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RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004 Liberdade Cultural num Mundo Diversificado Publicado para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) Lisboa MENSAGEM - Serviço de Recursos Editoriais, Lda. Rua Dr. Manuel de Arriaga, 68-D 2745-158 QUELUZ PORTUGAL AGRADECIMENTO A tradução e a publicação da edição portuguesa do Relatório do Desenvolvimento Humano 2004 só foram possíveis graças ao apoio do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD).

RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004...prestar uma homenagem especial a Sakiko Fukuda-Parr, que está de saída após 10 anos de liderança bem sucedida do nosso Gabinete do Re-latório

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  • RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004

    Liberdade Culturalnum MundoDiversificado

    Publicadopara o Programa das Nações Unidaspara o Desenvolvimento(PNUD)

    LisboaMENSAGEM - Serviço de Recursos Editoriais, Lda.Rua Dr. Manuel de Arriaga, 68-D2745-158 QUELUZPORTUGAL

    AGRADECIMENTO

    A tradução e a publicação da edição portuguesado Relatório do Desenvolvimento Humano 2004

    só foram possíveis graças ao apoio doInstituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD).

  • MENSAGEM - Serviço de Recursos EditoriaisRua Dr. Manuel de Arriaga, 68-D – 2745-158 QUELUZ

    Telef. +351 214 342 110 • Fax +351 214 342 119

    Copyright ©2004do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento1 UN Plaza, New York, New York, 10017, USAhttp://www.undp.org/undp/hdro

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode serreproduzida ou transmitida, de qualquer forma ou por qualquer meio, electrónico,mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem autorização da Editora Mensagem.

    Edição em língua portuguesa MENSAGEM - Serviço de Recursos EditoriaisRua Dr. Manuel de Arriaga, 68-D – 2745-158 QUELUZTelef. +351 214 342 110 • Fax +351 214 342 119

    Tradução: José Freitas e Silva

    Coordenação da tradução e revisão técnica: João Estêvão

    Capa e design: Gerald Quinn, Quinn Information Design, Cabin John, Maryland

    Paginação e preparação gráfica: João Mendes - Artes Gráficas, Lda. – Telemóvel 919 032 125

    Impressão e acabamento: SIG – Sociedade Industrial Gráfica, Lda.Bairro de S. Francisco, Lote 1-6P. 2685-466 Camarate – PORTUGALTelefone: (351) 219 473 701 • Fax: (351) 219 475 970

    ISBN 972-8730-18-7

    Depósito Legal N.° ?????? / ??

    Para qualquer erro ou omissão encontrado no presente Relatório após a sua impressão, consultar website do PNUD em http://hdr.undp.org

  • Equipa nuclearCarla De Gregorio, Haishan Fu (Chefe de Estatística), RicardoFuentes, Arunabha Ghosh, Claes Johansson, ChristopherKuonqui, Santosh Mehrotra, Tanni Mukhopadhyay, StefanoPettinato, David Stewart e Emily White

    Conselheiro estatístico: Tom Griffin

    Editores: Cait Murphy e Bruce Ross-Larson

    Desenho da capa e layout: Gerald QuinnDesenho da Informação: Grundy & Northedge

    Consultores PrincipaisAmartya Sen (Capítulo 1), Lourdes Arizpe, Robert Bach,Rajeev Bhargava, Elie Cohen, Emmanuel de Kadt, NicholasDirks, K.S. Jomo, Will Kymlicka, Valentine Moghadam, JoyMoncrieffe, Sam Moyo, Brendan O’Leary, Kwesi Kwaa Prah,Barnett R. Rubin, Daniel Sabbagh, D.L. Sheth, RodolfoStavenhagen, Alfred Stepan, Deborah Yashar e AristideZolberg

    EQUIPA PARA A PREPARAÇÃO DORelatório do Desenvolvimento Humano 2004

    Directora e Redactora PrincipalSakiko Fukuda-Parr

    Colegas do GRDHO grupo de trabalho exprime os seus agradecimentos pelo valioso apoio e contributo dos colegas do Gabinete do Relatório doDesenvolvimento Humano (GRDH). A preparação do Relatório contou com o apoio administrativo de Oscar Bernal, Renuka Corea--Lloyd e Mamaye Gebretsadik. O trabalho de divulgação e promoção do Relatório foram da responsabilidade de Nena Terrell com o apoio de Maria Kristina Dominguez e Anne-Louise Winsløv. As operações do GRDH foram administradas por Yves Sassenrath com oapoio de Marie Suzanne Ndaw. E o grupo trabalhou em conjunto com os membros da Unidade do Relatório Nacional do Desenvolvimento Humano (NHDR), nomeadamente: Sarah Burd-Sharps (Directora Adjunta do GRDH e Chefe da Unidade do NHDR), Marcia de Castro, Sharmila Kurukulasuriya, Juan Pablo Mejia e Mary Ann Mwangi.

  • v

    Numa altura em que a noção de um “choque deculturas” global ressoa fortemente – e preocupan-temente – por todo o mundo, encontrar respos-tas para as velhas questões sobre a melhor maneirade gerir e mitigar os conflitos acerca da língua,religião, cultura e etnicidade assumiu uma impor-tância renovada. Para quem trabalha em desen-volvimento, esta não é uma questão abstracta. Paraque o mundo atinja os Objectivos de Desenvol-vimento do Milénio e acabe por erradicar a pobre-za, tem que enfrentar primeiro, com êxito, odesafio da construção de sociedades cultural-mente diversificadas e inclusivas. Não só porquefazê-lo com êxito é condição prévia para os paísesse concentrarem adequadamente noutras priori-dades do crescimento económico, a saúde e a edu-cação para todos os cidadãos. Mas tambémporque permitir às pessoas uma expressão culturalcompleta é um fim importante do desenvolvi-mento em si mesmo.

    O desenvolvimento humano tem a ver,primeiro e acima de tudo, com a possibilidade daspessoas viverem o tipo de vida que escolheram– e com a provisão dos instrumentos e das opor-tunidades para fazerem as suas escolhas. Nos úl-timos anos, o Relatório do DesenvolvimentoHumano tem defendido fortemente que esta éuma questão, tanto de política, como de econo-mia – desde a protecção dos direitos humanos atéao aprofundamento da democracia. A menosque as pessoas pobres e marginalizadas – que namaioria das vezes são membros de minorias reli-giosas, étnicas, ou migrantes – possam influenciaracções políticas, a nível local e nacional, não éprovável que obtenham acesso equitativo aoemprego, escolas, hospitais, justiça, segurança ea outros serviços básicos.

    O Relatório deste ano assenta nessa análise,examinando cuidadosamente – e rejeitando – asafirmações de que as diferenças culturais levamnecessariamente ao conflito social, económico e

    político, ou de que os direitos culturais inerentesdeviam suplantar os direitos políticos e económi-cos. Em vez disso, fornece um poderoso argu-mento para descobrir modos de “satisfação nasnossas diferenças”, como disse o ArcebispoDesmond Tutu. Também oferece algumas ideiasconcretas sobre o que significa, na prática, cons-truir e gerir as políticas de identidade e culturade maneira consistente com os princípios funda-mentais do desenvolvimento humano.

    Por vezes, isso é relativamente fácil – porexemplo, o direito de uma rapariga à educaçãosobrepor-se-á sempre à reivindicação do pai deum direito cultural de proibir a sua escolarização,por razões religiosas ou outras. Mas a questãopode ser muito mais complicada. Vejamos a edu-cação em língua materna. Há provas persuasivasde que os jovens têm mais êxito aprendendo nasua própria língua. Porém, o que é uma vantagemnum determinado momento da vida – e, na ver-dade, pode continuar a ser um princípio básicode identidade indispensável ao longo da vidatoda – pode tornar-se uma desvantagem noutrosaspectos, quando a falta de proficiência em lín-guas nacionais, ou internacionais, mais usadasprejudicar gravemente as oportunidades de em-prego. Como este Relatório torna claro, da acçãoafirmativa ao papel dos meios de comunicação,não existem regras fáceis, nem universais, sobrea melhor maneira de construir sociedades multi-culturais que funcionem.

    Mesmo assim, há uma lição geral que é clara:ter êxito não é simplesmente uma questão demudanças legislativas e de políticas, por maisnecessárias que elas sejam. As constituições e asleis que protegem e dão garantias às minorias,povos indígenas e outros grupos são uma base fun-damental para liberdades mais amplas. Mas, amenos que a cultura política também mude – amenos que os cidadãos venham a pensar, sentire agir de modo a contemplar as necessidades e

    Prefácio

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    aspirações de outros –, a verdadeira mudança nãoacontecerá.

    Quando a cultura política não muda, as con-sequências são perturbadoramente claras. Dosgrupos indígenas descontentes da América Latina,às minorias infelizes de África e da Ásia e aosnovos imigrantes de todo o mundo desenvolvido,não resolver as razões de queixa de grupos mar-ginalizados não cria apenas injustiça. Criaverdadeiros problemas para o futuro: jovensdesempregados e descontentes, zangados com ostatus quo e a exigirem mudança, muitas vezesviolentamente.

    Esse é o desafio. Mas também há verdadeirasoportunidades. A mensagem geral deste Relatórioé destacar o enorme potencial de construir ummundo mais pacífico e mais próspero, pondo asquestões da cultura na corrente principal do pen-samento e da prática do desenvolvimento. Nãopara substituir as prioridades mais tradicionais quecontinuarão a ser o nosso dia-a-dia – mas para ascompletar e reforçar. O lado menos interessantedo desenvolvimento é que os países em desen-volvimento podem muitas vezes recorrer atradições culturais mais ricas e mais diversifi-cadas – venham elas da língua, arte, música, oudoutras formas – do que os seus parceiros maisricos do Norte. A globalização da cultura demassas – dos livros aos filmes e à televisão –coloca, claramente, algumas ameaças significati-

    vas às culturas tradicionais. Mas também abreoportunidades, desde o significado limitado degrupos prejudicados, como os aborígenes aus-tralianos ou os esquimós árcticos penetrandonos mercados mundiais de arte, até ao significadomais amplo de criação de sociedades mais vi-brantes, criativas e estimulantes.

    Tal como todos os Relatórios de Desen-volvimento Humano, este é um estudo inde-pendente destinado a estimular o debate e adiscussão sobre um assunto importante, e nãouma declaração de política das Nações Unidas,ou do PNUD. Porém, ao pegar num assuntomuitas vezes negligenciado por economistas dodesenvolvimento e ao colocá-lo firmemente no es-pectro de prioridades para a criação de vidasmelhores e mais plenas, apresenta importantesargumentos para o PNUD e seus parceiros con-siderarem e actuarem no âmbito mais geral dassuas actividades. Este ano, também gostaria deprestar uma homenagem especial a SakikoFukuda-Parr, que está de saída após 10 anos deliderança bem sucedida do nosso Gabinete do Re-latório do Desenvolvimento Humano. Tambémgostaria de apresentar agradecimentos especiaisa Amartya Sen, um dos padrinhos do desenvol-vimento humano, que não só colaborou noprimeiro capítulo, mas também tem tido umaenorme influência na formação do nosso pensa-mento sobre este importante assunto.

    A análise e as recomendações políticas deste Relatório não reflectem, necessariamente, as opiniões do Programa das Nações Unidas para o

    Desenvolvimento, do seu Conselho Executivo, ou dos seus Estados membros. O Relatório é uma publicação independente comissionada pelo

    PNUD. É o fruto de um esforço de colaboração de uma equipa de consultores e conselheiros eminentes e da equipa do Relatório do

    Desenvolvimento Humano. Sakiko Fukuda-Parr, Directora do Gabinete do Relatório do Desenvolvimento Humano, conduziu este esforço.

    Mark Malloch BrownAdministrador, PNUD

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    A preparação deste Relatório não teria sidopossível sem as valiosas contribuições de umgrande número de pessoas e de organizações.

    A equipa exprime os seus sinceros agrade-cimentos ao Professor Amartya Sen, que con-cebeu a estrutura prévia do Relatório.

    CONTRIBUIÇÕES

    A equipa está particularmente agradecida pelacolaboração oferecida pelo Director Geral daUNESCO, Koïchiro Matsuura, e pelos seus co-laboradores, particularmente Ann-Belinda Preis,Katarina Stenou e Rene Zapata.

    Foram preparados muitos estudos de apoio,documentos e notas sobre questões temáticasrelacionadas com a identidade, diversidade cul-tural e liberdade cultural. Para tal, contámoscom o contributo de Lourdes Arizpe, RobertBach, Rajeev Bhargava, Elie Cohen, Emanuel DeKadt, Carolyn Deere, Nicholas Dirks, K.S.Jomo, Will Kymlicka, Valentine Moghadam,Joy Moncrieffe, Sam Moyo, Brendan O’Leary,Kwesi Kwaa Prah, Barnett R. Rubin, DanielSabbagh, Amartya Sen, D.L. Sheth, RodolfoStavenhagen, Alfred Stepan, Deborah Yashare Aristide Zolberg. Para o Capítulo 2, benefi-ciámos do contributo do Gabinete de Preven-ção e Recuperação de Crises, com mapas depaíses e informação relacionada com conflitos,particularmente do trabalho de Meegan Mur-ray, Preveen Pardeshi e Pablo Ruiz.

    Muitas organizações partilharam generosa-mente as suas séries de dados e outros materiaisde investigação: Centro de Análise e Informa-ção sobre o Dióxido de Carbono; Secretariadoda Comunidade das Caraíbas; Centro de Com-parações Internacionais, na Universidade daPensilvânia; Comissão Económica e Social para

    a Ásia e Pacífico; Organização para a Alimen-tação e Agricultura; Instituto Internacional deEstudo Estratégicos; Organização Internacionaldo Trabalho; Fundo Monetário Internacional;Organizações Internacionais para a Migração;União Internacional das Telecomunicações;União Interparlamentar; Programa Conjuntodas Nações Unidas para o HIV/SIDA; Estudosde Rendimento do Luxemburgo; Organizaçãopara a Cooperação e Desenvolvimento Econó-mico; Instituto Internacional de Estocolmopara a Investigação sobre a Paz; Fundo dasNações Unidas para a Infância; Conferênciadas Nações Unidas sobre Comércio e Desen-volvimento; Comissão Económica das NaçõesUnidas para a América Latina e as Caraíbas; Ins-tituto de Estatística da Organização das NaçõesUnidas para a Educação, Ciência e Cultura;Alto Comissariado das Nações Unidas para osRefugiados; Gabinete das Nações Unidas con-tra a Droga e o Crime; Departamento de As-suntos Legais das Nações Unidas; Divisão dasNações Unidas para a População; Divisão deEstatística das Nações Unidas; Banco Mundial;Organização Mundial de Saúde e OrganizaçãoMundial para a Propriedade Intelectual.

    A equipa também expressa a sua apreciaçãopelo apoio que recebeu da Fundação Rockefeller,particularmente de Ram Manikkalingam, JanetMaughan, Joan Shigekawa, Lynn Szwaja, TomasYbarro-Frausto, assim como de Gianni Celli ede Nadia Giladroni da Centro de Estudos eConferências da Fundação Bellagio Rockefeller.

    PAINEL CONSULTIVO

    O Relatório beneficiou grandemente com oconselho intelectual e a orientação fornecidospor um painel consultivo externo de peritos

    Agradecimentos

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    eminentes. Do painel fizeram parte ArjunAppadurai, Robert Bach, Seyla Benhabib,Nancy Birdsall, Jody Narandran Kollapen,Mahmood Mamdani, Sónia Picado, SurinPitsuwan, Jorge F. Quiroga, Paul Streeten, Vic-toria Tauli-Corpus, Ngaire Woods, Rene Zapatae Antonina Zhelyazkova. Do painel consultivosobre estatística fizeram parte Sudhir Anand,Paul Cheung, Willem DeVries, Lamine Diop,Carmen Feijo, Andrew Flatt, Paolo Garonna,Robert Johnston, Irena Krizman, Nora Lustig,Ian Macredie, Marion McEwin, Wolf Scott,Tim Smeeding e Michael Ward.

    CONSULTAS

    Durante a preparação do Relatório foram muitasas pessoas consultadas e que deram o seu valiosoconselho, informações e materiais. A equipado Relatório agradece a Carla Abouzahr, Yas-min Ahmad, Patricia Alexander, Serge Alle-grezza, Anna Alvazzi del Frate, Shaida Badiee,Yusuf Bangura, Nefise Bazoglu, Grace Bediako,Matt Benjamin, Yonas Biru, Ties Boerma,Eduard Bos, Thomas Buettner, Tony Burton,Rosario Garcia Calderon, Joe Chamie, ShaohuaChen, Paul Cheung, Martin Chungong, DavidCieslikowski, Lee Cokorinos, Patrick R. Cornu,Kim Cragin, Trevor Croft, Gaurav Datt, IanDennis, Yuri Dikhanov, Dennis Drescher,Asghar Ali Engineer, Hubert Escaith, KareenFabre, Yousef Falah, Richard Fix, Karl Franklin,Nancy Fraser, Rodolfo Roque Fuentes, EnriqueGanuza, Peter Ghys, Erlinda Go, Rui Gomes,Ray Gordon, Marilyn Gregerson, Ted RobertGurr, Brian Hammond, Philomen Harrison,Sabinne Henning, Alan Heston, Misako Hiraga,Frederick W.H. Ho, Joop van Holsteyn, BélaHovy, Piero Ignazi, Chandika Indikadahena,Jens Johansen, Lawrence Jeff Johnson, RobertJohnston, Vasantha Kandiah, Alison Kennedy,Sio Suat Kheng, Elizabeth Kielman, TaroKomatsu, Karoly Kovacs, Olivier Labe, FrankLaczko, Henrik Larsen, Georges Lemaitre,Denise Lievesley, Rolf Luyendijk, Nyein NyeinLwin, Doug Lynd, Esperanza C. Magpantay,Mary Mahy, Heikki S. Mattila, Clare Menozzi,Jorge Mernies, Michael Minges, Anjali Mody,Catherine Monagle, Bruno Moro, Ron Morren,

    Philip Mukungu, Angela Ferriol Muruaga, JackNagel, Keiko Osaki, Jude Padyachy, SoniaPalmieri, Rosario Pardo, Amy Pate, SulekhaPatel, François Pelletier, Bob Pember, IndiraPersaud, Francesca Perucci, Rudolphe Petras,Spyridon Pilos, Lionel Pintopontes, WilliamPrince, Lakshmi Puri, Agnès Puymoyen, Hanta-malala Rafalimanana, Markandey Rai, Vijayen-dra Rao, Luca Renda, Clinton Robinson, DavidRoodman, Ricardo Sibrián, Shaguni Singh,Armin Sirco, Carl Skau, Petter Stalenheim, ElsaStamatopoulou, Mark Stoker, Diane Stukel,Ilpo Survo, Eric Swanson, Tony Taubman,Benedicte Terryn, Michel Thieren, AnneThomas, Barbara Trudell, Elisa Tsakiri, RafaelTuts, Erica Usher, Said Voffal, Rick Wacek,Neff Walker, Steve Walter, Tessa Wardlaw,Jayashree Watal, Glenys Waters, CatherineWatt, Wendy Wendland, Patrick Werquin,Siemon Wezeman, Anders Widfeldt, BorisWijkström, Jonathan Wilkenfeld, Diane Wroge,A. Sylvester Young, Elizabeth Zaniewski eHania Zlotnik.

    Foi realizada uma consulta informal a Orga-nismos das Nações Unidas, que forneceram àequipa comentários e sugestões muito úteis.Agradecemos à Organização para a Alimen-tação e Agricultura; ao Fundo Internacionalpara o Desenvolvimento da Agricultura; à Orga-nização Internacional do Trabalho; ao FundoMonetário Internacional; Programa Conjuntodas Nações Unidas para o HIV/SIDA; ao Fundodas Nações Unidas para a Infância; à Conferên-cia das Nações Unidas sobre Comércio e Desen-volvimento; ao Departamento das NaçõesUnidas para os Assuntos Económicos e Sociais;à Organização das Nações Unidas para a Edu-cação, a Ciência e a Cultura; ao Programa dasNações Unidas para o Ambiente; ao Alto Comis-sariado das Nações Unidas para os DireitosHumanos; ao Alto Comissariado das NaçõesUnidas para os Refugiados; ao Programa dasNações Unidas para os Povoamentos Humanos;ao Instituto das Nações Unidas para a Forma-ção Profissional e a Investigação; ao Fundo dasNações Unidas para a População; à Organiza-ção Mundial de Saúde; à Organização Mundialpara a Propriedade Intelectual e ao BancoMundial.

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    A equipa gostaria de agradecer a todos os co-laboradores da rede de relatórios de desenvol-vimento humano do PNUD (HDR-net) e a todosos membros da sociedade civil que participaramcom comentários e sugestões perspicazes du-rante as discussões alargadas que se realizaram.

    LEITORES DO PNUD

    Um grupo de leitores, constituído por colegasdo PNUD, ofereceu os seus valiosos comen-tários, sugestões e interpretações durante a fasede elaboração do Relatório. A equipa está parti-cularmente agradecida a Randa Aboul-Hosn,Fernando Calderon, Moez Doraid, GilbertFossoun Houngbo, Andrey Ivanov, Selim Jahan,Bruce Jenks, Freddy Justiniano, Inge Kaul,Douglas Keh, Thierry Lemaresquier, LaminManneh, Saraswathi Menon, Kalman Mizsei,Balasubramaniam Murali, Shoji Nishimoto,Omar Noman, William Orme, Eugenio Ortega,Hilda Paqui, Ravi Rajan, RamaswamySudarshan, Mark Suzman, Júlia V. Taft, GuldenTurkoz-Cosslett, Louisa Vinton, MouradWahba e Gita Welch.

    EDIÇÃO, PRODUÇÃO E TRADUÇÃO

    Como nos anos anteriores, o Relatório bene-ficiou do trabalho dos revisores da Commu-nications Development Incorporated: Meta deCoquereaumont, Elizabeth McCrocklin,Thomas Roncoli, Bruce Ross-Larson e Christo-pher Trott. O Relatório (incluindo a capa) foidesenhado por Gerald Quinn e paginado porElaine Wilson. A informação estatística queaparece no Relatório foi desenhada por Grundy& Northedge.

    A produção, tradução, distribuição epromoção do Relatório beneficiaram da ajudae apoio do Gabinete de Comunicações do

    Administrador do PNUD: Djibril Diallo,Maureen Lynch, Trygve Olfarnes, Bill Orme,Hilda Paqui bem como Elizabeth ScottAndrews. As traduções foram revistas por He-lene Castel, Cielo Morales, Vladimir Scherbov,Andrey Ivanov, e Ali Al-Kasimi.

    O Relatório beneficiou ainda do trabalho ededicação dos estagiários: Valentina Azzarello,Alexandra Lopoukhine, Rachel Sorrentino eRati Tripathi. Emmanuel Boudard e JessicaLopatka deram um contributo inestimável aogrupo de estatística.

    Liliana Izquierdo e Gerardo Nunez doGabinete da Nações Unidas para o Serviço deProjectos deram um apoio administrativo eorganizativo decisivo.

    * * *A equipa expressa o seu sincero apreço

    pelo revisor especializado do Relatório, WillKymlicka, que reviu cuidadosamente osprimeiros escritos do Relatório e partilhou a suasabedoria e perspicácia. A equipa também estágrata a Ian Macredie, Lene Mikkelsen e DavidPearce, os revisores estatísticos especializadosque escrutinaram o uso de dados no Relatórioe emprestaram o seu conhecimento estatístico.

    Finalmente, os autores estão particular-mente agradecidos a Mark Malloch Brown,Administrador do PNUD, pela sua liderança evisão. Apesar de gratos por todo o apoio rece-bido, os autores assumem a inteira responsa-bilidade pelas opiniões expressas no Relatório.

    Sakiko Fukuda-ParrDirectora

    Relatório do Desenvolvimento Humano 2004

  • x

    INTRODUÇÃO Liberdade Cultural num Mundo Diversificado 1

    CAPÍTULO 1 Liberdade cultural e desenvolvimento humano 13Participação e reconhecimento 14Liberdades, direitos humanos e o papel da diversidade 15Identidade, comunidade e liberdade 16Globalização, assimetria e democracia 19Conclusões 22

    CAPÍTULO 2 Desafios para a liberdade cultural 27Liberdade cultural – uma dimensão desconhecida do desenvolvimento humano 28Promover a liberdade cultural exige o reconhecimento das diferenças de identidade 36Três mitos em torno da liberdade cultural e o desenvolvimento 38Desafios de hoje para a liberdade cultural 44

    CAPÍTULO 3 Construir democracias multiculturais 47Resolver os dilemas do Estado com o reconhecimento da diferença cultural 47Políticas para assegurar a participação política de grupos culturais diversos 50Políticas de religião e prática religiosa 54Políticas acerca do direito consuetudinário e do pluralismo legal 57Políticas acerca do uso de múltiplas línguas 60Políticas para corrigir a exclusão socioeconómica 65

    CAPÍTULO 4 Enfrentar os movimentos para a dominação cultural 73Movimentos para a dominação cultural – os desafios actuais 74Dilemas para as democracias – medidas restritivas ou conciliadoras? 77

    CAPÍTULO 5 Globalização e escolha cultural 85Globalização e multiculturalismo 88Fluxos de investimento e conhecimento – incluir os povos indígenas num mundo globalmente integrado 91Fluxos de bens culturais – alargar as escolhas através da criatividade e da diversidade 96Fluxos de pessoas – identidades múltiplas para cidadãos mundiais 99

    Notas 107Nota bibliográfica 110Bibliografia 112

    Índice

  • xi

    CONTRIBUIÇÕES ESPECIAISOs direitos humanos incorporam os valores fundamentais das civilizações humanas Shirin Ebadi 23Diversidade – de divisiva a inclusiva Nelson Mandela 43O Reconhecimento da Diversidade Linguística na Constituição do Afeganistão Hamid Karzai 64A diferença não é uma ameaça mas uma fonte de força John Hume 82Povos indígenas e desenvolvimento Ole Henrik Magga 91

    CAIXAS2.1 Dois aspectos da exclusão cultural 272.2 A definição de direitos culturais fica para trás em relação aos direitos civis, políticos, económicos e sociais

    – Porquê? 282.3 Medir a liberdade cultural 312.4 O índice de desenvolvimento humano: captar desigualdades entre grupos 362.5 Políticas culturais – proteger a herança cultural e promover a liberdade cultural 382.6 Desigualdades entre grupos podem alimentar o conflito e a tensão 412.7 A diferença étnica nas Ilhas Salomão não é causa de conflito 423.1 Esboço de um guia do federalismo 503.2 O desafio do federalismo: trajectória política conturbada e perspectivas da Nigéria 523.3 Representação proporcional, ou vencedor ganha tudo? A Nova Zelândia muda 553.4 As muitas formas de Estados seculares e não seculares e os seus efeitos na liberdade religiosa 563.5 Direito privado hindu e muçulmano: o debate em curso sobre um código civil uniforme 573.6 Acesso à justiça e reconhecimento cultural na Guatemala 593.7 Educação multilingue na Papua Nova Guiné 613.8 Quantas línguas existem em África? 85% dos africanos falam 15 línguas nucleares 633.9 Direito à terra nas Filipinas 683.10 Experiências com acção afirmativa na Malásia e na África do Sul 704.1 Liderança, manipulação ideológica e recrutamento de apoiantes 774.2 Ásia Central – o perigo de restringir as liberdades políticas e culturais 784.3 Egipto – distinguir entre moderados e extremistas 804.4 Argélia – descontentamento, democratização e violência 814.5 Estados Unidos – visar a intolerância e o ódio 835.1 Cultura – mudança de paradigma na Antropologia 895.2 Fontes da ética mundial 905.3 Empresas privadas e povos indígenas podem trabalhar juntos para o desenvolvimento 945.4 Utilizar os direitos de propriedade intelectual para proteger o conhecimento tradicional 955.5 O debate sobre bens culturais e o fiasco do Acordo Multilateral sobre Investimentos 965.6 O apoio bem sucedido da França às indústrias domésticas da cultura 995.7 O dilema dos lenços de cabeça em França 1015.8 Contratos temporários – receber bem os trabalhadores, mas não as pessoas, não é solução 1035.9 Como Berlim promove o respeito pela diferença cultural 104

    QUADROS2.1 Representação política de minorias étnicas em parlamentos seleccionados da OCDE 35

  • xii

    2.2 Integrar políticas multiculturais em estratégias de desenvolvimento humano 373.1 Indicadores de rendimento interno e custos das escolas convencionais e bilingues em Burkina Faso 624.1 Vítimas causadas pela violência sectária no Paquistão, 1989-2003 755.1 População indígena na América Latina 925.2 Escolhas de política para a promoção da indústria doméstica de cinema e audiovisual – o mercado e a dimensão

    da indústria são importantes 985.3 As 10 cidades do topo pela parcela da população nascida no estrangeiro, 2000-01 99

    FIGURAS2.1 A maioria dos países é culturalmente diversificada 282.2 Os povos indígenas têm uma vida mais curta 292.3 Na Europa, a população migrante não europeia tem aumentado significativamente...e os migrantes estão a chegar

    de mais sítios 302.4 Muitos não têm acesso ao ensino primário na sua língua materna 342.5 Feriados nacionais são um meio importante de reconhecer – ou ignorar – identidades culturais 353.1 Os povos indígenas têm mais probabilidades que os não indígenas de serem pobres, na América Latina 673.2 Os não brancos beneficiam menos que os brancos da despesa pública de saúde, na África do Sul 673.3 As desigualdades entre grupos declinaram na Malásia, mas não as desigualdades entre pessoas 713.4 Os resultados da acção afirmativa nos Estados Unidos são mistos 714.1 Movimentos para a dominação cultural – diferente de todos os movimentos fundamentalistas ou violentos 734.2 Alguns partidos europeus da extrema-direita ganharam constantemente parcelas crescentes dos votos 744.3 A participação democrática pode expor a franja de atracção dos partidos de extrema-direita 825.1 Os filmes do topo da distribuição, de todos os tempos, nas salas internacionais (menos EUA) eram filmes dos EUA,

    Abril de 2004 975.2 Crescimento sem precedentes da migração internacional para Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia,

    mas os refugiados permanecem uma pequena proporção, 1990-2000 1005.3 Mais e mais governos (ricos e pobres) querem controlar a imigração, 1976-2001 100

    MAPAS2.1 Guatemala apresenta sobreposições significativas entre comunidades linguísticas e exclusão social 375.1 Muitas actividades de extracção e de infra-estruturas nos países em desenvolvimento são em áreas onde vivem povos

    indígenas 92

    DESTAQUES2.1 O banco de dados Minorias em Risco – quantificar a exclusão cultural 32

    Figura 1 Discriminação e desvantagem de grupos culturalmente identificados podem ser culturais, políticas e económicas – com sobreposições consideráveis 32

    Figura 2 Exclusão política e económica têm causas diferentes 323.1 Unidade do Estado ou identidade etnocultural? Não é uma escolha inevitável 48

    Figura 1 Identidades nacionais múltiplas e complementares 48Figura 2 Confiança, apoio e identificação: países pobres e diversificados podem dar-se bem com políticas

    multiculturais 495.1 Que há de novo sobre as implicações da globalização para a política de identidade? 86

    Quadro 1 Dez países do topo segundo a parcela da população migrante, 2000 87

  • xiii

    Figura 1 Crescimento rápido dos investimentos em indústrias extractivas nos países em desenvolvimento, 1988-97 86Figura 2 Menos filmes domésticos, mais filmes dos EUA: evolução da audiência de filmes, 1984-2001 87

    Destaque estatístico 1 O estado do desenvolvimento humano 127Quadro 1 IDH, IPH-1, IPH-2, IDG — Mesmas componentes, medidas diferentes 127Quadro 2 Erradicação da pobreza: permanecem privações maciças, 2000 129Quadro 3 Progressos e retrocessos: mortalidade de crianças 132Quadro 4 Progressos e retrocessos: ensino primário 132Quadro 5 Progressos e retrocessos: privação de rendimento 132Quadro 6 Países que estão a viver uma queda no índice de desenvolvimento humano, décadas de 1980 e 1990 132Figura 1 Mesmo IDH, rendimento diferente 128Figura 2 Mesmo rendimento, IDH diferente 128Figura 3 Progresso insuficiente em direcção aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 130Figura 4 Cronologia: Quando serão realizados os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio se o progresso não

    acelerar? 133Figura 5 Disparidades mundiais no IDH 134Figura 6 Países de prioridade máxima e alta 134Índice dos indicadores dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio nos quadros de indicadores 135

    Destaque estatístico 2 Nota para o quadro 1: Sobre o índice de desenvolvimento humano deste ano 137

    INDICADORES DE DESENVOLVIMENTO HUMANOMONITORIZAR O DESENVOLVIMENTO HUMANO: AUMENTAR AS ESCOLHAS DAS PESSOAS. . . 1 Índice de desenvolvimento humano 1392 Tendências do índice de desenvolvimento humano 1433 Pobreza e privação humanas: países em desenvolvimento 1474 Pobreza e privação humanas: OCDE, Europa Central & do Leste & CEI 150

    . . . PARA LEVAREM UMA VIDA LONGA E SAUDAVEL. . .5 Tendências demográficas 1526 Compromisso com a saúde: recursos, acesso e serviços 1567 Água, saneamento e estado da nutrição 1608 Principais crises e desafios da saúde no mundo 1649 Sobrevivência: progressos e retrocessos 168

    . . . ADQUIRIREM CONHECIMENTO . . .10 Compromisso com a educação: despesa pública 17211 Alfabetização e escolarização 17612 Tecnologia: difusão e criação 180

    . . . TEREM ACESSO AOS RECURSOS NECESSARIOS PARA UM NIVEL DE VIDA DIGNO. . .13 Desempenho económico 18414 Desigualdade no rendimento ou consumo 18815 A estrutura do comércio 19216 Responsabilidades dos países ricos: ajuda 19617 Responsabilidades dos países ricos: alívio da dívida e comércio 197

  • xiv

    18 Fluxos de ajuda, capital privado e dívida 19819 Prioridades na despesa pública 20220 Desemprego nos países da OCDE 206

    . . . ENQUANTO O PRESERVAM PARA AS GERAÇÕES FUTURAS . . .21 Energia e ambiente 207

    . . . PROTEGENDO A SEGURANÇA PESSOAL . . .22 Refugiados e armamentos 21123 Vítimas da criminalidade 215

    . . . E ALCANÇANDO A IGUALDADE PARA TODAS AS MULHERES E HOMENS24 Índice de desenvolvimento ajustado ao género 21725 Medida de participação segundo o género 22126 Desigualdade de género na educação 22527 Desigualdade de género na actividade económica 22928 Género, carga de trabalho e afectação do tempo 23329 Participação política das mulheres 234

    INSTRUMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS E DO TRABALHO30 Estatuto dos principais instrumentos internacionais de direitos humanos 23831 Estatuto das convenções sobre direitos fundamentais do trabalho 242

    32 Índices de desenvolvimento humano: uma perspectiva regional 24633 Indicadores básicos para outros países membros da ONU 250

    Nota sobre as estatísticas no Relatório do Desenvolvimento Humano 251

    Notas técnicas1 Cálculo dos índices de desenvolvimento humano 2582 Identificação dos países de prioridade máxima e de prioridade alta nos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio 265

    Definições de termos estatísticos 268Referências estatísticas 277Classificação dos países 279Índice dos indicadores 283

  • INTRODUÇÃO 1

    Como é que a nova constituição do Iraque irá satis-fazer as exigências de justa representação dos Xiitase dos Curdos? Quais – e quantas – das línguas faladasno Afeganistão deve a nova constituição reconhecercomo línguas oficiais do Estado? Como é que o tri-bunal federal nigeriano lidará com uma determinaçãoda lei da Sharia para punir o adultério com a morte?Aprovará o parlamento francês a proposta de proibiçãodos lenços e doutros símbolos religiosos nas escolaspúblicas? Resistirão os hispânicos dos Estados Unidosà assimilação pela cultura americana dominante?Haverá um acordo de paz para pôr termo à luta naCosta do Marfim? Irá o presidente da Bolívia resignarna sequência dos protestos crescentes dos povos in-dígenas? Concluir-se-ão alguma vez as conversaçõesde paz para pôr termo ao conflito tamil-cingalês noSri Lanka? Estes são apenas alguns cabeçalhos dos úl-timos meses. Gerir a diversidade cultural é um dosprincipais desafios do nosso tempo.

    Consideradas durante muito tempo ameaças di-visivas à harmonia social, opções como estas – acercado reconhecimento e da aceitação de etnicidades, reli-giões, línguas e valores diversos – constituem umacaracterística incontornável da paisagem política doséculo XXI. Líderes e teóricos da política, de todosos quadrantes, opuseram-se a qualquer reconheci-mento explícito de identidades culturais – étnica, re-ligiosa, linguística, racial. O resultado mais frequentetem sido a supressão das identidades culturais, porvezes de forma brutal, como política de Estado –através de perseguições religiosas e limpezas étnicas,mas também através da habitual exclusão e dis-criminação económica, social e política.

    O que é novo, hoje, é a ascensão das políticas deidentidade. Em contextos muito diferentes e demodos muitos diversos – desde os povos indígenasda América Latina às minorias religiosas na Ásia doSul e às minorias étnicas nos Balcãs e em África, atéaos imigrantes na Europa Ocidental – as pessoasestão a mobilizar-se de novo em torno de velhas in-justiças segundo linhas étnicas, religiosas, raciais e cul-turais, exigindo que a sua identidade seja reconhecida,

    apreciada e aceite pela sociedade mais ampla.Sofrendo de discriminação e marginalização em rela-ção a oportunidades sociais, económicas e políticas,também exigem justiça social. Igualmente nova é aascensão de movimentos coercivos que ameaçam aliberdade cultural. E, nesta era de globalização,emergiu um novo tipo de reivindicações e exigênciaspolíticas dos indivíduos, comunidades e países quesentem que as suas culturas locais estão a ser elimina-das. Querem manter a sua diversidade num mundoglobalizado.

    Porquê esses movimentos hoje? Não são movi-mentos isolados. Fazem parte de um processo históricode mudança social, de lutas pela liberdade cultural,de novas fronteiras no progresso das liberdades hu-manas e da democracia. São impulsionados e molda-dos pela disseminação da democracia, que está a daraos movimentos mais espaço político para protestar,e pelo avanço da globalização, que está a criar novasredes de alianças e a apresentar novos desafios.

    A liberdade cultural é uma parte vital do desen-volvimento humano, porque a capacidade de umapessoa escolher a sua identidade – quem ela é – semperder o respeito dos outros, ou ser excluída de ou-tras opções, é importante para uma vida plena. Aspessoas querem liberdade para praticar abertamentea sua religião, falar a sua língua, celebrar a sua herançaétnica ou religiosa sem medo do ridículo, de puniçõesou da diminuição de oportunidades. As pessoas querema liberdade de participar na sociedade sem ter de pres-cindir das amarras culturais que escolheram. É umaideia simples, mas profundamente perturbadora.

    Os Estados enfrentam um desafio urgente na res-posta a estas exigências. Se for bem resolvido, ummaior reconhecimento das identidades trará umamaior diversidade cultural à sociedade, enrique-cendo a vida das pessoas. Mas também existe umgrande risco.

    Estas lutas por causa da identidade cultural, senão forem geridas, ou se forem mal geridas, podemtornar-se rapidamente uma das maiores fontes deinstabilidade dentro e entre os Estados – e, assim,

    Liberdade Cultural num Mundo DiversificadoINTRODUÇÃO

    A liberdade cultural

    é uma parte vital do

    desenvolvimento humano

  • 2 RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004

    desencadear conflitos que poderão fazer recuar odesenvolvimento. As políticas de identidade quepolarizam pessoas e grupos estão a criar linhas de sepa-ração entre “nós” e “eles”. Uma desconfiança e umódio crescentes ameaçam a paz, o desenvolvimentoe as liberdades humanas. Só no último ano, a violênciaétnica destruiu centenas de casas e de mesquitas noKosovo e na Sérvia. Terroristas atacaram à bomba umcomboio em Espanha matando cerca de 200 pes-soas. A violência sectária matou milhares de muçul-manos e obrigou outros milhares a abandonar assuas casas, em Guzarate e noutros pontos da Índia,um país defensor da aceitação cultural. Uma avalanchede crimes de ódio contra imigrantes estilhaçou acrença dos noruegueses no seu inabalável compro-misso com a tolerância.

    As lutas por causa da identidade também podemlevar a políticas repressivas e xenófobas que retardamo desenvolvimento humano. Podem encorajar umrefúgio no conservadorismo e uma rejeição da mu-dança, interrompendo a infusão de ideias e de pessoasque trazem valores cosmopolitas e o conhecimento equalificações que fazem progredir o desenvolvimento.

    Gerir a diversidade e respeitar as identidadesculturais não são desafios apenas para alguns “esta-dos multiétnicos”. Quase nenhum país é inteira-mente homogéneo. Os quase 200 países do mundocontêm cerca de 5.000 grupos étnicos. Dois terços têmpelo menos uma minoria substancial – um grupoétnico, ou religioso, que constitui pelo menos 10% dapopulação.

    Ao mesmo tempo, o ritmo da migração interna-cional acelerou, com efeitos alarmantes nalguns paísese cidades. Quase metade da população de Torontonasceu fora do Canadá. E muitos mais estrangeirosmantêm ligações mais estreitas com os seus países deorigem do que os imigrantes do século passado. Deum modo ou de outro, todos os países são hoje socie-dades multiculturais, que contêm grupos étnicos, re-ligiosos ou linguísticos com vínculos comuns às suaspróprias tradições, culturas, valores e modos de vida.

    A diversidade cultural está para ficar – e paracrescer. Os Estados têm de encontrar modos de for-jar a unidade nacional no meio da diversidade. Omundo, cada vez mais interdependente economica-mente, só pode funcionar se as pessoas respeitarema diversidade e construírem a unidade através delaços comuns de humanidade. Nesta era de globa-lização, as exigências de reconhecimento cultural jánão podem ser ignoradas por nenhum Estado, nem

    pela comunidade internacional. E é provável que osconfrontos por causa da cultura e da identidadeaumentem – a facilidade de comunicações e viagensencolheu o mundo e alterou a paisagem da diversi-dade cultural e a disseminação da democracia, direi-tos humanos e novas redes mundiais deu às pessoasmais meios para se mobilizarem em torno de umacausa, para insistirem numa resposta e para a obterem.

    Cinco mitos caíram. As políticas de reconheci-mento das identidades culturais e de encoraja-mento do florescimento da diversidade nãoresultam em fragmentação, conflito, fraco desen-volvimento, ou governo autoritário. Essas políti-cas são viáveis e necessárias, pois muitas vezes éa supressão de grupos culturalmente identificadosque pode levar a tensões.

    Este Relatório defende o respeito pela diversidade ea construção de sociedades mais inclusivas, adoptandopolíticas que reconheçam, explicitamente, as diferen-ças culturais – políticas multiculturais. Mas porqueé que muitas identidades culturais foram suprimidasou ignoradas durante tanto tempo? Uma razão é quemuitas pessoas acreditam que o florescimento da di-versidade pode ser desejável em abstracto, mas naprática pode enfraquecer o Estado, levar a conflitose retardar o desenvolvimento. A melhor abordagemda diversidade, deste ponto de vista, é a assimilaçãoem torno de um único padrão nacional, o que podelevar à supressão de identidades culturais. Porém, esteRelatório defende que estas não são premissas – sãomitos. Na verdade, defende que uma abordagem emtermos de política multicultural não só é desejável,mas também é viável e necessária. Sem uma abor-dagem semelhante, os problemas imaginários da di-versidade podem tornar-se profecias cumpridas.

    Mito 1. As identidades étnicas das pessoasconcorrem com a sua ligação ao Estado, peloque existe um trade-off entre reconhecer a di-versidade e unificar o Estado.

    Não é assim. Os indivíduos podem ter e têm múlti-plas identidades que são complementares – etnici-dade, língua, religião e raça, bem como cidadania. Ea identidade não é um jogo de soma zero. Não há umanecessidade inevitável de escolher entre unidade doEstado e reconhecimento de diferenças culturais.

    Este Relatório defende o

    respeito pela diversidade

    e a construção de

    sociedades mais

    inclusivas, adoptando

    políticas que reconheçam,

    explicitamente, as

    diferenças culturais –

    políticas multiculturais

  • INTRODUÇÃO 3

    É importante para as pessoas terem um sentidode identidade e de pertença a um grupo com valorespartilhados e outros laços culturais. Mas cada pes-soa pode identificar-se com muitos grupos diferen-tes. As pessoas têm uma identidade de cidadania(por exemplo, ser francês), de género (ser mulher),de raça (ser de origem oeste-africana), de língua (serfluente em tailandês, chinês e inglês), de política (terideias de esquerda) e de religião (ser budista).

    A identidade também tem um elemento de es-colha: dentro dessas filiações, os indivíduos podem es-colher a prioridade a dar a uma filiação em relação aoutra, em diferentes contextos. Os americanos mexi-canos podem torcer pela selecção mexicana de fute-bol mas servir no exército norte-americano. Muitosbrancos sul-africanos optaram por combater oapartheid como sul-africanos. Os sociólogos dizem--nos que as pessoas têm fronteiras de identidade queseparam “nós” de “eles”, mas essas fronteiras mudame esbatem-se para incorporar grupos mais amplos depessoas.

    A “construção nacional” foi um objectivo domi-nante do século XX e a maioria dos países visou a cons-trução de Estados culturalmente homogéneos comidentidades singulares. Por vezes conseguiram, masà custa de repressão e perseguição. Se houve algumacoisa que a história do século XX mostrou, foi que atentativa de exterminar grupos culturais, ou de os afas-tar, despertou uma teimosa resiliência. Em contrapar-tida, o reconhecimento de identidades culturaisresolveu tensões infindáveis. Portanto, quer por razõespráticas, quer morais, é de longe melhor aceitar os gru-pos culturais do que fingir que eles não existem.

    Os países não têm de escolher entre unidadenacional e diversidade cultural. Há inquéritos quemostram que as duas podem coexistir e muitas vezescoexistem. Na Bélgica, os cidadãos, quando inter-rogados, responderam por maioria esmagadora quese sentiam tanto belgas como flamengos ou valões e,em Espanha, que se sentiam tanto espanhóis comocatalães ou bascos.

    Estes e outros países trabalharam muito paraharmonizar culturas diversas. Também trabalharammuito para construir a unidade, alimentando o res-peito pelas identidades e a confiança nas instituiçõesdo Estado. Os Estados mantiveram-se firmes. Osimigrantes não precisam de negar a sua dedicação àfamília nos seus países de origem quando desen-volvem lealdades aos seus novos países. O receio deque os imigrantes fragmentam o país, se não forem

    “assimilados”, não tem fundamento. A assimilaçãosem opção já não é um modelo viável – ou necessário– de integração.

    Não há trade-off entre diversidade e unidade doEstado. As políticas multiculturais são um modo deconstruir estados diversos e unidos.

    Mito 2: Os grupos étnicos têm inclinação parao conflito violento mútuo, num choque devalores, pelo que existe um trade-off entre o res-peito pela diversidade e a sustentação da paz.

    Não. Há poucas provas empíricas de que as diferençasculturais e os choques de valores sejam em si causade conflito violento.

    É verdade, particularmente desde o fim da guerra--fria, que surgiram conflitos violentos entre gruposétnicos, não tanto entre Estados, mas no seu interior.Mas em relação às respectivas causas, as investigaçõesacadémicas recentes mostram um amplo acordo emque as diferenças culturais não são, por si mesmas, ofactor relevante. Alguns argumentam mesmo que a di-versidade cultural reduz o risco de conflito, porquetorna mais difícil a mobilização de grupo.

    Alguns estudos apresentam diversas explicaçõespara essas guerras: as desigualdades económicas entreos grupos, assim como as lutas pelo poder político,pela terra, ou por outros activos económicos. NasFidji, os indígenas Fidjianos desencadearam um golpede estado contra o governo dominado pelos indianos,porque receavam que a terra pudesse ser confiscada.No Sri Lanka, a maioria Cingalesa conquistou opoder político, mas a minoria Tamil tinha acesso amais recursos económicos, despoletando décadas deconflito civil. No Burundi e Ruanda, em diferentesmomentos, Tutsis e Hutus foram excluídos das opor-tunidades económicas e da participação política.

    A identidade cultural desempenha um papelnestes conflitos – não como causa, mas como condu-tora da mobilização política. Os líderes invocam umaidentidade única, os seus símbolos e a sua história derazões de queixa para “reunir as tropas”. E a falta dereconhecimento cultural pode desencadear a mobili-zação violenta. As desigualdades subjacentes na Áfricado Sul estiveram na base dos distúrbios do Soweto,em 1976, mas estes foram desencadeados por tenta-tivas de impor o africânder nas escolas para negros.

    Embora a coexistência de grupos culturalmentedistintos não seja, em si mesma, causa de conflito vio-lento, é perigoso deixar que a desigualdade económica

    É importante para as

    pessoas terem um sentido

    de identidade e de

    pertença a um grupo com

    valores partilhados e

    outros laços culturais.

    Mas cada pessoa pode

    identificar-se com muitos

    grupos diferentes

  • 4 RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004

    e política entre grupos se aprofunde, ou que elimineas diferenças culturais, porque os grupos culturais sãofacilmente mobilizados para contestar estas dispari-dades como injustiça.

    Não há trade-off entre paz e respeito pela diver-sidade, mas as políticas de identidade precisam de sergeridas de modo a não se tornarem violentas.

    Mito 3. A liberdade cultural exige a defesa daspráticas tradicionais, por isso, poderá haver umtrade-off entre o reconhecimento da diversidadecultural e outras prioridades do desenvolvimentohumano, tais como o progresso no desenvolvi-mento, na democracia e nos direitos humanos.

    Não. Liberdade cultural tem a ver com a expansãodas escolhas individuais e não com a preservação devalores e práticas como um fim em si mesmo, comsubmissão cega à tradição.

    Cultura não é um conjunto cristalizado de valorese práticas. Recria-se constantemente, à medida que aspessoas questionam, adaptam e redefinem os seusvalores e práticas em função da mudança das realidadese da troca de ideias.

    Há quem defenda que o multiculturalismo é umapolítica de conservação de culturas, e até de práticasque violam os direitos humanos, e que os movimen-tos a favor do reconhecimento cultural não são gover-nados democraticamente. Mas nem a liberdadecultural, nem o respeito pela diversidade devem serconfundidos com a defesa da tradição. Liberdadecultural é a capacidade que as pessoas têm de viver eser o que escolherem, com uma oportunidade ade-quada para considerar outras opções.

    “Cultura”, “tradição” e “autenticidade” não sãoo mesmo que “liberdade cultural”. Não são razõesaceitáveis para permitir práticas que neguem a igual-dade de oportunidades dos indivíduos e violem os seusdireitos humanos – como negar às mulheres a igual-dade de direitos à educação.

    Grupos de interesses dirigidos por líderes auto-nomeados podem não reflectir os pontos de vista dosmembros em geral. Não é raro para os grupos seremdominados por pessoas que têm interesse na manu-tenção do status quo, com a justificação da “tradição”,e que agem como guardiães do tradicionalismo paracongelar as suas culturas. Os que reivindicam a adapta-ção cultural também têm de se sujeitar aos princípiosdemocráticos e aos objectivos da liberdade humana edos direitos humanos. Um bom modelo é o povo Sami

    da Finlândia, que goza de autonomia num parlamentoque tem estruturas democráticas e segue os processosdemocráticos, mas faz parte do Estado finlandês.

    Neste caso, não existe nenhum trade-off entre res-peito pela diferença cultural e direitos humanos e de-senvolvimento. Mas o processo de desenvolvimentoenvolve a participação activa das pessoas na luta pelosdireitos humanos e pela mudança de valores.

    Mito 4. Os países etnicamente diversificadossão menos capazes de se desenvolver, pelo queexiste um trade-off entre o respeito pela di-versidade e a promoção do desenvolvimento.

    Não. Não há provas de uma relação clara, boa ou má,entre diversidade cultural e desenvolvimento.

    Há quem defenda, porém, que a diversidade é umobstáculo ao desenvolvimento. Mas se é inegavelmenteverdade que muitas sociedades diversificadas têmbaixos níveis de rendimento e desenvolvimento hu-mano, não há provas de que isso esteja relacionadocom a diversidade cultural. Um estudo argumenta quea diversidade tem sido uma fonte de mau desem-penho económico em África – mas isto está relacio-nado com a tomada de decisão política, que segueinteresses étnicos em vez de interesses nacionais, e nãocom a diversidade em si mesma. Tal como existempaíses multiétnicos que estagnaram, há outros quetiveram um êxito espectacular. A Malásia, com 62%do seu povo Malaio e de outros grupos indígenas, 30%chineses e 8% indianos, foi a 10ª economia mundialcom mais rápido crescimento no período de 1970-90,anos em que também foi posta em prática uma políticade acção afirmativa. As Maurícias estão em 64.º lugarno Índice de Desenvolvimento Humano, o mais altode um país da África Subsariana. Tem uma populaçãodiversificada de origem africana, indiana, chinesa e eu-ropeia – com 50% de hindus, 30% de cristãos e 17%de muçulmanos.

    Mito 5. Algumas culturas têm mais probabili-dades de alcançar progressos desenvolvimen-tistas do que outras e algumas culturas têmvalores democráticos inerentes, enquanto ou-tras não, pelo que existe um trade-off entre aconciliação de certas culturas e a promoção dodesenvolvimento e da democracia.

    Mais uma vez, não. Não há provas resultantes deanálise estatística, nem de estudos históricos, de

    Liberdade cultural

    é a capacidade que

    as pessoas têm de viver

    e ser o que escolherem

  • INTRODUÇÃO 5

    uma relação causal entre cultura e progressoeconómico ou democracia.

    O determinismo cultural – a ideia de que a cul-tura de um grupo explica o desempenho económicoe o progresso da democracia – como obstáculo ou faci-litador tem um enorme atractivo intuitivo. Mas essasteorias não são apoiadas pela análise econométrica,nem pela história.

    Têm sido adiantadas muitas teorias de determi-nismo cultural, a começar pela explicação de MaxWeber da ética protestante como factor fundamentalpor detrás do crescimento com êxito da economiacapitalista. Persuasivas na explicação do passado,essas teorias revelaram-se repetidamente erradas naprevisão do futuro. Quando a teoria da ética protes-tante de Weber andava a ser elogiada, países católi-cos (França e Itália) estavam a crescer mais depressado que a Grã-Bretanha e Alemanha protestantes,pelo que a teoria foi alargada para significar Cristãoou Ocidental. Quando o Japão, Coreia do Sul,Tailândia e outros países da Ásia Oriental con-seguiram taxas de crescimento recorde, a noção deque os valores confucianos retardam o crescimentoteve de ser abandonada.

    Entender as tradições culturais pode oferecerperspectivas do comportamento humano e da dinâ-mica social que influenciem os resultados do desenvol-vimento. Mas essas perspectivas não oferecem umateoria geral da cultura e desenvolvimento. Para ex-plicar as taxas de crescimento económico, por exem-plo, considera-se que a política económica, a geografiae o fardo da doença são factores altamente relevantes.Mas a cultura, tal como o facto de uma sociedade serhindu ou muçulmana, é considerada insignificante.

    O mesmo é verdadeiro em relação à democra-cia. Uma nova onda de determinismo cultural começaa dominar alguns debates políticos, atribuindo os fra-cassos de democratização no mundo não ocidentala traços culturais inerentes de intolerância e “valoresautoritários”. A nível mundial, alguns teóricos têmdefendido que o século XXI assistirá a um “choquede civilizações”, que o futuro dos estados democráti-cos e tolerantes do Ocidente está ameaçado por Es-tados não ocidentais com valores mais autoritários.Há razões para estar céptico. Por um lado, a teoriaexagera as diferenças entre grupos de “civilização”e, por outro, ignora as semelhanças entre eles.

    Além disso, o Ocidente não tem o monopólio dademocracia nem da tolerância, e não existe umalinha única de divisão histórica entre um Ocidente

    tolerante e democrático e um Leste despótico. Platãoe Santo Agostinho não eram menos autoritários noseu pensamento do que Confúcio e Kautilya. Nãohouve defensores da democracia apenas na Europa,mas também em toda a parte. Veja-se Akbar, que pre-gou a tolerância religiosa na Índia do século XVI, ouo príncipe Shotoku, que introduziu a constituição(kempo) no Japão do século VII, onde insistia em que“as decisões sobre assuntos importantes não deviamser tomadas por uma pessoa só. Deviam ser discuti-das por muitos”. Noções de tomada de decisão parti-cipativa sobre questões públicas importantes têmsido uma parte central de muitas tradições em Áfricae noutras zonas. E descobertas mais recentes do in-quérito Valores do Mundo mostram que as pessoasdos países muçulmanos apoiam tanto os valoresdemocráticos, como as pessoas dos países não muçul-manos.

    Um problema básico com estas teorias é o pres-suposto subjacente de que a cultura é, em grande me-dida, fixa e constante, permitindo que o mundo sejametodicamente dividido em “civilizações”, ou “cul-turas”. Isto ignora o facto de que as culturas tambémmudam e raramente são homogéneas, ainda que hajauma grande continuidade de valores e tradições nassociedades. Quase todas as sociedades passaram pormudanças de valores – por exemplo, mudanças de va-lores em relação ao papel das mulheres e à igualdadeentre os sexos, ao longo do século passado. E em todaa parte ocorreram mudanças radicais nas práticassociais, desde os católicos no Chile aos muçulmanosno Bangladeche, passando pelos budistas na Tailân-dia. Essas mudanças e tensões dentro das sociedadesconduzem a política e as mudanças históricas, de talforma que o modo como as relações de poder afec-tam essas dinâmicas domina hoje a investigação emantropologia. Paradoxalmente, na altura em que osantropólogos descartaram o conceito de cultura porser um fenómeno social limitado e fixo, cresce o inte-resse político dominante em encontrar valores etraços nucleares de “um povo e da sua cultura”.

    As teorias do determinismo cultural merecemuma avaliação crítica, uma vez que têm implicaçõespolíticas perigosas. Podem alimentar o apoio a políti-cas nacionalistas que rebaixem ou oprimam culturas“inferiores”, acusadas de impedir a unidade nacio-nal, a democracia e o desenvolvimento. Esses ataquesa valores culturais podem, então, alimentar reacçõesviolentas, capazes de suscitar tensões tanto dentrocomo entre as nações.

    Uma nova onda de

    determinismo cultural

    começa a dominar

  • 6 RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004

    O desenvolvimento humano exige mais do quesaúde, educação, um padrão de vida digno e liber-dade política. A identidade cultural dos povosdeve ser reconhecida e aceite pelo Estado, e as pes-soas devem ser livres de exprimir essa identidadesem serem discriminadas noutros aspectos dassuas vidas. Em resumo: a liberdade cultural é umdireito humano e um aspecto importante do desen-volvimento humano – e, assim, merecedora deatenção e acção do Estado.

    O desenvolvimento humano é o processo de alarga-mento das escolhas à disposição das pessoas, para elasfazerem e serem o que valorizam na vida. Relatóriosdo Desenvolvimento Humano anteriores concen-traram-se na expansão das oportunidades sociais,políticas e económicas para aumentar essas escolhas.Exploraram os modos como as políticas de cresci-mento equitativo, expansão das oportunidades sociaise aprofundamento da democracia podem melhoraressas opções para toda a gente.

    Uma outra dimensão do desenvolvimento hu-mano, difícil de medir e até de definir, é de importânciavital: a liberdade cultural é fundamental para a capa-cidade das pessoas viverem como gostariam. O avançoda liberdade cultural deve ser um aspecto fundamen-tal do desenvolvimento humano, e isso exige que se váalém das oportunidades sociais, políticas e económicas,uma vez que elas não garantem a liberdade cultural.

    A liberdade cultural ocupa-se da concessão àspessoas da liberdade de escolherem as suas identi-dades – e de viverem a vida que valorizam – semserem excluídas de outras opções importantes paraelas (como as da educação, saúde e oportunidadesde emprego). Na prática, há duas formas de ex-clusão cultural. A primeira é a exclusão do modo devida, que nega o reconhecimento e a aceitação de umestilo de vida que um grupo escolheria e que insisteem que cada um deve viver exactamente como todasas outras pessoas da sociedade. Os exemplos in-cluem a opressão religiosa, ou a insistência em queos imigrantes abandonem as suas práticas culturaise a sua língua. A segunda é a exclusão da participação,quando as pessoas são discriminadas ou ficam emdesvantagem nas oportunidades sociais, políticas eeconómicas por causa da sua identidade cultural.

    Ambos os tipos de exclusão existem, em grandeescala, em todos os continentes, em todos os níveisde desenvolvimento, em democracias e em Estados

    autoritários. A base de dados Minorias em Risco, umprojecto de investigação que inclui temas relaciona-dos com a exclusão cultural e que analisou a situaçãodos grupos minoritários no mundo inteiro, estima quecerca de 900 milhões de pessoas pertence a gruposque estão sujeitos a alguma forma de modo de vida,ou de exclusão da participação, que outros gruposnão enfrentam no país – cerca de uma em cada setepessoas, em todo o mundo.

    Claro que a eliminação de liberdade culturalocupa todo o espectro. Num extremo está a limpezaétnica. Depois, existem as restrições formais à práticareligiosa, da língua e da cidadania. Mas, mais fre-quentemente, a exclusão cultural vem de uma simplesfalta de reconhecimento ou respeito pela cultura e he-rança das pessoas – ou de algumas culturas seremconsideradas inferiores, primitivas ou incivilizadas. Istopode estar reflectido tanto em políticas de Estado,como em calendários nacionais que não observamum feriado da minoria religiosa, em manuais escolaresque deixam de fora ou depreciam as realizações delíderes da minoria, e no apoio à literatura e a outrasartes que celebram as realizações da cultura dominante.

    A exclusão do modo de vida sobrepõe-se frequen-temente com a exclusão social, económica e políticaatravés da discriminação e da desvantagem no empre-go, habitação, escolaridade e na representação política.As castas profissionais no Nepal têm taxas de mor-talidade de menores de cinco anos superiores a 17%,contra cerca de 7% para os Newar e Brâmanes. NaSérvia e Montenegro, 30% das crianças ciganas nuncafrequentaram a escola primária. Os latino-americanosde ascendência europeia exprimem muitas vezesorgulho por serem daltónicos e insistem em que os seuspaíses também o são. Mas por todo o continente, osgrupos indígenas são mais pobres e estão menos repre-sentados politicamente do que os não indígenas. NoMéxico, por exemplo, calcula-se que 81% dos povosindígenas tenham rendimentos inferiores ao limiarda pobreza, contra 18% da população em geral.

    No entanto, a exclusão do modo de vida e da par-ticipação nem sempre coincidem. Os povos de ascen-dência chinesa da Ásia do Sudeste, por exemplo, sãoeconomicamente dominantes, mas são culturalmenteexcluídos, sendo as escolas de língua chinesa limitadas,a publicação em chinês proibida e os descendentes dechineses socialmente pressionados para adoptar nomeslocais. Mas o mais frequente é a exclusão do modo devida reforçar a exclusão de outras oportunidades. Istoacontece particularmente com a língua. Muitos grupos,

    A liberdade cultural é um

    direito humano e um

    aspecto importante

    do desenvolvimento

    humano – e, assim,

    merecedora de atenção

    e acção do Estado

  • INTRODUÇÃO 7

    especialmente grandes minorias como os Curdos, naTurquia, e os povos indígenas da Guatemala, são ex-cluídos da participação política e das oportunidadeseconómicas porque o Estado não reconhece a sua lín-gua nas escolas, nos tribunais e noutros palcos oficiais.É por isso que os grupos lutam tanto para que as res-pectivas línguas sejam reconhecidas e utilizadas na ins-trução e em processos políticos e judiciais.

    Nada disto é utópico. Incorporar políticas multi-culturais nem sempre é fácil. Democracia, de-senvolvimento equitativo e coesão do Estado sãoessenciais, e muitos países estão a desenvolver comêxito políticas multiculturais para enfrentar a ex-clusão cultural.

    A liberdade cultural não aparece espontaneamente,tal como não aparecem espontaneamente a saúde,educação e igualdade entre sexos. Promovê-la deve-ria ser uma preocupação central dos governos, mesmoonde não existem políticas explícitas de perseguiçãoou discriminação.

    Há quem defenda que garantir às pessoas direi-tos civis e políticos – como a liberdade de culto, ex-pressão e associação – é suficiente para lhes dar acapacidade de praticar a sua religião, falar a sua lín-gua e não ser discriminado no emprego, na escola emuitos outros tipos de exclusão. Argumentam quea exclusão cultural é um subproduto das exclusõeseconómica e política e que uma vez estas resolvidas,a exclusão cultural desaparecerá espontaneamente.

    Isso não aconteceu. Muitos países ricos e demo-cráticos, por exemplo, afirmam tratar igualmentetodos os cidadãos, mas, todavia, acolhem minoriasque carecem de representação adequada na política,para as quais a perseguição e a dificuldade de acessoaos serviços públicos são o pão de cada dia.

    A expansão das liberdades culturais exige políti-cas explícitas para resolver a negação dos direitos cul-turais – políticas multiculturais. Para fazê-lo, osEstados precisam de reconhecer as diferenças cul-turais nas respectivas constituições, leis e instituições.Também precisam de formular políticas para garan-tir que os interesses de grupos particulares – mino-rias ou maiorias historicamente marginalizadas –não sejam ignorados, nem menosprezados pela maio-ria, ou por grupos dominantes. E precisam de fazê--lo de modo que não contradiga outros objectivos eestratégias de desenvolvimento humano, como a

    consolidação da democracia, a construção de um Es-tado capaz e a garantia de oportunidades iguais paratodos os cidadãos. Isto não é fácil, mas há muitosexemplos de países, em todo o mundo, que adoptamabordagens inovadoras para gerir a diversidade cul-tural. Este Relatório incide particularmente em cincoáreas centrais de política: participação política, re-ligião, acesso à justiça, língua e acesso a oportu-nidades socioeconómicas.

    Políticas para assegurar a participação política

    Muitos grupos historicamente marginalizados con-tinuam a ser excluídos do poder político real e, porisso, sentem-se frequentemente alienados pelo Estado.Nalguns casos, a exclusão deve-se à falta de demo-cracia, ou à negação de direitos políticos. Se assim é,a democratização seria um primeiro passo essencial.Porém, é preciso algo mais, porque mesmo quandoos membros das minorias têm direitos políticos iguaisnuma democracia, podem estar consistentementesub-representados ou vencidos pelos votos e, assim,ver o governo central como alheio ou opressivo. Nãosurpreende que muitas minorias resistam às regrasalheias ou opressivas e procurem mais poder político.É por isso que muitas vezes é necessária uma concep-ção “multicultural” da democracia.

    Vários modelos emergentes de democracia multi-cultural proporcionam mecanismos eficazes de parti-lha de poder entre grupos culturalmente diversos. Estetipo de arranjos de partilha de poder é crucial paragarantir os direitos de diversos grupos e minorias cul-turais e para evitar violações – quer por imposiçãomaioritária, quer por domínio da elite política no poder.

    Reformas eleitorais resolveram a crónica sub-representação dos Maoris na Nova Zelândia. Com aintrodução da representação proporcional em vezda fórmula “quem ganha, ganha tudo”, a represen-tação maori cresceu de 3% em 1993 para 16% naseleições de 2002, conforme com a sua percentagemda população. Lugares reservados e quotas foram fun-damentais para garantir que as castas e tribos classi-ficadas tivessem voz na Índia e que as minorias étnicasestivessem representadas na Croácia.

    Os arranjos federais são uma abordagem impor-tante da partilha do poder. Quase todos os dozepaíses etnicamente diversificados que há muito sãodemocracias têm arranjos federais assimétricos, emque as subunidades do Estado federal não têm todasos mesmos poderes. Este arranjo responde com mais

    Vários modelos

    emergentes de

    democracia multicultural

    proporcionam

    mecanismos eficazes de

    partilha de poder entre

    grupos culturalmente

    diversos

  • 8 RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004

    flexibilidade às necessidades de grupos diferentes. Porexemplo, os Sabah e os Sarawak têm um estatuto es-pecial na Malásia, tal como os Bascos e 14 outras co-munidades autónomas em Espanha, com autonomiaem áreas como a educação, língua e cultura.

    Alguns povos indígenas como os Esquimós, noCanadá, negociaram territórios com autogoverno. A lição é de que esses arranjos de partilha de poderprovaram, amplamente, ser fundamentais para resol-ver tensões em países historicamente confrontadoscom movimentos secessionistas, como na Espanha.Se introduzidos suficientemente cedo, podem preveniro conflito violento quando as tensões estão a crescer.

    Políticas para assegurar a liberdade religiosa

    Muitas minorias religiosas sofrem várias formas de ex-clusão, por vezes devido à eliminação explícita daliberdade religiosa, ou à discriminação contra o grupo– problema particularmente vulgar em países nãoseculares onde o Estado apoia uma religião existente.

    Mas noutros casos, a exclusão pode ser menos di-recta e muitas vezes involuntária, como quando o ca-lendário público não reconhece os feriados religiososde uma minoria. A Índia celebra oficialmente 5 feria-dos hindus, mas também 4 muçulmanos, 2 cristãos, 1budista, 1 jain e 1 sikh, em reconhecimento de umapopulação diversificada. A França celebra 11 feriadosnacionais, dos quais 5 não confessionais e 6 religiosos,todos estes celebrando eventos do calendário cristão,embora 7% da população seja muçulmana e 1% judia.Da mesma forma, os códigos de vestuário nas institui-ções públicas podem entrar em conflito com o traje re-ligioso de uma minoria. Ou as regras do Estado sobrecasamento e herança podem diferir das dos códigos re-ligiosos. Ou os regulamentos regionais podem colidircom as práticas de funeral de uma minoria.

    Estes tipos de conflitos podem surgir mesmoem estados seculares com fortes instituições demo-cráticas que protegem os direitos civis e políticos.Dada a profunda importância da religião para a iden-tidade dos povos, não surpreende que muitas vezesas minorias religiosas se mobilizem para contestaressas exclusões. Algumas práticas religiosas não sãodifíceis de aceitar, mas muitas vezes apresentamopções e compromissos difíceis. A França está a dis-cutir, acaloradamente, se os lenços na cabeça em es-colas estatais violam princípios de secularismo doEstado e os valores democráticos de igualdade entresexos que a educação do Estado pretende transmi-

    tir. A Nigéria está a discutir se há-de apoiar uma sen-tença do tribunal da Sharia num caso de adultério.

    O que é importante do ponto de vista do desen-volvimento humano é expandir as liberdades e osdireitos humanos – e reconhecer a igualdade. É maisprovável que esses objectivos sejam atingidos em paísesseculares e democráticos, onde o Estado proporcionauma aceitação razoável das práticas religiosas, em quetodas as religiões têm a mesma relação com o Estadoe em que este protege os direitos humanos.

    Políticas para o pluralismo legal

    Em muitas sociedades multiculturais, pessoas indígenase pessoas de outros grupos culturais têm feito pressãoa favor do reconhecimento dos respectivos sistemaslegais tradicionais, para ganharem acesso à justiça. Porexemplo, na Guatemala, os Maias sofreram séculos deopressão e o sistema legal do Estado tornou-se parteda opressão a que estavam sujeitos. As comunidadesperderam a fé no sistema estatal do Estado de Direi-to, porque não garantia justiça e porque não estava in-crustado na sociedade nem nos seus valores.

    Vários países como a Guatemala, Índia e África doSul estão a desenvolver abordagens do pluralismolegal, reconhecendo, de diferentes formas, o papel dasnormas judiciais e das instituições das comunidades.As reivindicações de pluralismo legal enfrentam aoposição daqueles que receiam que isso mine o princí-pio de um sistema legal unificado, ou que possa pro-mover práticas tradicionais contrárias à democracia eaos direitos humanos. Claro que surgem conflitos – aÁfrica do Sul, por exemplo, está a debater-se com oconflito entre os direitos das mulheres à herança aoabrigo da constituição do Estado e os direitos negadosao abrigo do direito consuetudinário. Há verdadeirostrade-offs que as sociedades têm de enfrentar, mas opluralismo legal não exige a adopção global de todasas práticas tradicionais. A cultura evolui e a liberdadecultural não é uma defesa maquinal da tradição.

    Políticas da língua

    A língua é frequentemente a questão mais contestadanos Estados multiculturais. Alguns países tentarameliminar as línguas populares, rotulando o seu usocomo subversivo. Mas a fonte mais frequente de ex-clusão generalizada, mesmo em democracias bemfirmadas, é a política monolinguística. A escolha dalíngua oficial – a língua de instrução nas escolas, a lín-

    Os arranjos de partilha

    de poder provaram,

    amplamente, ser

    fundamentais para

    resolver tensões

  • INTRODUÇÃO 9

    gua dos debates legislativos e da participação cívica,a língua de comércio – molda as barreiras e as van-tagens que as pessoas enfrentam na vida – política,social, económica e cultural. No Malawi, a constitui-ção exige que todos os parlamentares falem e leiaminglês. O inglês e o africânder ainda são línguas defacto usadas nos tribunais da África do Sul, ainda quenove outras línguas sejam agora oficialmente reconhe-cidas. Reconhecer uma língua significa mais do queo simples uso dessa língua. Simboliza respeito pelaspessoas que a falam, pela sua cultura e pela sua in-clusão integral na sociedade.

    O Estado pode ser cego em relação à religião, masnão pode ser mudo em relação à língua. Os cidadãosprecisam de comunicar para terem um sentimento depertença e a escolha da língua oficial simboliza a iden-tidade nacional. É por isso que muitos Estados resistemao reconhecimento de múltiplas línguas, mesmoquando defendem as liberdades cívicas e políticas.

    Muitos países estão a encontrar modos de con-ciliar os objectivos gémeos de unidade e diversidade,adoptando duas ou três línguas, reconhecendo umalíngua nacional unificadora e línguas locais. Emmuitos países colonizados isso significou o reconhe-cimento da língua de administração (como o inglês,ou o francês), a língua local mais usada e uma línguamaterna a nível local. Tanzânia promoveu o uso dokiswahili, juntamente com o inglês nas escolas e nogoverno. A Índia praticou uma fórmula de três-lín-guas durante décadas; as crianças eram ensinadas nalíngua oficial do seu Estado (bengali em BengalaOcidental, por exemplo) e também aprendiam as ou-tras duas línguas oficiais do país, o hindi e o inglês.

    Política socioeconómica

    As injustiças e desigualdades socioeconómicas nosresultados do rendimento, educação e saúde têm sidoa característica definidora de muitas sociedades multi-étnicas com grupos marginais – negros na África doSul e povos indígenas na Guatemala e Canadá. Essasexclusões reflectem longas raízes históricas de con-quista e colonização – bem como estruturas hierár-quicas arreigadas, como os sistemas de castas.

    Políticas económicas e sociais que promovem aigualdade são fundamentais para a solução destas de-sigualdades. A correcção dos enviesamentos na despesapública, bem como a orientação de serviços básicos parapessoas com menores resultados na saúde e educaçãoajudariam – mas não seriam suficientes. São necessárias

    políticas multiculturais que reconheçam diferençasentre grupos para resolver as injustiças que estão his-toricamente enraizadas e socialmente arreigadas. Porexemplo, apenas gastar mais na educação de criançasde grupos indígenas não seria suficiente, pois elasficam em desvantagem se todas as escolas ensinaremapenas na língua oficial. A educação bilingue ajudaria.As reivindicações de terras – como as reivindicaçõesdos indígenas sobre terras com recursos minerais, outerra povoada pelos colonizadores brancos na Áfricado Sul – não podem ser resolvidas com políticas de ex-pansão das oportunidades socioeconómicas.

    A experiência da Índia, Malásia, África do Sul eEstados Unidos mostra que uma acção afirmativapode reduzir as desigualdades entre grupos. NaMalásia, o rácio do rendimento médio entre as popu-lações chinesa e malaia baixou de 2,3 em 1970 para1,7 em 1990. Nos Estados Unidos, para a populaçãonegra, a proporção de advogados subiu de 1,2% para5,1% do total e a proporção de médicos de 2% para5,6%. Na Índia, a afectação de empregos governa-mentais, a admissão no ensino superior e os assentosparlamentares das castas e tribos existentes ajudoumembros desses grupos a sair da pobreza e a entrarna classe média.

    Nenhuma dessas políticas é isenta de complexi-dade, mas a experiência de muitos países mostra quehá soluções possíveis. A educação bilingue pode sercontestada por ser ineficaz, mas isso é porque recebeapoio insuficiente para garantir a qualidade. Os pro-gramas de acção afirmativa podem ser contestados porcriarem fontes permanentes de desigualdade, ou porse tornarem uma fonte de clientelismo – mas podemser melhor geridos. Estes são modos de corresponderàs exigências de inclusão cultural. Mas também temosde reconhecer que no mundo de hoje existem maismovimentos a favor da dominação cultural, que procu-ram eliminar a diversidade.

    Os movimentos para a dominação cultural amea-çam a liberdade cultural. Combatê-los com medi-das ilegais e não democráticas viola os direitoshumanos e não faz desaparecer o problema. Aconciliação democrática é mais eficaz para denun-ciar as agendas intolerantes desses movimentos eminar o respectivo apelo.

    As pessoas que lideram movimentos para a domi-nação cultural acreditam na sua própria superiori-

    São necessárias políticas

    multiculturais que

    reconheçam diferenças

    entre grupos para resolver

    as injustiças que estão

    historicamente enraizadas

    e socialmente arreigadas

  • 10 RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004

    dade cultural e tentam impor a sua ideologia aos ou-tros, tanto dentro como fora da sua comunidade. Nemtodos esses movimentos são violentos. Alguns coa-gem outros utilizando campanhas políticas, ameaçase perseguição. No extremo, também usam meios vio-lentos – ataques de ódio, expulsões, limpeza étnica egenocídio. Como força política, a intolerância está aameaçar esmagar processos políticos em países detodo o mundo. Os movimentos para a dominaçãocultural revestem-se de diversas formas: partidos políti-cos, milícias, grupos violentos, redes internacionais eaté o Estado. É ingénuo presumir que as sociedadesdemocráticas são imunes à intolerância e ao ódio.

    As causas subjacentes ao aparecimento de movi-mentos a favor da dominação cultural incluem, muitasvezes, liderança manipuladora, pobreza e desigualdade,estados fracos ou ineficazes, intervenções políticasexternas e ligações com a diáspora. Esses factorestambém podem inspirar movimentos nacionalistas –digamos, a favor da autonomia ou da secessão. Masos movimentos para a autonomia nacional não sãoidênticos aos movimentos para a dominação cultural.Desde logo, estes últimos podem aparecer fre-quentemente dentro do grupo maioritário que jádomina o Estado – como os partidos de extrema-di-reita em muitos países europeus. Pelo contrário,muitos movimentos para a autonomia podem ser bas-tante liberais, reconhecendo a importância de har-monizar a diversidade num território autónomo eprocurando apenas o mesmo respeito e o mesmo re-conhecimento que outras nações. O que distingue osmovimentos para a dominação cultural é a sua afir-mação da superioridade cultural e a sua intolerância.Os seus alvos são a liberdade e a diversidade.

    A questão é: como lidar com eles? Muitas vezes,os Estados têm tentado enfrentar esses movimentoscom métodos repressivos e não democráticos – proi-bição de partidos, detenções e julgamentos extrajudi-ciais, legislação que viola direitos fundamentais e,mesmo, força indiscriminada e tortura. Muitas vezesessas medidas eliminam reivindicações e processospolíticos legítimos, resultando em reacções muitomais extremas. Quando a Frente Islâmica de Salva-ção (FIS) venceu a primeira volta das eleições de1991, na Argélia, os militares intervieram e proibiramo partido. Resultado: uma guerra civil que custoumais de 100.000 vidas e estimulou o crescimento degrupos intolerantes e violentos.

    Pelo contrário, a conciliação democrática fun-ciona. Permitir que partidos de extrema-direita con-

    corram às eleições pode obrigá-los a moderar as suasposições, como aconteceu, por exemplo, com o Parti-do da Liberdade (FPÖ) na Áustria, ou com o Par-tido da Justiça e do Desenvolvimento em Marrocos.A concorrência eleitoral expõe o apelo das franjas deoutros grupos (o Partido do Progresso, na Dina-marca). A conciliação democrática também dá aosEstados legitimidade para processar crimes de ódio,reformar o currículo das escolas religiosas (na Indo-nésia e na Malásia) e fazer experiências com inicia-tivas comunitárias para melhorar as relações(Moçambique e o Ruanda).

    A manutenção de uma sociedade liberal dependedo respeito pelo Estado de Direito, da atenção dadaàs reivindicações políticas e da protecção dos direitoshumanos fundamentais – mesmo os das pessoas más.A intolerância é um verdadeiro desafio à liberdade cul-tural – é por isso que os meios de lidar com ela devemser legítimos.

    A globalização pode ameaçar as identidades na-cionais e locais. A solução não é refugiar-se no con-servadorismo e no nacionalismo isolacionista – éconceber políticas multiculturais que promovama diversidade e o pluralismo.

    Até aqui, temo-nos concentrado no modo como osEstados devem gerir a diversidade dentro das suasfronteiras. Mas numa era de globalização, os Estadostambém enfrentam desafios de fora das suas fron-teiras, na forma de movimentos internacionais deideias, capitais, bens e pessoas.

    Expandir a liberdade cultural nesta era de globa-lização apresenta novos desafios e dilemas. Os con-tactos entre pessoas, seus valores, suas ideias e seusmodos de vida têm aumentado e têm-se aprofundadode uma forma sem precedentes. Para muitos, estanova diversidade é excitante, e mesmo capacitadora.Para outros, ela é perturbadora e incapacitadora.Muitos receiam que a globalização signifique a perdados seus valores e dos seus modos de vida – umaameaça à identidade local e nacional. Uma reacçãoextrema é impedir a entrada de influências es-trangeiras, abordagem que não só é xenófoba e con-servadora, mas também regressiva, diminuindo emvez de expandir as liberdades e as opções.

    Este Relatório defende uma abordagem alter-nativa que respeita e promove a diversidade, aomesmo tempo que os países se mantêm abertos aos

    A manutenção de uma

    sociedade liberal depende

    do respeito pelo Estado

    de Direito, da atenção

    dada às reivindicações

    políticas e da protecção

    dos direitos humanos

    fundamentais – mesmo

    os das pessoas más

  • INTRODUÇÃO 11

    fluxos mundiais de capitais, bens e pessoas. Issoexige políticas que reflectem o objectivo da liberdadecultural. As políticas precisam de reconhecer e res-peitar explicitamente a diferença cultural. Tambémprecisam de enfrentar os desequilíbrios do podereconómico e político, que levam à perda de culturase identidades.

    Essas alternativas estão a ser desenvolvidas edebatidas em três áreas fortemente contestadas:• Os povos indígenas estão a protestar contra in-

    vestimentos em sectores extractivos e contra aapropriação indevida do saber tradicional, queameaça a sua subsistência.

    • Os países estão a exigir que os bens culturais(principalmente cinema e produtos audiovisuais)não sejam tratados como qualquer outro produtono comércio internacional, uma vez que a im-portação de bens culturais pode enfraquecer asindústrias culturais nacionais.

    • Os migrantes estão a exigir a aceitação do seumodo de vida e o respeito pelas múltiplas iden-tidades que têm, tanto na comunidade local,como no seu país de origem. Mas as comu-nidades locais estão a exigir que os imigrantes seintegrem, ou que sejam expulsos, pois receiamque as suas comunidades estejam a ficar dividi-das e que os valores e a identidade nacionais es-tejam a ser corroídas.Como é que estas exigências podem ser conci-

    liadas? Como é que se deve respeitar a diversidadee enfrentar as assimetrias?

    Povos indígenas, indústrias extractivas e conhe-cimento tradicional

    Os investimentos que não têm em consideração osdireitos dos povos indígenas à terra e o seu signifi-cado cultural, bem como o seu valor como recursoeconómico, provocarão inevitavelmente a suaoposição. O mesmo acontecerá com o patentear doconhecimento tradicional em condições semelhantes.Três princípios são fundamentais: reconhecer os di-reitos dos povos indígenas sobre o conhecimento ea terra, garantir que os grupos indígenas têm voz(procurando o seu consentimento informado prévio)e desenvolver estratégias para partilhar os benefícios.

    Empresas e governos nacionais estão a tomaralgumas iniciativas, embora ainda limitadas, para tra-balhar com comunidades indígenas no desenvolvi-mento de novos investimentos. No Peru, o governo e

    as empresas aprenderam as lições de confrontos an-teriores e têm estado, desde 2001, a envolver as co-munidades indígenas em processos de tomada dedecisão nas minas de zinco e cobre de Antamina. NaPapua Nova Guiné, investimentos em projectos de de-senvolvimento comunitário acompanham as activi-dades de extracção. Projectos de risco desenvolvidosem conjunto por empresas mineiras e povos indígenasna América do Norte e na Austrália produziram lucrosmonetários, ao mesmo tempo que preservavam os es-tilos de vida tradicionais.

    Muitos governos nacionais estão a tomar medidaspara reconhecer o conhecimento tradicional. OBangladeche reconhece direitos de base comunitáriaaos recursos biológicos e conhecimento tradicionalassociado. O Laos documenta o conhecimento no seuCentro de Recursos de Medicamentos Tradicionais. AÁfrica do Sul prometeu partilhar com os bosquímanosSan os rendimentos dos medicamentos desenvolvidoscom base no seu conhecimento. Alguns países já en-contraram maneiras de utilizar os sistemas de direitosde propriedade intelectual existentes para proteger oconhecimento tradicional. No Cazaquistão, utilizam--se desenhos industriais para patrocinar tapetes e tou-cados. Na Venezuela e no Vietname, indicaçõesgeográficas protegem licores e chás. Na Austrália e noCanadá são utilizados copyrights e marcas comerciaispara a arte tradicional.

    Reconhecer a diversidade significa que diferentesnoções de direitos de propriedade e o significado cul-tural do conhecimento e de formas de arte são con-ciliadas dentro de regimes mundiais. Isto exige acçãointernacional. Se os padrões correntes de propriedadeintelectual não podem conciliar o conhecimento tradi-cional comum, ou os seus atributos de propriedade degrupo, as regras deveriam ser revistas. Deveriam ser re-tirados os empréstimos a países e empresas para pro-jectos que adquirem propriedade de forma injusta, ounão compensem as comunidades.

    Bens culturais

    Deveriam os bens culturais ser protegidos no comér-cio internacional para ajudar a proteger a diversidadecultural no mundo? Os filmes e os produtos audiovi-suais são bens culturais? Há dois princípios funda-mentais: reconhecer o papel dos bens culturais nofomento da criatividade e da diversidade e o reconhe-cimento da desvantagem das pequenas indústrias cine-matográficas e audiovisuais nos mercados mundiais.

    Este Relatório defende

    uma abordagem que

    respeita e promove a

    diversidade, ao mesmo

    tempo que os países se

    mantêm abertos aos

    fluxos mundiais de

    capitais, bens e pessoas

  • 12 RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2004

    A diversidade nos bens culturais tem o seu valorpróprio porque aumenta a escolha do consumidor eenriquece a experiência cultural popular. Mas os bensculturais também gozam de economias de escala.Assim, os produtos dos grandes produtores tendem aafastar os produtos dos produtores mais pequenos, par-ticularmente nos países mais pobres.

    Como é que pode ser promovida a diversidade?Montar barreiras ao comércio não é a resposta, umavez que isso reduz a escolha. O apoio às indústrias cul-turais em vez de direitos aduaneiros fari