Resenha - Depois Do Grande Encarceramento

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  • 7/25/2019 Resenha - Depois Do Grande Encarceramento

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    Revista EPOS; Rio de Janeiro RJ; vol2, n1, janeiro-junho de 2011; ISSN 2178-700X

    RESENHA DA OBRA

    DEPOIS DO GRANDE ENCARCERAMENTO,1por Davi de Paiva Costa Tangerino

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    O livro nasce de seminrio organizado no Rio de Janeiro, em cuja

    sesso de abertura Nilo Batista sintetiza o eixo comum s intervenes: a

    reao dos diversos saberes diante da assustadora expanso dos sistemas

    penais no capitalismo de barbrie, que engendrada, via poltica criminal, no

    seio desse modelo de capitalismo, como j afirmavam Rusche e Kirchheimer.3

    Nesse marco, o Estado penal (Wacquant)4 tambm h de ser lido como uma

    forma particular de organizao poltica em um capitalismo neoliberal que no

    acredita na interveno do Estado na economia como fundamental para a

    reduo de desigualdades, cujo recurso, portanto, de enfrentamento das

    desigualdades s pode ser dar por meio da ameaa constante do

    encarceramento e do isolamento em massa de populaes marginalizadas,

    nas palavras de Abramovay (O Grande encarceramento como produto daideologia (neo)liberal). Vera Malaguti (Depois do grande encarceramento)

    identifica como lcus desse momento capitalista brasileiro a dcada perdida de

    1980 e denuncia dois movimentos intelectuais que tm grande importncia

    para ns, no capitalismo de barbrie: a desconstruo do Estado de bem-estar

    social em prol da administrao penal dos rejeitos humanos; e a introduo e

    difuso sistemtica e coordenada do imaginrio e de tecnologias norte-

    americanas de segregao social. A articulao desses movimentos engendrauma demanda crescente pelo controle dos que esto fora do mercado do

    trabalho, somada a uma cultura policial e prisional truculenta e genocida, cuja

    ampla aceitao social denominada pela autora de adeso subjetiva

    barbrie. Maurcio Martinez, mais adiante na obra, dialoga com essa ideia,

    problematizando a formao desse discurso em relao ao Estado

    democrtico, desconstruindo a mxima de que vox populi vox Dei,

    explicitando as amarras do Judicirio pela opinio pblica, e denunciando a(falsa) tenso entre os maus inimigos versus a maioria de bons e fiis

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    (Populismo punitivo, maiorias e vtimas). O final da esteira punitiva seria o

    sistema carcerrio, que recebe os inimpregveis (Nilo Batista), populaes

    marginalizadas (Pedro Abramovay) ou a canalha (Vera Malaguti Batista).

    sob essa perspectiva que Vera Andrade (Horizonte de projeo do

    controle penal no capitalismo globalizado neoliberal) apresenta sua

    contribuio obra, sem, contudo, se omitir em apontar a existncia de

    contradiscursos e movimentos de resistncia tericos e prticos, teorticos e

    militantes, de saberes e fazeres, institucionais e formais, proveniente do prprio

    Estado e da Comunidade. a eles que se d voz nos captulos que seguem

    Introduo.

    A Amrica Latina como Instituio de Sequestro. Os dados

    trazidos pelos autores desse captulo confirmariam o diagnstico apresentado

    na Introduo. O mexicano Tenrio Tagle (A experincia punitiva na condio

    ps-moderna) aponta como a priso no Mxico vem cumprindo sua misso no

    marco do capitalismo de barbrie: tinha, em 1990, 1 habitante preso para cada

    1.000 soltos (1:1000), nmero que saltou para 1:629 em 2000, atingindo 1:489

    em 2008. Na outra ponta do sistema, a ps-modernidade e sua informalizao

    da justia (Boaventura de Souza Santos)5 fazem com que 82% da polcia de

    segurana da Cidade do Mxico seja privada. Tambm Gabriel Anitua (A

    experincia punitiva na condio ps-moderna) revela o incremento das cifras

    no Brasil: em 1992, cerca de 115 mil presos (74/100.000 habitantes); em 2007,

    com um aumento de 269%, saltou para 422.590 presos (220/100.000

    habitantes). Lola Aniyar de Castro (Matar com a priso, o paraso legal e o

    inferno carcerrio: os estabelecimentos concordes, seguros e capazes)retrata, por fim, a situao venezuelana, que, embora tenha nmero

    relativamente baixo de detentos (cerca de 20 mil), conta com um altssimo

    ndice de homicdios intramuros: 20,6 para cada cem mil reclusos, em

    comparao ao de 0,6 observado nos dados consolidados para Argentina,

    Brasil, Mxico e Colmbia somados. Massivo Pavarini trata precisamente do

    encarceramento de massa (idem), estimando haver cerca de 15 milhes de

    pessoas presas no Mundo, o que perfaria ndice mundial de cerca de 200

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    presos /100.000 habitantes. Esse nmero teria crescido 45% em 15 anos, na

    mdia, e em mais de 80% nos seis pases mais populosos da Amrica.

    Interessantemente os grandiloquentes nmeros carcerrios no

    dissipam o discurso da impunidade. Eugenio Zaffaroni, (Delinquncia urbana e

    vitimizao das vtimas) explora o uso das vtimas da delinquncia urbana,

    violenta, como meio til a reforar os discursos punitivistas conservadores,

    transformando-os em heris em uma trama sem faanhas ou conquistas, uma

    premiao pstuma que serviria muito menos a homenagear do que

    propriamente insuflar novos movimentos de incriminao e de reforo dos

    discursos punitivos e justificadores da violncia estatal. compreensvel,

    portanto, nesse cenrio, que pululem discursos de anomia e impunidade, j

    que nunca se pune o suficiente e nunca se extirpa o mal do convvio

    (imaginrio) social, pano de fundo do captulo O pai como lei e a lei como pai.

    Helena Bocayuva (Me, pai e lei: um caminho por alguns clssicos da literatura

    brasileira) localiza representaes literrias que vocalizam o sentimento do

    Brasil como terra sem lei, debruando-se sobre o tema dos vcios de educao,

    termo empregado para qualificar a transmisso intergeracional de vcios

    morais. Nos dizeres de Joel Birman (O pai como lei e a lei como pai), a lei

    substituiria o vazio deixado pela morte de Deus, marcada pela tenso entre

    ser rfo da proteo divina, por um lado, e onipotentes, por outro. As

    normas, mediadas pelas cincias humanas, serviriam para colocar limites s

    aes humanas, em espaos sociais complexos. A transgresso estaria

    sempre latente, j que nada nos impede de fazer o que quer que seja,

    deixando-nos ento deriva, em uma perspectiva existencial. Tal qual a

    modernidade entra em crise, tambm assim a representao do pai como lei,cuidadosamente exposta por Nilo Batista, em que se identifica com clareza a

    coincidncia do pai com a punio: despir o pai de poder punitivo, deste

    arcaico fardo que lhe foi imposto, pode ser um ponto de partida para afastar

    dele, e da lei, a imposio de sofrimento no qual se confundiram (A lei como

    pai). Com efeito, Regina Neri (Uma reflexo sobre a concepo de lei na

    Psicanlise: o pai como lei e a lei como pai) explica ser problemtico o

    discurso de resgate e fortalecimento da figura do pai, oferecendo, com apoioem Agamben,6um resgate da vida nua (zoe) versus a vida qualificada (bios), a

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    vida do ser poltico. Empregando o conceito de forma de vida com outro

    paradigma de concepo de vida poltica, introjeta na vida nua a marca de

    uma possibilidade, de um ser de potncia que pode escolher. Abre-se, a, um

    caminho psicanaltico para pensar que a soluo paterna no a nica

    relao que os sujeitos podem ter com a lei, de modo que se torna possvel

    pensar em outra concepo de subjetividade e de cultura.

    Modalidades de crcere. A crise tambm est presente no campo das

    instituies totais. Accio Augusto (Para alm da priso-prdio: as periferias

    como campos de concentrao a cu aberto) joga luzes sobre o papel de

    priso que desempenha o gueto. Em sentido convergente, Ceclia Coimbra

    (Modalidades de aprisionamento: processos de subjetivao contemporneos e

    poder punitivo) explora a ideia de subjetividade moralista-policialesca-punitiva-

    paranoica, aspecto complementado, no marco psicolgico, por Cristina Rauter

    (Discursos e prticas psi no contexto do grande encarceramento), para quem

    a psiquiatria, a psicanlise e a psicologia no se aproximam do Direito penal

    para humaniz-lo, porm para introduzir novos modos de punir, a exemplo

    da psiquiatria biolgica (preterida dinmica) cuja oferta ao Direito penal to

    somente os transtornos de personalidade, em especial o antissocial, em

    substituio psicopatia.

    No captulo Cultura jurdica e a questo criminal no Brasil

    contemporneo, Gizlene Nader (Cultura jurdica, cultura religiosa e questo

    criminal) adicionou ao conjunto de variveis a serem levadas em considerao

    o componente religioso na formao da cultura jurdica, trabalhando o

    processo de ideologizao que d suporte intelectual e afetivo aos sentimentospolticos que vm possibilitando o processo de desumanizao, referido

    desqualificao moral (e jurdica) das classes subalternas. A varivel mdica

    trazida baila por Salete Oliveira (Psiquiatrizao da ordem: neurocincias,

    Psiquiatria e Direito), que problematiza pequenas conexes entre os atuais

    investimentos na neurocincia e suas articulaes com um modo de pensar

    presente na cultura jurdica. Enfrenta, nesse diapaso, a apropriao do

    debate quanto maioridade/menoridade penal pela medicina, que serve parapunir, antes de mais nada, crianas.

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    Dispositivos legais desencarceradores. Antes mesmo desse captulo

    conclusivo, Edson Passetti (Fascismo, pequenos fascismos, ou como designar

    isso que vivemos na sociedade de controle?) denuncia um incmodo no ar com

    o gradativo desaparecimento das massas e de suas representaes pblicas,

    explorando a incitao da sociedade de controle para a institucionalizao,

    para a conformao a atividades, imobilizando, portanto, as prticas de

    resistncia, da o recurso ideia de fascismo. A misso de controle racional da

    vida social, confiada a um Estado capaz de separar a violncia, ou selvageria,

    de um Estado civil, em que a paz viceja confiada, no dizer de Marildo

    Menegat (Prises a cu aberto) s prises. O exerccio desse poder, porm,

    mostrou-se por completo no nazismo e em outras experincias histricas. De

    mais a mais, as funes no ditas das prises, em especial suas relaes com

    a diviso do trabalho social, revelam que o melhor a se fazer hoje tornar

    pblico este debate, o que significa politiz-lo, pois o nico caminho para pr

    termo, quem sabe, aos martrios e sacrifcios (...). hora de entregarmos

    realizao da liberdade, e, para isso, o fim das prises torna-se imperativo.

    No marco da reduo do poder punitivo, Maria Raldez (Dispositivos

    legais desencarceradores) elenca medidas de ampliao das penas

    alternativas, sendo, porm, preciso estar atento despenalizao: Maria

    Karam (Dispositivos legais desencarceradores) denuncia como os juizados

    especiais criminais podem representar, em nome da celeridade processual,

    uma abdicao de direitos e uma reduo da dignidade. Tambm assim o

    monitoramento eletrnico, capaz de se tornar uma quase-priso. Em sentido

    semelhante, Geraldo Prado e Rubens Casara (Dispositivos legaisdesencarceradores: o bice hermutico) acentuam como a distino entre texto

    e norma faz com que ao intrprete seja dado um grande poder de reproduzir

    (ou frear) o poder punitivo, de sorte que o desencarceramento passa,

    fundamentalmente, pela formao jurdica. O problema da poltica dos

    substitutivos penais, na posio de Salo de Carvalho (Substitutivos penais na

    era do grande encarceramento), que no rompe com a estrutura punitivista

    e, ao contrrio do divulgado pelo discurso oficial reformador, atua comoelemento de reproduo e de relegitimao da lgica do encarceramento.

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    Alternativo no deve ser sinnimo de complementar, porm de algo que se

    coloca no lugar de outro, em vez de outro.

    O livro, em resumo, oferece slidas hipteses, contundentes crticas e

    dados reveladores. No sem deixar de apontar luzes no campo da resistncia

    filosfica, poltica e jurdico-institucional. Explica com robustez o Grande

    Encarceramento da alma, da polis e do corpo, e convida ao gozo da liberdade,

    do pensar e do viver fora de um marco preestabelecido, automtico. Um

    convite para livrar.

    Notas

    1 Depois do grande encarceramento, seminrio/organizao de Pedro Vieira Abramovay eVera Malaguti Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2010. 384 p. ISBN 978-85-7106-410-2.2 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre edoutor em Direito Penal pela Universidade de So Paulo, com estgio doutoral na UniversidadeHumboldt, em Berlim.3Punio e estrutura social. Trad. de Gizlene Nader. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 20.4Punir os pobres: a nova gesto da misria nos Estados Unidos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan,2007, p. 32.5Toward a postmodern understanding in Law. In: Oati Proceedings. Espanha: IISJ, 1989.6Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 16.

    Recebida em 14/03/ 2011Aceito para publicao em 30/03/2011