavam todos nus: com ele
oito homens nus na mesma cela e um deles a aproximar-se a pôr baba na nuca de Klaus. Eram
loucos. (…) Klaus tenta afastar-se, ir para o canto, mas um deles tem um arame e é aquele que se
babou na nuca de Klaus. (…) Assustado e encostado a uma parede tentou sinais de delicadeza.
(50)
De súbito, a nudez é literal, a “força nua” é a única lei da prisão onde Klaus se
encontra. Não lhe sobra o refúgio da tipografia ou dos livros, nem outra hipótese que não
também “saber a lei”, como os animais: “a força, a força, a força”. A identidade de Klaus,
um homem que acredita no poder dos livros, está subitamente alterada. Como é referido,
por exemplo, por Kenneth Gergen, em The Saturated Self: Dilemmas of Identity in
Contemporary Life, talvez a identidade esteja “constantly in flux and cannot be isolated
as a permanent construction” (2000: 122). Estas mudanças dos traços reconhecidos a
73
Klaus, em função da realidade em que se encontra, para aí apontam. E talvez a urgência
de sobreviver explique a forma como a identidade de Klaus progressivamente se altera,
acabando alguns meses depois por atacar o pai, que o visita na cadeia:
Uma semana mais tarde, o pai de Klaus, sozinho, entrou na prisão. (…) Vinha com passos
vigorosos, vinha feliz. Sentou-se no gabinete de visitas à espera do filho. (…) Viu Klaus lá ao
fundo a aproximar-se. (…) O pai de Klaus olhou instintivamente para a mão direita de Klaus:
estava a sangrar. Não percebeu o que se passava. Continuou a olhar para a mão. Klaus tinha na
mão direita um caco de vidro que apertava com força. (…) O pai preparava-se para perguntar o
que lhe tinha acontecido à mão: Klaus acelerou os últimos passos, levantou a mão direita, e com
força, cravou o vidro no olho do pai. Com toda a força que tinha. (Tavares 2003: 58)
Novamente, “a força”. O comportamento de Klaus, um homem que “detestava a
acção”, altera-se, fruto da violência a que é sujeito na cadeia. A “força nua” de Klump é
agora um requisito à sobrevivência. Como diz Maria Isabel Silveira Bordini, a alteração
do comportamento de Klaus parece “resultado do processo de transformação que a prisão
exerceu sobre ele: ele se tornou um delinquente, alguém incapaz de agir segundo as
normas de convivência social” (2014: 132). A identidade é um conceito mutável: como
diz Bordini, Klaus transforma-se em “delinquente”, estando no meio de delinquentes.
Reportando-se à peste, tema já citado, Foucault afirma:
[As] leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os corpos se misturando
sem respeito, os indivíduos que se desmascaram, que abandonam a sua identidade estatutária e a
figura sob a qual eram reconhecidos, deixando aparecer uma verdade totalmente inversa (1975:
164)
O contexto de guerra parece ter efeitos muito semelhantes nos traços de
personalidade das personagens. Um evento concreto eclode na cidade, condiciona a vida
dos intervenientes, estabelece-lhes novos hábitos, erradica outros. Em Foucault, uma
epidemia suspende leis, levanta interditos, e torna o corpo “misturado e sem respeito”: no
fundo, faz os indivíduos “abandonarem a sua identidade”. O mesmo se passa na guerra
tavariana, que impõe adaptações no estilo de vida e identidade das personagens. Serão
essas alterações circunstanciais? O que acontecerá depois do caos?
Finda a guerra, Klaus assume o papel que todos esperavam e assume os negócios
da família: “Klaus trabalha muito. Klaus voltou há bastante tempo à cidade. E ocupou o
74
seu lugar na família Klump” (Tavares 2007: 128). E isto é especialmente curioso, por
apenas surgir depois de uma série de descrições relativas à mudança em curso na cidade,
que via a guerra findar: Klaus muda, mas apenas depois de a cidade também mudar.
Verifica-se que, também aqui, a identidade como resultante de um “dynamic interplay
between individual and context” (Schwartz 2006: 4). Ou seja, o individual também é
social: este “dynamic interplay” é fundamental para a definição os traços identitários.
Esta informação é apresentada de forma progressiva: “sucediam-se os burburinhos
de que a guerra podia estar a aproximar-se do fim” (Tavares 2007: 109); “E foi então, que
para a sua surpresa leu, em toda a primeira página: A GUERRA TERMINOU!” (116).
Terminada a guerra, “a democracia instala-se no país como uma borracha que se vai
derretendo lentamente” (121). São feitas algumas considerações sobre esta progressiva
instalação e sobre o que ela significa nos hábitos da população:
Certos índices para a paz. Os homens justam-se menos, há menos grupos. É um facto: a solidão
aumenta nas nações pacíficas. (…) A boca é importante em tempo de guerra: as pessoas têm fome;
em tempo de democracia, os lábios mantêm a importância, mas agora são ocupados pelos
discursos. A linguagem é mais utilizada em tempo de paz, sobre isso não há dúvida: em tempo de
guerra não há conversas, apenas informações. (…) Entretanto a economia cresceu. Como as
crianças crescem. Certos números que eram pequenos são agora grandes. Criam-se profissões para
organizar o mundo. Todo o espaço, cada metro quadrado, deverá estar ocupado por profissões.
(ibidem: 128)
Na guerra, Klaus lembra a forma como Foucault descreve a peste, e assume uma
identidade violenta, que tem apogeu na agressão ao próprio pai. Quando Foucault
descreve “as leis suspensas, os interditos levantados, o frenesi do tempo que passa, os
indivíduos que (…) abandonam a sua identidade estatutária e a figura sob a qual eram
reconhecidos” (1975: 164), talvez possamos interpretar estes fatores como potenciadores
da mudança individual: da mudança na formação de identidade que, como já citado, “é
uma obra-prima que se faz dia e noite, [que] demora mais tempo que a fazer um palácio,
[e que] (…) é um trabalho onde se entra, requer esforço” (Tavares 2007: 29).
Recuperemos as definições de Fearon. Parece evidente que, para Klump, herdeiro
de um dos maiores impérios da cidade, a ideia de quem ele próprio é, e de como se
relaciona com os outros muda consideravelmente ao longo da narrativa. Klaus passa de
legítimo herdeiro de um império a presidiário violentado e violento, para de novo assumir
o papel de empresário. A sua identidade flutua em função da realidade envolvente. O
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mesmo se passa com a identidade social, definida por Herrigel como “desire for group
distinction, dignity, and place within historically specific discourses (…) about the
character, structure, and boundaries of the polity and the economy” (apud Fearon 1999).
Para entender como a guerra inverte prioridades e ideais, nada como analisar a
retoma da ordem na cidade. O narrador diz que a economia cresceu, as crianças
cresceram, e o objetivo é agora a distribuição de empregos. Ou seja, o “character,
structure, and boundaries of the polity and the economy” mudam assim que o conflito
termina. A guerra assume-se como um agente interruptivo da identidade social, e o seu
fim permite que tudo se aproxime do que antes existia.
Como foi possível verificar em capítulos anteriores, também os traços de
personalidade, condicionados por contextos de conflito, constituem uma das principais
marcas da narrativa kunderiana. Por exemplo, em A Brincadeira, procura-se
deliberadamente condicionar a posição política dos exilados no quartel de Ostrava. Em A
Insustentável Leveza do Ser, Tomas muda de profissão devido à perseguição política, e
mesmo nessas circunstâncias é feita uma tentativa para que se retrate publicamente.
He also believed that his country was losing its identity under the Communist regime. The idea is
that it is not only the existence of the individual but all the social and cultural phenomena which
constitute the consciousness of the individual became victim under a repressive regime. Culture
which is the product of human pain, is, in fact, the first victim of the power which negates human
freedom. For Kundera individuality, freedom and tolerance, the greatest human values idealised
by western civilization since the dawn of the modern era, seem to be suddenly under siege. (Asif
2014: 171)
Kundera parece, então, ter como algumas das suas principais preocupações a
perda de identidade dos checos durante o regime comunista: a repressão está no poder e
a individualidade está em risco.
George Orwell, em Why I Write, declara “não ser possível conhecer as razões de
um autor sem se saber algo do seu percurso prévio” (2008: 16). Talvez seja uma afirmação
perigosa: conhecer epitextos do autor pode enriquecer a obra com novas interpretações
mas também condicionar a leitura. Orwell fala das “razões do autor”, dizendo que “os
seus temas serão determinados pela época em que vive – pelo menos, isto é verdade no
que respeita a épocas tumultuosas e revolucionárias, como a nossa” (ibidem). Em
entrevista ao New York Times, Kundera fala também sobre opressão e literatura:
76
Let us not be romantic. When oppression is lasting, it may destroy a culture completely. Culture
needs a public life, the free exchange of ideas; it needs publications, exhibits, debates and open
borders. Yet, for a time, culture can survive in very difficult circumstances. After the Russian
invasion in 1968, almost all Czech literature was banned, and circulated only in manuscript. Open
public cultural life was destroyed. Nonetheless, the Czech literature of the 1970's was magnificent.
(…) It was then, at the most perilous time of its existence, that Czech literature gained its
international reputation. (1985)
Kundera parece escrever, então sobre a opressão do regime checo e sobre a
resistência enquanto forma de incentivar o que é categorizado como “free exchange of
ideas”. Contudo, parecem também ser relevantes dois pontos referidos por Orwell:
Descontando a necessidade de ganhar a vida, penso que há quatro grandes motivos para escrever,
em todo o caso, para escrever prosa (…) são eles:
iii) Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como são, de descobrir factos verdadeiros, e de os
armazenar para uso da posteridade.
iv) Propósito político (…) o desejo de empurrar o mundo numa dada direcção, de alterar as ideias
das outras pessoas acerca do tipo de sociedade pela qual devem lutar. (idem: 17)
Estes dois motivos parecem fundamentais para enquadrar a obra de Kundera..
Usando a expressão orwelliana, Kundera debruça-se sobre um “período tumultuoso” pelo
qual passou. Kundera começa a publicar romances em 1967 com A Brincadeira, obra que
lhe valeu entrada direta nos registos censórios do regime totalitário do seu país. Parte da
sua obra é testemunho desse período histórico. Contudo, talvez a análise possa ser feita
de forma mais lata, como um testemunho do sofrimento do oprimido às mãos do opressor.
Será possível entender a obra de Kundera como um marco de resistência à opressão?
Uma das obras de Kundera chama-se, precisamente, A Identidade. Antes de
lermos as considerações da narrativa sobre esse conceito, atente-se no texto da contracapa
na edição portuguesa (Edições Dom Quixote, 2010):
Chantal e Jean-Marc vivem juntos em Paris, e amam-se tanto que por vezes parecem confundir-
se. Há situações em que, por um instante, nenhum dos dois se reconhece, em que a identidade do
outro se dissolve e em que, por tabela, cada um duvida da sua própria identidade. (…) Mas em que
instante, diante de que gesto, em que circunstância precisa começa esse processo aterrador?
77
Mesmo antes da leitura do texto, é fácil entender que estamos perante novos
prismas de análise do conceito de identidade. Desta vez, não parece ser um poder político,
ou sequer uma instituição, que altera o status quo de um indivíduo, um conjunto
circunscrito de indivíduos, ou uma cidade inteira. Parece mesmo que o protagonista se
submete a essa alteração, ao sujeitar-se ao relacionamento com a outra personagem.
Trata-se de alterações deliberadas? Serão imposições de Chantal a Jean-Marc, ou vice-
versa? Afetarão a sua relação com os outros?
Façamos estas questões ao texto. A narrativa fala de Chantal e Jean-Marc; as
primeiras páginas são dedicadas a uma retrospetiva do passado da protagonista: Chantal
já tinha sido casada, relação da qual tinha nascido um filho, entretanto morto. Um curioso
episódio marca o início da narrativa. Chantal “acordou a meio da noite depois de um
longo sonho (…) povoado de pessoas do seu passado: a mãe (…), antigo marido” (1997:
10). Este episódio parece causar algum desconforto a Chantal, que reflete sobre “o mal-
estar suscitado pelo sonho”:
O que a perturbou assim, pensa ela, foi a supressão do tempo presente operada pelo sonho. Está
apaixonadamente apegada ao seu presente e não o trocaria por nada deste mundo, nem pelo
passado nem pelo futuro. Por isso é que não gosta de sonhos: impõe uma inaceitável igualdade
entre as diferentes épocas de uma mesma vida, uma contemporaneidade niveladora (ibidem)
Este excerto parece explicar o texto da contracapa do livro: Chantal demonstra
desagrado com uma “contemporaneidade niveladora”, ou seja, com o equilíbrio que os
sonhos parecem sugerir entre presente e passado. Numa relação aparentemente idílica
com Jean-Marc, sente essa nivelação como uma ameaça ao presente: como se o sonho
pudesse colocar um passado, do qual pretende distância, e o presente, que se deseja, num
mesmo patamar. Contudo, Kierkegaard dizia que “it is perfectly true, as the philosophers
say, that life must be understood backwards, but they forget the other proposition, that it
must be lived forwards” (1996: 164). Ou seja, o presente surge com base no passado, e
Chantal também parece pensar desta maneira: “recordou-se de repente do filho que lhe
morrera e foi inundada por uma onda de felicidade” (Kundera 1997: 41). Se estas palavras
parecem duras, mais à frente é explicado que “significava que a sua presença ao lado de
Jean-Marc era absoluta graças à ausência do filho” (45).
Chantal sabe que a separação do ex-marido e o aparecimento de Jean-Marc foram
consequência da morte do filho. E ainda que os sonhos sejam desconfortáveis, não
78
significa que Chantal não saiba o relevo do papel desses sonhos. O mesmo se passa em
relação ao futuro: “pode-se sofrer de nostalgia na presença do amado quando se entrevê
um futuro em que o amado já não existe; quando a morte do amado, invisível, está já
presente” (ibidem). Tudo isto parece consequência da relação entre as duas personagens,
e um acontecimento é especialmente relevante para entender melhor o que as une:
Ela disse-lhe que dormira mal, que estava cansada, mas não conseguiu convencê-lo, e ele
continuou a interroga-la; sem saber como fugir a esta inquisição do amor, ela queria dizer-lhe
qualquer coisa engraçada (…) e encontrou dentro da sua cabeça a frase que lá ficara (…): Os
homens já não se voltam por minha causa. – recorreu a esta frase para se furtar a qualquer discussão
séria (…) mas a voz era amarga e melancólica. (…) ouvia Jean-Marc a repetir as suas palavras:
“Os homens já não se voltam por tua causa. É mesmo por isso que estás triste?” (27)
O narrador volta a referir, em consequência deste episódio, que Chantal não sabia
o que fazer para “desviar aquele olhar perscrutador” (ibidem). Ou seja, voltamos a assistir,
como na obra tavariana, a traços identitários condicionados por terceiros. Contudo, desta
vez a coerção é fruto de uma relação amorosa: Chantal adapta-se ao julgamento e
expectativas de Jean-Marc, e isso acontece mesmo numa esfera não visível, como no
sonho com pessoas do seu passado. A adaptação identitária passa-se na dimensão de uma
só pessoa e em função das expectativas de outra, mas Chantal parece ser vítima de um
poder emocional que condiciona os seus pensamentos e atitudes. Aliás, o narrador diz: “o
episódio foi esquecido como milhares de outros” (idem: 29). Ou seja, episódios deste
género são recorrentes, e a relação de Chantal e Jean-Marc, ainda que aparentemente
idílica, vive de cedências permanentes. Talvez seja o que Barthes apelidava de
“annulment”, em A Lover’s Discourse: Fragments:
Here then the other is annulled by love: I derive a certain advantage from this annulment; (…) I
reabsorb it into the magnificence and the abstraction of amorous sentiment: I soothe myself by
desiring what, being absent, can no longer harm me. Yet, immediately thereafter, I suffer at seeing
the other (whom I love) thus diminished, reduced, and somehow excluded from the sentiment
which he or she has provoked. I feel myself to be guilty and I blame myself for abandoning the
other. (1990: 32)
Chantal, usando a expressão de Barthes, “anula” parte do seu passado, que
continua a afetar o seu inconsciente e desempenha parte fundamental do seu presente.
Mais que isso, o tom inquisitório do marido, diante da sua frustração por “os homens já
79
não se voltarem”, parece forma de anular o traço identitário que sustenta essa tristeza: o
facto de Chantal se preocupar com “os homens já não se voltarem”.
Recordemos a definição de “identidade” citada no começo: “identity is “people’s
concepts of who they are, of what sort of people they are, and how they relate to other”
(Hogg e Abrams apud Fearon 1999). Chantal sente-se incomodada por “os homens já não
se voltarem por sua causa”, mas entende esse comportamento como errado, tenta reprimi-
lo: afinal, está satisfeita com a relação com Jean-Marc. Sente-se incomodada pelos sonhos
com pessoas do seu passado: se está plenamente satisfeita com o presente, por que é que
o seu inconsciente insiste em invocar o passado? Será o poder que a relação com Jean-
Marc exerce sobre si suficientemente forte para adaptar os seus comportamentos,
exacerbar receios e instigar à procura de novos comportamentos? Não significa também
isso alterar a sua identidade?
Noutro capítulo, o narrador fala, em retrospetiva, da morte do filho de Chantal.
Após a morte do filho, a cunhada disse-lhe: “Estás triste de mais. Tens de ter outro filho”
(Kundera 1997: 33). Isto leva Chantal a uma defesa da individualidade do filho.
A observação da cunhada apertou-lhe o coração. Filho: existência sem biografia. (…) Mas ela não
queria esquecer o filho. Defendia a sua individualidade insubstituível. Contra o futuro, defendia
(…) o passado escurado e menosprezado do pequeno morto. Passada uma semana, disse-lhe o
marido: (…) “Temos de ter outro filho sem demora. Depois disso, hás-de esquecer.” Foi então que
nasceu em si a decisão de o deixar. (idem: 33)
Chantal deixa o marido em defesa do “pequeno morto”, que lhe parece estar a ser
esquecido por quem a rodeia. Insistem com ela para que tenha outro filho, mas Chantal
resiste ao poder emocional do ex-marido. É descrito que Chantal “se recusou a fazer amor
com ele (…) [porque] os seus convites eróticos recordavam-lhe a campanha familiar por
uma nova gravidez” (34). Evidencia-se a relação do poder emocional com as mudanças
identitárias ainda que, neste caso, Chantal tenha oferecido resistência. Neste caso, a
personagem parece entender a sua tristeza como forma de resistência à diluição da
identidade do filho, como barreira ao poder emocional. Como na generalidade das
situações deste romance, continuamos dentro de um quadro do que foi definido como
identidade individual. Estamos muito distantes de alterações ao comportamento de
terceiros por sociedades totalitaristas ou por instituições especializadas.
Contudo, como já foi descrito, nas narrativas kunderianas são recorrentes as
sociedades totalitárias: enquanto parte central da narrativa ou como pano de fundo. O
80
contexto histórico e geográfico é concreto. Parte considerável das suas personagens
adapta comportamentos e discursos para viver num regime totalitário, em que os
prevaricadores são punidos – relembremos Ludvik, encarcerado no quartel de Ostrava,
em A Brincadeira. Os regimes totalitaristas parecem, de forma geral, máquinas bem
oleadas para moldar a identidade dos indivíduos ao que lhes parece mais conveniente:
Contudo, o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças directas e crimes
contra indivíduos é o uso de insinuações indirectas, veladas e ameaçadoras contra todos os que
não derem ouvidos aos seus ensinamentos, seguidas de assassínio em massa perpetrado igualmente
contra “culpados” e “inocentes”. (Arendt 1958: 456)
Em Kundera nunca chegamos ao “assassínio em massa”, mas os restantes cenários
são frequentes. Relembremos a forma como Tomas, em A Insustentável Leveza do Ser, é
destituído do seu cargo de cirurgião, em detrimento de um trabalho de menor relevância,
por uma opinião política emitida meses antes. É-lhe proposta a readmissão no cargo de
cirurgião caso assine um texto em que se declara favorável ao regime: “Tomas leu-o [ao
texto] e teve um choque. Era bem pior do que o que o seu antigo chefe de serviço lhe
exigira (…) Havia várias referências ao seu amor pela União Soviética e à sua fidelidade
ao Partido Comunista” (Kundera 1984a: 239)
Como diz Arendt, “O totalitarismo não se contenta em afirmar (…) que o
desemprego não existe; elimina da sua propaganda qualquer menção sobre os benefícios
para os desempregados” (1958: 452). Por vezes, a forma de “eliminar qualquer menção”
passa por perseguir e prejudicar os difusores da mensagem que se opõe à propaganda.
Em O Livro do Riso e do Esquecimento, o narrador descreve o seguinte episódio:
Pouco depois de os Russos ocuparem o meu país, em 1968, expulsaram-me do meu trabalho (como
a milhares e milhares de outros checos), e ninguém teve o direito de me dar outro emprego. Nessa
altura, amigos jovens vieram ter comigo, eram demasiados jovens para já estarem nas listas dos
russos, e, portanto, podiam ficar nas salas de redação (…) Estes bons e jovens amigos (…)
propuseram-me que escrevesse com os nomes deles teatro radiofónico e televisivo, peças de teatro,
artigos, reportagens, argumentos para filmes, para que pudesse ganhar a vida. (Kundera 1979: 62)
Novamente, o cenário é Praga dominada pelo regime comunista. O narrador relata
que milhares de pessoas, “nas listas dos russos”, ficavam privadas dos seus empregos. De
seguida, descreve como isso condicionou a vida profissional de cada um, forçando a que
81
procurassem alternativas. Atente-se como, novamente, o poder surge como agente
modificador do estilo de vida dos oprimidos:
Utilizei alguns destes serviços, mas a maior parte das vezes recusei-os (…) era perigoso. A polícia
secreta queria-nos famintos, submeter-nos pela miséria, obrigar-nos a capitular e a retractar-nos
publicamente. Por isso fiscalizava, vigilante, as penosas saídas através das quais tentávamos
escapar ao cerco, e castigava duramente os que ofertavam o seu nome. (ibidem)
A polícia secreta “queria-[n]os famintos”, para que se retratassem e mudassem a
posição pública sobre a “pureza da ideologia marxista” (idem: 63). No fundo, procuravam
converter, de forma forçada, a ideologia política dos que acreditavam em ideias
diferentes. Restringindo a atuação profissional dos transgressores, obrigava a uma
manifestação pública de acordo com os princípios e ideias do próprio regime, como se de
uma conversão forçada se tratasse sem, ainda assim, evidenciar sinais de força. Manifesta-
se o uso do que Arendt apelida de “predição infalível”: “uma vez no poder, o chefe das
massas cuida de algo que está acima de quaisquer considerações (…) fazer com que as
suas predições se tornem verdadeiras” (1958: 461).
Por outro lado, essa predição surge como forma de eliminar uma classe perigosa
para o poder instituído:
O efeito propagandístico da infabilidade, o extraordinário sucesso que decorre da humilde pose do
agente interpretador de forças previsíveis, estimulou nos ditadores totalitários o hábito de anunciar
(…) profecias. Estaline, no discurso proferido perante o Comité Central do Partido Comunista em
1930, ao descrever os seus dissidentes no partido como representantes de “classes agonizantes”,
abriu caminho para a sua eliminação física. Em estilo totalitário, esta definição anunciava a
destruição física daqueles cuja “agonia” acabava de ser profetizada. (idem: 462)
Por estarmos a falar igualmente de um regime comunista, ainda que em períodos
históricos (primeira metade do século) e países (antiga União Soviética) diferentes, talvez
estas palavras possam ser extrapoladas para a realidade kunderiana. Os dissidentes do
partido comunista estavam condenados ao estatuto de “classe agonizante”, e para o
regime se certificar da infabilidade dessa previsão, procura-se condicionar a vida desses
elementos. Os responsáveis do regime procuram que estes se retratem e deixem de fazer
parte dessa “classe agonizante”. De uma forma ou de outra, a sua identidade é alterada:
seja pela mudança abrupta no estilo de vida (emprego, rendimentos, etc.), seja pela forma
82
como, publicamente, declaram uma posição política diferente da sua. Como questiona
Asif, “if a man is not what he claims to be, if his intentions seems to be immaterial, and
he is forced to identify with an image which, he thinks, does not resemble with his real
self then the question is where is the real self?” (2014: 179). Como já verificámos, este
não é o único romance de Kundera em que uma personagem “is forced to identify with
an image which, he thinks, does not resemble” as suas próprias posições sobre o tema.
Aliás, este discurso, situado num contexto totalitário, bem identificado geográfica
e temporalmente, não é exclusivo de apenas um romance. Voltemos a A Insustentável
Leveza do Ser. O narrador disserta sobre os regimes comunistas:
Quem pensa que os regimes comunistas da Europa Central são exclusivamente obra de criminosos
deixa na sombra uma verdade fundamental: é que os regimes comunistas não foram edificados por
criminosos, mas por entusiastas, convencidos de que tinham descoberto a única via possível para
o paraíso. E defendiam essa via com unhas e dentes, chegando inclusivamente a mandar matar
muito boa gente por causa disso (…) O debate resumia-se, portanto, a uma questão: os comunistas
não saberiam mesmo? Ou estavam só a fingir que não sabiam de nada? (…) Um imbecil sentado
num trono pode ser desculpado de tudo só pelo facto de ser imbecil? (Kundera 1984: 224)
Ou seja, mais do que condicionar traços identitários e, consequentemente, atitudes
da população, de forma mais ou menos deliberada, os regimes comunistas totalitários
condicionam a ação dos seus entusiastas. Cegos pelo brilho do que julgam ser “a única
via possível para o paraíso”, mandam “matar muito boa gente”. Trata-se de atitudes
condicionadas pelas circunstâncias, e semelhante se passou em algumas das situações
descritas na tetralogia, de Tavares – como exemplo, relembremos os comportamentos de
Klaus Klump, antes e depois de a guerra acabar. Como tivemos oportunidade de analisar,
a definição de norma oscila em função dos acontecimentos: o mesmo se passa com os
traços identitários. Aliás, na obra de Kundera e Tavares, os regimes totalitários e a guerra
parecem ser agentes perturbadores da norma e da identidade.
Algumas páginas à frente, o narrador volta a insistir na forma como o poder
totalitário condiciona as atitudes dos indivíduos no poder:
Numa sociedade onde coexistem várias correntes políticas cuja influência se anula ou se limita
reciprocamente, sempre se vai conseguindo escapar à inquisição do kitsch; o indivíduo ainda pode
salvaguardar a sua individualidade e o artista criar obras inesperadas. Mas, nos países onde um
único partido detém todo o poder, não há escapatória possível ao império do kitsch totalitário. Se
digo totalitário, é porque tudo quanto pode fazer perigar o kitsch é banido da vida: não só toda e
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qualquer manifestação de individualismo (…), toda e qualquer manifestação de cepticismo (…),
toda e qualquer manifestação de ironia (Kundera 1984: 314)
Se “um único partido detém todo o poder”, a identidade está ameaçada. As
“manifestações de individualismo”, de que fala o narrador, parecem bons indicadores da
forma como os traços identitários são definidos. Se as manifestações de traços próprios
estão condicionadas, o poder totalitário neutraliza o projeto identitário, pessoal e coletivo.
O narrador diz mesmo que numa sociedade totalitária, “não há escapatória possível ao
império do kitsch totalitário”. O que quer dizer o narrador com “kitsch totalitário”?
Haverá identidade que lhe sobreviva?
Em A Arte do Romance, Kundera fala sobre kitsch:
Quando estava a escrever A Insustentável Leveza do Ser, sentia-me um pouco inquieto por ter feito
da palavra «kitsch» uma das palavras-base do romance. Na versão francesa do célebre ensaio de
Hermann Broch, a palavra «kitsch» é traduzida por «arte da pacotilha» (…) Há a atitude kitsch. O
comportamento kitsch. A necessidade kitsch do homem-Kitsch: é a necessidade de se olhar ao
espelho da mentira que embeleza e de aí se reconhecer com uma satisfação enternecida. (1986:
153)
Talvez o facto de o narrador categorizar o totalitarismo de A Insustentável Leveza
do Ser como “kitsch totalitário” possa ser uma forma de apelidar esse totalitarismo de
“mentira que embeleza”. Parece ser o que Hannah Arendt refere como “ficção central”:
algo que procura criar “uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras
de um mundo fictício” (1958: 481), uma sociedade em que a identidade individual seja
preterida em função de uma identidade coletiva, com raízes nessa “ficção central”.
Até porque, como diz John Bayley, no ensaio “Kundera and Kitsch”, “in a
Communist regime there is no private life, but only bottomless cynicism on the one side
and measureless kitsch on the other” (2003: 24). O cinismo, talvez consequente da
consciência da repressão totalitária, ocupa toda a vida privada. Não há como evidenciar,
sem medo das consequências, traços de personalidade num cenário repressivo. A
identidade coletiva está, então, condicionada pelo “measureless kitsch”, ou por aquilo a
que Kundera chama “a mentira que embeleza”. Talvez embeleze a “ficção central”, de
que fala Arendt, destruindo a possibilidade de uma identidade intocada.
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III. Conclusão: a originalidade e as “ideias do mundo”
Em Biblioteca, Gonçalo M. Tavares escreve “sobre 200 autores que [o]
marcaram” (Tavares 2017b). Entre eles encontra-se Milan Kundera.
Antes de refletir sobre o comentário de Tavares à obra do checo, e porque falamos
de autores de gerações diferentes, parece que, a existir influência, será a de Kundera sobre
Tavares. Kundera é mais velho, publicou quase toda a sua obra antes da saída de Livro
da Dança (2001), primeiro livro de Tavares, e a inclusão de Kundera na obra Biblioteca
parece apenas mais um sinal desse peso. Ambos, como vimos, parecem ser herdeiros de
uma linhagem de romance-reflexão, expressão de Vergílio Ferreira.
Em A Vida Não É Aqui, num dos comuns comentários à narração, o narrador
disserta sobre este processo de influência, falando sobre o protagonista do romance,
Jaromil: “não tinha já a certeza se algo do que ele pensava ou sentia era verdadeiramente
seu, ou se os seus pensamentos eram meramente parte das ideias do mundo, que sempre
haviam existido, prontas a usar, e que se emprestavam, como livros numa biblioteca”
(Kundera 1969: 108). Talvez todos os autores sofram da angústia de Jaromil, e em algum
momento duvidem da originalidade das suas narrativas e das ideias que as sustentam. E
talvez a melhor maneira de lidar com o que Harold Bloom, anos mais tarde, viria a
apelidar de Angústia da Influência (1973) seja o reconhecimento dessa inevitabilidade.
Como diz Tavares, o ponto de partida de A Biblioteca “é a obra dos autores”, ainda que
exista lugar para “associações inconscientes e puramente individuais” (2004a: 9). E essas
associações talvez possam não ser tão individuais assim, talvez sejam as “ideias do
mundo” de que o narrador de A Vida Não É Aqui fala, que estão prontas a usar.
Exploremos o que se situa entre as duas possibilidades. Parece evidente que a
questão da originalidade é transversal a diferentes formas de expressão artística. À
questão “do you consider yourself an original thinker?”, David Bowie responde:
Not by any means. More like a tasteful thief. The only art I’ll ever study is stuff that I can steal
from. I do think that my plagiarism is effective. Why does an artist create, anyway? The way I see
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it, if you’re an inventor, you invent something that you hope people can use. I want art to be just
as practical. (…) The more I get ripped off, the more flattered I get. But I’ve caused a lot of
discontent, because I’ve expressed my admiration for other artists by saying, ‘Yes, I’ll use that,’
or, ‘Yes, I took this from him and this from her’ (1976)
Para Bowie, admirar significa reaproveitar. Ainda que estes caminhos possam ser
um pouco mais sinuosos do que na descrição de Bowie, parece-nos natural que a leitura
e a admiração resultem no reaproveitamento de algumas características do autor lido.
Tavares, em Biblioteca, expressa-se de forma críptica – como de resto, é o registo
comum do texto em causa – sobre a obra de Kundera:
Entre os vivos há cálculos, medo, e uma ou outra vez: gemidos (quando dois ou mais se apaixonam
ou se matam).
Há ainda a gentileza, que a frase anterior não incluía.
O moribundo esquece o nome, mas não esquece o corpo.
Se tiveres duas dores darás atenção à dor que acabou de surgir. E no amor sucede o mesmo.
O prólogo à realidade é magnífico, mas o pior vem depois. (2004a: 120)
Abrirá este texto novas interpretações da obra kunderiana? Possibilitará novos
caminhos comparatistas entre os dois autores?
Parece fácil, contudo, encontrar algumas palavras que remetem para os universos
dos dois autores: por exemplo, o “medo” é uma sensação muito comum na repressão
totalitarista de Kundera, e prolifera nas relações entre poderosos e subjugados, ou no caos
de O Reino. Em Tavares o “corpo” surge amiúde como último reduto de resistência, já
depois de “esquecer o nome”. Em Kundera, como o texto de Tavares indica, as referências
ao corpo talvez sejam “a dor” que, entre as duas, “acabou de surgir”: “o pior vem depois”.
O corpo e a dor talvez podem surgir enquanto metáfora da forma da prosa kunderiana,
em que ação e reflexão surgem com papéis diferenciados, mas complementares. Em
Kundera, são comuns os prólogos à “realidade”: os comentários do narrador costumam
surgir com a descrição da ação. Se o prólogo for entendido como a posição do narrador
sobre a realidade, será por isso que “o pior vem depois”? Será o “pior” o mundo caótico
da descrição da ação das personagens, na qual a posição de quem conta a história perde
importância para a narração?
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Talvez só Tavares saiba responder a estas questões. O que parece evidente é que,
além de partilharem alguns mecanismos de construção romanesca, as relações de poder
surgem como uma temática recorrente na obra de Tavares e Kundera.
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