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Linguagem & Ensino, Vol. 8, No. 1, 2005 (185-208) Resenhas TEBEROSKY, Ana; et al. Compreensão da leitura: a língua como procedimento; trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2003. Resenhado por Cristiane Malinoski Pianaro ANGELO (Universidade Estadual de Maringá) Ensino de leitura: questão de receita ou concepção? Desde a década de oitenta, quando a concepção construtivista começou a fazer parte dos ambientes educacio- nais, houve um redimensionamento no modo de pensar o pro- cesso de ensino e aprendizagem. O modelo tradicional que enfatiza a acumulação passiva de conhecimentos passa a ser substituído, pelo menos em teoria, por um modelo que enfatiza a ação, a interação e a produção. As práticas pedagógicas construtivistas, conforme res- saltam Isabel Solé e César Coll em “O construtivismo na sala de aula” (Trad. Cláudia Schilling. São Paulo: Ática, 1999), são norteadas por um conjunto articulado de princípios, parâmetros e diretrizes fundamentados nas teorias psicológicas do desen- volvimento e da aprendizagem que defendem que o aluno exer- ce o papel principal no processo de ensino-aprendizagem e é o construtor ativo do seu próprio conhecimento. Isto implica que o professor não seja mais reconhecido como transmissor de conhecimentos, mas como aquele que estimula a autono- mia do aluno e cria as oportunidades de descoberta.

Resenhas concurso PEBII Matemática

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Linguagem & Ensino, Vol. 8, No. 1, 2005 (185-208)

Resenhas

TEBEROSKY, Ana; et al. Compreensão da leitura: a línguacomo procedimento; trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed,2003.

Resenhado por Cristiane Malinoski Pianaro ANGELO(Universidade Estadual de Maringá)

Ensino de leitura: questão de receita ou concepção?

Desde a década de oitenta, quando a concepçãoconstrutivista começou a fazer parte dos ambientes educacio-nais, houve um redimensionamento no modo de pensar o pro-cesso de ensino e aprendizagem. O modelo tradicional queenfatiza a acumulação passiva de conhecimentos passa a sersubstituído, pelo menos em teoria, por um modelo que enfatizaa ação, a interação e a produção.

As práticas pedagógicas construtivistas, conforme res-saltam Isabel Solé e César Coll em “O construtivismo na salade aula” (Trad. Cláudia Schilling. São Paulo: Ática, 1999), sãonorteadas por um conjunto articulado de princípios, parâmetrose diretrizes fundamentados nas teorias psicológicas do desen-volvimento e da aprendizagem que defendem que o aluno exer-ce o papel principal no processo de ensino-aprendizagem e é oconstrutor ativo do seu próprio conhecimento. Isto implicaque o professor não seja mais reconhecido como transmissorde conhecimentos, mas como aquele que estimula a autono-mia do aluno e cria as oportunidades de descoberta.

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Ao assumir o modelo construtivista, muda-se a concep-ção acerca da leitura e, conseqüentemente, a metodologia deensino da leitura na sala de aula. Este modelo propõe-nosuma concepção interativa de leitura (p.127). Tem-se, en-tão, um aluno-leitor que constrói os sentidos do texto, a partirdos seus objetivos e do seu repertório de experiências prévias,e um professor-mediador que propicia as situações de interaçãotexto-leitor.

O livro “Compreensão da leitura: a língua como proce-dimento”, de Ana Teberosky e outros, enfrenta o desafio dereunir e sistematizar reflexões sobre a leitura ajustadas à con-cepção construtivista de ensino e aprendizagem. O própriotítulo já nos deixa pistas de como a língua e a leitura serãotratadas ao longo da obra: não como um produto pronto e fe-chado, mas como um processo, construído permanentementeatravés da interação entre sujeitos. Trata-se de uma obra com-posta de onze artigos que visam proporcionar argumentos eexperiências que orientem e/ou justifiquem determinadaspropostas didáticas em torno da língua escrita e, maisconcretamente, da compreensão da leitura (p.14). Já naintrodução, que é assinada por Francesc López Rodriguez,deixa-se explícita a enorme complexidade em torno da ques-tão leitura, uma vez que as opiniões do que seja entender umtexto variam muito.

A coletânea foi produzida e editada na Espanha. Osautores são professores e pesquisadores conceituados e dedi-cados à causa da educação, como Isabel Solé e Ana Teberosky,que há tempo vêm exercendo influência sob as pesquisas e aspráticas pedagógicas brasileiras. Suas idéias contribuíram, in-clusive, para a elaboração dos Parâmetros Curriculares Naci-onais.

No primeiro artigo, intitulado “Ler, leitura e compreen-

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são: sempre falamos da mesma coisa?”, a autora, Isabel Solé,recua no tempo para demonstrar as origens de nossas con-cepções atuais sobre a compreensão da leitura e discute oporquê das dificuldades de superação de certas posturas per-niciosas ao ensino e aprendizagem da leitura. Solé manifesta-se a favor de um modelo interativo, que faz o leitor assumiruma postura mais ativa e autônoma diante do texto e, conse-qüentemente, dirigir e controlar a sua própria aprendizagem.

“Estratégias de leitura e compreensão do texto no ensi-no fundamental e médio” é o título do segundo texto da coletâ-nea e quem o assina é Carles Oller e Joan Serra. Os autoresiniciam o texto definindo estratégias de leitura como um con-junto de microprocessos que ajudam na compreensão sig-nificativa da nossa leitura (p.35). Por isso, a importância detrabalhá-las na escola, de forma constante e permanente. Aocitar e descrever as principais estratégias que ocorrem antes,durante e depois da leitura, Serra e Oller buscam propiciar aoprofessor e aluno condições de estabelecer o que ensinar eo que aprender em função das exigências tanto do textocomo da atividade relacionada a esse texto (p.37). Os au-tores ressaltam, ainda, que o ensino de estratégias precisa serrealizado em um contexto (de conflitos, de necessidades, dedúvidas) significativo para os alunos e deve estar em conso-nância com os objetivos que guiam a leitura do texto. O artigonão fornece explicações detalhadas, mas apenas um esboçodas principais estratégias de leitura. Aqueles que necessita-rem de maior aprofundamento deverão consultar outras refe-rências, como “Estratégias de leitura” de Isabel Solé (Trad.Claudia Schilling. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998), obra jábastante conhecida no Brasil e que possibilita uma compreen-são mais sólida do assunto.

O texto de José Quintanal é uma proposta de ação

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concreta (p.46) para o ensino da leitura e tem como título“Tratamento complementar da leitura na sala de aula. Consi-deração que deve receber em outras áreas que não a de lín-gua”. O autor expõe sobre a necessária co-responsabilidadeque deve existir entre toda a comunidade escolar, visto que aleitura é um dos pilares nos quais se apóiam todas as de-mais aprendizagens escolares (p.46). Neste capítulo, ainda,são expostas estratégias didáticas que podem ser desenvolvi-das em sala de aula no decorrer de quatro tipos de leitura: depesquisa, para aprendizagem, espontânea e resolutiva. Esteartigo contribui para superarmos uma idéia bastante difundidano Brasil e prejudicial ao ensino da leitura: a de que apenas osprofessores de língua portuguesa são professores de leitura.Enquanto a leitura não for tratada como um projeto coletivo daescola, encontraremos muitos motivos para lamentarmos o fra-casso dos alunos (ou o nosso fracasso).

Em sua contribuição ao livro, Ana Teberosky objetivademonstrar a influência das pesquisas psicolingüísticas naspráticas pedagógicas. Para isso, a autora apresenta exemplosde atividades didáticas, desenvolvidas em sala de aula por pro-fessores de educação infantil, que procuram explorar o cará-ter funcional e ficcional da escrita e a diversidade de gênerostextuais que circulam socialmente. A leitura de mapas, cópiade cartazes e letreiros, o contato com obras literárias de qua-lidade, as atividades de ditado (das crianças ao adulto e dascrianças entre si) têm, na visão de Teberosky, não apenasuma justificativa psicológica e psicolingüística, mas tam-bém uma realização possível na sala de aula (p.66). Assugestões levantadas são úteis e realizáveis, mas não são ino-vadoras no cenário brasileiro. Várias experiências semelhan-tes são constantemente desenvolvidas e divulgadas pelos nos-sos professores, felizmente.

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Quem assina o texto seguinte é, mais uma vez, IsabelSolé. A autora traça reflexões a respeito de determinadasidéias – “a criança tem de amadurecer para ler”; “para come-çar a ler, a criança precisa dominar alguns pré-requisitos comolateralidade, seriação” – que repercutem no ensino da leituradurante a educação infantil e são motivos para retardar, demaneira injustificada, o contato das crianças com os textos.Discordando destes “mitos”, Solé expõe que a leitura na edu-cação infantil proporciona à criança experiências divertidase gratificantes (p.70). Além do mais, ao ler, a criança semobiliza ativamente para dar um significado à mensagem e,fazendo-o, sente-se mais competente e constrói uma imagemmais positiva de si própria. Nesse processo, a intervenção doprofessor é fundamental. É ele, adulto mais experiente, quedeve assegurar a interação significativa e funcional dacriança com a língua escrita (p.72), através de estratégiasdiversas que aos poucos lhe ampliarão a competência leitora.

O capítulo seis é de autoria de Josette Jolibert. A auto-ra apresenta suas idéias a partir de um trabalho de pesquisarealizado nos arredores de Paris. Trata-se de uma propostadidática integrada, globalizante (p.77) que compreende oaprender a ler e a produzir textos na escola. Inicialmente,Jolibert reflete sobre algumas hipóteses que fundamentam suapesquisa. Para ela, aprender a ler é aprender a questionartextos completos, desde o princípio (p.78). E questionar umtexto é construir ativamente um significado, em função desuas necessidades e seus projetos, a partir de diferentesprincípios, de natureza distinta, e de estratégias pertinen-tes para articulá-los (p.78). A autora discute a necessidadede o professor desenvolver estratégias didáticas em que o alu-no possa detectar e relacionar sete níveis de competênciaspara ler e produzir textos: o contexto situacional e textual; os

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parâmetros da situação de produção (quem produz, a que sedestina, por que produz); tipo de texto; superestrutura textual;o funcionamento lingüístico no conjunto do texto; no nível dasfrases; no nível das palavras. A descrição destes níveis mos-tra a preocupação do autor não apenas com os aspectoslingüísticos e textuais, mas também com os aspectos pragmá-ticos. Entretanto, faltou explorar aspectos como a ideologia eas estratégias de manipulação presentes em qualquer texto,ou seja, buscar um nível mais profundo: a leitura crítica. EzequielTheodoro da Silva, em seu livro “Criticidade e leitura: ensaios”(Campinas: Mercado das Letras/ ALB, 1998), adverte sobre anecessidade de um ensino de leitura voltado para a criticidade,pois pela leitura crítica o sujeito abala o mundo das certe-zas (principalmente as da classe dominante), elabora edinamiza conflitos, organiza sínteses, enfim combate assi-duamente qualquer tipo de conformismo, qualquer tipo deescravização às idéias do texto (p.26).

Como fazer para que os alunos leiam com propósitos ede maneiras distintos? É a esta pergunta que Liliana Tolchinskye Mabel Pipkin buscam responder no artigo Seis leitores embusca de um texto. As autoras apresentam uma experiênciadesenvolvida em salas de 5ª e 7ª séries, através da qual busca-ram demonstrar como o aluno pode assumir diferentes papéisdurante a leitura e desenvolver quatro estratégias fundamen-tais: de resumo, de esclarecimento, de questionamento pessoale de previsão. Para a atividade, formaram-se cinco gruposem cada sala de aula; todos, exceto um, eram de seis alu-nos (...) uma de nós coordenou um dos grupos e outrosquatro professores, os outros grupos (p.100). Esta infor-mação evidencia a difícil aplicabilidade da experiência em nossarealidade. Exige turmas pequenas ou mais de um professorpara atender os alunos, o que, no Brasil, é quase impossível.

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O artigo “Cantos para aprender a ler” é assinado porRosa Gil e Maria Soliva. As autoras tratam da experiênciadidática de dois cantos de leitura (a biblioteca e a oficina) emsalas de séries iniciais, numa escola pública de Barcelona.Trata-se de um texto superficial, pois pouco explora a respeitoda diversidade de textos, propósitos e modos de ler – objetivospropostos inicialmente. A preocupação maior é com os espa-ços físicos em que se darão as leituras, o que parece insufici-ente para desenvolver a competência leitora dos alunos.

Sob o título “Avaliação da compreensão da leitura. Pro-posta de um roteiro de observação”, M. Teresa Bofarull de-fende a avaliação centrada no processo e não no resulta-do (p.129). Recomenda que seja realizada de três modos:avaliação inicial (O que o aluno já sabe?); avaliação formativa(De que estratégias o aluno faz uso? Que intervenções o pro-fessor precisa realizar?) e avaliação cumulativa (O que o alu-no aprendeu?). A autora propõe um guia de observação dacompreensão da leitura em que serão analisadas as estratégi-as que o aluno utiliza antes, durante e após a leitura. A propos-ta permite avaliar não exclusivamente o aluno, mas avaliar oprocesso de ensino-aprendizagem e serve como instrumentopara o professor (re)definir as suas estratégias de ensino, casoseja necessário.

O texto seguinte é um dos mais importantes do livro,visto que aborda um assunto que ainda carece de pesquisas: opapel das inferências na compreensão do texto. Os autores,Eduardo Vidal Abarca e Gabriel Martinez Rico, defendem queas causas da dificuldade de compreensão não devem ser atri-buídas ao leitor ou ao texto em separado, mas na inadequaçãoentre o texto e o leitor e, mais concretamente, no processono qual se conjugam ambos os elementos, isto é, asinferências (p.139). Os autores citam dois tipos de inferências:

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inferências de conexão textual e inferências extratextuais.Expõem, ainda, três medidas que o professor pode tomar parafavorecer as inferências dos alunos: a formulação de pergun-tas, a ativação dos conhecimentos e as auto-explicações.

Encerrando a coletânea, Manuel Cerezo apresenta umprojeto didático que objetiva, primordialmente, estimular no alu-no a análise e o posicionamento crítico diante da mensagempublicitária. Oferece um modelo de roteiro para a observaçãodos textos, o qual privilegia quatro aspectos: semióticos, textu-ais, pragmáticos e a leitura crítica. São apresentadas, tam-bém, sugestões para a criação de textos publicitários em salade aula. Minha crítica a este artigo é com relação ao roteiro.Acredito que esta atitude limita a autonomia do aluno, tornan-do-o um mero executor de atividades e não um construtor ati-vo do próprio conhecimento, como prega a concepçãoconstrutivista. O autor poderia valer-se da proposta de Jolibert,no capítulo seis, a qual também propõe um guia, mas este ser-ve como uma ferramenta para o professor desenvolver estra-tégias didáticas que visem ampliar as competências dos alunose avaliar os seus êxitos.

Não há como negar as notáveis contribuições trazidaspelos artigos de Bofarull, de Abarca e Rico, de Quintanal e deSolé. Os autores apresentam, de forma sintética e acessívelaos professores, uma exposição do modelo construtivista naprática em sala de aula e permitem que se renove a maneirade pensar a leitura e os sujeitos envolvidos no processo deensino-aprendizagem (professor e aluno). Também, deixamclaro a necessidade de se superar certos preconceitos comrelação ao potencial dos alunos para conduzir a leitura. Nãose trata de um receituário, mas de experiências que instigam àreflexão e ajudam o professor a planejar as aulas. Acreditoque planejar adequadamente as atividades de leitura é funda-

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mental para adequar as estratégias a serem desenvolvidas comos textos abordados.

Os demais artigos deixam a desejar, ou por não traze-rem inovações, ou pela falta de uma fundamentação teóricaconsistente, ou pelo caráter simplista com que tratam o pro-cesso da leitura. Ainda, parece que falta a alguns autoresclareza de que uma transformação significativa em torno doprocesso de ensino e aprendizagem da leitura, mais do que apresença de receitas e roteiros pré-estabelecidos, requer umamudança de concepção acerca da leitura e a adoção, por par-te de professor, de uma postura de pesquisador, entendido, aqui,como aquele que é capaz de refletir permanentemente sobresua própria prática e de construir suas próprias metodologiasde ensino.

Recebido: Julho de 2004.Aceito: Agosto de 2004.

Endereço para correspondência:

Cristiane Malinoski Pianaro ÂngeloMestrado em Lingüística AplicadaCentro de Ciências Humanas, Letras e ArtesAv. Colombo, 579087020-900 - Maringá - Paraná[email protected]

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MITTMANN, Solange. Notas do tradutor e processotradutório: análise e reflexão sob uma perspectiva discursiva.1.ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. 184 p.

Resenhado por Renata Silveira da SILVA (UniversidadeCatólica de Pelotas)

O livro Notas do tradutor e processo tradutório: aná-lise e reflexão sob uma perspectiva discursiva, de SolangeMittmann, apresenta um enfoque inovador ao processo de tra-dução, sob a perspectiva da Análise do Discurso de linha fran-cesa. A autora define seu objeto de reflexão substituindo otermo “tradução” por “processo tradutório”, compreendidocomo processo de relação de sentidos e de produção de dis-curso. Em seguida, propõe uma revisão teórica para a expli-cação do que considera processo tradutório, tomando comoobjeto de análise o discurso do tradutor durante esse processoe como unidade de análise as notas do tradutor.

É notável o caráter inovador da pesquisa, que não tomacomo unidade de análise um texto traduzido, comparando-ocom o original ou com outras traduções, como geralmente éfeito. Mittmann argumenta que as notas de rodapé (N.T.) sãomais interessantes por serem o lugar em que o tradutor dialogacom o leitor e com o autor, apresenta suas dúvidas, o caminhoque percorreu e sua visão a respeito do assunto que traduz.

Como base para sua análise, Mittmann apresenta umarevisão sobre duas concepções fundamentais de tradução apre-sentadas no primeiro capítulo, intitulado Resgatando os pon-tos de vista sobre a tradução. A primeira concepção, desig-nada tradicional, considera a tradução como transporte de sen-tidos e o tradutor como instrumento desse transporte. Tal con-cepção baseia-se na possibilidade de descobrir/decodificar opensamento do autor e recodificá-lo em outra língua. Teóricos

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dessa linha omitem ou condenam a interferência do tradutor.A segunda concepção é denominada de perspectivacontestadora, por promover uma ruptura com a corrente tradi-cional. Conforme essa posição, a tradução só se realiza apartir da interpretação do tradutor, o qual torna-se produtor deum novo texto. O sentido, por sua vez, não está contido notexto original pronto para ser transportado para outra língua,mas é resultado de uma imagem construída pelo tradutor e,portanto, de uma interpretação consoante fatores externos,como visão de mundo, ideologia, padrões estéticos, ou outros.

O título Construindo uma proposta de reflexão sobreo processo tradutório introduz o segundo capítulo do livro, noqual a autora apresenta o quadro epistemológico da Análise doDiscurso, iniciada por Michel Pêcheux. As considerações re-velam informações imprescindíveis para a compreensão da ADcomo uma disciplina oriunda da articulação entre três regiõesdo conhecimento: o materialismo histórico, como teoria dasformações sociais e de suas transformações, compreendida aía teoria das ideologias; a lingüística, como teoria dos mecanis-mos sintáticos e dos processos de enunciação; a teoria do dis-curso, como teoria da determinação histórica dos processossemânticos. Com os subtítulos Discurso e outras noções eSujeito e Sentido, são apresentadas as noções teóricas daAD necessárias para o desenvolvimento da tese central dotrabalho. Através do percurso da AD, a autora redefine algu-mas noções teóricas sobre tradução e encerra esse capítuloevidenciando a existência da ilusão de que o tradutor é res-ponsável pelas escolhas que realiza. Constata também a ilu-são de que o tradutor simplesmente reproduz o que o autor dotexto original “quis dizer”, recuperando sentidos universais,evidentes. Mittmann considera o processo tradutório comoum processo de relação de sentidos e de produção de discur-

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sos que envolve o autor, o tradutor, os leitores e as condiçõesde produção. Sendo assim, não se trata de analisar o ato indi-vidual de um tradutor, como tem sido feito, mas abordar a tra-dução como um processo complexo que não começa nem ter-mina no tradutor. Dessa forma, fica evidente o surgimento deuma novo olhar a respeito da tradução, com a apresentaçãode uma concepção discursiva sobre o processo tradutório.

No terceiro capítulo, designado Organizando um estu-do sobre as notas do tradutor, Mittmann relembra que asdeterminações históricas são constitutivas do discurso e estãomaterializadas no próprio texto, explicitando que partirá do tex-to, neste caso as notas de rodapé, para desvendar o funciona-mento do discurso do tradutor e refletir sobre o processo deprodução de sentido e da subjetividade presente nas notas.Nessa parte são contemplados também orientaçõesmetodológicas e procedimentos de análise da pesquisa que estásendo apresentada, com observações sobre a seleção do corpuspara análise, o qual é caracterizado pela diversidade, por serproveniente de diversas obras traduzidas por diferentes auto-res. Em seguida, é realizada uma breve apresentação de dife-rentes perspectivas a respeito das notas de tradução, revelan-do que alguns tradutores as compreendem como recurso pararesolver problemas de tradução que não foram resolvidos notexto traduzido, enquanto que outros consideram tais notascomo lugar privilegiado para análise do papel ativo edeterminante do tradutor. Mittmann desenvolve seu estudocontemplando o que se diz sobre as notas de rodapé em Aná-lise do Discurso para posteriormente propor o que dizer sobreas notas do tradutor, consoante sua perspectiva discursiva.

No quarto capítulo do livro, Seguindo a trilha do dis-curso, são feitos três recortes, compreendidos como o con-junto formado pelas N.T., acompanhadas dos respectivos tre-

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chos do texto traduzido, formando seqüências textuais, alémde fragmentos do cotexto. Este define-se como “o conjuntode enunciados que determinam a visualização mais amplado tema estudado” (Guilhaumou e Maldidier, 1994, p.168).Mittmann explica que tais fragmentos permitem complemen-tar a análise de uma nota principal. Sendo assim, podem serrecortados fragmentos de outras N.T. ou depoimentos do mes-mo tradutor e outros textos sobre o mesmo tema. Cada recor-te apresenta um tipo de operação discursiva. No primeiro,estão aquelas notas que demonstram o distanciamento entre odiscurso do tradutor e o discurso do autor; no segundo, aque-las em que o tradutor recorre a outros discursos para dar sus-tentação ao seu discurso; no terceiro, aquelas que em que otradutor manifesta a falta de palavras, a multiplicidade de sen-tidos e suas incertezas durante o processo tradutório.

Na quinta parte, denominada Encerrando a análise: ocontrole e o não controle do discurso, são apresentadasalgumas conclusões acerca das análises feitas no capítulo an-terior. Mittmann evidencia que o processo tradutório consti-tui-se de possibilidades, ou seja, da possibilidade de que o sen-tido seja sempre outro, de que outras vozes possam intervir, deque outros discursos possam ser produzidos. Dessa forma,procura desvendar através das notas do tradutor a tentativade controle desta multiplicidade, ao mesmo tempo que consta-ta a busca de aceitação da impossibilidade desse controle, as-pectos reveladores da dualidade característica do processotradutório, constituído pela heterogeneidade de vozes e pelamultiplicidade de sentidos.

É preciso salientar que o mérito deste livro consiste naclareza evidenciada tanto na linguagem, como na vinculaçãodos tópicos desenvolvidos, os quais são apresentados de for-ma didática. Sem abrir mão da densidade teórica, a autora faz

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uma revisão simples e precisa das principais noções apresen-tadas por teóricos da tradução e pela Análise do Discurso.Esta é uma obra que permite ao leitor desvendar a riqueza docorpus em análise, acompanhando o percurso realizado porSolange Mittmann. Trata-se de uma leitura altamente reco-mendável, não apenas por revelar uma abordagem inovadoraa respeito da tradução, mas por suscitar no leitor a curiosidadee a vontade de também desvendar outros discursos, sob a pers-pectiva particular da Análise do Discurso.

Recebido: Julho de 2004.Aceito: Agosto de 2004.

Endereço para correspondência:

Renata Silveira da SilvaRua Ilha da Feitoria, 101Parque Marinha96215-200 – Rio Grande, RSE-mail: [email protected]

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação.São Paulo: Cortez, 2001. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva eDécio Rocha.

Resenhado por Tatiana PICCARDI (Universidade SãoFrancisco)

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A discussão sobre a convergência de duas teorias lin-güísticas até pouco tempo consideradas incomunicáveis – aanálise do discurso de origem francesa (AD) e a pragmáticade origem européia – é atualíssima e relevante de qualquerperspectiva da qual a observemos. Atualíssima porque temsido motivo de debates em diferentes grupos de pesquisa quetrabalham nessas áreas - ou em suas várias confluências - emuniversidades brasileiras importantes (nos restringiremos àsdiscussões nacionais). Grupos de estudos pós-graduados arespeito têm se formado na Universidade de São Paulo e naPUC-SP1 , para citar apenas dois exemplos. É relevante por-que, na medida em que as pesquisas lingüísticas de caráterdiscursivo avançam e as aproximações conceituais se eviden-ciam, mais se torna necessário rever tais conceitos a fim de sedefinirem e redefinirem os limites de abrangência – sempreinstáveis - de uma e outra teoria. Marcar um espaço teórico eao mesmo tempo evitar o estrangulamento por falta de revisãode conceitos-chave é o desafio que a análise do discurso deorigem francesa enfrenta hoje. Ao mesmo tempo, é desafioda pragmática de origem européia ampliar o foco e consolidarem seus estudos os aspectos sociais que se mesclam aos atosde fala, deixando de observar estes últimos dentro dos estrei-tos limites da situação de comunicação em si.

Possenti (2002), no artigo intitulado “Pragmática na aná-lise do discurso”, coloca diretamente a questão:

Ao falar de texto ou de discurso, os analistas do discursotematizam o interdiscurso, a polifonia, o processo histórico de

1 O grupo de estudos pós-graduados conduzido pela Profa. Dra. Helena H.Nagamine Brandão na Faculdade de Letras da USP (São Paulo) e o grupoAtelier, conduzido pela Profa. Dra. Cecília P. de Souza-e-Silva na Faculdadede Letras da PUC-SP.

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produção; os pragmaticistas tematizam a coesão, a coerência,o processo interpessoal de produção e compreensão.Categorias relevantes para os analistas do discurso são o pré-construído, a memória discursiva; para os pragmaticistas, amemória de curto ou longo prazo, o conhecimento partilhado...A pergunta que me faço é se cada um dos programas pode, semperdas relevantes, dispensar-se de considerar as propriedadesdo discurso que o outro campo considera constitutivas.2

O que Maningueneau faz em seu Análise de Textos deComunicação, como analista do discurso, é aceitar o desafiode, através da definição e exemplificação de conceitos quetransitam com menor ou maior grau de validação nos dois cam-pos, buscar seus pontos de encontro e cruzamento, na tentati-va de construir um eixo condutor que propicie a ampliação daabrangência teórica da AD.

É importante frisar que o livro não explicita tal objetivo.De fato, o objetivo explicitado no prefácio e no prefácio à edi-ção brasileira é o de oferecer um instrumental mínimo a todosos que precisam melhor compreender o funcionamento de tex-tos dos gêneros publicitário e de imprensa. Não se trata deobra dirigida a especialistas em estudos literários e/oulingüísticos na universidade. Trata-se de obra a ser utilizadatambém por professores e alunos das áreas de comunicação,marketing, jornalismo. Como afirma Maingueneau no prefá-cio à edição brasileira, esta escolha implicou a opção por umateorização mínima, o que não significa que não haja uma pos-tura teórica de base. Claro está que, tendo objetivos didáticose pressupondo um público amplo, o livro não problematiza dis-tinções conceituais, mas procura apagar as diferenças que

1 POSSENTI, S. – Os limites do discurso. Curitiba: Criar, 2002.

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pudessem prejudicar o didatismo da obra, imprimindo-lhe uni-dade.

No prefácio à edição brasileira, Maingueneau afirmaque seu livro diz respeito à análise do discurso, mas é a ativi-dade enunciativa que será priorizada. Isto quer dizer que nãose trata de análise discursiva de textos de comunicação volta-da à crítica midiática, ou a reflexões de caráter ideológico;nem tampouco de mera análise conteudista ou de avaliaçãodas estratégias retóricas; e menos ainda de análise visando àoferta de receitas de construção de textos. O autor procurarádescrever o funcionamento dos textos dos gêneros seleciona-dos, enquanto produtos de uma atividade enunciativa, com oapoio de certos conceitos norteados pelo conceito central eamplo de discurso. O eixo condutor entre as teorias é justa-mente a compreensão de discurso em sentido amplo. É estaconcepção que autoriza o autor a transitar com maior liberda-de entre teorias, apagando os antagonismos. Diz Maingueneaunas páginas 11 e 12 (Prefácio):

Uma das características essenciais da pesquisa atual sobrea linguagem é a emergência de trabalhos que, em vez dereduzirem a linguagem ao arbitrário de suas unidades e desuas regras, abordam o enunciado como discurso. Essaabertura das ciências da linguagem coincide com aspreocupações de muitos pesquisadores de outros ramosdas ciências humanas, desejosos de levar em consideraçãoa dimensão linguageira de seus objetos de estudo. Não setrata especificamente de uma disciplina, mas de um espaçoinstável de trocas entre disciplinas diversas, cada umaestudando o discurso sob uma ótica que lhe é própria:análise da conversação, teorias da argumentação, dacomunicação, sociolingüística, etnolingüística, análise dodiscurso... (a lista não é exaustiva) compartilham, de formamuitas vezes conflituosa, esse campo de investigação aberto

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também a domínios conexos (sociologia, psicologia, históriaetc.).

Assim, nesta obra, Maingueneau amplia a própria con-cepção do que seja fazer análise do discurso, entendendo aAD como intrinsecamente interdiscursiva. Na Apresentação,escrita pelos professores tradutores, os autores apontam parao fato de, nos capítulos 1 a 4, Maingueneau ter adotado umviés pragmático para explicar os conceitos de enunciado econtexto, discurso e texto. Nos capítulos 5 a 8, fica explicitadoque os conceitos-chave selecionados estão em conformidadecom desenvolvimentos teóricos do próprio Maingueneau, queos inseriu no contexto da AD em trabalhos anteriores, o quenão é necessariamente aceito por todos os analistas do discur-so. Os conceitos expostos nos capítulos 9 a 18 são conceitos-suporte, como dito na Apresentação, oriundos de teorias dis-tintas, mas redimensionados para efeito desta obra.

As dificuldades decorrentes desta tentativa de imprimirunidade são justificadas desta forma:

Não é nosso objetivo esboçar neste livro um panorama dasproblemáticas da análise do discurso, nem construir ummodelo detalhado do que é a atividade discursiva.Indicamos apenas suas características principais epropomos um certo número de entradas para a análise detextos escritos, privilegiando os mais estudados: osjornalísticos e os publicitários. (Prefácio, p.12)

Ocorre que, ao escolher as características principais daatividade discursiva a serem relatadas e propor certas entra-das para a análise dos textos, já se está esboçando a constru-ção de uma nova proposta teórica, estando tal proposta visívelpara o leitor da obra ou não. Esta proposta, uma vez explicitada,

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poderia ser definida como um caminho, talvez, para o desen-volvimento da AD em sua quarta fase. Assim é que se tornaimportantíssimo frisar a força desta empreitada e o que elasignifica para o desenvolvimento da AD e uma aproximaçãomais produtiva entre AD e pragmática. O que se propõe aseguir deve ser interpretado como contribuição para que estaempreitada seja levada adiante.

Ajuste terminológico

O conceito fundamental e central que delimita até hojeos espaços teóricos da AD e da Pragmática é o conceito desujeito. A primeira considera em seus estudos um sujeito dediscurso, apreensível em suas contradições pela análise desua produção discursiva. Trata-se de um sujeito histórico,clivado por diferentes vozes. Sua existência como ser empíriconão é significativa, uma vez que é como sujeito de discursoque ele se constitui. A Pragmática, por sua vez, considera,sim, o sujeito empírico em seu corpo teórico, mas cada vezmais este sujeito empírico se define como ator social, que, por-tanto, age conforme papéis sociais definidos. Oriundos deperspectivas distintas, tais sujeitos se encontram na práticasocial, como sujeitos que enunciam (daí a perspectivaenunciativa de Maingueneau). Uma nova perspectiva de su-jeito para a AD focaria o sujeito no corpo da sociedade, comosujeito que enuncia, mas que não o faz livre de coerções econtradições.Toda a terminologia teórica a ser utilizada devecontemplar esta dupla exigência.

Assim é que, na página 54 (capítulo 4: Discurso, enunci-ado e texto), por exemplo, quando Maingueneau afirma queuma das características que define o discurso é que ele é as-sumido pelo sujeito, caberia no texto que explica esta afirma-ção a necessária ressalva de que tal sujeito, que se coloca,

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segundo o autor, como “fonte de referências pessoais, tempo-rais, espaciais e ao mesmo tempo indica que atitude está to-mando em relação àquilo que diz”, faz tudo isso obedecendo aestratégias discursivas, delimitadas por coerções sociais quedirigem fortemente sua fala para uma certa direçãoargumentativa, e não outra. Esta postura relativiza a idéia dosujeito empírico homogêneo e livre, ao mesmo tempo em quenão o exclui totalmente do corpo teórico da AD. Este sujeitomesclado se insere em uma AD renovada na medida em que,em princípio, pode exercer sua liberdade na construção dacenografia discursiva, sobre o que falaremos mais adiante.

Da mesma forma, na página 87 (capítulo 8: Ethos), emque o autor passa a definir o conceito-título, caberia ajustar aafirmação “toda fala procede de um enunciador encarnado;mesmo quando escrito, um texto é sustentado por uma voz – ade um sujeito situado para além do texto”. Da forma comoestá, a afirmação induz à associação com um sujeito empíricoautônomo e homogêneo, embora saibamos que o autor nãocompartilha desta visão. “O sujeito situado para além do tex-to” poderia ser substituído por “sujeito da enunciação”, con-ceito que, contraposto ao conceito de “enunciador”, confeririamaior coerência teórica ao conceito central de sujeito que sepretende construir. O conceito de ethos, apropriado da retóri-ca e explorado por Maingueneau em outros trabalhos, ganha-ria em consistência se fosse interpretado como estratégia dediscurso de um sujeito da enunciação, que se apropria, en-quanto produtor de uma cenografia discursiva, de estereótipossociais que considera eficientes para a construção de uma di-reção argumentativa.

Os conceitos expostos nos capítulos 16 e 17 (respecti-vamente Tipos de designações e A coesão do texto – anáforae catáfora), justamente por se tratarem de tópicos fortemente

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associados à lingüística textual, mereceriam um tratamentoterminológico ainda mais cuidadoso. No capítulo 16, a expres-são “modos de apresentação do referente” poderia ser substi-tuída por modos de construção do referente. Ao dizer, porexemplo, e bastante adequadamente, que cabe ao enunciadorpassar as instruções necessárias à identificação do referente(referendando a posição lingüístico-discursiva de que não é oenunciado em si que faz referência a algo), o autor poderia terampliado sua fala reforçando que o processo de referenciaçãoé, na verdade, uma construção conjunta entre enunciador eco-enunciador. Esta posição reforçaria igualmente posiçãoanterior, e de base: a de que o discurso implica necessaria-mente o interdiscurso. A voz do outro é constitutiva.

Outro ponto que chama a atenção no capítulo 16 é aafirmação que diz ser a descrição definida uma designaçãoindireta, uma vez que sua compreensão passa pela apreensãode certas propriedades, enquanto o nome próprio designariadiretamente seu referente. Parece-nos que, de uma perspec-tiva discursiva mais adequada ao propósito implícito desta obra,tal distinção não poderia ser feita de modo tão pacífico, afinalo nome próprio também é objeto de discurso. É preciso anali-sar o nome próprio em suas ocorrências no discurso e nãoem um conjunto limitado de enunciados. Ampliar o corpus deocorrência é necessário para a verificação das nuanças deuso do nome próprio e dos efeitos de sentido criados.

De modo geral, no capítulo 16, observa-se que houvepouca ênfase no que nos parece mais adequado considerarquando o assunto é referenciação: a apreensão desse proces-so depende simultaneamente de aspectos pragmáticos,enunciativos/discursivos e de organização textual, que formamo quadro global dentro do qual se constrói sentido.

Interessante observar ainda que Maingueneau conside-

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ra não anafóricas as descrições definidas que demandam for-temente o conhecimento de regras pragmáticas. Esta posiçãonos parece contraditória ao seu projeto teórico, pois tais des-crições podem ser consideradas anafóricas se consideradascomo marcas lingüísticas da interdiscursividade. Ao considerá-las não anafóricas, Maingueneau se aproxima da lingüísticatextual e se distancia da AD.

No capítulo 17, Maingueneau afirma que a endófora secaracteriza por assinalar uma relação essencialmenteassimétrica, pois só um dos elementos dependeria do outro.No entanto, da perspectiva interdiscursiva implicitada, poderí-amos dizer que o termo que retoma recria o termo retomado,construindo sentido e fazendo o texto progredir, o que relativizaa assimetria.

Outros exemplos ainda neste capítulo podem ser apon-tados: o uso pouco feliz das expressões “fiel” e “infiel” refe-rindo-se à anáfora lexical, por exemplo. No primeiro caso, aanáfora retomaria o referente sem alteração de efeito de sen-tido, enquanto no segundo caso haveria alteração. A nossover, discursivamente, a anáfora implica necessariamente pro-gressiva construção de sentido. Desta forma, a noção de fi-delidade é relativizada, pois as retomadas nunca são neutras.

Finalmente, ainda no capítulo 17, quanto à relação entreanáfora e pressupostos do discurso, o autor afirma que aanáfora pode ser meio eficaz de manipular pressupostos, ori-entando o discurso. Talvez a mesma afirmação pudesse serampliada se disséssemos que a anáfora, em especial a descri-ção definida, pode manipular pressupostos, mas também osconstrói no discurso.

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Organização textual a partir do conceito-chave“cena de enunciação”

A leitura atenta desta obra nos mostra que o conceitofundamental de cena de enunciação, proposto por Maingueneauanteriormente e no qual o autor se detém pouco aqui, podeconstituir-se, juntamente com um conceito amplo de discurso,em eixo bastante consistente para a ampliação do potencialteórico da AD. Uma obra subseqüente poderia abordar todo oconteúdo deste Análise de textos de comunicação a partirdo conceito de cena de enunciação.

A tripla articulação dos conceitos de cena englobante,cena genérica e cenografia, que definem a cena de enunciação,pode consistir-se na matriz teórica que gerará, de modo con-sistente e redimensionado, todos os demais conceitos escolhi-dos e descritos neste Análise. Desta nova organização teóri-ca, advirá, como conseqüência, uma nova organização textualdo livro, que contemplará o adequado enlaçamento dos con-ceitos e ampliará o caráter didático do texto.

Todos os aspectos relativos ao interdiscurso podem seranalisados sob a perspectiva da cena englobante. Todos osaspectos relativos à textualização sob forma de gênerosdiscursivos podem ser discutidos à luz do conceito de cenagenérica, assim como todos os aspectos ligados à organizaçãotextual (níveis macro e micro) podem ser abordados à luz doconceito de cenografia. O sujeito mesclado que emerge destatripla articulação é coerente com o sujeito buscado nos dife-rentes movimentos de aproximação entre AD francesa e Prag-mática européia e pode constituir-se no eixo de uma AD reno-vada. Este sujeito mesclado possui relativa autonomiadiscursiva no âmbito da cenografia, a qual pode criar. Estaautonomia tende a diminuir no âmbito da cena genérica e de-saparecer no âmbito da cena englobante. Esta concepção

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permite conciliar coerções sociais e liberdade relativa do su-jeito de discurso, evidentemente jamais de forma pacífica, sempolêmica.

A reorganização textual – com base na centralidade doconceito de cena de enunciação – aliada ao ajuste terminológicopermitirão que a leitura desta obra ganhe em substância, evi-denciando o seu caráter teórico inovador, consubstanciando-ocomo base concreta para as atualizações conceituais tão ne-cessárias a uma AD em desenvolvimento.

Recebido: Julho de 2004.Aceito: Agosto de 2004.

Endereço para correspondência:

Tatiana PiccardiUniversidade São FranciscoAv. São Francisco de Assis 21812916-900 – Bragança Paulista, [email protected]