RELIGIOES E PRISOES

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Religies e Prises

Agradecimentos Agradecemos aos Agentes Religiosos que fertilizaram, com suas idias e experincias, o ciclo de debates sobre religies e prises realizado no ISER, ponto de partida desta publicao.

Diretoria Srgio Goes de Paula Nair Costa Muls Andres Cristian Nacht Antnio Csar Pimentel Caldeira Eduardo Sales Novaes Secretaria Executiva Samyra Crespo COMUNICAES DO ISER n. 61 Conselho Editorial Ana Maria Quiroga Regina Reyes Novaes Rubem Csar Fernandes Samyra Crespo Organizadores deste nmero Ana Maria Quiroga Christina Vital Flvio Conrado Marilena Cunha Reviso Wagner Guimares Secretaria Helena Mendona Cleber Victorino

Agradecemos ICCO (Organizao Intereclesistica para a Cooperao ao Desenvolvimento Holanda) pelo apoio rea de Religio e Sociedade. Design Grco e Editorao Design Genuno Bernardo Lac, Maria de Oliveira Foto de Capa Mariana Magro/Divulgao ALERJ Impresso Grca Minister

Religies e Prises7 APRESENTAORegina Reyes Novaes

RELIGIES ATRS DAS GRADES: OLHAR DOS PESQUISADORES 13 Religies e Prises no Rio de Janeiro: presena e signicadosAna Maria Quiroga

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Catlicos e Evanglicos em prises do Rio de JaneiroEdileuza Santana Lobo

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Religiosidade: mecanismo de sobrevivncia na penitenciria feminina do Distrito FederalLaura Ordez Vargas

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Religio, vida carcerria e direitos humanosRita Laura Segato

PRESENA E PRTICAS RELIGIOSAS NAS PRISES 47 Ciclo de Debates sobre Religies e Prises: viso inter-religiosaMaria das Graas de Oliveira Nascimento

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A Casa do Perdo: resistncias e estmulos aos umbandistasFlvia Pinto

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Misso metodista nas prisesEdvandro Machado

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Assemblia de Deus: trabalho com internos e famliasPr. Vicente de Paulo Nascimento

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O trabalho dos batistas nas prisesAdenice Barreto Batista

Os apenados no trabalho de assistncia religiosaAmanda dos Santos Lemos

CONVERSO: TESTEMUNHOS ACERCA DA EXPERINCIA PRISIONAL 75 Trajetrias religiosas e experincias prisionais: a converso em uma instituio penalEva Lenita Scheliga

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O reino e o reinado: vivncias de um egressoRonaldo Monteiro

Missionrios do Rock: uma histria de converso pela msicaChristina Vital Edileuza Santana Lobo Elisa Gomes Mariana Leal

DOSSI 103 As condies de encarceramento no Rio de JaneiroJoo Trajano Sento-S Ignacio Cano Marcelo Freixo Eduardo Ribeiro Elionaldo Julio

Regina Reyes NovaesAntroploga Presidente do Conselho Nacional de Juventude

Apresentao7

Composta por segmentos cada vez mais jovens, a populao carcerria parece viver um caminho sem volta. Sem minimizar outras tantas e diversicadas expresses de violncias (fsicas e simblicas) presentes no cotidiano das grandes cidades brasileiras, ainda somos freqentemente impactados por cenas de motins que eclodem no interior do chamado sistema prisional. Nestes momentos, ca evidente o fracasso da gesto governamental e salta aos olhos o quanto falta para que os rgos scalizadores do sistema penitencirio cumpram seu papel. De fato, de maneira geral, as prises se tornaram espaos caracterizados pela ausncia de bens materiais bsicos como gua, sabonete e papel higinico; pela ausncia de atendimento mdico; pela marcante presena de tortura, tratos desumanos e humilhaes. Por outro lado, tambm nestes momentos de crise evidenciam-se os complexos desaos que so colocados para os organismos dos Direitos Humanos e para outras tantas organizaes da sociedade civil que buscam sadas e alternativas de re-socializao com o objetivo de reverter este processo no qual se conjugam carncias e violaes. Menos evidentes, no entanto, so os desaos e as repercusses sociais da crescente presena das religies no universo penitencirio. Sem dvida, relacionar Religies e Prises sempre polmico. s prises cabe punir e criar condies para recuperar cidados. s religies cabe acolher, perdoar, redimir, converter para recuperar espritos. Ao mitigar o sofrimento dos corpos, aportando curas e doaes de bens materiais, acabam as religies por desobrigar o poder pblico? Ao mitigar o sofrimento das almas, produzindo converses, identida-

des e pertencimentos religiosos, tornam-se as religies braos auxiliares dos governos promovendo pacificao e ordenamento do precrio sistema penitencirio? Enm, em sua constante busca de is, as religies nas prises so apenas funcionais ao sistema? Ou, para alm das acomodaes alienantes, as religies podem ser vias tanto para a humanizao das relaes quanto para a reinsero societria? As perguntas so antigas e quase universais. O que, ento, h de novo na polmica e no Brasil? Em seu artigo que abre esta publicao, Ana Maria Quiroga observa que, hoje, por parte da sociedade brasileira pode-se observar um movimento de evitao em relao realidade prisional e ao destino dos detentos. Contudo, e ao mesmo tempo, cresce o nmero de grupos e instituies religiosas que solicitam credenciamento para o exerccio de atividades de assistncia espiritual nos presdios. Nem sempre foi assim. No Brasil, como lembra Edileuza Santana Lobo, em artigo tambm publicado neste nmero de Comunicaes do ISER, desde o sculo XIX, o cumprimento de pena esteve associado com educao moral, trabalho e religio. Naquele contexto, a assistncia religiosa nas prises era atribuio exclusiva da Igreja Catlica, religio ocial e dominante. Mais tarde, com a separao entre Igreja e Estado, preconizada pela Constituio Republicana, outras religies, sobretudo as evanglicas e espritas, tambm se aproximaram das prises brasileiras. Em cada perodo histrico, portanto, as relaes entre religies e prises reetem transformaes na sociedade e no campo religioso brasileiro. Como caracterizar o presente?

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No que diz respeito sociedade, o Estado brasileiro continua no dando condies e garantias de vida queles que se encontram sob sua tutela. Porm, nos ltimos anos h ainda um agravamento da situao decorrente da corrupo policial, das disputas entre comandos do narcotrco e, tambm, da ao de faces do trco no interior do prprio sistema penitencirio. No que diz respeito ao campo religioso, a maior oferta de alternativas religiosas revela o enfraquecimento da equao ser brasileiro/ ser catlico. Em tempos de globalizao, ao almejado estado secularizado soma-se uma maior circulao de smbolos e credos incentivando o pluralismo religioso.Ou seja, no momento atual as autoridades religiosas tradicionais perderam a exclusividade na tarefa de transmisso, de gerao a gerao, das imagens do mundo. Hoje so vrias e diversicadas as fontes doadoras de sentido para a vida, entre elas esto as explicaes e prticas religies. Segundo o nosso ltimo Censo demogrco do (IBGE 2000), as principais mudanas que caracterizam o campo religioso brasileiro hoje so: a diminuio percentual de catlicos (83,76% em 1991; 73,77% em 2000), o crescimento dos evanglicos (9,05% em 1991; 15, 45% em 2000) e o aumento dos sem religio (4,8% em 1991; 7,4 % em 2000). Paralelamente, vrios estudos tm demonstrado que entre aqueles que se classicam como sem religio apenas uma parcela mnima se diz ateu ou agnstico. Entre os sem religio destacam-se duas virtualidades: em uma delas esto aqueles que optaram por acreditar em Deus, mas no ter religio, rejeitando pacotes institucionais e fazendo suas snteses pessoais, bem ao esprito da poca; na outra esto aqueles que esto em trnsito, isto em busca de novos vnculos institucionais. Em sntese, nesta congurao social, ampliam as possibilidades de experimentao religiosa dentro, fora ou margem da religio de origem. Assim como fora e dentro das prises.

Focalizando as religies no interior das prises, comecemos pelo o que menos visvel. No conjunto dos artigos aqui publicados, Laura O. Vargas registrou a presena de novas alternativas religiosas no interior das prises referindo-se a manifestaes religiosas informais no crists tais como budistas, msticas e da Igreja Messinica. Por outro lado, vrios artigos fazem referncia aos espritas. Ainda assim, so escassos os pargrafos dedicados a esta presena. Talvez isto ocorra porque os espritas kardecistas, historicamente legitimados por sua obra social, so pouco proselitistas. A nfase lantrpica dos espritas, em seu exerccio da caridade crist, muitas vezes faz invisvel o seu vis religioso. O que, de certa forma, retira os espritas kardecistas tanto da competio por is quanto do alvo das crticas de religiosos e ativistas de Direitos Humanos. Certamente por outros motivos, tambm as religies afro-brasileiras, to presentes no Brasil profundo, se tornam pouco visveis nos presdios. Como armam Maria da Graa Nascimento e Flvia Pinto, em artigos tambm aqui publicados, as religies afro brasileiras ocupam posio subordinada no campo religioso: na sociedade e tambm dentro dos presdios. Isto pode ser justicado tanto pelo preconceito histrico ainda existente em um pas colonizado nos moldes da cultura catlica, quanto pelas caractersticas de seus rituais que pressupe espaos apropriados para o transe, para o uso de variado vesturio, para a utilizao de determinados instrumentos de percusso. E, ainda, como conta Flvia Pinto, pela diculdade se caracterizar como uma instituio religiosa formal que atende os requisitos exigidos para credenciamento junto aos presdios. Contudo, do (sugestivo) ponto de vista de Rita Segato, a invisibilidade das alternativas afro- brasileiras sobretudo o candombl- nos presdios poderia tambm estar relacionada s caractersticas das religies trgicas. Estas, colocam ao alcance das pessoas um conhe-

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cimento mitolgico e um vocabulrio que permite ao ser humano suportar o seu destino trgico como consequncia da presena do mal no mundo, do sofrimento do mundo. Por estas caractersticas, no seriam redentoras. Em contraposio s religies trgicas, sugere ainda Segato, as religies de superioridade moral entram nos presdios e monopolizam os discursos que permitem a redeno. A palavra, neste contexto, veculo imprescindvel para a expresso da culpa, para o perdo e para a redeno. Autntica cosmologia crist. No por acaso, a Bblia a fonte discursiva mais familiar e mais promissora no contexto penitencirio. Localiza-se assim o tenso ponto de intercesso entre catlicos e evanglicos. Vamos por partes. Dentro das prises, ou tratando com egressos, as Pastorais Catlicas tm tradio. E tm a credibilidade social da religio, ontem e hoje, majoritria que no tem necessidade de ampliar o rebanho. Seu objetivo assistir os necessitados, para exercer seu papel espiritual e social supletivo. verdade que, historicamente, pesa sobre a Igreja Catlica tanto a conivncia com as violaes praticadas por autoridades constitudas quanto a pecha do assistencialismo. Porm, ainda que os grupos catlicos carismticos tambm faam cada vez mais presentes, hoje so socialmente mais visveis seus organismos que se especializam em promover os direitos humanos dos detentos, contrapondo-se aos desmandos de autoridades carcerrias e de governantes. J os evanglicos que esto dentro das prises, em suas inmeras denominaes histricas e pentecostais, so sempre olhados de maneira ambivalente. Ora produzem grande desconana, ora provocam sentimentos de alvio. A desconana vem, sobretudo, de seu af evangelizador, da explicita concorrncia por is. Mas, vem tambm, da falta de uma instituio central que tenha autoridade para responder por todos aqueles que se apresentam como pastores, pastoras e leigos evang-

Por outro lado, o sentimento de alvio vem das repercusses das converses que, no interior das instituies carcerrias, resultam em agregao e pacicao. No por acaso as notcias de jornal registram converses de famosos tracantes; a presena de agentes religiosos que so chamados para mediar negociaes entre faces e entre faces e as autoridades em momentos de rebelies. Certamente, sempre h dvidas sobre o utilitarismo ou oportunismo dos benecirios em relao a todas as religies que adentram nas prises. No que diz respeito s ofertas provenientes do mundo catlico bens materiais, servios religiosos ou assistncia jurdica -elas se fazem presentes entre catlicos praticantes e no praticantes, entre catlicos que so tambm da umbanda, do candombl ou espritas. Como detectar oportunismos por parte de detentos, ou por parte dos agentes religiosos, no maior pas catlico do mundo onde convivem diferentes formas de ser catlico? J que diz respeito aos evanglicos, a questo da converso no interior das prises sempre traz a questo da simulao, do ngimento, da fraude. Questo difcil que, muitas vezes, revela preconceitos. Fala-se em simulao da converso nos presdios como se houvesse em outros espaos sociais vias e mtodos seguros para comprovar a autenticidade da converso ou a profundidade da liao religiosa transmitida de gerao a gerao. As respostas a estas e outras questes no so simples. Esto a exigir vrias escutas e uma profunda reviso de conceitos e preconceitos. Apostando neste caminho, o ISER em parceria com a ICCO Organizao Intereclesistica para a Cooperao ao desenvolvimento/Ho-

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licos. Quem pode garantir que determinado pastor no seja ligado a um tracante ou sua famlia? Ou que seja um charlato com interesses escusos? Isto porque em sua constante segmentao os evanglicos produzem denominaes independentes entre si.

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landa realizou, sob a coordenao de Ana Quiroga, em outubro e novembro de 2004, um ciclo de debates sobre a atuao dos agentes religiosos nas prises do Rio de Janeiro. Reunindo pesquisadores, agentes religiosos, prossionais da rea de Servio Social e Psicologia nos indagamos sobre os blsamos, os servios e as perspectivas que as alternativas religiosas apresentam para os detentos e para os egressos. Este nmero de Comunicaes do ISER publica depoimentos e trabalhos apresentados naquela ocasio e incorpora outros que tambm trazem contribuies importantes para a compreenso do tema. A publicao est dividida em quatro partes. Na primeira parte intitulada RELIGIES ATRS DAS GRADES: OLHAR DOS PESQUISADORES, encontramos reexes baseadas em pesquisas quantitativas e qualitativas. Ana Quiroga, Edileuza Lobo, Laura Ordez e Rita Laura Segato, com recortes e olhares diferenciados, trazem questes instigantes sobre o perl dos presos e a composio dos agentes religiosos hoje nas prises do Rio de Janeiro, sobre a maior visibilidade dos evanglicos pentecostais na priso; sobre as diferentes vertentes da atuao da igreja catlica no Rio de Janeiro e em Braslia. sobre outras linguagens e converses (no religiosas) que tambm produzem mecanismos de sobrevivncia dentro das prises, tais como a converso ao homossexualismo ou ao iderio dos direitos humanos de um Projeto Social. Na segunda parte, intitulada PRESENA E PRTICAS RELIGIOSAS NAS PRISES o leitor deste nmero de Comunicaes do ISER, ter acesso a ricos relatos de pessoas e instituies que desejam estar ou j esto nas prises do Rio de Janeiro. O tom desta parte predominantemente coloquial. Cada um fala do seu ponto de vista, trazendo consigo suas crenas, seus desaos, as controvrsias e as ambivalncias. Olhares mais ecumnicos e olhares mais confessionais. Assim sendo, Maria das

Graas de Oliveira Nascimento, do Movimento Interreligioso (MIR), faz um resumo das reexes do ciclo de debates e apresenta, como proposta ao nal do texto, a necessidade de uma maior integrao das religies no meio carcerrio. Flvia Pinto, que se reconhece como militante dos direitos humanos e do movimento negro, conta das diculdades que encontra para adentrar nas prises como agente de uma religio de matriz africana. Edvandro Machado - como um agente especial, que no ca cotidianamente no front e tambm participa dos Conselhos da Comunidade- analisa a situao dos agentes religiosos na priso. Padre Vicente de Paulo Nascimento e a Missionria Adenice Barreto Batista, como porta vozes de suas Igrejas, desvendam a lgica missionria e o sentido religioso constitui o alicerce de suas intervenes nas prises. J Amanda dos Santos Lemos nos traz uma outra dimenso importante, muitas vezes esquecida por quem trata do tema: o papel que os prisioneiros que so tambm agentes religiosos desempenham na converso e manuteno da comunidade de irmos. Na terceira parte, intitulada CONVERSO: TESTEMUNHOS ACERCA DA EXPERINCIA PRISIONAL rene trs contribuies sobre a vida no crcere. Eva Lenita Scheliga analisa trajetrias e experincias de presos convertidos ao pentecostalismo. Ultrapassa a idia corrente e generalizante de que detentos convertidos estariam se escondendo atrs da Bblia e abre o leque das distintas possibilidades e nfases presentes no processo de converso em ambiente prisional. Ronaldo Monteiro fala, sobre religies nos presdios, na primeira pessoa: relata o que observou e o que viveu dentro do presdio, e aps sua sada do crcere. Christina Vital, Edileuza Lobo, Elisa Gomes e Mariana Leal analisam um lme intitulado Missionrios do Rock dirigido por Cleisson Vidal e Andra Prates. Tomando o documentrio como um campo de pesquisa etnogrca, as autoras analisam o carter religioso que assume o projeto musical e a converso de seus integrantes. Trata-se de uma banda de rock, formada por

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trs detentos na penitenciria Lemos de Brito. Diferentes entre si no que diz respeito s suas trajetrias religiosas individuais, os meninos se inserem em um especco cenrio do mundo prisional: os festivais em que concorrem bandas de estilo gospel ou popular, nascidas nos presdios. Este engajamento, via uma expresso artstica, parece fazer diferena no cotidiano dentro da priso e tambm nas perspectivas de vida dos jovens participantes. No ltimo bloco, temos a contribuio de Joo Trajano, Igncio Cano, Marcelo Freixo, Eduardo Ribeiro e Elionaldo Julio, intitulada AS CONDIES DE ENCARCERAMENTO NO RIO DE JANEIRO. Trata-se de um dossi no qual informaes relevantes e argumentos analticos se fazem presentes com o objetivo de convencer as autoridades competentes da necessidade urgente de transformar o sistema penitencirio do Rio de Janeiro. Trata-se, de fato, de um parecer tcnico apresentado pela equipe que comps o Conselho da Comarca que acompanhava as penitencirias do Rio de Janeiro. Public-lo aqui no tem apenas o objetivo de disseminar informaes e ampliar o conhecimento. Mais do que isto, a idia provocar novas interlocues entre pesquisadores e agentes, leigos e religiosos, entre o mundo secular e as instituies religiosas. Enm, para alm da diversidade de consses, crenas, estilos, posies, oposies e interpretaes aqui reunidas, podemos dizer que entre aqueles que escrevem nesta publicao possvel encontrar um mnimo denominador comum. A saber: cada um, do seu ponto de vista, com suas armas e bagagens, j se empenha para combater a indiferena com o que se passa de desumano atrs das grades. O que se espera agora que, cada um, tambm a seu modo, possa contribuir para o combate dos preconceitos e para ampliao do dilogo. Anal, para reverter a atual e complexa situao dos presdios brasileiros, que muitas vezes parece se apresentar como um caminho sem volta, preciso juntar todos as energias e militncias disponveis.

Alis, esse o sentido ltimo deste nmero de Comunicaes do ISER preparado, com competncia e com o objetivo de rearmar valores e direitos de cidadania, por Ana Quiroga e sua equipe composta por Christina Vital, Marilena Cunha e Flvio Conrado, contando sempre com a cuidadosa arte editorial de Bernardo Lac. Vale a pena conferir.

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Ana Maria QuirogaAssistente Social, Doutora em Antropologia Pesquisadora do ISER

O tema religies e prises vem comparecendo na cena pblica cada vez que a questo penitenciria eclode atravs de evases em massa, motins, tenses motivadas pela superlotao carcerria etc. Pastores so chamados para a mediao de conitos. Igrejas se mobilizam atravs de Comisses de Direitos Humanos. Famlias de presos demandam a intermediao de agentes religiosos para localizao de seus membros. como se as religies estivessem garantindo ou infundindo na populao maior conabilidade para ocupar espaos e exercer funes civis, em princpio, de responsabilidade de rgos tcnicos ou do prprio aparelho de Estado. Essas formas de atuao das esferas religiosas nos contextos prisionais parecem ser novas e, a rigor, diferem do que caracterizou a tradio dos estudos acerca da realidade prisional brasileira, onde as religies sequer eram consideradas. Pelo contrrio, o enfoque dos estudos voltava-se precisamente para a anlise do afastamento da religio como elemento constitutivo, quer das concepes de crime, quer das medidas propostas para sua punio. De fato, nosso contexto carcerrio foi objeto de anlises mais amplas, a partir do nal da dcada de 70, quando foram desenvolvidas importantes formulaes no campo da sociologia e da histria social atravs de estudos inspirados em Foucault e Goffman. Obras como Vigiar e Punir, Manicmios, Asilos e Conventos ou as teorias das Instituies Totais, guiaram uma srie de anlises sobre o sistema penal brasileiro. Tambm contriburam para a entrada da questo penitenciria na agenda pblica o

contato de presos polticos e das classes mdias com a realidade prisional, bem como a armao dos Direitos Humanos como questo e reinvindicao, nacional e internacional, no nal do perodo autoritrio brasileiro e latino-americano. Assim, durante toda a dcada de 1980, o sistema e as polticas penais foram objeto de importantes estudos: Pinheiro,1983; Paoli, 1982; Benevides,1983; Campos, 1986; Paixo, 1988a,1988b; Adorno, 1989, 1991, para citar alguns . Estes retomaram o processo de superao das matrizes histrico-religiosas de nossas leis penais (como herdeiras das 1 Ordenaes Filipinas ) e a longa trajetria de constituio da concepo racional de crime/penalidade dentro de uma ordem legal 2 autnoma centralizada e administrada pelo Estado. Focalizavam, ainda, a implementao das polticas pblicas penais, a degradao dos equipamentos prisionais e, nalmente, eram quase unnimes na constatao da falncia de seus objetivos de recuperao. Muitos deles sinalizavam as crescentes tenses que envolviam (e, ainda hoje, envolvem) o ambiente interno das prises e os altos ndices de reincidncia que acompanhavam (e ainda acompanham) seus egressos. Assim, de um lado, os estudos sociolgicos da dcada de 1980 no Brasil reconstituram a trajetria do processo de racionalizao da concepo e tratamento do crime e seus atores; e de outro, analisaram a construo dos sistemas e polticas penais, onde um dos mecanismos centrais foi a separao e distino das concepes religiosas e morais das jurdico-legais. Neste processo que remete a toda a historiograa criminolgica e construo dos estados de direito:

1 O Livro V das Ordenaes Filipinas, como cdigo penal que vigorou no Brasil at 1830, foi denido por um historiador como um catlogo de monstruosidades... sua denio de crime indica uma indiferenciao das esferas religiosa, moral, poltica e legal (Paixo, 1988a). 2 Distint a de uma ordem tico-religiosa, e mesmo de uma ordem repressiva fundada na perspectiva normativa da comunidade moral de bases locais, sociologicamente tematizadas por Durkheim.

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Religies e Prises no Rio de Janeiro: presena e significados

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o crime, enquanto infrao s leis da sociedade, se distinguiria da falta ou do pecado enquanto infrao s leis divinas ou da religio; as prises teriam que superar as dimenses de espaos de custdia e castigo, para assumirem o carter, em princpio, de instituies de disciplinamento, correo e recuperao (ou reconstruo moral) do interno; as polticas penais deveriam objetivar no apenas o cumprimento das penas (ou das dvidas para com a sociedade) mas a ressocializao do preso, o que implicaria a introduo de outros servios e tcnicas prossionais de recuperao (o trabalho; o estudo; a assistncia religiosa e social; a manuteno dos vnculos com as famlias etc) A assistncia religiosa prevista como direito nas polticas penais modernas permaneceu, durante muitos anos, como um servio restrito, de certa forma, a um pequeno contingente de agentes, predominantemente vinculados Igreja Catlica. Internamente, o acesso e a atuao destes agentes eram coordenados pela direo dos estabelecimentos penais que, no conjunto de suas atribuies profissionais, considerava a atuao dos grupos religiosos como de carter complementar, quando no, de carter absolutamente residual. Entre os 20 anos que separam essa grande onda de estudos sociolgicos acerca da realidade prisional e os dias de hoje, a situao tanto das prises como da presena religiosa mudou radicalmente.

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A presena e atuao das faces criminosas no interior das diferentes unidadesO desenvolvimento das chamadas sociedade dos cativos uma sociedade dentro da sociedade que nasce do isolamento da populao carcerria, fenmeno identicado internacio3 nalmente j nos nais da dcada de 1950 . No caso brasileiro, e principalmente uminense, uma definio mais ntida e com atuao mais organizada das atuais faces emerge no nal da dcada de 1970, e desenvolve-se de tal forma que passa a denir e diferenciar as unidades prisionais de acordo s faces que as dominam. O possvel pertencimento a uma faco (que muitas vezes denido pelo local de origem ou moradia do interno) hoje um critrio seletivo e classicatrio bsico para o envio dos apenados s diferentes unidades prisionais. Estes passam a ser considerados, e controlados, como membros das faces que, no apenas orientam comportamentos individuais, como os disciplinam no sentido da manuteno de compromissos normativos coletivos. Esses compromissos so, pois, produto da adeso (frequentemente compulsria) a valores, crenas e cdigos rigorosos que prescrevem sistemas de lealdade e autoridade, papis entre os membros participantes, formas de relao e resoluo de conitos, institudos base da fora e da violncia exercida entre os prprios apenados no interior das prises. Segundo o estudo de Lemgruber (2005), 72% dos estados brasileiros identicam e separam os presos por faces.

Mudanas no ambiente prisionalUma srie de mudanas poderia ser apontada no sistema prisional nos ltimos 20 anos. Apenas assinalaremos algumas, do nosso ponto de vista, fundamentais na anlise da relao entre religies e prises.

Mudanas no perl dos presosNos ltimos anos, o perl bsico dos presos tem sofrido grandes alteraes. O que caracteriza o apenado tpico no Rio de Janeiro, alm de sua absoluta predominncia urbana, o fato de:

3 O conceito sociedade dos cativos j aparece em um trabalho clssico de Sykes, acerca das prises britnicas: The Society of Captives Princeton University Press, Princeton, 1958. Refere-se s formas de organizao social surgidas no interior dos sistemas penais, que articulam papis e rgidos cdigos de condutas aos quais os internos devem aderir, em troca do pertencimento e da proteo interna e extra muros.

ser um apenado mais jovem em que 41,5% 4 tm idade abaixo de 30 anos ; ter nveis relativamente baixos de escolaridade 69,5% com 1 grau incompleto, alm de 10,4% analfabetos; ser condenado por aes criminosas contra o patrimnio e articulao ao trco de drogas; ter atuao ilegal de carter mais coletivo e organizado, o que signica o declnio do criminoso solitrio; ter maiores noes de eccia da ao organizada, e da existncia de seus direitos civis; ser mais receptivo a padres normativos da sociedade dos cativos faces muitas vezes sendo socializado nas mesmas pela prpria dinmica da desigualdade e da territorializao da pobreza nos centros urbanos. Essas caractersticas, que mostram um apenado potencialmente mais agressivo (ou menos pacico), no so totalmente generalizveis. Entretanto, elas passam a equivaler s caractersticas de parte signicativa dos internos, pouco tempo aps a entrada no sistema, alm de marcar os grupos que, por suas fortes articulaes internas e externas, ganham liderana e privilgios na dinmica prisional. Obviamente, os encarcerados mais pobres e fragilizados, menos agressivos e organizados constituem, talvez, a maior parte da massa carcerria. Esta vive imersa num ambiente de enorme insegurana e medo.

violncia e pela fora. Os contextos prisionais tm mantido formas extremamente desumanas e arbitrrias de tratamento dos presos, que se manifestam nas condies precrias e insalubres das celas e outras instalaes penais; nos abusos de autoridade e da corrupo no tratamento dos agentes de custdia; na insucincia e nas decincias do tratamento alimentar e de sade dos presos etc. Este conjunto de elementos, somado ao ambiente de enorme insegurana e medo entre os internos, constitui um caldo de cultura para rebelies e motins cada vez mais brutais que, periodicamente, impactam a sociedade. Nestes momentos, a invisibilidade do sistema e seus grupos humanos desvelada. Entretanto, como se trata de movimentos que eclodem impulsionados por situaes limite, o desespero e o horror terminam sendo a forma atravs da qual a populao carcerria comparece na cena pblica, rearmando esteretipos de ferocidade e monstruosidade que so construdos em relao a ela. Alm disso, considerando que hoje, grande parte da imagem que a sociedade tem de si construda pelas mdias, e que a violncia um de seus ingredientes de maior impacto, os motins e rebelies se transformam em sinnimos ou retratos da realidade prisional. Neste contexto, e como resposta, a sociedade amplia seu questionamento ao sistema de justia penal, reivindicando seu endurecimento. Voltam a germinar propostas de solues mais rpidas e denitivas como as de exterminar tais problemas e seus portadores. Desenvolve-se, assim, uma relao paradoxal onde a constatao da desumanizao no acompanhada por um apoio a polticas penais humanizadoras ou de direitos humanos. Estas so vistas como polticas de privilgios em relao aos bandidos. Pelo contrrio, o que ocorre muito frequentemente, quando do contato da sociedade com a dinmica prisional, o aparecimento de inmeras ma-

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A visibilidade dos motins e rebeliesNos ltimos anos tem ocorrido um aumento das organizaes de Direitos Humanos, uma maior presena de instncias do legislativo e do judicirio junto s unidades prisionais, um maior investimento na capacitao de agentes penitencirios. Entretanto, essas medidas no tm sido sucientes para atenuar a tradio multissecular de controle dos miserveis pela

4 Dados do Ministrio da Justia, fornecidos por Julita Lemgruber (2005).

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nifestaes de apoio ao recrudescimento do uso da fora e da represso sobre os internos, desconhecendo o efeito perverso que tais medidas terminam por desencadear no apenas em termos presentes, mas tambm, futuros.

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Nmero de instituies religiosas credenciadas nas unidades penais do Estado do Rio de Janeiro

A ampliao da presena religiosaEnquanto possvel observar, por parte da sociedade, um movimento de distanciamento em relao realidade prisional e ao destino de seus encarcerados, um outro movimento, em sentido oposto, vem sendo desenvolvido. Trata-se do aumento do interesse dos grupos religiosos pela realidade dos presos, vistos como um campo frtil a suas tarefas de converso e evangelizao. A entrada e o exerccio da atividade religiosa nas Unidades Penais do Estado do Rio de Janeiro vm sendo sucessivamente regulamentada 6 por portarias que normatizam o processo de cadastramento de Instituies Religiosas; a inscrio, o credenciamento, a capacitao e o Plano de Trabalho dos agentes, bem como as normas relativas a seu comportamento no exerccio das atividades de assistncia espiritual. Esto includas nas Portarias as interdies de envolvimento, interferncias e julgamentos em questes que extrapolem o mbito do exerccio religioso, e as sanes a serem aplicadas, no caso de transgresses. Apesar destas normas, o que se observa uma certa aprovao (e frequentemente, incentivo) presena dos agentes, por suas contribuies no apoio social aos presos e pela colaborao no prprio processo de disciplinarizao, uma vez que preso convertido preso mais calmo. Sem dvida, como assinalam vrios estudos, inclusive alguns includos nesta publicao, as entidades religiosas, sobretudo as denominaes evanglicas e pentecostais, constituem uma enorme fora no interior das diferentes unidades. A evoluo desta presena em todas as uni-

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em 2004

dades penais do Estado do Rio de Janeiro pode ser apreciada, no grco acima, atravs da comparao do nmero de instituies religiosas credenciadas junto Coordenao Tcnico-Social, nos anos 2000, 2002 e 2004. Esse aumento no se distribuiu de maneira uniforme nos diferentes Complexos Penitencirios. Assim, tomando-se apenas dois importantes Complexos da cidade do Rio de Janeiro Bangu e Frei Caneca , comparando-os entre os anos 2002 e 2005, temos: Em Bangu, deu-se um aumento signicativo de internos, em quase todas as unidades. Entretanto, o nmero de instituies religiosas credenciadas no teve crescimento equivalente, sendo que em boa parte delas parece ter havido at reduo quantitativa. No Complexo da Frei Caneca, aumentouse tanto o nmero de internos como o de Instituies Religiosas atuantes no interior das unidades. Cada uma das Entidades Religiosas credenciadas inscreve seus agentes para atuar nas diferentes unidades, alm de possuir um representante legal junto Coordenao de Servio Social. Cada agente pode atuar, no mximo, em duas unidades.

5 Vrios estudos, baseados em anlise de cartas ao leitor ou mensagens radiofnicas em perodos com ocorrncia de tragdias sociais ou de crises no sistema penal, como Chacinas, rebelies ou revoltas em presdios tm apontado o signicativo nmero de apoios a um endurecimento ou aumento da lgica repressiva no tratamento com os internos em geral, e com os rebelados, em particular. (Benevides, M. V. Opinio Pblica: carta dos leitores,1983; Oliveira, L. Os excludos existem?,1997; Caldeira, Tereza, Direitos Humanos ou privilgio de bandidos,1991; Ramos e Musumeci, 2005) 6 Portaria n709/ DESIPE de 22/12/1992 posteriormente pela Portaria DESIPE/DG n 716 de 03/11/1993; DESIPE/DG n 754, de 27 de junho de 1996; Portaria DESIPE/ DG n 770 de 19/ 04/ 2000, e atualmente pela Portaria SSAUP-SEAP n 005 de 31 de janeiro de 2004

Nmero de Internos e Instituies Religiosas por unidade penalNmero de internos Nmero de instituies Nmero de internos Nmero de instituies Variao do nmero de internos 2002 2005 Variao do nmero de instituies 2002 2005

2002

2005

17

FREI CANECAPO Hlio Gomes* Heitor Carrilho Nelson Hungria hoje Bangu VII Milton D. Moreira Lemos de Brito Hospital Central

2.717181 566 95 224 1.007 549 95

428 5 3 5 7 9 5

3.536135 1.091 200 414 1.005 593 98

5212 6 3 7 8 11 5

+30%-25,5% +92,7% +110% +84% -0,2% +8% -0,3%

+24%+50% +20% nulo +40% +14% +37,5% nulo

BANGUAlfredo Tranjan Bangu II Serrano Neves Bangu III Jonas Lopes Bangu IV L. Pellegrino Bangu I Talavera Bruce (feminino) Romeiro Neto (feminino) H. Psi. Roberto Medeiros Vicente Piragibe Esmeraldino Bandeira H. Dr. Hamilton Agostinho Moniz Sodr I.P. Plcido de S Carvalho C.C. Jorge Santana Sanatrio Penal C.C. Pedro Melo C.C. Bangu V

9.312670 891 887 45 313 28 118 1.381 969 76 1.323 1.540 452 112 482 493

687 5 5 2 7 4 7 8 5 1 5 1 4 5 2

11.631811 1.012 1.038 44 311 421 149 1.363 996 68 1.372 1.811 721 63 721 730

735 4 3 2 8 5 4 5 6 7 3 8 2 4 4 3

+25%+21% +13,6% +17% -0,3% -0,7% +503% +26% -2,5% +2% -10,5% +3,7% +17,6% +59,5% +56% +49,6% +48%

+7%-40% -20% -40% nulo +14% nulo -29% -25% +40% +200% +60% +100% nulo -20% +50%

*Em 2002, ocupadas apenas 50% das vagas; **Ocupao parcial por obras.

Fonte: Coordenao do Servio Social SEAP

7 O ano de 2002 foi o ltimo para o qual obtivemos os dados referentes a totalidade de agentes cadastrados. Para 2004, obtivemos apenas os dados referentes s Entidades Religiosas inscritas e cadastradas e seus respectivos representantes legais junto SEAP/RJ

Assim, as estatsticas referentes ao nmero de agentes inscritos podem dar uma viso distorcida, na medida em que, um mesmo agente comparece simultaneamente em pelo menos duas unidades. Da mesma forma, como pode ser visto no grco a seguir, as mesmas entidades religiosas se repetem nas vrias unidades penais, sendo que, no caso das instituies evanglicas (notadamente Assemblia de Deus e Batistas) uma mesma denominao comparece diversas vezes ligada a Igrejas-Matrizes sediadas em diferentes bairros da cidade. Desta forma, enquanto catlicos, espritas, e outras Igrejas Protestantes de tipo histrico (como Metodistas e Presbiterianos) possuem

uma nica representao por unidade penal, outros grupos evanglicos se subdividem em diferentes unidades de culto. interessante notar, ainda, o signicativo peso da participao feminina no conjunto dos agentes religiosos contrastando com o universo dos internos, onde os homens so maioria absoluta. Desta forma, tomando-se os dados referentes ao ano de 2002, nos dois maiores Complexos Prisionais da cidade a distribuio dos agentes por Igrejas, por unidade penal e sexo, estruturou-se conforme a tabela a seguir.

Religies e Prises

Nmero de agentes religiosos por sexo/unidade penal em 2002Agentes Femininos Agentes Masculinos Agentes Femininos Agentes Masculinos

18

FREI CANECAComunicaes do ISER

1053025 3 1 1

85197 1 7 4

Bangu I L. PellegrinoSo Dimas (Catlica) Conv. Batista Carioca

31 2

33

POAssemblia de Deus Igreja Batista Soc. So Dimas (Catlica) Universal do Reino de Deus

Hlio Gomes

114 3 4

81 5 2

Batistas I. Esp. Amelie Boudet So Dimas Past. Penal Universal Reino Deus

Batistas I. Esp. Amelie Boudet So Dimas Past. Penal Universal Reino Deus Unio Evang. Pentec. Pent. Nova Vida

Talavera Bruce

143 2 3 1 1 4

237 3 3 5 3 2

H.Psi. Roberto MedeirosBatistas So Dimas ( Catlica) Universal Reino Deus

12

Heitor Carrilho

6 2 4

85 3

Soc. So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus Adventista 7 Dia

6 1 5

15

6 7 2

Vicente PiragibeAssemblia de Deus Igreja Batista So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus Metodista

24

Nelson Hungria

61 4 1

164 1 4 7

Batistas I. Esp. Amelie Boudet So Dimas Past. Penal Universal Reino Deus

15 5 1 3

19

2 7 5 3 2

Milton Dias Moreira

Assemblia de Deus Igreja Batista I. Esp. Amelie Boudet Com. Arquidioce (Catlica) Universal Reino Deus Nova Vida

18

3 3 4 1 3 4

9

3 1 1 1 3

Assemblia de Deus Igreja Batista I. Esp. Amelie Boudet So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus Evang. Graa em Unid.

Esmeraldino Bandeira

29

12 2 3 4 5 3

101 4 2 2 1

Hosp. Dr. Hamilton AgostinhoAssemblia de Deus Igreja Batista So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus

5

Lemos BritoAssemblia de Deus Igreja Batista I. Esp.Evangelio de Jesus So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus Congregao Crist Presbiteriana do R. Janeiro Metodista

314 5 5 2 2 5 5 4

14 1 6 4 2

2 1 1 1

10

2 5 3

Moniz SodrUniversal Reino Deus

55

11

I.P. Plcido S CarvalhoAssemblia de Deus Igreja Batista So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus Nazareno Grande Rio

155 3 1 2 4

13 1 4 4 4

Hospital Central

31 1 1

111 1 5 1 3

I. Esp. Amelie Boudet So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus Metodista Unio Evang. Pentecostal

C.C. Jorge SantanaIgreja Batista Edem

22

1

1

BANGUAlfredo TranjanAssemblia de Deus Igreja Batista So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus Maranata

120101 6 2 1

148153 2 5 4 1

Sanatrio PenalAssemblia de Deus I. Esp. Amelie Boudet So Dimas (Catlica) Universal Reino Deus

52 2 1

10

2 6 2

C.C. Pedro Melo

Bangu III S. NevesBatistas I. Esp. Amelie Boudet So Dimas Past. Penal Universal Reino Deus Metodista

143 2 2 7

141 4 3 2 4

Batistas C.Arquidioc./S. Dimas Universal Reino Deus

83 2 3

116 2 3

C.C. Bangu V

Batista em Edem Universal Reino Deus

41 3

31 2

Fonte: Coordenao do Servio Social SEAP

Total de agentes religiosos por sexo em 2002

51%

234 agentes femininos mdia: 2,12 agentes/unid.

49%

224 agentes masculinos mdia: 2 agentes/unid.

Considerando, pois, os dados de 2002 relativamente a todo o conjunto de unidades penais do Rio de Janeiro, a presena numrica de agentes vinculados s cinco maiores religies e denominaes estava assim congurada:

TOTAL 458 agentes

Fonte: Coordenao do Servio Social SEAP

Total de agentes religiosos nas unidades penais do Rio em 200253 agentes religiosos ligados a entidades espritas outros agentes religiosos 152 agentes da Igreja Universal

Estas tabelas permitem algumas observaes importantes acerca da presena das religies nas prises do Rio de Janeiro, no ano de 7 2002 : H um equilbrio de distribuio por sexo entre os agentes religiosos com uma pequena maioria para as mulheres. Essa maioria pode ser identicada tanto em termos percentuais, como nas mdias Entidades/Agentes; O equilbrio da distribuio entre os sexos quebrado quando so focadas especificamente cada uma das religies e/ou denominaes: entre os agentes catlicos, 74% so mulheres; igualmente 58% dos metodistas; 53% da Igreja Universal. Por outro lado, no existem mulheres entre os agentes religiosos das Igrejas Presbiteriana, Adventistas e Congregao Crist. Ainda que a mdia do nmero de agentes por Instituio Religiosa seja em torno de quatro pessoas, algumas possuem mdias bem superiores. Este o caso das Igrejas Assemblia de Deus, da Igreja Universal do Reino de Deus e dos Batistas, cujas misses tm dado uma nfase toda especial ao trabalho de evangelizao e converso de apenados.

12%

23%

8%

120 agentes das diferentes Igrejas da Assemblia de Deus

18%

20% 19%

126 agentes das pastorais e entidades catlicas

132 agentes missionrios da Igreja Batista

Essa distribuio com grande nfase nos grupos evanglicos e pentecostais conrma as diversas anlises acerca do fenmeno religioso no contexto brasileiro contemporneo, onde vem sendo assinalado. Um crescimento do pluralismo nas opes de crenas e nas vinculaes religiosas e doutrinrias em todas as camadas sociais e, em especial, nas camadas menos favorecidas da populao nacional. De fato, desde o nal dos anos 1980, com maior incremento durante toda a dcada de 1990, o campo religioso vem sofrendo importantes mudanas, tanto atravs da quebra da absoluta hegemonia da identidade catlica como identidade nacional, como da ampliao do campo evanglico e pentecostal. Este tem vivenciado uma enorme expanso atravs da

Religies e Prises

No conjunto de agentes religiosos presentes no universo prisional do Rio de Janeiro, essas religies juntamente com os catlicos e espritas totalizavam 88% do nmero geral de agentes religiosos.

19

20

Comunicaes do ISER

adeso pessoal de is feita por rupturas e converses (retiradas principalmente do campo catlico) aliada a um tipo de proximidade e presena de templos, pastores, e outros agentes religiosos nos diferentes espaos sociais, com nfase nos bairros e reas populares dos centros urbanos e rurais. Alm disso, as religies evanglicas tm utilizado elementos doutrinrios e litrgicos de grande proximidade com a realidade das camadas populares. Assim, a liturgia da Palavra onde dada grande importncia ao testemunho da converso (legitimando e valorizando o passado do pecador convertido) representa uma forma de incluso e valorizao da experincia dos indivduos julgados por faltas ou ilegalismos. A libertao pela f, onde a justia divina perdoa e liberta mesmo que permaneam as injustias dos homens; a atuao de seres sobrenaturais (demnios) responsabilizados como os verdadeiros autores dos crimes e faltas humanas, tudo isso, so elementos da experincia religiosa evanglico-pentecostal que terminam dando sentido situao vivida pelos indivduos em geral, e pelos encarcerados, em particular.

outro universo de irmos em um contexto e ameaador. 3. O universo prisional, por suas caractersticas de isolamento e recluso, pode ser congurado como um espao de converso: seja de arrependimento e converso vida legal e ordeira (utopia das penas privativas de liberdade); seja de converso s carreiras criminosas (constatao da realidade das instituies totais como escola de aperfeioamento de prticas criminais), seja, nalmente, de converso religiosa ou de converso a Jesus(objetivo do proselitismo religioso). 4. Alm do possvel conforto espiritual transmitido pelas diferentes religies dentro do universo carcerrio, no h dvida de que elas representam uma razo legtima de aglutinao interna, de proteo para os indivduos, alm de representar como que uma terceira via em face dinmica das faces. Neste sentido, algumas organizaes religiosas estruturadas internamente s prises tm apresentado uma estrutura de adeso, de compromissos e lealdades a cdigos de comportamento, e de submisso a penalidades, extremamente rigorosas, que as aproximam das demais sociedades dos cativos. So lidas como faces do Bem. Entretanto, no h como ignorar que elas operam com dimenses igualmente opressivas sobre aqueles indivduos que foram por elas convertidos.

Alguns outros signicados da presena religiosa nas prisesOs debates no ISER, realizados no segundo semestre de 2004, identicaram ainda outros signicados da assistncia religiosa nas prises. Destacaremos alguns deles: 1. Num universo absolutamente massicado e desumanizado, a assistncia religiosa, mesmo que muitas vezes marcada por uma lgica fundamentalista, tem representado uma oportunidade de singularizao dos indivduos que dela participam. 2. Esta singularizao opera em diferentes dimenses: no acolhimento do preso e sua famlia; na justicao mstico-religiosa de sua culpabilidade; na atribuio de um

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Religies e Prises

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Comunicaes do ISER

Catlicos e evanglicos em prises do Rio de JaneiroAs prises do Rio de Janeiro tm sido alvo do interesse de religiosos que passaram a atuar nesses espaos sociais, entendendo-os como um campo frtil para o proselitismo religioso. Nos ltimos anos, grupos evanglicos com predominncia de pentecostais passaram a visitar os presdios com objetivo de converter os internos a sua crena gerando um grande contingente de irmos encarcerados. Pela visibilidade desses crentes nas prises, percebe-se que no desprezvel o nmero de convertidos s igrejas evanglicas. Se existe algum fenmeno religioso na converso destes grupos de internos, a meu ver, isto se d de fora para dentro, com a presena constante dos agentes religiosos de diversas denominaes revezando-se na evangelizao dos presos. A presena dos pentecostais no ambiente prisional produziu uma nova dinmica religiosa neste espao social. Hoje, quase impossvel entrar em qualquer unidade sem notar a presena dos crentes que ali esto procurando distinguir-se como tais, guardando certa distncia da massa carcerria. A construo de uma nova identidade iniciada a partir de um novo nascimento acionada tambm corporalmente: a visibilidade dos pentecostais percebida no apenas pela expressividade numrica, mas tambm pelo comportamento e pela forma de falar e de se vestir. Os cultos pentecostais nos presdios acontecem diariamente. Para realiz-los, os agentes religiosos se revezam de acordo com a denominao a qual pertencem. Tambm os que ali se converteram tornam-se agentes religiosos internos. Aps um perodo de aprendizado da f, atravs dos estudos bblicos e freqncia assdua s atividades religiosas, tornam-se detentores do capital religioso e passam a atuar como multiplicadores da f. Vale citar aqui o Grupo de Evangelismo e Visitao da Congregao Lemos de Brito composto por trs ou quatro internos munidos de Bblia que percorrem os espaos do crcere, distri1 buindo folhetos evangelsticos e, surgindo a oportunidade, proferem uma orao ou leitura da Palavra. Os agentes religiosos externos realizam rituais como batismos e ceias. Outros, pela projeo que alcanaram neste campo religioso, aparecem apenas em ocasies especiais. Os espaos reservados para as atividades religiosas no comportam o nmero de assistentes. Desta forma, geralmente, as reunies acontecem nos ptios e quadras das unidades que se transformam em palcos para dar lugar a performances reveladas, por exemplo, nas prticas de exorcismos. Expulsar os demnios que se manifestam no corpo das pessoas integra a concepo sobre a possesso do mal nas igrejas pentecostais. Na priso esta prtica ganha contornos especiais uma vez que o crime cometido passa a ser concebido como de responsabilidade do demnio que se apossou do corpo de quem o cometeu. A converso dos presidirios tambm gera simpatias por parte dos administradores, j que esses entendem que os evanglicos geram menos conitos. Nas palavras de Gilson Nogueira, diretor do Presdio Muniz Sodr em Bangu, tambm evanglico: O que mais quero poder manter a calma dentro da unidade; que todos estejam tranqilos como esto agora. Com 1400 internos, no tenho ningum no castigo 2 no dia de hoje .

Edileuza Santana LoboDoutoranda Antropologia e Sociologia PPCIS/UERJ Professora do Colgio Mrio Quintana Penitenciria Lemos de Brito

1 Como professora do colgio Mrio Quintana, na Lemos de Brito, tive a oportunidade de receber estes folhetos diversas vezes nas visitas do citado grupo escola. 2 Entrevista ao jornal S Isso, maio de 2005, redigido e ilustrado pelas internas da Penitenciria Talavera Bruce.

Os catlicos, diferentemente dos evanglicos, fazem assistncia religiosa sem pregar converso e reagem criticamente ao avano das igrejas evanglicas e s suas prticas proselitistas. Consideram-se, ainda, prejudicados por considerar que os diretores de unidades favorecem os rivais. Neste texto, pretendo apresentar um breve panorama da atuao dos agentes religiosos catlicos e evanglicos no sistema penal analisando os diferentes mecanismos de ao destes grupos atravs da assistncia social e da prtica proselitista que resulta em disputas religiosas. Esta pesquisa foi realizada entre 2001 e 2002 nos Presdios Helio Gomes e Nelson Hungria no Complexo Frei Caneca e resultou na minha dissertao de mestrado (Lobo, 2002).

A priso como campo religioso3 A construo da Casa de Correo teve incio em 1834 onde atualmente a Penitenciria Lemos de Brito no Complexo Frei Caneca. 4 Os Relatrios Ministeriais da Casa de Correo esto disponveis no em http:crl.Edu/bsd/bsd/hateness/minopen.html. 5 Ver Bentham (2000), Beccaria (2002). 6 Coleo de Leis do Imprio, 1850 Regulamento para a Casa de Correo do Rio de Janeiro Decreto 06/07/1850. Trata dos servios religiosos que o capelo deveria executar como rezar missas aos domingos e dias de guarda e executar tarefas concernentes funo da Igreja, determinadas pelo diretor da instituio. 7 Ver Leal, 2001.

Desde o sculo XIX, com a construo da Casa de 3 Correo , a assistncia religiosa nas prises tornou-se atribuio da Igreja Catlica. A gura do capelo j existia para dar assistncia aos presos. Nos registros encontrados nos Relatrios Minis4 teriais o agente religioso aparece descrito como mdico espiritual que est constantemente num hospital infeccionado. Os penitenciaristas brasileiros do sculo XIX estavam anados com 5 o pensamento europeu dos reformadores que se dedicaram a pensar a questo das prises e criaram modelos que associavam o cumprimento da pena com a educao moral, o trabalho e a religio. No documento supracitado, aparecem citaes que nos revelam a preocupao da casa com assistncia religiosa aos presos: As prticas religiosas, a constante assiduidade do capelo junto aos presos assim, palpitante necessidade do sistema.

Hervieu-Lger (1997) esclarece que o estado secularizado impulsionou o pluralismo religioso ao mesmo tempo em que diminuiu a inuncia da religio na sociedade. Esta situao favoreceu a concorrncia criando novos campos sociais como possveis espaos de proselitismo e at de disputas religiosas. Neste sentido, o lcus prisional passou a presenciar uma disputa religiosa onde catlicos e evanglicos so os principais concorrentes na distribuio de bens de salvao aos presidirios. Outros grupos religiosos como os espritas e religies afro-brasileiras, tambm atuam nas prises, porm com menor incidncia. At a dcada de 1980, os meios de comunicaes no tinham muito acesso ao universo das prises no podendo assim, apresent-lo sociedade, situao que tem incio com o m do governo autoritrio. Estudos e debates sobre a questo das prises eram escassos e passaram a ser mais freqentes aps o episdio ocorrido em So Paulo conhecido como massacre do Carandiru que provocou reaes e manifestaes de organismos nacionais, internacionais e da sociedade 7 civil . Estes movimentos colaboraram para evidenciar a precariedade das prises brasileiras, principalmente nos estados do Rio de Janeiro e So Paulo.

Religies e Prises

Os agentes religiosos evanglicos tm relevncia social por se congurarem como alternativas de ressocializao (embora o efeito social da presena evanglica nas prises ainda necessita ser mais estudado).

No Brasil, a religio tinha espao garantido 6 desde a criao das prises e era ocupado legitimamente pela Igreja Catlica. Quase um sculo depois, as tarefas religiosas nas prises no se diferenciavam muito daquelas do sculo XIX, poca na qual o catolicismo era religio ocial do Estado. Nesse contexto, o protestantismo era corrente minoritria que atuava clandestinamente, mas comeava a incomodar os catlicos, por sua prtica proselitista. A partir do m da monarquia, com a emergncia do estado secularizado, novos grupos religiosos, como os evanglicos pentecostais passaram a atuar livremente protegidos pela separao entre Igreja e Estado preconizada na constituio republicana.

23

24

As prises brasileiras com um sistema carcerrio decitrio, celas superlotadas e ausncia de polticas pblicas que possam viabilizar a garantia dos direitos humanos dos presos tm proporcionado iniciativas da parte das igrejas evanglicas no intuito de promover algumas transformaes na realidade social das prises a partir da converso religiosa dos detentos. Assim, os agentes religiosos externos passam a visitar diariamente os presos ajudando a amenizar carncias materiais e afetivas desses indivduos e at de suas famlias. A presena dos pentecostais no ambiente prisional revelou um campo de disputa na distribuio dos bens de salvao aos presidirios. A presena expressiva de evanglicos nas prises comeou no nal dos anos 1980. Antes disso, a participao deles no se dava de forma sistemtica como hoje. Era tudo muito solto. No havia compromisso, conforme declarao de uma missionria que entrevistei. Outros agentes religiosos lembraram que, desde a dcada de 60, a Igreja Batista e Assemblia de Deus visitavam as prises, geralmente em ocasies especiais e datas festivas como Natal e Ano Novo. A atuao de agentes religiosos com objetivo conversionista era incipiente e acontecia por meio de iniciativas isoladas. A penetrao das igrejas evanglicas em novos espaos sociais foi percebida e registrada por 8 estudiosos , que destacaram a militncia dos pentecostais em setores sociais marcados pela pobreza e desigualdades, locais marginalizados, considerados por muitos como espaos de proliferao do crime e da misria. Em favelas e bairros de periferias o tornar-se crente passou a representar uma alternativa de vida para muitas pessoas, principalmente jovens. A cada semana, no ano de 1992, surgiam cinco novas igrejas evanglicas (Fernandes, 1998). compreensvel, portanto, que o movimento crescente de evanglicos se reetisse nas prises e que suas militncias, naqueles espaos, tenham provocado algumas transformaes no seu cotidiano.

Outro fator que aponta para a questo do crescimento religioso a iniciativa por parte do Departamento de Sistema Penitencirio para controlar o uxo crescente de agentes religiosos nos presdios. Atravs da Portaria DG n 770 de 19 de abril de 2000 ca estabelecido o cadastramento das instituies religiosas interessadas em visitar os presdios e o credenciamento de seus agentes religiosos. A atividade de assistncia religiosa nas prises regulamentada pela Lei de Execues Penais (LEP), n 7210 de 11 de julho de 1984, que regula o servio de capelania no sistema penitencirio. Art.24 A assistncia religiosa com liberdade de culto, ser prestada aos presos e aos internados, permitindo-lhes a participao nos servios organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instruo religiosa. Percebe-se que as prises no caram imunes s transformaes do campo religioso brasileiro. O crescimento das igrejas pentecostais dos ltimos anos tambm se reete nas prises. Espao tradicionalmente ocupado pela Igreja Catlica, as prises tm sido alvo da atuao expressiva de igrejas evanglicas que, a princpio, tm logrado sucesso. Sua iniciativa combina assistncia social e proselitismo ao mesmo tempo em que exercem suas prticas religiosas com autonomia e oposio aos catlicos.

Comunicaes do ISER

A Pastoral Penal e os catlicos nas prisesEmbora no tenha tido o crescimento acentuado que os evanglicos tiveram, a atuao dos catlicos nas prises nas ltimas dcadas aumentou. Em 1975 foi criada a Pastoral Penal com objetivo de ampliar o atendimento da Igreja Catlica aos presidirios, conforme 9 declarao do padre Bruno Trombeta . Quando ns comeamos, ns comeamos a celebrar algumas missas por semana, depois percebemos que as missas eram muito procuradas e que no era possvel ir ao8 Ver Mariano, 2001. 9 O padre Bruno Trobeta iniciou sua atividade como capelo nos presdios do Rio de Janeiro desde 1969 quando ingressou no presdio Hlio Gomes. Ampliou suas atividades para outras unidades prisionais, tornando-se, depois, coordenador da Pastoral Carcerria do Estado do Rio de Janeiro at o seu falecimento em maro de 2003. Esta entrevista foi-me concedida em julho de 2001.

presdio fazer uma missa e esquecer daquilo que era a viso humana integral. Ento eu no posso no presdio, fazer simplesmente uma missa e sair. Tenho que atingir uma dimenso mais ampla, uma dimenso que abrangesse o homem integralmente. Ento foi a que se criaram dois outros pontos para o atendimento ao preso e a famlia do preso, que a assistncia social ao preso, sua famlia e ao egresso e depois o atendimento jurdico. A atuao dos agentes religiosos catlicos nas prises direcionada ao coletivo dos presos, e, no visvel entre os catlicos, a inteno de converter os presos, como armou o padre Bruno: A converso uma questo da pessoa com Deus, creio que no devemos coagir ningum a se converter. Nas prises, a atuao dos catlicos consiste em missas, atividades de aconselhamento, palestras, assistncia jurdica e ajuda material para aquelas necessidades bsicas que o Estado no fornece como tambm fazem os evanglicos. Embora desenvolvam atividades consideradas relevantes, no alcanam a mesma visibilidade dos evanglicos, cujo diferencial est na atuao direcionada aos indivduos. Assim, atravs da converso individual, os evanglicos vo formando uma rede de sociabilidade e alcanam maior visibilidade. Em 1978 a Pastoral Penal prestava assistncia religiosa a 10 presdios com 60 agentes religio10 sos entre leigos, freiras e sacerdotes . Com o crescimento da populao carcerria, cresceu tambm a demanda pela assistncia religiosa nas prises. No ano de 2002, os catlicos estavam atuando em todas as unidades do sistema penitencirio do Rio de Janeiro com 150 agentes religiosos leigos, alm dos clrigos. recorrente entre os agentes catlicos a afirmao de que atuam diretamente com o coletivo. O discurso dos catlicos no predominantemente religioso, mas de conscientizao dos direitos e deveres do detento no sistema penitencirio e tambm de defesa dos direitos humanos:

Eu sou o capelo do coletivo, no sou o capelo dos catlicos; os catlicos esto includos se quiserem descer, se no quiserem descer no so obrigados [...].A nossa presena dentro dos presdios uma preocupao com os direitos humanos tambm, no uma preocupao cultual como fazem os evanglicos, culto, fazer culto. Eu no tenho essa preocupao, eu fao missa. A preocupao da presena da Igreja Catlica uma preocupao de controle, do preso para no ser esmagado pelo outro preso, para no ser esmagado pela direo e pelos guardas. Isso a preocupao nossa. A literatura produzida para a Campanha da Fraternidade de 1997, cujo tema A fraternidade e os encarcerados, revela a preocupao da Igreja Catlica com o crescimento dos evanglicos nas prises: Agentes da pastoral carcerria de vrias Dioceses relatam que os presos catlicos se ressentem da pouca ateno que recebem da sua igreja. A presena das igrejas evanglicas marcante e h muitos que nelas encontram motivaes psico-religiosas para a reconstruo da prpria personalidade. (1997: 71) Naquele mesmo ano, a revista Manchete (25/01/1997) trouxe uma reportagem provocativa com o ttulo Guerra Santa nos Presdios na qual denunciava uma suposta reao dos catlicos ao avano dos evanglicos no sistema penitencirio: Nas hostes da Igreja Catlica, nada causa mais irritao do que insinuar que a escolha do tema (da Campanha da Fraternidade) faz parte de uma estratgia para ocupar, com maior intensidade, os presdios. Ao mesmo tempo em que os catlicos apelavam solidariedade para com os presidirios revelavam reao aos evanglicos. A concepo de que o presidirio catlico, embora no

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10 Revista do Conselho Penitencirio do Distrito Federal n37 1978.

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esteja praticando a religio, est presente na literatura citada. A falta de uma religio (catlica) bem arrumadinha no desculpa para as pessoas tentarem converter os presos ou jogar Deus na cara deles! Isto um insulto. (Valentini, 1995:19) A igreja deve estar presente no sentido de conscientizar o preso dos seus direitos e deveres e cobrar do Estado o cumprimento dos direitos humanos para os presos. Tal concepo foi enfatizada pelo padre Bruno Trombetta, no estamos interessados em fazer proselitismo, queremos defender os direitos fsicos e morais dos presos. Assim, a postura dos catlicos se ope a dos evanglicos na medida em que estes enfatizam a converso individual e direcionam suas aes para atingir este objetivo, enquanto aqueles, exercem suas atividades religiosas direcionadas ao coletivo. Sem dvida, uma postura poltica, mas que no resulta em mobilizaes em termos de prtica religiosa. Por outro lado, os evanglicos com sua militncia explcita produzem agregao social ao apostar na transformao individual atravs da converso, na auto-estima pelo discurso do amor, perdo e libertao e, por ltimo, o sentido de pertencimento proporcionando assim a formao de um novo coletivo com uma identidade positiva. Esse percurso religioso legitimado pelo uso da Palavra, no caso, atravs dos textos bblicos que vo proporcionar o suporte para a atuao dos agentes religiosos e a reproduo dos convertidos na priso.

daqueles que se convertem atravs do comportamento. Procuram se diferenciar daquele caracterstico da cadeia e uma nova identidade corporal acionada, na qual a Bblia em baixo do brao representa a arma do crente, a espada da f. Alm disso, o uso de roupas sbrias, a mudana no modo de falar e gesticular, vm congurar um comportamento adequado condio de irmo. Por outro lado, ser crente na priso pode tambm trazer benefcios para o preso na medida em que a adeso f e a adoo de novos padres de comportamento torna o novo crente objeto de ateno do agente religioso que vai ajud-lo, como a um lho na f. Isto consiste em receber ateno especial no sentido de orient-lo no seu novo percurso e ajud-lo materialmente. Como efeito da nova condio social do preso, a presso do sistema sobre ele , de certa forma, amenizada, uma vez que deixa de ser aquele detento que s pensa em fugir. Outro aspecto ressaltado com freqncia pelos presos evanglicos e mesmo por aqueles que no participam de atividades religiosas, que muitos se utilizam do expediente religioso para se protegerem, se escondem atrs dos irmos. Isto se aplicaria queles que esto condenados por estupro e temem represlia do prprio coletivo. Vrias so as denominaes evanglicas que atuam nas prises atravs de seus agentes religiosos. No contexto da priso, estes agentes no enfatizam a denominao a qual pertencem constituindo uma espcie de ecumenismo evanglico cujo objetivo minimizar as diferenas doutrinrias em favor da unidade do grupo. Dentre os evanglicos nas prises, a presena de pentecostais predominante sendo a maior parte da Igreja Assemblia de Deus e da Igreja Universal do Reino de Deus. Apesar da variedade de atores e discursos caractersticos dos evanglicos, estes se organizam espacialmente no sentido de incentivar a converso do preso e a multiplicao dos is na priso. Aceitar a crena evanglica na

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Atuao dos evanglicos nas prisesHistoricamente, no Brasil, o ideal cristo de evanglico se constituiu em oposio religio Catlica (Dreher,1997). Na concepo evanglica, religio e vida cotidiana so inseparveis. O compromisso de tornar visvel a opo religiosa e, a demonstrao da condio de crente vista como testemunho da f. De modo geral, na sociedade mais ampla e especicamente na priso, isto resulta na distino

priso signica assumir um novo estilo de vida e novos padres de comportamento. Isto vai exigir do interno a busca do aperfeioamento cristo , o que implica utilizar o tempo disponvel para freqentar os cultos da priso e estudar a Bblia. Este novo ethos de crente evanglico vai se construindo no cotidiano das prises, com a superviso dos agentes religiosos que as visitam com freqncia. Estes organizam cultos e festividades, procuram envolver os familiares dos internos nas atividades religiosas, promovem reconciliaes familiares e at casamentos daqueles que, segundo os padres evanglicos pentecostais, no esto de acordo com a vontade de Deus. Outro fator que contribui para a visibilidade dos evanglicos a segregao do grupo em espaos denidos como celas evanglicas. Essa transformao no espao fsico das prises tem gerado descontentamento da parte dos catlicos que identicam esta prtica como uma espcie de privilgio concedido pelos diretores dos presdios. Os detentos, quando se tornam evanglicos, passam a compartilhar o mesmo espao, separados daqueles que no professam a mesma crena. Segundo declarao da missionria Adenice Barreto, a iniciativa das celas evanglicas importante para a consolidao da f dos novos convertidos: Comeou pela populao, daqueles que se convertem, ter diculdade de leitura da Bblia e orao. Eles queriam orar, fazer cultos e os mpios no aceitavam. Havia uma diviso, porm, tudo o que o guarda e o diretor querem no presdio tranqilidade. Se h tranqilidade para eles, est timo. Ento, o que aconteceu: houve uma reivindicao daqueles que se convertiam e de ns enquanto capeles, para que houvesse espao para aqueles que querem seguir a palavra. E aqueles que no querem, que continuem no seu convvio de bebida, de prostituio, do que quiserem. As galerias

em que eles esto so as que do menos trabalho. No discurso dos agentes religiosos evanglicos recorrente a armao de que a iniciativa das igrejas tem contado com apoio dos diretores dos presdios pelos benefcios que suas presenas trazem, principalmente, no sentido de que a religiosidade dos presos promove um ambiente calmo na cadeia, conforme a declarao de um delegado: Todas as vezes que acontece um batismo, fao questo de falar aos presos. Acho esse trabalho importantssimo. Em primeiro lugar porque sentimos que, aps esse encontro religioso, os presos cam mais calmos. Em segundo, o trabalho que vem sendo desenvolvido pela igreja tem dado 11 resultados. Atualmente existem celas evanglicas em quase todos os presdios do Rio de Janeiro. Cito aqui o Presdio Hlio Gomes no Complexo Frei Caneca o qual visitei na ocasio da pesquisa. Em 2002, aquela unidade possua uma populao carcerria de 920 detentos. Segundo informaes dos presos, oito celas eram ocupadas por evanglicos, abrigando 30 homens em cada uma. Isso representava em mdia, 20% do contingente. Para uma boa convivncia naquele espao, os detentos, orientados pelos agentes religiosos, estabeleceram algumas regras. A manuteno dos cultos no interior das celas era mantida por uma liderana formada para este m, sendo composta por dirigentes de cultos, instrutor bblico, tesoureiro (para recolher o dzimo) e conselheiro. Alm disso, criaram um estatuto com as seguintes determinaes: no brigar nem discutir interpretaes doutrinrias das igrejas, no falar palavres, no contrair dvidas, o uso de aparelhos de rdio e televiso deveria se restringir aos programas edicantes ou educativos. O no cumprimento do estatuto implicava advertncia ao companheiro quanto a seu desvio de conduta. Caso houvesse reincidncia, o interno retornaria ao convvio com os pecadores. Em entrevista

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11 Jornal Folha Universal de 01/08/2001.

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recente, um detento da Lemos de Brito que em 2002 estava no Hlio Gomes revelou que atualmente na Lemos, nem todos os presos evanglicos vivem segregados em tais celas. Disse tambm que as regras no so to rgidas quanto no outro presdio e que at alguns presos que tm bom comportamento so aceitos no grupo. Um outro interno tambm na Lemos de Brito, revelou que prefere conviver na galeria dos no crentes, pois ali podem surgir oportunidades de evangelizar os companheiros. Nesta unidade, segundo informao recente do pastor Vicente, agente religioso da Igreja Assemblia de Deus, a Congregao da Lemos de Brito tem 125 membros ativos (batizados e liados Igreja Assemblia de Deus Parque Aliana em Duque de Caxias). Alm disso, informou o pastor, tem aqueles que no so membros da igreja, mas freqentam os cultos para receberem benefcio social, como leite para aqueles que tomam remdio e alguns artigos de primeira necessidade. Num universo de aproximadamente 550 internos, no desprezvel o nmero de pentecostais. Se a adeso religiosa estratgica e se produz efeitos sociais efetivos, so questes ainda no respondidas. Vale questionar tambm, se outras iniciativas esto sendo implantadas para oferecer ao preso melhores condies para o cumprimento da pena e o possvel retorno sociedade.

presdios do Complexo Frei Caneca, onde z a pesquisa e nas conversas com agentes religiosos catlicos, inclusive na poca do padre Bruno Trombetta, observei que o catolicismo ali praticado guarda semelhanas com a igreja progressista no seu engajamento na luta pela justia social em favor dos direitos humanos dos presos. Uma agente religiosa com quem conversei recentemente revelou que, com os presos sua prtica religiosa baseada na espiritualidade cho da corrente inaciana, voltada para reexo sobre os atos cometidos e a conscincia da responsabilidade sobre os mesmos. Com a morte do padre Bruno, o discurso de defesa dos direitos humanos dos presos ainda continua presente, embora enfraquecido. Se o Grupo de Renovao Carismtica pode ser identicado como movimento de reao da Igreja Catlica ao avano pentecostal nas prises do Rio de Janeiro, o grupo ainda no chegou.Bibliograa

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ConclusoNas prises do Rio de Janeiro, a presena dos agentes religiosos por um lado tem provocado mudanas no ambiente prisional e, por outro, transformado lderes religiosos em parceiros do Estado na administrao de conitos nas prises, algumas vezes at, atuando com certa autonomia em situaes de rebelies. Enquanto a visibilidade dos evanglicos nas prises est crescendo, percebo a atuao dos catlicos enfraquecida. O nmero de agentes religiosos reduzido, as reunies acontecem uma vez por semana e segundo informaes dos internos, so pouco freqentadas. Nos

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pg.139-161

Religiosidade: mecanismos de sobrevivncia30

Laura Ordez VargasMestre em Antropologia UNB

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na Penitenciria Feminina do Distrito Federal

Este trabalho fruto da minha dissertao de mestrado, cujo trabalho de campo foi realizado na Penitenciria Feminina do Distrito Federal (PFDF), tendo a religio como chave de entrada neste universo social. A realidade que se desvendou ao longo da pesquisa mostrou-se rica e complexa em relao imaginada inicialmente. Assim, o religioso junto com outros aspectos da vida prisional feminina como as formas de sociabilidade e a homossexualidade compem o trip analtico da minha interpretao. Tal anlise supe um recorte de gnero, visto que a cultura carcerria feminina congura dinmicas especcas e particulares, quando comparadas s dinmicas na cultura carcerria masculina. Neste trabalho, analiso o aspecto religioso sem desconsiderar sua interdependncia com outros dois aspectos acima referidos. Para tanto, primeiro realizo uma breve etnograa descritiva sobre a forma como opera a religio na PFDF: as diversas igrejas que assistem as internas, o sistema de participao nos cultos, as manifestaes religiosas informais, entre outros. Em seguida, apresento minha escolha analtica para explicitar o papel que os grupos religiosos e o discurso cristo desempenham nesta instituio total, conforme a perspectiva dos diferentes atores da comunidade prisional, com nfase na voz das presidirias. Esclareo, ainda, que meu propsito no fazer uma contribuio ao campo dos estudos da religio.

de Deus. Os outros dois so catlicos: a Pastoral Carcerria e a Ocina de Orao Catlica. Alm desses, h um grupo no religioso, os Narcticos Annimos (NA), que considerado pela instituio como grupo religioso porque tambm ajuda as internas. Para a pesquisa entrevistei os agentes religiosos da Igreja Batista Primeiro de Julho que trabalham com as mulheres presidirias h 8 anos; da Igreja Batista Filadla, presente h 14 anos; da Igreja Batista Central de Braslia; da Igreja Assemblia de Deus, que trabalha h 4 anos na penitenciria; da Pastoral Carcerria, presente h 12 anos, e, nalmente, do Grupo de Orao Catlico que atua com as mulheres, h 7 anos. Dentre os diferentes grupos evanglicos atuantes na penitenciria, cuja maioria batista, existem diferenas de usos e costumes, mas no de doutrina, pois a base o Evangelho. Deste modo, todos os agentes religiosos dos grupos batistas consideram suas igrejas mais liberais, mais avivadas e alegres, porque nos cultos batem palmas e cantam. A agente religiosa da Assemblia de Deus revela as diferenas de atuao. Descreveu sua igreja como sendo mais ortodoxa nos usos e costumes dentro e fora dos cultos: ns, assembleianos, no batemos palmas nos cultos, no assistimos televiso, escutamos s msica religiosa, as mulheres no podem cortar o cabelo, entre outras coisas. Dentre os grupos catlicos, a Pastoral Carcerria constitui-se como uma diviso das pastorais sociais que fazem parte da Igreja Catlica. Por outro lado, o Grupo de Orao catlico independente da Igreja, mas realiza ocinas com as internas tendo como base do seu trabalho, os preceitos catlicos.

EtnograaNa PFDF h onze grupos religiosos para assistir as internas. Dentre esses, nove grupos so evanglicos de diferentes denominaes: seis grupos Batistas; dois grupos da Assemblia de Deus e um grupo da Igreja Universal do Reino

O contato entre os agentes dos diversos grupos religiosos acontece uma vez por ano, quando se renem na penitenciria para planejar e distribuir os dias e horrios da assistncia religiosa. A distribuio dos horrios, segundo alguns agentes religiosos, negociada entre a administrao e os grupos conforme a disponibilidade de tempo dos mesmos. Deste modo, cada grupo evanglico, dos nove, assiste s internas um ou dois dias do ms; o grupo de Orao Catlica realiza duas ocinas ao ano, de quatro meses cada uma, e nesse perodo assiste s internas quatro dias por ms, ou seja, uma vez por semana; a Pastoral Carcerria ingressa na penitenciria nos trs primeiros sbados do ms e ministra a missa durante um destes sbados; e nalmente, o grupo de Narcticos Annimos assiste s internas uma vez por ms, aos sbados. Para entender o sistema de participao nos cultos preciso descrever, a grosso modo, o complexo penitencirio da PFDF que se divide em quatro blocos. No Bloco I cam as internas em regime semi-aberto e os homens de tratamento psiquitrico. O Bloco II destina-se exclusivamente aos escritrios administrativos dos agentes penitencirios e funcionrios. O Bloco III abrange a maior parte da populao carcerria, ou seja, as internas em regime fechado. Esse bloco, por sua vez, est dividido nas alas A, B e C. Finalmente, h o Bloco IV que no est em funcionamento. No momento da pesquisa, a participao das internas nos cultos evanglicos dependia da coincidncia entre o horrio designado ao grupo religioso e o horrio do banho de sol no ptio. Assim, por exemplo, se aquelas que ocupam a ala C se encontrassem no ptio no horrio da Igreja Primeiro de Julho assistiam ao culto. No entanto, para participar dos dois grupos catlicos, era preciso inscrever-se numa lista, dado que os sbados eram os dias agendados para a Pastoral Carcerria. Tambm, se fazia necessrio agendar a participao no Grupo de Orao que realizava sua assistncia em forma de ocinas.

Em junho de 2003, a Fundao INTEGRA (Instituto de Integrao Social e de Promoo Cidadania), cuja presidente Weslian Roriz, esposa do governador do DF, e a vice-presidente, Lucia Vitt, que lidera os grupos de orao catlicos, construiu no Bloco III de regime fechado uma Capela Catlica e, ao lado, um espao ecumnico evanglico. Ambos os espaos so destinados realizao dos cultos com as internas desse bloco. No momento da pesquisa alguns cultos eram realizados ainda no ptio e outros nesses espaos. No Bloco I, de regime semi-aberto, os cultos evanglicos so realizados no ptio e, nos dias de sbado que correspondem Pastoral Carcerria, as internas so levadas ao Bloco III para assistir aos trabalhos de evangelizao ou missa. Segundo estatsticas de junho de 2004, ingressaram na penitenciria 44% de catlicas, 27% de evanglicas e 1% de espritas, de um total de 300 internas. Os 28% restantes no informaram ou no possuiam religio. Essas estatsticas revelam que 49% das internas assistem aos cultos evanglicos e 35% s missas catlicas. No quer dizer que a adeso das internas seja exclusiva, visto que, na realizao da pesquisa, muitas responderam participar de ambos os cultos. Por motivos de segurana, isto , para controlar as brigas no ptio, a administrao mudou o sistema de participao das internas nos cultos. O novo sistema comeou a vigorar em Janeiro de 2005. Deste modo, foram criadas duas listagens nicas: a evanglica de qualquer denominao e a catlica fazendo com que as internas tenham que escolher entre o evangelismo e o catolicismo. Tambm foi determinado, de forma contrria ao sistema anterior, que as internas a participarem dos cultos ou missas devem ser aquelas que esto nas celas e no as que se encontram no ptio em banho de sol. Assim, por exemplo, se a ala C encontra-se no ptio, so as internas da ala A ou B as que assistem aos cultos realizados obrigatoriamente nos espao religiosos. Dentro da penitenciria observei dois cultos religiosos nas duas Igrejas Batistas: a Batista

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Central e a Batista Primeiro de Julho (IBPJ). O primeiro foi realizado no ptio da ala do regime semi-aberto com a participao de 16 internas e o segundo no espao de realizao dos cultos evanglicos, contando com a presena de 25 internas. Os cultos seguiram a mesma liturgia das igrejas evanglicas de fora: o momento de cantar e louvar e o momento da palavra do pastor que inclui a leitura da Bblia. Igual a todos os cultos dentro da penitenciria, estes tiveram durao de uma hora e meia a duas horas. Alm dos grupos e dos cultos religiosos evanglicos e catlicos, a prtica religiosa se estende a manifestaes informais entre a populao carcerria que de forma individual ou grupal durante as noites, nas celas ou em outros espaos, se reune em campanhas, jejuns, grupos de orao e leitura da Bblia. H tambm, segundo as internas, manifestaes religiosas informais individuais no crists como de espritas, budistas, msticas e da Igreja Messinica. Cabe ressaltar ainda que, na PFDF, algumas internas no tm religio. Em relao s prticas das religies afro-brasileiras como o candombl e a umbanda, no encontrei nenhum indcio da sua presena na penitenciria. Segundo o relatado por todas as internas que entrevistei e pelas agentes penitencirias, essas prticas religiosas no fazem parte do cotidiano prisional.

sejvel e forada da instituio no reduto da individualidade da presidiria. Resulta no controle de todos os aspectos da sua vida e da sua rotina e da invaso da sua reserva simblica individual (Foucault,1975). Em funo desse processo que sofre a identidade da presidiria e do contexto de poder/submisso exacerbado em que colocada examinarei, a seguir, minha escolha analtica. Como j afirmei anteriormente, o papel que desempenham os grupos religiosos e o discurso cristo, ou seja, o aspecto religioso, constitui uma das partes de um trip analtico formado tambm pela sociabilidade e pela homossexualidade que atuam como tecnologia e estratgia de poder e de controle institucional e administrativo sobre a massa carcerria com a nalidade de t-la mais dcil e menos revoltada. Atuam ainda como mecanismos de adaptao-resistncia que adotam as internas para driblar e mitigar as tenses e as dores do dia a dia do aprisionamento e para sobreviver ao extremo estado de represso e conteno em que se encontram submetidas, segundo a mxima de Foucault (1976) que diz que onde tem poder, tem mecanismos de resistncia. Tal relao entre poder e resistncia apresenta-se, no contexto carcerrio, de uma forma veemente e gritante. O conceito de mecanismos de adaptao-resistncia hbrido. Nele comportamentos e discursos aparentemente adaptativos aparecem simultaneamente como formas de resistncia. O discurso hbrido aquele onde falam concomitantemente e em tenso o sujeito reduzido a uma posio de subalternidade e o sujeito rebelado, insatisfeito (Segato, 2003:249). Esses mecanismos so espaos intermedirios e brechas do sistema prisional, onde a vida e a singularidade pedem passagem subordinadas e limitadas ao poder e controle e, ao mesmo tempo, em coexistncia negociada com eles. Dessa forma, a religiosidade, a sociabilidade e a homossexualidade como mecanismos de adaptao-resistncia so cruciais para a

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Escolha AnalticaEm primeiro lugar destaco o fato de tratarmos, neste trabalho, com sujeitos multiplamente excludos: so mulheres, pobres e no-brancas. A esses fatores soma-se o processo de aprisionamento que produz outra excluso: so criminosas. Dois ritos de passagem marcam o processo de mudana identitria das internas, a saber, o momento de ingresso no sistema e o de sada. Observamos que a antiga identidade que a mulher dispunha quando em liberdade ca suspensa e nasce a identidade de mulher encarcerada que institucionalizada. Essa nova identidade resulta da intromisso inde-

As estratgias de poder e controle institucionais incidem sobre as formas de sociabilidade e as relaes interpessoais fomentando um ambiente de extremo individualismo, pois com a existncia de unio e de solidariedade coletiva mais difcil controlar a massa carcerria. Deste modo, desenvolve-se o sistema prmios e castigos que incentivam a lealdade para com as agentes penitencirias. Como mecanismo de adaptao-resistncia as internas produzem um duplo isolamento, ou seja, isolamento dentro do isolamento que se congura de modo particular numa penitenciria feminina se comparada a uma masculina. uma forma de guardar para si um resto de identidade, a constituio de uma reserva de subjetividade intocada em meio a um contexto que institucionalizou sua identidade. Os envolvimentos homossexuais so percebidos como conseqncia da represso e das diculdades impostas pela instituio s relaes sexuais e afetivas heterossexuais. As relaes homossexuais atuam como mecanismo de adaptao-resistncia para algumas internas, pois criam uma alternativa de solidariedade, de sociabilidade e de afetividade, em pares, dada a diculdade de organizar-se em grupos. Com isso, desenvolve tambm uma singularidade e um senso de identidade frente a um outro, no caso, a parceira. A presena dos grupos religiosos e a circulao do discurso religioso atuam como uma estratgia indireta da instituio para manter calma e dcil a massa carcerria. Para as internas, assistir aos cultos e a presena dos grupos religiosos so formas de passar o tempo de cio, de escutar palavras de conforto, de ter canais de contato com pessoas de fora do presdio. A adoo do discurso religioso cristo por parte das internas uma forma de criar sentido, nalidade e transcendncia vida intramuros, onde aquela que no consegue se singularizar

Por meio da extrema individualidade em relao ao coletivo, dos envolvimentos homossexuais como alternativa restante de sociabilidade, solidariedade e afetividade, e atravs da religiosidade como refgio e alvio espiritual, as presidirias resistem e se adaptam realidade prisional, preenchem de sentido a nova identidade e a vida atrs das grades, bem como criam caminhos de volta singularidade expropriada pela instituio. Singularidade vital que se realiza de diversos modos: a partir de si mesma, a partir de uma outra interna e a partir da divindade.

Papel dos Grupos Religiosos: Como Poder e ControleNa penitenciria masculina do DF comumente conhecida como a Papuda, os grupos religiosos, particularmente, os evanglicos, constituem uma segunda administrao penitenciria e concentram o poder de deciso entre a massa carcerria. Os espaos fsicos e simblicos exclusivos dos crentes so espaos de resoluo dos conitos e de proteo contra a violncia e os juramentos de morte entre os grupos de internos (Segato, 2001). O mesmo no acontece na PFDF devido ao baixo ndice e grau de violncia fsica e devido inexistncia de mortes entre as internas. Deste modo, a organizao poltica, econmica e espacial da massa carcerria feminina no est vinculada aos grupos religiosos. Na perspectiva de agentes