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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
Do Patrimônio do Divino ao Patrimônio de São Benedito e Santa Luzia: espaços urbanos e identidade∗
Renata Maria Tamaso Doutora em História (UNESP/Assis)
Docente - FIMI – Mogi Guaçu [email protected]
Resumo: A cidade de Espírito Santo do Pinhal fundada em 1849 representa um objeto de estudo bastante significativo no que concerne à construção dos espaços de sociabilidade de diversas etnias, quais sejam: luso-brasileiros, italianos, negros e mestiços. Estes são responsáveis por construírem espaços próprios de sociabilidade, mediante negociações e conflitos, lutas e resistências; espaços que funcionam como lugares de práticas, identidades e representações e onde as relações humanas encontram-se diretamente atreladas às relações de poder. A análise sobre a tensão que se dá na organização do espaço urbano pinhalense no pós - abolição possibilitou a compreensão do universo social experimentado por diferentes grupos na sociedade da época. Além disso, por meio dela pudemos decodificar valores culturais representativos das etnias em questão, como a devoção ao Divino Espírito Santo e a diversos santos, mais especificamente, São Benedito e Santa Luzia. Palavras-Chaves: patrimônio histórico-cultural, espaços sociais, religiosidade, identidade
étnica __________________________________________
A construção do patrimônio histórico-cultural pinhalense1
Cada sujeito se situa num espaço concreto e real onde se reconhece ou se perde, usufrui e modifica, posto que o lugar tem usos e sentidos em si. Tem a dimensão da vida, por isso o ato de produção revela o sujeito.
(Carlos, 1996, p.29)
Desde a segunda metade do século XIX, quando a cultura cafeeira alcança destaque na
economia nacional, Pinhal passou a figurar entre as principais cidades em produção de café.
Localizada em região de solo de massapé, a economia cafeeira encontrou aí as condições
∗ Este texto constitui parte de reflexões desenvolvidas em minha tese de doutoramento (Unesp/Assis) intitulada Homens de cor, Pretos e Coloreds - A construção de espaços de sociabilidade dos afro-brasileiros e suas representações em Espírito Santo do Pinhal/SP (1890-1930), somadas às reflexões desenvolvidas em especialização em Planejamento e Marketing Turístico (Senac/Águas de São Pedro) intitulada Santa Luzia, Olhai por nós! Proposta de requalificação da Festa de Santa Luzia em Espírito Santo do Pinhal/SP, no ano de 2005. 1 A análise sobre a construção do patrimônio edificado na cidade de Espírito Santo do Pinhal aqui esboçada é originária de importante contribuição de pesquisa antropológica de Izabela M Tamaso, intitulada Tratorando a História – percepções do conflito na prática da preservação do patrimônio cultural edificado em Espírito Santo do Pinhal/SP. (Dissertação de Mestrado, mimeo). Brasília: UnB, 1998. Cabe ressaltar que tal análise é o primeiro estudo em âmbito acadêmico sobre a cidade – antes dele encontramos apenas narrativas de memorialistas, jornalistas ou documentos oficiais que ainda não haviam sido trabalhados sob a ótica acadêmica. Devemos a Tamaso, portanto, a introdução da cidade de Espírito Santo do Pinhal no hall dos objetos de estudos acadêmicos e especificamente, nos estudos históricos.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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favoráveis ao seu desenvolvimento e inseriu a cidade no desenvolvimento agrário - exportador
pelo qual passava o país naquela metade de século (Milliet, 1982; Stolcke, 1986; Martins, 1999,
p.15-22).
Tal desenvolvimento imprimiu transformações significativas no campo e na cidade.
Entre elas a introdução da mão-de-obra imigrante e a urbanização, são as que marcaram
decisivamente o quadro das relações sociais entre os diferentes sujeitos históricos, nos diversos
espaços sociais, possibilitando a construção de uma nova ordem política, econômica e sócio-
cultural no espaço da cidade (Martins, 1990).
A cidade de Pinhal ainda se beneficiaria de outras transformações não menos
significativas que imprimiria um novo ritmo ao seu desenvolvimento econômico. A cidade
desponta no cenário nacional, em 1868, por experimentar uma das primeiras formas de trabalho
livre no Brasil – o colonato, na Fazenda Nova Louzã, de propriedade do Comendador
Montenegro; por alforriar seus escravos antes da data oficial – ou seja, em 16 de abril de 1888;
por ser uma das primeiras cidades a receber mais de um ramal da Mogyana (Nova Louzã e
Motta Paes); por beneficiar-se de equipamentos urbanos vistos somente nas “grandes” cidades
como São Paulo e Rio de Janeiro, já no final do século - energia elétrica e telefone, por exemplo
(Rizzoni, s/d).
As transformações locais fazem parte de um contexto nacional da qual a transição da
mão-de-obra escrava para a livre assalariada, a derrocada do Império e a implantação da
República e o processo de urbanização e modernização despertam no “homem tropical” o desejo
da “vida urbana” em detrimento do campo. (Bresciani, 1985; Sevcenko, 1983; Tamaso, 1997)
A partir da década de 80 do século XIX, com a introdução do negro liberto e do italiano
no espaço urbano, outras relações sociais serão vivenciadas, estas bastante diferenciadas
daquelas experienciadas pelos primeiros “colonizadores” (luso-brasileiros) na cidade. A
despeito das estratégias utilizadas pela elite dominante local – luso-brasileira - para impor aos
negros libertos e aos imigrantes recém chegados normas de conduta e ordenação espaciais2, tais
grupos estabeleceram laços e alianças3 que se consolidaram a partir das próprias práticas sociais.
Utilizando a concepção de De Certeau (1994) os imigrantes desenvolveram táticas para
fugir às estratégias de dominação imposta pelos grupos dominantes. Buscaram construir
espaços próprios de sociabilidade que os representassem perante os seus e os outros. Espaços
construídos mediante negociações e conflitos, lutas e resistências; espaços que funcionam como
2 Os estudos sobre o papel das instituições de poder, como o Estado e a Igreja, na normatização e ordenação de espaços (praças e igrejas) e manifestações populares, comprovam o quanto tais instituições “imiscuíram-se” nesses espaços com o intuito de “remoldá-lo à sua imagem e semelhança” (Del Priore, 2000, p. 90). 3 Sobre casamentos entre italianos e portugueses ver Tamaso, I. 1998. E sobre casamentos entre italianos e negros ver Tamaso, R. 2005a.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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lugares de práticas, identidades e representações e onde as relações humanas encontram-se
diretamente atreladas às relações de poder.
A análise sobre a tensão que se dá na organização do espaço urbano pinhalense no pós -
abolição possibilitou a compreensão do universo social experimentado por diferentes grupos na
sociedade da época 4. Além disso, por meio dela pudemos decodificar valores culturais
representativos das etnias em questão, como a devoção ao Divino Espírito Santo e a diversos
santos, mais especificamente, São Benedito e Santa Luzia.
A ordenação e delimitação de espaços sociais na cidade, portanto, é parte constitutiva
das relações de poder que se deram no espaço urbano de Pinhal em fins do século XIX. Além
disso, atestam a grande contribuição destes grupos na construção do patrimônio material e
imaterial pinhalense, por exemplo: igrejas, clubes e festas populares diversas (Raffestin, 1993).
Portanto, entender a construção desses espaços é fundamental para compreendermos não
somente o que significam, mas, acima de tudo, desvendar os sonhos e frustrações que
permearam a vida dos próprios sujeitos que os construíram. Pois, o patrimônio está impregnado
de sentimentos, sonhos, frustrações, afeto... fruto da ação dos homens.
Espaços sociais e identidade étnica
O historiador Michel de Certeau (1994, p.57) entende o espaço como “um lugar
praticado”, “um cruzamento de forças motrizes”, ou seja, um lugar que é produto das relações
humanas, que foi tecido por relações sociais dadas no plano do vivido.
Em estudos anteriores5 pudemos analisar como os diferentes grupos sociais e étnicos, por
meio de relações de solidariedade, fraternidade e irmandade, foram ao longo de décadas
negociando e se reorganizando no espaço urbano da cidade. Num processo de ordenação
político-espacial, tais grupos passam a ocupar regiões específicas: uns em áreas centrais (luso-
brasileiros), outros em áreas de acesso à cidade ou áreas rurais (italianos) e outros (negros e
descendentes) em áreas restantes! (Tamaso, 2005a, 2005b).
Como área mais antiga da cidade, o centro urbano representa a edificação do patrimônio
luso-brasileiro na cidade. Grande parte dos quarteirões que circulam a Igreja Matriz foram se
desenhando desde a fundação e se desenvolvendo com a chegada de inúmeras famílias luso-
brasileiras que ali se fixaram, entre elas: Souza Brito, Leme, Porto, Vergueiro, entre outras
(Martins, 1986). Nessa área podemos reconhecer além da Matriz, outros símbolos da cultura
luso-brasileira, como a Capela de Nossa Senhora das Brotas, o Grupo Escolar “Dr. Almeida
4 A análise sobre organização de espaços, fronteira e identidade, está pautada em Arantes, A. 1994, 2002. 5 Tamaso, R. (2005a, 2005b). Op. Cit.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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Vergueiro”, a Sociedade Recreativa e Esportiva Pinhalense, a Igreja de Nossa Senhora
Aparecida, etc.
Quanto à contribuição do imigrante italiano, podemos afirmar que este trouxe na
bagagem, não somente sua força de trabalho, mas acima de tudo sua moral, seus valores e sua
cultura que influenciou decisivamente os movimentos sociais e culturais de fins do século XIX
não somente em Pinhal, como no Brasil. Aspectos que transparecem na estética arquitetônica
tanto rural quanto urbana, assim como, nas construções materiais e imateriais da época6.
Para Tamaso (1998, p. 30), a importância dos italianos para a história de Pinhal “vem do
fato de terem participado diretamente desta nova concepção material e cultural da cidade”. São
eles que irão compor o que poderemos chamar de camada média urbana e que serão
responsáveis pela construção do perfil cultural da cidade por meio das edificações urbanas
laicas, como: a Sociedade Italiana de Mútuo Socorsso “Dante Alighieri” (1889), Éden Theatro
(1913), o Cine Theatro Avenida (1927), entre outros.
O que é mais significativo no estudo de Tamaso (1998, p.31), é a confirmação de que,
apesar de não participarem das decisões e nem da vida política da cidade – assim como os
negros -, a partir destas edificações eles conseguiram “delimitar um lugar de atuação” neste
espaço urbano. Para ela, “edificados, os espaços sócio-culturais serviram de testemunha da
presença dos italianos em Pinhal”.
Inúmeras famílias italianas fixaram-se nas áreas de acesso à cidade e passaram a praticar
atividades ligadas ao comércio e ao artesanato, entre elas podemos citar: Monici, Martorano,
Tamaso, Del Guerra, Françoso, etc. Além disso, devemos lembrar a presença de representantes
de outras etnias como espanhóis, sírio-libaneses, franceses, mesmo que em menor número,
também contribuíram para a construção do patrimônio histórico-cultural pinhalense. Entretanto,
o estudo desta contribuição ainda está por ser feito (Tamaso, I. 1998; Martins, 1986; Rizzoni,
1949; Tamaso, 2000).
Contudo, o espaço que mais revela a presença italiana em Pinhal encontra-se no Bairro
de Santa Luzia, nas imediações da área urbana da cidade. Apesar de sua proximidade com a área
urbana do município, o bairro é tipicamente rural e seus moradores vêm buscando preservar
tradições trazidas por famílias de italianos que ali se fixaram no final do século XIX, entre elas:
Ragazzo, Ricci, Belli, Ricetto, etc. Nele foi construído o maior símbolo da cultura italiana na
cidade: a Igreja de Santa Luzia 7.
6 Movimentos como o anarquista, a organização das primeiras greves nas cidades de São Paulo e Santos, a introdução de uma nova estética arquitetônica e novas técnicas artísticas, são contribuições significativas dos imigrantes – espanhóis, italianos, sírios-libaneses, asiáticos, etc. – em nossa cultura. (Tamaso, 1998. ps.19-20). 7 As informações relativas ao Bairro de Santa Luzia foram extraídas da obra BAIRRO DE SANTA LUZIA – UMA TEROMADA HISTÓRICA E UMA VISÃO ATUAL. Espírito Santo do Pinhal/SP, 1998. (Produção das Professoras
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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A contribuição africana para a sociedade brasileira – nos mais diferentes aspectos:
econômico, social ou cultural - já foi atestada em inúmeros estudos, e não seria menos
importante na cidade de Pinhal. O Largo de São Benedito é o lugar representativo da cultura
negra na cidade de Pinhal. Foi lá que os negros e seus descendentes se fixaram no pós-abolição
– depois de um processo de negociação e ordenação sócio-espacial -, e buscaram construir
signos que os identificassem, quais sejam: a Rua 16 de Abril, a Igreja de São Benedito e o Clube
Bangu. Entre as famílias que lá se fixaram estão Souza Lima, Acaiabe, Fernandes, Rodrigues,
entre outras.
Na tentativa de apresentar espacialmente o povoamento e a ordenação sócio-espacial de
Pinhal no início do século XX, buscamos situar no mapa físico os diversos grupos étnicos e as
regiões por eles habitadas (Mapa - Espaços Étnicos no início do século XX). Contudo,
reforçamos que tais espaços devem ser analisados como lugar da produção humana, visto que
esta se reproduz “na relação entre espaço e sociedade, o que significa criação, estabelecimento
de uma identidade entre comunidade e lugar” (Carlos, 1996, p.29).
Nessa representação gráfica do espaço urbano pinhalense no início do século XX,
delimitamos os quarteirões onde as diversas etnias mais se concentravam. A área central (Rosa)
- também chamada pelos moradores à época de Alto Central e constituída pelas primeiras ruas
da cidade -, corresponde à localização da maioria das famílias luso-brasileiras. Nessa região está
localizado o maior símbolo dessa cultura: A Igreja Matriz (Tamaso, 1998; Tamaso, 2005a).
Às áreas de acesso ao núcleo central (Verde), correspondem à localização da maioria dos
italianos e seus descendentes. Conhecida como Baixa Itália ou região Mais Alta, estas
localizavam-se nas saídas da cidade em direção a São Paulo (Ruas Governador Pedro de Toledo
e Barão de Motta Paes), a Albertina/MG (Ruas Santa Cruz e Jacob Worms) e a Andradas/MG
(Rua Artur Vergueiro). É justamente nessa direção que se encontra localizado o Bairro de Santa
Luzia (Tamaso, 1998; Tamaso, 2005a, 2005b).
Quanto à localização dos negros e afro-brasileiros na cidade de Pinhal, delimitamos duas
regiões onde encontramos sua maior concentração. A região denominada de Largo de São
Benedito, localizada a esquerda do núcleo central (Caramelo), passou a concentrar parte da
população negra e afro-brasileiros no pós-abolição. Entre o Largo e o núcleo central
encontramos como barreira física o Córrego do (da) Quaresma. Na verdade, acreditamos que a
presença física do córrego não impediu que os afro-brasileiros adentrassem em outros espaços,
que não os reconhecidamente seus. Segundo relatos, a sua transposição social era muito mais
da E.E. “Joanna de Fellipe”), a qual passaremos a nos referir a partir deste momento – devido à extensão do título - como BSL, 1998.
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freqüente do que a limitação imposta pela geografia (Tamaso, 2005a). Já na segunda região,
próxima ao Asilo Antigo (Raias de Cima e de Baixo), a concentração de negros e seus
descendentes foi menor 8.
N
LEGENDA
ESPAÇOS ÉTNICOSNO INÍCIO DO SÉCULO XX
PINHAL
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13 DE MAIO Mapa sem escala
Espaços Afro-Brasileiros
Espaços Luso-Brasileiros
Espaços Ítalo-Brasileiros
Espaços mistos
Largos
Largo de São Beneditoe imediaçõesRaias e Asilo antigo
Alto Central
Baixa ItáliaRegiões mais altas
MAPA 7
Beco dosVelhacos
Espaços Étnicos no início do século XX na cidade de Pinhal
(Fonte: Tamaso, 2005a)
Embora tenhamos conseguido localizar no espaço físico as regiões onde se concentraram
as diversas etnias na cidade de Pinhal, cabe salientar que tal representação gráfica não deve ser
analisada apenas pela ótica física. Assim como os gráficos, tal mapa é apenas uma tentativa de
representação de uma realidade social. As delimitações gráficas correspondem a espaços vividos
por meio de experiências cotidianas, nas relações e práticas sociais. Em meio a tais práticas as
fronteiras foram muitas vezes transpostas – fossem elas físicas ou invisíveis. Estas últimas, aliás,
8 A ausência de fontes de pesquisa com relação à segunda região dificultou a análise sobre as razões da baixa concentração de negros e seus descendentes nesse espaço. Sobre isso ver: Tamaso, 2005a.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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muito mais difíceis para se transpor, já que imbricadas no seio da sociedade, fundadas em
valores e pré-conceitos solidamente e historicamente edificados.
Feitas tais considerações, é inegável a riqueza do patrimônio que se edificou em Pinhal a
partir da (ou por meio da) – experiência urbana. Este se diferencia de outras cidades do leste
paulista por seu ecletismo arquitetônico, já que as construções urbanas deste período se mesclam
entre influências barrocas, italianas, alemãs, francesas, africanas, etc. É exatamente essa
diversidade que, de acordo com Martins (1992) 9 “espelha o significado de diferentes grupos”, o
que significa que ‘esta sociedade é representativa’, não só para Pinhal e os pinhalenses, mas do
que são os brasileiros, nessa soma de várias culturas” e identidades.
Para Carlos (1996, p. 25-37), são as relações sociais que garantem “a construção de uma
rede de significados e sentidos que são tecidas pela história e cultura civilizadora, produzindo a
identidade. Aí o homem se reconhece porque aí vive”. Assim, como nos propõe Carlos (1996,
p.29), o sujeito pertence ao lugar como este a ele, “pois a produção do lugar se liga
indissociavelmente à produção da vida”, no lugar emerge a vida, “posto que é aí que se dá a
unidade da vida social”.
Desta forma, analisando as construções, suas práticas e seus significados, buscamos
entender as formas como as identidades étnicas foram se consolidando e se moldado às
necessidades e às imposições locais10.
A questão da identidade remete a uma afirmação não apenas étnica, mas principalmente
indiciária com o lugar. Para analisarmos um determinado signo, há que se fazer uma análise das
práticas que o constituíram e das suas representações para os diversos sujeitos históricos 11.
Desta forma: “no plano do indivíduo, a identidade étnica se define simultaneamente pelo que é
subjetivamente reivindicado e pelo que é socialmente atribuído” (Poutignat; Streiff-Fenart,
1998, p. 149).
Pensar em identidade, portanto, pressupõe pensar em algo que foi construído por sujeitos
históricos e que os representa perante os “seus” e os “outros”. Tal qual na análise sobre a
cultura, o caráter dinâmico da identidade vem da relação direta que esta estabelece com os
indivíduos em suas sociedades, ou seja, na interação estabelecida entre os homens, o espaço
físico e o espaço social. Logo, para entendermos a identidade temos que nos aventurar no estudo
da história, das tradições e das representações nas quais tais signos foram construídos.
9 Depoimento da historiadora Ana Luiza Martins à antropóloga Izabela Tamaso, em 1992 - por ocasião de sua pesquisa de mestrado -, e que gentilmente nos foi cedido. 10 Sobre a questão da negociação da identidade entre sujeitos de etnias diversas, verificar: Lesser, 2001. 11 Quando falamos em identidade estamos nos remetendo àquele conceito de identidade como algo historicamente construído, o que Stuart Hall (2004) denomina de “celebração móvel”, “(...) formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. (Hall, 2004, p. 13)
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Refletir sobre os espaços de sociabilidade e as manifestações festivas que aconteciam em
seu entorno possibilitaram o desvendamento de um universo sócio-cultural extremamente rico e
diverso 12. A análise sobre a construção desse patrimônio deve ser apresentada, portanto, com
base em dois argumentos: o primeiro diz respeito ao patrimônio material – mais
especificamente, o patrimônio edificado, sendo este pensando como espaços socialmente
praticados e vivenciados por grupos étnicos específicos. A segunda análise está pautada no
estudo do patrimônio imaterial, ou seja, às manifestações populares em torno destes espaços,
mais especificamente, as festas religiosas.
Entre o sagrado e o profano13: a construção dos signos identitários
A presença da religiosidade entre os diversos grupos sociais e étnicos é marcante em
Pinhal. Para se ter uma idéia do potencial do objeto em questão basta alguns dados14: em 2005,
havia na cidade 19 Igrejas Católicas organizadas em 5 Paróquias, quais sejam: Divino Espírito
Santo, São João Batista, São Francisco de Assis, dos Mártires e da Santa Cruz.
Além do espaço do sagrado observamos também manifestações de fé ao padroeiro,
Divino Espírito Santo, como também devoção a diversos santos desde os primórdios da cidade,
como: São Sebastião, Santa Cruz, Nossa Senhora Aparecida e São Benedito. Logo, elementos
do sagrado e do profano dividem a mesma cena na experiência da devoção, comungando não
somente no momento da fé, mas, sobretudo, os espaços, os sonhos e as frustrações (Martins,
1986; Tamaso, 2005a).
Nesse sentido, o elemento religioso na cidade deve ser analisado como um fator político,
deveras significativo para a sustentação do status quo de determinados segmentos sociais e
étnicos locais. A religiosidade, como manifestação sócio-cultural, serviu de elemento de
aglutinação ou de exclusão de determinados grupos – sociais ou étnicos - no espaço urbano da
cidade. Ou seja, tais espaços e suas manifestações funcionaram como signos identitários. Como
já apresentamos anteriormente, as Igrejas Matriz, de Santa Luzia e de São Benedito são
representações das culturas luso, ítalo e afro-brasileiras, respectivamente, na cidade (Tamaso,
2005a, p.83).
Ao longo de todo o ano, as diversas comunidades se organizam em seus bairros e
realizam festas em homenagem aos santos padroeiros. Entretanto, as que mais se destacam, são
as do Divino Espírito Santo, na Praça da Matriz; a de São João, no Largo de São João; a de São
12 Sobre festas populares e lazer na cidade verificar: Magnani, 2003; Del Priori, 2000; e Tinhorão, 1992. 13 As reflexões acerca de sagrado e profano estão fundamentadas em estudos clássicos de Durkheim, 1989; Duvgnaud, 1983; Eliade, 2002. 14 Dados fornecidos pelo funcionário Toninho da Secretaria da Paróquia do Divino Espírito Santo, sede de todas as paróquias da cidade de Pinhal.
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Pantaleão, no Alto Alegre e a de Santa Luzia, no bairro que leva o mesmo nome. Isto se dá em
função do significado que estas festas foram adquirindo ao longo de tanto tempo de história.
• O espaço do sagrado
O espaço do sagrado emerge em Pinhal no momento de sua fundação. A história da
cidade está fundada num litígio de terras que levou um dos herdeiros – Romualdo de Souza
Brito - a doar (em 1849) 40 alqueires de terra “para servir de patrimônio da capela do Divino
Espírito Santo”. A construção da capela em louvor ao Divino inicia-se logo após a doação. No
ano seguinte ela foi Curada e em 25 de agosto de 1851 celebrou-se a primeira missa. Estava
definitivamente constituído o patrimônio do Divino Espírito Santo, representado pela Igreja
Matriz (Martins, 1986).
Ao longo dos primeiros 50 anos de sua fundação a cidade foi erigindo inúmeras igrejas e
capelas - tanto na área urbana como rural -, o que representa o quanto a religiosidade era intensa.
Em 1906, Espírito Santo do Pinhal possuía 11 (onze), Capelas ou Igrejas Católicas em
funcionamento 15, quais sejam: Capela do Espírito Santo da Aparecida, Capela de Nossa
Senhora das Brotas, Capela de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Capela de Nova Louzã
e Oratório (Fazenda), Capela de Santa Cruz, Capela de Santa Cruz da Boa Vista (Fazenda),
Capela de Santo Antônio do Jardim (Distrito), Capela de São Benedito, Capela de São Benedito
do Morro Grande (Fazenda) e Irmandade da Matriz (Martins, 1986, p. 371).
A data de 11 de novembro de 1900 marca o início da construção da Igreja de São
Benedito, e a data de 10 de julho de 1903, como a da abertura das atividades religiosas. Trata-se
ainda de uma pequena capela onde, exporadicamente, eram rezadas missas - pelo Revmo. Padre
Landell de Moura, responsável pela Paróquia local -, com autorização do Bispo da Província
(Martins, 1986, p. 347). Entretanto, é somente na década de 1930 que encontramos a Igreja de
São Benedito edificada – tal como se encontra até hoje, com pequenas alterações em suas
características arquitetônicas - e em pleno funcionamento (Tamaso, 2005a).
A Igreja de Santa Luzia é inaugurada em 1909, na Fazenda Morro Azul - propriedade de
Dona Chiquinha Ramos - no Bairro de Santa Luzia. Ainda como capela, esta funcionava apenas
para os ritos sagrados da família e convidados. Em 1910, no dia 13 de dezembro, foi celebrada a
primeira Missa pelo Padre Landell de Moura, então pároco da cidade. Na cerimônia, estavam
presentes os proprietários da fazenda, seus familiares e colonos italianos. A imagem da santa
teria vindo diretamente da Itália em 1908, a pedido de Dona Chiquinha (BSL, 1998).
15 Lista de Capelas de Espírito Santo do Pinhal, organizada por Wanderley dos Santos, da Cúria Metropolitana de São Paulo. In: Martins, 1986, p. 371.
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A nosso ver, a década de 30 do século XX, é o momento da consolidação dos espaços
sociais na cidade de Pinhal. Isso pode ser verificado pelo grande número de igrejas e clubes
construídos e fundados desde a década de 1890 e que funcionavam como espaços específicos de
sociabilidades para reuniões políticas, escolas, festas religiosas, etc. (Tamaso, 1998; Tamaso,
2005a e 2005b). Estas últimas têm um caráter especial em nosso estudo, já que nos remete a
uma análise das tradições culturais ligadas aos diversos grupos étnicos na cidade. Por isso, nos
deteremos um pouco em sua análise.
Igrejas: Matriz (início do século XX), São Benedito (por volta de 1930) e Santa Luzia (2005)
(Fonte: Poliantéia, 1949; BSL, 1998)
• O espaço do profano
O grande número de festas religiosas ocorridas desde fins do século XIX até a década de
1930 pôde ser observado quando analisamos jornais de época, nas quais pudemos verificar
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propagandas e programas de inúmeras festas, aos mais diversos santos, que ocorriam tanto no
espaço urbano como no espaço rural da cidade de Pinhal16. As festas religiosas eram
organizadas por grupos ligados a etnias específicas – luso-brasileira, italiana ou ítalo-brasileira,
afro-brasileira entre outras – que buscavam por meio dessas manifestações se colocar no espaço
político e sócio-cultural local.
A Festa de Santa Luzia é a principal manifestação de fé da comunidade italiana em
Pinhal. Sua prática data de 1909, ano em que Dona Chiquinha Ramos organizou uma grande
festa em louvor à santa. Desde então, milhares de devotos – não somente italianos e seus
descendentes -, de toda a região reúnem-se em torno da imagem de Santa Luzia em busca de
socorro às suas súplicas e em agradecimentos pelas graças alcançadas (BSL, 1998).
Anteriormente, os festejos contavam com novenas aos pés do Cruzeiro, procissões e
quermesses com leilões. Estes leilões segundo relataram antigos organizadores da festa, foram
criados com a finalidade de angariar fundos para a construção da atual igreja. Na atualidade,
além das atividades já mencionadas, a festa conta quermesse, apresentações musicais e uma área
para comércio popular – onde se agrupam centenas de barracas oferecendo todo tipo de produtos
- etc. (Tamaso, 2005b).
Quanto à Festa de São Benedito, não foi possível definir a data em que inicia. Por meio
de artigos em jornais de época e depoimentos de moradores antigos do Bairro pudemos levantar
hipóteses de datações aproximadas. O primeiro documento encontrado referindo-se à Festa de
São Benedito data de 1906. Mas, é no convite datado de 1909, que aparece claramente a divisão
entre práticas sagradas e profanas relacionadas ao ritual religioso em louvor ao santo negro
(Tamaso, 2005a).
Contudo, elas não se excluem. Acima de tudo, o que devemos ressaltar é a significativa
conjunção de elementos sagrados e profanos numa convivência pacífica e harmoniosa no
momento festivo 17. Entre os primeiros encontravam-se as novenas, o terço, a Missa, as
procissões, a Alvorada de músicas e fogos até o levantar do mastro. Entre os segundos, estão
diversas atividades como as quermesses, as danças e apresentações folclóricas (Tamaso, 2005a).
As festas a São Benedito na cidade de Pinhal apresentavam-se como um atrativo não só
local, na medida em que atraía, todo ano, centenas de pessoas de diversas cidades da redondeza,
o que pode ser verificado em depoimentos de moradores antigos do Largo de São Benedito e
freqüentadores fervorosos dos festejos do santo (Tamaso, 2005a). 16 Tal estudo fez parte do meu trabalho de campo de doutorado em que utilizei como fonte uma coleção (ainda que em péssimo estado de conservação) de jornais de época locais, “O Pinhalense”. Tamaso, R. Op. Cit. 17 Em estudo sobre a Festa do Santo Preto, Brandão (1985, p. 17) apresenta a mesma divisão nos programas, como forma de demonstrar as diversas atividades que faziam parte de uma festa religiosa. Segundo ele, o Programa da Festa de Nossa Senhora do Rosário de Catalão/GO, está dividido em duas partes, quais sejam: uma religiosa e uma festiva.
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A festa se desenvolveu durante muitas décadas ao longo do século XX e, sem dúvida, é
um elemento sócio – cultural significativo no contexto histórico da cidade. Era nessa festa que o
elemento da identidade da cultura negra se expressava com toda força e vigor, unindo num
mesmo espaço físico, universos sociais e simbólicos diferentes.
Programas de festas religiosas nos anos de 1906 e 1909 na cidade de Pinhal (TAMASO, 2005a).
Negros, italianos ou luso-brasileiros, seja qual for sua identidade, o que nos parece claro
é que fazendo parte ou não das decisões, estando dentro, fora ou na fronteira, todos, de uma
forma ou de outra, em períodos diversos, colaboraram para a construção do patrimônio
histórico-cultural pinhalense. Contudo, nem sempre seu valor foi reconhecido.
Do reconhecimento ou do esquecimento...
No que concerne ao patrimônio edificado, tal diversidade fez com que o Condephaat
(Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Turístico do Estado de
São Paulo) homologasse o Tombamento de 11 imóveis e instituísse a delimitação do Núcleo
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Histórico Urbano de Pinhal. O texto do Artigo 1o. da Resolução 18 de Tombamento é
contundente na afirmação da importância do patrimônio edificado desde fins do século XIX na
cidade (Tamaso, 1998). Segue texto:
“Ficam tombados como bens culturais de interesse histórico-arquitetônico os imóveis abaixo discriminados, componentes do Núcleo Histórico Urbano de Espírito Santo do Pinhal, representativos da evolução urbana do município, marcos simbólicos do apogeu da economia cafeeira na região, confirmadores das transformações econômicas, políticas e sociais registradas na virada do século, caracterizando os novos equipamentos urbanos decorrentes da ordem republicana”. (Res. SC-35, 1992) [grifo meu]
O processo de tombamento dos 11 imóveis - que possibilitou a delimitação da área que
constitui o Núcleo Histórico Urbano 19- foi acompanhado durante anos pelo arquiteto Flávio L.
M. B. de Moraes e pela historiadora Ana Luiza Martins, ambos responsáveis pelos pareceres
técnicos em suas respectivas áreas 20. O que, contudo, está patente nesta análise do processo é a
exclusão de elementos característicos da construção de símbolos da cultura negra e/ou afro-
brasileira na cidade de Pinhal.
O argumento utilizado para justificar a seleção dos 11 imóveis foi apresentado
anteriormente e declara que os imóveis escolhidos são os “significativos do ponto de vista
histórico e/ou arquitetônico”. Desta forma, apontamos para o fato de que símbolos da cultura
negra não são considerados como significativos nem do ponto de vista histórico nem
arquitetônico.
Dos 11 imóveis selecionados, nenhum é representativo da história e das tradições afro-
brasileiras no espaço urbano pinhalense. Na própria área que constitui o “Núcleo Histórico” não
foram contempladas edificações simbólicas da cultura afro-brasileira, como a Igreja de São
Benedito e de Nossa Senhora Aparecida - nem mesmo o Clube Bangu. Buscou-se priorizar os
signos representativos da história e do desenvolvimento da cultura cafeeira no município,
especificamente relacionados aos grupos dominantes política e economicamente. A nosso ver,
tal fato revela como, a partir do tombamento dos 11 imóveis, os elementos constitutivos da
18 Resolução SC de 16 de Novembro de 1992, Processo de Tombamento no. 26.264/88, Arquivo do Condephaat. In: Tamaso, 1998. 19 Dos 11 imóveis tombados apenas 3 deles não encontram-se situados dentro do Núcleo e por isso estão protegidos pela lei de tombamento que determinou uma área envoltória de 300 metros a partir de cada um. Este raio de 300 metros também foi utilizado para determinar a área que comporia o Núcleo Histórico. Como afirmou Izabela Tamaso (1998, p. 100), “o tombamento dos 11 imóveis em Pinhal propiciou a proteção de uma área significativa do espaço urbano” (Tamaso, 1998). 20 Para ver lista completa dos imóveis tombados e as ruas que delimitam o Núcleo Histórico Urbano de Espírito Santo do Pinhal consultar: Tamaso (1998, p. 99-113), ou Resolução SC de 16 de Novembro de 1992, Processo de Tombamento no. 26.264/88, Arquivo do Condephaat.
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herança e tradição político-econômica da elite branca cafeicultora – representados pelos
principais símbolos de identidade luso-brasileira -, passaram a representar a coletividade.
Outro fator significativo diz respeito à nacionalidade dos proprietários dos imóveis
tombados. Entre os 11 imóveis tombados, nove são imóveis de propriedade de famílias luso-
brasileiras, sendo que quatro são privados, quatro públicos e um comercial. O décimo imóvel foi
construído por uma aliança entre famílias luso-ítalo-brasileiras. Por último, temos 1 único
imóvel representativo exclusivamente da etnia italiana e que se constitui por um conjunto de
residência-comércio (Tamaso, 1998, p. 80). Para esclarecimento, cabe apresentarmos o mapa
produzido por Tamaso que apresenta os 11 imóveis tombados (em verde) pelo CONDEPHAAT
e a delimitação do “Núcleo Histórico” (linha azul).
Delimitação da área envoltória dos bens tombados e que constitui o “Núcleo Urbano Histórico de Pinhal”
(Fonte: Tamaso, 1998)
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Por este mapa podemos observar claramente a exclusão das regiões onde os negros e
afro-brasileiros ergueram signos de identidade, especificamente o Largo de São Benedito 21.
Entretanto, a questão da identidade é muito questionada quando se trata de atribuir valor à
construção de símbolos culturais. É comum que cada grupo se identifique com “o que é seu” e,
portanto, estranhe “o que é do outro”. A partir daí a própria noção do que é histórico, e seu lugar
na memória, passa a ser questionado. Tudo depende do lugar de onde se está olhando para este
passado (Tamaso, 2007; Choay, 2001; Simão, 2001).
Se com relação ao patrimônio edificado observamos o quão as construções
representativas das culturas luso e ítalo-brasileiras foram sendo priorizadas em detrimento dos
espaços dos afro-brasileiros, no que concerne ao patrimônio imaterial, principalmente aquele
relativo às festas religiosas, não seria diferente.
As duas maiores festas religiosas da cidade hoje são a do Divino e da Santa Luzia. A de
São Benedito deixou de ser organizada na década de 80 do século passado. Sua extinção tem
como causa inúmeros fatores, entre eles está a própria desorganização sócio-política que levou à
fragmentação cultural dos afro-brasileiros na cidade.
Em nosso estudo, os depoimentos revelam um ressentimento com relação ao fato da
Festa não existir mais. Além disso, fica atestado um saudosismo e uma melancolia, nas falas e
nos silêncios de vários depoentes:
D. Nena: “Mas acabou tudo né... Acabou até as festas de São Benedito... O Padre acabou né... Agora é lá na praça”.
Neste contexto, o que está em jogo é o caráter simbólico da própria Festa e o status que
tinha quando fazia parte do calendário religioso local como uma das maiores festas. Quando esta
deixa de existir, é como se sua importância - não só da Festa, mas da comunidade que a
representa, estivesse sendo - se não esquecida, ao menos, negada.
Não podemos esquecer também que ao falarmos de um outro, estamos falando de algo
com o qual não nos identificamos. Portanto, já estamos nos situando ao olharmos para ele como
algo que não nos pertence. De quem falamos ? De onde falamos? Para quem falamos? A escrita
da história é por si mesma uma interpretação, por trás da qual se esconde, ou se mostra, o
historiador (Burke, 1992).
21 O Largo de São Benedito pode ser localizado observando a cruz central (Igreja Matriz) e seguindo à direita para a próxima cruz (Igreja de São Benedito), fora da área delimitada pela linha azul.
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Segundo De Certeau (1994), quando analisamos as práticas sociais de um outro,
devemos compreendê-las engendradas em um universo próprio, universo construído em meio a
valores e princípios morais próprios a ele, e que portanto, não devem ser desprezados.
Assim, os valores, signos e representações da comunidade negra local devem ser
analisados inseridos num contexto próprio e singular, e que são atestados nas falas e nos
silêncios em muitos depoimentos.
Não podemos esquecer que para Todorov (1999), ao descobrirmos o “outro”,
descobrimos um pouco de nós mesmos, um outro “eu”. Buscando a igualdade encontramo-nos
nas diferenças. O importante, para ele, é “viver a diferença na igualdade”.
“...Queremos a igualdade sem que ela acarrete a identidade; mas também a diferença, sem que ela degenere em superioridade/inferioridade; ...aspiramos à recuperação do sentido do social, sem perder a qualidade do individual”. (Todorov, p.302)
Tal análise deve ser acrescida da idéia de que os lugares constituem-se de signos que
representam a identidade. São partes constitutivas da alma do lugar. A escolha por este ou
aquele signo é subjetiva e está ligada às maneiras de viver, agir, sentir e experienciar o espaço
físico e social.
O fato do Condephaat ter reconhecido e atribuído valor ao patrimônio do Divino, parece-
nos portanto, uma tentativa de manutenção dessa hegemonia cultural luso-brasileira na cidade.
Aos negros, italianos e seus descendentes só resta pedir à santa protetora dos olhos que outros
olhos também se abram para a valorização e o reconhecimento do patrimônio de São Benedito e
Santa Luzia, a fim de que este não caia no esquecimento.
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