Responsabilidade internacional do estado por violação do juscogens

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    Revista Brasileira de Direito Internacional, Curitiba, v.5, n.5, jan./jun.2007

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    RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO POR VIOLAO DO

    JUS COGENS

    Isabela Piacentini de Andrade*

    RESUMO

    O objetivo deste artigo o de apresentar as conseqncias, no campo

    da responsabilidade internacional, previstas na hiptese de violao de norma

    de jus cogens. O estudo baseia-se no Projeto de Artigos sobre

    Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato Internacionalmente Ilcitode 2001elaborado pela Comisso de Direito Internacional das Naes Unidas.

    A anlise do Projeto permite distinguir diferentes regimes de responsabilidade,

    com destaque para o regime comunitrio agravado que trata de violaes

    graves de normas imperativas de direito internacional geral.

    ABSTRACT

    This paper explains the consequences of the breach of a jus cogens

    norm foreseen by international responsibility law. The study is based on the

    2001 Draft Articles on Responsibility of Statesfor InternationallyWrongful Acts

    elaborated by the United Nations International Law Commission which creates

    different responsibility regimes, including an aggravated regime that sets out the

    particular consequences arising from serious breaches of obligations under

    peremptory norms of general international law.

    Palavras-chave:jus cogens, responsabilidade internacional, Projeto de Artigos

    sobre Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato Internacionalmente

    Ilcito

    Key words: jus cogens, international responsibility, Draft Articles on

    Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts

    *Advogada, graduada pela UFPR, mestre e doutoranda pela Universidade de Paris II.

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    1 INTRODUO

    O reconhecimento da existncia de normas superiores no mbito do

    direito internacional foi um importante passo dado pela Conveno de Viena

    sobre o Direito dos Tratados (1969). A existncia de um direito cogente o jus

    cogens proclamada pelo seu artigo 53, que define a norma imperativa de

    direito internacional geral como

    uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados

    como um todo como norma da qual nenhuma derrogao permitida, e que

    s pode ser modificada por norma ulterior de direito internacional geral da

    mesma natureza.

    Nessa linha, todo tratado conflitante com uma norma imperativa nulo

    ab initio se a norma j existe no momento da concluso do tratado, ou torna-se

    nulo e extingue-se se o direito imperativo superveniente.1

    Cria-se assim uma hierarquia entre as normas internacionais. O jus

    cogens rene as normas mais caras comunidade de Estados. Sua

    importncia decorre dos valores internacionais envolvidos: do respeito do jus

    cogensdepende a preservao da sociedade interestatal.A imperatividade do jus cogens e as conseqncias no plano da

    nulidade previstas pela Conveno de Viena para os tratados com ele

    conflitantes no so entretanto suficientes para zelar pelo respeito do direito

    cogente. No obstante a autoridade de que goza na comunidade internacional,

    ele violado com freqncia pelos Estados. A prtica do genocdio, da tortura,

    da agresso armada, entre outros, so exemplos contundentes dessa

    realidade.Ocorrendo a violao de uma norma imperativa, no so nas

    conseqncias no plano da nulidade previstas pela Conveno de Viena que

    se encontrar uma resposta satisfatria ao ilcito praticado. preciso adentrar

    no campo da responsabilidade internacional.

    1Artigos 53 e 64 da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969).

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    Tal o intuito deste nosso artigo. Estudaremos como o direito

    internacional responde violao do jus cogens, segundo o direito da

    responsabilidade internacional dos Estados.

    A responsabilizao estatal pelo cometimento de ilcitos internacionais

    objeto de estudo no mbito da Comisso de Direito Internacional (CDI) da

    Organizao das Naes Unidas (ONU) h mais de cinqenta anos. Desde a

    dcada de 1950, a Comisso trabalha pela sistematizao e codificao do

    direito da responsabilidade internacional dos Estados. As dificuldades da

    matria explicam o longo decurso de tempo e a sucesso de diversos juristas

    internacionais renomados na direo dos trabalhos. Em 1996, o primeiro

    projeto de codificao foi finalmente elaborado, mas a ousadia de algunspontos como a criao da figura do crime internacional e a complexidade

    de outros tal o sistema em diversas etapas concebido para responsabilizar

    um Estado acabaram culminando no abandono desse projeto e na

    proposio de um outro, o Projeto de 2001. Neste ltimo, ojus cogens, embora

    no mencionado nominalmente no texto que emprega o termo norma

    imperativa de direito internacional geral , recebeu tratamento especial. Por

    representar o estado atual do direito internacional sobre a questo, o Projeto de2001 ser a base deste nosso estudo.

    Cumpre-nos entretanto assinalar que, por se tratar atualmente de um

    Projeto, no se lhe pode conferir valor jurdico obrigatrio. Apesar de ter sido

    adotado pela Assemblia Geral da ONU atravs da Resoluo A/RES/59/35

    (2004), suas normas no caracterizam direito positivado, no tendo passado

    pelos mecanismos convencionais de aprovao e ratificao pelos Estados.2A

    despeito disso, os Artigos da CDI mesmo na sua verso anterior j soaplicados por cortes internacionais, inclusive pela Corte Internacional de

    Justia (CIJ), j que interpretados como expresso do costume internacional.3

    2O objetivo da Resoluo da AG justamente o de submeter o Projeto de Artigos de 2001 anlise e comentrios dos Estados membros da ONU. Caso obtenha ampla aceitao, oProjeto poder ser convertido em conveno internacional aberta adeso dos Estados.3O costume internacional, ao lado das convenes internacionais e dos princpios gerais dodireito, so as fontes por excelncia do direito internacional para a Corte Internacional deJustia (artigo 38 do Estatuto da CIJ). Concebido como prova de uma prtica geral aceita

    como sendo o direito, o costume portanto fonte de valor jurdico obrigatrio no direitointernacional, no existindo hierarquia entre o costume e a fonte convencional.

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    Afinal, o objetivo da CDI o de apreender normas de direito internacional j

    existentes e codific-las, baseando-se assim nas prticas e convices estatais

    existentes, o que no impede que uma certa criao de lege ferenda

    igualmente ocorra. Resultado de mais de 50 anos de trabalho, o Projeto de

    Artigos sobre a Responsabilidade Internacional dos Estados por Ato

    Internacionalmente Ilcito (2001) nos parece assim suficientemente relevante

    para constituir a linha mestra da nossa anlise.

    Inicialmente, o artigo fornecer um panorama geral do direito da

    responsabilidade internacional do Estado, apresentando noes bsicas de

    forma breve e concisa. Em seguida, faremos um resumo dos regimes de

    responsabilidade existentes segundo o Projeto de Artigos. Por fim, trataremosem especfico da violao do jus cogense suas conseqncias no campo da

    responsabilidade estatal.

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    2 A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO

    2.1 NOES ELEMENTARES

    Um Estado considerado responsvel perante o direito internacional

    quando ele comete um ato transgredindo esse direito. O fato gerador da

    responsabilidade estatal , pois, o ato ilcito internacional.4Para que este se

    configure, necessrio que uma conduta (ao ou omisso) (1) seja atribuvel

    ao Estado em virtude do direito internacional, e que ela (2) constitua uma

    violao de uma obrigao internacional do Estado.5

    Diferentemente dos direitos internos6, o dano no considerado comoum elemento configurador do ato ilcito, nem tampouco afigura-se

    indispensvel para gerar responsabilidade: o artigo 1 do Projeto de Artigos diz

    simplesmente que todo ato internacionalmente ilcito de um Estado acarreta

    sua responsabilidade internacional.

    A CDI nos seus Comentrios aos artigos expressa o ponto de vista

    segundo o qual o dano pode ser um elemento da responsabilidade se a norma

    primria o estabelecer.7

    Assim, a necessidade ou no do dano para oestabelecimento da responsabilidade dependeria do contedo da norma

    internacional em si, e no das regras sobre a responsabilidade estatal. So os

    termos do direito substancial que vo determinar se o descumprimento da

    obrigao independente ou no da existncia de um dano.

    4Embora seja possvel conceber igualmente a responsabilidade internacional dos Estados por

    atividades no proibidas pelo direito internacional (lcitas). Essa matria encontra-seatualmente em estudo na CDI, tratando principalmente do exerccio de atividades perigosas oude risco, ligando-se ao conceito de responsabilidade objetiva.5 Artigo 2 do Projeto de 2001. Cada uma das condies so normatizadas em detalhe noprojeto: os artigos 4 a 11 tratam da imputabilidade de um ato a um Estado, e os artigos 12 a 15da transgresso de uma obrigao internacional.6Como na lei civil brasileira, que exige o dano para a configurao do ato ilcito : Art. 186.Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causardanoa outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito. (Cdigo Civil Brasileiro lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002)7Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts with commentaries(2001), United Nations, 2005, p. 73. Cita-se como exemplo a hiptese de um tratado queestipula que o Estado deve criar uma lei nacional sobre um determinado assunto. Se o Estado

    no o faz, ele violou a obrigao prevista pelo tratado, sem que seja necessrio apontar-se umdano especfico decorrente dessa omisso para gerar a responsabilidade estatal.

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    Paradoxalmente todavia, o dano permanece em regra indispensvel

    para que se possa colocar a responsabilidade em prtica e exigir reparao. A

    obrigao de reparar tida como um princpio geral de direito internacional,

    nos dizeres da CIJ no caso Fbrica de Chorzw: um princpio de direito

    internacional que a violao de uma obrigao acarreta o dever de reparar de

    forma adequada.8Ora, difcil conceber a reparao se no houve dano. De

    fato, o artigo 31 do Projeto enuncia que o Estado responsvel tem o dever de

    operar a reparao total do dano causado pelo ato ilcito. assim que Barbosa

    questiona a posio do Projeto que, por um lado, exclui o dano como condio

    necessria da responsabilidade e, por outro, reclama-o quando chega o

    momento de colocar a responsabilidade em exerccio, ou seja, no momento dereparar.9 Pois nessa linha de raciocnio, ainda que dano no seja condio

    para a configurao da responsabilidade, ele necessrio para exercit-la:

    sem dano no haveria realmente responsabilidade, ou apenas uma

    responsabilidade platnica sem conseqncias prticas.10

    A ausncia do dano, no entanto, responde em verdade a um novo

    paradigma da responsabilidade, digno de uma viso mais evoluda da

    comunidade internacional consentnea com a idia do jus cogens. Oreconhecimento de uma ordem pblica internacional contendo normas

    superiores que transcendem os interesses individuais dos Estados, tambm

    repercutiu-se na noo do dano. Percebeu-se que a violao do jus cogensou

    de obrigaes erga omnes provocam, alm do dano material ou moral concreto

    vtima direta, um dano transcendente que afeta todos os membros da

    comunidade internacional, dada a amplitude das normas em questo. Ainda

    que no sofrendo dano direto, o desrespeito da norma por si s os afeta poistodos zelam pelo seu respeito; sua violao enfraquece a coeso sociolgica e

    normativa da sociedade internacional. Alguns autores sustentam que nesse

    caso houve um dano jurdico a toda a comunidade internacional,

    8Factory at Chorzw, Recueil de la C.P.J.I, 1927, p. 21.9BARBOSA, Julio. Legal Injury : the Tip of the Iceberg in the Law of State Responsibility? In:RAGAZZI, Maurizio. International Responsibility Today: Essays in Memory of Oscar Schachter.Leiden/Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2005, p. 9.10BARBOSA, Julio. Legal Injury : the Tip of the Iceberg in the Law of State Responsibility? In:

    RAGAZZI, Maurizio. International Responsibility Today: Essays in Memory of Oscar Schachter.Leiden/Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2005, p. 9.

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    independente do dano material ou moral causado vtima direta.11

    Analisaremos esse novo paradigma em maiores detalhes no captulo segunte,

    referente aos regimes de responsabilidade.12

    Aps esses breves esclarecimentos gerais, passamos anlise das

    relaes jurdicas existentes entre os sujeitos envolvidos quando ocorre um ato

    ilcito internacional.

    2.2 O ESTABELECIMENTO DO VNCULO DE RESPONSABILIDADE

    Conforme mencionado no item anterior, um dos elementos

    caracterizadores do ato ilcito a violao de uma obrigao internacional doEstado. As obrigaes internacionais podem ter as origens mais diversas. As

    mais comuns so de natureza convencional (provenientes de tratados

    internacionais) ou costumeira (oriundas do costume internacional), mas atos

    unilaterais, decises judiciais ou outras tambm podem ser fontes de

    obrigaes internacionais. Assim, de formas variadas os Estados podem ligar-

    se entre si atravs de uma malha de direitos e obrigaes. Desse vnculo

    interestatal nasce a chamada relao jurdica primria. As normasinternacionais existentes nesta relao so assim regras primrias, que

    determinam a substncia das obrigaes de fazer ou de no-fazer

    estabelecidas pelo direito internacional em domnios variados.13

    Ocorrendo a infrao da regra primria por um Estado, configura-se o

    ato ilcito internacional, suscitando a responsabilidade internacional deste

    Estado. A comisso do ilcito pelo Estado d ensejo a uma nova relao

    jurdica entre as partes. Trata-se de uma relao jurdica secundria, travadaentre o Estado infrator e o(s) Estado(s) vtima(s), regida no mais pelas regras

    substanciais (primrias) do direito internacional, mas sim pelo direito da

    11 Ver nesse sentido BOLLECKER-STERN, Brigitte. Le prjudice dans la thorie de laresponsabilit internationale. Paris, Pedone, 1973; STERN, Brigitte. Et si on utilisait le conceptde prjudice juridique? Retour sur une notion dlaisse loccasion de la fin des travaux de laC.D.I. sur la responsabilit des Etats. Annuaire Franais de Droit International, 2001, p. 3-44 ; eBARBOSA, Julio. Legal Injury : the Tip of the Iceberg in the Law of State Responsibility? In:RAGAZZI, Maurizio. International Responsibility Today: Essays in Memory of Oscar Schachter.Leiden/Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2005, p. 7-22.12

    Vide item 3.2.13DUPUY, Pierre-Marie. Droit international public. Paris: Dalloz, 2004, p. 458.

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    responsabilidade internacional. Esse direito assim composto de regras

    secundrias, que determinaro as conseqncias advindas da violao das

    regras primrias.

    A primeira espcie de relao obrigacional que pode existir entre

    Estados a de tipo bilateral, segundo a qual um Estado A possui uma

    obrigao internacional para com um Estado B, o qual possui por conseguinte

    um direito subjetivo correspondente.

    Essa relao bilateral inspirou a concepo clssica da

    responsabilidade estatal, focada sobretudo na reparao do dano. Segundo o

    ponto de vista bilateral, o vnculo primrio obrigacional e o vnculo secundrio

    de responsabilidade existem apenas entre o Estado autor da violao e oEstado que sofreu o dano. Se vrios so os Estados vtimas, o Estado infrator

    possui um vnculo bilateral com cada um deles. A relao secundria de

    responsabilidade consiste na obrigao de reparar para o Estado infrator e

    no direito de obter reparao para o Estado lesado.14

    Mais recentemente, o reconhecimento de um novo conceito de

    obrigao internacional revolucionou o direito da responsabilidade estatal.

    Trata-se do fenmeno das obrigaes erga omnes, obrigaes que sodevidas comunidade internacional como um todo. Diferentemente das

    obrigaes internacionais ordinrias, segundo as quais um Estado se vincula a

    outro de forma bilateral, as obrigaes erga omnes concernem todos os

    Estados, dada a sua importncia coletiva.15 Os exemplos desse tipo de

    obrigao muitas vezes correspondem a normas dejus cogens, embora no se

    restrinjam a estas, como ver-se- no captulo quatro. Citam-se assim a

    proibio dos atos de agresso e genocdio, obrigaes em matria de direitoshumanos e fundamentais, obrigaes referentes ao direito de auto-

    determinao dos povos, obrigaes de um Estado costeiro em relao a um

    canal internacional, proibio da tortura e obrigaes de represso

    correspondentes, algumas obrigaes em matria de meio-ambiente,

    14 VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p. 131-133.15

    Ver o caso Barcelona Traction Light and Power Company, Limited (Blgica v. Espanha),Recueil CIJ 1970, p. 32.

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    obrigaes de direito internacional humanitrio, entre outras.16 Para

    VILLALPANDO, para a identificao das obrigaes erga omnes relativas

    comunidade internacional como um todo deve-se pressupor um interesse

    coletivo, fundado sobre a existncia de bens comunitrios, que considerado

    digno de proteo jurdica e determina uma solidariedade em nvel universal.17

    A idia de que existem obrigaes que so devidas a toda a

    comunidade internacional inspirou uma outra concepo da responsabilidade

    estatal, diferenciada do regime bilateralista. Enquanto neste ltimo so os bens

    ou valores individuais de cada Estado que esto em jogo, o novo regime se

    aplica quando se lida com bens ou valores coletivos, que devem ser

    universalmente respeitados pela comunidade internacional. A violao de umaobrigao erga omnes criaria pois uma relao de responsabilidade

    diferenciada, segundo a qual de um lado figura o Estado violador e do outro

    toda a comunidade internacional.

    Atenta a essa evoluo, a CDI comentava que as conseqncias de

    uma concepo mais ampla da responsabilidade internacional devem ser

    necessariamente refletidas nos Artigos que, apesar de inclurem situaes

    bilaterais padro de responsabilidade, no so limitadas a estas18

    . Nessalinha, a Comisso materializa a diferenciao de regimes ao reconhecer no

    Projeto de 2001 que as obrigaes do Estado responsvel podem ser devidas

    a um outro Estado, a vrios Estados ou comunidade internacional como um

    todo, dependendo particularmente da natureza e do contedo da obrigao

    internacional e das circunstncias da violao.19

    Analisando o Projeto da CDI, Santiago VILLALPANDO sustenta que

    existem dois regimes de responsabilidade: o regime geral, baseado nasrelaes bilaterais entre Estados, e o regime comunitrio, em que o

    multilateralismo prima e atravs do qual infraes comunidade internacional

    como um todo so rebatidas coletivamente, em vista da preservao dos

    16 Vide VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p. 103-104.17 VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p. 104.18Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts with commentaries

    (2001), United Nations, 2005, p. 67.19Artigo 33 1 do Projeto de Artigos de 2001.

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    interesses de toda a sociedade internacional.20 Estudaremos mais

    detalhadamente esses dois regimes no captulo que segue.

    20

    VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p. 184.

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    3 OS REGIMES DE RESPONSABILIDADE

    3.1 O REGIME GERAL

    O regime ordinrio de responsabilidade destina-se a reger relaes

    bilaterais entre Estados. Trata-se do regime de responsabilidade, ento a

    relao bilateral que importa a secundria, travada entre o autor do ilcito e

    o(s) Estado(s) diretamente lesados (que sofreram um dano direto). Ainda que a

    relao secundria seja bilateral, ela pode decorrer tanto de um tratado

    bilateral, como de um tratado multilateral, de um costume ou outra fonte

    obrigacional; a bilateralizao da responsabilidade se d no momento em queocorre o dano, travando-se ento uma relao jurdica bilateral nova, que

    consiste na obrigao de reparar e de exigir reparao.

    As consequncias previstas pelo regime geral para a violao de uma

    obrigao internacional so de duas ordens: (1) a restaurao da ordem

    jurdica violada e (2) a reparao do dano.

    Na primeira categoria esto as obrigaes para o Estado responsvel

    de (1) cessao do ilcito, se este continuado; (2) apresentar garantias deno-repetio, se as circunstncias o requererem.21Tais conseqncias visam

    preservao da legalidade internacional, pois tem o fito de restaurar a ordem

    jurdica afetada pela violao.

    A cessao visa a pr um fim ao ilcito, enquanto que as garantias de

    no repetio tm carter preventivo e objetivam evitar a reincidncia. A

    cessao s pode ocorrer se o ilcito se perpetua no tempo ou se ele

    cometido repetidamente, pois se ele consistiu num nico ato (por exemplo,soltar uma bomba num Estado vizinho), ele cessa naturalmente aps o fato o

    que obviamente no exclui o advento de outras conseqncias reparatrias a

    serem arcadas pelo Estado responsvel. As garantias de no-repetio podem

    ser exigidas se h uma certa desconfiana de que o Estado infrator possa

    violar a obrigao mais uma vez (normalmente se j h um histrico de

    21Artigo 30 do Projeto de Artigos de 2001.

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    violaes reiteradas). A pertinncia dessa medida depende das circunstncias

    do caso e da obrigao envolvida.

    Cumulativamente, o Estado tem a obrigao de reparar o dano

    eventualmente causado. Os prejuzos sofridos so normalmente classificados

    como dano material ou dano moral. O primeiro consiste em prejuzo

    propriedade ou outros interesses materiais do Estado ou de seus nacionais que

    possuam valor econmico. O dano moral, por sua vez, consiste em sofrimento

    emocional ou afronta honra ou soberania estatal diretamente ou atravs da

    ofensa a seus nacionais.

    A reparao ocorre basicamente de trs formas: restituio,

    compensao e satisfao.22 Pela primeira delas, deve-se buscar arestaurao do estado anterior violao (status quo ante), como se o ilcito

    nunca houvesse ocorrido. A restituio uma forma preferencial de reparao,

    pois busca apagar as conseqncias do ilcito e restabelecer da melhor forma

    possvel a situao anterior, o que nem sempre praticvel. Nesse sentido, ela

    exigvel somente se sua realizao (1) no for materialmente impossvel e (2)

    no impuser ao Estado responsvel um nus que seria desproporcional ao

    benefcio auferido pela parte lesada.23

    Passa-se em seguida compensao (indenizao), que busca

    reparar financeiramente o dano quando a restituio afigura-se impossvel ou

    cria um nus desproporcional. a forma mais comumente empregada de

    reparao, dadas as dificuldades freqentes de realizar a restituio. Assim,

    fixa-se geralmente um valor indenizatrio baseado nas perdas sofridas que so

    suscetveis de avaliao pecuniria.

    E em terceiro lugar existe a satisfao, espcie de reparao moralsem valor econmico, como um pedido de desculpas ou o reconhecimento do

    erro. Ela a resposta para danos no materiais e no suscetveis de avaliao

    financeira, que normalmente representam uma afronta ao Estado.24 A

    22Artigo 34 do Projeto de Artigos de 2001.23Artigo 35 do Projeto de Artigos de 2001.24 A CDI em seus comentrios cita como exemplos de danos suscetveis de reparao viasatisfao: insultos a smbolos do Estado, como a bandeira nacional; violaes da soberania

    ou integridade territorial; ataques a navios ou aeronaves sob sua bandeira; mau tratamento ouataques deliberados aos chefes de Estado ou governo ou representantes diplomticos ou

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    determinao da forma mais apropriada de satisfao feita caso a caso, e

    no pode ser desproporcional ao dano nem representar uma humilhao para

    o Estado responsvel.25

    Alm dessas duas sortes de conseqncias enunciadas pelo direito

    internacional geral, outras mais especficas podem ser previstas por tratados

    especiais, constituindo lex specialis a ser seguida se a violao entrar no seu

    campo de aplicao.

    Para obter a restaurao da legalidade e a reparao do dano,

    geralmente necessrio que o Estado infrator seja acionado para responder por

    seus atos, j que dificilmente ele admitir espontaneamente seu erro e

    procurar remedi-lo. A implementao da responsabilidade do Estadodepende, prioritariamente, da ao do Estado lesado contra o infrator. Nesse

    sentido, o artigo 42 do Projeto estipula que

    Um Estado tem o direito de invocar, na qualidade de Estado lesado, aresponsabilidade de outro Estado se a obrigao violada for devida:

    (a) a este Estado individualmente; ou

    (b) a um grupo de Estados incluindo este Estado, ou comunidade

    internacional como um todo, e se a violao da obrigao:

    (i) afeta diretamente este Estado; ou(ii) de tal natureza que modifica radicalmente a posio de todos os outros

    Estados aos quais a obrigao devida no tocante execuo futura da

    obrigao.

    Como explicado, o vnculo de responsabilidade (secundrio) pode

    decorrer de relaes jurdicas primrias variadas: tratados bilaterais,

    multilaterais, atos unilaterais, costume internacional etc. Destas diversas fontes

    do direito internacional podem decorrer obrigaes de natureza bilateral,

    multilateral ou erga omnes. A hiptese prevista pela alnea a do artigo 42 a

    de uma obrigao primria assumida perante o Estado lesado individualmente

    (decorrente de um ato unilateral ou de um tratado bilateral, por exemplo). J a

    alnea b se refere a obrigaes multilaterais (devidas aos vrios Estados

    signatrios de um tratado) ou erga omnes (devidas a toda a comunidade

    consulares; e violaes a suas embaixadas ou consulados (Draft Articles on Responsibility ofStates for Internationally Wrongful Acts with commentaries (2001), United Nations, 2005, p.

    264-265).25Artigo 37 3 do Projeto de Artigos de 2001.

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    internacional, geralmente oriundas de normas consuetudinrias). Nesse caso, o

    Estado s poder agir na qualidade de Estado lesado se a violao da

    obrigao afetou-o diretamente (ou seja, causou um dano material ou moral

    direto) ou quando se trata de uma obrigao denominada integral (sub-alnea

    ii). As obrigaes integrais so aquelas cujo desrespeito afeta todos os Estados

    que assumiram a obrigao e aos quais ela igualmente devida. Exemplo

    claro um tratado sobre desarmamento, pelo qual os Estados partes se

    comprometem a destruir suas armas e a no desenvolver novas. Se um dos

    Estados infringe esse compromisso (desenvolvendo novo arsenal militar, por

    exemplo), todos os demais Estados so afetados, pois seu esforo conjunto

    pelo desarmamento foi frustrado. A performance de cada um dos Estadosdepende da performance dos demais. Assim, todos os signatrios de um

    tratado dessa natureza podem considerar-se lesados quando um deles o

    desrespeitou.

    Decidindo tomar medidas contra o Estado responsvel, o primeiro

    passo do Estado lesado deve ser o de notific-lo da sua reclamao,

    especificando (1) qual conduta este deve adotar a fim de cessar a violao, se

    esta contnua, e (2) qual a forma de reparao ele deve adotar.26

    Essanotificao no est sujeita a formalidades especiais. A prtica internacional

    variada.

    Diante da reticncia do infrator em responder por seus atos, pode o

    Estado lesado recorrer s chamadas contramedidas em direito internacional.

    Tais medidas por si s teriam carter ilcito, mas justificam-se quando utilizadas

    para redargir a um ato ilcito anterior. Pelo seu unilateralismo, as

    contramedidas podem dar margem a abusos estatais, razo pela qual seu usocomo instrumento da responsabilidade limitado.27 No contexto da

    responsabilidade estatal, as contramedidas devem ser empregadas para

    induzir o Estado responsvel a cumprir as obrigaes que lhe so impostas

    devido ao cometimento do ilcito. Elas possuem, assim, uma funo

    instrumental, devendo ser temporrias e dirigidas ao fim especfico de instigar o

    Estado infrator a cessar a violao e a reparar o ilcito.

    26

    Artigo 43 do Projeto de Artigos de 2001.27Vide arts. 49 a 53 do Projeto de Artigos.

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    Em resumo, o Estado lesado pode, a depender das circunstncias,

    exigir a cessao do ilcito, pedir garantias de no-repetio, solicitar reparao

    nas formas supra-mencionadas, e adotar contramedidas, alm de poder aplicar

    regras especiais de responsabilidade eventualmente existentes em lex

    specialis.

    3.2 O REGIME COMUNITRIO

    O regime comunitrio aplica-se quando a obrigao violada de

    natureza erga omnes. No se trata mais de uma relao bilateral, pois nesse

    caso quem figura no plo credor da relao a comunidade internacionalcomo um todo.O Estado responsvel pelo ilcito deve assim responder diante

    de toda a comunidade internacional.28 O regime comunitrio aplica-se

    igualmente s chamadas obrigaes erga omnes partes, que so devidas a

    um grupo de Estados e foram estabelecidas para preservar um interesse

    coletivo desse grupo.29

    Como vimos no item acima, o Estado lesado pode, segundo o artigo 42

    do Projeto, invocar a responsabilidade do Estado faltoso. Por Estado lesadoentenda-se o Estado que sofreu diretamente o dano (material ou moral),

    suscetvel de reparao sob forma de restituio, compensao ou satisfao.

    Tal cenrio facilmente compreensvel quando se pensa em relaes

    bilaterais: num plo encontra-se o Estado que cometeu o ilcito devedor da

    obrigao de reparar e no outro plo est o Estado vtima credor da

    reparao.

    A situao outra quando a obrigao violada erga omnes ou ergaomnes partes.Tal violaoafeta de forma diferente os Estados. Ainda que a

    obrigao seja devida a toda a comunidade estatal ou a um grupo de Estados,

    normalmente um nico ou poucos Estados sofrem realmente o dano (material

    28 VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p. 334.29So exemplos citados pela CDI: um tratado que cria uma zona de no-proliferao nuclearou um sistema regional de proteo dos direitos humanos. (Draft Articles on Responsibility of

    States for Internationally Wrongful Acts with commentaries (2001), United Nations, 2005, p.320)

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    ou moral) decorrente da violao; os demais so afetados mas de forma

    indireta, na esfera de seus interesses jurdicos. S os que suportaram

    diretamente o dano so considerados segundo a terminologia do projeto como

    Estados lesados, suscetveis de agir nessa qualidade contra o infrator.

    Pensando em termos gerais, parece evidente que Estados no

    diretamente lesados por um ato ilcito no possam agir contra o Estado

    transgressor. O dever de no ingerncia impe que eles no interfiram nas

    questes existentes entre Estado responsvel e Estado lesado. Se cada

    Estado se colocasse na posio de justiceiro universal e pudesse interferir

    sempre que uma violao do direito internacional fosse cometida, ainda que a

    infrao no o afete diretamente, seria o caos no meio internacional.Mas o reconhecimento de interesses comuns inaugurou uma exceo

    ao dever de no-ingerncia: na hiptese de violao de obrigaes erga

    omnes, Estados que no foram diretamente lesados podero agir. Isso se

    explica pela natureza particular dessas obrigaes, que concernem a

    comunidade internacional como um todo. Mesmo se apenas um ou poucos

    Estados foram diretamente atingidos (sofreram dano) pela violao de uma

    obrigao erga omnes, todos os demais foram afetados de forma indireta, poispossuem um interesse legal na sua validade e preservao. Eles sofrem o que

    alguns autores chamam de dano jurdico30: a simples violao da ordem

    jurdica os afeta, ainda que no exista dano concreto.

    Um exemplo esclarecedor dado pela Comisso nos seus Comentrios

    a hiptese de poluio do alto-mar violando o artigo 194 da Conveno das

    Naes Unidas sobre o Direito dos Mares: tal poluio pode impactar

    diretamente sobre um ou vrios Estados costeiros cujas praias e mares seroinfectados por resduos txicos, sofrendo danos materiais. Independentemente

    disso, os demais Estados Partes Conveno devem ser considerados

    indiretamente lesados pela violao, j que todos prezam pela preservao do

    meio-ambiente marinho, bem comum de todos os Estados.31

    30Ver autores citados na nota de rodap 11.31

    Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts with commentaries(2001), United Nations, 2005, p. 299-300.

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    Diante da violao de uma obrigao erga omnes, todos os Estados

    tm o direito, como membros da comunidade internacional, de invocar a

    responsabilidade do Estado infrator.32 Mas as prerrogativas de ao diferem

    segundo o grau de abalo sofrido: somente o Estado individualmente lesado

    dispe da plenitude dos direitos e faculdades criados pela perpetrao do ato

    ilcito. Os Estados no diretamente lesados gozam de direitos limitados.33

    Destarte, o Estado lesado invoca seu direito segundo o regime geral,

    podendo exigir cessao do ato, garantias de no-repetio e a reparao do

    dano. Os demais Estados, por sua vez, podem demandar ao infrator a

    cessao e garantias de no-repetio do ato, mas s podem solicitar a

    reparao do dano em prol do Estado lesado ou dos beneficirios da obrigaoinfringida34. Tal restrio plenamente compreensvel, visto que seria absurdo

    que o Estado no diretamente lesado reclamasse a reparao de um dano que

    ele no sofreu. Alm disso, caso o Estado lesado desista ou renuncie ao direito

    de reclamar reparao, os demais Estados devem respeitar sua deciso e no

    podero faz-lo individualmente.35 As prerrogativas dos demais Estados

    destinar-se-iam, assim, sobretudo restaurao da legalidade violada (atravs

    da cessao do ilcito e das garantias de no-repetio), atendendo ao seuzelo pela observncia das obrigaes erga omnes. A busca pela reparao

    ficaria para esses Estados em segundo plano, cabendo primeiramente ao

    Estado lesado. A cessao e no-repetio que eles podem exigir equivaleria a

    uma reparao jurdica, em resposta ao dano jurdico que sofreram pela

    violao de norma que lhes concerne na condio de membros da comunidade

    internacional.

    Quanto possibilidade de os Estados indiretamente afetados adotaremcontramedidas em caso de desrespeito de obrigao erga omnes, o Projeto

    no adotou posio clara. Seu artigo 54 reserva eventuais direitos destes

    32O mesmo se aplica para a violao de obrigaes erga omnes partes: todos os membros dogrupo em questo so aptos para agir.33SICILIANOS, Linos-Alexandre. Classification des obligations et dimension multilatrale de laresponsabilit internationale. In : DUPUY, Pierre-Marie (dir.). Obligations Multilatrales, DroitImpratif et Responsabilit Internationale des Etats. Paris : Pedone, 2003, p. 70.34Pessoas fsicas (nacionais) ou organizaes no-estatais.35

    Vide Comentrios da CDI ao artigo 45, Draft Articles on Responsibility of States forInternationally Wrongful Acts with commentaries (2001), United Nations, 2005, p. 307.

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    Estados de tomar medidas legais em prol da cessao do ilcito e reparao

    em benefcio do Estado lesado, mas no autoriza expressamente as

    contramedidas. Em seus Comentrios, a CDI sublinha que

    atualmente no parece haver uma faculdade claramente reconhecida aos

    Estados a que se refere o artigo 48 de adotar contramedidas de interesse

    coletivo. Conseqentemente no apropriado incluir nos presentes Artigos

    uma disposio sobre a questo se outros Estados, identificados no artigo 48,

    tem a permisso de adotar contramedidas para induzir um Estado responsvel

    a cumprir suas obrigaes. Em lugar disso, o Captulo II inclui uma clusula

    de salvaguarda que reserva a posio e deixa a resoluo da matria para odesenvolvimento futuro do direito internacional.36

    36

    Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts with commentaries(2001), United Nations, 2005, p. 355.

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    4 A VIOLAO DO JUS COGENS

    4.1 O REGIME DE RESPONSABILIDADE COMUNITRIA

    AGRAVADO

    Chegou o momento de indagar qual o papel do jus cogens no contexto

    da responsabilidade estatal. Se as violaes de obrigaes erga omnes

    implicam um regime especial de responsabilidade, de se esperar que um

    regime ainda mais particular seja reservado s violaes do jus cogens, visto

    sua importncia mxima para a ordem jurdica internacional.

    importante distinguir o jus cogens das obrigaes erga omnes.Primeiramente, perceba-se que o direito cogente abarca normas que se

    distinguem das demais pela imperatividade.37 J as obrigaes erga omnes

    so obrigaes, prescritas por normasque podem ter a natureza cogente ou

    no. Assim, pode-se dizer que, em regra, as normas de jus cogens criam

    obrigaes erga omnes, tendo em vista que destinam-se comunidade

    internacional como um todo. O oposto, entretanto, no exato: nem todas as

    obrigaes erga omnes so provenientes de normas imperativas.A doutrina costuma representar as normas de jus cogens e as

    obrigaes erga omnes como dois crculos concntricos, sendo que o crculo

    das obrigaes erga omnes maior e contm o crculo das normas

    imperativas, mas no se limita a estas.38

    Tambm no campo da responsabilidade, o tratamento destinado s

    normas cogentes configuraria um sub-regime dentro do regime comunitrio.

    Como ensina VILLALPANDO, o regime de responsabilidade comunitria seespecializa para favorecer estas normas: ao lado do regime comunitrio

    37Para um estudo completo sobre as normas imperativas, ver FRIEDRICH, Tatyana Scheila.Normas Imperativas de Direito Internacional Pblico: Jus Cogens. Belo Horizonte: Frum,2004.38 VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p. 106-107; TOUFAYAN, Mark. A Return toCommunitarianism? Reacting to Serious Breaches of Obligations Arising under PeremptoryNorms of General International Law under the Law of State Responsibility and United NationsLaw. The Canadian Yearbook of International Law, 2004, p. 209; SICILIANOS, Linos-Alexandre. Classification des obligations et dimension multilatrale de la responsabilit

    internationale. In : DUPUY, Pierre-Marie (dir.). Obligations Multilatrales, Droit Impratif etResponsabilit Internationale des Etats. Paris : Pedone, 2003, p. 69.

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    comum, aplicvel a todas as violaes de obrigaes devidas comunidade

    internacional como um todo (obrigaes erga omnes), encontra-se um regime

    comunitrio agravado, aplicvel em caso de violao grave de obrigao

    oriunda de norma imperativa de direito internacional geral, adicionando ao

    regime comum algumas conseqncias suplementares.39

    O Projeto da CDI no menciona nominalmente o jus cogens, mas a

    expresso empregada norma imperativa de direito internacional geral,

    idntica da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados uma

    referncia evidente a tais normas.

    O jus cogens assim tratado no Captulo III da 2a. Parte do Projeto,

    intitulado Violaes graves de obrigaes decorrentes de normas imperativasde direito internacional geral. Tal captulo compe-se de apenas dois artigos,

    reproduzidos a seguir:

    Artigo 40Aplicao deste Captulo

    1.O presente captulo aplica-se responsabilidade internacional que resulta

    de uma violao grave por um Estado de uma obrigao oriunda de uma

    norma imperativa de direito internacional geral.

    2.A violao de tal obrigao grave se ela denota uma violao flagrante ousistemtica da parte do Estado responsvel execuo da obrigao.

    Artigo 41

    Conseqncias especficas da violao grave de uma obrigao segundo este

    captulo

    1. Os Estados devem cooperar para pr um fim, por meios lcitos, todaviolao grave no sentido do artigo 40.

    2. Nenhum Estado deve reconhecer como lcita uma situao criada por uma

    violao grave no sentido do artigo 40, nem prestar auxlio ou assistncia

    manuteno da situao.

    3. O presente artigo no prejudica outras conseqncias suplementares que

    possam decorrer, segundo o direito internacional, de uma violao qual seaplica o presente captulo.

    Segundo o artigo 40 1, para se submeter ao regime especial de

    responsabilidade previsto no captulo, dois so os requisitos: (1) a violao de

    uma norma imperativa de direito internacional geral, e (2) que tal violao seja

    grave. O pargrafo 2 define o que uma violao grave: preciso que o

    Estado tenha violado uma norma dejus cogens sistematicamente ou de forma

    39

    VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p 254.

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    flagrante. Um nico caso de tortura, por exemplo, no suficiente para

    enquadrar o Estado neste captulo, preciso que a tortura seja uma prtica

    reiterada e faa parte de um sistema, quer dizer, seja organizada e

    deliberada.40Destarte, uma certa magnitude requisitada para configurar uma

    violao grave de norma imperativa e aplicar o regime de responsabilidade

    comunitrio agravado.

    As conseqncias diferenciadas enfrentadas pelos Estados que violam

    de forma grave uma norma imperativa so de duas ordens. Primeiramente,

    conforme prescreve o primeiro pargrafo do artigo 41, os Estados devem

    cooperar entre si para fazer cessar a violao, atravs de meios legais. A

    disposio vaga e no fornece grandes detalhes sobre como deve ocorrer talcooperao interestatal. Trata-se de uma obrigao imposta a todos os

    Estados: diretamente afetados pelo ilcito ou no, todos tm um dever de agir

    para pr fim violao. o dever de solidariedade que deve unir os membros

    da comunidade internacional, especialmente diante da gravidade da ofensa

    ordem pblica internacional. Com o advento da Declarao de Princpios sobre

    as Relaes Amigveis e de Cooperao entre os Estados, o dever de

    cooperao ganhou ateno especial, sendo considerado um dos princpiosfundamentais do direito internacional contemporneo.41 O Projeto quis dar a

    esse dever contornos de uma obrigao positiva quando est em risco uma

    norma imperativa.

    Entretanto, foroso reconhecer que o ditame imposto pelo artigo 411

    no uma realidade fortemente ancorada na comunidade estatal atualmente.

    Diante da perpetrao de um genocdio por um determinado pas, as reaes

    dos demais Estados variam enormemente, desde a ignorncia total de algunsat a ao armada unilateral de outros. Ora, a norma prescrita no Projeto de

    Artigos exige que toda a comunidade internacional aja unida, a cooperao

    para combater a infrao ao jus cogens passa a ser um dever, no mais

    40CRAWFORD, James. The International Law Commissions Articles on State Responsibility:Introduction, Text and Commentaries. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 247.41GATTINI, Andrea. Les obligations des tats en droit dinvoquer la responsabilit dun autretat pour violations graves dobligations dcoulant de normes impratives du droit international

    gnral. In : DUPUY, Pierre-Marie (dir.) Obligations multilatrales, droit impratif etresponsabilit internationale des Etats. Paris: Pedone, 2003, p. 151.

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    dependendo da boa vontade estatal. Fora de um contexto institucional (ONU

    por exemplo), dificil imaginar como tal dever poderia ser exigido na prtica de

    cada um dos Estados. Alm disso, uma cooperao ativa pode ser indesejada

    por alguns pases, e materialmente impossvel para outros devido a limitaes

    dos mais variados tipos.

    De qualquer forma, o objetivo primeiro desse pargrafo parece ser o de

    fomentar uma resposta multilateral e combater o unilateralismo, sobretudo

    porque os interesses em questo so coletivos. um passo importante em

    favor da solidariedade entre Estados, apesar das dificuldades prticas de

    execuo.

    Ademais, a obrigao implica que todos os Estados se interessem pelasituao ilcita, contrariamente ao tradicional princpio de no ingerncia nos

    assuntos de outros Estados. um sinal de que o sentimento da existncia de

    uma comunidade de Estados est se aperfeioando.

    A cooperao poderia ocorrer atravs de uma organizao

    internacional como a ONU, ou dar-se de forma no institucionalizada.42Para

    algumas infraes aojus cogensj existem respostas institucionalizadas, como

    o caso do Conselho de Segurana da ONU em caso de agresso armada.Para os demais casos, pode-se prever que a ausncia de parmetros seja

    fonte de incertezas e controvrsias na prtica.

    Alm do dever de cooperar, o art. 412 prev duas obrigaes

    negativas: a de no reconhecimento da situao ilegal, e a de no ajuda ou

    assistncia na sua manuteno.

    O reconhecimento da situao ilegal no pode ocorrer formal nem

    informalmente: Os Estados no podem fazer declaraes ou agir de forma areconhecer implicitamente como lcita a situao. Por exemplo, se um Estado

    invade outro e anexa-o ilegalmente, os demais Estados no poderiam celebrar

    tratados com o pas invadido atravs do novo governo ilegtimo. Tal obrigao

    j amplamente reconhecida e praticada internacionalmente.43

    42CRAWFORD, James. The International Law Commissions Articles on State Responsibility:Introduction, Text and Commentaries. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 249.43v. por exemplo a Resoluo 662 (1990) do Conselho de Segurana sobre a invaso do Kwait

    pelo Iraque, e o Parecer Consultivo da CIJ no caso Conseqncias Legais para os Estados daPresena Continuada da frica do Sul na Nambia, 1970, ICJ Reports 1971, 126.

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    A segunda obrigao a de no assistir ou ajudar a manter a situao

    ilegal.44 Essa proibio ampla aplica-se a qualquer tipo de ao que possa

    contribuir para a perpetuao do estado de ilegalidade, referindo-se pois a

    aes posteriores ao ilcito, e no a eventual ajuda ou assistncia prestada

    para o cometimento deste.

    O que se nota com uma certa estupefao que o regime agravado s

    impe conseqncias adicionais aos outros Estados, e no ao Estado autor do

    ilcito.45De fato, o artigo 41 no impe nenhuma obrigao ao Estado faltoso.

    As conseqncias para este seriam portanto as mesmas previstas pelo regime

    comunitrio comum. Tal impresso entretanto aparente, como bem sublinha

    VILLALPANDO ao explicar os impactos reais do regime agravado sobre oEstado responsvel:

    No que concerne a sua funo, as obrigaes do artigo 41 reforam a

    salvaguarda dos bens ou valores coletivos ao atribuir aos Estados o papel de

    garantes forados da aplicao da responsabilidade internacional. Enquanto

    no regime ordinrio de responsabilidade comunitria a invocao dasobrigaes secundrias do Estado faltoso entregue iniciativa

    discrecionria dos Estados, o regime agravado lhes impe um certo nmero

    de obrigaes mnimas em relao ao ato ilcito e garante assim a realizao

    de certos objetivos principais da responsabilidade comunitria. Por esse

    meio, a curiosa impresso inicial se explica: a situao jurdica do Estadoresponsvel na verdade afetada por ricochete, pois a reao (obrigatria)

    dos outros Estados ter por efeito lev-lo execuo da obrigao de colocar

    fim ao ilcito e priv-lo de certos frutos obtidos pela infrao da obrigao

    primria. Nessa perspectiva, as conseqncias suplementares codificadas pela

    CDI, longe de constiturem aspectos secundrios e insignificantes no

    contexto de um regime agravado, posicionam-se como uma pedra angular de

    um sistema visando a garantir a aplicao de um mnimo de garantias em

    matria de responsabilidade.46

    4.2 RELAO COM OS DEMAIS ARTIGOS DO PROJETO

    O pargrafo 3 do artigo 41 objetiva aplicar s violaes graves do jus

    cogens outros dispositivos do Projeto de Artigos e outras conseqncias

    44V. por exemplo as Resolues do Conselho de Segurana 418 (1977) e 569 (1985) proibindoajuda ou assistncia ao regime do apartheid na frica do Sul.45 Sobre o assunto, ver TAMS, Christian J. Do Serious Breaches Give Rise to Any SpecificObligations of the Responsible State? European Journal of International Law, 2002, vol. 13, n5, p. 1161-1180.46

    VILLALPANDO, Santiago. Lmergence de la communaut internationale dans laresponsabilit des Etats. Paris: PUF, 2005, p. 384.

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    previstas pelo direito internacional. Logo, as obrigaes do Estado lesado

    previstas pelo regime geral e pelo regime comunitrio tambm so aplicveis

    em caso de violao de norma imperativa, somando-se s conseqncias

    especficas previstas para esta infrao. Normas de direito internacional atuais

    ou futuras que prevejam outras conseqncias violao de normas de jus

    cogens so igualmente aplicveis.

    Aparentemente, a aplicao concorrente dos trs regimes de

    responsabilidade no apresenta grandes complicaes. O Estado diretamente

    lesado desenvolve uma relao bilateral secundria com o agressor,

    reclamando deste as obrigaes de cessao, no-repetio, e reparao do

    dano. Os demais Estados podem reclamar a cessao e a no-repetio, eeventualmente a reparao em benefcio do Estado lesado, e adicionalmente

    segundo o regime agravado tm a obrigao de cooperar para a cessao e

    de no reconhecer o ilcito nem contribuir para sua manuteno.

    Alguns artigos do Projeto sobre a implementao da responsabilidade,

    entretanto, parecem no se aplicar hiptese de violao grave de norma

    imperativa, como sublinha GATTINI47. o caso do artigo 44, que coloca como

    condies para o recebimento da demanda a nacionalidade da ao e oesgotamento de recursos internos. A primeira condio obviamente no pode

    se aplicar nem na hiptese de violao do jus cogens nem de outras

    obrigaes erga omnes, pois a partir do momento em que se admite que

    Estados diferentes do lesado possam acionar o responsvel pela infrao, no

    se pode exigir a regra da nacionalidade, que s o Estado lesado poderia

    cumprir. Quanto necessidade de esgotamento de recursos internos, trata-se

    de condio impossvel de executar nos casos tpicos de violao grave denorma imperativa como genocdio, escravido, tortura institucionalizada,

    agresso armada etc., j que normalmente nessas situaes o envolvimento do

    Estado na opresso de seus nacionais torna impraticvel para estes o recurso

    interno.

    47GATTINI, Andrea. Les obligations des tats en droit dinvoquer la responsabilit dun autretat pour violations graves dobligations dcoulant de normes impratives du droit international

    gnral. In : DUPUY, Pierre-Marie (dir.) Obligations multilatrales, droit impratif etresponsabilit internationale des Etats. Paris: Pedone, 2003, p. 163 e ss.

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    O artigo 45 do Projeto tambm no deveria se aplicar no caso de

    desrespeito de norma cogente. Ele prev que, caso o Estado lesado renuncie

    ao direito de acionar o Estado infrator ou abandone a causa, os demais

    Estados indiretamente afetados perderiam tambm o direito de agir contra o

    responsvel. Ora, tal impedimento conflita com a obrigao imposta pelo artigo

    41 a todos os Estados da comunidade internacional de cooperar entre si para

    pr fim a violao grave aojus cogens, algo difcil de atingir se a desistncia do

    Estado lesado impedir a ao dos demais Estados.

    Assim, diante do caso concreto, preciso fazer-se uma interpretao

    sistmica e teleolgica do sistema de responsabilidade para, se necessrio,

    afastar a aplicao de uma regra quando incompatvel com o esprito do juscogens.

    Por fim, interessante lembrar que o direito cogente mencionado em

    dois outros artigos do Projeto. No artigo 26, que faz parte do captulo que

    enumera circunstncias excludentes da ilicitude, determina-se que

    nada no presente captulo excluir a ilicitude de qualquer ato de um Estado

    que no esteja em conformidade com uma obrigao nascida de uma norma

    imperativa de direito internacional geral.

    Logo, em casos de fora maior, estado de necessidade ou perigo

    extremo o Estado no est autorizado a agir violando uma norma imperativa,

    pois mesmo que os interesses em jogo sejam importantes, eles no podem

    autorizar a violao dos interesses supremos da comunidade internacional em

    seu conjunto.

    Na mesma linha, o artigo 50 1 probe o uso de contramedidas que

    afetem obrigaes decorrentes de normas peremptrias.

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    5 CONCLUSO

    A acolhida do jus cogens no seio do direito da responsabilidade dos

    Estados representa o fortalecimento do um novo paradigma comunitrio, em

    formao desde o reconhecimento das normas imperativas e das obrigaes

    erga omnes pela comunidade internacional. Desenvolve-se assim o sentimento

    de que uma ordem pblica internacional governa e sujeita a soberania estatal,

    que um esprito comunitrio mais forte que as orgulhosas individualidades

    nacionais. As distores do mundo hodierno ainda no permitem afirmar que

    tal sentimento comunitrio esteja consolidado. As guerras tnicas e de poder

    ainda existentes em pleno sculo XXI, o crescimento de egosmos nacionaisxenfobos e separatistas, e as demonstraes de ausncia de valores morais

    superiores contrastam com aspiraes mais elevada por um mundo unido.

    O jus cogens o baluarte que permite sustentar o sonho de uma

    comunidade internacional um dia pacfica e entrelaada de forma slida, guiada

    pelo respeito mtuo e dirigida ao bem-comum. Longe ainda estamos desse

    mundo ideal, o que refora a necessidade de zelar pela observncia desse

    direito cogente malgrado os absurdos a que ainda assistimos com desgosto nacena internacional.

    A responsabilidade pela violao do direito imperativo, alguns

    sustentam, deveria ter sido mais dura do que estipulou o Projeto. No

    realista, entretanto, pensar nesses termos, pois a despeito dos arroubos de

    idealismo que por vezes permitem ao direito internacional voar mais alto, a

    prtica ainda est muito aqum do que prescrevem esses ideais. A recusa da

    figura do crime internacional e de uma responsabilizao mais rgida deladecorrente atestam que a comunidade internacional no est pronta para dar

    passos to grandes.

    O mrito do Projeto de 2001 foi o de ter guardado a essncia desse

    ideal comunitrio e ter criado um sistema de respostas factvel s violaes

    cometidas contra a comunidade internacional como um todo. Devagar e

    sempre, pois, os avanos do direito internacional em prol do comunitarismo vo

    se consolidando. assim que passamos da funo clssica da

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    responsabilidade consistente na reparao do dano individual a uma funo

    coletiva, visando sobretudo preservao da ordem jurdica internacional.

    O sistema de responsabilidade concebido para responder s violaes

    dojus cogens permite que, ainda que a anarquia seja a regra numa sociedade

    de Estados sem legislador nem juiz universal, seja possvel a cada um de seus

    membros zelar pela sua preservao da ordem pblica internacional e

    assegurar que as afrontas a esta ordem no fiquem isentas de conseqncias.

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