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RENATO LESSA Modos de fazer uma República: demiurgia e invenção institucional na tradição republicana brasileira  Análise Social , , (.º), - Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, - Lisboa Portugal — [email protected]

Renato Lessa

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  • RENATO LESSA

    Modos de fazer uma Repblica:demiurgia e inveno institucionalna tradio republicana brasileira

    Anlise Social, 204, xlvii (3.), 2012issn online 2182-2999

    edio e propriedadeInstituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Anbal de Bettencourt, 9

    1600-189 Lisboa Portugal [email protected]

  • Anlise Social, 204, xlvii (3.), 2012, 508-531

    Modos de inventar uma Repblica: demiurgia e inveno institucional na tradio republicana brasileira. O artigo sugere uma interpretao da Repblica brasileira como processo de inveno dependente de duas ordens de fices. A primeira delas, formulada entre outros ensastas brasilei-ros, por Francisco Jos de Oliveira Vianna, sustenta a vign-cia, no processo de constituio da sociedade e do Estado no Brasil desde o perodo colonial, de um padro de sociabilidade fragmentado e carente de laos sociais e cvicos permanentes. A segunda ordem de fices corolrio da primeira: a ausncia de nexos sociais acabou compensada pela presena e pela fora do direito pblico e da elaborao constitucional. O artigo ana-lisa dois momentos cruciais de (re)inveno da Repblica bra-sileira, ambos marcados pelo predomnio do direito pblico e da inveno constitucional (1932 e 1988). Ao fim, a experincia poltica brasileira apresentada como tentativa continuada de criao de uma comunidade cvica e poltica contra os factos.Palavras-chave: inveno; Repblica; direito pblico; consti-tuies.

    Ways of republic making : institutional invention in Brazilianrepublican tradition. This article suggests an interpretation of the Brazilian republican State and nation building as a pro-cess affected by two orders of fictions. The first and fundamen-tal one was formulated, among several Brazilian intellectuals, by Francisco Jos de Oliveira Vianna in the beginning of the twentieth century. It was based on the assumption that Brazil-ian social and political history has been marked, since colonial times, by insolidarism and by a lack of social and civic bonds among the population. The second order of fictions is a corol-lary of the first: the lack of social bonds has been compensated for by the presence and the force of public law and constitu-tion making. The article analyzes two crucial moments of (re)invention of the Brazilian Republic 1932 and 1988 marked by a clear predominance of constitution and law making. As a result, Brazilian political experience is presented as an everlast-ing attempt to build a civic and political community against the facts.Keywords: fiction; Republic; public law; constitutions.

    Renato Lessa [email protected] Universidade Fede- ral Fluminense.

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    Modos de fazer uma Repblica:demiurgia e inveno institucionalna tradio republicana brasileira1

    A BE RT U R A

    Os regimes e sistemas polticos, sobretudo em tempos de mutao, so afeta-dos por dinmicas histricas e sociais que os preparam e antecedem. Mesmo que constitudos por dinmicas confusas e processos errticos, vulnerveis aos efeitos do impondervel, vale a seu respeito a mxima de Alexis de Tocqueville, expressa nas Lembranas de 1848: a de que o acaso, embora urdidor de imen-sas pores do processo histrico, nada faz para alm daquilo para o qual foi preparado (Tocqueville, 1991, p. 84). Sensibilidade semelhante pode ser encontrada na reflexo do historiador William Sewell Jr, em ensaio ilumi-nado no qual considera o estatuto terico da ideia de evento (Sewell,1996). Se verdade que um evento, para alm de ser reconhecido como notvel e resultar de sequncias de ocorrncias, produz transformaes durveis nas estruturas sociais, ele algo que resulta do prprio enredo que acaba por alterar.2 Contudo, o nosso principal problema, enquanto analistas e estu-diosos da histria poltica, o de que as tramas que atam o acaso ao que se lhe preparou e antecedeu s ganham alguma visibilidade e inteligibilidade se tanto a posteriori.

    1 O presente texto resulta de conferncia proferida sob o mesmo ttulo durante o ciclo de conferncias ics 2010 Repblica e Utopia, realizado entre 13 e 15 de outubro de 2010, no Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. Agradeo aos colegas que se ocuparam da apreciao deste texto, pelas valiosas sugestes de correo e aperfeioamento.2 Historical events tend to transform social relations in ways that could not be fully predic-ted from the gradual changes that may have made them possible. What makes historical events so importante to theorize is that they reshape history, imparting an unforeseen direction to social development and altering the nature of the causal nexus in whuch social interaction take place (Sewell, 1996, p. 843).

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    Do ponto de vista dos sujeitos polticos, imersos no turbilho das coisas imediatas e presentes, o acaso e o impondervel constituem, a um s tempo, o abismo e o atrator da ao humana. Se, para efeitos acadmicos, a ideia de cog-nio algo que se configura ex post facto, do ponto de vista existencial isto , o da vivncia da ao a balana inclina-se para a concomitncia, seno para a antecipao. Os sujeitos polticos so seres fixados na sincronia: a prpria ideia de ao poltica s se faz inteligvel se pensada como exerccio de atribui-o imediata de sentidos ao mundo, orientada para a fabricao de eventos. Ao contrrio do ideal do conhecimento ex post facto, sustentado na fico do esclarecimento favorecido e sedimentado pela passagem do tempo, o conheci-mento como esforo de sentido orientado para a imediaticidade parte da supo-sio de que inteligibilidade e sincronia so termos mutuamente necessrios.

    Por outras palavras, so diversos os regimes possveis de cognio diante da histria: conhecer antes, conhecer durante, conhecer depois. H, por certo, um suposto otimista na ideia de que o tempo e a distncia so componentes neces-srios para o reto conhecimento dos fenmenos histricos, e que as demais modalidades, por antecipatrias ou precipitadas, no obedecem a proto colos aceitveis de fixao da verdade histrica. Fenmenos adormecidos pelo tempo prestar-se-iam com maior intensidade compreenso, enquanto a fixao na sincronia poderia ser considerada como portadora de obstculos epistemol-gicos intransponveis. Para retomar o tema dos eventos, colocado por Sewell, a representao dos mesmos como irrupes fincadas em estruturas e tempos de maior durao, ou sries de ocorrncias, exige um modo de conhecimento situado na perspetiva do que aqui denomino como conhecer depois. Do ponto de vista da imediaticidade, ou do ator, o sentido do evento o que dado e posto na e pela ao. H mesmo, aqui, uma aproximao possvel com o que Hannah Arendt definiu como sendo o sentido prprio e necessrio da ideia de uma ao livre (Arendt, 1972). O sentido desta ao dado pelo que ela acres-centa ao mundo; o ndice de liberdade que comporta dado pela medida em que a ao livre e independente dos seus prprios motivos. O selo da liber-dade vale como garantia de suspenso do princpio da causalidade.

    As condies gerais que definem o arco de possibilidades de um ator, por certo o antecedem, se quisermos imemorialmente, mas o que constitui o evento que ele deflagra no o desdobramento ou o desabamento, em uma espcie de produtividade natural e necessria dessa longa cadeia de causa-lidades sobre o instante. H algo, pois, na dobra do evento que, ao mesmo tempo em que precipita sries de ocorrncias pretritas, acrescenta o inaudito e inventa novas possibilidades de configurao da vida.

    Se apurarmos, contudo, a vista ou o esprito , talvez seja o caso de sus-tentar que o termo conhecimento, associado aos predicados antes, durante e

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    depois, carrega significados diversos. Com efeito, em que medida uma ante-cipao ou uma aposta configuram um ato de conhecimento? H, de cer-teza, margem para a objeo, mas, por outro lado, se por conhecimento de um modo abertamente deflacionado convencionarmos designar esforos de produo de sentido capazes de sustentar juzos e pautas de ao, o termo pode bem ser rececionado em todas as modalidades aqui indicadas (antes, durante e depois), com distintos protocolos de aplicao.

    O conhecimento por antecipao, mais ou menos do que profecia eso-trica, passagem para que se diga o que se quer da vida ou seu oposto, o que no se quer.3 Os operadores dessa passagem so, por maioria de razo, aluci-natrios e expressam-se por meio de crenas e imagens do mundo. Conhecer por antecipao no se confunde com a profecia iluminada, mas com a fixao de cursos de ao que podem vir a ser acolhidos e tornados efetivos por jogos complexos de circunstncias. No por outra razo que a ideia de conheci-mento por antecipao aparece na tradio da filosofia poltica como a modali-dade mais relevante de fixao da verdade.

    Por mais que a inaugurao de uma Repblica possa ter a sensao de anarquia que traz consigo dissolvida em uma espcie de apaziguamento cau-sal, ainda assim ela pode ser interpelada como evento portador do inaudito e do imaginrio. A imanncia de processos sociais objetivos, embora incance-lvel, no prefigura as (des)orientaes seguidas pelos atores polticos e sociais. O exagero dos tratados de sociologia histrica funda-se, com frequncia e em no pequena medida, na suposio de que os atores sabem dos seus papis e que estes, de alguma forma, resultam de e mantm pregnncia com movi-mentos tectnicos da sociedade. Somos, de certeza, afetados por essa confusa e abissal geologia dos processos histricos e sociais, mas, a despeito disso, a ao poltica constitui-se como acrscimo epidrmico e alucinatrio aos imperati-vos da causalidade.

    As Repblicas, assim como outras erupes de natureza poltica e insti-tucional, resultam de dinmicas tectnicas e de longo prazo, por certo; mas, a despeito disso, devem ser inventadas pelo engenho e pela imaginao dos humanos.4 Dois parecem ser os componentes compulsrios desses esforos de inveno: a presena de crenas causais e de atos de storytelling, para

    3 A ideia de conhecimento por antecipao, aqui indicada, distingue-se da apresentada por George Dumzil (1984) em texto, no mnimo curioso, a respeito da profecia de Nostradamus sobre a fuga de Varennes. Para Dumzil, o conhecimento por antecipao assemelha-se profe-cia, o que de modo algum o caso do meu argumento.4 Procurei desenvolver este ponto, de forma mais extensa, em livro a respeito da inveno da Primeira Repblica brasileira (Lessa, 1999).

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    utilizar terminologia sugerida por Joseph Hillis Miller (Hillis Miller, 1987, p. 3)5. Tais componentes apresentam-se de modo necessariamente imbricado: h que supor a presena de um encadeamento causal entre fenmenos hist-ricos mais ou menos visveis, cujo modo de apresentao exige que se conte uma histria.

    H que, ainda, a isso acrescentar a presena igualmente incontornvel de um componente originrio nos esforos de inveno aludidos, algo que pode-ria ser descrito como um exerccio de metafsica histrica, a reter no seu interior a fico de um sentido para a experincia da histria. Mais do que ideologica-mente afetadas, as narrativas histricas so metafisicamente impregnadas por hipteses de sentido. O historismo do sculo xix no ter sido a ltima tenta-tiva de varrer a precipitao da metafsica sobre os factos contingentes. Resta saber a medida em que isso deu azo metafsica do facto contingente. O mesmo se deu com o hiper-positivismo do sculo xx, apegado aos micro-factos como abrigo seguro para macro-verdades.

    DA C ON DI O B R ASI L E I R A OR IG I N R IA

    J que estou a falar em fices, e desejo aproximar-me do tpico da inveno da Repblica no Brasil, tomo como ponto de partida uma das mais bem esta-belecidas fices a respeito do que se poderia designar como a condio bra-sileira originria. Antes que a decline, penso ser importante dizer que tomo a expresso condio brasileira originria como anloga, em termos funcionais, de condio humana e ao papel por ela exercido no campo mais amplo da filosofia poltica. Com efeito, tal campo exige como sua condio inerente de possibilidade a definio de um conjunto de atributos constituidores de ima-gens da condio humana, das quais se seguem desenhos de ordem poltica e social a elas adequados.

    Quer isto dizer que a dimenso antropolgica do pensamento poltico e social outrora muito mais evidente, antes que a assepsia do cientificismo ocupasse as nossas (in)sensibilidades analticas compulsria. Na tradio da filosofia poltica so vrias as definies do que seja a condio humana, assim como dos desenhos de mundo social que soam como seus corolrios. o que se depreende da seguinte srie no exaustiva, constituda por pen-sadores, com as suas respetivas definies dos atributos que constituem o

    5 J. Hillis Miller referiu-se no seu livro, de modo especfico, histria da tica: Whithout storytelling there is no theory of ethics (Hillis Miller, 1987, p. 3). O ponto, penso, pode ser estendido a todo o esforo narrativo com pretenses fundacionais, tanto no domnio da tica como nos da histria poltica e da filosofia poltica.

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    humano: Aristteles o animal que fala; Michel de Montaigne o animal que cr; Th omas Hobbes o animal que teme a morte violenta; Bento de Espinoza o animal que teme a solido; John Locke um animal portador de direitos naturais; Karl Marx o animal laborans; etc De cada uma dessas definies do que seja a natureza humana resulta uma imagem precisa a respeito do que e deve ser a vida social, adequada antropologia que lhe antecede. Neste sen-tido, o tema da condio humana parte compulsria do processo de inveno de ontologias sociais.

    No caso, evidente, de insistir aqui no tema da condio humana. A referncia rpida, creio, suficiente para indicar a presena de uma fico originria, absolutamente necessria para a configurao de imagens da vida social e para exerccios de conhecimento por antecipao. o prprio tema da felicidade pblica que exige como condio de consistncia mnima a defini-o daquilo que prprio da condio humana e do que a ela convm (Lessa, 2008b). Nesse campo preciso procede como em tantos outros a terminolo-gia sugerida pelo filsofo Nelson Goodman, que sustentava que as imagens do mundo e do mundo social y compris que produzimos so mais depictions do que descriptions (Goodman, 1978, pp. 1-22). Se o argumento procede para as fices que constituem a condio ou a natureza humanas, penso que se possa aplic-lo com idntica fora s fices que fundam interpretaes de experincias nacionais ou coletivas.

    Se falamos em fices, a expresso condio brasileira originria no deve, por maioria de razo, ser tomada como ndice de algo realmente existente, para utilizar vocabulrio em desuso; de algo fixado material e objetivamente em alguma origem detetvel seja l o que isso signifique e que tenha imposto de forma inelutvel um determinado destino nacional. Muito menos se trata de uma substncia que subjaz intocvel e permanente, sob a trama dos acontecimentos, imune eroso do tempo e espera da sua deteo ilu-minada. Para que a expresso faa sentido, imperativo seguir a clebre pres-crio metodolgica de Jean-Jacques Rousseau, apresentada no seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens: neces-srio afastar todos os fatos, pois eles no se prendem questo (Rousseau, 1978, p. 236).

    Em outros termos, as fices construdas a respeito de condies origin-rias estabelecem formas de sensibilidade, quadros lingusticos e metafricos nos quais a experincia de um pas, de uma forma antecipatria, passa a ser dotada de sentido. Do ponto de vista de cada um dos autores que empreendem tais esforos ficcionais, manifesta-se uma adeso ao que o mesmo Rousseau denominou como raciocnios hipotticos e condicionais, mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas (Rousseau, 1978, p. 236). Isso a despeito da

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    crena maior ou menor, segundo cada um dos autores dessas antecipaes de que falam de um mundo realmente existente e que praticam atos de des-velamento ontolgico, a exibir a natureza objetiva e a substncia das coisas, e no atos de alucinao.

    Mas de que desenho da condio brasileira originria se trata? mais do que hora de declin-lo. Desejo partir da imagem de pas que serve de suporte conceo desenvolvida por Francisco Jos Oliveira Vianna a respeito do que e deve ser o poder pblico vale dizer, o Estado e a administrao no Brasil, no seu papel de configurador de uma experincia de fabricao e integrao social.6

    Oliveira Vianna (1883-1951) foi um dos mais importantes intelectuais brasileiros da primeira metade do sculo xx. Pertenceu a uma linhagem de autores, na qual despontam autores como Paulino Jos Soares de Souza, vis-conde de Uruguai autor de um Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862) e Alberto Torres, autor de dois importantes livros, nas dcadas iniciais da Repblica no Brasil O Problema Nacional Brasileiro (1912) e A Organiza-o Nacional (1914). Trata-se de uma linhagem conservadora que procurou desenvolver uma intepretao realista segundo auto-atribuio da for-mao nacional, social e poltica brasileira.

    Tal marca, em Oliveira Vianna, evidente nas suas duas mais importantes obras de interpretao do Brasil, Populaes Meridionais do Brasil (1920) e Instituies Polticas Brasileiras (1949), assim como na sua reflexo crtica a respeito da histria constitucional do pas, em O Idealismo da Constituio (1927). Oliveira Vianna definia-se como um idealista orgnico, em oposio aberta aos que definia como idealistas utpicos. Enquanto estes se pautavam pela aplicao ao pas de paradigmas estrangeiros, de extrao liberal, demo-crtica ou socialista, Oliveira Vianna sustentava a necessidade de subordinar o idealismo a um militante realismo histrico e sociolgico.

    O resultado do esforo foi curioso. Oliveira Vianna foi um pessimista retrospetivo. A sua interpretao da histria colonial brasileira devastadora, posto que ali se constituiu um confortvel abrigo para o insolidarismo7

    6 Jos Murilo de Carvalho, aps reconhecer, em texto notvel, os mritos de Oliveira Vianna como historiador, sugere a presena de uma dimenso ficcional na obra do autor: H muito nela de conjectura, de preocupao poltica, de problemas do presente, de valores, de corao, ao lado do extenso uso de teorias de vria natureza(Carvalho, 1993, p. 17).7 O termo insolidarismo uma das marcas conceptuais de Oliveira Vianna. Refere-se condio original do homo colonialis dos primeiros ocupantes europeus do pas , imersos em enormes extenses de terra, sem conexes entre si, e sem vida urbana. Tal ecologia social teria favorecido a sedimentao de uma forma social com baixos graus de solidariedade, asso-ciativismo e vida cvica. O termo essencial para o argumento de que o Brasil, pela sua

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    e para a averso vida civil. No obstante, tal pessimismo histrico no ser-viu nele de base para o pessimismo poltico. Antes pelo contrrio, a hist-ria do pas teria apresentado em chave negativa a agenda necessria para a superao dos problemas nacionais. Tal perceo combinou-se com o papel prtico desempenhado por Oliveira Vianna como um dos principais intelec-tuais do regime implantado no Brasil a partir de 1930. Com efeito, de 1932 a 1940, Oliveira Vianna foi conselheiro jurdico do recm criado Ministrio do Trabalho. Tal como atesta Jos Murilo de Carvalho, foi o principal for-mulador da poltica sindical e social do governo at 1940 (Carvalho, 1993, p. 13). Entretanto, publicou dois importantes livros sobre assuntos direta-mente ligados s suas atividades no governo, e cujos ttulos so auto-eviden-tes: Problemas de Direito Corporativo (1938) e As Novas Diretrizes da Poltica Social (1939).

    da lavra de Oliveira Vianna um dos mitos fundadores do pensamento poltico brasileiro do sculo passado: a histria do pas representada pela ima-gem de um espao mais do que de uma experincia nacional marcado pelo insolidarismo e pela ausncia de laos sociais originrios e espontneos entre os seus habitantes. O brasileiro originrio, nessa constituio imagtica, um dendrfilo um ser que ama as rvores, que vive dentro delas ; um sujeito que no herdou a tradio comunitarista dos seus antepassados europeus e que no espao americano configura uma paisagem humana na qual as inter-aes so infrequentes e imperam a fragmentao e a subordinao ao espao natural:

    Esta a estruturao ecolgica, sob a qual evoluiu a nossa populao colonial. Caracte-rizada pela rarefao e adelgaamento da massa povoadora, pela disperso dos moradores por uma base territorial imensa e inculta, apenas percorrida calcante pede pelo povo-massa e carecente quase em absoluto de comunicaes espirituais, tinha que acabar, como acabou, por enformar o homem, criando-lhe um tipo humano adequado a essa disposio disper-siva, individualista e atomstica. E criou o homo colonialis, amante da solido e do deserto, rstico e antiurbano, fragueiro e dentrfilo (sic), que evita a cidade e tem o gosto do campo e da floresta [Oliveira Vianna, 1999, p. 135].

    Efeito mais do que previsvel dessa constituio antropolgica, para no falar de fatalidade, o suposto raquitismo cvico do personagem:

    dinmica social espontnea, no seria capaz de constituir uma comunidade cvica sensvel ao tema do interesse pblico. Tal pessimismo fundamental, em Oliveira Vianna, para a sustenta-o da necessidade da demiurgia e da inveno institucional.

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    O que a anlise histrica e social dessas populaes evidencia que nada h, nem na sua psicologia poltica, nem na sua organizao social, nem na sua estrutura antropolgica, nem no seu meio geogrfico, que lhes possa favorecer ou desenvolver a capacidade de luta cvica no terreno material [Oliveira Vianna, 1952, p. 335].

    O tema, por certo, no original ou mesmo nacional. Alberto Torres, outro importante intelectual brasileiro de incios do sculo passado, j havia indicado algo a respeito, antes que Populaes Meridionais do Brasil (1920) e muito antes que Instituies Polticas Brasileiras (1949), duas das mais importantes obras de Oliveira Vianna, tivessem consagrado esse realismo histrico-sociolgico que constitui um dos fundamentos mais duradouros do pessimismo nacional. Na Argentina, Ezequiel Martinez Estrada na sua monumental Radiografa de la Pampa, de 1933 ressaltou as dimenses do isolamento, do mundo sem experincia, da incomunicabilidade, da descontinuidade e do desmembra-mento, quando descreveu a Argentina profunda (Martinez Estrada, 1933). H, evidente, uma forte leitura pessimista e negativa a respeito da ao do espao sobre as interaes humanas, efeito ausente, por exemplo, em Jackson Turner quando pensou a respeito da fronteira norte-americana (Turner, 1996). Temos, pois, dois termos para possveis comparaes: uma ideia de fronteira como abismo do social (Oliveira Vianna e Martinez Estrada) e outra como aventura (Turner).

    A dendrofilia dos antepassados sociais brasileiros a evidncia histrica e arqueolgica do artificialismo dos idealismos constitucionais. Oliveira Vianna e antes dele Campos Salles, presidente da Repblica entre 1898 e 1902 e Alberto Torres, nas suas obras O Problema Nacional Brasileiro e A Organizao Nacional, um crtico acrrimo do constitucionalismo liberal, acusado de irrealismo sociolgico:

    Entre ns, no no povo, na sua estrutura, na sua economia ntima, nas condies par-ticulares da sua psiqu, que os organizadores brasileiros, os elaboradores dos nossos cdi-gos polticos vo buscar os materiais para as suas formosas e soberbas construes: fora de ns, nas jurisprudncias estranhas, nos estranhos princpios, nos modelos estra-nhos, nos exemplos estranhos, em estranhos sistemas que eles se abeberam e inspiraram [ Oliveira Vianna, 1939, p. 7].

    A natureza originria do pas interdita a sua reconfigurao como expe-rimento civilizatrio vazado no idioma e nos valores do constitucionalismo liberal. H no argumento de Oliveira Vianna o hlito de um naturalismo sociolgico que sugere que as condies reais do pas devem necessariamente servir de lastro e fundamento para a sua traduo jurdica e normativa.

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    Mais do que um apego a formas polticas autoritrias e antiliberais, poss-vel perceber no realismo de Oliveira Vianna uma forte afinidade com motivos centrais do conservadorismo, tal como descritos em ensaio seminal de Karl Mannheim: a ao conservadora sempre dependente de um conjunto con-creto de circunstncias (Mannheim, 1982, p. 108). A passagem para a letra e o lamento de Oliveira Vianna parece ser direta: Nenhum dos nossos constitu-cionalistas havia procurado cunhar em metal brasileiro, dentro dos moldes das nossas convenincias nacionais (Oliveira Vianna, 1930, p. 22).

    Argumento difcil, o de Oliveira Vianna. Ao mesmo tempo em que alude necessidade de realismo histrico e sociolgico, diz com clareza que o pas como experimento civilizatrio positivo deve ser criado por atos de demiur-gia pblica e estatal. Pessimismo da razo histrica e sociolgica, otimismo da vontade de demiurgia: posta est, com clareza, a precedncia do direito pblico sobre o direito privado, a exigir a prtica de um amlgama que com-bina realismo e voluntarismo. Na assuno de tal precedncia, esvai-se o pes-simismo. Em seu lugar, um voluntarismo normativo ocupa o proscnio, o que afasta Oliveira Vianna, e os autoritrios brasileiros em geral, de uma perspe-tiva puramente decadentista ou nostlgica a respeito da histria do seu pas.

    Noutros termos, trata-se de inventar um pas a partir dos factos, ou, mais do que isso, contra os factos. Ao fim e ao cabo, o realismo pretendido de Oliveira Vianna acaba por inserir-se na tradio utpica e voluntarista do direito pblico, que chama para si a tarefa de constituir um experimento de pas. A condio originria brasileira, enquanto experincia societria, insu-ficiente para fixar o seu destino enquanto Estado Nacional. Tal destino dar-se--ia por negao dos seus antecedentes histricos. A dificuldade do argumento inscreve-se exatamente nesta aporia: necessrio partir dos factos reais e da sua histria, para que os mesmo sejam reconfigurados em direo distinta da sua vigncia inercial.

    D O PR E D OM N IO D O DI R E I TO P BL IC O E C ON ST I T U C IONA L : C OM E N T R IO S S OBR E D OI S M A RC O S F U N DA M E N TA I S

    DA R E P BL IC A BR ASI L E I R A ( 1 9 3 2 E 1 9 8 8 )

    Contaminado ou no pelas fices de Oliveira Vianna e pelo seu pessimismo a respeito das capacidades auto-poiticas daquilo que Darcy Ribeiro designou como o povo brasileiro, o desenho normativo do pas ficou marcado pelo predomnio do direito pblico e constitucional. De certa forma, o diagnstico da sociabilidade incompleta ou do raquitismo cvico imps-se. No seria pelos efeitos sociolgicos espontneos da sua configurao histrica e pelas suas emanaes telricas que o pas poderia dispor de instituies modernas, de

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    um quadro institucional que no resultasse dos efeitos mecnicos da sociolo-gia poltica dos cls (Oliveira Vianna,1999). A reinveno do pas, aps 1930, ainda que resultante de uma revoluo que na sua origem civil ostentou a marca de liberal a Revoluo de Outubro de 1930, que ps fim Primeira Repblica, inaugurada em 1889 , indicou o embarque num roteiro que jamais viria a ser reescrito e reorientado e, creio, jamais o ser: o da opo pelo artif-cio e pela inveno institucional como forma de moldar o pas.

    A configurao do Brasil moderno, a partir da Revoluo de 1930, exigiu atos de demiurgia, emanados de intervenes no campo do direito pblico e constitucional: 1930 como evento o contraponto ao particularismo e autar-quia oligrquicas. Ainda que a cultura localista e coronelstica no tenha desa-parecido, uma nova ideia de espao pblico acabou por emergir, inscrita na fisionomia de um Estado unitrio que se imps nao, como sua condio de inteligibilidade e de consistncia. O Estado republicano brasileiro, tal como hoje o imaginamos, obra posterior a 1930.8

    O que desejo ressaltar, nas notas a seguir, que atos de demiurgia, que resultam da precedncia do direito pblico e constitucional na definio do que e deve ser o pas, possuem claros efeitos positivos e com larga durabi-lidade na configurao de uma tradio republicana e democratizante. No desconheo a engenharia institucional e constitucional regressiva e conserva-dora, tambm presente na histria republicana brasileira, mas penso que se trata, nesse caso, de efeitos de natureza datada e circunscrita, tal como os Atos Institucionais e manipulaes constitucionais emanados do regime de 1964. Quais dos seus institutos, afinal, acabaram rececionados pelo regime que lhe sucedeu, depois de 19859? Os atos de demiurgia no regressiva e democra-tizante aos quais me refiro so, por ordem: o Cdigo Eleitoral de 1932 e a Constituio de 1988.

    8 No desconheo o trao simplificador e um tanto arbitrrio destas marcaes na linha do tempo. Jorge Luis Borges, em luminoso ensaio, refere-se ao primeiro homem que teria sur-gido, no sem acrescentar que muitos o haviam antecipado (Borges, 1970, pp. 31-36). Hochman (1998) mostrou de modo persuasivo que as polticas sociais, na esfera do saneamento, desenvol-vidas durante a Primeira Repblica brasileira, indicaram um caminho de construo do Estado Nacional distinto dos padres do particularismo oligrquico e de rarefao da esfera pblica. Mas, mesmo levando em conta alguns antecedentes importantes, possvel considerar a Revo-luo de 1930 como ponto sem retorno na definio da tradio republicana brasileira qual aludo. A melhor narrativa a respeito da Revoluo de 1930 segue sendo a de Barbosa Lima Sobrinho (Sobrinho, 1933).9 Ainda que haja paralelismo entre os decretos-lei do regime de 1964 e as medidas provis-rias da Repblica de 1988, os fundamentos de ambos so bastante distintos.

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    demiurgia 1932

    Passada a Revoluo de Outubro de 1930, o primeiro exerccio de reinveno do pas, atravs do Decreto 19 459, de 6 de dezembro de 1930, materializou-se na constituio de uma comisso encarregada da reviso de todas as leis ento vigentes. Nada mais apropriado para uma Revoluo. Os analistas so quase unnimes em a localizar os germens do autoritarismo e do estatismo que por longas dcadas viria a assolar a experincia nacional brasileira. No entanto, interessante lembrar que numa das vinte subcomisses nas quais se dividia a grande comisso teve grande destaque a figura de Joaquim Francisco de Assis Brasil, veterano tribuno democrata gacho.

    A subcomisso em questo encarregou-se da Reforma da Lei e do Pro-cesso Eleitorais, e deixou como legado um conjunto de atributos centrais para a identidade institucional do pas, nos anos vindouros. Refiro-me ao seguinte conjunto, consagrado no Cdigo Eleitoral de 1932, simbolicamente promul-gado como uma espcie de refundao republicana, no dia 24 de fevereiro, 41. aniversrio da promulgao da primeira Constituio republicana brasileira, como que a completar a obra de 1891: voto proporcional, sufrgio feminino, voto secreto e justia eleitoral.10 Assis Brasil, ento ministro plenipotencirio na Argentina, exultou com a notcia da emisso do Decreto 21 076:

    Nunca duvidei da decretao da lei eleitoral. Entretanto, exulto vendo legalizada a maior e mais fundamental reforma necessria remodelao da Repblica. Temos um sistema eleitoral mais racional e prtico at hoje existente ou proposto com independncia de ju-zes. Com o que vir logo, ficar completo o ideal democrtico inspirador da revoluo e o povo ficar apto para lavrar o seu prprio destino e ter o governo que merece.11

    A obra viria a ser rececionada pela Constituio de 1934, com a adio do voto obrigatrio (a incorporao dos analfabetos, ainda teria que esperar quase 50 anos, posto que introduzida com a reforma constitucional de maio de 1985, aps o fim do regime de 196412).

    10 Para uma tima anlise da reflexo de Assis Brasil e do prprio Cdigo de 1932, v. Buarque de Hollanda (2009 e 2012).11 Telegrama de Assis Brasil, publicado em A Federao, ano xlix, # 48, 01-03-1932, apud, aita (2006).12 Refiro-me emenda constitucional 25, de 15/05/1985, que realizou uma das mais abran-gentes reformas polticas da histria recente do pas. Alm da extenso do direito de voto aos analfabetos, o seu artigo 1. restabeleceu o princpio das eleies diretas para presidente e vice--presidente e eliminou as restries livre organizao partidria. O artigo 2. extinguiu a figura dos municpios de segurana nacional e neles restabelece eleies diretas para todos os pos-tos. O artigo 3. concedeu representao poltica nacional ao Distrito Federal. O artigo 8.

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    Edgard Costa, ao analisar o Cdigo de 1932, no exagerou ao afirmar que a revoluo poltica de 1930 deixou, inegavelmente, como a sua maior e melhor conquista, a reforma do sistema eleitoral, iniciada com aquele instituto (Costa, 1964, p. 53). A interpretao de um dos mais importantes constitucio-nalistas brasileiros, Pontes de Miranda, indicaria, ainda, o papel preponde-rante do direito pblico e constitucional no desenho do pas: o verdadeiro significado sociolgico da Revoluo de 1930 e da Constituio de 1934 foi o de unificar o processo e o direito eleitoral material, enfeixando-o nas mos do Poder Legislativo quanto legislao e da Justia Federal quanto aplicao (Santos, 1937, p. 133).

    Coube ao Cdigo de 1932 a inveno do eleitorado brasileiro como figura de um direito pblico especfico. A criao de um ramo especializado da Justia Federal a Justia Eleitoral , com ramificaes estaduais, indica a precedncia do direito na configurao do quadro das instituies elei-torais do pas. A introduo do voto obrigatrio, em 1934, compe bem a pintura: fixar a participao eleitoral como dimenso compulsria do vn-culo dos cidados entre si e com a vida pblica, num quadro regulado por regras jurdicas claras, aplicadas por um ramo especfico do judicirio, em princpio no afetado pelas contendas que deve regular. Se verdade que a Carta de 1934 introduziu no ordenamento constitucional o princpio da representao corporativa e funcional, no menos notvel que tenha tam-bm institudo o voto obrigatrio. Ao fim e ao cabo, foi este ltimo legado que acabou fixado como clusula permanente na tradio republicana bra-sileira.

    A reforma poltica, introduzida pelo Cdigo de 1932, ainda que os seus efeitos de curto prazo tenham sido mitigados pelos acontecimentos imedia-tos a no-realizao de eleies presidenciais diretas em 1934 e o golpe de Estado de 1937, que inaugurou o Estado Novo brasileiro , foi a primeira a indicar uma clara direo democratizante para o pas, em 110 anos de histria independente. Com efeito, a grande reforma eleitoral feita no Brasil, nos tem-pos anteriores ao Cdigo de 1932, fora introduzida, durante o regime monr-quico, em 1881, pela Lei Saraiva que, a pretexto de estabelecer eleies diretas para a Cmara dos Deputados, eliminou os votantes de primeiro grau e man-teve o censo alto para os de segundo, o que implicou em forte diminuio da massa do eleitorado, a cerca de 10% do original.

    eliminou o princpio da fidelidade partidria, introduzido pela emenda constitucional de 1969 (art. 35., item v) para fins de perda de mandato, e modificou o sistema eleitoral intro-duzido pela emenda constitucional 22, de 1982, que introduzira o sistema distrital misto. Pela emenda 25, o sistema manteve-se como proporcional, na tradio iniciada em 1932.

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    A regulao introduzida em 1932, e rececionada pela Constituio de 1934, ao contrrio, possua elementos claramente incorporadores. evidente que uma certa confuso se deveria seguir a isso. Com efeito, em maio de 1935, o presidente da Repblica, em mensagem ao legislativo, reclamava sem disfarce: basta-se dizer que, em sete meses, de outubro de 1934 a maio de 1935, est ainda por findar o processo das eleies gerais (Costa Porto, 2000, p. 129).

    Mais do que atentar para a complexa e original ourivesaria presente na definio legal do voto proporcional, importa considerar a filosofia poltica que constituiu a iniciativa de 1932, rececionada pelas Cartas de 1934, 1946 e 1988: tal filosofia poltica, a um s tempo, reconhece imperativos realistas e. g., a necessidade de uma justia especfica e federal para garantir a verdade eleitoral contra a manipulao localista e indica a opo por um processo de incorporao eleitoral menos vulnervel aos mecanismos oligrquicos.

    de demiurgia, portanto, que estamos a falar, diante desse exemplo de criao institucional. Em notao distinta, no que diz respeito a uma hist-ria natural do eleitorado brasileiro, so os passos dados no domnio do direito pblico e constitucional que se apresentaram como mais relevantes do que a presena de movimentos independentes e demandas sociais por incorporao eleitoral.

    demiurgia 198813

    As instituies e as regulaes que envolveram a criao da poltica social e a organizao do mundo do trabalho, nas dcadas de 30 e 40 do sculo pas-sado, representam o que talvez tenha sido a mais forte evidncia brasileira de demiurgia institucional e constitucional. Luiz Werneck Vianna, em livro clssico, fez-lhe anlise inspirada e incontornvel (Werneck Vianna, 1976). Se voltarmos letra de Oliveira Vianna, um dos intelectuais desse ato maior de demiurgia, a arquitetura da legislao social e trabalhista pode ser perce-bida como a resposta mais adequada ao passivo sociolgico nacional. O dfice crnico de sociabilidade e solidariedade, sugerido nas interpretaes daquele autor, teria fixado a urgncia da inveno de um macro artifcio capaz de con-figurar identidades e obrigaes; um marco de agregao e de configurao nacionais que no resultou da dinmica espontnea da vida social.

    O que desejo aqui, contudo, evidenciar algo de extrao mais recente e portador de combinao nova e singular na tradio republicana brasileira, presente no experimento da Carta de 1988. Ali, a par da tradicional demiurgia constitucional alis, inerente a qualquer processo de elaborao de consti-tuies (mesmo as mais minimalistas) sentir-se-iam os efeitos de alteraes

    13 Retomo, nesta seco, os termos da anlise desenvolvida em Lessa (2008a).

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    fundas na tradio do direito constitucional. Tais alteraes fizeram com que a Constituio deixasse de ser pensada como um pacto ou um arranjo de con-solidao de experincias e acordos substantivos pregressos, para se afirmar como um horizonte normativo. Em outros termos, o texto constitucional revela-se como roteiro para uma histria do futuro e, como tal, um esforo de fixao de fices a respeito do que o Brasil deve ser enquanto pas.

    A identidade bsica e normativa da Constituio de 1988 deriva de um sis-tema de crenas normativas e institucionais produzidas e veiculadas por uma corrente do direito constitucional brasileiro, que pode ser designada como constitucionalismo democrtico.14 Um dos seus porta vozes mais importantes, Jos Afonso da Silva, esteve presente no processo de elaborao constitucional, desde a Comisso Afonso Arinos, encarregada pela Presidncia da Repblica, em 1985, de elaborar um anteprojeto para ser apresentado Assembleia Cons-tituinte a ser eleita em novembro de 1986. O prprio Jos Afonso da Silva foi autor do pr-anteprojeto, se assim posso cham-lo, apreciado pela referida Comisso. Uma das marcas mais fortes da presena desse jurista na elaborao da Carta de 1988 pode ser detetada na semelhana entre o prembulo do ante-projeto que elaborou, o que veio a ser proposto pela Comisso Arinos e o, por fim, adotado na prpria Constituio (Cittadino, 1999, p. 44). Jos Afonso da Silva atuou, ainda, durante o Congresso Constituinte como o principal asses-sor direto do lder do pmbd15, o senador Mario Covas.

    Trs aspetos fundamentais indicam a presena do chamado constituciona-lismo democrtico no processo, desde os anteprojetos de Jos Afonso da Silva e da Comisso Afonso Arinos:

    i) A definio de referncias ticas e metapolticas como fundamentos da ordem jurdica, tal como revela a definio do Estado brasileiro como Estado Democrtico de Direito, cujo objetivo a dignidade dos brasilei-ros (anteprojeto Jos Afonso da Silva) ou a promoo da pessoa (ante-projeto Comisso Afonso Arinos).

    ii) A criao e a fixao constitucional de um sistema de direitos consti-tucionais: um conjunto de direitos compreendidos no apenas como direitos negativos e de proteo dos indivduos, mas como liberdades

    14 O termo foi empregado por Luis Werneck Vianna em Werneck Vianna (2002) e por Cittadino (2002). A expresso adotada nesse ltimo texto constitucionalismo democrtico substitui, com vantagens, a de constitucionalismo comunitrio, adotada em excelente e incontor-nvel livro, da mesma autora (Cittadino, 1999).15 Partido do Movimento Democrtico Brasileiro, herdeiro do mdb (Movimento Democr-tico Brasileiro), partido de oposio legal ao regime militar. Na Constituinte eleita em 1986, o pmdb foi o partido largamente maioritrio, com mais de metade das cadeiras.

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    positivas, entre as quais sobressaem os tradicionais direitos de partici-pao poltica, associados a obrigaes positivas do Estado em relao aos cidados;

    iii) A caracterizao do Supremo Tribunal Federal como rgo de carter poltico, ao qual se atribui a tarefa fundamental da jurisdio e da con-cretizao das normas constitucionais.

    Contra a corrente positivista, ento hegemnica no campo do Direito Constitucional, o constitucionalismo democrtico buscava uma referncia tico-moral para operar como fundamento da ordem jurdica. Nessa medida, recusa uma vertente exclusivamente liberal, marcada tanto pela defesa de um individualismo utilitarista como por uma conceo negativa de liberdade. Ao contrrio, tal fundamento tico-moral implicava a definio das bases de um constitucionalismo societrio e comunitrio, que confere prioridade aos valores da igualdade e da dignidade humanas (Siqueira Castro, 2005).16

    Do ponto de vista do contedo dos valores consagrados no prembulo e no ttulo dedicado aos direitos e garantias fundamentais, do texto constitucional, os constituintes, linguisticamente vinculados prosdia do direito constitu-cional, acabaram por fixar na Constituio orientaes h muito introduzidas pela semntica da filosofia poltica. Em termos concretos, a Constituio, do ponto de vista daqueles valores, uma sntese de decantaes, na qual esto vigorosamente presentes as vozes da tradio democrtica pelo elogio liber-dade positiva e pelo alargamento das formas de interveno poltica, cvica e social dos cidados , da tradio liberal pelas liberdades clssicas garantidas e pela preocupao com os indivduos como sujeitos de direitos e da tradio igualitria e, por que no diz-lo, socialista democrtica.

    A carga valorativa do prembulo da Constituio de 1988 pode melhor ser avaliada se a comparamos com parte do que a precedeu. Com efeito, o seu correspondente na Constituio de 1967 dizia simplesmente:

    O Congresso Nacional, invocando a proteo de Deus, decreta e promulga a seguinte Constituio da Repblica Federativa do Brasil.17

    16 A expresso constitucionalismo societrio e comunitrio foi utilizada por Carlos Roberto de Siqueira Castro (2005).17 Cf. A Constituio do Brasil de 1988 Comparada com a Constituio de 1967, So Paulo, Price Waterhouse, 1989, p. 147. O prembulo de 1946 no muito mais extenso ou denso do que o de 1967: Ns, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteo de Deus, em Assemblia Constituinte para organizar um regime democrtico, decretamos e promulgamos a seguinte constituio dos estados unidos do brasil. De qualquer modo, notvel a supresso do propsito de organizar um regime democrtico.

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    O contraste com o prembulo de 1988 gritante.

    Ns, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assemblia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a soluo pacfica das controvrsias, promulgamos, sob a proteo de Deus, a seguinte cons-tituio da repblica federativa do brasil.18

    Em primeiro lugar, a designao de autoria. No uma instituio o Con-gresso Nacional , mas representantes do povo brasileiro, reunidos com o propsito de instituir um Estado Democrtico. Tal finalidade, contudo, no se esgota no desenho de instituies e de formas de organizao poltica e administrativa. H, de modo claro, a ideia de que o Estado Democrtico, enquanto arranjo institucional, se justifica pelos seus propsitos de natureza substantiva: [] assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a jus-tia[]. Constituem-se, ainda, como itens de uma forma de sociedade que se quer implantar: uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fun-dada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a soluo pacfica das controvrsias[]. Em termos resumidos, o prem-bulo estabelece a autoria da Carta, os seus propsitos mais gerais e indica a forma da sociedade que quer tornar vigente, como condio material para os seus propsitos.

    O comentrio da edio da Constituio aqui utilizada preciso: o prem-bulo serve de instrumento interpretao dos dispositivos inseridos na Carta Magna [] nessas condies, no lcito interpretar qualquer norma consti-tucional em desacordo com o prembulo19. Trata-se de um modo inequvoco de afirmar que o prembulo importa para o desenho da Constituio e do tipo de ordenamento social que ela preside. Em outros termos, um equvoco hiper-realista frequentemente praticado pelos institucionalistas , conside-rar o prembulo como pea retrica e vazia.

    O passo seguinte da fabricao constitucional do mundo consiste no ttulo dedicado aos direitos e garantias fundamentais, composto pelos quatro pri-meiros artigos da Constituio. Trata-se, antes de tudo de definir simplesmente o que o Brasil. Mais uma vez, o laconismo da Carta de 1967 largamente

    18 Idem, p. 147.19 Ibidem, p. 147.

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    ultrapassado. No seu primeiro artigo, aquela Carta definia o pas nos seguintes termos:

    O Brasil uma Repblica Federativa, constituda sob o regime representativo, pela unio indissolvel dos Estados, Distrito Federal e dos Territrios.

    Nos novos termos, o conceito de pas redefinido. A Repblica Federa-tiva do Brasil passa a ser o sujeito do artigo e apresentada como formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal. tal apresentao descritiva acrescenta-se o modo pelo qual ela se constitui: cons-titui-se em Estado Democrtico de Direito, dotado de cinco fundamentos apresentados numa srie de incisos de igual quantidade: soberania (i), cidada-nia (ii), dignidade da pessoa humana (iii), valores sociais do trabalho da livre iniciativa (iv) e o pluralismo poltico (v).20

    Trata-se de uma reconfigurao forte da tradio imediatamente anterior. Suprime-se o atributo regime representativo como aquilo que constitui a Repblica e acrescenta-se, em seu lugar e com a mesma funo textual, nada menos do que o conceito central da Constituio, a saber, o de Estado Demo-crtico de Direito.

    Dois aspetos devem ainda ser considerados para que tenhamos uma ideia mais definida do que aqui designo como demiurgia 1988. Em primeiro lugar, h que mencionar a criao, no texto constitucional, de mecanismos prticos que permitem a operao e a precedncia dos contedos do prembulo e do ttulo i (direitos e garantias fundamentais) na interpretao de matrias consti-tucionais e nas suas aplicaes concretas. Em seguida, importante considerar os efeitos da forma e do contedo da Constituio sobre as formas de ao cvica e social.

    O primeiro aspeto diz respeito capacidade de decantao da Consti-tuio sobre a experincia social. Tal decantao ser afetada pelo mbito da interpretao qual a Constituio est submetida: quanto maior o espectro de intrpretes autorizados, tanto mais largas as possibilidades de interpelao, atribuio de expectativas e, ao fim e ao cabo, de constitucionalizao da vida. Trata-se, com efeito, de uma dimenso estratgica da interpretao, como condio de decantao do texto constitucional. Este parece ser o eixo fun-damental de inscrio no texto constitucional de uma inovadora e poderosa perspetiva, contida na expresso comunidade de intrpretes. Tal como assinala Peter Hberle, seu criador:

    20 A ideia de fundamento, tal como definida, no est presente na Carta de 1967.

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    [] no processo de interpretao constitucional esto potencialmente envolvidos todos os rgos estatais, todas as potncias pblicas, todos os cidados e grupos, no sendo pos-svel estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intrpretes da Constituio [Hberle, 1997, p. 13].

    A ideia de comunidade de intrpretes traduz-se no plano prtico pela cria-o de um conjunto de institutos cuja finalidade a de superar a distncia entre o sistema de direitos assegurados pela Constituio e o mundo da vida. Na listagem abaixo, tais institutos aparecem enumerados, assim como os sujei-tos dotados da prerrogativa de empreg-los, e que, por esta via, compem a comunidade constitucionalmente reconhecida de intrpretes:

    Mandato de segurana coletivo (art. 5.o, lxx, b)21: podem ser impetra-dos por partidos, organizaes sindicais, entidades de classe, associa-es legalmente constitudas, na defesa de seus associados;

    Ao popular (art. 5.o, lxxiii): qualquer cidado parte legtima para postular a anulao de ato lesivo ao patrimnio pblico ou de entidade na qual o Estado participe;

    Denncia direta ao tcu Tribunal de Contas da Unio de irregulari-dades (art. 74.o, p. 2.): qualquer cidado, partido poltico, associao ou sindicato;

    Mandato de injuno (art. 5.o, lxxi) sempre que a falta de norma regulamentadora torne invivel o exerccio de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes nacionalidade, sobera-nia e cidadania22: pode ser impetrado por qualquer cidado, grupos, associaes, partidos, sindicatos;

    Ao de inconstitucionalidade (art. 103): pode ser proposta pelo pre-sidente da Repblica, pelas mesas do Senado Federal, da Cmara de Deputados e das Assembleias Legislativas, pelos governadores de Estado, pelo procurador-geral da Repblica (nico designado para tal forma pela Constituio de 1967), pelo Conselho Federal da oab Ordem dos Advogados do Brasil , por partidos polticos com repre-sentao no Congresso Nacional e por confederaes sindicais ou entidades de classe de mbito nacional.

    21 Ao contrrio da Constituio de 1967 que restringia o mandato de segurana proteo de direito lquido e certo, a Carta de 1988 consagra o instituto do mandato de segurana cole-tivo.22 Cf. A Constituio do Brasil de 1988 Comparada com a Constituio de 1967, op. cit. p. 190.

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    O segundo aspeto j mencionado diz respeito s implicaes da forma e do contedo da Constituio sobre os padres de ao cvica e social. Como pode ser visto de modo claro, o texto constitucional de 1988 recusa uma ontologia do social fundada em premissas antropolgicas e ticas de corte utilitarista. Em seu lugar, emerge uma teoria da agncia democrtica com tinturas novas. Em outros termos, trata-se de uma ideia de democracia como acesso a direitos constitucionais dotados de implicaes positivas sobre a configurao da forma e da substncia da vida social. O cidado democrtico, nessa nova chave, um sujeito constitudo por direitos, cuja vigncia plena exige a sua ateno cvica e as suas energias polticas e cognitivas para pr em movimento mecanismos de jurisdio constitucional.

    Embora a Constituio no tenha sido restritiva no que diz respeito orga-nizao partidria e representao poltica em geral, a perspetiva de concre-tizao dos valores constitucionais parece no transitar por aqueles domnios. A Constituio reveste-se de uma aura emancipatria que pretende repre-sentar a vontade geral e definir o horizonte da sua felicidade pblica. O que emerge uma forma de representao simbolizada nos valores da Carta e tor-nada funcional pela ao dos operadores do sistema de justia. A demiurgia inscrita na Constituio exige, ainda, a ao contnua de diversos demiurgos de segunda ordem, os operadores do sistema de justia.

    A demiurgia 1988 partiu tambm de uma fico a respeito da condio originria brasileira. Ao faz-lo, pela mo dos constitucionalistas democrti-cos, afastou-se de duas tradies que antes haviam imposto a sua presena na histria republicana. Tradies distintas, mas que por vezes se aproximaram e produziram efeitos combinados.

    Refiro-me tanto j mencionada condio insolidria, aqui simbolizada por Oliveira Vianna, quanto que se afirma ao longo dos anos 50, em torno da imagem do povo brasileiro e da sua particularidade nacional. Um rico processo de acumulao, durante aquela dcada, procurou dar expresso e sentido aos processos de incorporao das massas e de definio da identi-dade nacional, num quadro mais amplo de modernizao social e econmica. Traos dessa bela trajetria podem ser encontrados na histria do Instituto Superior de Estudos Brasileiros iseb e na obra de intelectuais do porte de lvaro Vieira Pinto e Guerreiro Ramos. Darcy Ribeiro, nos anos 80, escreveu--lhe a sntese, no seu incontornvel O Povo Brasileiro (Ribeiro, 2005).

    No plano da poltica no difcil perceber a associao entre tal tradi-o e a linhagem que decorreu de Getlio Vargas e que nos levou, em 1961, a Joo Goulart, deposto pelo golpe de 1964. O ex-governador do Rio Grande do Sul (1958-1962) e do Rio de Janeiro (1982-1986 e 1990-1994) Leonel Brizola representou o esforo obstinado em mant-la viva e operante, para alm dos

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    limites do regime de 1964 e na prpria Repblica de 1988. O horizonte dessa tradio mobilizou, durante todo o trajeto, a imagem de uma Repblica nacio-nal, popular, e com forte contedo decisionista.

    A condio originria da qual parte a Constituio de 1988 evita tanto a maldio do insolidarismo como o reconhecimento de algo imanente na experincia brasileira e condensado na expresso povo brasileiro. Em outros termos, nem maldio em busca do seu avesso, nem ontologia em busca de expresso direta e verdadeira. O que se trata de partir de um conjunto de definies de corte deontolgico, mais do que ontolgico ou arqueolgico, que toma como fundamento uma condio originria percebida como um dficit de direitos. Em outros termos, a experincia pregressa a 1988 percebida como deficitria daquilo que a Constituio de 1988 viria a inscrever no futuro. Isso diz do anacronismo necessrio de toda a demiurgia forte. A ncora de rea-lismo presente nos desenhos possveis da vida futura repousa sobre a fico da falta: falta-nos o que ainda vir; o que deve vir. Assim, inveno e reparao andam a par.

    A condio brasileira pr-1988 , assim, marcada por um duplo passivo, a incidir nos campos poltico e social. A falta de liberdade poltica e o passivo social so o negativo sobre o qual a nova ordem constitucional se viria a ins-tituir. A forma de com ele lidar reinventa os brasileiros como sujeitos de direi-tos e inscreve na sua experincia ordinria, a um s tempo, um horizonte de valores e a perspetiva da reparao. O Estado o depositrio do passivo social, a Constituio a sua norma e metrificao. A demiurgia 1988 manifesta-se, assim, numa Constituio que se impe como uma acelerao no campo dos valores. No sero os meandros da poltica ordinria enfim liberada que produziro em tempo hbil os efeitos igualitrios exigidos pela condio ori-ginria.

    A acelerao consiste em partir de uma marca positiva, numa escala na qual a neutralidade de valores ocuparia a posio zero. O que a experincia errtica e imprevisvel da poltica poderia ou no vir a inscrever na vida social, em funo de correlaes de fora no campo eleitoral, impe-se agora partida como momento originrio de uma nova experincia republicana, na qual se manifesta e se fixa de modo inequvoco um efeito esquerda. Falo, aqui, do que talvez tenha sido a maior vitria histrica da esquerda brasileira: fixar no centro da tradio republicana, pela letra da Constituio e por suas clusu-las ptreas, alguns dos seus valores fundamentais.

    Impe-se, de modo claro, em tal experincia, a precedncia tico-moral e macro-poltica da Constituio. Esta, pelo seu desenho, arrasta consigo a cen-tralidade de uma comunidade de intrpretes, operadores reais do texto cons-titucional e instigadores permanentes de sua pregnncia no mundo da vida.

  • DEMIURGIA E INVENO INSTITUCIONAL NA TRADIO REPUBLICANA BRASILEIRA 529

    Tal comunidade, embora no exclua os atores tpicos do universo da represen-tao poltica v. g., partidos e legislativos no se limita a eles. Ultrapassa--os em larga medida. Com efeito, o aprendizado cvico exigido pelo marco de 1988 parece exigir um tipo de ativismo social que dispensa os meandros e os rituais da vida partidria e da representao poltica. A obra de 1988, ainda que tenha deixado intactos os institutos clssicos da representao poltica, introduz uma no usual coalizo doutrinria entre um liberalismo forte (pela linguagem dos direitos, mais do que pela representao), um vento democra-tizante (pelas possibilidades de acesso direto ao mundo pblico), uma conce-o de Estado reparador do passivo social e uma no desprezvel componente decisionista, presente nas largas atribuies conferidas pela Constituio ao poder executivo.

    C OM E N T R IO F I NA L

    No mesmo Discurso, j aqui mencionado, Rousseau decretou que os estabele-cimentos humanos parecem, primeira vista, fundamentados em montes de areia movedia. Se perguntarmos sobre os fundamentos dos valores apresen-tados como fundamentos da demiurgia constitucional de 1988 talvez encon-tremos algo assemelhado a montes de areia movedia. Ali, como em vrios momentos da histria brasileira pregressa, partiu-se de fices a respeito da condio originria do pas. Se h razes histricas ou fundamentos materiais para tais fices, no sei dizer. possvel mesmo que aqui, como em tantos outros assuntos humanos, o acaso, pace Tocqueville, tenha feito das suas. Seja como for, a Carta de 1988, assim como o Cdigo de 1932, so inteligveis pelos seus efeitos, pelas marcas que inscreveram e seguem a inscrever na experincia republicana brasileira.

    As novidades substantivas presentes na Carta de 1988, assim como a ori-ginalidade do seu ponto de partida, no obliteram o facto de que a tradio de precedncia do direito pblico e constitucional na configurao do pas, marca de 1932, ali esteve presente de modo exemplar. Em 1988, assim como em 1932, parece ter operado uma recusa em ver no futuro do pas a imagem daquilo que nos teramos tornado se tivssemos sido abandonados a ns mesmos, em uma transformao do sonho de Rousseau em pesadelo. Para o bem, ou para o mal, segue-se, no Brasil, a inventar o pas contra os factos. Trata-se, mesmo, de um pas contra-factual.

  • 530 RENATO LESSA

    BI BL IO G R A F IA

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