Resumos de Direito Penal i (3)

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Apontamentos de penal

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RESUMOS DE DIREITO PENAL I Manual do prof. Figueiredo Dias

I O Direito Penal em sentido formal

O conceito de direito penal

Chama-se direito penal ao conjunto de normas jurdicas que ligam a certos comportamentos humanos, os crimes, determinadas consequncias privativas deste ramo de direito. A mais importante destas consequncias a pena, a qual s pode ser aplicada ao agente que tenha atuado com culpa. ao lado da pena prev, porm, o direito penal consequncias jurdicas de outro tipo: so as medidas de segurana, as quais no supe a culpa do agente, mas a sua perigosidade.

Neste ramo de direito tudo haver de ser em funo da especificidade da consequncia jurdica da pena ou da medida de segurana criminais que nele tem lugar. Mesmo que devam fazer-se os maiores esforos para definir materialmente o crime, a verdade que um preceito legal pertencer apenas ao nosso ramo do direito se e quando, para o sancionamento de um certo comportamento ilcito ou antijurdico que prev, for prescrita uma pena ou uma medida de segurana criminais: so estes instrumentos sancionatrios que, em definitivo, determinam a pertinncia da matria ao ramo de direito aqui em estudo.

O que deixmos formalmente definido constitui o direito penal em sentido objetivo. Deste costuma distinguir-se o direito penal em sentido subjetivo (ius puniendi), como poder punitivo do Estado resultante da sua soberana competncia para considerar como crimes certos comportamentos humanos e ligar-lhes sanes especficas.

O mbito do direito penalQuando, na linguagem jurdica atual, se fala em direito penal , em regra, to-s o direito penal substantivo (direito penal material) que se quer abranger. Refere-se contudo tambm, por vezes, a existncia de um direito penal em sentido amplo ou de ordenamento jurdico-penal em sentido amplo que abrange: o direito penal substantivo; o direito processual penal, adjetivo ou formal; e o direito de execuo das penas e medidas de segurana ou direito penal executivo.

A distino de princpio entre estes trs sectores de um idntico ordenamento jurdico no oferece, de um ponto de vista terico, dificuldades de maior. Assim:

o direito penal substantivo visa a definio dos pressupostos do crime e das suas concretas formas de aparecimento e determinao tanto em geral, como em espcie, das consequncias ou efeitos que verificao de tais pressupostos se ligam (penas e medidas de segurana), bem como das formas de conexo entre aqueles pressupostos e estas consequncias; ao direito processual penal cabe a regulamentao jurdica dos modos de realizao prtica do poder punitivo estadual, nomeadamente atravs da investigao e da valorao judicial do crime indiciado ou acusado. Ao direito penal executivo pertence a regulamentao jurdica da efetiva execuo da pena e/ou medida de segurana decretadas na condenao proferida no processo penal.

II O comportamento criminal e sua definio: o conceito material de crime

O conceito material de crime

pergunta sobre o que seja materialmente o crime pode, antes de tudo, responder-se que ele ser tudo e s aquilo que o legislador considerar como tal seria unicamente a circunstncia de o legislador ter ameaado a prtica de determinado facto com uma pena criminal que transforma aquele facto em comportamento criminal. Este o conceito formal de crime. uma tal concepo inaceitvel e intil. Quando se pergunta pelo conceito material de crime procura-se uma resposta, antes de tudo, questo da legitimao material do direito penal, isto , questo de saber qual a fonte de onde promana a legitimidade para considerar certos comportamentos humanos como crimes e aplicar aos infratores sanes de espcie particular.

Existem, ento, diferentes perspectivas que tentam dar resposta questo.

A perspectiva positivista-legalista

Esta concepo identifica a legitimao material com a observncia do procedimento formal adequado ao Estado de Direito, isto , com a mera observncia do princpio da legalidade em sentido amplo. Pressuposta plena capacidade do legislador para dizer o que e o que no crime, nada fica a saber-se sobre as qualidades que o comportamento deve assumir para que o legislador se encontre legitimado a submeter a sua realizao a sanes criminais.

Em segundo lugar, uma concepo como a exposta no permite ligar a questo do conceito material de crime ao problema, em que aquela verdadeiramente se inscreve, da funo e dos limites do direito penal. A pergunta por um conceito material de crime s tem sentido se um tal conceito se situar acima ou atrs do direito penal legislado.

A perspectiva positivista-sociolgica

Um esforo srio e continuado de ultrapassar as deficincias notrias com que se debateu a concepo positivista-legalista do crime residiu na tentativa de encontrar o contedo deste numa noo sociolgica.

A tentativa de definir materialmente o crime como uma unidade de sentido sociolgico, autnoma e anterior qualificao jurdico-penal legal, passou a constituir uma ideia bsica adquirida da dogmtica do direito penal. Em favor de toda esta orientao h que reconhecer que, com ela, se procura pela primeira vez estabelecer, de forma concertada e sistemtica, um conceito pr-legal de crime; um conceito que, como tal, possui viabilidade para se arvorar naquele padro crtico do direito vigente e do direito a constituir sem o qual o conceito material de crime se torna imprestvel.

A concepo acabada de referir revela uma muito menor capacidade de rendimento na determinao do conceito material de crime do que aquelas que o traduzem na tutela subsidiria de bens jurdico-penais, que vamos analisar mais tarde.

deve-se-lhe, desde logo, censurar a sua impreciso, que se torna insuportvel quando se queira, como se quer, erigi-las em padro crtico de toda a criminalizao; acresce que, para alm da sua impreciso, esta concepo revela-se demasiado larga para por se ela alcanar os limites da criminalizao.

mesmo que possa concordar-se que todo o crime se traduz num comportamento determinante de uma danosidade ou ofensividade social, a verdade que nem toda aquela danosidade deve legitimamente constituir um crime.

A perspectiva moral (tico)-social

passagem do Estado de Direito formal ao Estado de Direito material correspondeu a introduo no conceito material de crime de um ponto de vista moral (tico)-social que leva a ver na essncia daquele a violao de deveres tico-sociais elementares ou fundamentais.

Esta concepo corresponde a uma atitude enraizada no esprito da generalidade das pessoas para quem o direito penal constituiria a traduo, no mundo terreno, das noes de pecado e de castigo, vigente na ordem religiosa, ou de imoralidade e de censura da conscincia, vigentes na ordem moral. Mas nem por isso pode uma tal concepo merecer, no plano da ordem jurdica estatal e, em particular, da ordem jurdico-penal, aceitao.

no funo do direito penal, nem primria, nem secundaria, tutelar a virtude ou a moral: quer se trate da moral estadualmente imposta , da moral dominante, ou da moral especfica de um qualquer grupo social.

Uma concepo deste teor , pois, absolutamente inadequada estrutura e s exigncias das sociedades democrticas e pluralistas dos nossos dias. Isto porque uma tal concepo no se adequada ao pluralismo tico-social das sociedades contemporneas, onde, em maior ou menor medida, coexistem por vezes de forma pacfica, por outras de forma tensa zonas de consenso com zonas de conflito, o que nem sequer permite que uma tal concepo possua hoje capacidade para se arvorar em padro crtico de um ordenamento jurdico-penal positivo constitudo ou a constituir.

A perspectiva racional: a funo de tutela subsidiaria de bens jurdicos dotados de dignidade penal (bens jurdico-penais)

A controvrsia acabada de referir conduziu introduo, na temtica da funo do direito penal ligada ao conceito material de crime, de uma perspectiva que, com particular razo, se pode qualificar de teolgico-funcional e racional:

de teolgico-funcional, na medida em que se reconheceu definitivamente que o conceito material de crime no podia ser deduzido das ideias vigentes a se em qualquer ordem extra-jurdica e extra-penal, mas tinha de ser encontrado no horizonte de compreenso imposto ou permitido pela prpria funo que ao direito penal se adscrevesse no sistema jurdico-social; de racional, na medida em que o conceito material de crime vem assim a resultar da funo atribuda ao direito penal de tutela subsidiria de bens jurdicos dotados de dignidade penal (de bens jurdico-penais), ou, o que dizer o mesmo de, bens jurdicos cuja leso se revela digna e necessria de pena.

Poder definir-se bem jurdico como a expresso de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manuteno ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso. A esta concluso s se chegou porm depois de uma evoluo longa, muitas vezes pluri-significativa ou mesmo equvoca e quase sempre eivada de dvidas e controvrsias que ainda hoje no se encontram definitivamente decididas (ver pgs. 115 e 116 sobre a evoluo do conceito).

Uma concepo teleolgico-funcional e racional do bem jurdico exige dele que obedea a uma srie mnima, mas irrenuncivel de condies, assim:

o conceito deve traduzir, em primeira linha, um contedo qualquer material, uma certa corporizao, para que possa arvorar-se em indicador til do conceito material de crime; ele deve servir, em segundo lugar, como padro crtico de normas constitudas ou a constituir, porque s assim pode ter a pretenso de se arvorar em critrio legitimador do processo de criminalizao; ele deve, finalmente, ser poltico-criminalmente orientado e, nesta medida, intra-sistemtico relativamente ao sistema social e, mais concretamente, ao sistema jurdico-constitucional.

o problema determinar de que forma pode o conceito obedecer a todas estas exigncias e, do mesmo passo, lograr a materialidade e a concreo indispensveis para que se torne utilizvel na tarefa prtica de aplicao do direito penal.

Os bens jurdicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizaes dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e ordenao social, poltica e econmica. por esta via que os bens jurdicos se transformam em bens jurdicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurdico-penal (bens jurdico-penais).

No constituindo o bem jurdico um conceito fechado e apto subsuno, bem se compreende que, apesar de toda a evoluo e progresso verificados, continuem hoje a discutir-se vrias questes relativas sua concreta verificao, como a de saber se protegem autnticos bens jurdicos incriminaes como, por exemplo, homicdio a pedido da vtima, interrupo voluntria da gravidez, propaganda do suicdio, etc.

Atrs de todas estas incriminaes possvel divisar a existncia de um bem jurdico-penal no sentido que acabou de estabelecer-se. O que sucede apenas que, relativamente a certas destas incriminaes, no estar tanto em causa a preexistncia ou no de um bem jurdico, quanto o grau legtimo de antecipao da sua proteo e, consequentemente, o momento a partir do qual o direito penal deve sentir-se autorizado para intervir em seu favor.

Nota: o art.18/2 CRP, ao dispor que as restries de direito, liberdades e garantias devem limitar-se ao necessrio para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, quer significar que:

a questo da legitimao do direito de punir estatal provm da exigncia de que o Estado s deve tomar de cada pessoa o mnimo dos seus direitos e liberdades que se revele indispensvel ao funcionamento sem entraves da comunidade; segundo a regra do Estado de Direito democrtico, o Estado s deve intervir nos direitos e liberdades fundamentais na medida em que isso se torne imprescindvel ao asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos outros ou da comunidade enquanto tal; o carcter pluralista e secularizado (laico) do Estado de Direito contemporneo vincula-o a que s utilize os seus meios punitivos prprios para tutela de bens de relevante importncia da pessoa e da comunidade e nunca para a instaurao ou reforo de ordenaes axiolgicas transcendentes.

Da concepo que v na tutela de bens jurdico-penais a especfica funo do direito penal e assim o elemento constitutivo mais relevante do conceito material de crime resulta uma srie de consequncias da mais decisiva importncia que devem ser aqui sublinhadas. Assim:

desde logo, puras violaes morais no conformam, como tais, a leso de um autntico bem jurdico e no podem, por isso, integrar o conceito material de crime, como, por exemplo, a prostituio. Para se tornar num direito tutelar de um bem jurdico perfeitamente definido e que reentra, de pleno direito, no captulo dos crimes contra as pessoas: o bem jurdico da liberdade e autodeterminao da pessoa na esfera sexual. H, deste ponto de vista, que criticar, por exemplo, a nova formulao dada ao crime de lenocnio, eliminando a exigncia de que o favorecimento da prostituio se ligasse necessariamente explorao de situaes de abandono ou de necessidade econmica. S por aqui, com efeito, o facto podia referir-se ao bem jurdico da liberdade ou autodeterminao sexual da prostituta. Agora uma tal ligao perdeu-se, surgindo a incriminao referida tutela de puras situaes tidas pelo legislador como imorais.

Do mesmo modo, no conformam autnticos bens jurdicos posies (ou imposies de fins) meramente ideolgicos, como, por exemplo, pr em causa a pureza da raa, propagar doutrinas contrrias a uma certa religio, etc. Nesta categoria reentrariam igualmente casos como o da criminalizao da aquisio ou posse de droga para consumo, em nome da existncia de uma sociedade livre de drogas ou da criminalizao integral do comrcio de rgos em nome da autntica doao de rgos, liberta de motivaes econmicas. Ainda aqui, os pretensos bens jurdicos perderiam a sua funo crtica para se tornarem em frmulas interpretativas dos tipos legais de crime respectivos.

Objeto de criminalizao no deve ainda constituir, por igual motivo, a violao de valores de mera ordenao, subordinados a uma certa poltica estatal e por isso de entono claramente jurdico-administrativo.

Se funo do direito penal de tutela subsidiaria de bens jurdico-penais se revela jurdico-constitucionalmente credenciada em qualquer autentico regime democrtico e pluralista (art.18/2 CRP), ento, tal deve ter como consequncia inafastvel a de que toda a norma incriminatria na base da qual no seja susceptvel de se divisar um bem jurdico-penal claramente definido nula, por materialmente inconstitucional, e como tal deve ser declarada pelos tribunais para tanto competentes.

no pode afirmar-se que, at hoje, o nosso TC tenha assumido uma posio clara e terminante sobre as questes de saber se so inconstitucionais todas as incriminaes das quais no possa com razovel segurana afirmar-se que elas se destinam proteo de um bem jurdico-penal. H mesmo decises face s quais legtimo duvidar que lhe tenha presidido um tal entendimento. No fltam outras, porm, onde essa concepo est patenteada, como, por exemplo, a deciso do Ac. 211/95.

Como vimos at agora, o conceito material de crime essencialmente constitudo pela noo de bem jurdico dotado de dignidade penal. Mas a esta noo tem ainda que acrescer um outro critrio que torna a criminalizao legtima. Este critrio adicional o da necessidade (carncia) de tutela penal.

A violao de um bem jurdico-penal no basta por si para desencadear a interveno, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensvel livre realizao da personalidade de cada um na comunidade.

A limitao da interveno penal acabada de referir deriva do princpio jurdico-constitucional da proporcionalidade em sentido amplo, que faz parte dos princpios inerentes ao Estado de Direito. Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanes especficas, os meios mais onerosos para os direitos e as liberdades das pessoas, ele s pode intervir nos casos em que todos os outros meios da poltica social, em particular da poltica jurdica no-penal, se revelem insuficientes ou inadequados. Quando assim no acontea, aquela interveno pode e deve ser acusada de contrariedade ao princpio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violao dos princpios da subsidiariedade (adequao) e da proibio do excesso.

Entre a ordem axiolgica constitucional e a ordem legal dos bens jurdicos tem que haver uma relao de implicao, no sentido de que todo o bem jurdico penalmente relevante tem que encontrar uma referencia, expressa ou implcita, na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais. Mas, justamente em nome do critrio da necessidade e da consequente subsidiariedade da tutela jurdico-penal, a inversa no verdadeira: no preciso sentido de que no existem imposies jurdico-constitucionais implcitas de criminalizao.

naturalmente onde o legislador constitucional aponte expressamente a necessidade de interveno penal para tutela de bens jurdicos determinados, tem o legislador ordinrio de seguir esta injuno e criminalizar os comportamentos respectivos, sob pena de inconstitucionalidade por omisso; onde, porm, inexistam tais injunes constitucionais expressas, da existncia de um valor jurdico-constitucionalmente reconhecido como integrante de um direito ou de um dever fundamentais no legtimo deduzir sem mais a exigncia de criminalizao dos comportamentos que o violam.

isto porque no pode ser ultrapassado o inevitvel entreposto constitudo pelo critrio da necessidade ou da carncia da pena.

A restrio da funo do direito penal tutela de bens jurdico-penais, por um lado, e o carcter subsidirio desta tutela e, sintonia com o princpio da necessidade, por outro, conduzem justificao de uma proposio poltico-criminal fundamental: a de que, para um eficaz domnio do fenmeno da criminalidade dentro de coras socialmente suportveis, o Estado e o seu aparelho formalizado de controlo do crime devem intervir o menos possvel e devem intervir s na precisa medida requerida pelo asseguramento das condies essenciais de funcionamento da sociedade. A esta proposio d-se o nome de princpio da no-interveno moderada.

A definio social do crime

A realidade do crime no resulta apenas do seu conceito, ainda que material, mas depende tambm da construo social daquela realidade: ele em parte produto da sua definio social, operada em ltimo termo pelas instncias formais (legislador, polcia, ministrio pblico, juiz) e mesmo informais (famlias, escolas, igrejas, clubes, vizinhos) de controlo social assim, a realidade do crime deriva tambm da combinao de determinadas qualidades materiais do comportamento com o processo de reao social quele, conducente estigmatizao dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes.

Na sntese final, tem de entrar o comportamento e a sua definio social; por outras palavras, o conceito material de crime tem que ser complementado pela referencia aos processos sociais de seleo, determinantes em ltimo termo daquilo que concreta e realmente (e tambm juridicamente) tratado como crime.

A crise atual do direito penal do bem jurdico

O paradigma penal das sociedades democrticas do nosso tempo consubstancia-se na funo exclusiva do direito penal de tutela subsidiaria de bens jurdico-penais. No momento presente comea a perguntar-se com insistncia crescente se um tal paradigma ter capacidade para persistir no sculo que inicimos. Ou se, pelo contrrio, existem no horizonte sinais da necessidade de uma nova revolutio das concepes bsicas, nomeadamente e sobretudo no que toca compreenso da funo do direito penal no sistema social e, por conseguinte, manuteno, alterao ou superao do modelo do direito penal do bem jurdico.

Existem, ento, vrias dificuldades que se devem referir, como sendo:

ps-modernidade e globalizao: esta ideia anuncia o fim desta sociedade e a sua substituio por uma sociedade exasperadamente tecnolgica, massificada e global, onde a ao humana, as mais das vezes annima, se revela susceptvel de produzir riscos globais; legitimao substancial: a adequao do direito penal sociedade de risco implica uma nova poltica criminal que abandone a funo minimalista de tutela de bens jurdicos e aceite uma funo promocional e propulsora de valores orientadores da ao humana na vida comunitria, para que haja um papel na proteo das geraes futuras; modelo de racionalidade: necessrio preconizar o aparecimento de uma nova dogmtica jurdico-penal disposta a abandonar e substituir princpios at aqui to essenciais, como os da individualizao da responsabilidade penal, e a considerar a nova luz questes como as da causalidade, da imputao objetiva, do erro e da culpa, da autoria.

A cincia do direito penal comea a reagir a estas dificuldade, reconhecendo que no pode ficar espera que se verifiquem resultados lesivos das condies de vida da humanidade para s, ento, fazer intervir o arsenal punitivo.

Tentativas de resoluo do problema

Perante as dificuldades apontadas existem diversas tentativas de resoluo do problema que cabem agora analisar.

A concepo antropocntrica (monista-pessoal) do bem jurdico-penal: h quem sustente que o direito penal no deve nem pode arvorar-se em instrumento de tutela dos novos e grandes riscos prprios da sociedade presente e, ainda mais, da sociedade do futuro. Dizem ento que h, pelo contrrio, que guardar o patrimnio ideolgico do Iluminismo Penal, reservando ao direito penal o seu mbito clssico de tutela e os seus critrios experimentados de aplicao. Deve inclusivamente reforar-se a ideia de que se est perante um autntico bem jurdico-penal somente quando ele se possa conceber como expresso de um interesse do indivduo. Deste ponto de vista, para proteo perante os mega-riscos da sociedade ps-industrial s pode ser pedido auxlio a outros ramos de direito (no penal) e, porventura sobretudo, a meios no jurdicos de controlo social.

A funcionalizao intensificada da tutela penal o abandono do direito penal do bem jurdico em favor de um direito penal do risco: no outro extremo de perfilam aqueles que preconizam a criao de um direito penal por inteiro funcionalizado s exigncias prprias da sociedade do risco. E que implicariam, antes de tudo, uma alterao do modo prprio de produo legislativa em matria penal, retirando aos Parlamentos a reserva de competncia neste domnio, para a atribuir aos executivos; depois, uma antecipao decidida da tutela penal para estados prvios da leso de interesse socialmente relevantes, mesmo correndo o risco de assim se perder a ligao entre a conduta proibida e o bem jurdico tutelado.

O direito penal de tutela de relaes de vida como tais: h que aceite e proclame a funo irrenuncivel que cabe ao direito penal na tutela das geraes futuras. Funo relativamente qual, porm, parece impossvel falar-se em tutela de bens jurdico-penais na acepo tradicional e ainda hoje dominante. Ao que acrescer a circunstncia de uma tal tutela das geraes futuras perante riscos globais implicar o afastamento de um direito penal do resultado, para se tornar em um direito penal do comportamento, atravs do qual se penalizem puras relaes da vida como tais. Por outras palavras, o desempenho da funo penal passa pela tutela de normas de comportamento, afastando-se do dano e mesmo do perigo do dano, pois de perigo s pode falar-se com referencia a bens jurdicos concretos.

Posies intermdias: perante as posies extremas que vimos at agora, vm surgindo diferentes vias intermdias. So elas:

a expanso do direito penal: esta via pretende responder ao problema atravs de um poltica e de uma dogmtica criminais duais ou dualistas. Deve, segundo ela, manter-se a existncia de um cerno do direito penal, relativamente ao qual valham, imodificados, os princpios do direito penal clssico, dirigido proteo subsidiaria de bens jurdicos individuais, assente na individualizao da responsabilidade e consequentemente na ao, na imputao objetiva e subjetiva, na culpa e na autoria. Mas deve existir tambm uma periferia jurdico-penal, especificamente dirigida proteo contra os grandes e novos riscos, onde aqueles princpios se encontrem amortecidos ou mesmo transformados, dando lugar a outros princpios, de flexibilizao controlada, assentes na proteo antecipada de interesses coletivos mais ou menos indeterminados, sem espao, nem tempo, nem autores, nem vitimas, definidos ou definveis.

Os bens jurdicos dotados de referente pessoal: uma outra concepo intermdia, muito difundida, reconhece que nem toda a interveno do direito penal dos novos riscos ilegtima ou tem de conduzir substituio da categoria do bem jurdico por um conjunto de perigos indeterminados. Neste domnio, ainda possvel comprovar a existncia de bens jurdicos, pessoais e patrimoniais, possuidores de novas caractersticas, mas dotados de um ncleo essencial capaz de atuar como padro crtico da incriminao. Trata-se de bens que tm ainda um referente pessoal e, por isso, se mostram capazes de conceder materialidade ideia de dano e de ofensividade. O referente pessoal subjacente fundamenta uma estrutura relacional daquele bem, o que permite distinguir esta categoria de bens, que so da sociedade civil, dos bens coletivos, onde aquele referente est ausente e pertencem ao Estado. Assim se alcana uma concepo dualista de bens jurdico-penais: os bens jurdicos individuais por um lado, e por outros os bens jurdicos supra-individuais dotados de referente pessoal e de base antropocntrica, na medida em que, apesar de no serem de uso exclusivo de um indivduo, so susceptveis de serem frudos individualmente (por exemplo, o ambiente).

Os bens jurdico-penais instrumentais: partindo da noo de bem-jurdico penal como portador de valores essenciais existncia humana, h autores que, ao lado dos valores essenciais como a vida, a integridade fsica, a liberdade e a propriedade, colocam outros valores-meios ou instrumentos. Tratar-se-ia neles de bens jurdicos cujo domnio de eleio se situa as mais das vezes no direito de mera ordenao social, mas que, tendo em conta o seu valor instrumental na proteo das condies essenciais necessrias existncia humana, assumiram relevncia penal, constituindo como que uma tcnica de tutela antecipada de valores-fins essncias. Os delitos que ofendem estes bens valores-meios no seriam simples crimes de perigo, uma vez que se trata neles de bens jurdico-criminais independentes: ao contrrio do que acontece nos crimes de perigo, onde este integra uma nota caracterizadora da conduta do agente, o perigo converte-se agora no elemento fundamentador e constitutivo do prprio bem jurdico.

A subsistncia do modelo do direito penal do bem jurdico na sociedade do risco

De um ponto de vista poltico-criminal, a questo bsica reside em saber se a introduo de topos da sociedade do risco no direito penal tem por fora de significar o fim da proteo de bens jurdicos.

Ora, para se circunscrever exatamente, logo partida, o mbito problemtico, dever afirma-se que reconhecer como funo exclusiva do direito penal a tutela subsidiria de bens jurdicos no implicar limitar a interveno de sano criminal apenas em que se verifique uma efetiva leso do bem jurdico. Pode haver tambm a punio da tentativa onde, por definio, no chega a lesar-se o objeto da ao.

a antecipao da tutela penal justifica-se e legtima, desde que com ela no se perca de vista a funo de proteo de bens jurdicos que constitui o fundamento legitimador de qualquer sistema jurdico-penal caracterstico de um Estado de Direito.

Mas a pergunta : constituir a tutela dos grandes e novos riscos da sociedade ps-industrial o fim do modelo do direito penal do bem jurdico?

Sem dvida que sim, quando se esteja disposto a aceitar uma funcionalizao intensificada da tutela penal s exigncias prprias da sociedade de risco. No entanto, deve manter-se a recusa de qualquer concepo penal baseada na extenso da criminalizao, que transforme o direito penal em instrumento dirio de governo da sociedade e em promotor ou propulsor de fins de pura poltica estadual.

Mas um direito penal do bem jurdico ter igualmente de ser abandonado na sociedade do risco se se considerar que, para que o bem jurdico cumpra a funo do critrio legitimador e de padro crtico da incriminao, se torna indispensvel um seu carcter extremamente antropocntrico, que dele s permite falar quando esto em causa interesses reais, tangveis e portanto tambm atuais do indivduo. Para controlo das fontes dos novos riscos tornam-se indispensveis normas de comportamento cuja violao, nos casos mais graves, exige uma punio penal. Esperar uma tutela capaz de meios no jurdicos de poltica social afigura-se expectativa inconsciente.

Igualmente ter de ser abandonado o direito penal do bem jurdico quando se defenda que bens jurdicos da comunidade s podem reconhecidos se e na medida em que eles se constituam em meros mediadores tambm como bens jurdicos individuais. Na opinio do prof. Figueiredo Dias, questo suscitada, de saber se na sociedade do risco pode ainda manter-se o modelo do direito penal do bem jurdico, dever em definitivo responder-se que sim, na medida em que possa e deva afirmar-se que, ao lado dos bens jurdicos individuais ou dotados de referente individual e aos mesmo nvel de exigncia tutelar autnoma, existem autnticos bens jurdicos sociais, comunitrios, universais, colectivos. Se pretender conferir-se ao direito penal uma funo de tutela perante os mega-riscos ameaadores da subsistncia da humanidade, a preciso assentar em que o problema jurdico-penal modestamente um problema de ordenao social.

Os bens jurdicos coletivos devem ser aceites como autnticos bens jurdicos, ou seja, que tambm nesta categoria de bens jurdicos possa reconduzir-se, em ltimo termo, a interesses legtimos da pessoa.

o carcter coletivo do bem jurdico no exclui a existncia de interesses individuais que com ele convergem: se todos os membros da comunidade se veem prejudicados por condutas pesadamente poluidoras, cada um deles no se deixa, individualmente, de s-lo tambm e de ter um interesse legtimo na preveno das condies vitais.

A verdadeira caracterstica do bem jurdico coletivo ou universal reside, pois, em ele poder ser gozado por todos e por cada um, sem que ningum deva poder ficar excludo desse gozo: nesta possibilidade de gozo reside o interesse individual legtimo na integridade do bem jurdico coletivo.

Resta a objeo de que a multiplicidade de condutas perigosas para a manuteno das condutas gerais da vida conduz a que o delito coletivo perca a sua determinabilidade numa medida insuportvel face ao princpio da legalidade e que o bem jurdico por aquele protegido se torne imperscrutvel para os seus destinatrios.

O prof. Figueiredo Dias no pensa que isto seja bem assim: em conta tem que se ter que o contedo integral do ilcito dos delitos coletivos ter frequentemente de ser exprimir em funo de normas extra-penais, nomeadamente administrativas, havendo uma ideia de acessoriedade administrativa.

Nota: todas estas dificuldades tm de ser assumidas, como se tem que trabalhar na reduo do seu mbito problemtico.

Concluindo, parece que nos devemos aproximar na ideia de que a tutela dos grandes riscos e das geraes futuras pode em certos casos passar pela assuno de um direito penal do comportamento em que so penalizadas e punidas puras relaes da vida como tais. No se trata com isto, porm, de uma alternativa ao direito penal do bem jurdico: ainda aqui, a punio imediata de certas espcies de comportamentos feita em nome da tutela de bens jurdicos coletivos e s nesta medida se encontra legitimada.

III A cincia conjunta do Direito penal

Da enciclopdia das cincias criminais cincia conjunta do direito penal

Desde h muito tempo e por toda a parte se reconhece que o crime constitui um fenmeno de patologia social diversificado, que releva no apenas de condicionalismos exgenos, mas tambm de substratos endgenos componentes da mais complexa de todas as realidades: a realidade humana.

Ao longo do sc. XIX, quando se estabeleceu o estatuto do pensamento cientfico moderno, o crime tornou-se em objeto de uma multiplicidade de cincias. A este conjunto vastssimo de disciplinas cientficas que tm o crime por objeto chamou Von Liszt a enciclopdia das cincias criminais.

O conhecimento de todas estas cincias no podem hoje deixar de ser tomados em conta pela cincia estrita do direito penal, ou dogmtica jurdico-penal. Para a compreenso cientfica da tarefa de aplicao do direito penal no basta o conhecimento das normas jurdico-penais, antes se torna indispensvel o domnio das contribuies que a gama das cincias criminais pode validamente fornecer.

At finais do sc. XIX, a dogmtica jurdico-penal era a nica cincia que servia a aplicao do direito penal e, por conseguinte, a nica que o jurista podia e devia legitimamente cultivar.

Apareceu, com Von Liszt, o modelo tripartido a que chamou a cincia conjunta (total ou global) do direito penal. Uma cincia conjunta, esta, que compreendia como cincias autnomas: a cincia estrita do direito penal: concebida, ao sabor do tempo, como o conjunto de princpio que subjazem ao ordenamento jurdico-penal e devem ser explicitados dogmtica e sistematicamente; a criminologia: como cincia das causas do crime e da criminalidade; a poltica criminal: como conjunto sistemtico dos princpio fundados na investigao cientfica das causas do crime e dos efeitos da pena, segundo os quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio da pena e das instituies com esta relacionadas.

A evoluo do estatuto das cincias criminais

Desde o momento em que Von Liszt cunhou a ideia de uma cincia conjunta ou global do direito penal at aos nosso dias no se tornou pacfico o estatuto que dentro dela deveria caber a cada uma das trs cincias que a compem, nem to pouco a sua hierarquia e modo como elas devem relacionar-se entre si.

Apesar de todo o relevo que Von Liszt concedia poltica criminal e criminologia no seio da cincia conjunta do direito penal, era a dogmtica jurdico-penal que, no seu pensamento, deveria continuar a ocupar o primeiro lugar das cincias criminais. Como formulou o prprio o direito penal constituiu a barreira intransponvel da poltica criminal.

Esta proposio continua a concitar a ateno e a exegese dos estudos e a dar lugar s interpretaes mais diversas. Tudo isto se compreende, desde logo, em perspectiva ideolgica. O tempo de Von Liszt era o do Estado de Direito forma, de vertente liberal e individualista; isto , de um Estado subordinado a esquemas rgidos de legalidade formal, mas alheio valorao das conexes de sentido, dos fundamentos axiolgicos e das intenes de justia matria nsitos nos contedos definidos atravs daqueles esquemas.

Os pressupostos jurdico-polticos e metodolgicos que sustentavam a concepo acabada de desenhar pertencem ao passado. O Estado de Direito formal, de vertente liberal e individualista, foi substitudo, na teorizao das doutrinas do Estado, pelo paradigma do Estado Social: de um Estado que atenuou as exigncias de legalidade formal em favor da promoo e da realizao das condies de desenvolvimento harmnico e equilibrado do sistema social. Agora hora do predomnio absoluto do social e de um certo menosprezo do jurdico.

Tinha assim chegado a hora da independncia da poltica criminal face ao direito penal e sua dogmtica. As relaes da poltica criminal com a dogmtica jurdico-penal pareciam terminadas, para serem substitudas por uma espcie de ligao direta de cada uma das antigas disciplinas integrantes da cincia conjunta do direito penal, ao sistema social como tal.

Uma concepo como a que se acaba de referir apresenta vantagens em relao concepo anteriormente considerada:

sua luz se compreende que o jurdico e a sua dogmtica no so algo de diferente e de separado do sistema social, mas antes se presentam como verdadeiros sistemas do sistema social; compreende-se ainda que a poltica criminal no uma simples cincia auxiliar do direito penal e da sua dogmtica, que s atuaria dentro dos limites que lhe so assinados pelas normas jurdicas aprovadas pelo parlamento; como se torna claro que o direito penal constitui apenas um dos componentes do sistema global de controlo social e se encontra por isso numa rede de mltiplas relaes e interdependncias com outras formas de resoluo de conflitos sociais.

H no entanto que perguntar a que custo se obtm e se compreendem estas vantagens.

O estatuto das cincias criminais no quadro do Estado de Direito contemporneo e de um sistema jurdico-penal teolgico-funcional e racional

A evoluo do estatuto da poltica criminal perante a dogmtica jurdico-penal e criminologia em direo a um novo estdio foi cumprida quando as concepes prprias de Estado de Direito formal, de natureza liberal e individualista, e do Estado Social, mais preocupado com o funcionamento do sistema social do que com o imprio da regra de direito, cederam o lugar concepo que, de forma compreensiva, ser aqui referida como a do Estado de Direito material contemporneo.

Sob esta designao quer-se compreender todo o Estado democrtico e social que mantm intocada a sua ligao ao direito, e mesmo a um esquema rgido de legalidade, e se preocupa por isso antes de tudo com a consistncia dos direitos, das liberdades e das garantias da pessoa; mas que, por essa mesma razo, se deixa mover, dentro daquele esquema, por consideraes de justia n promoo e na realizao de todas as condies do desenvolvimento mais livre possvel da personalidade tica de cada um.

No contexto deste Estado de Direito material a funo e a tarefa da dogmtica jurdico-penal transformam-se profundamente. O jurista deixa de ser considerado um simples fazedor de silogismos, que se limita a deduzir do texto da lei as solues dos concretos problemas jurdicos da vida, para se tornar em algum sobre quem recai a indeclinvel responsabilidade de procurar e encontrar a soluo mais justa para cada um daqueles problemas. Deste modo, a questo metodolgica volta a adquirir particular ressonncia, nomeadamente quanto a saber at onde o pensamento do problema se pode introduzir no problema do sistema, em geral dominante na dogmtica jurdico-penal.

Uma das vertentes da questo respeita deciso sobre se a dogmtica jurdico-penal deve apresentar cunho estritamente normativo ou se, pelo contrrio, deve considerar-se pr determinada pela estrutura ontolgica dos conceitos que utiliza. Na resposta a esta pergunta continua ainda hoje vlida uma considerao diferenciada.

A matria de regulamentao e de considerao dogmtica no retira o seu contedo de sentido da valorao do legislador ou do aplicador, antes previamente dada atravs de princpios e estruturas de desenvolvimentos nticos, atravs da natureza das coisas. Importar sempre ainda escolher, de entre os diversos sentidos de juridicidade que os dados apriorsticos permitem, atravs de uma valorao autnoma, aquele que deve constituir o fundamento da regulamentao ou da resoluo do concreto problema jurdico-penal em causa. Quando, porm, em seguida, se afronta a questo do critrio da valorao, no suficiente dizer que o legislador o escolhe em inteira liberdade e que o intrprete s ter de o ir buscar lei. A soluo antes ter de se alcanar por uma via apontada para a descoberta de uma soluo justa do caso concreto e simultaneamente adequada ao sistema jurdico-penal.

Por esta via se rejeita o puro dedutivismo conceitualista que infelizmente no se pode dizer de todo ultrapassado na dogmtica jurdico-penal. Mas por igual se rejeita a legitimidade para, a partir de estruturas nticas ou lgico-materiais pr-jurdicas, extrair delas, por necessidade, a soluo de problemas jurdico-penais prticos.

O lugar cimeiro que assim se concede ao pensamento do problema na dogmtica jurdico-penal no significa porm negligenciar ou sequer minimizar o papel irrecusvel que nela continua a pertencer ao pensamento do sistema. Como bem diz Claus Roxin o sistema um elemento irrenuncivel do direito penal de um Estado de Direito. E no s por razes ligadas segurana na aplicao do direito, mas porque fora do sistema ou independentemente dele no haveria nunca garantia de ser encontrada a soluo justa e adequada para um caso jurdico-penal. Por isso o pensamento do problema tem, no mbito que se trata, de coexistir forosamente com o pensamento do sistema.

O sistema jurdico-penal possui de todo o modo a sua teologia prpria, a sua especifica ndole funcional e a sua racionalidade estratgica; bem podendo afirmar-se que ele , nesta acepo e nesta medida, mais que um sistema autnomo, um sistema autopoitico.

isto no significa, porm, a recusa da interveno de consideraes axiolgicas, de pontos de vista de valor, de critrios de validade e de intencionalidade normativas na dogmtica, nem, muito menos, o pronunciamento a favor de argumentos de pura engenharia social.

Ficam assim apontadas as coordenadas essenciais da assuno de uma atitude metodolgica correta no trabalho sobre a dogmtica jurdico-penal. Do que nela se trata, em ltimo termo, de encontrar solues justas e adequadas para concretos problemas da vida de relao comunitria.

Foi precisamente o alargamento que se acaba de referir, da funo da dogmtica jurdico-penal que permitiu poltica criminal no somente reforar a sua posio, j adquirida, de autonomia, mas ganhar uma posio de domnio e mesmo de transcendncia face prpria dogmtica. Daquele alargamento resultam, com efeito, algumas consequncias fundamentais que serviro para uma caracterizao mais exata do novo estatuto da poltica criminal no contexto de uma renovada cincia conjunta do direito penal.

A primeira consequncia a de que as categorias e os conceitos bsicos da dogmtica jurdico-penal devem agora ser no simplesmente penetrados ou influenciados por consideraes poltico criminais: eles devem ser determinados e cunhados a partir de proposies poltico-criminais e da funo que por estas lhes assinalada no sistema. A partir daqui se compreende a segunda consequncia. A poltica criminal, de cincia simplesmente competente para as tarefas da reforma penal, cujas proposies, por conseguinte, no podiam ser levadas em conta pelo jurista seno no plano de iure constituindo, torna-se em cincia competente para, em ltimo termo, definir os limites da punibilidade. Na medida em que a poltica criminal quer atingir as finalidades que a si mesma se comete atravs do direito penal, ela ter de o fazer respeitando os princpios estruturais deste direito: o direito penal constitui nesta acepo a forma por intermdio da qual as proposies de fins poltico-criminais se vazam no modus de validade jurdica.

As duas consequncias acabas da alinhar permitem uma inferncia qual, em face do seu relevo fundamental, se poder conferir autonomia. A poltica criminal surge como uma cincia transpositiva, transdogmtica e trans-sistemtica face a um qualquer direito penal positivo. A sua funo ltima consiste em servir de padro crtico tanto do direito constitudo, como do direito constituindo, dos seus limites e da sua legitimao. Neste sentido, a poltica criminal oferece o critrio decisivo de determinao dos limites da punibilidade e constitui, deste modo, a pedra angular de todo o discurso legal-social da criminalizao/descriminalizao. Ela todavia intra-sistemtica relativamente concepo do Estado, ela imanente ao sistema jurdico-constitucional. Apenas desta maneira poder de resto a poltica criminal, como deve, conceder uma importncia primria proteo dos direitos, das liberdades e das garantias de toda e qualquer pessoa, incluindo o delinquente mais empedernido.

Muito recentemente veio Jakobs repudiar esta proposio fundamental, sustentando que o direito penal do cidado, aplicvel a todos os que pertencem a uma comunidade legal, no deve valer para aqueles que se recusam a participar nela, tentando obter a aniquilao dessa comunidade ou violando repetida e persistentemente as normas que os regem. Assim, afirma que o direito penal do cidado o direito de todos, o direito penal do inimigo o daqueles que se unem contra o inimigo; face ao inimigo h apenas coao fsica, at chegar guerra.

Esta concepo de todo inadmissvel, logo por poder descambar em um direito penal do agente sob as formas mais agressivas que assumiu no Estado nacional-socialista alemo, mas sobretudo e em definitivo, por contrria ao fundamento primrio do Estado de Direito e concepo de pessoa que lhe d fundamento. Um direito penal do inimigo democraticamente inaceitvel. Tambm o inimputvel ou imputvel especialmente perigoso tm de gozar, na ntegra, dos direitos e da proteo que lhe so devidos em nome da sua eminente dignidade como pessoas.

concepo que foi aqui defendida pode ser assinalado o perigo de diluir as fronteiras entre a dogmtica jurdico-penal e a poltica criminal. Mas no esse nem o seu propsito, nem o entendimento que se lhe deve conferir. Assinalar poltica criminal competncia para definir os limites ltimos da punibilidade no significa depreciar a dogmtica. Por outra parte, defender que todas as categorias e conceitos dogmticos devem ser determinados a partir de proposies poltico-criminais to-pouco significa ceder tentao de construir uma unidade sistemtica entre a poltica criminal e direito penal.

A concepo aqui exposta que significar, simples e precisamente, que a extenso, o sentido e aplicao do direito penal ficam em ltima anlise dependentes da teologia, das valoraes e das proposies jurdico-criminais inerentes ao sistema. O problema das relaes entre a dogmtica jurdico-penal e poltica criminal no o da introduo de um mbito no outro, mas uma questo de optimizao da colaborao entre ambos; e que, por isso, melhor do que uma unidade sistemtica ser falar de uma unidade cooperativa ou de uma unidade funcional entre as duas disciplinas.

Dogmtica jurdico-penal e criminologia

Somente uma poltica criminal concebida nos termos aqui expostos pode desemprenhar a funo intermediria entre a criminologia e a dogmtica jurdico-penal, tal como estas devem ser compreendidas no momento presente.

Pelo contrrio, um relacionamento imediato da criminologia com a dogmtica jurdico-penal desde sempre se revelou no s problemtico, como pouco til, nessa dificuldade residindo a razo do divrcio entre as duas cincias. Desde o momento em que se quebrou a assepsia cientfica e metdica em que durante dcadas viveu a cincia criminolgica e em que pde reconhecer-se que esta devia transformar-se, de cincia puramente explicativa, em cincia crtica, tambm ela passou a deixar-se penetrar por pressupostos bsicos, e em definitivo, por valores jurdico-criminais.

O que, por um lado, determinou um sensvel alargamento do seu objeto, que, do crime, na sua vertente puramente etiolgica, passou a ser o inteiro sistema da justia penal; e assim permitiu, por outro lado, a sua incluso, sem contradies, em uma cincia conjunta do direito penal por via do entreposto constitudo pela poltica criminal.

Com efeito, a criminologia nasceu por inteiro subordinada ao paradigma monista e reducionista das cincias da natureza e, por conseguinte, na veste de uma cincia puramente emprica, casual e explicativa. Neste estdio de evoluo, o relacionamento da criminologia com a dogmtica jurdico-penal revelava-se tarefa impossvel. O que justificaria porque era irremediavelmente diverso quer o seu objeto, constitudo no pelo crime mas por todo o comportamento desviante; quer o seu mtodo, que iria buscar-se s diversas disciplinas cientficas integrantes, bem como a uma ideia de interdisciplinaridade ou mesmo de integrao, que todavia no podia esconder o fosso que a separava de uma considerao jurdico-normativa; quer, consequentemente, as tcnicas de investigao.

A situao no se alterou de um modo significativo mesmo quando a criminologia se tornou, de forma dominante ou mesmo exclusiva, em uma criminologia sociolgica. Neste momento da evoluo, o paradigma monista e reducionista da criminologia, que a colocava ao mesmo nvel de qualquer outra cincia da natureza, se encontrava ultrapassado. Era reconhecido, j ento, que a criminologia se situava entre as cincias sociais e humanas e que, por essa razo, no podia renunciar a referencias inevitveis a sentidos e valores. E todavia, continuava a considerar-se que este relacionamento com os valores e os sentidos no devia, em todo o caos, turvar a objetividade e a cientificidade das cincias sociais e, portanto tambm da criminologia, que persistiam como cincias da realidade, isentas de quaisquer tomadas de posio valorativas e polticas. Foi justamente neste contexto que se alcanou uma ideia de separao total entre a criminologia, enquanto cincia, e a poltica criminal, enquanto forma de utilizao paradigmtica e poltica dos dados criminolgicos.

A situao mudou radicalmente com o aparecimento da chamada criminologia dos anos 60 e as suas principais manifestaes, a saber, o interacionismo, a etnometodologia e a criminologia dita radical, de inspirao marxista. O que em todas estas direes existe de novo a conscincia de que a criminologia no s uma cincia encerrada num paradigma estritamente etiolgico-explicativo, mas , tambm ela, uma cincia compreensiva do fenmeno criminal na sua integralidade, que assenta em supostos bsicos jurdico-polticos e, por aqui, numa poltica criminal. Assim, sem deixar de ser uma cincia emprica e interdisciplinar, o seu objeto no tanto constitudo pelo fenmeno social enquanto tal, mas reconverte-se em larga medida ao fenmeno jurdico-criminal; deixando, todavia, por outro lado, de se limitar estritamente investigao das causas do facto criminosos e da pessoa do delinquente, para passar a abranger a totalidade do sistema de aplicao da justia penal, nomeadamente as instncias formais e informais de controle da delinquncia, para passar a abranger o inteiro processo de produo da delinquncia.

Assim, em jeito de concluso, pode afirmar-se o seguinte: sabemos hoje, por um lado, que poltica criminal que pertence competncia para definir quer no plano do direito constitudo, quer do direito constituindo, os limites da punibilidade; como, por outro lado, que a dogmtica jurdico-penal no pode evoluir sem ateno ao trabalho prvio de ndole criminolgica. Mas tambm este no pode evoluir sem uma mediao poltico-criminal que lance luz sobre as finalidades e os efeitos que se apontam aplicao do direito penal.

Poltica criminal, dogmtica jurdico-penal e criminologia so assim, do ponto de vista cientfico, trs mbitos autnomos, ligados porm, em vista do integral processo da realizao do direito penal, numa unidade teolgico-funcional. esta unidade a que se chama, ainda hoje, cincia conjunta do direito penal.

IV Finalidade e legitimao da pena criminal

O problema dos fins da penal criminal

O problema dos fins da pena criminal to velho quanto a prpria histria do direito penal e tem sido discutido, vivamente e sem solues de continuidade, pela filosofia, pela doutrina do Estado e pela cincia conjunta do direito penal. A razo de um tal interesse e da sua persistncia ao longo dos tempos est em que, sombra do problema dos fins das penas, no fundo toda a teoria penal que se discute e, com particular incidncia, as questes fulcrais da legitimao, fundamentao e funo da interveno estatal.

As respostas dadas ao longo de muitos sculos ao problema dos fins da pena reconduzem-se a duas teorias fundamentais: as teorias absolutas e as teorias relativas ( onde temos as doutrinas da preveno geral e as doutrinas da preveno especial/individual).

Teorias absolutas: a pena como instrumento de retribuio

Para este grupo de teorias a essncia da pena criminal reside na retribuio, expiao, reparao ou compensao do mal do crime e nesta essncia se esgota. Se, apesar de ser assim, a pena pode assumir efeitos reflexos ou socialmente relevantes (de intimidao da generalidade das pessoas, de neutralizao dos delinquentes, de ressocializao), nenhum deles contende com a sua essncia e natureza, nem se revela susceptvel de a modificar: uma tal essncia e natureza funo exclusiva do facto que (no passado) se cometeu, a justa paga do mal que com o crime se realizou, o justo equivalente do dano do facto e da culpa do agente.

A discusso acerca do fundamento das teorias absolutas da retribuio centrou-se durante longo tempo sobre a forma como deveria ser determinada a compensao ou igualao a operar entre o mal do crime e o mal da pena. Neste plano, a controvrsia pode hoje dizer-se terminada: a compensao de que a retribuio se nutre s pode ser em funo da ilicitude do facto e da culpa do agente.

Se o que est em causa o tratar o homem segundo a sua liberdade e sua dignidade pessoais, ento isso conduz diretamente ao principio da culpa como mxima de todo o direito penal humano democrtico e civilizado (ao princpio segundo o qual no pode haver pena sem culpa e a medida da pena no pode ser em caso algum ultrapassar a medida da culpa).

a culpa pressuposto e limite, mas no fundamento da pena.

Como teoria dos fins da pena, porm, a doutrina da retribuio deve ser recusada. Isto pelas seguintes razes:

Logo porque ela no , nem pode ser, um teoria dos fins da pena. Ela visa justamente o contrrio, isto , a considerao da pena como entidade independente de fins; Pela sua inadequao legitimao, fundamentao e ao sentido da interveno penal. Estas podem apenas resultar da necessidade, que ao Estado incumbe satisfazer, de proporcionar as condies de existncia comunitria, assegurando a cada pessoa o espao possvel de realizao livre da sua personalidade. S isto pode justificar que o Estado furte a cada pessoa o mnimo indispensvel de direito, liberdades e garantias para assegurar os direitos dos outros e, com eles, da comunidade. Uma pena retributiva esgota o seu sentido no mal que faz sofrer ao delinquente e, nesta medida, uma doutrina puramente social-negativa, que acaba por se revelar no s estranha, mas no fundo inimiga de qualquer tentativa de socializao do delinquente e restaurao da paz jurdica da comunidade afectada pelo crime; inimiga, em suma, de qualquer atuao preventiva e, assim, da pretenso de controlo e domnio do fenmeno da criminalidade.

Teorias relativas: a pena como instrumento de preveno

As teorias relativas so, com plena propriedade, teorias de fins. Tambm elas reconhecem que, segundo a sua essncia, a pena se traduz num mal para quem a sofre. Mas, como instrumento poltico-criminal destinado a atuar no mundo, no pode a pena bastar-se com essa caracterstica, em si mesma destituda de sentido social-positivo. Para como tal se justificar tem de se usar desse mal para alcanar a finalidade de toda a poltica criminal, a preveno ou profilaxia criminal.

A crtica geral, proveniente dos adeptos das teorias absolutas, a de que, aplicando-se as penas a seres humanos em nome de fins utilitrios ou pragmticos que pretendem alcanar no contexto social, elas transformariam a pessoa humana em objeto, dela se serviriam para a realizao de finalidade heternomas e, nesta medida, violariam a sua eminente dignidade. Dito de outra forma, seria precisamente o seu carcter relativo que se ergueria como violao do absoluto da dignidade pessoal.

Um tal criticismo destitudo de fundamento. Houvesse razo na crtica e teria ento de concluir-se pela ilegitimidade total de todos os instrumentos destinados a atuar no campo social e a realizar finalidades socialmente teis. A verdade antes que para o funcionamento da sociedade, cada pessoa tem de prescindir de direitos que lhe assistem e lhe so conferidos em nome da sua eminente dignidade.

Nas teorias preventivas h que comear por distinguir, segundo o sentido das doutrinas, as da preveno geral e as de preveno especial ou individual.

A pena como instrumento de preveno geral: o denominador comum das penas de preveno geral radica na concepo da pena como instrumento poltico-criminal destinado a atuar sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prtica de crimes atravs da ameaa penal estatuda pela lei, da realidade da sua aplicao e da efetividade da sua execuo. A pena pode ser concebida, por uma parte, como forma estatalmente acolhida de intimidao das outras pessoas atravs do sofrimento que com ela se inflige ao delinquente e cujo receio as conduzir a no cometerem factos punveis: fala-se, ento, de preveno geral negativa ou de intimidao. Mas a pena pode ser concebida, por outro lado, como forma de que o Estado se serve para manter e reforar a confiana da comunidade na validade e na fora de vigncia das suas normas de tutela de bens jurdicos e, assim, no ordenamento jurdico-penal: preveno geral positiva ou de integrao. O ponto de partida das doutrinas da preveno geral prezvel, logo porque ele se liga direta e imediatamente funo do direito penal de tutela subsidiria de bens jurdicos. Do ponto de vista desta, bem de compreende que se exija da pena uma atuao preventiva sobre a generalidade dos membros da comunidade, seja no momento da sua ameaa abstrata, seja no momento da sua concreta aplicao, seja no da sua efetiva execuo.

A pena como instrumento de preveno especial ou individual: as doutrinas de preveno especial ou individual tm como denominador comum a ideia de que a pena um instrumento de atuao preventiva sobre a pessoa do delinquente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes. Neste sentido, se deve falar de uma finalidade de preveno da reincidncia. Neste corpo terico unitrio, porm, divergncias profundas surgem quando se pergunta de que forma deve a pena cumprir aquela sua finalidade. Na opinio do prof. Figueiredo Dias, do que deve tratar-se no efeito de preveno especial criar as condies necessrias para que ele possa, no futuro, continuar a viver a sua vida sem cometer crimes. Neste ltimo sentido, se podendo afirmar que a finalidade preventiva-especial da pena se traduz na preveno de reincidncia. Estas teorias irmanam no propsito de lograr a reinsero social, a ressocializao do delinquente e merecem, neste medida, que se considerem como doutrinas da preveno especial positiva ou de socializao. O pensamento da preveno especial decerto, a muitos ttulos, to prezvel, quanto indispensvel: ele revela, desde logo, uma particular sintonia com a funo do direito penal como direito de tutela subsidiaria de tutela de bens jurdicos; o Estado s se afigura instncia legtima para infligir ao delinquente uma pena que de todo o modo constitui um mal quando a esse mal pode ser assacado carcter social-positivo, tal como se encontra no pensamento da socializao; o Estado tem o dever de auxiliar os membros da comunidade colocados em situao de maior necessidade e de carncia social, a eles oferecendo os meios necessrios sua (re)insero social. Nem por isso, todavia, o pensamento da preveno especial deixa de se debater com dificuldades sensveis que, quando no corretamente ultrapassadas, podem conduzir sua condenao. Desde logo, porque aquele pensamento assume formas muito diversificadas e cujo sentido fundamental est longe de ser unvoco. Por fim, o pensamento de preveno social positiva depara com dificuldades naqueles casos em que uma socializao se mostra desnecessria, em que o agente se no revela carente de socializao. Tambm por aqui se concluindo que o pensamento da preveno especial positiva no pode valer, s por si, como soluo integral do problema dos fins da pena.

Nota: refere-se hoje, cada vez com maior insistncia, como autnoma e nova finalidade da pena o propsito de como ela se operar a possvel concertao entre o agente e a vtima, atravs da reparao dos danos causados pelo crime. A concertao agente-vtima s pode ter o sentido de contributo, e valiosssimo, para o restabelecimento da confiana e da paz jurdica abaladas pelo crime, o qual, como vimos, constitui o cerne mesmo da preveno geral positiva. Enquanto, por outro lado, aquela concertao conforma uma vertente decisiva para uma correta avaliao, no caso, das exigncias de preveno especial positiva.

Teorias mistas

Nas ltimas dcadas, e ainda hoje, a maioria das doutrinas sobre os fins das penas radica em tentativas, as mais variadas, de combinar, sob diversos pontos de vista, algumas ou todas as doutrinas que atrs ficaram referenciadas.

Teorias em que reentra a ideia da retribuio: se quiser reduzir-se a multiplicidade de pontos de vista que visam combinar a tese fundamental da retribuio com as do pensamento preventivo, geral e especial, reconduzindo-as a um corpo doutrinal predominante, poder este ser definido como o de uma pena retributiva no seio da qual procura dar-se realizao a pontos de vista de preveno, geral e especial. Numa e noutra formulao estar presente a concepo da pena, segundo a sua essncia como retribuio da culpa e subsidiariamente como instrumento de intimidao da generalidade e, na medida possvel, de ressocializao do agente. Todo este grupo de concepes unificadoras , porm, enquanto teorias dos fins das penas, inaceitvel. Porque, fazendo entrar na composio desejada, como quer ela concretamente que se estabelea, a ideia retributiva, est a chamar para o problema das finalidades da pena um vector que, como procurou mostrar-se, no deve ser tomado em considerao neste contexto: a retribuio ou compensao da culpa no nem pode constituir uma finalidade da pena.

Teorias da preveno integral: o ponto de partida destas teorias o de que a combinao ou unificao das finalidades da pena s pode ocorrer a nvel da preveno, geral e especial, com excluso de qualquer ressonncia retributiva, expiatria ou compensatria. Deste ponto de vista se tentou lograr a concordncia prtica possvel das ideias da preveno geral e da preveno especial, a sua optimizao custa de mtua compresso, de modo a atribuir a cada uma a mxima incidncia na prossecuo de um ideal de preveno integral. Mas tambm esta concepo unificadora deve ser globalmente recusada. Se denominador comum de todas as doutrinas cabidas nesta concepo a ideia de negar in limine concepo retributiva legitimidade para entrar na composio das finalidades da pena, da elas se concluem pela recusa do pensamento da culpa e do seu princpio como limite do problema.

Finalidade e limite das penas criminais

A base da soluo defendida pelo prof. Figueiredo Dias para o problema dos fins da pena reside em que estes s podem ter natureza preventiva, no de natureza retributiva.

O direito penal e o seu exerccio pelo Estado fundamenta-se na necessidade estatal de subtrair disponibilidade de cada pessoa, o mnimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensveis ao funcionamento, tanto quanto possvel sem entraves, da sociedade, preservao dos seus bens jurdicos essenciais.

Se assim , ento, tambm a pena criminal s pode perseguir a realizao daquela finalidade, prevenindo a prtica de futuros crimes.

Primordialmente, a finalidade visada pela pena h-de ser a de tutela necessria dos bens jurdico-penais no caso concreto e esta h-de ser, tambm, por conseguinte, a ideia mestra do modelo de medida de pena. Uma finalidade que, desde modo, por inteiro se cobre com a ideia de preveno geral positiva ou preveno de integrao e que d, por sua vez, contedo ao princpio da necessidade da pena que o art.18/2 CRP consagra de forma paradigmtica.

tutela dos bens jurdicos no obviamente num sentido retrospectivos, face a um crime j verificado, mas com um significado prospectivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela da confiana e das expectativas da comunidade na manuteno da norma violada. Afirmar que a preveno geral positiva ou de integrao constitui a finalidade primordial da pena e o ponto de partida para a resoluo de eventuais conflitos entre as diferentes finalidades preventivas traduz exatamente a convico de que existe uma medida ptima de tutela dos bens jurdicos e das expectativas comunitrias que a pena se deve propor alcanar.

a preveno geral positiva que fornece uma moldura de preveno dentro de cujos limites podem e devem atuar consideraes de preveno especial; e no a culpa, como tradicional e ainda hoje maioritariamente se pensa, que fornece uma moldura de culpa.

a intimidao da generalidade, sendo sem dvida um efeito a considerar dentro da moldura de preveno geral positiva, no constitui todavia por si mesma uma finalidade autnoma da pena, somente podendo surgir como efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurdicos.

Dentro da moldura ou dos limites consentidos pela preveno geral positiva ou de integrao entre o ponto ptimo e o ponto ainda comunitariamente suportvel de medida da tutela dos bens jurdicos devem atua, em toda a medida possvel, pontos de vista de preveno especial, sendo assim eles que vo determinar, em ltima instncia, a medida da pena.

Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funes que o pensamento da preveno especial realiza: seja a funo positiva de socializao, seja qualquer uma das funes negativas subordinadas de advertncia individual ou de segurana ou inocuizao. A medida da necessidade de socializao do agente no entanto em princpio o critrio decisivo das exigncias de preveno especial, constituindo hoje o vector mais importante daquele pensamento.

O princpio da culpa diz-nos que no h pena sem culpa e a medida da pena no pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa. A verdadeira funo da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibio de excesso; a culpa no fundamento da pena, mas constitui seu pressuposto necessrio e o seu limite inultrapassvel: o limite inultrapassvel por quaisquer consideraes ou exigncias preventivas. A funo da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, , por outras palavras, a de estabelecer o mximo de pena ainda compatvel com as exigncias de preservao da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros prprios de um Estado de Direito Democrtico.

Assim entendidas as coisas, parece dispensvel a ideia de que a legitimao da pena repousa substancialmente num duplo fundamento: o da preveno e o da culpa; e isto porque a pena s seria legtima quando necessria de um ponto de vista preventivo e, para alm disso, justa, no se tratando deste modo de uma unio ecltica de elementos hetergenos, mas de uma justificao cumulativa.

toda a pena que responda adequadamente s exigncias preventivas e no exceda a medida da culpa uma pena justa.

A teoria penal aqui defendida pode, assim, resumir-se do seguinte modo:

toda a pena serve finalidades exclusivas de preveno, geral e especial; a pena concreta limitada, no seu mximo inultrapassvel, pela medida da culpa; dentro deste limite mximo ela determinada no interior de uma moldura de preveno geral de integrao, cujo limite superior oferecido pelo ponto timo de tutela de bens jurdicos e cujo limite inferior constitudo pelas exigncias mnimas de defesa do ordenamento jurdico; dentro desta moldura de preveno geral de integrao a medida da pena encontrada em funo de exigncias de preveno especial, em regra positiva ou de socializao, excecionalmente negativa, de intimidao ou de segurana individuais.

Os arts.18/2 CRP e 40 CP so a confirmao plena, por parte de um texto legislativo, do percurso dogmtico que se acaba de percorrer e das concluses a que se conduziu.

Entendimento da prof. Maria Fernanda Palma sobre os fins das penas

Desde j parece oportuno fazer uma breve referncia s teorias j aqui referidas, para melhor compreenso do entendimento da prof. Maria Fernanda Palma. A questo que se coloca ento qual a finalidade com que a pena aplicada, para alm da tutela de bens jurdicos? Temos teorias:

Retributivas: estas teorias so absolutas, visto que o fim da pena esgota-se em si mesmo. Para estas, a finalidade da pena castigar o arguido, no havendo qualquer finalidade externa e a pena deve conter-se dentro da culpa do arguido. A principal crtica a esta teoria o facto de ser bastante duvidosa a legitimidade do Estado para castigar desta forma. Preventivas: estas j so teorias relativas, umas vez que o fim da pena deve incidir sobre o indivduo. Estas dividem-se em: preveno especial: desligam da pena a culpa e relacionam-na antes com a perigosidade. Pode ser: positiva (finalidade ressocializar o individuo; crtica baseia-se na lgica de reverso do anmalo) ou negativa (finalidade intimidar, neutralizar o indivduo, tornando-o inofensivo para a sociedade). preveno geral: a pena no serve para castigar e no se dirigem ao indivduo, mas sim a toda a comunidade. Pode ser: positiva (a finalidade da pena assenta no reforo da confiana da comunidade na validade das normas) ou negativa (a finalidade da pena dissuadir/desmotivar o resto das pessoas a praticar o crime).

Este , ento, o quadro sumrio e geral das teorias dos fins das penas. Cabe agora dar relevncia ao entendimento da prof. Maria Fernanda Palma. O art.40 CP traa as finalidades da punio: a proteo de bens jurdicos e a reintegrao do agente na sociedade. A proteo de bens jurdicos implica a utilizao da pena para dissuadir a prtica de crimes pelos outros cidados (preveno geral negativa), incentivar a convico de que as normas penais so vlidas e eficazes e aprofundar a conscincia dos valores jurdicos por parte dos cidados (preveno geral positiva). A proteo de bens jurdicos significa ainda preveno especial como dissuaso do prprio delinquente potencial.

A retribuio no exigida necessariamente pela proteo de bens jurdicos. A pena como censura da vontade ou da deciso contrria ao direito pode ser desnecessria, segundo critrios preventivos especiais, ou ineficaz para a realizao da preveno geral.

A prof. duvida desde logo que a preveno geral positiva tenha um papel primordial sobre a matria dos fins das penas, isto essencialmente pelas seguintes razes:

o sentimento de confiana da comunidade na validade das normas no um bem jurdico-penal; esta teoria utiliza o indivduo como um instrumento para satisfao de anseios coletivos, anseios esses que nem so bens jurdicos; para alm disto, o juiz no tem qualquer legitimidade para ser o representante destes anseios da comunidade.

A prof. acha ainda que no se pode reduzir o papel da culpa como o prof. Figueiredo Dias o faz: na prpria determinao da pena importante a medida da culpa, tendo esta um papel fundamental. A culpa no deve ser encarada apenas como um pressuposto d pena; no s o se da pena, mas tambm o como.

mas isto no quer dizer, de todo, que a prof. admita uma teoria retributiva, pelo menos no a clssica ideia de retribuio. Simplesmente admite que a pena um mal necessrio e, como tal, no interessa saber qual a teoria certa sobre os fins da mesma. Interessa, antes, saber quais so os critrios que o juiz utiliza ao aplicar uma pena e se esses mesmos critrios esto de acordo com os parmetros constitucionais maxime princpio da necessidade da pena e princpio da culpa.

V O princpio da legalidade da interveno penal

O princpio nullum crimen, nulla paena sine lege

O princpio do Estado de Direito conduz a que a proteo dos direitos, liberdades e garantias seja levada a cabo no apenas atravs do direito penal, mas tambm perante o direito penal. Uma eficaz preveno do crime, que o direito penal visa em ltimo atingir, s pode ter xito se interveno estadual foram levantados limites estritos perante a possibilidade de uma interveno estadual arbitrria ou excessiva. A esta possibilidade de arbtrio ou de excesso se ocorre submetendo a interveno penal a um rigoroso princpio da legalidade, cujo contedo essencial se traduz em que no pode haver crime, nem pena que no resultem de uma lei prvia, estrita e certa.

Nota: a norma contida no art.29/2 CRP confere jurisdio aos tribunais portugueses para conhecerem de certos crimes contra o direito internacional, mesmo que as condutas visadas no sejam punveis luz da lei positiva interna. Parece ter-se adoptado, neste artigo, a concepo segundo a qual a responsabilidade por crimes contra o direito internacional no se encontra sujeita ao princpio da legalidade previsto no art.29/1, vlido apenas para a lei estadual. Porm, hoje seguro que o princpio nullum crimen sine lege constitui um princpio geral de direito internacional, embora o seu modo seja diverso, uma vez que no termo lege se inclui tambm o direito (internacional) costumeiro, sendo que a lei interna deve servir proteo ao direito internacional.

O princpio da legalidade da interveno penal possui uma pluralidade de fundamentos, uns externos (ligados concepo fundamental do Estado), outros internos (de natureza especificamente jurdico-penal):

Entre os fundamentos externos avultam o princpio liberal, o princpio democrtico e o princpio da separao de poderes. De acordo com o princpio liberal, toda a atividade intervencionista do Estado na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas tem de ligar-se existncia de uma lei e mesmo, entre ns, de uma lei geral, abstrata e anterior (art.18 ns 2 e 3 CRP). De acordo com os princpios democrtico e da separao de poderes, para a interveno penal, com o seu particular peso e magnitude, s se encontra legitimada a instncia que represente o povo como titular ltimo do ius puniendi; donde a exigncia, uma vez mais, de lei, e na verdade, entre ns, de lei formal emanada do Parlamento ou por ele competentemente autorizada - art.165/1 alnea c).

Entre os fundamentos internos costumam apontar-se a ideia da preveno geral e o princpio da culpa. No pode esperar-se que a norma cumpra a sua funo motivadora do comportamento da generalidade dos cidados seja na sua vertente negativa de intimidao, seja sobretudo na sua vertente positiva de estabilizao das expectativas se aqueles no puderem saber, atravs de lei anterior, estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente punveis dos no punveis. Como no seria legtimo dirigir a algum a censura por ter atuado de certa maneira se uma lei com aquelas caractersticas no considerasse o comportamento respectivo como crime. A prpria funo de preveno especial positiva ou de ressocializao, no seu entendimento atual, confirma a exigncia do princpio da legalidade: o comportamento indica que a perigosidade no (no pode ser) apenas sintoma ou ndice da carncia de socializao e ensejo para que esta intervenha, mas tem de ser co-fundamento e limite da interveno criminal; nesta medida ressurgindo a exigncia de legalidade daquela.

O princpio segundo o qual no h crime sem lei anterior como tal preveja uma certa conduta significa que, por mais socialmente nocivo e reprovvel que se afigure um comportamento, tem o legislador de o considerar como crime para que ele possa como tal ser punido.

esquecimentos, lacunas, deficincias de regulamentao ou de redao funcionam, por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido a inteno daquele abranger na punibilidade tambm certos comportamentos.

A frmula no h crime sem lei complementada pela frmula no h pena, no h sano criminal, sem lei. Na interpretao desta frmula cumpre dizer que, entre ns, tambm este segmento do princpio tem consagrao jurdico-constitucional e legal - art.29/3 CRP no podem ser aplicadas penas ou medidas de segurana que no estejam expressamente cominadas em lei anterior.

O princpio da legalidade assume consequncias ou efeitos em cinco planos diversos: no plano do mbito ou da extenso; no plano da fonte; no plano da determinabilidade; no plano da proibio da analogia; plano da proibio de retroatividade. Cabe, agora, analisar cada um deles.

1) O plano do mbito de aplicao

Neste plano cumpre assinalar que o princpio da legalidade no cobre, segundo a sua funo e o seu sentido, toda a matria penal, mas apenas a que se traduza a fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Esta mesmo a teologia e a razo de ser do princpio: a proteo dos direitos, liberdades e garantias face possibilidade de arbtrio e de excesso do poder estatal. Assim, o princpio na abrange a matria de excluso ou atenuao da responsabilidade.

Por exemplo, o princpio cobre toda a matria relativa ao tipo de ilcito ou ao tipo de culpa, mas j no a que respeita s causas de justificao ou s causas de excluso da culpa.

2) O plano da fonte

Neste plano o princpio conduz exigncia de lei forma: s uma lei da AR ou por ela competentemente autorizada pode definir o regime dos crimes, das penas e das medidas de segurana e seus pressupostos. O contedo de sentido do princpio da legalidade deveria , ainda aqui, cobrir apenas a atividade de criminalizao ou de agravao, no a descriminalizao ou de atenuao. Apesar disso, o nosso TC interpreta a definio dos crimes, penas, medidas de segurana e respectivos pressupostos no sentido de abranger tanto a funo de criminalizao, como a de descriminalizao. Outra questo ser ainda a das chamadas normas penais em branco que deve ser analisada mais tarde.

3) O plano da determinabilidade do tipo legal

No plano da determinabilidade do tipo legal ou tipo de garantia o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixao se torna necessria para uma correta observncia do princpio da legalidade importa que a descrio da matria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punio seja levado at a um ponto em que se tornem objetivamente determinveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivvel e dirigvel a conduta dos cidados. Considerar crime as condutas que ofendam o so sentimento do povo tornaria suprfluo um grande nmero de incriminaes dos cdigos penais, mas no cumpriria minimamente as exigncias de sentido nsitas no princpio da legalidade. indispensvel que a utilizao de tipos legais (incluindo elementos normativos, conceitos indeterminados, clusulas gerais) no obste determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos, sob pena de violao irremissvel, neste plano, do princpio da legalidade e sobretudo da sua teleologia garantstica. A lei penal fundamentadora ou agravadora da responsabilidade tem que ser uma lei certa e determinada.

4) O plano da proibio da analogia

, desde j, referir que a analogia consiste na aplicao de uma regra jurdica a um caso concreto no regulado pela lei, atravs de um argumento de semelhana substancial com os casos regulados (analogia legis). O argumento da analogia, ao contrrio dos outros ramos de Direito, tem em direito penal que ser proibido, por fora do contedo e sentido do princpio da legalidade, sempre que ele funcione contra o agente e vise servir a fundamentao ou a agravao da sua responsabilidade.

A proibio da analogia pressupe a resoluo do problema dos limites da interpretao admissvel em direito penal. Praticamente todos os conceitos utilizados na lei so susceptveis e carentes de interpretao: mas no apenas os conceitos normativos, mas mesmo aqueles que primeira vista se diria caracterizadamente descritivos e por isso apreensveis atravs dos sentidos. Deste modo, torna-se essencial a questo de saber o que pertente ainda interpretao permitida e o que pertence j analogia proibida em direito penal pelo princpio da legalidade.

O critrio de distino o seguinte: o legislador penal obrigado a exprimir-se atravs de palavras, as quais todavia nem sempre possuem um nico sentido, mas pelo contrrio se apresentam quase sempre polissmicas. Assim, natural que o texto penal se torne carente de interpretao, oferecendo as palavras que o compem, segundo o seu sentido comum e literal, um quadro de significaes dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legtimos de interpretao. Fora deste quadro o aplicador encontra-se inserido j no domnio da analogia proibida.

A doutrina aqui defendida a posio teleolgica e funcionalmente imposta pelo contedo de sentido prprio do princpio da legalidade. Fundar ou agravar a responsabilidade do agente em qualquer base que caia fora do quadro de significaes possveis das palavras da lei no limita o poder do Estado e no defende os direitos, liberdades e garantias das pessoas.

Esta proibio de analogia abrange, antes de tudo, os elementos constitutivos dos tipos legais de crime descritos na PE do CP ou em legislao penal extravagante.

Tambm relativamente matria das consequncias jurdicas do crime vale a proibio de analogia em tudo quanto possa revelar-se desfavorvel ao agente, isto , no fundo, em tudo o que signifique restrio da sua liberdade no sentido mais compreensivo.

A proibio da analogia vale ainda para certas normas da parte geral do CP: para aquelas que constituam alargamentos da punibilidade de comportamentos previstos como crime na PE, nomeadamente em matria de tentativa.

coisa diferente s dever dizer-se relativamente a concretizaes extra-penais utilizadas pelo legislador penal que, em princpio, este ter querido usar de forma puramente acessria e, por conseguinte, com o sentido que elas possuem no ramo de direito a que pertencem; caso em que se compreende que devam aceitar-se os resultados a legitimamente se chegue por mtodos de interpretao permitidos nesse ramo de direito.

Concluses da prof. Fernanda Palma sobre a analogia em Direito Penal:

desde logo, a prof. vem dizer que o art. 1/3 CP no vem proibir raciocnios analgicos. Todo o direito penal, tal como os outros ramos de direito, implica inevitavelmente raciocnios analgicos : a qualificao de um facto como um crime implicar sempre estes raciocnios, tendo sempre de haver um processo de comparao do caso concreto com certos parmetros legais (ao, tpica, ilcita, culposa e punvel);

a analogia algo que j extravasa esta comparao, ou seja, estamos perante analogia quando a comparao feito sem qualquer apoio a estes critrios/sem apoio na lei. Analogia no o mesmo do que os raciocnios analgicos, sendo quela que o art.1/3 CP se refere;

o elemento textual oferece uma base de segurana de que no podemos prescindir: possvel fixar o sentido textual, com base no uso que as palavras tm socialmente. Para a prof. releva o sentido das palavras no seu conjunto (texto na globalidade temos que atender ao sentido global do texto). Mas claro que dizer isto no significa dispensar os outros critrios de interpretao. 5) O plano da proibio de retroatividade

O plano porventura praticamente mais significativo de refrao do princpio da legalidade e aquele que origina problemas mais complexos o da proibio de retroatividade contra o agente. Pode suceder, na verdade, que aps a pratica de um facto, qua ao tempo no constitua crime, uma lei nova venha criminaliz-lo; ou, sendo o facto j crime ao tempo da sua prtica, uma lei nova venha prever para ele uma pena mais grave, ou qualitativamente, ou quantitativamente.

O problema da aplicao da lei no tempo resolvido atravs das normas chamadas de direito inter-temporal. Este direito reduz-se ao princpio da proibio de retroatividade em tudo o que funcione contra reum ou in malem partem. Atravs dele se satisfaz a exigncia constitucional e legal de que s seja punido o facto descrito e declarado passvel de pena por lei anterior ao momento da prtica do facto. Com este contedo e esta extenso a proibio de retroatividade da lei penal fundamentadora ou agravadora da punibilidade constitui uma das trevas metras de todo o Estado democrtico contemporneo. Nota: Por questes de sistematizao parece fazer mais sentido suspender a questo da aplicao da lei penal do tempo, e abordar, agora, antes, a questo da constitucionalidade das normas penais em branco. Abordar-se- a questo da lei penal no tempo, aquando da aplicao da mesma no espao.

Problemas de constitucionalidade das normas penais em branco

Diz-se em branco a lei incriminadora que remeta parte da sua concretizao para outra fonte normativa, que assim a integra; a lei em branco contm, desta forma, uma norma incompleta: a inteireza normativa s dada interpretao, e ao conhecimento pelos destinatrios, por via da conjuno da lei em branco e da disposio complementar qual aquela, por reenvio, cometa a funo especificadora.

O conceito de lei penal em branco desenvolveu-se particularmente no mbito do Direito penal especial ou secundrio, no qual se vem sentido com singular premncia a necessidade de obter, com celeridade e oportunidade e com clareza a modificao das disposies de previso de condutas tpicas; a relao entre disposies sancionatrias e preceptivas de fontes diversas tornou-se paradigmtica da tcnica da normao em branco.

Discute-se se a catalogao como em branco dever abranger apenas a lei que remeta para um ncleo integrativo futuro; ou, ainda, se dever ter-se por lei em branco somente aquela que reenvie para uma disposio cujo valor normativo lhe seja hierarquicamente inferior.

Existem autores que, numa perspectiva restritiva, consideram s caber com propriedade a qualificao de norma penal em branco quela que remete para uma disposio de nvel inferior, como, por exemplo, o prof. Cavaleiro Ferreira, afirma que norma penal em branco aquela em que falta inicialmente o preceito primrio; comunica-se a sano para uma infrao cujos elementos constitutivos s parcial, e no totalmente, esto definidos no conceito primrio, sendo o preceito primrio completado por remisso para outra norma. As possibilidades de remisso so: para outro preceito contido na mesma lei penal; para outra disposio distinta; para uma disposio de grau ou nvel inferior. Para este autor, apenas esta ltima corresponder rigorosamente noo tcnica de norma penal em branco. Outros autores reservam a qualificao apenas para a norma penal que remete para ordenamento diferente do penal, de nvel igual ou inferior, achando-se a a norma ou parte da norma de comportamento. Parece melhor a opo, e no entendimento de Lus Duarte d Almeida, por um conceito lato de lei penal em branco que englobe qualquer fenmeno de reenvio de uma lei penal a proposies de dever que eliminem a impreciso semntica e cujo contedo complementador no seja deixado a cabo de julgadores.

Nota: h ainda autores, como Rui Patrcio, que no que respeita s normas penais em branco, consideram que temos, na classificao dos tipos de crime que contrape os fechados aos abertos, um tipo aberto que no descreve de modo completo o comportamento proibido, transferindo para o intrprete o encargo de complementar o tipo, dentro dos limites e indicaes nele prprio contidos, ou, visto de outro modo, remetendo o destinatrio, atravs de uma tcnica de reenvio, para uma disposio legal diferente da disposio que estabelece a pena.

Cabe agora analisar as questes de (in)constitucionalidade das normas penais em branco.

Uma primeira dificuldade de tomo prende-se com o facto de princpio da legalidade criminal exigir, alm do mais, que a matria criminal seja da competncia reservada da Assembleia da Repblica, o que, a propsito das normas penais em branco, pode levantar problemas, me virtude de, neste caso, os critrios da incriminao serem vistos luz, luz dupla, do ordenamento penal e, o mais das vezes, do ordenamento extra-penal (mxime administrativo), onde tal competncia reservada da AR raras vezes se verifica.

no entanto, e como afirma Lus Duarte d Almeida, a vertente forma do princpio da legalidade em matria penal um no-problema. A definio dos crimes, penas, medidas de segurana e respectivos pressupostos, bem como o processo criminal constitui matria da exclusiva competncia da AR, mas a concretizao da reserva no procedimento formal de adoo de lei, e no respetivo controlo da oposio parlamentar e da opinio pblica, busca sustentao num plano de legitimidade que absorveria perfeitamente a no-reserva. tambm o prof. Figueiredo Dias parece concluir pela conformidade constitucional, considerando que parece razoavelmente seguro, em todo o caso, que a exigncia de lei formal haja de radicar na normal penal sancionatria, mas no tambm necessariamente no ato de fundamentao constitutiva da punibilidade: quanto a este, bastar que ele seja vlido por ter tido lugar em virtude de uma autorizao legal.

Mas as normas penais em branco no levantam unicamente problemas no que respeita questo da reserva de competncia legislativa da Assembleia da Repblica, pois ainda no campo do mesmo garantstico princpio da legalidade criminal, dirigido ao legislador e ao interprete, cumpre referir a dificuldade de, muitas vezes, porventura sempre, compatibilizar as normas penais em branco com o princpio da tipicidade, corolrio daquele princpio da legalidade que exige, alm do mais, que a lei penal seja certa, no sentido de clara, precisa e determinvel, permitindo assim a previso e a segurana dos destinatrios do seu comando. Na verdade, algumas vezes, a norma penal em branco no assegura as necessrias clareza, previso e determinabilidade, principalmente por via da ciso entre a norma de ameaa e a norma de comportamento, mas tambm, por vezes, por via do uso de previses genricas e/ou vagas neste tipo de normas redobrando os problemas quando encontramos numa dada norma estes dois elementos (ciso e vaguidade).

Por esta via, pode tambm redundar em ferimento do princpio da culpa, pois no orientar suficientemente os destinatrios das normas quanto s condutas que so efetivamente proibidas - pelo menos nos casos em que se possa dizer que o agente mdio precisa de conhecer a proibio legal para aceder conscincia da ilicitude da sua conduta, conscincia essa que constitui o primeiro pilar sobre o qual assenta o juzo de culpa.

Neste mbito parece ser essencial fazer referncia ao Acrdo n427/95, de 6 de Julho de 1995, d