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Marcelo Fernandes Pires dos Santos
RETOacuteRICA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E PATHOS O PROBLEMA
DAS EMOCcedilOtildeES NO DISCURSO JURIacuteDICO
Brasiacutelia
2015
Universidade de Brasiacutelia ndash UnB
Faculdade de Direito ndash FD
RETOacuteRICA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E PATHOS O PROBLEMA
DAS EMOCcedilOtildeES NO DISCURSO JURIacuteDICO
Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito
parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de mestre no
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasiacutelia aacuterea
de concentraccedilatildeo ldquoDireito Estado e
Constituiccedilatildeordquo
Orientadora Prof Dra Claudia Rosane Roesler
Orientando Marcelo Fernandes Pires dos Santos
Brasiacutelia 2015
Marcelo Fernandes Pires dos Santos
Retoacuterica Teoria da Argumentaccedilatildeo e Pathos o problema das emoccedilotildees no discurso
juriacutedico
__________________________________________________
Professora Doutora Claudia Rosane Roesler
Orientadora
__________________________________________________
Professor Doutor Alexandre Veronese Aguiar
Examinador interno (UnB)
__________________________________________________
Professor Doutor Isaac Costa Reis
Examinador externo (UFSBA)
__________________________________________________
Professor Doutor Argemiro Cardoso Martins
Suplente (Unb)
Brasiacutelia 27 de maio de 2015
Para os meus pais
AGRADECIMENTOS
Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos
acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas
durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes
dois uacuteltimos anos Serei sempre grato
Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de
Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos
Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave
praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas
Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do
conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso
Martins
Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar
esta dissertaccedilatildeo
Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo
A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa
Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib
Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria
Emanuelle Pinheiro
Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio
Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade
(proveacuterbio antigo)
ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo
(Platatildeo Leis 775e)
7
Resumo
O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo
Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees
um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico
embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a
Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante
incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de
refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica
juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria
da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente
estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma
argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema
juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais
especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender
como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em
seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees
seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa
eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e
capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico
Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash
psicologia ndash linguiacutestica
8
Abstract
The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is
marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been
considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to
the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the
effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify
evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal
practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation
Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to
investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and
more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is
necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic
school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his
ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the
Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the
following generations It aims also search to understand the psychology of our time on
emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in
legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in
order to improve the quality of legal discourse
Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash
linguistic
9
Lista de abreviaturas e siglas
ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade
ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental
CF ndash Constituiccedilatildeo Federal
MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta
STF ndash Supremo Tribunal Federal
TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
10
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA 14
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE 57
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no
discurso 62
23 As emoccedilotildees falaciosas 68
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100
32 Anaacutelise 109
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125
4 CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145
11
INTRODUCcedilAtildeO
O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da
crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ
que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen
Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca
Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito
guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido
MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de
ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica
aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir
proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1
Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a
argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela
TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no
discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e
apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas
investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais
dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das
premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2
Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos
falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das
emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na
vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa
decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a
racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano
Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna
teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com
o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que
tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser
(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II
desta dissertaccedilatildeo
1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14
2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557
12
No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender
primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a
discussatildeo das emoccedilotildees
Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos
analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o
Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a
importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo
utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as
emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema
Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida
as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para
Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito
a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide
a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim
tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute
compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica
Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos
realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees
deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de
tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender
por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo
acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica
estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos
psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que
modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica
Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o
pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que
ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o
fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste
trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica
O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna
Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto
histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca
(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual
13
disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA
(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as
emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais
especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar
acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo
tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso
juriacutedico
No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e
II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito
tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de
nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no
Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico
No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo
II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de
argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas
aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das
emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados
procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre
as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a
melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate
qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees
14
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees
O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da
origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de
qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje
possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que
preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um
discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto
eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees
Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista
trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao
mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente
atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem
encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma
significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou
a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica
do Presidente Obamardquo3
Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar
localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito
Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram
legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de
Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha
inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de
palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode
significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4
Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre
Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos
Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa
3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University
Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the
disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9
15
feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae
sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc
assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5
Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente
utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em
puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e
demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute
ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E
posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada
caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com
o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso
Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A
palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para
demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a
opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a
refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da
verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do
retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os
outros
Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade
do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na
tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase
uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim
relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a
ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC
associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca
5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the
Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate
in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela
primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore
The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90
7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a
whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey
Princeton University Press 1994 p 11
16
pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica
entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9
Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados
pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o
poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza
incutir a compaixatildeo e o prazer10
Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida
puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas
proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11
Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica
a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir
quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a
origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que
supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade
Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a
fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a
mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e
tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime
ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a
organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala
em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e
de outras mateacuterias12
A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto
pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual
(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu
perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o
referencial teoacuterico sobre o assunto13
Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa
anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias
9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11
10 KENNEDY G Op cit p 25
11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in
honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard
Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12
CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p
49 13
GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in
WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p
30
17
tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual
apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14
Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte
retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das
fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para
Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax
realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15
Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para
assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso
eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente
valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo
da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter
melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos
entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade
Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela
restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a
organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de
retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores
jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade
Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e
Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de
Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico
governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia
de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero
O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria
uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte
cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como
ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo
com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16
Assim os personagens de Homero na Iliacuteada
14
CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press
1949 (II 6) p 171 15
COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16
ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker
situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4
18
apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a
retoacuterica em teoria
No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-
Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com
a retoacuterica
Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso
poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de
maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua
proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em
grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua
dicccedilatildeo17
Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas
do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador
demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a
gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador
Quando urdiam discursos e expunham ideias
Menelau era fluente e claro mas conciso
natildeo sendo um homem multipalavroso nem
dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo
Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se
de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo
mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem
para diante o inclinava) parecia um ruacutestico
algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila
Mas quando a voz do peito emitia poderosa
palavras como copos-de-neve no inverno
ningueacutem nenhum mortal o igualaria18
Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a
fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis
toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura
literaacuteria de Homero19
Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a
Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos
17
ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi
rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established
his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same
power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18
HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19
ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates
a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be
categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system
explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84
19
retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca
que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a
justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a
qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e
que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade
literaacuteria de outras obras antigas20
Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada
pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da
competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na
Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras
poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga
funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado
atraveacutes do discurso persuasivordquo 21
Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo
da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do
debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste
ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na
filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico
No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante
era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute
por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que
apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a
compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos
Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar
mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo
grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo
paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do
20
KNUDSEN R Op cit p 101 21
ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and
much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned
as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive
speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101
20
fenocircmeno emotivo22
Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza
o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo
de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas
Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute
chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo
de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado
Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo
qualidades23
Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados
em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em
funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo
modo24
Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido
por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio
sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de
ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25
De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute
algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na
Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito
disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas
vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp
natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas
de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26
Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar
que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica
Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas
agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que
22
RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ
Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de
Gruyter 2008 p 48 23
ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather
he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad
livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J
L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24
ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo
Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25
RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and
interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26
RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um
conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam
evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito
21
defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma
irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo
haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que
algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a
retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que
podem ser conhecidos pela razatildeordquo27
contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se
reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as
causas e os motivos do que faz
Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a
explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica
Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro
I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina
dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em
espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das
emoccedilotildees no campo da retoacuterica
Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de
uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em
instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto
de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou
natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que
satildeo os entimemas tais manuais nada tratam
O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que
ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de
retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria
terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de
outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a
palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir
do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental
(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato
Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como
um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo
27
ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by
reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York
Fordham University Press 1980 p 4
22
Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies
algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que
dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e
outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando
demostrar algo28
Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees
neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que
prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque
literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma
expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave
psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29
No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por
Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo
dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30
parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como
meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que
englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica
Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos
ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de
acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza
pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre
o assunto
Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica
inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado
do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas
aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar
em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo
muito pode ser comentado
Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas
para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I
Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados
argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute
deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria
28
ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29
KNUDSEN R Id ibid p 39 30
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13
23
necessaacuterio o uso de apelos emotivos31
Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu
criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos
(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32
A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo
do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma
forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem
durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre
emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma
visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o
ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada
haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que
resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33
Levando isso em
consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees
num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs
meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma
completa adaptaccedilatildeo do tema34
De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles
fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou
entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas
que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez
seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees
no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35
Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as
emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes
indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o
inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36
Ela no entanto registra que
em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o
discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees
31
FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to
greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32
Id ibid p 117 33
Id ibid p 118 34
Id ibid p 118 35
KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek
rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36
FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays
on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264
24
De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves
emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos
que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das
emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De
todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme
assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente
influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37
Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na
retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma
das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de
Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo
e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat
especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado
comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser
desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38
e Konstan chega a dizer que
curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas
obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica
Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre
emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em
um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo
(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre
retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de
Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia
ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as
emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de
oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo
filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)
Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome
verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte
de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou
especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39
37
HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL
Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38
COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)
Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39
ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not
ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for
example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side
there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different
passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in
other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The
Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if
that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on
25
Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II
Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no
ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de
fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto
com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de
julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa
determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios
de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento
(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial
O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes
eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte
maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma
os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza
ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo
culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40
Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees
vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar
afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de
algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir
uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem
utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser
humano
A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a
natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor
(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema
A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja
de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua
obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por
exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter
distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive
desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo
rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op
cit p 411 40
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84
26
preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das
suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio
natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia
perdida conforme se observa no seguinte trecho
SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos
comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a
desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor
PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel
SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a
natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se
devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais
difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41
Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns
aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo
beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia
de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita
submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo
bons e outros natildeo (51b)42
Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento
platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita
recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que
o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado
natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43
Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor
chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra
aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno
misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor
a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada
citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos
41
ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will
at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain
PROTARCHUS What you say is very plausible
SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we
have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the
shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER
John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p
419 42
FREDE D Op cit p 262 43
ARISTOTELES Op cit 2012 p 56
27
mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura
da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a
doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa
fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade
do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44
que eacute uma dor da alma (50a)45
Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees
opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha
benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no
referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum
momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra
ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem
emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem
fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi
moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia
Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo
dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que
eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles
encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um
mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males
passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)
A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de
bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na
possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu
turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece
fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um
ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor
diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos
provocam prazer (1370a)
Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a
benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas
envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em
44
A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio
alheio 45
PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440
28
mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no
empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46
De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs
aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que
geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou
o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem
saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no
seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental
Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um
mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera
pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de
fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda
sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou
acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo
que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do
medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o
medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta
categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com
instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que
provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes
quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de
injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em
relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande
penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente
relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos
temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num
intervalo temporal muito longiacutenquo
Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir
medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o
passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem
confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os
seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro
46
FREDE D Op cit p 271
29
lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo
grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como
certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio
estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir
confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as
pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo
Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de
compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)
continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os
ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma
teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de
experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um
determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva
Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de
representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras
gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo
mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia
eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da
palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade
A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem
percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois
problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos
ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o
semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se
identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar
de como as coisas satildeordquo47
Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade
especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes
da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis
Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa
emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48
(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam
47
ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL
M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell
Publishing 2006 p 334 48
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57
30
de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade
em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas
porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma
pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do
ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]
de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]
que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a
vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo
indiviacuteduo (1384a24)49
Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um
papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute
possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca
Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer
julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50
Assim em
conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo
mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um
estado emocional especiacutefico
Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a
evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo
elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar
quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro
da retoacuterica
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica
Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de
importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a
investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a
Nicocircmaco
49
GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University
Press 1988 p 26 50
ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen
aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche
anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56
31
Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que
seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima
tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido
uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana
Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no
Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da
espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as
pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51
(1095a17-19)
Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)
oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no
Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade
com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo
justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para
melhor compreender a mateacuteria em exame
Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo
(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte
natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e
por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser
humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja
natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta
uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de
parte apetitiva ou desiderativa
Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais
apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu
sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute
capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte
irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa
permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional
mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp
Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo
(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido
estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer
ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da
51
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40
32
alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma
que possui razatildeo em si mesma52
Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma
parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de
excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento
das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente
desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste
capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das
partes53
E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes
intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes
ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas
agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder
ouvir e obedecer agrave razatildeo
Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto
Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se
referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural
(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por
excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a
felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que
exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado
(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos
justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54
Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral
(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional
da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo
ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)
Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o
Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar
tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela
52
RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a
eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53
PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos
nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54
RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78
33
instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara
divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por
meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute
suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio
conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna
virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso
realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou
justo
Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza
(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas
como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo
permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis
(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a
regressotildees55
Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios
atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica
(1105a30-35)
Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que
desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da
alma
No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico
relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo
ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo
ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56
No Capiacutetulo
II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo
fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que
natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio
Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de
incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na
posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a
55
WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2013 p 69-70 56
ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68
34
sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados
devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57
Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e
o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute
afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa
condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa
com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa
posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir
devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem
natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir
de modo adequado as emoccedilotildees58
Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de
como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles
apresenta a doutrina do meio termo
Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior
ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores
menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a
noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia
Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois
extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos
pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute
excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute
exatamente o mesmo para todos os seres humanos59
Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no
distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto
mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso
quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de
sentir a emoccedilatildeo
Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina
tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os
casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido
compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam
57
Id ibid p 74 58
KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY
Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press
1980 p 104-105 59
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76
35
moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas
equidistantes dos dois extremos60
Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no
campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-
casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular
enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em
geralrdquo61
Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas
cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes
Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar
conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo
adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves
pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do
aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave
experiecircncia concreta
Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de
modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma
resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida
conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma
adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por
deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com
raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira
equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62
Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira
algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se
delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a
razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente
de acordo com as circunstacircncias
Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo
muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia
e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis
60
RAPP C 2010 p 416 61
Id ibid p 419 62
RAPP COp cit 2008 p 66
36
porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como
senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc
Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel
senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente
vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute
extensiacutevel
Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a
inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma
que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja
da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo
ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto
comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia
entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela
observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada
pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo
ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena
(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute
experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis
despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem
Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas
no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos
conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39
1388a30-37 983a1-5)
Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas
fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido
este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63
Eacute bem verdade que mochteria
tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida
obra aristoteacutelica64
mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das
mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65
63
LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics
a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64
ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65
Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term
used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from
morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non
moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used
37
Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu
eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na
conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo
relacionada ao cometimento de injusticcedilas
Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em
comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as
emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa
ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura
conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura
simplesmente por serem sentidasrdquo66
Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois
grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de
acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele
primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees
adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo
grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67
Desse modo de
acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do
indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz
Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo
O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a
vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma
racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos
perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou
brutas contra outras pessoas
Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso
de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional
porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral
permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas
synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES
Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago
University Press 2011 p 307 66
ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve
praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame
simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67
LEIGHTON SId ibid p 226
38
incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir
ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma
injusticcedila68
Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar
adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo
talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a
conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as
emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)
natildeo estaacute condizente com tal abordagem69
De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute
extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte
Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na
poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70
Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas
emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o
puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do
personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que
porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida
comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce
outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por
sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71
Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua
adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton
oferece duas respostas
Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do
haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que
Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa
pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja
68
STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his
moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos
Angeles California University Press 1996 p 298 69
RAPP COp cit 2008 p 66 70
LEIGHTON S Op cit p 226 71
Id ibid p 227
39
destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira
hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72
Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas
circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica
e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73
Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa
circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute
inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro
Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um
especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em
competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua
respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam
completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo
subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74
Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma
psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios
de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute
inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita
que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia
de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por
tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a
diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo
compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75
De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em
relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo
com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A
inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica
etc)
Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em
nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas
72
Id ibid p 230 73
ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their
placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74
Id ibid p 231-232 75
Id ibid p 231
40
jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue
explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes
entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave
natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara
para utilizar a inveja na retoacutericardquo76
Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico
anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o
problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica
Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no
Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por
isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica
difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo
Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em
relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema
enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as
emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo
em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos
reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar
preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas
Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia
Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica
aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as
emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o
indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum
embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente
isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade
adequada agrave situaccedilatildeo experenciada
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica
Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica
aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave
76
ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but
remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235
41
obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo
pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de
percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica
estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262
aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do
estoicismo
Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange
cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras
inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola
se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio
de comentaacuterios de seus adversaacuterios77
Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante
pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na
verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que
incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam
fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da
loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute
incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como
filoacutesofordquo78
Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar
que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que
a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial
periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por
Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que
coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide
com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco
Aureacutelio79
A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento
do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios
77
TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas
heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78
ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN
Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school
from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics
Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers
trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79
SEDLEY D Op cit p 7
42
(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes
disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo
tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais
reflexos sobre a retoacuterica estoica
Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o
impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute
difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema
a que ele compara a um edifiacutecio
Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais
finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela
tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada
Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior
desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema
em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe
faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80
Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar
primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio
que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto
estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza
reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus
opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas
vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada
corretamenterdquo81
Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado
como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo
considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz
Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar
porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e
outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em
conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da
possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e
80
ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured
product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows
from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal
of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo
(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University
Press 2004(III74) p 88 81
BRENNAN T Op cit p 120
43
natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez
dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do
que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos
indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa
forma satildeo menos preferiacuteveis
Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua
incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave
contingecircncia82
Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio
quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque
podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal
possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o
instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver
Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento
pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte
entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve
alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)
Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza
nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em
tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O
verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83
Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e
infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um
estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro
objeto externo84
Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a
aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude
como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela
razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo
imutaacutevel[]rdquo85
A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a
82
Id ibid p 122 83
ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part
of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of
dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor
wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful
Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion
ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84
LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987
p 377 85
ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-
faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable
44
essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a
razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86
Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui
todas as virtudes87
Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo
eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo
praticadas de acordo com todas elas88
Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza
que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza
significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas
permeia a reta razatildeo89
A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres
humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90
Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio
O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo
correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra
a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho
ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma
faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma
conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo
apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91
Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas
atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica
especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso
Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder
aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto
desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com
reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 378 86
Id ibid p 383 87
STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 379 88
PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 379 89
LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p
395 90
SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 395 91
ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with
nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in
his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 398
45
os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do
termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92
sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93
quando atraveacutes da
visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma
modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um
ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e
passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela
num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo
agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o
mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94
Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz
respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei
uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo
verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este
respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso
Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da
epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela
garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende
precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto
Empiacuterico
A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute
marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo
que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os
estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os
objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de
forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes
fatores como atributo95
92
PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 238 93
AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 237 94
ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying
lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo
(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95
ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in
accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold
that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a
craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against
the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 243
46
Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que
natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte
ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu
objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto
impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir
do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo
precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta
impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96
E isso
soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de
razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para
realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97
Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees
eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por
meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco
reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que
para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um
assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas
condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98
Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo
apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99
Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu
conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo
caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100
Uma
das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as
pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo
temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso
possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101
96
ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this
impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit
p 68 97
LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98
BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99
CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 254 100
STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophershellip p 256 101
BRENNAN T Op cit p 72-73
47
Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e
pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes
que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente
um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um
assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102
Quando vejo um ramalhete de flores
amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar
no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para
realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua
vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de
opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e
especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem
tanto um quanto o outrordquo103
Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar
compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as
emoccedilotildees (apatheia)
Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os
estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo
varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para
a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de
passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da
portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador
muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao
reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e
estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os
problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar
a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de
doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo
utiliza o termo104
Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo
afecccedilatildeo105
Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com
102
GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103
ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while
the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104
TIELEMAN T Op cit p 15-16 105
BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In
LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein
BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93
48
Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o
termo pathos106
Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente
sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de
harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo
Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute
excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute
irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107
Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair
primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso
qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve
Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute
contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra
o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica
porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as
emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos
comandos do logos
Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender
esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto
anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte
natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e
obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude
(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na
eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas
de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente
afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente
para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz
Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na
filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma
estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se
entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos
estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os
106
GRAVER M Op cit p 14-15 107
ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of
reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS
2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 410
49
homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108
Dessa forma as
emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos
fundadores estoicos
Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se
acomodam emoccedilotildees especiacuteficas
Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que
devemos persegui-la
Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que
devemos evitaacute-la
Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que
devemos ficar contentes com isso
Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que
devemos ficar abatidos com isso109
Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio
temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo
direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo
que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um
objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor
negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um
assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo
Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes
emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No
gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico
No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo
anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110
Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos
(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao
falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim
quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios
108
ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the
sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109
ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it
Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the
opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the
opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad
livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110
CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago
Press 2002 (416) p 45
50
de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por
que isso ocorre
Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111
e por assim serem
atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza
amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em
direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda
eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No
medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na
verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente
atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam
sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante
possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112
Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de
perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme
resume Crisipo
A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que
satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]
estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a
atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos
empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113
Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico
porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as
caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi
construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)
que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que
Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso
tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia
alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as
propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional
111
LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112
BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113
ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way
of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out
reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad
livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the
ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press
2001 p 370
51
com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de
bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)
Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal
futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de
que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo
experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que
alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114
Quanto agraves emoccedilotildees em
espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave
cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por
fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave
dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum
eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica
coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente
que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome
da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um
sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de
indiferentes
Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde
que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se
arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo
ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a
alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento
involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e
por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do
homem inferior
Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o
saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e
passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)
parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a
retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de
maneira bastante marcante da praacutetica do orador
114
BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op
cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221
52
Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de
uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de
controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das
emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua
vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na
construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida
comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de
acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo
da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute
instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas
No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de
Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio
aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi
preservado115
Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo
ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas
bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116
Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos
como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de
falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a
parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o
saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite
diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de
modo a nunca cair em truques argumentativos117
Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a
dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados
uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo
aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a
retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos
115
LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116
ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38
1988 p 393 117
LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48
53
filoacutesofos118
Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a
uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119
E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os
cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos
algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo
apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer
finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e
outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para
bem falar no sentido de falar corretamente
Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro
problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse
sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo
muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons
arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se
o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120
Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na
verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo
que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na
assembleia popular121
Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco
virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro
gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada
de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do
que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo
de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122
Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta
num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem
118
CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119
CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University
Press 1942 (III 65) p66 120
ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule
and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to
oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit
1962 (118) p 107 121
CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122
LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396
54
aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um
oradorrdquo123
Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva
para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a
retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador
tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos
excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos
destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico
natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua
ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124
Eacute certo que o saacutebio
experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso
no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo
Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil
encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por
retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave
persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo
existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa
usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu
respeitordquo125
Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de
Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126
Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha
o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto
de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se
guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato
Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era
Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom
para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com
123
ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo
(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard
University Press 1942 (159) p 313 124
ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or
by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411
Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125
ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)
because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p
426 126
CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91
55
os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria
como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste
seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia
ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127
Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica
finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas
fontes da Antiguidade
De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua
eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte
articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois
campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade
da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No
Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua
funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que
significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias
Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois
para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade
strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees
adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas
realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito
menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador
De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido
de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos
seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128
e atingir uma felicidade
autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por
meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a
que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo
percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico
invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque
estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica
127
CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128
ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the
world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210
56
natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e
coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico
Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico
exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram
levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar
das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo
loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as
emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema
filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel
sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129
129
SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149
57
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo
No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um
panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar
que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de
uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi
neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se
refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de
que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado
emocional do sujeito
Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva
investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash
MTA130
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de
Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do
Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a
relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de
julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III
momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees
do Supremo Tribunal Federal - STF
Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma
contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento
humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus
problemas de eacutepoca
Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso
caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica
sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha
agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o
seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos
130
Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da
Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof
WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation
Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30
58
seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por
ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de
reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo
Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que
natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma
especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato
com a massa a propaganda
Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma
informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo
desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de
descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande
nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a
propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da
modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e
de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados
meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131
Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo
absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a
integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de
sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um
ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos
compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados
comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo
conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo
e relaxamento evitando o cansaccedilo132
Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra
e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre
a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis
Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma
abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da
Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa
eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo
nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por
131
KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave
Macmillan 2005 p 1 132
Id ibid p 2
59
estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar
a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era
particularmente destacada133
Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato
efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias
disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez
que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance
limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar
uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134
Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de
irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia
espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da
propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e
de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo
eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda
mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios
simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135
Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos
sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos
grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das
emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais
atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136
Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda
discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles
enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves
emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo
valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille
133
ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo
emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation
for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for
methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and
mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134
ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner
New York Vintage Book 1973 p 9 135
Id ibid p 201-206 136
ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through
emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204
60
und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a
instruir os seus propagandistas
No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar
a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A
propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e
para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista
Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos
membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias
Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante
da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos
objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil
sem efeito
[]
A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa
natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na
transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de
que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa
transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova
maneira nacional de pensar137
Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)
Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no
intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda
possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir
convincentemente as massas
Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno
acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na
medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto
O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas
emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente
ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se
deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus
objetivos138
137
ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the
foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect
[hellip]
National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks
of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a
new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after
an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und
Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138
ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular
importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as
the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not
coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of
propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In
61
Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937
direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a
melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes
alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam
apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de
argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos
talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo
quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de
mundordquo139
Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem
novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles
ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior
das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido
Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do
coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso
pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do
partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O
convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional
O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional
socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de
seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele
compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele
explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem
Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo
alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os
partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas
pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as
sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140
Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-
propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139
ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and
utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart
or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249
Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de
janeiro de 2015 140
ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the
understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he
understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more
receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people
by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won
by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to
62
Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico
com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor
candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos
totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso
Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa
violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes
totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos
sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma
ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141
Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um
repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim
de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o
surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as
emoccedilotildees no discurso
Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e
avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a
investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca
A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo
tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da
argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica
em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma
abordagem teoacuterica proacutepria
Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das
emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque
natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a
primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem
call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141
PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo
Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142
Id ibid p 21
63
temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que
Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA
Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA
satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente
influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143
Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute
realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da
Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144
Assim enquanto o esquema argumentativo
de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse
modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados
tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees
Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o
pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da
MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e
justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico
Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia
que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do
trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo
entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade
(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua
inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos
oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme
expotildee Roesler
A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de
Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a
sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de
ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada
para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar
caracteriacutesticas fundamentais145
Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um
termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o
143
RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144
ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on
something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145
ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade
Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23
64
qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude
questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e
supostamente emprestaacutevel ao direito146
Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber
juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se
funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo
germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que
enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se
apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir
agrave discussatildeo dos problemasrdquo147
A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se
orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de
problemas se revela mais adequada ao direito
Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode
afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade
de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual
o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos
pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas
confere-lhe a estrutura fundamental148
Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e
demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da
retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a
argumentaccedilatildeo juriacutedica149
Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor
natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro
lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da
relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150
146
ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica
Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da
UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147
VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos
juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008
p 39 148
ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149
Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo
Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm
10 2015 p 26-48 150
A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes
de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do
direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo
Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf
65
De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin
realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da
argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira
como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151
Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com
o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da
loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152
Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma
conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute
uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia
(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo
argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por
vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)
que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a
conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar
sua autoridade geral
Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que
este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute
possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As
noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a
um esquema comunicativo153
E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da
dialeacutetica do que da retoacuterica
Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica
eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a
Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao
racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo
de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da
a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise
retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151
TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes
2006 p 2 152
BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria
Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153
MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat
parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73
66
retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do
raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154
Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando
expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai
atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto
escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da
retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de
ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155
Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave
noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional
da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma
argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma
argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao
argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo
das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta
independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156
Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da
retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa
pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)
referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias
Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as
emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo
elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos
ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este
uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar
sinceridade157
Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como
perturbadoras da accedilatildeo158
o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma
compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo
154
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica
trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155
Id ibid p 7 156
Id ibid p 35 157
PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du
discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158
Id ibid p 49
67
podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a
ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159
Em outra parte da obra
anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem
apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu
discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar
suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160
Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do
seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na
argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta
uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo
nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser
confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que
habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como
valorrdquo161
A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa
das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica
antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se
trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto
espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo
da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece
estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar
Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima
estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em
que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um
interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam
vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua
obra162
Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor
num campo de reflexatildeo sobre o logos
159
PERELMAN C Op cit p 518 160
PERELMAN C Op cit p 27 161
PERELMAN COp cit p 539 162
PERELMAN C Op cit p 5
68
23 As emoccedilotildees falaciosas
Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo
acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico
a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees
As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo
Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente
relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da
argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um
teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163
Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer
criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse
modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso
passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras
palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na
argumentaccedilatildeo164
Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo
ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165
Falaacutecia portanto deriva do termo
em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que
significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a
ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um
truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166
Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua
Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um
argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente
uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto
163
ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the
scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart
MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the
pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164
EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p
25 165
HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166
WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State
University Press 1992 p 17
69
diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a
conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167
Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de
criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou
ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem
aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual
estado de arte da argumentaccedilatildeo168
Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que
particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo
Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento
Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica
para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu
pensamento
Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso
tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os
homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso
para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-
los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo
O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes
aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um
nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo
de autoridade
[]
Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam
Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente
utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos
assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o
adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que
designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam
Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias
extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute
conhecido sob o nome de argumentum ad hominem
O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento
e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um
dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de
argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a
verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o
conhecimento169
167
RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168
Id ibid p 27 169
ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments
that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to
awe them as to silence their opposition
The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause
has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority
70
Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam
ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter
ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento
exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um
modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras
de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer
comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs
Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad
hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era
conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca
que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho
das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees
contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad
hominem solvunt []rdquo170
Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad
verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo
chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias
Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao
argumentum ad rem171
Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute
possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao
alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad
hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras
fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad
rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad
judicium
Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their
judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a
proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam
A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is
already known under the name of argumentum ad hominem
he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from
any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all
the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE
John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170
ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)
HAMBLIN C Op cit p 161-162 171
WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80
71
Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser
substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo
denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa
apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave
modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves
caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias
objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das
pessoas172
Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas
ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo
Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila
que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito
de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo
de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute
considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias
sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173
Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo
o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as
falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal
contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas
a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard
da disciplina174
Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma
abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso
trabalho destacamos as seguintes falaacutecias
(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam
(ii) apelo ao medo argumentum ad metum
(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium
(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam
(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam
172
WALTON D Op cit p 4-9 173
ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic
of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same
old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174
EEMEREN F Op cit 2009 p 12
72
(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam
(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones
Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad
ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave
supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por
repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo
ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175
Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I
agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe
faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad
passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo
loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos
Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua
verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo
usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento
para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a
nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees
[]
6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum
toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes
para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute
chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176
Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem
podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido
de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no
sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do
discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento
parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees
eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para
distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso
175
HAMBLIN C Op cit p 41 176
ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from
the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our
Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an
argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the
hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones
an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry
after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242
73
Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o
que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do
discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo
consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos
negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na
linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas
conexotildees entre essas coisas
Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das
emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da
argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como
um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da
teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las
como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus
atoresrdquo177
O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a
argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178
Assim pathos parece
retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de
patoloacutegico de sofrimento
Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na
classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma
grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu
constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente
vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de
sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica
ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito
pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179
Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia
das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard
da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em
que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias
177
ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions
mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord
expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178
Id ibid p 63 179
ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et
finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66
74
Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo
consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para
elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees
restou significativamente empobrecido
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso
Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das
falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi
preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas
Walton
Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das
falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no
Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo
canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do
domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e
aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a
discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso
das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos
expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense
Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo
apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio
Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora
do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se
sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da
argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada
inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180
Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque
decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas
A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as
180
ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory
inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69
75
emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em
sociedade181
Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em
que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se
cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por
exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma
alegaccedilatildeo182
De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por
entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha
cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183
Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais
argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca
relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus
participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para
bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem
uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo
sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha
adequadamente o ocircnus da prova184
Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente
quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a
irrelevacircncia do argumentordquo185
Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu
estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da
argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos
corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186
o autor propotildee o estudo de quatro
ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de
aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum
ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad
hominem
181
Id ibid p 69 182
Id ibid p 68 183
Id ibid p 1 184
Id ibid p 1-2 e 28 185
ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an
argumentrdquo Id ibid p 2 186
Id ibid p 28
76
Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de
estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo
agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute
preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria
em comentaacuterio
Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute
estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo
Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia
alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187
Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim
comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo
em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma
coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado
idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188
e que se mostra um recurso uacutetil para que o
diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim
Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se
(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como
premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida
(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189
(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma
particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia
suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190
(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em
cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em
outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do
investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda
que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste
187
ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a
collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188
ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id
ibid p 20 189
WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon
University of Toronto Press 1998 p 37-40 190
ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is
insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70
77
em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos
tipos de bens ou outros itens de valor191
e
(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte
reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si
mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo
cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um
confronto fiacutesico192
Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita
compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)
um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo
criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os
argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo
persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e
contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos
de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser
legiacutetimas193
Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a
noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do
discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim
mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as
premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um
modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir
que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194
Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo
do apelo agrave compaixatildeo
Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a
abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a
sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195
191
Id ibid p 100 192
WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193
Id ibid p 23-24 194
ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even
if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular
premisesrdquo Id ibid p 57 195
Id ibid p 106
78
Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende
muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por
exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas
facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser
excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196
Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do
Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou
fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr
Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo
considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que
Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e
mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo
canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do
Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado
de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o
deputado197
Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de
enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico
Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto
vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso
questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto
realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte
de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198
Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em
relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da
tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso
atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim
considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns
196
Id ibid p 106-107 197
ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his
advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad
livre) Id ibid p 111 198
Id ibid p 111
79
destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute
adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado
Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar
amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o
entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose
perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra
provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de
condescendecircnciardquo199
Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave
simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa
Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-
se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos
bem como restringir a sua publicidade
Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei
o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre
todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes
relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes
que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que
rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos
ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo
familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco
dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200
Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo
eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser
um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de
doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores
de tabaco
Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para
argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do
projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento
utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como
199
ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo
for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200
ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What
about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the
legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124
80
um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais
negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo
causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio
de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute
Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso
visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema
unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo
Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para
avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo
(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo
(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute
aberto a questionamento criacutetico
(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa
investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma
proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e
(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os
fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201
Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste
em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o
seguinte checklist com sete fatores
(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute
adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo
(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no
caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute
apenas algo secundaacuterio
(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio
reagir energeticamente
(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo
secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso
(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de
argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados
201
Id ibid p 140
81
(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam
quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo
com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e
(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo
de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do
caso202
De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton
diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso
defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode
interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203
Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo
uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus
efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus
destinataacuterios204
Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a
credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar
prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se
trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas
hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da
pessoa205
Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a
considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de
modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de
conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206
O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra
pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta
verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que
acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo
eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e
202
Id ibid p 141-142 203
Id ibid p 193 204
Id ibid p p 259-260 205
Id ibid p 195-196 206
Id ibid p 193-194
82
o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207
Neste caso o
uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo
criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208
Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral
ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir
contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente
presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os
estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para
classificaacute-lo como falaacuteciardquo209
Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo
de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de
relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o
contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela
qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a
adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa
negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210
Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os
comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio
Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a
respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute
possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum
espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211
Neste
uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de
pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212
De outra parte eacute possiacutevel pensar
que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em
assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213
207
ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic
dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo
verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208
Id ibid p 216 209
ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to
force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid
p 78 210
Id ibid p 159 211
Id ibid p 67 212
Id ibid p 2 213
Id ibid p 67
83
Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na
filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre
tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute
proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica
aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que
compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas
adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento
certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as
emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias
Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na
argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas
Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou
inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo
para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem
empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo
Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e
estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e
deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como
se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer
circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que
merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o
argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida
adequada agrave situaccedilatildeo214
Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e
principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um
exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em
assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais
tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques
pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da
argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215
214
Id ibid p 68 215
ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human
reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64
84
Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na
argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver
complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo
emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns
aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que
natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso
De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton
fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees
importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De
que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no
objetivo do proacuteximo toacutepico
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees
Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica
recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre
tenha sido assim
Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec
XX foi miacutenima216
Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em
1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva
sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia
secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo
categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que
partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo
parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217
Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo
XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar
informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos
estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto
216
ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe
siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique
(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217
ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad
livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace
and Company 1921 p 40
85
aquela de descrever eventosrdquo218
Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos
entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores
concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute
que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas
tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica
Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a
funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela
entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por
inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute
variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219
Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado
nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso
Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a
ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um
dos representantes de tal escola
Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma
teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar
nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo
com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance
Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos
dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma
vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens
descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira
mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem
melhores insights prescritivos
Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao
exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu
trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir
o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso
apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo
218
ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor
SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-
26 p9 219
ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective
functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system
Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad
livre) Id ibid p 22
86
teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em
comentaacuterio220
Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees
efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de
especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura
suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio
do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver
discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo
da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente
sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221
Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada
por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada
Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio
se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes
problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das
caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo
(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma
emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)
natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222
Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma
emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo
algum animal etc) 223
Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute
que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto
pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo
predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que
designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224
220
MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques
Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221
ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion
effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id
ibid p 118 222
Id ibid p 43 223
Id ibid p 43 224
ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee
ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46
87
Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que
dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias
lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)
um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar
diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)
complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de
facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo
ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos
explodissem de raivardquo)225
Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente
observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua
interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a
presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas
que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma
interpretaccedilatildeo indicialrdquo226
Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo
emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma
entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de
indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a
presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do
primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face
da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute
causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227
Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de
processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios
tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados
e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228
Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes
para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam
ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender
225
Id ibid p 49-51 226
ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves
heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227
Id ibid p 64 228
Id ibid p 66-67
88
de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por
exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a
exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que
por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo
(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma
relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as
emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229
Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo
suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um
especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os
tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso
espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo
Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na
psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com
mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a
avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada
agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar
uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais
Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o
contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a
realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia
de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230
Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da
anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos
numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do
discursordquo231
Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O
esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e
assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)
229
Id ibid p 75-95 230
Id ibid p 106-112 231
ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de
sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112
89
criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia
cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin
(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso
como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas
(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no
tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos
ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo
(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso
descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute
enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento
(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa
para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou
na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de
um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a
um agente
(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo
emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade
de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua
controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria
(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com
outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo
Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da
aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de
demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um
homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada
parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa
situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto
(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute
compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo
a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da
incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional
familiar amigos etc)232
232
Id ibid p 115-119
90
Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente
designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e
suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo
inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim
de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma
esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere
a sua presenccedila233
Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num
mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma
emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione
Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso
registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que
vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo
atualmente existente entre logos e pathos
Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e
emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter
emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo
oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que
caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute
racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234
Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo
das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees
foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a
disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que
tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo
temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees
como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser
suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo
233
Id ibid p 119-120 234
ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo
practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo
(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In
WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins
Publishing Company 2004 265-276 p 274
91
No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute
impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem
assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um
evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento
Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees
racionaisrdquo235
Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo
vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo
registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado
aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias
adrdquo
Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser
argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de
construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra
uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)
esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236
Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da
pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre
abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir
uma determinada emoccedilatildeo
Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-
abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de
consequecircncia
Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico
satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o
sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo
do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as
disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237
Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um
235
ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional
attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational
manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236
ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why
they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)
MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal
2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237
ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et
affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248
92
estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um
ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238
Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas
alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais
atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de
delinquentes
Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as
consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o
sentimento de medo no discurso
Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo
tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente
melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de
uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto
eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria
normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees
Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a
respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos
grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento
antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos
do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava
significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica
produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto
Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees
justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica
Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do
fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa
passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas
por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram
algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um
pouco diminuir
238
Id ibid p 248-249
93
Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca
acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos
principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia
cognitiva
Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da
Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees
para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por
parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na
eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a
personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a
psicopatologia239
Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum
destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para
explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas
muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por
influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada
uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas
estatildeo atuantes240
Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de
interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241
Assim em
resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e
uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as
consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242
O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de
Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do
paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da
emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma
determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das
239
LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991
p 4-5 240
Id ibid p 5 241
SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela
JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York
Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242
ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it
in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo
(trad livre) LAZARUS op cit p 5
94
emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No
Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca
Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes
argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva
de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo
indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243
Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre
as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de
avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado
de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito
Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este
posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de
Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta
surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute
tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro
verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244
Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na
psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra
de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as
emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees
na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo
emotivo pudesse ser novamente abordado245
O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos
estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma
preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita
compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo
com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a
243
ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in
emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and
by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James
R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings
and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244
ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well
have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of
appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)
Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001
369-391 p 384 245
LAZARUS R Op cit p 14
95
estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva
tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos
da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a
estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda
mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)
derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos
originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores
para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees
Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais
detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa
investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer
Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo
iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a
nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos
factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando
alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os
avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha
alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente
significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246
Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do
processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por
exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)
podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou
entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para
resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do
silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de
problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim
pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma
reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir
interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas
por outras melhores247
246
LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions
New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247
Id ibid p 152-161
96
Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente
passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na
forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo
do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um
julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as
nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248
Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias
escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e
automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e
proposicional249
Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes
componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional
situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a
alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)
componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo
expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)
componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo
e sobre o nosso controle comportamental250
Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave
verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em
emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que
tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao
tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo
Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o
controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo
iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a
racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente
destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional
por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o
248
ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in
an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and
benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249
SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science
Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250
SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social
Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335
97
posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a
capacidade de ouvir a razatildeo
Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro
momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma
avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo
sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo
depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio
em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251
Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees
porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode
soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo
podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma
pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta
resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades
do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo
Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo
emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a
emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a
emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a
razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua
ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a
loucurardquo252
As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na
adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo
Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs
emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista
natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a
objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada
dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam
as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo
Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam
num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de
251
LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252
ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p
203
98
conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)
rejeiccedilatildeo253
Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila
de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes
e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social
contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a
melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes
Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento
como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero
de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja
muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma
poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos
da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra
imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento
econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de
risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido
em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam
Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que
teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e
conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute
atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para
solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no
mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave
situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de
racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a
tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia
o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos
filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos
superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o
desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido
controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio
comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo
253
Id ibid p 208-213
99
para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos
sociais254
Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que
leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo
dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da
argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber
psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais
254
ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation
in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed
organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus
optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)
SCHERER K Op cit 2011 p 331
100
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito
Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na
Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o
objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees
judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA
observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na
disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim
analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o
posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a
respeito deste assunto
Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das
emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais
baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a
sua relevacircncia
Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do
proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas
consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante
de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos
bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem
iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito
poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema
porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e
satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio
maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos
humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede
indenizaccedilatildeo moral e tantos outros
Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira
plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente
suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com
descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor
101
apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser
paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial
O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu
sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum
nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos
emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a
impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no
sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255
Eacute possiacutevel chamar a
tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-
emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate
teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute
virtualmente impensaacutevelrdquo256
A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo
do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de
danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que
algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em
consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a
racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em
consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257
Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste
em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade
isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas
possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres
invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum
prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258
E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela
vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves
mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa
255
ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad
livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford
Princeton University Press 2004 p 5 256
ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257
ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take
emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258
Id ibid p 6
102
reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave
vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de
difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente
termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas
aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos
Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo
poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum
mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo
deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles
natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam
nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a
uma profunda perda e depressatildeordquo259
Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia
Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica
coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a
felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens
materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por
exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a
sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria
na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude
Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute
eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos
quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a
detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos
assaltos etc)
Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem
experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute
bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a
compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se
dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos
filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que
259
ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything
outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and
depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6
103
pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de
nossas vidasrdquo260
Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma
abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos
Certamente natildeo
O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens
materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso
patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o
faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia
Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou
danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees
Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este
mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo
deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte
que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e
que forma elas tomam261
Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo
das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas
respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo
social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e
declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos
ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos
razotildees para estar zangado ou temerosordquo262
Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo
em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do
Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a
sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos
Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas
de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de
determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de
morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes
decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as
260
ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-
sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261
ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called
lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining
why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262
the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be
angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11
104
pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos
unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada
massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de
morte263
De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio
voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido
cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido
ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a
um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem
tempo suficiente para reflexatildeo264
No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa
atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo
Penal
Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face
de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser
argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente
admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos
concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer
tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265
Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da
psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees
passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo
resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas
emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa
esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente
irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as
compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer
raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo
embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas
263
Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no
significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances
of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the
possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It
treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as
members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of
deathrdquo Id ibid p 21 264
Id ibid p 37 265
ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any
attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56
105
ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266
ldquopodemos destacar quando a
emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto
separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267
No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de
observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees
satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel
avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em
determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida
puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees
adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute
aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese
Exemplificativamente a repugnacircncia268
eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na
vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute
relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza
por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina
os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo
suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo
asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis
contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar
provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina
diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens
organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc
Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia
invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem
constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado
e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa
repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em
primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas
condutas ilegaisrdquo269
266
Id ibid p 10-11 267
ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)
reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268
O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que
preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269
ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole
justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72
106
Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos
pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca
A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que
a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A
repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator
atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem
eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores
agravantes no fato delituoso270
Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das
pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as
novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da
repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento
juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado
por idecircntico motivo271
No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo
de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa
repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que
significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que
significa ldquofeder ter mau cheirordquo
Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os
seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para
isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de
repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos
impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute
preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de
repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272
Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para
elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de
contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do
decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa
animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais
270
Id ibid p 72 271
Id ibid p 72-73 272
Id ibid p 73
107
(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados
(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo
ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade
fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e
monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de
referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu
estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis
pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados
pela sujeira do corpo273
Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-
americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de
profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas
alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas
natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia
ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade
de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha
conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de
dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em
sociedade274
Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o
direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar
Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos
EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and
Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida
Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido
dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que
a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente
policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e
corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua
273
ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash
have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to
whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals
untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)
Id ibid p 108 274
Id ibid p 227-228
108
implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso
direito eacute estruturado e administradordquo275
Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz
fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo
possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney
Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de
que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de
leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de
emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica
O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera
demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees
juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila
em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas
conservadoras em geralrdquo276
Por outro lado exemplificativamente discute-se como o
medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo
mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus
companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da
legiacutetima defesa277
Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com
metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo
sistemaacutetica e coesa ao direito278
Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica
aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a
abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria
das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos
atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam
275
ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or
how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A
Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p
120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276
PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel
em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-
rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277
MARONEY T Op cit p 126 278
Id ibid p 126
109
os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria
influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279
Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees
participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que
uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo
da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de
criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado
32 Anaacutelise
Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees
parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo
procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados
pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo
presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos
Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas
sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta
por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo
dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise
iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso
objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso
Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo
selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma
determinada emoccedilatildeo
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo
Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ
2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a
constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional
O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais
das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio
279
ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how
emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the
assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131
110
de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor
da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre
outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225
da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio
A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a
ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida
resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim
Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio
A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos
direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns
arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o
enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da
mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar
sobre o ldquopneurdquo
A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura
cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca
que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias
negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de
consequecircncias negativasrdquo280
Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais
complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton
observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias
como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo
construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281
Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a
ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute
esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute
condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo
Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do
julgado
280
ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad
livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p
143 281
ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and
appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p
139
111
Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria
automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de
pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute
a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua
destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus
novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de
difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo
Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios
para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los
na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no
momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir
daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo
do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de
natureza ocupacionalrdquo
Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de
calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara
com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo
Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz
de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais
poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na
atmosfera
O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em
incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele
podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem
material poluente podem se apresentar com alto grau de
contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos
toacutexicos em especial dioxinas e furanos
Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o
consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na
formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas
o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que
produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases
toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em
contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o
fenocircmeno denominado chuva aacutecida
112
Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie
de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio
ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos
monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo
Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo
principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia
negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos
considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo
Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais
respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte
de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a
dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas
Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega
inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis
mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por
algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais
[]
Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os
riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a
dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a
presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo
descartados de forma a garantir a salubridade
A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos
pneus usados
A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana
sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em
especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de
criadouros de mosquitos
Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato
oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que
doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes
trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos
Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses
podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora
natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria
ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a
jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se
no risco de perda de vida de cidadatildeos
113
Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da
populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu
potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando
um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos
A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma
classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs
elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu
que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados
agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo
natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto
De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu
posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as
consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao
meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da
situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)
resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia
O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de
controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio
ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo
CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de
doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de
material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que
constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do
conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos
ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados
O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis
enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e
remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco
de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de
doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)
e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um
passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que
nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz
do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede
e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal
Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de
situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que
114
ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e
descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega
a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por
desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC
Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir
a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura
deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a
mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como
disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo
Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a
descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de
acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios
prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo
envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar
prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar
alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282
Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a
ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de
atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias
canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza
ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e
correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas
doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos
tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas
Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de
controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar
sentimentos de aliacutevio
Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou
ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma
dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de
argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo
282
Id ibid p 143
115
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo
Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos
Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da
antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos
juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que
regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados
como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da
liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da
CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e
Ricardo Lewandowski
Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso
Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio
expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo
Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a
avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja
responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe
uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa
um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283
Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como
a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no
discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado
especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto
Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos
anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento
autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute
imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa
No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo
(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente
danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao
feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao
283
Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166
A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar
tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo
116
caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida
ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo
No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente
culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima
(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e
geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia
(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem
totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo
avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena
de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo
A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de
sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal
procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam
provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e
especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o
feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo
[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de
outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum
acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica
[]
Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas
consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do
sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a
absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de
alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)
sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)
Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos
provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se
inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da
nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo
com uma exclamaccedilatildeo Confira-se
Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar
segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de
aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou
leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e
improdutivas do ponto de vista econocircmico e social
117
Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de
argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que
poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que
outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo
(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute
infligido sofrimento a outros seres inocentes
Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente
esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a
hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez
seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores
econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou
insustentaacutevel ter um filho
A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute
apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto
demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento
E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que
a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da
dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta
quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras
afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas
por questatildeo de grau
[]
Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das
incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos
diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de
malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o
aborto ainda em tais casos
Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a
praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em
nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas
anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute
merecedor desses sentimentos isto eacute o feto
[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto
sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do
sofrimento e da anguacutestia
[]
Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da
conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em
detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da
abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito
humano
118
Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes
as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade
estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana
autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que
era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante
Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo
sofrimento alheio284
Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma
avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo
modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal
situaccedilatildeo aflitiva285
Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo
entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e
as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do
feto
Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de
acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia
do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre
expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo
no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de
anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a
certeza do oacutebito
Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho
sofrimento a que se compara agrave tortura
O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma
espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do
miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave
tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa
ou dela exigido
Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado
diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias
Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de
emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do
diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo
demonstrada)
as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo
fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos
284
LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285
NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50
119
ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque
raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme
dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute
possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que
passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de
interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para
salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela
interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso
Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de
se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela
presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave
mulher
A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que
vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o
medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por
uma conduta que ela venha a adotar
[]
Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o
direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno
caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a
suplicar pela sua vida
[]
A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute
partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que
natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido
Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a
necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento
que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo
Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo
zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o
diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de
gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de
carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a
medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar
Mendes)
[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um
sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem
ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro
Luiz Fux)
O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber
enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute
desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura
120
Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo
cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir
qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui
embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima
[]
Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a
vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel
Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o
martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)
Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute
hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma
vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo
que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a
expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave
dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte
consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo
deste processo (ministro Celso de Mello)
[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura
fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se
institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera
crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra
Rosa Weber)
Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro
Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto
anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no
medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para
com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para
com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela
natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees
foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes
expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no
julgamento
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo
A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica
contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de
2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras
campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970
121
um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio
especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com
a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais
benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia
A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente
No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF
por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e
incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216
salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-
se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais
atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do
mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns
colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras
que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo
Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente
justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos
representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente
a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por
esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a
extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas
famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas
circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional
em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do
Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda
hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares
da identidade nacional
Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que
fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a
ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria
materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo
aos sentimentos do povo
Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da
identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja
a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por
122
exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286
Assim no
orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi
significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos
ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento
deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa
imagem
Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo
porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma
aposentadoria digna
Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre
as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito
anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior
puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil
pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores
daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram
rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento
digno para si e seus familiares
No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros
heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio
histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de
modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho
feitordquo
[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no
Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse
patrimocircnio histoacuterico nacional
Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em
especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por
meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por
tamanho feito
Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes
em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos
desportivos
O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme
porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que
286
ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our
own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the
family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271
123
calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de
encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo
reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que
passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando
o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila
chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de
reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia
Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute
desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro
tanto se orgulha
Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela
ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de
penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores
Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e
justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash
muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees
materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos
telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-
campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute
mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo
tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro
Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas
emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)
Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o
povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas
proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e
merecida homenagem feita pela lei
Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo
de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os
referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um
traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto
observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na
deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como
hoje em dia
Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das
conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as
empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo
brasileirardquo
124
Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da
eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o
Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser
campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes
empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que
se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por
conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo
brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento
Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o
ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais
tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo
Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros
Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor
Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro
Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e
verifique depois
[]
[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as
novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado
ao Brasil
Isso eacute o soft power Trata-se do soft power
[]
esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele
traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria
aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute
na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um
dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo
instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o
Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada
De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute
benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira
expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar
que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E
o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora
tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)
Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante
presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de
tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi
significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais
masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito
de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo
125
ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos
desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila
chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo
ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo
expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos
Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois
o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo
ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede
mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da
culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via
de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro
quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees
expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder
se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas
sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos
colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute
preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos
identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa
resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse
modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem
para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o
rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia
dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo
juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que
pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de
argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso
das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o
julgador
Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica
estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma
126
ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da
antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao
inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal
desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro
gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero
descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso
retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva
para ser assentido pelo puacuteblico
No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o
direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos
Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem
sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo
Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo
de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante
retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute
dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo
emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas
prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de
significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no
redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287
Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma
parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta
parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente
compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma
estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto
de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288
Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente
287
ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a
frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and
language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva
na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation
New York Cambridge 2014 288
ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of
lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J
Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies
vol3 2003 p 267
127
terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios
comunicacionais mais baacutesicos
Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma
questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as
nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja
constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se
deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei
atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos
com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de
sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica
emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas
vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de
normas fundado em emoccedilotildees
Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos
no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir
Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a
estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia
de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios
danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o
equiliacutebrio do meio-ambiente
Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em
discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser
evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008
diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos
pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a
visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental
Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava
embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos
argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os
ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos
constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente
ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo
em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as
128
presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-
se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de
atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo
Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que
o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam
perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao
medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as
consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um
dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-
prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a
longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289
No presente caso pode-se dizer que estava em
discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da
manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290
De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958
1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos
motivos a seguir desenvolvidos
Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens
puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante
ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)
e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da
Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera
homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que
destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de
dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial
Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o
uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional
bastante relevante
289
ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo
(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290
Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos
altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as
pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim
decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New
York Cambridge University Press 2005
129
Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos
emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos
motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo
Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco
alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira
problemaacutetica
No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do
Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a
referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser
observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo
Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo
de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido
Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes
nacionaisrdquo
Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como
esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por
expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo
Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo
estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva
a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas
especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites
juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito
O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF
Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo
civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das
culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do
processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas
pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo
desaparecerem
Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo
ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos
participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um
pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art
130
215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
popularesrsquordquo
O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute
constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou
em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave
conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I
e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e
viverrdquo
Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os
bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF
estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de
Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm
3551 de 4 de agosto de 2000291
Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de
natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica
Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo
de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal
de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar
sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de
capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito
Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)
etc292
A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash
UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os
seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo
enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo
baiano293
291
Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural
brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292
Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan
Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293
Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-
brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015
131
De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente
desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma
autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico
A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees
para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e
1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos
juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do
atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na
argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes
Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a
apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o
orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade
extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294
Desse modo ao dizer que as
conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de
que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento
patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo
proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de
gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso
O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas
que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958
e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros
foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante
De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do
chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra
problemaacutetico
Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante
cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros
natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais
e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada
pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para
programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila
294
LAZARUS R Op cit 1991 p 273
132
global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a
desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295
Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em
relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento
eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute
objeto de tal emoccedilatildeo296
Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo
primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a
ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito
ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da
compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica
Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma
quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o
conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou
simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297
No
que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da
escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a
capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298
Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de
recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa
etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no
Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio
de circularidade cultural por parte do Estado
Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio
financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava
proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais
ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves
seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a
isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da
295
ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts
toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of
vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296
Id ibid p 51 297
Id ibid p 346 298
NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge
University Press 2001 p 434
133
simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente
passam por iguais problemas financeiros
Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da
estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a
desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque
deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-
legislador
Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos
demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre
uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa
humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da
vida etc
Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia
argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento
da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a
estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram
expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza
Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que
portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)
antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica
Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes
aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido
diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava
estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana
agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e
psiacutequica
Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras
questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os
votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se
dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica
que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas
juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia
Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF
analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo
134
juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute
possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam
determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no
discurso juriacutedico
No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma
problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de
tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa
decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura
racional do juiz
Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos
da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria
da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo
que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes
emotivos
De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute
irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso
dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das
consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do
problema
Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente
relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado
quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais
argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem
precisem ser enfrentadas
Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo
humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque
sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas
Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo
porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo
coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse
que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-
mundanos
135
Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria
eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece
bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a
parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem
os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem
disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a
classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude
moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos
propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados
Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no
direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de
Adam Smith
Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do
julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou
reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo
da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos
a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor
avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que
seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299
O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela
fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por
padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser
um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a
forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo
adequado para a accedilatildeordquo300
A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar
munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a
imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica
que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de
regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar
299
SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p
XVI 300
ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up
common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for
actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII
136
num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes
de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo
Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens
sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo
afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo
semelhante
[]
Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos
suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em
seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que
ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo
que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301
Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento
julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que
informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas
ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que
pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302
Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do
agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os
sentimentos do agente e com a sua conduta
Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de
imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a
sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos
alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-
Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para
produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e
desapegadordquo303
Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria
consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute
exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais
301
ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in
which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the
imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we
enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form
some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether
unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302
ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the
suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303
ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral
judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna
Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge
University Press 2009 p 67
137
nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a
emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte
da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304
Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da
capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute
louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a
questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos
uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as
nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria
sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305
Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez
que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito
desintegrador sobre a sociedade306
Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as
inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera
individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente
por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se
tornar extremamente fanaacuteticas307
Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith
percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da
utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios
projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a
304
ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in
our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging
In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305
ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own
opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo
(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France
PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o
pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo
plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por
um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que
eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas
estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law
and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da
argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER
Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes
inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-
set 2013 pp 347-390 306
SMITH A Op cit p 101 307
FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152
138
capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que
esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as
emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-
se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente
relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas
desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar
que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de
normatividade comum na sociedade
A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de
se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a
conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites
139
4 CONCLUSAtildeO
No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves
emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e
da escola estoica
Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham
oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do
debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra
extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir
daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo
ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela
obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica
Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco
explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das
emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica
ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas
um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II
para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie
Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento
platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o
mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim
de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre
agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade
identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da
psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto
que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca
a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas
De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem
confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude
completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-
racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio
do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado
pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as
implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da
140
accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso
constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas
uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos
a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico
da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no
discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer
que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio
De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de
pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a
felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto
(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto
eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola
estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem
possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que
satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma
vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu
caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o
homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees
do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia
A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por
isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos
romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos
possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de
discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico
de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado
Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos
que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que
ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes
de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar
sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente
sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto
Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo
141
negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente
atual para a reflexatildeo do assunto
No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin
e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e
de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o
desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a
Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi
tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital
para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA
Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto
histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e
dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais
movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar
as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar
um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia
Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse
em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada
ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em
relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o
direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees
A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das
falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de
loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela
retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que
pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta
argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que
medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo
Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias
ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo
que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em
compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense
alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos
podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a
142
fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento
para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em
que satildeo utilizados
Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por
Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o
problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse
modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece
trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees
demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem
ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de
manipulaccedilotildees emocionais
Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade
profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao
nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de
avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo
Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e
estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto
sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo
avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu
surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da
razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo
Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas
atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao
fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem
acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como
os seres humanos decidem e argumentam
O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a
importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise
descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer
consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do
direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para
ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A
apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso
143
ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de
indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de
danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o
direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante
Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo
ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de
1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo
orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico
Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para
realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento
Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de
discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo
emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado
Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual
estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo
de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa
procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios
miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico
Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith
seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na
decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e
para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de
outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um
ambiente de normatividade comum na sociedade
Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o
julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em
evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um
discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas
Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees
natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no
estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e
do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais
e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente
com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a
144
forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e
argumentamos na praacutetica
De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as
emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao
tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes
criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu
peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a
emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo
precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de
avaliaccedilatildeo
Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das
emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo
juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio
145
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Dissertaccedilatildeo apresentada como requisito
parcial agrave obtenccedilatildeo do grau de mestre no
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasiacutelia aacuterea
de concentraccedilatildeo ldquoDireito Estado e
Constituiccedilatildeordquo
Orientadora Prof Dra Claudia Rosane Roesler
Orientando Marcelo Fernandes Pires dos Santos
Brasiacutelia 2015
Marcelo Fernandes Pires dos Santos
Retoacuterica Teoria da Argumentaccedilatildeo e Pathos o problema das emoccedilotildees no discurso
juriacutedico
__________________________________________________
Professora Doutora Claudia Rosane Roesler
Orientadora
__________________________________________________
Professor Doutor Alexandre Veronese Aguiar
Examinador interno (UnB)
__________________________________________________
Professor Doutor Isaac Costa Reis
Examinador externo (UFSBA)
__________________________________________________
Professor Doutor Argemiro Cardoso Martins
Suplente (Unb)
Brasiacutelia 27 de maio de 2015
Para os meus pais
AGRADECIMENTOS
Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos
acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas
durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes
dois uacuteltimos anos Serei sempre grato
Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de
Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos
Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave
praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas
Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do
conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso
Martins
Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar
esta dissertaccedilatildeo
Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo
A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa
Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib
Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria
Emanuelle Pinheiro
Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio
Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade
(proveacuterbio antigo)
ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo
(Platatildeo Leis 775e)
7
Resumo
O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo
Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees
um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico
embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a
Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante
incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de
refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica
juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria
da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente
estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma
argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema
juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais
especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender
como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em
seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees
seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa
eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e
capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico
Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash
psicologia ndash linguiacutestica
8
Abstract
The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is
marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been
considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to
the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the
effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify
evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal
practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation
Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to
investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and
more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is
necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic
school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his
ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the
Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the
following generations It aims also search to understand the psychology of our time on
emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in
legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in
order to improve the quality of legal discourse
Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash
linguistic
9
Lista de abreviaturas e siglas
ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade
ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental
CF ndash Constituiccedilatildeo Federal
MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta
STF ndash Supremo Tribunal Federal
TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
10
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA 14
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE 57
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no
discurso 62
23 As emoccedilotildees falaciosas 68
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100
32 Anaacutelise 109
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125
4 CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145
11
INTRODUCcedilAtildeO
O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da
crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ
que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen
Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca
Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito
guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido
MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de
ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica
aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir
proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1
Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a
argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela
TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no
discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e
apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas
investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais
dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das
premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2
Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos
falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das
emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na
vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa
decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a
racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano
Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna
teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com
o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que
tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser
(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II
desta dissertaccedilatildeo
1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14
2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557
12
No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender
primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a
discussatildeo das emoccedilotildees
Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos
analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o
Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a
importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo
utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as
emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema
Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida
as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para
Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito
a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide
a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim
tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute
compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica
Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos
realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees
deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de
tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender
por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo
acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica
estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos
psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que
modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica
Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o
pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que
ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o
fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste
trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica
O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna
Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto
histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca
(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual
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disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA
(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as
emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais
especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar
acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo
tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso
juriacutedico
No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e
II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito
tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de
nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no
Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico
No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo
II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de
argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas
aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das
emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados
procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre
as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a
melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate
qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees
14
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees
O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da
origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de
qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje
possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que
preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um
discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto
eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees
Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista
trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao
mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente
atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem
encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma
significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou
a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica
do Presidente Obamardquo3
Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar
localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito
Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram
legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de
Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha
inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de
palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode
significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4
Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre
Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos
Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa
3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University
Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the
disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9
15
feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae
sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc
assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5
Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente
utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em
puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e
demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute
ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E
posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada
caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com
o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso
Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A
palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para
demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a
opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a
refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da
verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do
retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os
outros
Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade
do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na
tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase
uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim
relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a
ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC
associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca
5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the
Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate
in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela
primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore
The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90
7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a
whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey
Princeton University Press 1994 p 11
16
pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica
entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9
Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados
pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o
poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza
incutir a compaixatildeo e o prazer10
Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida
puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas
proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11
Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica
a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir
quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a
origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que
supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade
Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a
fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a
mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e
tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime
ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a
organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala
em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e
de outras mateacuterias12
A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto
pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual
(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu
perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o
referencial teoacuterico sobre o assunto13
Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa
anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias
9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11
10 KENNEDY G Op cit p 25
11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in
honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard
Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12
CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p
49 13
GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in
WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p
30
17
tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual
apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14
Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte
retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das
fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para
Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax
realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15
Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para
assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso
eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente
valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo
da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter
melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos
entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade
Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela
restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a
organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de
retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores
jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade
Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e
Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de
Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico
governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia
de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero
O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria
uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte
cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como
ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo
com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16
Assim os personagens de Homero na Iliacuteada
14
CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press
1949 (II 6) p 171 15
COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16
ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker
situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4
18
apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a
retoacuterica em teoria
No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-
Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com
a retoacuterica
Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso
poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de
maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua
proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em
grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua
dicccedilatildeo17
Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas
do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador
demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a
gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador
Quando urdiam discursos e expunham ideias
Menelau era fluente e claro mas conciso
natildeo sendo um homem multipalavroso nem
dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo
Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se
de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo
mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem
para diante o inclinava) parecia um ruacutestico
algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila
Mas quando a voz do peito emitia poderosa
palavras como copos-de-neve no inverno
ningueacutem nenhum mortal o igualaria18
Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a
fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis
toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura
literaacuteria de Homero19
Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a
Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos
17
ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi
rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established
his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same
power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18
HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19
ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates
a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be
categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system
explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84
19
retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca
que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a
justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a
qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e
que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade
literaacuteria de outras obras antigas20
Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada
pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da
competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na
Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras
poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga
funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado
atraveacutes do discurso persuasivordquo 21
Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo
da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do
debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste
ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na
filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico
No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante
era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute
por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que
apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a
compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos
Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar
mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo
grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo
paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do
20
KNUDSEN R Op cit p 101 21
ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and
much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned
as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive
speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101
20
fenocircmeno emotivo22
Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza
o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo
de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas
Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute
chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo
de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado
Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo
qualidades23
Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados
em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em
funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo
modo24
Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido
por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio
sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de
ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25
De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute
algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na
Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito
disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas
vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp
natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas
de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26
Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar
que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica
Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas
agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que
22
RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ
Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de
Gruyter 2008 p 48 23
ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather
he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad
livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J
L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24
ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo
Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25
RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and
interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26
RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um
conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam
evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito
21
defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma
irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo
haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que
algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a
retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que
podem ser conhecidos pela razatildeordquo27
contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se
reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as
causas e os motivos do que faz
Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a
explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica
Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro
I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina
dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em
espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das
emoccedilotildees no campo da retoacuterica
Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de
uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em
instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto
de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou
natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que
satildeo os entimemas tais manuais nada tratam
O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que
ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de
retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria
terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de
outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a
palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir
do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental
(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato
Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como
um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo
27
ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by
reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York
Fordham University Press 1980 p 4
22
Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies
algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que
dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e
outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando
demostrar algo28
Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees
neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que
prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque
literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma
expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave
psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29
No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por
Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo
dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30
parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como
meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que
englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica
Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos
ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de
acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza
pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre
o assunto
Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica
inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado
do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas
aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar
em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo
muito pode ser comentado
Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas
para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I
Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados
argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute
deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria
28
ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29
KNUDSEN R Id ibid p 39 30
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13
23
necessaacuterio o uso de apelos emotivos31
Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu
criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos
(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32
A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo
do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma
forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem
durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre
emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma
visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o
ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada
haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que
resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33
Levando isso em
consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees
num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs
meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma
completa adaptaccedilatildeo do tema34
De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles
fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou
entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas
que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez
seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees
no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35
Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as
emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes
indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o
inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36
Ela no entanto registra que
em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o
discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees
31
FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to
greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32
Id ibid p 117 33
Id ibid p 118 34
Id ibid p 118 35
KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek
rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36
FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays
on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264
24
De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves
emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos
que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das
emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De
todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme
assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente
influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37
Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na
retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma
das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de
Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo
e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat
especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado
comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser
desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38
e Konstan chega a dizer que
curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas
obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica
Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre
emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em
um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo
(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre
retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de
Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia
ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as
emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de
oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo
filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)
Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome
verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte
de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou
especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39
37
HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL
Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38
COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)
Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39
ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not
ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for
example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side
there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different
passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in
other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The
Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if
that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on
25
Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II
Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no
ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de
fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto
com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de
julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa
determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios
de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento
(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial
O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes
eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte
maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma
os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza
ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo
culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40
Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees
vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar
afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de
algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir
uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem
utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser
humano
A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a
natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor
(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema
A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja
de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua
obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por
exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter
distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive
desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo
rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op
cit p 411 40
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84
26
preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das
suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio
natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia
perdida conforme se observa no seguinte trecho
SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos
comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a
desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor
PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel
SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a
natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se
devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais
difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41
Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns
aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo
beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia
de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita
submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo
bons e outros natildeo (51b)42
Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento
platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita
recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que
o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado
natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43
Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor
chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra
aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno
misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor
a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada
citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos
41
ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will
at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain
PROTARCHUS What you say is very plausible
SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we
have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the
shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER
John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p
419 42
FREDE D Op cit p 262 43
ARISTOTELES Op cit 2012 p 56
27
mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura
da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a
doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa
fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade
do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44
que eacute uma dor da alma (50a)45
Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees
opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha
benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no
referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum
momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra
ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem
emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem
fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi
moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia
Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo
dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que
eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles
encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um
mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males
passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)
A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de
bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na
possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu
turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece
fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um
ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor
diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos
provocam prazer (1370a)
Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a
benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas
envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em
44
A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio
alheio 45
PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440
28
mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no
empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46
De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs
aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que
geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou
o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem
saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no
seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental
Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um
mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera
pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de
fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda
sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou
acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo
que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do
medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o
medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta
categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com
instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que
provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes
quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de
injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em
relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande
penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente
relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos
temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num
intervalo temporal muito longiacutenquo
Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir
medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o
passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem
confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os
seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro
46
FREDE D Op cit p 271
29
lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo
grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como
certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio
estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir
confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as
pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo
Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de
compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)
continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os
ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma
teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de
experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um
determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva
Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de
representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras
gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo
mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia
eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da
palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade
A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem
percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois
problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos
ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o
semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se
identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar
de como as coisas satildeordquo47
Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade
especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes
da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis
Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa
emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48
(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam
47
ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL
M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell
Publishing 2006 p 334 48
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57
30
de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade
em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas
porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma
pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do
ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]
de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]
que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a
vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo
indiviacuteduo (1384a24)49
Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um
papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute
possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca
Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer
julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50
Assim em
conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo
mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um
estado emocional especiacutefico
Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a
evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo
elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar
quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro
da retoacuterica
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica
Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de
importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a
investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a
Nicocircmaco
49
GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University
Press 1988 p 26 50
ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen
aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche
anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56
31
Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que
seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima
tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido
uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana
Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no
Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da
espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as
pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51
(1095a17-19)
Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)
oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no
Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade
com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo
justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para
melhor compreender a mateacuteria em exame
Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo
(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte
natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e
por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser
humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja
natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta
uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de
parte apetitiva ou desiderativa
Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais
apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu
sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute
capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte
irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa
permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional
mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp
Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo
(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido
estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer
ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da
51
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40
32
alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma
que possui razatildeo em si mesma52
Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma
parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de
excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento
das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente
desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste
capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das
partes53
E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes
intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes
ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas
agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder
ouvir e obedecer agrave razatildeo
Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto
Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se
referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural
(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por
excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a
felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que
exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado
(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos
justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54
Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral
(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional
da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo
ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)
Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o
Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar
tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela
52
RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a
eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53
PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos
nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54
RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78
33
instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara
divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por
meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute
suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio
conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna
virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso
realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou
justo
Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza
(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas
como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo
permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis
(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a
regressotildees55
Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios
atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica
(1105a30-35)
Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que
desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da
alma
No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico
relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo
ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo
ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56
No Capiacutetulo
II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo
fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que
natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio
Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de
incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na
posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a
55
WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2013 p 69-70 56
ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68
34
sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados
devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57
Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e
o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute
afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa
condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa
com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa
posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir
devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem
natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir
de modo adequado as emoccedilotildees58
Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de
como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles
apresenta a doutrina do meio termo
Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior
ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores
menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a
noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia
Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois
extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos
pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute
excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute
exatamente o mesmo para todos os seres humanos59
Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no
distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto
mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso
quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de
sentir a emoccedilatildeo
Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina
tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os
casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido
compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam
57
Id ibid p 74 58
KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY
Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press
1980 p 104-105 59
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76
35
moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas
equidistantes dos dois extremos60
Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no
campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-
casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular
enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em
geralrdquo61
Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas
cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes
Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar
conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo
adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves
pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do
aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave
experiecircncia concreta
Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de
modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma
resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida
conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma
adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por
deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com
raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira
equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62
Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira
algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se
delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a
razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente
de acordo com as circunstacircncias
Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo
muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia
e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis
60
RAPP C 2010 p 416 61
Id ibid p 419 62
RAPP COp cit 2008 p 66
36
porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como
senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc
Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel
senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente
vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute
extensiacutevel
Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a
inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma
que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja
da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo
ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto
comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia
entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela
observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada
pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo
ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena
(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute
experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis
despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem
Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas
no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos
conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39
1388a30-37 983a1-5)
Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas
fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido
este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63
Eacute bem verdade que mochteria
tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida
obra aristoteacutelica64
mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das
mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65
63
LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics
a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64
ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65
Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term
used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from
morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non
moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used
37
Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu
eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na
conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo
relacionada ao cometimento de injusticcedilas
Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em
comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as
emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa
ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura
conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura
simplesmente por serem sentidasrdquo66
Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois
grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de
acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele
primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees
adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo
grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67
Desse modo de
acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do
indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz
Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo
O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a
vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma
racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos
perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou
brutas contra outras pessoas
Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso
de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional
porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral
permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas
synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES
Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago
University Press 2011 p 307 66
ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve
praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame
simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67
LEIGHTON SId ibid p 226
38
incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir
ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma
injusticcedila68
Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar
adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo
talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a
conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as
emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)
natildeo estaacute condizente com tal abordagem69
De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute
extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte
Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na
poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70
Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas
emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o
puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do
personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que
porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida
comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce
outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por
sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71
Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua
adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton
oferece duas respostas
Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do
haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que
Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa
pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja
68
STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his
moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos
Angeles California University Press 1996 p 298 69
RAPP COp cit 2008 p 66 70
LEIGHTON S Op cit p 226 71
Id ibid p 227
39
destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira
hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72
Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas
circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica
e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73
Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa
circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute
inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro
Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um
especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em
competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua
respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam
completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo
subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74
Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma
psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios
de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute
inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita
que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia
de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por
tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a
diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo
compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75
De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em
relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo
com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A
inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica
etc)
Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em
nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas
72
Id ibid p 230 73
ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their
placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74
Id ibid p 231-232 75
Id ibid p 231
40
jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue
explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes
entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave
natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara
para utilizar a inveja na retoacutericardquo76
Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico
anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o
problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica
Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no
Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por
isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica
difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo
Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em
relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema
enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as
emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo
em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos
reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar
preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas
Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia
Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica
aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as
emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o
indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum
embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente
isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade
adequada agrave situaccedilatildeo experenciada
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica
Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica
aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave
76
ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but
remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235
41
obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo
pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de
percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica
estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262
aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do
estoicismo
Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange
cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras
inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola
se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio
de comentaacuterios de seus adversaacuterios77
Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante
pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na
verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que
incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam
fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da
loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute
incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como
filoacutesofordquo78
Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar
que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que
a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial
periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por
Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que
coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide
com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco
Aureacutelio79
A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento
do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios
77
TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas
heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78
ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN
Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school
from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics
Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers
trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79
SEDLEY D Op cit p 7
42
(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes
disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo
tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais
reflexos sobre a retoacuterica estoica
Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o
impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute
difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema
a que ele compara a um edifiacutecio
Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais
finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela
tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada
Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior
desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema
em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe
faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80
Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar
primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio
que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto
estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza
reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus
opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas
vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada
corretamenterdquo81
Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado
como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo
considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz
Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar
porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e
outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em
conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da
possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e
80
ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured
product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows
from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal
of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo
(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University
Press 2004(III74) p 88 81
BRENNAN T Op cit p 120
43
natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez
dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do
que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos
indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa
forma satildeo menos preferiacuteveis
Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua
incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave
contingecircncia82
Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio
quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque
podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal
possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o
instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver
Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento
pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte
entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve
alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)
Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza
nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em
tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O
verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83
Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e
infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um
estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro
objeto externo84
Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a
aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude
como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela
razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo
imutaacutevel[]rdquo85
A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a
82
Id ibid p 122 83
ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part
of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of
dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor
wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful
Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion
ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84
LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987
p 377 85
ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-
faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable
44
essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a
razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86
Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui
todas as virtudes87
Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo
eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo
praticadas de acordo com todas elas88
Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza
que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza
significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas
permeia a reta razatildeo89
A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres
humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90
Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio
O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo
correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra
a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho
ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma
faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma
conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo
apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91
Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas
atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica
especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso
Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder
aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto
desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com
reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 378 86
Id ibid p 383 87
STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 379 88
PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 379 89
LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p
395 90
SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 395 91
ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with
nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in
his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 398
45
os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do
termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92
sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93
quando atraveacutes da
visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma
modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um
ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e
passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela
num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo
agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o
mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94
Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz
respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei
uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo
verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este
respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso
Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da
epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela
garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende
precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto
Empiacuterico
A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute
marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo
que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os
estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os
objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de
forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes
fatores como atributo95
92
PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 238 93
AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 237 94
ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying
lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo
(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95
ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in
accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold
that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a
craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against
the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 243
46
Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que
natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte
ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu
objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto
impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir
do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo
precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta
impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96
E isso
soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de
razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para
realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97
Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees
eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por
meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco
reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que
para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um
assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas
condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98
Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo
apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99
Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu
conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo
caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100
Uma
das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as
pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo
temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso
possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101
96
ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this
impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit
p 68 97
LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98
BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99
CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 254 100
STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophershellip p 256 101
BRENNAN T Op cit p 72-73
47
Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e
pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes
que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente
um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um
assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102
Quando vejo um ramalhete de flores
amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar
no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para
realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua
vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de
opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e
especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem
tanto um quanto o outrordquo103
Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar
compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as
emoccedilotildees (apatheia)
Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os
estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo
varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para
a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de
passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da
portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador
muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao
reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e
estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os
problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar
a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de
doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo
utiliza o termo104
Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo
afecccedilatildeo105
Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com
102
GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103
ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while
the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104
TIELEMAN T Op cit p 15-16 105
BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In
LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein
BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93
48
Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o
termo pathos106
Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente
sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de
harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo
Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute
excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute
irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107
Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair
primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso
qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve
Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute
contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra
o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica
porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as
emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos
comandos do logos
Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender
esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto
anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte
natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e
obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude
(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na
eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas
de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente
afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente
para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz
Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na
filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma
estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se
entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos
estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os
106
GRAVER M Op cit p 14-15 107
ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of
reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS
2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 410
49
homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108
Dessa forma as
emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos
fundadores estoicos
Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se
acomodam emoccedilotildees especiacuteficas
Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que
devemos persegui-la
Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que
devemos evitaacute-la
Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que
devemos ficar contentes com isso
Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que
devemos ficar abatidos com isso109
Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio
temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo
direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo
que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um
objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor
negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um
assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo
Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes
emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No
gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico
No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo
anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110
Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos
(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao
falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim
quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios
108
ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the
sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109
ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it
Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the
opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the
opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad
livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110
CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago
Press 2002 (416) p 45
50
de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por
que isso ocorre
Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111
e por assim serem
atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza
amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em
direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda
eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No
medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na
verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente
atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam
sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante
possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112
Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de
perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme
resume Crisipo
A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que
satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]
estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a
atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos
empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113
Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico
porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as
caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi
construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)
que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que
Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso
tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia
alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as
propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional
111
LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112
BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113
ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way
of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out
reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad
livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the
ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press
2001 p 370
51
com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de
bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)
Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal
futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de
que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo
experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que
alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114
Quanto agraves emoccedilotildees em
espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave
cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por
fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave
dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum
eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica
coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente
que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome
da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um
sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de
indiferentes
Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde
que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se
arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo
ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a
alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento
involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e
por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do
homem inferior
Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o
saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e
passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)
parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a
retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de
maneira bastante marcante da praacutetica do orador
114
BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op
cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221
52
Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de
uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de
controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das
emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua
vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na
construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida
comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de
acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo
da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute
instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas
No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de
Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio
aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi
preservado115
Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo
ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas
bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116
Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos
como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de
falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a
parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o
saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite
diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de
modo a nunca cair em truques argumentativos117
Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a
dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados
uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo
aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a
retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos
115
LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116
ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38
1988 p 393 117
LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48
53
filoacutesofos118
Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a
uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119
E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os
cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos
algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo
apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer
finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e
outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para
bem falar no sentido de falar corretamente
Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro
problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse
sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo
muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons
arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se
o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120
Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na
verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo
que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na
assembleia popular121
Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco
virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro
gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada
de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do
que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo
de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122
Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta
num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem
118
CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119
CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University
Press 1942 (III 65) p66 120
ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule
and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to
oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit
1962 (118) p 107 121
CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122
LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396
54
aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um
oradorrdquo123
Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva
para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a
retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador
tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos
excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos
destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico
natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua
ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124
Eacute certo que o saacutebio
experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso
no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo
Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil
encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por
retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave
persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo
existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa
usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu
respeitordquo125
Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de
Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126
Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha
o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto
de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se
guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato
Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era
Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom
para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com
123
ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo
(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard
University Press 1942 (159) p 313 124
ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or
by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411
Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125
ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)
because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p
426 126
CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91
55
os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria
como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste
seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia
ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127
Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica
finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas
fontes da Antiguidade
De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua
eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte
articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois
campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade
da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No
Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua
funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que
significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias
Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois
para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade
strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees
adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas
realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito
menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador
De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido
de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos
seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128
e atingir uma felicidade
autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por
meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a
que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo
percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico
invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque
estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica
127
CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128
ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the
world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210
56
natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e
coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico
Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico
exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram
levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar
das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo
loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as
emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema
filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel
sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129
129
SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149
57
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo
No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um
panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar
que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de
uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi
neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se
refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de
que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado
emocional do sujeito
Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva
investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash
MTA130
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de
Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do
Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a
relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de
julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III
momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees
do Supremo Tribunal Federal - STF
Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma
contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento
humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus
problemas de eacutepoca
Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso
caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica
sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha
agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o
seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos
130
Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da
Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof
WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation
Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30
58
seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por
ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de
reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo
Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que
natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma
especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato
com a massa a propaganda
Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma
informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo
desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de
descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande
nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a
propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da
modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e
de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados
meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131
Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo
absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a
integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de
sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um
ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos
compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados
comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo
conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo
e relaxamento evitando o cansaccedilo132
Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra
e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre
a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis
Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma
abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da
Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa
eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo
nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por
131
KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave
Macmillan 2005 p 1 132
Id ibid p 2
59
estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar
a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era
particularmente destacada133
Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato
efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias
disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez
que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance
limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar
uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134
Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de
irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia
espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da
propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e
de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo
eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda
mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios
simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135
Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos
sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos
grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das
emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais
atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136
Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda
discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles
enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves
emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo
valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille
133
ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo
emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation
for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for
methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and
mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134
ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner
New York Vintage Book 1973 p 9 135
Id ibid p 201-206 136
ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through
emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204
60
und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a
instruir os seus propagandistas
No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar
a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A
propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e
para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista
Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos
membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias
Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante
da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos
objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil
sem efeito
[]
A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa
natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na
transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de
que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa
transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova
maneira nacional de pensar137
Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)
Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no
intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda
possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir
convincentemente as massas
Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno
acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na
medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto
O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas
emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente
ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se
deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus
objetivos138
137
ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the
foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect
[hellip]
National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks
of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a
new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after
an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und
Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138
ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular
importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as
the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not
coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of
propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In
61
Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937
direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a
melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes
alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam
apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de
argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos
talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo
quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de
mundordquo139
Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem
novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles
ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior
das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido
Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do
coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso
pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do
partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O
convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional
O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional
socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de
seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele
compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele
explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem
Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo
alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os
partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas
pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as
sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140
Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-
propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139
ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and
utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart
or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249
Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de
janeiro de 2015 140
ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the
understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he
understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more
receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people
by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won
by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to
62
Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico
com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor
candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos
totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso
Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa
violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes
totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos
sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma
ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141
Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um
repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim
de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o
surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as
emoccedilotildees no discurso
Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e
avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a
investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca
A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo
tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da
argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica
em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma
abordagem teoacuterica proacutepria
Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das
emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque
natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a
primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem
call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141
PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo
Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142
Id ibid p 21
63
temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que
Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA
Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA
satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente
influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143
Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute
realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da
Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144
Assim enquanto o esquema argumentativo
de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse
modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados
tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees
Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o
pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da
MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e
justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico
Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia
que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do
trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo
entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade
(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua
inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos
oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme
expotildee Roesler
A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de
Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a
sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de
ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada
para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar
caracteriacutesticas fundamentais145
Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um
termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o
143
RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144
ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on
something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145
ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade
Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23
64
qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude
questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e
supostamente emprestaacutevel ao direito146
Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber
juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se
funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo
germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que
enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se
apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir
agrave discussatildeo dos problemasrdquo147
A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se
orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de
problemas se revela mais adequada ao direito
Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode
afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade
de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual
o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos
pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas
confere-lhe a estrutura fundamental148
Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e
demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da
retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a
argumentaccedilatildeo juriacutedica149
Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor
natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro
lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da
relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150
146
ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica
Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da
UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147
VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos
juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008
p 39 148
ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149
Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo
Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm
10 2015 p 26-48 150
A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes
de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do
direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo
Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf
65
De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin
realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da
argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira
como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151
Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com
o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da
loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152
Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma
conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute
uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia
(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo
argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por
vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)
que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a
conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar
sua autoridade geral
Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que
este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute
possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As
noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a
um esquema comunicativo153
E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da
dialeacutetica do que da retoacuterica
Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica
eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a
Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao
racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo
de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da
a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise
retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151
TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes
2006 p 2 152
BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria
Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153
MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat
parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73
66
retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do
raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154
Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando
expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai
atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto
escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da
retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de
ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155
Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave
noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional
da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma
argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma
argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao
argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo
das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta
independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156
Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da
retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa
pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)
referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias
Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as
emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo
elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos
ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este
uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar
sinceridade157
Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como
perturbadoras da accedilatildeo158
o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma
compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo
154
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica
trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155
Id ibid p 7 156
Id ibid p 35 157
PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du
discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158
Id ibid p 49
67
podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a
ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159
Em outra parte da obra
anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem
apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu
discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar
suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160
Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do
seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na
argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta
uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo
nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser
confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que
habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como
valorrdquo161
A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa
das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica
antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se
trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto
espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo
da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece
estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar
Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima
estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em
que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um
interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam
vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua
obra162
Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor
num campo de reflexatildeo sobre o logos
159
PERELMAN C Op cit p 518 160
PERELMAN C Op cit p 27 161
PERELMAN COp cit p 539 162
PERELMAN C Op cit p 5
68
23 As emoccedilotildees falaciosas
Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo
acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico
a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees
As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo
Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente
relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da
argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um
teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163
Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer
criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse
modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso
passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras
palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na
argumentaccedilatildeo164
Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo
ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165
Falaacutecia portanto deriva do termo
em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que
significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a
ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um
truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166
Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua
Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um
argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente
uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto
163
ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the
scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart
MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the
pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164
EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p
25 165
HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166
WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State
University Press 1992 p 17
69
diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a
conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167
Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de
criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou
ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem
aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual
estado de arte da argumentaccedilatildeo168
Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que
particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo
Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento
Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica
para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu
pensamento
Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso
tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os
homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso
para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-
los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo
O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes
aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um
nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo
de autoridade
[]
Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam
Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente
utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos
assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o
adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que
designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam
Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias
extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute
conhecido sob o nome de argumentum ad hominem
O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento
e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um
dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de
argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a
verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o
conhecimento169
167
RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168
Id ibid p 27 169
ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments
that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to
awe them as to silence their opposition
The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause
has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority
70
Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam
ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter
ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento
exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um
modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras
de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer
comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs
Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad
hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era
conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca
que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho
das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees
contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad
hominem solvunt []rdquo170
Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad
verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo
chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias
Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao
argumentum ad rem171
Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute
possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao
alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad
hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras
fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad
rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad
judicium
Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their
judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a
proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam
A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is
already known under the name of argumentum ad hominem
he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from
any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all
the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE
John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170
ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)
HAMBLIN C Op cit p 161-162 171
WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80
71
Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser
substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo
denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa
apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave
modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves
caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias
objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das
pessoas172
Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas
ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo
Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila
que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito
de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo
de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute
considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias
sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173
Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo
o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as
falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal
contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas
a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard
da disciplina174
Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma
abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso
trabalho destacamos as seguintes falaacutecias
(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam
(ii) apelo ao medo argumentum ad metum
(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium
(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam
(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam
172
WALTON D Op cit p 4-9 173
ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic
of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same
old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174
EEMEREN F Op cit 2009 p 12
72
(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam
(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones
Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad
ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave
supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por
repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo
ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175
Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I
agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe
faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad
passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo
loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos
Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua
verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo
usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento
para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a
nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees
[]
6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum
toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes
para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute
chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176
Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem
podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido
de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no
sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do
discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento
parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees
eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para
distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso
175
HAMBLIN C Op cit p 41 176
ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from
the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our
Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an
argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the
hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones
an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry
after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242
73
Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o
que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do
discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo
consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos
negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na
linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas
conexotildees entre essas coisas
Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das
emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da
argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como
um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da
teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las
como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus
atoresrdquo177
O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a
argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178
Assim pathos parece
retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de
patoloacutegico de sofrimento
Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na
classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma
grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu
constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente
vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de
sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica
ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito
pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179
Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia
das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard
da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em
que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias
177
ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions
mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord
expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178
Id ibid p 63 179
ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et
finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66
74
Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo
consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para
elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees
restou significativamente empobrecido
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso
Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das
falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi
preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas
Walton
Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das
falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no
Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo
canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do
domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e
aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a
discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso
das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos
expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense
Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo
apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio
Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora
do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se
sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da
argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada
inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180
Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque
decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas
A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as
180
ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory
inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69
75
emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em
sociedade181
Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em
que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se
cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por
exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma
alegaccedilatildeo182
De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por
entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha
cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183
Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais
argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca
relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus
participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para
bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem
uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo
sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha
adequadamente o ocircnus da prova184
Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente
quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a
irrelevacircncia do argumentordquo185
Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu
estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da
argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos
corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186
o autor propotildee o estudo de quatro
ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de
aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum
ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad
hominem
181
Id ibid p 69 182
Id ibid p 68 183
Id ibid p 1 184
Id ibid p 1-2 e 28 185
ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an
argumentrdquo Id ibid p 2 186
Id ibid p 28
76
Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de
estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo
agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute
preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria
em comentaacuterio
Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute
estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo
Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia
alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187
Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim
comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo
em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma
coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado
idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188
e que se mostra um recurso uacutetil para que o
diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim
Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se
(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como
premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida
(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189
(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma
particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia
suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190
(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em
cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em
outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do
investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda
que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste
187
ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a
collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188
ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id
ibid p 20 189
WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon
University of Toronto Press 1998 p 37-40 190
ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is
insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70
77
em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos
tipos de bens ou outros itens de valor191
e
(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte
reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si
mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo
cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um
confronto fiacutesico192
Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita
compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)
um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo
criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os
argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo
persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e
contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos
de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser
legiacutetimas193
Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a
noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do
discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim
mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as
premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um
modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir
que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194
Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo
do apelo agrave compaixatildeo
Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a
abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a
sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195
191
Id ibid p 100 192
WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193
Id ibid p 23-24 194
ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even
if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular
premisesrdquo Id ibid p 57 195
Id ibid p 106
78
Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende
muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por
exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas
facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser
excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196
Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do
Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou
fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr
Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo
considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que
Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e
mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo
canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do
Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado
de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o
deputado197
Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de
enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico
Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto
vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso
questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto
realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte
de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198
Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em
relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da
tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso
atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim
considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns
196
Id ibid p 106-107 197
ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his
advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad
livre) Id ibid p 111 198
Id ibid p 111
79
destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute
adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado
Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar
amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o
entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose
perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra
provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de
condescendecircnciardquo199
Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave
simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa
Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-
se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos
bem como restringir a sua publicidade
Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei
o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre
todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes
relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes
que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que
rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos
ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo
familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco
dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200
Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo
eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser
um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de
doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores
de tabaco
Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para
argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do
projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento
utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como
199
ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo
for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200
ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What
about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the
legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124
80
um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais
negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo
causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio
de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute
Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso
visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema
unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo
Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para
avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo
(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo
(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute
aberto a questionamento criacutetico
(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa
investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma
proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e
(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os
fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201
Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste
em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o
seguinte checklist com sete fatores
(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute
adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo
(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no
caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute
apenas algo secundaacuterio
(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio
reagir energeticamente
(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo
secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso
(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de
argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados
201
Id ibid p 140
81
(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam
quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo
com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e
(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo
de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do
caso202
De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton
diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso
defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode
interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203
Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo
uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus
efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus
destinataacuterios204
Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a
credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar
prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se
trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas
hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da
pessoa205
Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a
considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de
modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de
conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206
O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra
pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta
verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que
acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo
eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e
202
Id ibid p 141-142 203
Id ibid p 193 204
Id ibid p p 259-260 205
Id ibid p 195-196 206
Id ibid p 193-194
82
o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207
Neste caso o
uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo
criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208
Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral
ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir
contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente
presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os
estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para
classificaacute-lo como falaacuteciardquo209
Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo
de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de
relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o
contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela
qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a
adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa
negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210
Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os
comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio
Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a
respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute
possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum
espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211
Neste
uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de
pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212
De outra parte eacute possiacutevel pensar
que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em
assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213
207
ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic
dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo
verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208
Id ibid p 216 209
ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to
force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid
p 78 210
Id ibid p 159 211
Id ibid p 67 212
Id ibid p 2 213
Id ibid p 67
83
Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na
filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre
tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute
proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica
aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que
compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas
adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento
certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as
emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias
Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na
argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas
Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou
inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo
para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem
empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo
Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e
estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e
deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como
se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer
circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que
merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o
argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida
adequada agrave situaccedilatildeo214
Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e
principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um
exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em
assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais
tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques
pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da
argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215
214
Id ibid p 68 215
ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human
reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64
84
Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na
argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver
complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo
emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns
aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que
natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso
De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton
fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees
importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De
que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no
objetivo do proacuteximo toacutepico
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees
Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica
recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre
tenha sido assim
Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec
XX foi miacutenima216
Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em
1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva
sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia
secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo
categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que
partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo
parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217
Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo
XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar
informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos
estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto
216
ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe
siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique
(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217
ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad
livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace
and Company 1921 p 40
85
aquela de descrever eventosrdquo218
Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos
entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores
concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute
que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas
tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica
Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a
funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela
entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por
inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute
variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219
Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado
nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso
Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a
ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um
dos representantes de tal escola
Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma
teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar
nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo
com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance
Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos
dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma
vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens
descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira
mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem
melhores insights prescritivos
Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao
exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu
trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir
o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso
apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo
218
ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor
SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-
26 p9 219
ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective
functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system
Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad
livre) Id ibid p 22
86
teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em
comentaacuterio220
Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees
efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de
especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura
suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio
do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver
discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo
da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente
sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221
Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada
por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada
Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio
se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes
problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das
caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo
(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma
emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)
natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222
Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma
emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo
algum animal etc) 223
Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute
que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto
pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo
predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que
designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224
220
MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques
Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221
ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion
effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id
ibid p 118 222
Id ibid p 43 223
Id ibid p 43 224
ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee
ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46
87
Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que
dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias
lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)
um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar
diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)
complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de
facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo
ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos
explodissem de raivardquo)225
Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente
observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua
interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a
presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas
que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma
interpretaccedilatildeo indicialrdquo226
Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo
emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma
entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de
indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a
presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do
primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face
da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute
causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227
Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de
processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios
tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados
e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228
Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes
para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam
ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender
225
Id ibid p 49-51 226
ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves
heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227
Id ibid p 64 228
Id ibid p 66-67
88
de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por
exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a
exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que
por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo
(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma
relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as
emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229
Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo
suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um
especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os
tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso
espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo
Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na
psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com
mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a
avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada
agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar
uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais
Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o
contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a
realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia
de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230
Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da
anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos
numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do
discursordquo231
Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O
esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e
assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)
229
Id ibid p 75-95 230
Id ibid p 106-112 231
ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de
sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112
89
criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia
cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin
(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso
como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas
(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no
tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos
ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo
(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso
descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute
enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento
(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa
para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou
na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de
um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a
um agente
(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo
emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade
de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua
controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria
(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com
outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo
Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da
aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de
demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um
homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada
parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa
situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto
(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute
compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo
a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da
incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional
familiar amigos etc)232
232
Id ibid p 115-119
90
Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente
designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e
suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo
inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim
de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma
esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere
a sua presenccedila233
Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num
mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma
emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione
Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso
registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que
vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo
atualmente existente entre logos e pathos
Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e
emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter
emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo
oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que
caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute
racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234
Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo
das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees
foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a
disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que
tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo
temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees
como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser
suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo
233
Id ibid p 119-120 234
ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo
practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo
(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In
WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins
Publishing Company 2004 265-276 p 274
91
No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute
impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem
assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um
evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento
Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees
racionaisrdquo235
Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo
vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo
registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado
aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias
adrdquo
Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser
argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de
construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra
uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)
esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236
Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da
pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre
abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir
uma determinada emoccedilatildeo
Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-
abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de
consequecircncia
Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico
satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o
sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo
do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as
disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237
Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um
235
ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional
attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational
manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236
ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why
they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)
MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal
2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237
ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et
affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248
92
estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um
ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238
Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas
alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais
atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de
delinquentes
Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as
consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o
sentimento de medo no discurso
Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo
tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente
melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de
uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto
eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria
normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees
Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a
respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos
grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento
antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos
do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava
significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica
produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto
Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees
justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica
Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do
fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa
passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas
por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram
algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um
pouco diminuir
238
Id ibid p 248-249
93
Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca
acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos
principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia
cognitiva
Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da
Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees
para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por
parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na
eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a
personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a
psicopatologia239
Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum
destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para
explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas
muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por
influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada
uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas
estatildeo atuantes240
Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de
interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241
Assim em
resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e
uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as
consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242
O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de
Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do
paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da
emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma
determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das
239
LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991
p 4-5 240
Id ibid p 5 241
SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela
JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York
Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242
ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it
in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo
(trad livre) LAZARUS op cit p 5
94
emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No
Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca
Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes
argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva
de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo
indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243
Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre
as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de
avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado
de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito
Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este
posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de
Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta
surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute
tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro
verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244
Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na
psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra
de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as
emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees
na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo
emotivo pudesse ser novamente abordado245
O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos
estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma
preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita
compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo
com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a
243
ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in
emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and
by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James
R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings
and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244
ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well
have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of
appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)
Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001
369-391 p 384 245
LAZARUS R Op cit p 14
95
estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva
tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos
da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a
estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda
mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)
derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos
originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores
para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees
Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais
detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa
investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer
Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo
iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a
nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos
factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando
alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os
avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha
alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente
significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246
Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do
processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por
exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)
podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou
entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para
resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do
silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de
problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim
pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma
reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir
interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas
por outras melhores247
246
LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions
New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247
Id ibid p 152-161
96
Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente
passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na
forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo
do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um
julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as
nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248
Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias
escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e
automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e
proposicional249
Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes
componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional
situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a
alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)
componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo
expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)
componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo
e sobre o nosso controle comportamental250
Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave
verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em
emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que
tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao
tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo
Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o
controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo
iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a
racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente
destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional
por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o
248
ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in
an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and
benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249
SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science
Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250
SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social
Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335
97
posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a
capacidade de ouvir a razatildeo
Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro
momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma
avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo
sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo
depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio
em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251
Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees
porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode
soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo
podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma
pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta
resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades
do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo
Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo
emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a
emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a
emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a
razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua
ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a
loucurardquo252
As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na
adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo
Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs
emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista
natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a
objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada
dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam
as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo
Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam
num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de
251
LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252
ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p
203
98
conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)
rejeiccedilatildeo253
Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila
de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes
e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social
contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a
melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes
Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento
como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero
de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja
muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma
poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos
da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra
imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento
econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de
risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido
em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam
Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que
teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e
conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute
atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para
solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no
mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave
situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de
racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a
tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia
o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos
filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos
superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o
desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido
controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio
comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo
253
Id ibid p 208-213
99
para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos
sociais254
Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que
leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo
dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da
argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber
psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais
254
ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation
in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed
organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus
optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)
SCHERER K Op cit 2011 p 331
100
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito
Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na
Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o
objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees
judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA
observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na
disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim
analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o
posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a
respeito deste assunto
Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das
emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais
baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a
sua relevacircncia
Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do
proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas
consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante
de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos
bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem
iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito
poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema
porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e
satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio
maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos
humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede
indenizaccedilatildeo moral e tantos outros
Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira
plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente
suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com
descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor
101
apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser
paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial
O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu
sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum
nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos
emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a
impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no
sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255
Eacute possiacutevel chamar a
tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-
emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate
teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute
virtualmente impensaacutevelrdquo256
A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo
do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de
danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que
algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em
consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a
racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em
consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257
Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste
em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade
isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas
possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres
invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum
prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258
E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela
vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves
mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa
255
ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad
livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford
Princeton University Press 2004 p 5 256
ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257
ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take
emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258
Id ibid p 6
102
reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave
vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de
difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente
termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas
aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos
Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo
poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum
mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo
deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles
natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam
nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a
uma profunda perda e depressatildeordquo259
Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia
Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica
coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a
felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens
materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por
exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a
sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria
na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude
Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute
eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos
quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a
detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos
assaltos etc)
Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem
experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute
bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a
compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se
dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos
filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que
259
ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything
outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and
depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6
103
pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de
nossas vidasrdquo260
Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma
abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos
Certamente natildeo
O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens
materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso
patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o
faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia
Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou
danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees
Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este
mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo
deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte
que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e
que forma elas tomam261
Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo
das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas
respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo
social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e
declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos
ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos
razotildees para estar zangado ou temerosordquo262
Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo
em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do
Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a
sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos
Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas
de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de
determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de
morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes
decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as
260
ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-
sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261
ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called
lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining
why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262
the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be
angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11
104
pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos
unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada
massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de
morte263
De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio
voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido
cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido
ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a
um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem
tempo suficiente para reflexatildeo264
No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa
atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo
Penal
Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face
de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser
argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente
admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos
concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer
tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265
Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da
psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees
passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo
resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas
emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa
esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente
irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as
compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer
raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo
embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas
263
Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no
significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances
of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the
possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It
treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as
members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of
deathrdquo Id ibid p 21 264
Id ibid p 37 265
ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any
attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56
105
ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266
ldquopodemos destacar quando a
emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto
separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267
No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de
observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees
satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel
avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em
determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida
puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees
adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute
aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese
Exemplificativamente a repugnacircncia268
eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na
vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute
relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza
por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina
os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo
suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo
asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis
contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar
provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina
diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens
organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc
Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia
invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem
constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado
e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa
repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em
primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas
condutas ilegaisrdquo269
266
Id ibid p 10-11 267
ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)
reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268
O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que
preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269
ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole
justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72
106
Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos
pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca
A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que
a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A
repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator
atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem
eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores
agravantes no fato delituoso270
Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das
pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as
novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da
repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento
juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado
por idecircntico motivo271
No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo
de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa
repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que
significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que
significa ldquofeder ter mau cheirordquo
Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os
seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para
isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de
repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos
impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute
preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de
repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272
Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para
elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de
contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do
decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa
animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais
270
Id ibid p 72 271
Id ibid p 72-73 272
Id ibid p 73
107
(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados
(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo
ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade
fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e
monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de
referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu
estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis
pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados
pela sujeira do corpo273
Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-
americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de
profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas
alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas
natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia
ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade
de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha
conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de
dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em
sociedade274
Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o
direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar
Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos
EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and
Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida
Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido
dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que
a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente
policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e
corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua
273
ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash
have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to
whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals
untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)
Id ibid p 108 274
Id ibid p 227-228
108
implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso
direito eacute estruturado e administradordquo275
Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz
fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo
possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney
Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de
que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de
leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de
emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica
O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera
demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees
juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila
em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas
conservadoras em geralrdquo276
Por outro lado exemplificativamente discute-se como o
medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo
mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus
companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da
legiacutetima defesa277
Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com
metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo
sistemaacutetica e coesa ao direito278
Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica
aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a
abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria
das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos
atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam
275
ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or
how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A
Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p
120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276
PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel
em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-
rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277
MARONEY T Op cit p 126 278
Id ibid p 126
109
os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria
influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279
Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees
participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que
uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo
da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de
criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado
32 Anaacutelise
Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees
parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo
procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados
pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo
presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos
Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas
sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta
por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo
dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise
iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso
objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso
Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo
selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma
determinada emoccedilatildeo
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo
Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ
2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a
constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional
O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais
das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio
279
ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how
emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the
assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131
110
de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor
da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre
outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225
da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio
A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a
ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida
resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim
Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio
A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos
direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns
arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o
enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da
mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar
sobre o ldquopneurdquo
A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura
cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca
que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias
negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de
consequecircncias negativasrdquo280
Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais
complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton
observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias
como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo
construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281
Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a
ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute
esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute
condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo
Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do
julgado
280
ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad
livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p
143 281
ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and
appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p
139
111
Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria
automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de
pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute
a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua
destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus
novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de
difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo
Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios
para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los
na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no
momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir
daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo
do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de
natureza ocupacionalrdquo
Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de
calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara
com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo
Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz
de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais
poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na
atmosfera
O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em
incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele
podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem
material poluente podem se apresentar com alto grau de
contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos
toacutexicos em especial dioxinas e furanos
Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o
consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na
formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas
o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que
produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases
toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em
contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o
fenocircmeno denominado chuva aacutecida
112
Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie
de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio
ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos
monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo
Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo
principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia
negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos
considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo
Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais
respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte
de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a
dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas
Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega
inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis
mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por
algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais
[]
Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os
riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a
dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a
presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo
descartados de forma a garantir a salubridade
A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos
pneus usados
A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana
sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em
especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de
criadouros de mosquitos
Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato
oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que
doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes
trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos
Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses
podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora
natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria
ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a
jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se
no risco de perda de vida de cidadatildeos
113
Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da
populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu
potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando
um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos
A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma
classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs
elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu
que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados
agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo
natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto
De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu
posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as
consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao
meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da
situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)
resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia
O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de
controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio
ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo
CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de
doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de
material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que
constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do
conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos
ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados
O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis
enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e
remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco
de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de
doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)
e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um
passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que
nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz
do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede
e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal
Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de
situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que
114
ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e
descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega
a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por
desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC
Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir
a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura
deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a
mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como
disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo
Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a
descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de
acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios
prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo
envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar
prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar
alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282
Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a
ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de
atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias
canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza
ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e
correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas
doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos
tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas
Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de
controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar
sentimentos de aliacutevio
Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou
ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma
dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de
argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo
282
Id ibid p 143
115
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo
Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos
Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da
antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos
juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que
regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados
como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da
liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da
CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e
Ricardo Lewandowski
Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso
Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio
expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo
Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a
avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja
responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe
uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa
um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283
Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como
a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no
discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado
especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto
Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos
anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento
autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute
imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa
No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo
(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente
danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao
feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao
283
Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166
A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar
tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo
116
caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida
ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo
No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente
culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima
(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e
geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia
(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem
totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo
avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena
de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo
A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de
sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal
procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam
provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e
especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o
feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo
[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de
outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum
acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica
[]
Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas
consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do
sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a
absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de
alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)
sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)
Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos
provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se
inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da
nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo
com uma exclamaccedilatildeo Confira-se
Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar
segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de
aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou
leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e
improdutivas do ponto de vista econocircmico e social
117
Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de
argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que
poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que
outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo
(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute
infligido sofrimento a outros seres inocentes
Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente
esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a
hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez
seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores
econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou
insustentaacutevel ter um filho
A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute
apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto
demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento
E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que
a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da
dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta
quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras
afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas
por questatildeo de grau
[]
Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das
incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos
diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de
malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o
aborto ainda em tais casos
Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a
praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em
nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas
anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute
merecedor desses sentimentos isto eacute o feto
[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto
sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do
sofrimento e da anguacutestia
[]
Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da
conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em
detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da
abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito
humano
118
Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes
as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade
estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana
autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que
era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante
Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo
sofrimento alheio284
Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma
avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo
modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal
situaccedilatildeo aflitiva285
Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo
entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e
as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do
feto
Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de
acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia
do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre
expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo
no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de
anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a
certeza do oacutebito
Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho
sofrimento a que se compara agrave tortura
O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma
espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do
miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave
tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa
ou dela exigido
Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado
diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias
Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de
emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do
diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo
demonstrada)
as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo
fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos
284
LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285
NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50
119
ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque
raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme
dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute
possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que
passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de
interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para
salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela
interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso
Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de
se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela
presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave
mulher
A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que
vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o
medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por
uma conduta que ela venha a adotar
[]
Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o
direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno
caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a
suplicar pela sua vida
[]
A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute
partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que
natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido
Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a
necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento
que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo
Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo
zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o
diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de
gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de
carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a
medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar
Mendes)
[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um
sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem
ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro
Luiz Fux)
O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber
enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute
desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura
120
Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo
cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir
qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui
embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima
[]
Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a
vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel
Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o
martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)
Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute
hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma
vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo
que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a
expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave
dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte
consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo
deste processo (ministro Celso de Mello)
[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura
fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se
institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera
crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra
Rosa Weber)
Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro
Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto
anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no
medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para
com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para
com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela
natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees
foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes
expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no
julgamento
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo
A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica
contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de
2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras
campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970
121
um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio
especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com
a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais
benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia
A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente
No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF
por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e
incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216
salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-
se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais
atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do
mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns
colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras
que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo
Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente
justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos
representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente
a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por
esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a
extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas
famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas
circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional
em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do
Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda
hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares
da identidade nacional
Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que
fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a
ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria
materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo
aos sentimentos do povo
Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da
identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja
a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por
122
exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286
Assim no
orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi
significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos
ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento
deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa
imagem
Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo
porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma
aposentadoria digna
Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre
as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito
anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior
puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil
pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores
daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram
rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento
digno para si e seus familiares
No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros
heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio
histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de
modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho
feitordquo
[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no
Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse
patrimocircnio histoacuterico nacional
Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em
especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por
meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por
tamanho feito
Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes
em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos
desportivos
O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme
porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que
286
ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our
own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the
family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271
123
calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de
encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo
reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que
passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando
o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila
chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de
reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia
Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute
desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro
tanto se orgulha
Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela
ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de
penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores
Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e
justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash
muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees
materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos
telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-
campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute
mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo
tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro
Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas
emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)
Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o
povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas
proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e
merecida homenagem feita pela lei
Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo
de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os
referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um
traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto
observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na
deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como
hoje em dia
Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das
conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as
empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo
brasileirardquo
124
Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da
eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o
Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser
campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes
empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que
se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por
conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo
brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento
Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o
ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais
tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo
Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros
Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor
Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro
Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e
verifique depois
[]
[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as
novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado
ao Brasil
Isso eacute o soft power Trata-se do soft power
[]
esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele
traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria
aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute
na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um
dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo
instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o
Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada
De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute
benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira
expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar
que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E
o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora
tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)
Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante
presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de
tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi
significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais
masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito
de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo
125
ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos
desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila
chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo
ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo
expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos
Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois
o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo
ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede
mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da
culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via
de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro
quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees
expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder
se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas
sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos
colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute
preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos
identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa
resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse
modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem
para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o
rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia
dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo
juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que
pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de
argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso
das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o
julgador
Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica
estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma
126
ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da
antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao
inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal
desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro
gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero
descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso
retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva
para ser assentido pelo puacuteblico
No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o
direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos
Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem
sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo
Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo
de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante
retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute
dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo
emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas
prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de
significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no
redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287
Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma
parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta
parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente
compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma
estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto
de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288
Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente
287
ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a
frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and
language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva
na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation
New York Cambridge 2014 288
ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of
lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J
Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies
vol3 2003 p 267
127
terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios
comunicacionais mais baacutesicos
Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma
questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as
nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja
constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se
deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei
atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos
com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de
sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica
emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas
vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de
normas fundado em emoccedilotildees
Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos
no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir
Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a
estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia
de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios
danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o
equiliacutebrio do meio-ambiente
Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em
discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser
evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008
diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos
pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a
visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental
Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava
embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos
argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os
ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos
constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente
ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo
em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as
128
presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-
se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de
atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo
Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que
o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam
perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao
medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as
consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um
dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-
prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a
longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289
No presente caso pode-se dizer que estava em
discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da
manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290
De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958
1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos
motivos a seguir desenvolvidos
Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens
puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante
ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)
e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da
Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera
homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que
destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de
dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial
Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o
uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional
bastante relevante
289
ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo
(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290
Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos
altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as
pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim
decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New
York Cambridge University Press 2005
129
Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos
emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos
motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo
Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco
alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira
problemaacutetica
No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do
Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a
referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser
observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo
Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo
de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido
Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes
nacionaisrdquo
Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como
esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por
expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo
Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo
estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva
a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas
especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites
juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito
O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF
Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo
civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das
culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do
processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas
pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo
desaparecerem
Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo
ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos
participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um
pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art
130
215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
popularesrsquordquo
O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute
constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou
em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave
conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I
e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e
viverrdquo
Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os
bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF
estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de
Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm
3551 de 4 de agosto de 2000291
Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de
natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica
Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo
de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal
de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar
sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de
capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito
Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)
etc292
A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash
UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os
seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo
enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo
baiano293
291
Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural
brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292
Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan
Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293
Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-
brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015
131
De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente
desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma
autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico
A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees
para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e
1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos
juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do
atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na
argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes
Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a
apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o
orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade
extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294
Desse modo ao dizer que as
conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de
que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento
patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo
proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de
gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso
O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas
que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958
e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros
foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante
De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do
chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra
problemaacutetico
Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante
cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros
natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais
e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada
pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para
programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila
294
LAZARUS R Op cit 1991 p 273
132
global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a
desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295
Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em
relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento
eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute
objeto de tal emoccedilatildeo296
Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo
primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a
ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito
ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da
compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica
Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma
quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o
conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou
simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297
No
que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da
escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a
capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298
Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de
recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa
etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no
Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio
de circularidade cultural por parte do Estado
Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio
financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava
proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais
ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves
seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a
isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da
295
ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts
toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of
vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296
Id ibid p 51 297
Id ibid p 346 298
NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge
University Press 2001 p 434
133
simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente
passam por iguais problemas financeiros
Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da
estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a
desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque
deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-
legislador
Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos
demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre
uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa
humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da
vida etc
Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia
argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento
da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a
estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram
expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza
Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que
portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)
antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica
Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes
aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido
diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava
estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana
agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e
psiacutequica
Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras
questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os
votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se
dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica
que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas
juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia
Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF
analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo
134
juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute
possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam
determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no
discurso juriacutedico
No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma
problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de
tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa
decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura
racional do juiz
Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos
da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria
da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo
que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes
emotivos
De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute
irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso
dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das
consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do
problema
Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente
relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado
quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais
argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem
precisem ser enfrentadas
Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo
humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque
sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas
Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo
porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo
coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse
que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-
mundanos
135
Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria
eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece
bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a
parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem
os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem
disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a
classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude
moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos
propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados
Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no
direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de
Adam Smith
Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do
julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou
reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo
da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos
a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor
avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que
seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299
O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela
fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por
padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser
um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a
forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo
adequado para a accedilatildeordquo300
A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar
munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a
imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica
que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de
regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar
299
SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p
XVI 300
ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up
common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for
actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII
136
num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes
de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo
Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens
sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo
afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo
semelhante
[]
Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos
suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em
seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que
ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo
que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301
Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento
julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que
informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas
ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que
pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302
Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do
agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os
sentimentos do agente e com a sua conduta
Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de
imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a
sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos
alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-
Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para
produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e
desapegadordquo303
Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria
consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute
exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais
301
ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in
which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the
imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we
enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form
some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether
unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302
ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the
suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303
ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral
judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna
Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge
University Press 2009 p 67
137
nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a
emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte
da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304
Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da
capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute
louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a
questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos
uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as
nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria
sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305
Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez
que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito
desintegrador sobre a sociedade306
Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as
inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera
individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente
por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se
tornar extremamente fanaacuteticas307
Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith
percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da
utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios
projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a
304
ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in
our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging
In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305
ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own
opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo
(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France
PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o
pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo
plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por
um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que
eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas
estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law
and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da
argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER
Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes
inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-
set 2013 pp 347-390 306
SMITH A Op cit p 101 307
FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152
138
capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que
esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as
emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-
se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente
relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas
desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar
que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de
normatividade comum na sociedade
A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de
se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a
conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites
139
4 CONCLUSAtildeO
No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves
emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e
da escola estoica
Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham
oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do
debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra
extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir
daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo
ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela
obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica
Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco
explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das
emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica
ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas
um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II
para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie
Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento
platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o
mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim
de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre
agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade
identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da
psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto
que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca
a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas
De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem
confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude
completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-
racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio
do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado
pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as
implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da
140
accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso
constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas
uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos
a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico
da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no
discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer
que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio
De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de
pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a
felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto
(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto
eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola
estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem
possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que
satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma
vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu
caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o
homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees
do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia
A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por
isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos
romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos
possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de
discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico
de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado
Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos
que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que
ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes
de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar
sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente
sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto
Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo
141
negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente
atual para a reflexatildeo do assunto
No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin
e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e
de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o
desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a
Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi
tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital
para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA
Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto
histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e
dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais
movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar
as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar
um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia
Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse
em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada
ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em
relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o
direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees
A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das
falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de
loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela
retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que
pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta
argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que
medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo
Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias
ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo
que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em
compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense
alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos
podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a
142
fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento
para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em
que satildeo utilizados
Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por
Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o
problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse
modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece
trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees
demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem
ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de
manipulaccedilotildees emocionais
Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade
profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao
nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de
avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo
Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e
estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto
sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo
avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu
surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da
razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo
Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas
atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao
fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem
acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como
os seres humanos decidem e argumentam
O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a
importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise
descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer
consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do
direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para
ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A
apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso
143
ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de
indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de
danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o
direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante
Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo
ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de
1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo
orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico
Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para
realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento
Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de
discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo
emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado
Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual
estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo
de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa
procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios
miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico
Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith
seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na
decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e
para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de
outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um
ambiente de normatividade comum na sociedade
Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o
julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em
evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um
discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas
Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees
natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no
estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e
do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais
e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente
com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a
144
forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e
argumentamos na praacutetica
De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as
emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao
tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes
criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu
peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a
emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo
precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de
avaliaccedilatildeo
Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das
emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo
juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio
145
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Marcelo Fernandes Pires dos Santos
Retoacuterica Teoria da Argumentaccedilatildeo e Pathos o problema das emoccedilotildees no discurso
juriacutedico
__________________________________________________
Professora Doutora Claudia Rosane Roesler
Orientadora
__________________________________________________
Professor Doutor Alexandre Veronese Aguiar
Examinador interno (UnB)
__________________________________________________
Professor Doutor Isaac Costa Reis
Examinador externo (UFSBA)
__________________________________________________
Professor Doutor Argemiro Cardoso Martins
Suplente (Unb)
Brasiacutelia 27 de maio de 2015
Para os meus pais
AGRADECIMENTOS
Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos
acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas
durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes
dois uacuteltimos anos Serei sempre grato
Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de
Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos
Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave
praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas
Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do
conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso
Martins
Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar
esta dissertaccedilatildeo
Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo
A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa
Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib
Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria
Emanuelle Pinheiro
Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio
Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade
(proveacuterbio antigo)
ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo
(Platatildeo Leis 775e)
7
Resumo
O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo
Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees
um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico
embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a
Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante
incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de
refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica
juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria
da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente
estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma
argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema
juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais
especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender
como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em
seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees
seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa
eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e
capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico
Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash
psicologia ndash linguiacutestica
8
Abstract
The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is
marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been
considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to
the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the
effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify
evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal
practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation
Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to
investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and
more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is
necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic
school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his
ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the
Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the
following generations It aims also search to understand the psychology of our time on
emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in
legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in
order to improve the quality of legal discourse
Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash
linguistic
9
Lista de abreviaturas e siglas
ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade
ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental
CF ndash Constituiccedilatildeo Federal
MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta
STF ndash Supremo Tribunal Federal
TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
10
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA 14
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE 57
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no
discurso 62
23 As emoccedilotildees falaciosas 68
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100
32 Anaacutelise 109
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125
4 CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145
11
INTRODUCcedilAtildeO
O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da
crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ
que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen
Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca
Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito
guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido
MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de
ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica
aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir
proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1
Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a
argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela
TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no
discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e
apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas
investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais
dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das
premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2
Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos
falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das
emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na
vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa
decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a
racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano
Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna
teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com
o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que
tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser
(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II
desta dissertaccedilatildeo
1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14
2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557
12
No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender
primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a
discussatildeo das emoccedilotildees
Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos
analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o
Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a
importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo
utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as
emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema
Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida
as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para
Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito
a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide
a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim
tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute
compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica
Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos
realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees
deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de
tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender
por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo
acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica
estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos
psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que
modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica
Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o
pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que
ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o
fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste
trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica
O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna
Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto
histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca
(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual
13
disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA
(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as
emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais
especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar
acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo
tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso
juriacutedico
No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e
II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito
tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de
nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no
Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico
No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo
II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de
argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas
aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das
emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados
procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre
as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a
melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate
qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees
14
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees
O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da
origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de
qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje
possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que
preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um
discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto
eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees
Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista
trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao
mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente
atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem
encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma
significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou
a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica
do Presidente Obamardquo3
Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar
localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito
Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram
legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de
Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha
inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de
palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode
significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4
Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre
Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos
Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa
3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University
Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the
disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9
15
feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae
sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc
assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5
Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente
utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em
puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e
demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute
ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E
posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada
caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com
o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso
Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A
palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para
demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a
opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a
refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da
verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do
retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os
outros
Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade
do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na
tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase
uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim
relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a
ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC
associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca
5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the
Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate
in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela
primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore
The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90
7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a
whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey
Princeton University Press 1994 p 11
16
pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica
entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9
Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados
pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o
poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza
incutir a compaixatildeo e o prazer10
Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida
puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas
proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11
Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica
a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir
quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a
origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que
supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade
Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a
fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a
mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e
tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime
ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a
organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala
em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e
de outras mateacuterias12
A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto
pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual
(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu
perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o
referencial teoacuterico sobre o assunto13
Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa
anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias
9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11
10 KENNEDY G Op cit p 25
11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in
honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard
Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12
CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p
49 13
GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in
WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p
30
17
tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual
apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14
Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte
retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das
fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para
Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax
realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15
Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para
assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso
eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente
valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo
da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter
melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos
entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade
Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela
restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a
organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de
retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores
jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade
Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e
Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de
Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico
governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia
de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero
O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria
uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte
cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como
ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo
com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16
Assim os personagens de Homero na Iliacuteada
14
CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press
1949 (II 6) p 171 15
COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16
ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker
situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4
18
apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a
retoacuterica em teoria
No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-
Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com
a retoacuterica
Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso
poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de
maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua
proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em
grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua
dicccedilatildeo17
Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas
do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador
demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a
gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador
Quando urdiam discursos e expunham ideias
Menelau era fluente e claro mas conciso
natildeo sendo um homem multipalavroso nem
dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo
Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se
de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo
mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem
para diante o inclinava) parecia um ruacutestico
algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila
Mas quando a voz do peito emitia poderosa
palavras como copos-de-neve no inverno
ningueacutem nenhum mortal o igualaria18
Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a
fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis
toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura
literaacuteria de Homero19
Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a
Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos
17
ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi
rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established
his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same
power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18
HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19
ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates
a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be
categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system
explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84
19
retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca
que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a
justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a
qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e
que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade
literaacuteria de outras obras antigas20
Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada
pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da
competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na
Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras
poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga
funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado
atraveacutes do discurso persuasivordquo 21
Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo
da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do
debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste
ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na
filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico
No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante
era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute
por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que
apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a
compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos
Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar
mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo
grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo
paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do
20
KNUDSEN R Op cit p 101 21
ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and
much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned
as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive
speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101
20
fenocircmeno emotivo22
Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza
o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo
de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas
Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute
chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo
de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado
Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo
qualidades23
Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados
em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em
funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo
modo24
Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido
por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio
sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de
ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25
De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute
algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na
Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito
disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas
vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp
natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas
de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26
Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar
que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica
Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas
agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que
22
RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ
Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de
Gruyter 2008 p 48 23
ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather
he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad
livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J
L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24
ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo
Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25
RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and
interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26
RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um
conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam
evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito
21
defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma
irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo
haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que
algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a
retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que
podem ser conhecidos pela razatildeordquo27
contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se
reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as
causas e os motivos do que faz
Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a
explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica
Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro
I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina
dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em
espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das
emoccedilotildees no campo da retoacuterica
Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de
uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em
instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto
de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou
natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que
satildeo os entimemas tais manuais nada tratam
O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que
ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de
retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria
terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de
outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a
palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir
do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental
(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato
Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como
um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo
27
ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by
reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York
Fordham University Press 1980 p 4
22
Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies
algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que
dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e
outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando
demostrar algo28
Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees
neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que
prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque
literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma
expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave
psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29
No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por
Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo
dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30
parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como
meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que
englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica
Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos
ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de
acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza
pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre
o assunto
Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica
inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado
do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas
aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar
em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo
muito pode ser comentado
Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas
para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I
Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados
argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute
deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria
28
ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29
KNUDSEN R Id ibid p 39 30
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13
23
necessaacuterio o uso de apelos emotivos31
Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu
criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos
(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32
A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo
do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma
forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem
durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre
emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma
visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o
ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada
haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que
resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33
Levando isso em
consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees
num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs
meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma
completa adaptaccedilatildeo do tema34
De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles
fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou
entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas
que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez
seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees
no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35
Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as
emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes
indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o
inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36
Ela no entanto registra que
em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o
discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees
31
FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to
greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32
Id ibid p 117 33
Id ibid p 118 34
Id ibid p 118 35
KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek
rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36
FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays
on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264
24
De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves
emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos
que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das
emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De
todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme
assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente
influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37
Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na
retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma
das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de
Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo
e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat
especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado
comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser
desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38
e Konstan chega a dizer que
curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas
obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica
Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre
emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em
um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo
(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre
retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de
Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia
ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as
emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de
oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo
filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)
Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome
verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte
de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou
especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39
37
HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL
Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38
COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)
Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39
ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not
ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for
example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side
there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different
passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in
other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The
Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if
that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on
25
Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II
Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no
ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de
fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto
com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de
julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa
determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios
de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento
(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial
O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes
eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte
maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma
os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza
ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo
culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40
Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees
vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar
afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de
algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir
uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem
utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser
humano
A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a
natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor
(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema
A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja
de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua
obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por
exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter
distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive
desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo
rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op
cit p 411 40
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84
26
preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das
suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio
natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia
perdida conforme se observa no seguinte trecho
SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos
comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a
desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor
PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel
SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a
natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se
devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais
difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41
Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns
aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo
beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia
de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita
submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo
bons e outros natildeo (51b)42
Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento
platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita
recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que
o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado
natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43
Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor
chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra
aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno
misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor
a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada
citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos
41
ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will
at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain
PROTARCHUS What you say is very plausible
SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we
have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the
shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER
John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p
419 42
FREDE D Op cit p 262 43
ARISTOTELES Op cit 2012 p 56
27
mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura
da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a
doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa
fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade
do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44
que eacute uma dor da alma (50a)45
Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees
opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha
benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no
referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum
momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra
ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem
emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem
fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi
moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia
Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo
dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que
eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles
encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um
mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males
passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)
A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de
bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na
possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu
turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece
fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um
ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor
diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos
provocam prazer (1370a)
Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a
benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas
envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em
44
A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio
alheio 45
PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440
28
mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no
empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46
De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs
aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que
geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou
o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem
saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no
seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental
Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um
mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera
pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de
fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda
sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou
acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo
que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do
medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o
medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta
categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com
instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que
provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes
quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de
injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em
relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande
penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente
relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos
temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num
intervalo temporal muito longiacutenquo
Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir
medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o
passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem
confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os
seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro
46
FREDE D Op cit p 271
29
lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo
grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como
certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio
estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir
confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as
pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo
Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de
compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)
continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os
ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma
teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de
experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um
determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva
Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de
representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras
gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo
mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia
eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da
palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade
A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem
percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois
problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos
ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o
semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se
identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar
de como as coisas satildeordquo47
Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade
especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes
da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis
Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa
emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48
(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam
47
ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL
M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell
Publishing 2006 p 334 48
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57
30
de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade
em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas
porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma
pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do
ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]
de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]
que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a
vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo
indiviacuteduo (1384a24)49
Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um
papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute
possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca
Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer
julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50
Assim em
conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo
mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um
estado emocional especiacutefico
Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a
evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo
elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar
quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro
da retoacuterica
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica
Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de
importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a
investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a
Nicocircmaco
49
GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University
Press 1988 p 26 50
ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen
aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche
anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56
31
Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que
seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima
tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido
uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana
Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no
Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da
espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as
pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51
(1095a17-19)
Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)
oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no
Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade
com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo
justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para
melhor compreender a mateacuteria em exame
Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo
(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte
natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e
por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser
humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja
natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta
uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de
parte apetitiva ou desiderativa
Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais
apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu
sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute
capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte
irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa
permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional
mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp
Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo
(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido
estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer
ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da
51
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40
32
alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma
que possui razatildeo em si mesma52
Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma
parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de
excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento
das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente
desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste
capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das
partes53
E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes
intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes
ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas
agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder
ouvir e obedecer agrave razatildeo
Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto
Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se
referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural
(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por
excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a
felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que
exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado
(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos
justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54
Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral
(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional
da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo
ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)
Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o
Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar
tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela
52
RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a
eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53
PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos
nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54
RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78
33
instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara
divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por
meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute
suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio
conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna
virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso
realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou
justo
Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza
(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas
como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo
permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis
(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a
regressotildees55
Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios
atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica
(1105a30-35)
Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que
desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da
alma
No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico
relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo
ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo
ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56
No Capiacutetulo
II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo
fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que
natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio
Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de
incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na
posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a
55
WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2013 p 69-70 56
ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68
34
sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados
devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57
Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e
o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute
afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa
condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa
com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa
posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir
devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem
natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir
de modo adequado as emoccedilotildees58
Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de
como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles
apresenta a doutrina do meio termo
Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior
ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores
menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a
noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia
Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois
extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos
pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute
excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute
exatamente o mesmo para todos os seres humanos59
Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no
distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto
mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso
quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de
sentir a emoccedilatildeo
Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina
tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os
casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido
compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam
57
Id ibid p 74 58
KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY
Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press
1980 p 104-105 59
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76
35
moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas
equidistantes dos dois extremos60
Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no
campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-
casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular
enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em
geralrdquo61
Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas
cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes
Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar
conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo
adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves
pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do
aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave
experiecircncia concreta
Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de
modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma
resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida
conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma
adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por
deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com
raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira
equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62
Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira
algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se
delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a
razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente
de acordo com as circunstacircncias
Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo
muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia
e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis
60
RAPP C 2010 p 416 61
Id ibid p 419 62
RAPP COp cit 2008 p 66
36
porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como
senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc
Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel
senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente
vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute
extensiacutevel
Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a
inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma
que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja
da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo
ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto
comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia
entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela
observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada
pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo
ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena
(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute
experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis
despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem
Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas
no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos
conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39
1388a30-37 983a1-5)
Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas
fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido
este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63
Eacute bem verdade que mochteria
tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida
obra aristoteacutelica64
mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das
mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65
63
LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics
a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64
ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65
Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term
used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from
morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non
moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used
37
Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu
eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na
conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo
relacionada ao cometimento de injusticcedilas
Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em
comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as
emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa
ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura
conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura
simplesmente por serem sentidasrdquo66
Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois
grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de
acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele
primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees
adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo
grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67
Desse modo de
acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do
indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz
Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo
O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a
vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma
racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos
perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou
brutas contra outras pessoas
Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso
de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional
porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral
permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas
synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES
Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago
University Press 2011 p 307 66
ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve
praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame
simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67
LEIGHTON SId ibid p 226
38
incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir
ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma
injusticcedila68
Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar
adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo
talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a
conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as
emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)
natildeo estaacute condizente com tal abordagem69
De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute
extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte
Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na
poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70
Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas
emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o
puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do
personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que
porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida
comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce
outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por
sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71
Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua
adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton
oferece duas respostas
Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do
haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que
Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa
pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja
68
STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his
moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos
Angeles California University Press 1996 p 298 69
RAPP COp cit 2008 p 66 70
LEIGHTON S Op cit p 226 71
Id ibid p 227
39
destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira
hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72
Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas
circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica
e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73
Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa
circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute
inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro
Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um
especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em
competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua
respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam
completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo
subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74
Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma
psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios
de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute
inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita
que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia
de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por
tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a
diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo
compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75
De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em
relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo
com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A
inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica
etc)
Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em
nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas
72
Id ibid p 230 73
ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their
placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74
Id ibid p 231-232 75
Id ibid p 231
40
jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue
explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes
entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave
natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara
para utilizar a inveja na retoacutericardquo76
Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico
anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o
problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica
Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no
Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por
isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica
difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo
Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em
relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema
enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as
emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo
em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos
reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar
preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas
Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia
Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica
aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as
emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o
indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum
embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente
isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade
adequada agrave situaccedilatildeo experenciada
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica
Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica
aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave
76
ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but
remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235
41
obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo
pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de
percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica
estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262
aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do
estoicismo
Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange
cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras
inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola
se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio
de comentaacuterios de seus adversaacuterios77
Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante
pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na
verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que
incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam
fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da
loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute
incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como
filoacutesofordquo78
Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar
que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que
a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial
periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por
Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que
coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide
com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco
Aureacutelio79
A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento
do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios
77
TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas
heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78
ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN
Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school
from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics
Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers
trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79
SEDLEY D Op cit p 7
42
(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes
disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo
tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais
reflexos sobre a retoacuterica estoica
Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o
impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute
difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema
a que ele compara a um edifiacutecio
Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais
finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela
tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada
Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior
desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema
em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe
faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80
Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar
primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio
que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto
estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza
reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus
opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas
vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada
corretamenterdquo81
Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado
como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo
considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz
Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar
porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e
outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em
conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da
possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e
80
ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured
product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows
from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal
of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo
(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University
Press 2004(III74) p 88 81
BRENNAN T Op cit p 120
43
natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez
dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do
que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos
indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa
forma satildeo menos preferiacuteveis
Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua
incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave
contingecircncia82
Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio
quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque
podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal
possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o
instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver
Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento
pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte
entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve
alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)
Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza
nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em
tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O
verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83
Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e
infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um
estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro
objeto externo84
Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a
aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude
como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela
razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo
imutaacutevel[]rdquo85
A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a
82
Id ibid p 122 83
ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part
of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of
dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor
wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful
Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion
ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84
LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987
p 377 85
ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-
faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable
44
essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a
razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86
Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui
todas as virtudes87
Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo
eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo
praticadas de acordo com todas elas88
Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza
que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza
significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas
permeia a reta razatildeo89
A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres
humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90
Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio
O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo
correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra
a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho
ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma
faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma
conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo
apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91
Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas
atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica
especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso
Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder
aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto
desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com
reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 378 86
Id ibid p 383 87
STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 379 88
PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 379 89
LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p
395 90
SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 395 91
ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with
nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in
his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 398
45
os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do
termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92
sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93
quando atraveacutes da
visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma
modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um
ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e
passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela
num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo
agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o
mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94
Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz
respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei
uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo
verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este
respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso
Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da
epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela
garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende
precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto
Empiacuterico
A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute
marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo
que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os
estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os
objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de
forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes
fatores como atributo95
92
PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 238 93
AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 237 94
ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying
lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo
(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95
ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in
accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold
that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a
craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against
the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 243
46
Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que
natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte
ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu
objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto
impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir
do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo
precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta
impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96
E isso
soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de
razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para
realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97
Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees
eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por
meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco
reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que
para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um
assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas
condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98
Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo
apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99
Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu
conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo
caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100
Uma
das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as
pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo
temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso
possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101
96
ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this
impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit
p 68 97
LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98
BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99
CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 254 100
STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophershellip p 256 101
BRENNAN T Op cit p 72-73
47
Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e
pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes
que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente
um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um
assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102
Quando vejo um ramalhete de flores
amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar
no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para
realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua
vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de
opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e
especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem
tanto um quanto o outrordquo103
Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar
compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as
emoccedilotildees (apatheia)
Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os
estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo
varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para
a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de
passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da
portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador
muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao
reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e
estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os
problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar
a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de
doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo
utiliza o termo104
Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo
afecccedilatildeo105
Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com
102
GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103
ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while
the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104
TIELEMAN T Op cit p 15-16 105
BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In
LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein
BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93
48
Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o
termo pathos106
Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente
sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de
harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo
Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute
excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute
irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107
Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair
primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso
qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve
Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute
contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra
o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica
porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as
emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos
comandos do logos
Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender
esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto
anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte
natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e
obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude
(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na
eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas
de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente
afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente
para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz
Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na
filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma
estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se
entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos
estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os
106
GRAVER M Op cit p 14-15 107
ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of
reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS
2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 410
49
homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108
Dessa forma as
emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos
fundadores estoicos
Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se
acomodam emoccedilotildees especiacuteficas
Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que
devemos persegui-la
Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que
devemos evitaacute-la
Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que
devemos ficar contentes com isso
Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que
devemos ficar abatidos com isso109
Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio
temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo
direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo
que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um
objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor
negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um
assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo
Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes
emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No
gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico
No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo
anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110
Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos
(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao
falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim
quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios
108
ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the
sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109
ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it
Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the
opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the
opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad
livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110
CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago
Press 2002 (416) p 45
50
de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por
que isso ocorre
Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111
e por assim serem
atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza
amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em
direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda
eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No
medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na
verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente
atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam
sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante
possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112
Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de
perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme
resume Crisipo
A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que
satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]
estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a
atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos
empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113
Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico
porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as
caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi
construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)
que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que
Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso
tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia
alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as
propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional
111
LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112
BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113
ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way
of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out
reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad
livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the
ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press
2001 p 370
51
com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de
bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)
Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal
futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de
que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo
experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que
alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114
Quanto agraves emoccedilotildees em
espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave
cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por
fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave
dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum
eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica
coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente
que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome
da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um
sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de
indiferentes
Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde
que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se
arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo
ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a
alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento
involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e
por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do
homem inferior
Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o
saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e
passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)
parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a
retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de
maneira bastante marcante da praacutetica do orador
114
BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op
cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221
52
Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de
uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de
controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das
emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua
vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na
construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida
comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de
acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo
da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute
instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas
No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de
Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio
aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi
preservado115
Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo
ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas
bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116
Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos
como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de
falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a
parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o
saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite
diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de
modo a nunca cair em truques argumentativos117
Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a
dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados
uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo
aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a
retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos
115
LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116
ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38
1988 p 393 117
LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48
53
filoacutesofos118
Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a
uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119
E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os
cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos
algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo
apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer
finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e
outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para
bem falar no sentido de falar corretamente
Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro
problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse
sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo
muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons
arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se
o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120
Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na
verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo
que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na
assembleia popular121
Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco
virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro
gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada
de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do
que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo
de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122
Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta
num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem
118
CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119
CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University
Press 1942 (III 65) p66 120
ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule
and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to
oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit
1962 (118) p 107 121
CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122
LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396
54
aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um
oradorrdquo123
Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva
para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a
retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador
tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos
excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos
destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico
natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua
ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124
Eacute certo que o saacutebio
experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso
no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo
Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil
encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por
retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave
persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo
existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa
usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu
respeitordquo125
Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de
Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126
Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha
o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto
de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se
guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato
Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era
Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom
para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com
123
ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo
(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard
University Press 1942 (159) p 313 124
ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or
by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411
Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125
ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)
because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p
426 126
CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91
55
os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria
como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste
seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia
ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127
Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica
finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas
fontes da Antiguidade
De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua
eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte
articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois
campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade
da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No
Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua
funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que
significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias
Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois
para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade
strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees
adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas
realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito
menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador
De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido
de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos
seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128
e atingir uma felicidade
autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por
meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a
que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo
percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico
invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque
estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica
127
CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128
ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the
world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210
56
natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e
coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico
Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico
exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram
levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar
das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo
loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as
emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema
filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel
sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129
129
SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149
57
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo
No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um
panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar
que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de
uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi
neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se
refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de
que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado
emocional do sujeito
Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva
investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash
MTA130
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de
Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do
Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a
relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de
julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III
momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees
do Supremo Tribunal Federal - STF
Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma
contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento
humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus
problemas de eacutepoca
Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso
caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica
sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha
agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o
seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos
130
Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da
Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof
WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation
Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30
58
seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por
ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de
reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo
Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que
natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma
especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato
com a massa a propaganda
Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma
informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo
desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de
descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande
nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a
propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da
modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e
de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados
meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131
Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo
absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a
integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de
sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um
ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos
compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados
comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo
conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo
e relaxamento evitando o cansaccedilo132
Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra
e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre
a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis
Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma
abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da
Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa
eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo
nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por
131
KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave
Macmillan 2005 p 1 132
Id ibid p 2
59
estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar
a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era
particularmente destacada133
Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato
efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias
disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez
que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance
limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar
uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134
Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de
irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia
espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da
propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e
de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo
eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda
mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios
simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135
Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos
sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos
grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das
emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais
atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136
Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda
discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles
enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves
emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo
valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille
133
ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo
emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation
for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for
methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and
mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134
ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner
New York Vintage Book 1973 p 9 135
Id ibid p 201-206 136
ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through
emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204
60
und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a
instruir os seus propagandistas
No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar
a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A
propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e
para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista
Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos
membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias
Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante
da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos
objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil
sem efeito
[]
A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa
natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na
transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de
que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa
transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova
maneira nacional de pensar137
Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)
Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no
intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda
possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir
convincentemente as massas
Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno
acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na
medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto
O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas
emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente
ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se
deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus
objetivos138
137
ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the
foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect
[hellip]
National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks
of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a
new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after
an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und
Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138
ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular
importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as
the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not
coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of
propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In
61
Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937
direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a
melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes
alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam
apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de
argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos
talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo
quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de
mundordquo139
Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem
novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles
ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior
das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido
Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do
coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso
pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do
partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O
convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional
O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional
socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de
seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele
compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele
explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem
Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo
alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os
partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas
pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as
sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140
Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-
propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139
ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and
utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart
or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249
Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de
janeiro de 2015 140
ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the
understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he
understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more
receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people
by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won
by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to
62
Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico
com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor
candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos
totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso
Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa
violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes
totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos
sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma
ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141
Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um
repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim
de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o
surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as
emoccedilotildees no discurso
Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e
avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a
investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca
A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo
tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da
argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica
em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma
abordagem teoacuterica proacutepria
Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das
emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque
natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a
primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem
call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141
PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo
Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142
Id ibid p 21
63
temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que
Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA
Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA
satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente
influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143
Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute
realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da
Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144
Assim enquanto o esquema argumentativo
de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse
modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados
tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees
Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o
pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da
MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e
justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico
Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia
que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do
trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo
entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade
(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua
inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos
oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme
expotildee Roesler
A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de
Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a
sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de
ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada
para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar
caracteriacutesticas fundamentais145
Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um
termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o
143
RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144
ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on
something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145
ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade
Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23
64
qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude
questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e
supostamente emprestaacutevel ao direito146
Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber
juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se
funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo
germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que
enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se
apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir
agrave discussatildeo dos problemasrdquo147
A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se
orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de
problemas se revela mais adequada ao direito
Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode
afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade
de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual
o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos
pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas
confere-lhe a estrutura fundamental148
Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e
demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da
retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a
argumentaccedilatildeo juriacutedica149
Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor
natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro
lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da
relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150
146
ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica
Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da
UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147
VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos
juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008
p 39 148
ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149
Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo
Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm
10 2015 p 26-48 150
A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes
de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do
direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo
Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf
65
De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin
realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da
argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira
como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151
Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com
o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da
loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152
Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma
conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute
uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia
(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo
argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por
vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)
que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a
conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar
sua autoridade geral
Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que
este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute
possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As
noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a
um esquema comunicativo153
E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da
dialeacutetica do que da retoacuterica
Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica
eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a
Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao
racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo
de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da
a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise
retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151
TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes
2006 p 2 152
BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria
Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153
MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat
parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73
66
retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do
raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154
Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando
expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai
atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto
escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da
retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de
ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155
Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave
noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional
da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma
argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma
argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao
argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo
das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta
independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156
Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da
retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa
pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)
referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias
Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as
emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo
elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos
ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este
uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar
sinceridade157
Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como
perturbadoras da accedilatildeo158
o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma
compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo
154
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica
trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155
Id ibid p 7 156
Id ibid p 35 157
PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du
discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158
Id ibid p 49
67
podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a
ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159
Em outra parte da obra
anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem
apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu
discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar
suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160
Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do
seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na
argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta
uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo
nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser
confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que
habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como
valorrdquo161
A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa
das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica
antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se
trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto
espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo
da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece
estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar
Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima
estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em
que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um
interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam
vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua
obra162
Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor
num campo de reflexatildeo sobre o logos
159
PERELMAN C Op cit p 518 160
PERELMAN C Op cit p 27 161
PERELMAN COp cit p 539 162
PERELMAN C Op cit p 5
68
23 As emoccedilotildees falaciosas
Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo
acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico
a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees
As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo
Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente
relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da
argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um
teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163
Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer
criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse
modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso
passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras
palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na
argumentaccedilatildeo164
Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo
ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165
Falaacutecia portanto deriva do termo
em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que
significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a
ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um
truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166
Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua
Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um
argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente
uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto
163
ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the
scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart
MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the
pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164
EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p
25 165
HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166
WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State
University Press 1992 p 17
69
diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a
conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167
Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de
criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou
ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem
aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual
estado de arte da argumentaccedilatildeo168
Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que
particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo
Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento
Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica
para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu
pensamento
Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso
tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os
homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso
para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-
los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo
O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes
aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um
nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo
de autoridade
[]
Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam
Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente
utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos
assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o
adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que
designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam
Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias
extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute
conhecido sob o nome de argumentum ad hominem
O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento
e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um
dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de
argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a
verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o
conhecimento169
167
RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168
Id ibid p 27 169
ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments
that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to
awe them as to silence their opposition
The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause
has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority
70
Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam
ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter
ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento
exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um
modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras
de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer
comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs
Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad
hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era
conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca
que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho
das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees
contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad
hominem solvunt []rdquo170
Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad
verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo
chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias
Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao
argumentum ad rem171
Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute
possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao
alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad
hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras
fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad
rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad
judicium
Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their
judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a
proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam
A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is
already known under the name of argumentum ad hominem
he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from
any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all
the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE
John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170
ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)
HAMBLIN C Op cit p 161-162 171
WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80
71
Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser
substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo
denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa
apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave
modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves
caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias
objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das
pessoas172
Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas
ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo
Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila
que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito
de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo
de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute
considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias
sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173
Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo
o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as
falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal
contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas
a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard
da disciplina174
Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma
abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso
trabalho destacamos as seguintes falaacutecias
(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam
(ii) apelo ao medo argumentum ad metum
(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium
(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam
(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam
172
WALTON D Op cit p 4-9 173
ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic
of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same
old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174
EEMEREN F Op cit 2009 p 12
72
(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam
(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones
Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad
ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave
supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por
repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo
ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175
Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I
agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe
faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad
passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo
loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos
Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua
verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo
usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento
para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a
nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees
[]
6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum
toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes
para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute
chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176
Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem
podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido
de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no
sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do
discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento
parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees
eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para
distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso
175
HAMBLIN C Op cit p 41 176
ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from
the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our
Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an
argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the
hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones
an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry
after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242
73
Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o
que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do
discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo
consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos
negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na
linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas
conexotildees entre essas coisas
Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das
emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da
argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como
um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da
teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las
como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus
atoresrdquo177
O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a
argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178
Assim pathos parece
retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de
patoloacutegico de sofrimento
Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na
classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma
grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu
constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente
vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de
sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica
ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito
pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179
Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia
das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard
da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em
que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias
177
ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions
mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord
expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178
Id ibid p 63 179
ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et
finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66
74
Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo
consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para
elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees
restou significativamente empobrecido
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso
Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das
falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi
preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas
Walton
Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das
falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no
Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo
canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do
domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e
aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a
discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso
das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos
expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense
Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo
apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio
Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora
do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se
sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da
argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada
inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180
Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque
decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas
A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as
180
ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory
inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69
75
emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em
sociedade181
Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em
que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se
cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por
exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma
alegaccedilatildeo182
De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por
entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha
cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183
Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais
argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca
relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus
participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para
bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem
uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo
sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha
adequadamente o ocircnus da prova184
Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente
quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a
irrelevacircncia do argumentordquo185
Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu
estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da
argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos
corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186
o autor propotildee o estudo de quatro
ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de
aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum
ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad
hominem
181
Id ibid p 69 182
Id ibid p 68 183
Id ibid p 1 184
Id ibid p 1-2 e 28 185
ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an
argumentrdquo Id ibid p 2 186
Id ibid p 28
76
Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de
estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo
agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute
preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria
em comentaacuterio
Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute
estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo
Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia
alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187
Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim
comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo
em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma
coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado
idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188
e que se mostra um recurso uacutetil para que o
diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim
Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se
(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como
premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida
(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189
(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma
particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia
suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190
(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em
cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em
outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do
investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda
que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste
187
ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a
collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188
ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id
ibid p 20 189
WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon
University of Toronto Press 1998 p 37-40 190
ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is
insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70
77
em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos
tipos de bens ou outros itens de valor191
e
(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte
reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si
mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo
cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um
confronto fiacutesico192
Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita
compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)
um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo
criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os
argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo
persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e
contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos
de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser
legiacutetimas193
Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a
noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do
discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim
mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as
premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um
modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir
que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194
Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo
do apelo agrave compaixatildeo
Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a
abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a
sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195
191
Id ibid p 100 192
WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193
Id ibid p 23-24 194
ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even
if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular
premisesrdquo Id ibid p 57 195
Id ibid p 106
78
Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende
muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por
exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas
facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser
excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196
Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do
Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou
fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr
Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo
considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que
Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e
mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo
canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do
Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado
de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o
deputado197
Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de
enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico
Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto
vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso
questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto
realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte
de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198
Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em
relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da
tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso
atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim
considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns
196
Id ibid p 106-107 197
ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his
advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad
livre) Id ibid p 111 198
Id ibid p 111
79
destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute
adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado
Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar
amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o
entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose
perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra
provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de
condescendecircnciardquo199
Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave
simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa
Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-
se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos
bem como restringir a sua publicidade
Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei
o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre
todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes
relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes
que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que
rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos
ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo
familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco
dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200
Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo
eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser
um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de
doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores
de tabaco
Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para
argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do
projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento
utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como
199
ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo
for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200
ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What
about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the
legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124
80
um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais
negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo
causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio
de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute
Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso
visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema
unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo
Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para
avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo
(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo
(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute
aberto a questionamento criacutetico
(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa
investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma
proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e
(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os
fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201
Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste
em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o
seguinte checklist com sete fatores
(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute
adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo
(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no
caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute
apenas algo secundaacuterio
(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio
reagir energeticamente
(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo
secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso
(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de
argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados
201
Id ibid p 140
81
(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam
quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo
com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e
(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo
de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do
caso202
De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton
diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso
defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode
interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203
Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo
uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus
efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus
destinataacuterios204
Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a
credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar
prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se
trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas
hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da
pessoa205
Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a
considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de
modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de
conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206
O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra
pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta
verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que
acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo
eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e
202
Id ibid p 141-142 203
Id ibid p 193 204
Id ibid p p 259-260 205
Id ibid p 195-196 206
Id ibid p 193-194
82
o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207
Neste caso o
uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo
criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208
Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral
ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir
contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente
presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os
estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para
classificaacute-lo como falaacuteciardquo209
Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo
de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de
relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o
contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela
qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a
adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa
negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210
Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os
comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio
Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a
respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute
possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum
espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211
Neste
uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de
pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212
De outra parte eacute possiacutevel pensar
que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em
assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213
207
ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic
dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo
verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208
Id ibid p 216 209
ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to
force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid
p 78 210
Id ibid p 159 211
Id ibid p 67 212
Id ibid p 2 213
Id ibid p 67
83
Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na
filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre
tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute
proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica
aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que
compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas
adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento
certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as
emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias
Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na
argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas
Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou
inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo
para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem
empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo
Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e
estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e
deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como
se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer
circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que
merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o
argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida
adequada agrave situaccedilatildeo214
Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e
principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um
exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em
assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais
tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques
pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da
argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215
214
Id ibid p 68 215
ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human
reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64
84
Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na
argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver
complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo
emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns
aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que
natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso
De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton
fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees
importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De
que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no
objetivo do proacuteximo toacutepico
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees
Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica
recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre
tenha sido assim
Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec
XX foi miacutenima216
Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em
1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva
sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia
secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo
categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que
partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo
parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217
Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo
XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar
informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos
estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto
216
ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe
siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique
(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217
ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad
livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace
and Company 1921 p 40
85
aquela de descrever eventosrdquo218
Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos
entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores
concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute
que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas
tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica
Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a
funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela
entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por
inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute
variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219
Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado
nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso
Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a
ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um
dos representantes de tal escola
Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma
teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar
nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo
com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance
Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos
dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma
vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens
descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira
mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem
melhores insights prescritivos
Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao
exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu
trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir
o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso
apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo
218
ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor
SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-
26 p9 219
ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective
functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system
Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad
livre) Id ibid p 22
86
teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em
comentaacuterio220
Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees
efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de
especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura
suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio
do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver
discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo
da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente
sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221
Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada
por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada
Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio
se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes
problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das
caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo
(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma
emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)
natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222
Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma
emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo
algum animal etc) 223
Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute
que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto
pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo
predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que
designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224
220
MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques
Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221
ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion
effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id
ibid p 118 222
Id ibid p 43 223
Id ibid p 43 224
ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee
ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46
87
Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que
dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias
lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)
um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar
diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)
complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de
facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo
ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos
explodissem de raivardquo)225
Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente
observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua
interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a
presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas
que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma
interpretaccedilatildeo indicialrdquo226
Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo
emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma
entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de
indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a
presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do
primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face
da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute
causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227
Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de
processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios
tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados
e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228
Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes
para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam
ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender
225
Id ibid p 49-51 226
ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves
heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227
Id ibid p 64 228
Id ibid p 66-67
88
de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por
exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a
exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que
por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo
(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma
relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as
emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229
Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo
suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um
especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os
tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso
espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo
Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na
psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com
mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a
avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada
agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar
uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais
Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o
contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a
realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia
de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230
Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da
anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos
numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do
discursordquo231
Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O
esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e
assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)
229
Id ibid p 75-95 230
Id ibid p 106-112 231
ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de
sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112
89
criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia
cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin
(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso
como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas
(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no
tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos
ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo
(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso
descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute
enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento
(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa
para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou
na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de
um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a
um agente
(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo
emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade
de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua
controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria
(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com
outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo
Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da
aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de
demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um
homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada
parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa
situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto
(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute
compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo
a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da
incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional
familiar amigos etc)232
232
Id ibid p 115-119
90
Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente
designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e
suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo
inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim
de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma
esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere
a sua presenccedila233
Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num
mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma
emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione
Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso
registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que
vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo
atualmente existente entre logos e pathos
Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e
emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter
emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo
oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que
caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute
racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234
Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo
das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees
foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a
disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que
tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo
temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees
como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser
suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo
233
Id ibid p 119-120 234
ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo
practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo
(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In
WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins
Publishing Company 2004 265-276 p 274
91
No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute
impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem
assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um
evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento
Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees
racionaisrdquo235
Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo
vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo
registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado
aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias
adrdquo
Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser
argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de
construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra
uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)
esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236
Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da
pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre
abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir
uma determinada emoccedilatildeo
Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-
abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de
consequecircncia
Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico
satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o
sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo
do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as
disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237
Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um
235
ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional
attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational
manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236
ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why
they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)
MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal
2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237
ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et
affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248
92
estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um
ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238
Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas
alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais
atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de
delinquentes
Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as
consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o
sentimento de medo no discurso
Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo
tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente
melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de
uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto
eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria
normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees
Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a
respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos
grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento
antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos
do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava
significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica
produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto
Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees
justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica
Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do
fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa
passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas
por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram
algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um
pouco diminuir
238
Id ibid p 248-249
93
Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca
acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos
principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia
cognitiva
Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da
Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees
para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por
parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na
eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a
personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a
psicopatologia239
Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum
destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para
explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas
muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por
influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada
uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas
estatildeo atuantes240
Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de
interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241
Assim em
resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e
uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as
consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242
O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de
Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do
paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da
emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma
determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das
239
LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991
p 4-5 240
Id ibid p 5 241
SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela
JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York
Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242
ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it
in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo
(trad livre) LAZARUS op cit p 5
94
emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No
Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca
Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes
argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva
de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo
indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243
Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre
as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de
avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado
de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito
Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este
posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de
Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta
surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute
tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro
verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244
Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na
psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra
de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as
emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees
na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo
emotivo pudesse ser novamente abordado245
O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos
estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma
preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita
compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo
com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a
243
ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in
emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and
by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James
R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings
and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244
ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well
have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of
appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)
Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001
369-391 p 384 245
LAZARUS R Op cit p 14
95
estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva
tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos
da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a
estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda
mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)
derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos
originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores
para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees
Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais
detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa
investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer
Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo
iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a
nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos
factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando
alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os
avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha
alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente
significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246
Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do
processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por
exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)
podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou
entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para
resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do
silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de
problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim
pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma
reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir
interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas
por outras melhores247
246
LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions
New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247
Id ibid p 152-161
96
Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente
passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na
forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo
do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um
julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as
nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248
Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias
escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e
automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e
proposicional249
Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes
componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional
situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a
alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)
componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo
expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)
componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo
e sobre o nosso controle comportamental250
Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave
verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em
emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que
tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao
tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo
Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o
controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo
iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a
racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente
destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional
por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o
248
ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in
an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and
benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249
SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science
Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250
SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social
Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335
97
posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a
capacidade de ouvir a razatildeo
Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro
momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma
avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo
sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo
depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio
em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251
Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees
porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode
soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo
podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma
pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta
resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades
do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo
Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo
emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a
emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a
emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a
razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua
ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a
loucurardquo252
As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na
adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo
Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs
emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista
natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a
objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada
dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam
as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo
Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam
num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de
251
LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252
ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p
203
98
conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)
rejeiccedilatildeo253
Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila
de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes
e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social
contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a
melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes
Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento
como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero
de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja
muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma
poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos
da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra
imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento
econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de
risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido
em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam
Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que
teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e
conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute
atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para
solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no
mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave
situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de
racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a
tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia
o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos
filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos
superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o
desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido
controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio
comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo
253
Id ibid p 208-213
99
para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos
sociais254
Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que
leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo
dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da
argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber
psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais
254
ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation
in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed
organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus
optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)
SCHERER K Op cit 2011 p 331
100
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito
Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na
Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o
objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees
judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA
observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na
disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim
analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o
posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a
respeito deste assunto
Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das
emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais
baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a
sua relevacircncia
Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do
proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas
consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante
de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos
bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem
iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito
poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema
porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e
satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio
maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos
humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede
indenizaccedilatildeo moral e tantos outros
Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira
plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente
suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com
descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor
101
apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser
paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial
O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu
sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum
nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos
emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a
impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no
sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255
Eacute possiacutevel chamar a
tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-
emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate
teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute
virtualmente impensaacutevelrdquo256
A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo
do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de
danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que
algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em
consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a
racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em
consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257
Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste
em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade
isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas
possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres
invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum
prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258
E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela
vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves
mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa
255
ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad
livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford
Princeton University Press 2004 p 5 256
ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257
ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take
emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258
Id ibid p 6
102
reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave
vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de
difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente
termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas
aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos
Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo
poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum
mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo
deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles
natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam
nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a
uma profunda perda e depressatildeordquo259
Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia
Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica
coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a
felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens
materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por
exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a
sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria
na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude
Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute
eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos
quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a
detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos
assaltos etc)
Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem
experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute
bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a
compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se
dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos
filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que
259
ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything
outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and
depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6
103
pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de
nossas vidasrdquo260
Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma
abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos
Certamente natildeo
O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens
materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso
patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o
faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia
Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou
danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees
Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este
mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo
deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte
que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e
que forma elas tomam261
Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo
das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas
respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo
social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e
declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos
ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos
razotildees para estar zangado ou temerosordquo262
Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo
em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do
Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a
sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos
Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas
de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de
determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de
morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes
decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as
260
ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-
sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261
ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called
lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining
why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262
the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be
angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11
104
pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos
unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada
massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de
morte263
De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio
voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido
cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido
ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a
um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem
tempo suficiente para reflexatildeo264
No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa
atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo
Penal
Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face
de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser
argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente
admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos
concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer
tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265
Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da
psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees
passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo
resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas
emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa
esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente
irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as
compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer
raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo
embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas
263
Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no
significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances
of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the
possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It
treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as
members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of
deathrdquo Id ibid p 21 264
Id ibid p 37 265
ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any
attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56
105
ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266
ldquopodemos destacar quando a
emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto
separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267
No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de
observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees
satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel
avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em
determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida
puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees
adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute
aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese
Exemplificativamente a repugnacircncia268
eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na
vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute
relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza
por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina
os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo
suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo
asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis
contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar
provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina
diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens
organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc
Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia
invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem
constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado
e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa
repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em
primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas
condutas ilegaisrdquo269
266
Id ibid p 10-11 267
ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)
reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268
O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que
preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269
ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole
justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72
106
Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos
pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca
A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que
a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A
repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator
atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem
eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores
agravantes no fato delituoso270
Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das
pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as
novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da
repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento
juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado
por idecircntico motivo271
No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo
de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa
repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que
significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que
significa ldquofeder ter mau cheirordquo
Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os
seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para
isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de
repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos
impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute
preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de
repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272
Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para
elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de
contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do
decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa
animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais
270
Id ibid p 72 271
Id ibid p 72-73 272
Id ibid p 73
107
(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados
(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo
ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade
fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e
monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de
referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu
estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis
pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados
pela sujeira do corpo273
Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-
americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de
profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas
alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas
natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia
ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade
de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha
conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de
dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em
sociedade274
Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o
direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar
Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos
EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and
Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida
Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido
dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que
a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente
policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e
corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua
273
ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash
have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to
whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals
untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)
Id ibid p 108 274
Id ibid p 227-228
108
implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso
direito eacute estruturado e administradordquo275
Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz
fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo
possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney
Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de
que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de
leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de
emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica
O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera
demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees
juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila
em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas
conservadoras em geralrdquo276
Por outro lado exemplificativamente discute-se como o
medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo
mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus
companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da
legiacutetima defesa277
Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com
metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo
sistemaacutetica e coesa ao direito278
Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica
aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a
abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria
das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos
atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam
275
ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or
how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A
Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p
120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276
PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel
em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-
rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277
MARONEY T Op cit p 126 278
Id ibid p 126
109
os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria
influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279
Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees
participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que
uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo
da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de
criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado
32 Anaacutelise
Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees
parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo
procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados
pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo
presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos
Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas
sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta
por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo
dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise
iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso
objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso
Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo
selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma
determinada emoccedilatildeo
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo
Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ
2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a
constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional
O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais
das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio
279
ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how
emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the
assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131
110
de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor
da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre
outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225
da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio
A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a
ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida
resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim
Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio
A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos
direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns
arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o
enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da
mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar
sobre o ldquopneurdquo
A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura
cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca
que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias
negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de
consequecircncias negativasrdquo280
Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais
complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton
observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias
como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo
construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281
Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a
ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute
esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute
condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo
Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do
julgado
280
ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad
livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p
143 281
ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and
appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p
139
111
Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria
automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de
pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute
a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua
destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus
novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de
difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo
Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios
para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los
na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no
momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir
daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo
do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de
natureza ocupacionalrdquo
Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de
calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara
com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo
Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz
de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais
poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na
atmosfera
O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em
incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele
podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem
material poluente podem se apresentar com alto grau de
contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos
toacutexicos em especial dioxinas e furanos
Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o
consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na
formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas
o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que
produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases
toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em
contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o
fenocircmeno denominado chuva aacutecida
112
Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie
de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio
ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos
monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo
Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo
principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia
negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos
considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo
Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais
respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte
de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a
dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas
Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega
inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis
mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por
algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais
[]
Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os
riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a
dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a
presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo
descartados de forma a garantir a salubridade
A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos
pneus usados
A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana
sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em
especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de
criadouros de mosquitos
Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato
oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que
doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes
trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos
Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses
podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora
natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria
ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a
jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se
no risco de perda de vida de cidadatildeos
113
Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da
populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu
potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando
um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos
A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma
classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs
elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu
que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados
agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo
natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto
De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu
posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as
consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao
meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da
situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)
resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia
O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de
controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio
ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo
CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de
doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de
material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que
constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do
conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos
ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados
O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis
enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e
remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco
de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de
doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)
e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um
passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que
nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz
do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede
e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal
Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de
situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que
114
ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e
descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega
a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por
desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC
Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir
a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura
deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a
mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como
disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo
Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a
descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de
acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios
prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo
envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar
prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar
alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282
Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a
ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de
atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias
canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza
ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e
correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas
doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos
tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas
Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de
controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar
sentimentos de aliacutevio
Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou
ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma
dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de
argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo
282
Id ibid p 143
115
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo
Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos
Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da
antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos
juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que
regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados
como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da
liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da
CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e
Ricardo Lewandowski
Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso
Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio
expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo
Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a
avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja
responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe
uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa
um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283
Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como
a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no
discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado
especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto
Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos
anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento
autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute
imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa
No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo
(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente
danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao
feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao
283
Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166
A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar
tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo
116
caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida
ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo
No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente
culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima
(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e
geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia
(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem
totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo
avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena
de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo
A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de
sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal
procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam
provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e
especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o
feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo
[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de
outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum
acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica
[]
Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas
consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do
sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a
absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de
alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)
sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)
Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos
provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se
inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da
nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo
com uma exclamaccedilatildeo Confira-se
Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar
segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de
aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou
leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e
improdutivas do ponto de vista econocircmico e social
117
Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de
argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que
poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que
outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo
(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute
infligido sofrimento a outros seres inocentes
Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente
esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a
hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez
seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores
econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou
insustentaacutevel ter um filho
A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute
apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto
demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento
E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que
a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da
dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta
quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras
afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas
por questatildeo de grau
[]
Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das
incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos
diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de
malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o
aborto ainda em tais casos
Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a
praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em
nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas
anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute
merecedor desses sentimentos isto eacute o feto
[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto
sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do
sofrimento e da anguacutestia
[]
Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da
conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em
detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da
abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito
humano
118
Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes
as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade
estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana
autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que
era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante
Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo
sofrimento alheio284
Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma
avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo
modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal
situaccedilatildeo aflitiva285
Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo
entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e
as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do
feto
Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de
acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia
do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre
expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo
no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de
anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a
certeza do oacutebito
Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho
sofrimento a que se compara agrave tortura
O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma
espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do
miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave
tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa
ou dela exigido
Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado
diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias
Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de
emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do
diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo
demonstrada)
as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo
fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos
284
LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285
NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50
119
ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque
raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme
dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute
possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que
passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de
interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para
salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela
interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso
Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de
se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela
presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave
mulher
A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que
vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o
medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por
uma conduta que ela venha a adotar
[]
Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o
direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno
caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a
suplicar pela sua vida
[]
A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute
partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que
natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido
Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a
necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento
que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo
Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo
zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o
diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de
gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de
carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a
medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar
Mendes)
[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um
sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem
ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro
Luiz Fux)
O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber
enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute
desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura
120
Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo
cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir
qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui
embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima
[]
Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a
vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel
Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o
martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)
Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute
hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma
vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo
que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a
expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave
dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte
consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo
deste processo (ministro Celso de Mello)
[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura
fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se
institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera
crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra
Rosa Weber)
Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro
Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto
anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no
medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para
com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para
com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela
natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees
foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes
expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no
julgamento
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo
A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica
contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de
2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras
campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970
121
um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio
especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com
a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais
benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia
A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente
No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF
por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e
incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216
salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-
se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais
atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do
mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns
colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras
que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo
Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente
justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos
representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente
a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por
esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a
extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas
famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas
circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional
em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do
Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda
hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares
da identidade nacional
Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que
fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a
ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria
materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo
aos sentimentos do povo
Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da
identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja
a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por
122
exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286
Assim no
orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi
significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos
ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento
deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa
imagem
Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo
porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma
aposentadoria digna
Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre
as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito
anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior
puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil
pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores
daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram
rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento
digno para si e seus familiares
No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros
heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio
histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de
modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho
feitordquo
[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no
Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse
patrimocircnio histoacuterico nacional
Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em
especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por
meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por
tamanho feito
Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes
em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos
desportivos
O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme
porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que
286
ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our
own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the
family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271
123
calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de
encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo
reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que
passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando
o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila
chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de
reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia
Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute
desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro
tanto se orgulha
Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela
ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de
penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores
Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e
justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash
muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees
materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos
telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-
campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute
mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo
tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro
Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas
emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)
Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o
povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas
proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e
merecida homenagem feita pela lei
Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo
de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os
referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um
traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto
observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na
deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como
hoje em dia
Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das
conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as
empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo
brasileirardquo
124
Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da
eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o
Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser
campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes
empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que
se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por
conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo
brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento
Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o
ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais
tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo
Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros
Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor
Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro
Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e
verifique depois
[]
[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as
novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado
ao Brasil
Isso eacute o soft power Trata-se do soft power
[]
esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele
traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria
aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute
na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um
dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo
instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o
Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada
De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute
benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira
expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar
que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E
o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora
tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)
Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante
presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de
tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi
significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais
masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito
de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo
125
ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos
desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila
chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo
ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo
expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos
Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois
o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo
ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede
mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da
culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via
de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro
quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees
expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder
se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas
sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos
colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute
preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos
identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa
resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse
modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem
para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o
rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia
dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo
juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que
pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de
argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso
das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o
julgador
Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica
estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma
126
ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da
antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao
inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal
desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro
gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero
descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso
retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva
para ser assentido pelo puacuteblico
No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o
direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos
Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem
sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo
Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo
de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante
retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute
dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo
emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas
prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de
significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no
redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287
Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma
parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta
parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente
compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma
estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto
de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288
Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente
287
ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a
frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and
language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva
na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation
New York Cambridge 2014 288
ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of
lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J
Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies
vol3 2003 p 267
127
terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios
comunicacionais mais baacutesicos
Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma
questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as
nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja
constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se
deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei
atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos
com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de
sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica
emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas
vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de
normas fundado em emoccedilotildees
Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos
no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir
Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a
estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia
de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios
danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o
equiliacutebrio do meio-ambiente
Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em
discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser
evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008
diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos
pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a
visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental
Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava
embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos
argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os
ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos
constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente
ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo
em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as
128
presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-
se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de
atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo
Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que
o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam
perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao
medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as
consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um
dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-
prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a
longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289
No presente caso pode-se dizer que estava em
discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da
manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290
De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958
1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos
motivos a seguir desenvolvidos
Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens
puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante
ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)
e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da
Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera
homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que
destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de
dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial
Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o
uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional
bastante relevante
289
ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo
(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290
Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos
altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as
pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim
decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New
York Cambridge University Press 2005
129
Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos
emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos
motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo
Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco
alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira
problemaacutetica
No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do
Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a
referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser
observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo
Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo
de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido
Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes
nacionaisrdquo
Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como
esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por
expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo
Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo
estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva
a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas
especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites
juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito
O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF
Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo
civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das
culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do
processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas
pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo
desaparecerem
Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo
ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos
participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um
pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art
130
215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
popularesrsquordquo
O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute
constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou
em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave
conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I
e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e
viverrdquo
Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os
bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF
estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de
Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm
3551 de 4 de agosto de 2000291
Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de
natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica
Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo
de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal
de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar
sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de
capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito
Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)
etc292
A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash
UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os
seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo
enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo
baiano293
291
Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural
brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292
Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan
Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293
Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-
brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015
131
De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente
desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma
autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico
A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees
para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e
1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos
juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do
atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na
argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes
Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a
apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o
orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade
extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294
Desse modo ao dizer que as
conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de
que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento
patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo
proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de
gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso
O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas
que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958
e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros
foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante
De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do
chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra
problemaacutetico
Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante
cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros
natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais
e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada
pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para
programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila
294
LAZARUS R Op cit 1991 p 273
132
global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a
desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295
Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em
relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento
eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute
objeto de tal emoccedilatildeo296
Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo
primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a
ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito
ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da
compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica
Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma
quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o
conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou
simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297
No
que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da
escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a
capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298
Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de
recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa
etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no
Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio
de circularidade cultural por parte do Estado
Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio
financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava
proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais
ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves
seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a
isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da
295
ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts
toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of
vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296
Id ibid p 51 297
Id ibid p 346 298
NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge
University Press 2001 p 434
133
simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente
passam por iguais problemas financeiros
Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da
estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a
desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque
deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-
legislador
Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos
demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre
uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa
humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da
vida etc
Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia
argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento
da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a
estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram
expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza
Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que
portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)
antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica
Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes
aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido
diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava
estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana
agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e
psiacutequica
Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras
questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os
votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se
dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica
que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas
juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia
Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF
analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo
134
juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute
possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam
determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no
discurso juriacutedico
No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma
problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de
tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa
decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura
racional do juiz
Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos
da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria
da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo
que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes
emotivos
De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute
irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso
dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das
consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do
problema
Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente
relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado
quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais
argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem
precisem ser enfrentadas
Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo
humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque
sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas
Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo
porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo
coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse
que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-
mundanos
135
Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria
eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece
bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a
parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem
os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem
disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a
classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude
moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos
propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados
Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no
direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de
Adam Smith
Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do
julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou
reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo
da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos
a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor
avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que
seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299
O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela
fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por
padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser
um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a
forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo
adequado para a accedilatildeordquo300
A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar
munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a
imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica
que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de
regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar
299
SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p
XVI 300
ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up
common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for
actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII
136
num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes
de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo
Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens
sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo
afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo
semelhante
[]
Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos
suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em
seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que
ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo
que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301
Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento
julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que
informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas
ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que
pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302
Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do
agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os
sentimentos do agente e com a sua conduta
Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de
imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a
sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos
alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-
Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para
produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e
desapegadordquo303
Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria
consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute
exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais
301
ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in
which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the
imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we
enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form
some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether
unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302
ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the
suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303
ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral
judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna
Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge
University Press 2009 p 67
137
nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a
emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte
da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304
Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da
capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute
louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a
questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos
uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as
nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria
sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305
Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez
que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito
desintegrador sobre a sociedade306
Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as
inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera
individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente
por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se
tornar extremamente fanaacuteticas307
Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith
percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da
utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios
projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a
304
ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in
our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging
In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305
ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own
opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo
(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France
PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o
pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo
plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por
um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que
eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas
estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law
and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da
argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER
Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes
inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-
set 2013 pp 347-390 306
SMITH A Op cit p 101 307
FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152
138
capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que
esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as
emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-
se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente
relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas
desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar
que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de
normatividade comum na sociedade
A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de
se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a
conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites
139
4 CONCLUSAtildeO
No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves
emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e
da escola estoica
Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham
oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do
debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra
extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir
daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo
ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela
obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica
Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco
explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das
emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica
ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas
um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II
para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie
Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento
platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o
mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim
de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre
agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade
identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da
psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto
que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca
a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas
De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem
confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude
completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-
racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio
do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado
pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as
implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da
140
accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso
constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas
uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos
a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico
da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no
discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer
que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio
De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de
pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a
felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto
(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto
eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola
estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem
possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que
satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma
vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu
caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o
homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees
do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia
A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por
isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos
romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos
possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de
discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico
de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado
Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos
que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que
ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes
de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar
sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente
sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto
Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo
141
negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente
atual para a reflexatildeo do assunto
No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin
e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e
de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o
desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a
Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi
tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital
para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA
Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto
histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e
dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais
movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar
as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar
um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia
Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse
em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada
ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em
relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o
direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees
A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das
falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de
loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela
retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que
pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta
argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que
medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo
Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias
ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo
que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em
compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense
alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos
podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a
142
fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento
para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em
que satildeo utilizados
Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por
Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o
problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse
modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece
trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees
demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem
ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de
manipulaccedilotildees emocionais
Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade
profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao
nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de
avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo
Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e
estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto
sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo
avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu
surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da
razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo
Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas
atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao
fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem
acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como
os seres humanos decidem e argumentam
O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a
importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise
descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer
consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do
direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para
ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A
apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso
143
ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de
indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de
danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o
direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante
Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo
ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de
1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo
orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico
Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para
realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento
Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de
discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo
emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado
Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual
estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo
de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa
procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios
miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico
Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith
seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na
decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e
para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de
outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um
ambiente de normatividade comum na sociedade
Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o
julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em
evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um
discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas
Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees
natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no
estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e
do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais
e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente
com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a
144
forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e
argumentamos na praacutetica
De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as
emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao
tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes
criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu
peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a
emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo
precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de
avaliaccedilatildeo
Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das
emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo
juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio
145
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Para os meus pais
AGRADECIMENTOS
Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos
acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas
durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes
dois uacuteltimos anos Serei sempre grato
Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de
Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos
Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave
praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas
Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do
conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso
Martins
Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar
esta dissertaccedilatildeo
Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo
A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa
Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib
Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria
Emanuelle Pinheiro
Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio
Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade
(proveacuterbio antigo)
ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo
(Platatildeo Leis 775e)
7
Resumo
O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo
Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees
um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico
embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a
Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante
incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de
refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica
juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria
da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente
estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma
argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema
juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais
especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender
como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em
seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees
seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa
eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e
capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico
Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash
psicologia ndash linguiacutestica
8
Abstract
The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is
marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been
considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to
the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the
effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify
evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal
practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation
Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to
investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and
more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is
necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic
school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his
ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the
Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the
following generations It aims also search to understand the psychology of our time on
emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in
legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in
order to improve the quality of legal discourse
Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash
linguistic
9
Lista de abreviaturas e siglas
ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade
ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental
CF ndash Constituiccedilatildeo Federal
MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta
STF ndash Supremo Tribunal Federal
TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
10
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA 14
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE 57
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no
discurso 62
23 As emoccedilotildees falaciosas 68
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100
32 Anaacutelise 109
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125
4 CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145
11
INTRODUCcedilAtildeO
O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da
crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ
que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen
Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca
Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito
guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido
MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de
ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica
aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir
proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1
Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a
argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela
TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no
discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e
apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas
investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais
dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das
premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2
Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos
falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das
emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na
vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa
decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a
racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano
Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna
teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com
o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que
tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser
(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II
desta dissertaccedilatildeo
1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14
2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557
12
No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender
primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a
discussatildeo das emoccedilotildees
Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos
analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o
Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a
importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo
utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as
emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema
Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida
as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para
Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito
a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide
a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim
tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute
compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica
Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos
realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees
deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de
tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender
por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo
acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica
estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos
psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que
modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica
Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o
pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que
ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o
fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste
trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica
O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna
Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto
histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca
(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual
13
disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA
(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as
emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais
especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar
acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo
tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso
juriacutedico
No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e
II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito
tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de
nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no
Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico
No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo
II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de
argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas
aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das
emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados
procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre
as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a
melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate
qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees
14
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees
O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da
origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de
qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje
possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que
preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um
discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto
eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees
Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista
trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao
mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente
atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem
encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma
significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou
a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica
do Presidente Obamardquo3
Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar
localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito
Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram
legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de
Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha
inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de
palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode
significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4
Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre
Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos
Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa
3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University
Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the
disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9
15
feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae
sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc
assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5
Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente
utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em
puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e
demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute
ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E
posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada
caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com
o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso
Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A
palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para
demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a
opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a
refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da
verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do
retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os
outros
Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade
do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na
tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase
uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim
relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a
ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC
associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca
5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the
Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate
in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela
primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore
The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90
7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a
whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey
Princeton University Press 1994 p 11
16
pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica
entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9
Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados
pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o
poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza
incutir a compaixatildeo e o prazer10
Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida
puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas
proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11
Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica
a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir
quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a
origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que
supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade
Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a
fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a
mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e
tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime
ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a
organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala
em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e
de outras mateacuterias12
A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto
pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual
(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu
perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o
referencial teoacuterico sobre o assunto13
Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa
anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias
9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11
10 KENNEDY G Op cit p 25
11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in
honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard
Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12
CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p
49 13
GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in
WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p
30
17
tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual
apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14
Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte
retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das
fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para
Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax
realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15
Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para
assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso
eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente
valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo
da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter
melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos
entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade
Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela
restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a
organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de
retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores
jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade
Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e
Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de
Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico
governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia
de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero
O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria
uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte
cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como
ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo
com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16
Assim os personagens de Homero na Iliacuteada
14
CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press
1949 (II 6) p 171 15
COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16
ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker
situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4
18
apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a
retoacuterica em teoria
No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-
Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com
a retoacuterica
Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso
poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de
maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua
proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em
grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua
dicccedilatildeo17
Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas
do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador
demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a
gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador
Quando urdiam discursos e expunham ideias
Menelau era fluente e claro mas conciso
natildeo sendo um homem multipalavroso nem
dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo
Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se
de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo
mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem
para diante o inclinava) parecia um ruacutestico
algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila
Mas quando a voz do peito emitia poderosa
palavras como copos-de-neve no inverno
ningueacutem nenhum mortal o igualaria18
Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a
fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis
toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura
literaacuteria de Homero19
Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a
Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos
17
ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi
rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established
his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same
power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18
HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19
ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates
a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be
categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system
explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84
19
retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca
que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a
justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a
qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e
que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade
literaacuteria de outras obras antigas20
Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada
pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da
competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na
Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras
poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga
funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado
atraveacutes do discurso persuasivordquo 21
Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo
da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do
debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste
ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na
filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico
No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante
era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute
por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que
apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a
compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos
Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar
mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo
grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo
paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do
20
KNUDSEN R Op cit p 101 21
ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and
much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned
as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive
speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101
20
fenocircmeno emotivo22
Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza
o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo
de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas
Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute
chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo
de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado
Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo
qualidades23
Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados
em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em
funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo
modo24
Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido
por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio
sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de
ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25
De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute
algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na
Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito
disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas
vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp
natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas
de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26
Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar
que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica
Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas
agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que
22
RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ
Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de
Gruyter 2008 p 48 23
ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather
he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad
livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J
L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24
ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo
Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25
RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and
interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26
RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um
conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam
evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito
21
defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma
irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo
haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que
algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a
retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que
podem ser conhecidos pela razatildeordquo27
contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se
reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as
causas e os motivos do que faz
Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a
explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica
Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro
I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina
dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em
espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das
emoccedilotildees no campo da retoacuterica
Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de
uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em
instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto
de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou
natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que
satildeo os entimemas tais manuais nada tratam
O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que
ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de
retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria
terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de
outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a
palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir
do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental
(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato
Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como
um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo
27
ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by
reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York
Fordham University Press 1980 p 4
22
Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies
algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que
dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e
outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando
demostrar algo28
Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees
neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que
prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque
literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma
expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave
psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29
No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por
Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo
dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30
parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como
meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que
englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica
Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos
ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de
acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza
pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre
o assunto
Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica
inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado
do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas
aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar
em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo
muito pode ser comentado
Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas
para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I
Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados
argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute
deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria
28
ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29
KNUDSEN R Id ibid p 39 30
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13
23
necessaacuterio o uso de apelos emotivos31
Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu
criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos
(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32
A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo
do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma
forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem
durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre
emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma
visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o
ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada
haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que
resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33
Levando isso em
consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees
num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs
meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma
completa adaptaccedilatildeo do tema34
De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles
fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou
entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas
que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez
seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees
no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35
Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as
emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes
indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o
inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36
Ela no entanto registra que
em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o
discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees
31
FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to
greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32
Id ibid p 117 33
Id ibid p 118 34
Id ibid p 118 35
KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek
rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36
FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays
on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264
24
De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves
emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos
que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das
emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De
todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme
assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente
influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37
Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na
retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma
das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de
Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo
e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat
especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado
comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser
desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38
e Konstan chega a dizer que
curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas
obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica
Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre
emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em
um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo
(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre
retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de
Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia
ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as
emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de
oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo
filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)
Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome
verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte
de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou
especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39
37
HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL
Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38
COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)
Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39
ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not
ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for
example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side
there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different
passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in
other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The
Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if
that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on
25
Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II
Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no
ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de
fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto
com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de
julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa
determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios
de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento
(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial
O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes
eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte
maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma
os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza
ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo
culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40
Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees
vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar
afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de
algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir
uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem
utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser
humano
A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a
natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor
(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema
A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja
de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua
obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por
exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter
distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive
desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo
rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op
cit p 411 40
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84
26
preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das
suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio
natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia
perdida conforme se observa no seguinte trecho
SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos
comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a
desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor
PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel
SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a
natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se
devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais
difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41
Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns
aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo
beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia
de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita
submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo
bons e outros natildeo (51b)42
Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento
platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita
recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que
o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado
natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43
Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor
chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra
aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno
misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor
a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada
citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos
41
ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will
at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain
PROTARCHUS What you say is very plausible
SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we
have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the
shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER
John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p
419 42
FREDE D Op cit p 262 43
ARISTOTELES Op cit 2012 p 56
27
mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura
da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a
doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa
fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade
do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44
que eacute uma dor da alma (50a)45
Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees
opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha
benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no
referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum
momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra
ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem
emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem
fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi
moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia
Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo
dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que
eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles
encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um
mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males
passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)
A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de
bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na
possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu
turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece
fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um
ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor
diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos
provocam prazer (1370a)
Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a
benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas
envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em
44
A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio
alheio 45
PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440
28
mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no
empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46
De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs
aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que
geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou
o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem
saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no
seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental
Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um
mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera
pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de
fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda
sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou
acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo
que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do
medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o
medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta
categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com
instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que
provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes
quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de
injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em
relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande
penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente
relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos
temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num
intervalo temporal muito longiacutenquo
Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir
medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o
passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem
confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os
seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro
46
FREDE D Op cit p 271
29
lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo
grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como
certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio
estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir
confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as
pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo
Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de
compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)
continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os
ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma
teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de
experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um
determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva
Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de
representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras
gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo
mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia
eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da
palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade
A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem
percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois
problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos
ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o
semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se
identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar
de como as coisas satildeordquo47
Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade
especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes
da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis
Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa
emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48
(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam
47
ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL
M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell
Publishing 2006 p 334 48
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57
30
de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade
em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas
porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma
pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do
ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]
de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]
que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a
vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo
indiviacuteduo (1384a24)49
Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um
papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute
possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca
Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer
julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50
Assim em
conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo
mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um
estado emocional especiacutefico
Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a
evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo
elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar
quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro
da retoacuterica
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica
Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de
importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a
investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a
Nicocircmaco
49
GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University
Press 1988 p 26 50
ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen
aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche
anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56
31
Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que
seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima
tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido
uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana
Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no
Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da
espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as
pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51
(1095a17-19)
Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)
oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no
Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade
com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo
justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para
melhor compreender a mateacuteria em exame
Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo
(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte
natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e
por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser
humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja
natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta
uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de
parte apetitiva ou desiderativa
Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais
apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu
sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute
capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte
irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa
permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional
mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp
Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo
(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido
estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer
ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da
51
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40
32
alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma
que possui razatildeo em si mesma52
Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma
parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de
excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento
das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente
desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste
capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das
partes53
E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes
intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes
ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas
agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder
ouvir e obedecer agrave razatildeo
Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto
Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se
referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural
(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por
excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a
felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que
exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado
(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos
justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54
Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral
(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional
da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo
ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)
Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o
Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar
tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela
52
RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a
eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53
PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos
nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54
RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78
33
instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara
divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por
meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute
suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio
conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna
virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso
realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou
justo
Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza
(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas
como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo
permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis
(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a
regressotildees55
Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios
atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica
(1105a30-35)
Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que
desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da
alma
No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico
relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo
ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo
ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56
No Capiacutetulo
II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo
fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que
natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio
Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de
incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na
posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a
55
WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2013 p 69-70 56
ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68
34
sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados
devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57
Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e
o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute
afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa
condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa
com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa
posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir
devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem
natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir
de modo adequado as emoccedilotildees58
Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de
como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles
apresenta a doutrina do meio termo
Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior
ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores
menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a
noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia
Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois
extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos
pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute
excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute
exatamente o mesmo para todos os seres humanos59
Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no
distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto
mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso
quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de
sentir a emoccedilatildeo
Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina
tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os
casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido
compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam
57
Id ibid p 74 58
KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY
Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press
1980 p 104-105 59
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76
35
moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas
equidistantes dos dois extremos60
Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no
campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-
casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular
enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em
geralrdquo61
Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas
cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes
Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar
conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo
adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves
pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do
aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave
experiecircncia concreta
Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de
modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma
resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida
conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma
adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por
deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com
raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira
equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62
Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira
algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se
delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a
razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente
de acordo com as circunstacircncias
Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo
muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia
e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis
60
RAPP C 2010 p 416 61
Id ibid p 419 62
RAPP COp cit 2008 p 66
36
porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como
senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc
Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel
senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente
vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute
extensiacutevel
Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a
inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma
que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja
da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo
ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto
comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia
entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela
observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada
pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo
ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena
(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute
experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis
despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem
Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas
no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos
conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39
1388a30-37 983a1-5)
Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas
fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido
este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63
Eacute bem verdade que mochteria
tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida
obra aristoteacutelica64
mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das
mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65
63
LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics
a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64
ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65
Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term
used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from
morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non
moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used
37
Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu
eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na
conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo
relacionada ao cometimento de injusticcedilas
Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em
comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as
emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa
ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura
conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura
simplesmente por serem sentidasrdquo66
Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois
grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de
acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele
primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees
adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo
grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67
Desse modo de
acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do
indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz
Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo
O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a
vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma
racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos
perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou
brutas contra outras pessoas
Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso
de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional
porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral
permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas
synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES
Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago
University Press 2011 p 307 66
ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve
praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame
simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67
LEIGHTON SId ibid p 226
38
incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir
ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma
injusticcedila68
Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar
adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo
talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a
conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as
emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)
natildeo estaacute condizente com tal abordagem69
De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute
extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte
Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na
poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70
Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas
emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o
puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do
personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que
porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida
comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce
outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por
sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71
Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua
adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton
oferece duas respostas
Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do
haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que
Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa
pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja
68
STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his
moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos
Angeles California University Press 1996 p 298 69
RAPP COp cit 2008 p 66 70
LEIGHTON S Op cit p 226 71
Id ibid p 227
39
destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira
hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72
Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas
circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica
e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73
Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa
circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute
inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro
Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um
especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em
competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua
respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam
completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo
subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74
Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma
psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios
de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute
inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita
que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia
de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por
tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a
diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo
compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75
De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em
relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo
com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A
inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica
etc)
Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em
nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas
72
Id ibid p 230 73
ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their
placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74
Id ibid p 231-232 75
Id ibid p 231
40
jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue
explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes
entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave
natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara
para utilizar a inveja na retoacutericardquo76
Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico
anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o
problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica
Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no
Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por
isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica
difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo
Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em
relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema
enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as
emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo
em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos
reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar
preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas
Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia
Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica
aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as
emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o
indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum
embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente
isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade
adequada agrave situaccedilatildeo experenciada
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica
Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica
aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave
76
ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but
remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235
41
obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo
pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de
percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica
estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262
aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do
estoicismo
Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange
cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras
inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola
se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio
de comentaacuterios de seus adversaacuterios77
Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante
pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na
verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que
incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam
fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da
loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute
incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como
filoacutesofordquo78
Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar
que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que
a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial
periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por
Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que
coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide
com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco
Aureacutelio79
A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento
do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios
77
TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas
heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78
ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN
Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school
from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics
Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers
trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79
SEDLEY D Op cit p 7
42
(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes
disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo
tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais
reflexos sobre a retoacuterica estoica
Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o
impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute
difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema
a que ele compara a um edifiacutecio
Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais
finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela
tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada
Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior
desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema
em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe
faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80
Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar
primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio
que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto
estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza
reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus
opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas
vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada
corretamenterdquo81
Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado
como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo
considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz
Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar
porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e
outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em
conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da
possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e
80
ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured
product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows
from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal
of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo
(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University
Press 2004(III74) p 88 81
BRENNAN T Op cit p 120
43
natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez
dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do
que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos
indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa
forma satildeo menos preferiacuteveis
Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua
incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave
contingecircncia82
Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio
quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque
podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal
possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o
instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver
Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento
pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte
entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve
alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)
Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza
nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em
tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O
verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83
Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e
infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um
estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro
objeto externo84
Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a
aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude
como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela
razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo
imutaacutevel[]rdquo85
A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a
82
Id ibid p 122 83
ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part
of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of
dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor
wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful
Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion
ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84
LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987
p 377 85
ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-
faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable
44
essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a
razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86
Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui
todas as virtudes87
Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo
eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo
praticadas de acordo com todas elas88
Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza
que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza
significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas
permeia a reta razatildeo89
A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres
humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90
Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio
O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo
correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra
a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho
ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma
faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma
conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo
apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91
Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas
atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica
especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso
Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder
aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto
desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com
reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 378 86
Id ibid p 383 87
STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 379 88
PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 379 89
LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p
395 90
SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 395 91
ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with
nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in
his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 398
45
os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do
termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92
sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93
quando atraveacutes da
visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma
modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um
ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e
passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela
num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo
agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o
mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94
Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz
respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei
uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo
verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este
respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso
Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da
epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela
garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende
precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto
Empiacuterico
A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute
marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo
que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os
estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os
objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de
forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes
fatores como atributo95
92
PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 238 93
AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 237 94
ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying
lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo
(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95
ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in
accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold
that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a
craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against
the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 243
46
Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que
natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte
ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu
objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto
impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir
do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo
precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta
impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96
E isso
soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de
razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para
realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97
Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees
eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por
meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco
reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que
para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um
assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas
condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98
Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo
apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99
Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu
conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo
caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100
Uma
das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as
pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo
temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso
possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101
96
ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this
impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit
p 68 97
LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98
BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99
CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 254 100
STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophershellip p 256 101
BRENNAN T Op cit p 72-73
47
Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e
pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes
que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente
um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um
assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102
Quando vejo um ramalhete de flores
amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar
no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para
realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua
vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de
opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e
especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem
tanto um quanto o outrordquo103
Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar
compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as
emoccedilotildees (apatheia)
Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os
estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo
varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para
a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de
passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da
portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador
muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao
reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e
estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os
problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar
a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de
doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo
utiliza o termo104
Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo
afecccedilatildeo105
Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com
102
GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103
ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while
the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104
TIELEMAN T Op cit p 15-16 105
BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In
LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein
BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93
48
Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o
termo pathos106
Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente
sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de
harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo
Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute
excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute
irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107
Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair
primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso
qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve
Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute
contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra
o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica
porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as
emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos
comandos do logos
Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender
esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto
anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte
natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e
obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude
(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na
eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas
de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente
afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente
para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz
Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na
filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma
estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se
entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos
estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os
106
GRAVER M Op cit p 14-15 107
ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of
reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS
2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 410
49
homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108
Dessa forma as
emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos
fundadores estoicos
Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se
acomodam emoccedilotildees especiacuteficas
Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que
devemos persegui-la
Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que
devemos evitaacute-la
Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que
devemos ficar contentes com isso
Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que
devemos ficar abatidos com isso109
Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio
temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo
direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo
que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um
objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor
negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um
assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo
Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes
emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No
gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico
No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo
anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110
Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos
(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao
falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim
quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios
108
ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the
sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109
ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it
Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the
opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the
opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad
livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110
CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago
Press 2002 (416) p 45
50
de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por
que isso ocorre
Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111
e por assim serem
atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza
amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em
direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda
eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No
medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na
verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente
atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam
sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante
possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112
Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de
perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme
resume Crisipo
A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que
satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]
estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a
atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos
empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113
Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico
porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as
caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi
construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)
que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que
Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso
tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia
alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as
propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional
111
LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112
BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113
ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way
of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out
reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad
livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the
ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press
2001 p 370
51
com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de
bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)
Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal
futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de
que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo
experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que
alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114
Quanto agraves emoccedilotildees em
espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave
cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por
fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave
dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum
eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica
coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente
que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome
da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um
sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de
indiferentes
Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde
que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se
arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo
ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a
alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento
involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e
por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do
homem inferior
Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o
saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e
passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)
parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a
retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de
maneira bastante marcante da praacutetica do orador
114
BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op
cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221
52
Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de
uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de
controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das
emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua
vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na
construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida
comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de
acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo
da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute
instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas
No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de
Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio
aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi
preservado115
Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo
ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas
bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116
Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos
como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de
falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a
parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o
saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite
diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de
modo a nunca cair em truques argumentativos117
Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a
dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados
uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo
aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a
retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos
115
LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116
ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38
1988 p 393 117
LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48
53
filoacutesofos118
Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a
uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119
E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os
cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos
algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo
apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer
finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e
outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para
bem falar no sentido de falar corretamente
Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro
problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse
sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo
muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons
arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se
o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120
Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na
verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo
que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na
assembleia popular121
Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco
virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro
gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada
de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do
que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo
de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122
Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta
num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem
118
CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119
CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University
Press 1942 (III 65) p66 120
ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule
and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to
oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit
1962 (118) p 107 121
CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122
LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396
54
aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um
oradorrdquo123
Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva
para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a
retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador
tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos
excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos
destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico
natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua
ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124
Eacute certo que o saacutebio
experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso
no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo
Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil
encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por
retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave
persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo
existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa
usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu
respeitordquo125
Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de
Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126
Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha
o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto
de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se
guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato
Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era
Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom
para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com
123
ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo
(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard
University Press 1942 (159) p 313 124
ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or
by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411
Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125
ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)
because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p
426 126
CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91
55
os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria
como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste
seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia
ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127
Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica
finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas
fontes da Antiguidade
De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua
eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte
articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois
campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade
da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No
Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua
funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que
significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias
Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois
para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade
strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees
adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas
realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito
menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador
De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido
de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos
seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128
e atingir uma felicidade
autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por
meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a
que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo
percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico
invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque
estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica
127
CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128
ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the
world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210
56
natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e
coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico
Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico
exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram
levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar
das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo
loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as
emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema
filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel
sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129
129
SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149
57
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo
No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um
panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar
que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de
uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi
neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se
refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de
que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado
emocional do sujeito
Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva
investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash
MTA130
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de
Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do
Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a
relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de
julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III
momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees
do Supremo Tribunal Federal - STF
Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma
contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento
humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus
problemas de eacutepoca
Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso
caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica
sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha
agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o
seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos
130
Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da
Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof
WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation
Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30
58
seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por
ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de
reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo
Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que
natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma
especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato
com a massa a propaganda
Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma
informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo
desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de
descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande
nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a
propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da
modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e
de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados
meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131
Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo
absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a
integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de
sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um
ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos
compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados
comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo
conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo
e relaxamento evitando o cansaccedilo132
Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra
e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre
a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis
Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma
abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da
Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa
eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo
nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por
131
KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave
Macmillan 2005 p 1 132
Id ibid p 2
59
estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar
a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era
particularmente destacada133
Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato
efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias
disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez
que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance
limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar
uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134
Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de
irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia
espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da
propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e
de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo
eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda
mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios
simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135
Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos
sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos
grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das
emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais
atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136
Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda
discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles
enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves
emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo
valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille
133
ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo
emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation
for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for
methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and
mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134
ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner
New York Vintage Book 1973 p 9 135
Id ibid p 201-206 136
ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through
emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204
60
und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a
instruir os seus propagandistas
No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar
a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A
propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e
para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista
Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos
membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias
Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante
da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos
objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil
sem efeito
[]
A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa
natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na
transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de
que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa
transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova
maneira nacional de pensar137
Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)
Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no
intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda
possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir
convincentemente as massas
Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno
acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na
medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto
O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas
emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente
ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se
deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus
objetivos138
137
ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the
foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect
[hellip]
National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks
of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a
new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after
an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und
Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138
ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular
importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as
the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not
coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of
propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In
61
Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937
direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a
melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes
alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam
apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de
argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos
talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo
quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de
mundordquo139
Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem
novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles
ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior
das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido
Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do
coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso
pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do
partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O
convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional
O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional
socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de
seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele
compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele
explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem
Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo
alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os
partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas
pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as
sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140
Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-
propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139
ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and
utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart
or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249
Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de
janeiro de 2015 140
ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the
understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he
understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more
receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people
by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won
by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to
62
Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico
com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor
candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos
totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso
Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa
violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes
totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos
sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma
ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141
Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um
repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim
de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o
surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as
emoccedilotildees no discurso
Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e
avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a
investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca
A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo
tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da
argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica
em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma
abordagem teoacuterica proacutepria
Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das
emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque
natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a
primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem
call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141
PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo
Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142
Id ibid p 21
63
temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que
Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA
Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA
satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente
influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143
Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute
realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da
Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144
Assim enquanto o esquema argumentativo
de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse
modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados
tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees
Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o
pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da
MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e
justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico
Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia
que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do
trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo
entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade
(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua
inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos
oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme
expotildee Roesler
A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de
Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a
sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de
ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada
para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar
caracteriacutesticas fundamentais145
Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um
termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o
143
RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144
ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on
something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145
ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade
Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23
64
qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude
questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e
supostamente emprestaacutevel ao direito146
Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber
juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se
funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo
germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que
enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se
apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir
agrave discussatildeo dos problemasrdquo147
A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se
orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de
problemas se revela mais adequada ao direito
Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode
afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade
de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual
o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos
pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas
confere-lhe a estrutura fundamental148
Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e
demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da
retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a
argumentaccedilatildeo juriacutedica149
Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor
natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro
lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da
relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150
146
ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica
Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da
UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147
VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos
juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008
p 39 148
ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149
Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo
Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm
10 2015 p 26-48 150
A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes
de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do
direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo
Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf
65
De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin
realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da
argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira
como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151
Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com
o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da
loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152
Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma
conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute
uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia
(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo
argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por
vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)
que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a
conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar
sua autoridade geral
Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que
este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute
possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As
noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a
um esquema comunicativo153
E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da
dialeacutetica do que da retoacuterica
Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica
eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a
Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao
racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo
de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da
a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise
retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151
TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes
2006 p 2 152
BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria
Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153
MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat
parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73
66
retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do
raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154
Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando
expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai
atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto
escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da
retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de
ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155
Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave
noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional
da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma
argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma
argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao
argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo
das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta
independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156
Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da
retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa
pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)
referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias
Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as
emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo
elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos
ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este
uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar
sinceridade157
Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como
perturbadoras da accedilatildeo158
o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma
compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo
154
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica
trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155
Id ibid p 7 156
Id ibid p 35 157
PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du
discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158
Id ibid p 49
67
podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a
ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159
Em outra parte da obra
anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem
apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu
discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar
suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160
Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do
seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na
argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta
uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo
nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser
confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que
habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como
valorrdquo161
A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa
das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica
antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se
trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto
espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo
da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece
estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar
Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima
estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em
que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um
interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam
vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua
obra162
Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor
num campo de reflexatildeo sobre o logos
159
PERELMAN C Op cit p 518 160
PERELMAN C Op cit p 27 161
PERELMAN COp cit p 539 162
PERELMAN C Op cit p 5
68
23 As emoccedilotildees falaciosas
Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo
acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico
a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees
As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo
Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente
relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da
argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um
teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163
Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer
criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse
modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso
passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras
palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na
argumentaccedilatildeo164
Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo
ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165
Falaacutecia portanto deriva do termo
em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que
significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a
ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um
truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166
Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua
Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um
argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente
uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto
163
ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the
scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart
MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the
pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164
EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p
25 165
HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166
WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State
University Press 1992 p 17
69
diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a
conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167
Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de
criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou
ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem
aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual
estado de arte da argumentaccedilatildeo168
Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que
particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo
Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento
Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica
para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu
pensamento
Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso
tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os
homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso
para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-
los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo
O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes
aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um
nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo
de autoridade
[]
Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam
Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente
utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos
assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o
adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que
designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam
Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias
extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute
conhecido sob o nome de argumentum ad hominem
O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento
e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um
dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de
argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a
verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o
conhecimento169
167
RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168
Id ibid p 27 169
ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments
that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to
awe them as to silence their opposition
The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause
has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority
70
Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam
ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter
ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento
exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um
modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras
de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer
comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs
Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad
hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era
conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca
que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho
das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees
contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad
hominem solvunt []rdquo170
Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad
verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo
chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias
Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao
argumentum ad rem171
Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute
possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao
alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad
hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras
fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad
rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad
judicium
Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their
judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a
proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam
A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is
already known under the name of argumentum ad hominem
he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from
any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all
the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE
John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170
ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)
HAMBLIN C Op cit p 161-162 171
WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80
71
Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser
substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo
denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa
apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave
modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves
caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias
objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das
pessoas172
Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas
ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo
Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila
que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito
de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo
de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute
considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias
sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173
Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo
o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as
falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal
contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas
a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard
da disciplina174
Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma
abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso
trabalho destacamos as seguintes falaacutecias
(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam
(ii) apelo ao medo argumentum ad metum
(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium
(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam
(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam
172
WALTON D Op cit p 4-9 173
ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic
of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same
old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174
EEMEREN F Op cit 2009 p 12
72
(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam
(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones
Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad
ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave
supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por
repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo
ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175
Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I
agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe
faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad
passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo
loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos
Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua
verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo
usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento
para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a
nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees
[]
6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum
toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes
para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute
chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176
Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem
podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido
de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no
sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do
discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento
parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees
eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para
distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso
175
HAMBLIN C Op cit p 41 176
ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from
the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our
Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an
argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the
hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones
an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry
after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242
73
Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o
que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do
discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo
consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos
negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na
linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas
conexotildees entre essas coisas
Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das
emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da
argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como
um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da
teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las
como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus
atoresrdquo177
O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a
argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178
Assim pathos parece
retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de
patoloacutegico de sofrimento
Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na
classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma
grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu
constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente
vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de
sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica
ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito
pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179
Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia
das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard
da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em
que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias
177
ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions
mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord
expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178
Id ibid p 63 179
ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et
finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66
74
Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo
consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para
elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees
restou significativamente empobrecido
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso
Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das
falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi
preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas
Walton
Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das
falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no
Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo
canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do
domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e
aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a
discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso
das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos
expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense
Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo
apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio
Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora
do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se
sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da
argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada
inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180
Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque
decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas
A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as
180
ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory
inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69
75
emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em
sociedade181
Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em
que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se
cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por
exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma
alegaccedilatildeo182
De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por
entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha
cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183
Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais
argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca
relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus
participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para
bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem
uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo
sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha
adequadamente o ocircnus da prova184
Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente
quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a
irrelevacircncia do argumentordquo185
Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu
estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da
argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos
corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186
o autor propotildee o estudo de quatro
ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de
aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum
ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad
hominem
181
Id ibid p 69 182
Id ibid p 68 183
Id ibid p 1 184
Id ibid p 1-2 e 28 185
ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an
argumentrdquo Id ibid p 2 186
Id ibid p 28
76
Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de
estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo
agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute
preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria
em comentaacuterio
Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute
estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo
Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia
alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187
Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim
comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo
em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma
coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado
idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188
e que se mostra um recurso uacutetil para que o
diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim
Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se
(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como
premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida
(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189
(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma
particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia
suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190
(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em
cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em
outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do
investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda
que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste
187
ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a
collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188
ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id
ibid p 20 189
WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon
University of Toronto Press 1998 p 37-40 190
ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is
insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70
77
em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos
tipos de bens ou outros itens de valor191
e
(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte
reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si
mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo
cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um
confronto fiacutesico192
Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita
compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)
um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo
criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os
argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo
persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e
contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos
de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser
legiacutetimas193
Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a
noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do
discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim
mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as
premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um
modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir
que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194
Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo
do apelo agrave compaixatildeo
Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a
abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a
sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195
191
Id ibid p 100 192
WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193
Id ibid p 23-24 194
ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even
if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular
premisesrdquo Id ibid p 57 195
Id ibid p 106
78
Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende
muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por
exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas
facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser
excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196
Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do
Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou
fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr
Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo
considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que
Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e
mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo
canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do
Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado
de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o
deputado197
Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de
enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico
Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto
vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso
questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto
realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte
de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198
Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em
relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da
tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso
atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim
considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns
196
Id ibid p 106-107 197
ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his
advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad
livre) Id ibid p 111 198
Id ibid p 111
79
destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute
adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado
Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar
amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o
entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose
perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra
provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de
condescendecircnciardquo199
Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave
simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa
Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-
se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos
bem como restringir a sua publicidade
Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei
o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre
todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes
relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes
que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que
rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos
ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo
familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco
dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200
Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo
eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser
um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de
doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores
de tabaco
Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para
argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do
projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento
utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como
199
ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo
for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200
ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What
about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the
legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124
80
um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais
negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo
causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio
de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute
Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso
visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema
unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo
Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para
avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo
(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo
(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute
aberto a questionamento criacutetico
(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa
investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma
proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e
(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os
fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201
Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste
em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o
seguinte checklist com sete fatores
(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute
adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo
(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no
caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute
apenas algo secundaacuterio
(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio
reagir energeticamente
(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo
secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso
(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de
argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados
201
Id ibid p 140
81
(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam
quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo
com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e
(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo
de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do
caso202
De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton
diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso
defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode
interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203
Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo
uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus
efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus
destinataacuterios204
Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a
credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar
prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se
trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas
hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da
pessoa205
Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a
considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de
modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de
conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206
O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra
pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta
verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que
acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo
eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e
202
Id ibid p 141-142 203
Id ibid p 193 204
Id ibid p p 259-260 205
Id ibid p 195-196 206
Id ibid p 193-194
82
o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207
Neste caso o
uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo
criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208
Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral
ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir
contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente
presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os
estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para
classificaacute-lo como falaacuteciardquo209
Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo
de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de
relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o
contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela
qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a
adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa
negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210
Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os
comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio
Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a
respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute
possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum
espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211
Neste
uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de
pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212
De outra parte eacute possiacutevel pensar
que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em
assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213
207
ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic
dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo
verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208
Id ibid p 216 209
ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to
force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid
p 78 210
Id ibid p 159 211
Id ibid p 67 212
Id ibid p 2 213
Id ibid p 67
83
Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na
filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre
tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute
proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica
aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que
compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas
adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento
certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as
emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias
Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na
argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas
Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou
inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo
para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem
empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo
Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e
estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e
deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como
se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer
circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que
merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o
argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida
adequada agrave situaccedilatildeo214
Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e
principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um
exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em
assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais
tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques
pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da
argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215
214
Id ibid p 68 215
ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human
reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64
84
Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na
argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver
complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo
emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns
aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que
natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso
De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton
fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees
importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De
que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no
objetivo do proacuteximo toacutepico
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees
Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica
recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre
tenha sido assim
Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec
XX foi miacutenima216
Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em
1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva
sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia
secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo
categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que
partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo
parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217
Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo
XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar
informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos
estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto
216
ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe
siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique
(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217
ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad
livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace
and Company 1921 p 40
85
aquela de descrever eventosrdquo218
Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos
entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores
concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute
que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas
tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica
Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a
funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela
entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por
inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute
variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219
Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado
nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso
Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a
ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um
dos representantes de tal escola
Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma
teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar
nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo
com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance
Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos
dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma
vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens
descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira
mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem
melhores insights prescritivos
Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao
exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu
trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir
o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso
apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo
218
ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor
SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-
26 p9 219
ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective
functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system
Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad
livre) Id ibid p 22
86
teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em
comentaacuterio220
Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees
efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de
especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura
suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio
do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver
discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo
da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente
sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221
Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada
por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada
Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio
se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes
problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das
caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo
(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma
emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)
natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222
Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma
emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo
algum animal etc) 223
Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute
que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto
pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo
predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que
designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224
220
MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques
Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221
ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion
effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id
ibid p 118 222
Id ibid p 43 223
Id ibid p 43 224
ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee
ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46
87
Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que
dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias
lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)
um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar
diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)
complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de
facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo
ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos
explodissem de raivardquo)225
Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente
observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua
interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a
presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas
que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma
interpretaccedilatildeo indicialrdquo226
Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo
emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma
entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de
indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a
presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do
primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face
da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute
causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227
Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de
processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios
tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados
e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228
Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes
para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam
ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender
225
Id ibid p 49-51 226
ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves
heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227
Id ibid p 64 228
Id ibid p 66-67
88
de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por
exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a
exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que
por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo
(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma
relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as
emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229
Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo
suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um
especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os
tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso
espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo
Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na
psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com
mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a
avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada
agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar
uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais
Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o
contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a
realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia
de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230
Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da
anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos
numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do
discursordquo231
Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O
esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e
assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)
229
Id ibid p 75-95 230
Id ibid p 106-112 231
ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de
sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112
89
criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia
cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin
(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso
como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas
(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no
tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos
ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo
(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso
descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute
enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento
(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa
para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou
na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de
um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a
um agente
(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo
emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade
de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua
controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria
(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com
outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo
Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da
aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de
demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um
homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada
parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa
situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto
(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute
compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo
a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da
incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional
familiar amigos etc)232
232
Id ibid p 115-119
90
Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente
designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e
suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo
inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim
de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma
esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere
a sua presenccedila233
Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num
mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma
emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione
Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso
registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que
vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo
atualmente existente entre logos e pathos
Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e
emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter
emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo
oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que
caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute
racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234
Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo
das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees
foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a
disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que
tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo
temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees
como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser
suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo
233
Id ibid p 119-120 234
ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo
practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo
(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In
WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins
Publishing Company 2004 265-276 p 274
91
No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute
impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem
assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um
evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento
Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees
racionaisrdquo235
Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo
vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo
registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado
aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias
adrdquo
Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser
argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de
construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra
uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)
esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236
Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da
pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre
abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir
uma determinada emoccedilatildeo
Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-
abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de
consequecircncia
Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico
satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o
sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo
do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as
disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237
Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um
235
ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional
attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational
manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236
ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why
they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)
MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal
2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237
ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et
affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248
92
estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um
ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238
Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas
alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais
atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de
delinquentes
Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as
consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o
sentimento de medo no discurso
Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo
tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente
melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de
uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto
eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria
normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees
Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a
respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos
grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento
antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos
do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava
significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica
produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto
Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees
justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica
Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do
fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa
passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas
por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram
algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um
pouco diminuir
238
Id ibid p 248-249
93
Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca
acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos
principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia
cognitiva
Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da
Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees
para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por
parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na
eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a
personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a
psicopatologia239
Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum
destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para
explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas
muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por
influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada
uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas
estatildeo atuantes240
Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de
interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241
Assim em
resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e
uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as
consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242
O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de
Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do
paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da
emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma
determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das
239
LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991
p 4-5 240
Id ibid p 5 241
SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela
JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York
Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242
ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it
in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo
(trad livre) LAZARUS op cit p 5
94
emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No
Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca
Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes
argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva
de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo
indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243
Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre
as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de
avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado
de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito
Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este
posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de
Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta
surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute
tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro
verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244
Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na
psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra
de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as
emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees
na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo
emotivo pudesse ser novamente abordado245
O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos
estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma
preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita
compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo
com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a
243
ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in
emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and
by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James
R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings
and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244
ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well
have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of
appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)
Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001
369-391 p 384 245
LAZARUS R Op cit p 14
95
estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva
tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos
da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a
estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda
mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)
derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos
originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores
para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees
Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais
detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa
investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer
Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo
iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a
nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos
factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando
alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os
avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha
alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente
significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246
Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do
processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por
exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)
podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou
entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para
resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do
silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de
problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim
pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma
reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir
interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas
por outras melhores247
246
LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions
New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247
Id ibid p 152-161
96
Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente
passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na
forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo
do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um
julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as
nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248
Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias
escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e
automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e
proposicional249
Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes
componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional
situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a
alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)
componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo
expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)
componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo
e sobre o nosso controle comportamental250
Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave
verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em
emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que
tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao
tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo
Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o
controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo
iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a
racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente
destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional
por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o
248
ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in
an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and
benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249
SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science
Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250
SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social
Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335
97
posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a
capacidade de ouvir a razatildeo
Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro
momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma
avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo
sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo
depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio
em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251
Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees
porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode
soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo
podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma
pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta
resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades
do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo
Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo
emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a
emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a
emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a
razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua
ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a
loucurardquo252
As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na
adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo
Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs
emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista
natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a
objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada
dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam
as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo
Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam
num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de
251
LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252
ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p
203
98
conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)
rejeiccedilatildeo253
Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila
de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes
e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social
contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a
melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes
Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento
como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero
de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja
muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma
poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos
da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra
imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento
econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de
risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido
em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam
Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que
teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e
conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute
atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para
solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no
mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave
situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de
racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a
tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia
o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos
filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos
superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o
desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido
controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio
comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo
253
Id ibid p 208-213
99
para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos
sociais254
Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que
leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo
dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da
argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber
psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais
254
ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation
in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed
organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus
optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)
SCHERER K Op cit 2011 p 331
100
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito
Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na
Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o
objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees
judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA
observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na
disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim
analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o
posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a
respeito deste assunto
Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das
emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais
baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a
sua relevacircncia
Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do
proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas
consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante
de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos
bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem
iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito
poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema
porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e
satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio
maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos
humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede
indenizaccedilatildeo moral e tantos outros
Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira
plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente
suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com
descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor
101
apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser
paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial
O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu
sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum
nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos
emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a
impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no
sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255
Eacute possiacutevel chamar a
tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-
emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate
teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute
virtualmente impensaacutevelrdquo256
A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo
do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de
danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que
algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em
consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a
racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em
consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257
Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste
em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade
isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas
possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres
invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum
prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258
E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela
vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves
mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa
255
ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad
livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford
Princeton University Press 2004 p 5 256
ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257
ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take
emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258
Id ibid p 6
102
reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave
vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de
difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente
termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas
aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos
Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo
poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum
mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo
deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles
natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam
nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a
uma profunda perda e depressatildeordquo259
Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia
Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica
coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a
felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens
materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por
exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a
sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria
na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude
Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute
eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos
quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a
detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos
assaltos etc)
Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem
experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute
bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a
compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se
dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos
filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que
259
ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything
outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and
depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6
103
pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de
nossas vidasrdquo260
Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma
abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos
Certamente natildeo
O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens
materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso
patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o
faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia
Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou
danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees
Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este
mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo
deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte
que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e
que forma elas tomam261
Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo
das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas
respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo
social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e
declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos
ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos
razotildees para estar zangado ou temerosordquo262
Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo
em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do
Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a
sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos
Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas
de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de
determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de
morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes
decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as
260
ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-
sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261
ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called
lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining
why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262
the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be
angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11
104
pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos
unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada
massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de
morte263
De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio
voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido
cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido
ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a
um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem
tempo suficiente para reflexatildeo264
No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa
atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo
Penal
Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face
de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser
argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente
admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos
concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer
tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265
Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da
psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees
passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo
resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas
emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa
esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente
irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as
compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer
raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo
embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas
263
Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no
significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances
of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the
possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It
treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as
members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of
deathrdquo Id ibid p 21 264
Id ibid p 37 265
ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any
attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56
105
ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266
ldquopodemos destacar quando a
emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto
separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267
No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de
observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees
satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel
avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em
determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida
puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees
adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute
aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese
Exemplificativamente a repugnacircncia268
eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na
vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute
relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza
por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina
os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo
suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo
asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis
contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar
provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina
diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens
organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc
Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia
invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem
constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado
e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa
repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em
primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas
condutas ilegaisrdquo269
266
Id ibid p 10-11 267
ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)
reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268
O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que
preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269
ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole
justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72
106
Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos
pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca
A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que
a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A
repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator
atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem
eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores
agravantes no fato delituoso270
Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das
pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as
novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da
repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento
juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado
por idecircntico motivo271
No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo
de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa
repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que
significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que
significa ldquofeder ter mau cheirordquo
Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os
seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para
isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de
repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos
impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute
preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de
repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272
Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para
elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de
contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do
decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa
animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais
270
Id ibid p 72 271
Id ibid p 72-73 272
Id ibid p 73
107
(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados
(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo
ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade
fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e
monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de
referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu
estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis
pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados
pela sujeira do corpo273
Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-
americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de
profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas
alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas
natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia
ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade
de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha
conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de
dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em
sociedade274
Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o
direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar
Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos
EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and
Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida
Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido
dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que
a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente
policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e
corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua
273
ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash
have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to
whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals
untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)
Id ibid p 108 274
Id ibid p 227-228
108
implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso
direito eacute estruturado e administradordquo275
Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz
fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo
possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney
Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de
que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de
leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de
emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica
O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera
demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees
juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila
em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas
conservadoras em geralrdquo276
Por outro lado exemplificativamente discute-se como o
medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo
mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus
companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da
legiacutetima defesa277
Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com
metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo
sistemaacutetica e coesa ao direito278
Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica
aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a
abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria
das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos
atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam
275
ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or
how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A
Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p
120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276
PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel
em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-
rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277
MARONEY T Op cit p 126 278
Id ibid p 126
109
os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria
influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279
Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees
participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que
uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo
da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de
criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado
32 Anaacutelise
Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees
parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo
procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados
pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo
presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos
Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas
sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta
por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo
dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise
iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso
objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso
Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo
selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma
determinada emoccedilatildeo
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo
Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ
2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a
constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional
O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais
das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio
279
ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how
emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the
assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131
110
de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor
da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre
outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225
da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio
A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a
ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida
resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim
Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio
A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos
direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns
arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o
enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da
mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar
sobre o ldquopneurdquo
A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura
cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca
que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias
negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de
consequecircncias negativasrdquo280
Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais
complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton
observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias
como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo
construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281
Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a
ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute
esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute
condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo
Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do
julgado
280
ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad
livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p
143 281
ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and
appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p
139
111
Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria
automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de
pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute
a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua
destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus
novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de
difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo
Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios
para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los
na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no
momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir
daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo
do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de
natureza ocupacionalrdquo
Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de
calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara
com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo
Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz
de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais
poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na
atmosfera
O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em
incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele
podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem
material poluente podem se apresentar com alto grau de
contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos
toacutexicos em especial dioxinas e furanos
Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o
consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na
formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas
o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que
produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases
toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em
contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o
fenocircmeno denominado chuva aacutecida
112
Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie
de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio
ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos
monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo
Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo
principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia
negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos
considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo
Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais
respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte
de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a
dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas
Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega
inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis
mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por
algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais
[]
Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os
riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a
dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a
presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo
descartados de forma a garantir a salubridade
A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos
pneus usados
A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana
sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em
especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de
criadouros de mosquitos
Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato
oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que
doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes
trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos
Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses
podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora
natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria
ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a
jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se
no risco de perda de vida de cidadatildeos
113
Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da
populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu
potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando
um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos
A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma
classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs
elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu
que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados
agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo
natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto
De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu
posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as
consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao
meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da
situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)
resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia
O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de
controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio
ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo
CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de
doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de
material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que
constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do
conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos
ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados
O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis
enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e
remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco
de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de
doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)
e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um
passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que
nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz
do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede
e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal
Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de
situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que
114
ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e
descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega
a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por
desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC
Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir
a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura
deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a
mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como
disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo
Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a
descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de
acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios
prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo
envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar
prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar
alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282
Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a
ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de
atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias
canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza
ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e
correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas
doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos
tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas
Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de
controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar
sentimentos de aliacutevio
Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou
ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma
dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de
argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo
282
Id ibid p 143
115
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo
Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos
Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da
antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos
juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que
regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados
como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da
liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da
CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e
Ricardo Lewandowski
Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso
Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio
expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo
Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a
avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja
responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe
uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa
um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283
Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como
a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no
discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado
especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto
Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos
anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento
autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute
imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa
No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo
(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente
danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao
feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao
283
Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166
A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar
tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo
116
caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida
ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo
No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente
culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima
(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e
geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia
(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem
totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo
avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena
de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo
A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de
sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal
procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam
provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e
especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o
feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo
[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de
outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum
acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica
[]
Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas
consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do
sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a
absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de
alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)
sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)
Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos
provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se
inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da
nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo
com uma exclamaccedilatildeo Confira-se
Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar
segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de
aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou
leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e
improdutivas do ponto de vista econocircmico e social
117
Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de
argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que
poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que
outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo
(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute
infligido sofrimento a outros seres inocentes
Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente
esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a
hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez
seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores
econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou
insustentaacutevel ter um filho
A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute
apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto
demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento
E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que
a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da
dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta
quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras
afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas
por questatildeo de grau
[]
Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das
incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos
diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de
malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o
aborto ainda em tais casos
Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a
praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em
nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas
anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute
merecedor desses sentimentos isto eacute o feto
[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto
sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do
sofrimento e da anguacutestia
[]
Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da
conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em
detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da
abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito
humano
118
Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes
as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade
estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana
autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que
era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante
Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo
sofrimento alheio284
Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma
avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo
modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal
situaccedilatildeo aflitiva285
Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo
entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e
as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do
feto
Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de
acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia
do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre
expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo
no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de
anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a
certeza do oacutebito
Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho
sofrimento a que se compara agrave tortura
O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma
espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do
miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave
tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa
ou dela exigido
Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado
diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias
Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de
emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do
diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo
demonstrada)
as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo
fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos
284
LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285
NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50
119
ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque
raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme
dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute
possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que
passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de
interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para
salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela
interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso
Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de
se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela
presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave
mulher
A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que
vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o
medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por
uma conduta que ela venha a adotar
[]
Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o
direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno
caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a
suplicar pela sua vida
[]
A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute
partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que
natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido
Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a
necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento
que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo
Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo
zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o
diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de
gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de
carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a
medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar
Mendes)
[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um
sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem
ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro
Luiz Fux)
O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber
enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute
desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura
120
Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo
cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir
qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui
embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima
[]
Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a
vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel
Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o
martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)
Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute
hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma
vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo
que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a
expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave
dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte
consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo
deste processo (ministro Celso de Mello)
[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura
fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se
institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera
crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra
Rosa Weber)
Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro
Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto
anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no
medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para
com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para
com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela
natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees
foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes
expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no
julgamento
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo
A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica
contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de
2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras
campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970
121
um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio
especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com
a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais
benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia
A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente
No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF
por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e
incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216
salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-
se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais
atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do
mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns
colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras
que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo
Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente
justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos
representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente
a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por
esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a
extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas
famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas
circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional
em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do
Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda
hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares
da identidade nacional
Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que
fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a
ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria
materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo
aos sentimentos do povo
Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da
identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja
a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por
122
exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286
Assim no
orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi
significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos
ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento
deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa
imagem
Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo
porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma
aposentadoria digna
Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre
as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito
anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior
puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil
pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores
daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram
rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento
digno para si e seus familiares
No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros
heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio
histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de
modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho
feitordquo
[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no
Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse
patrimocircnio histoacuterico nacional
Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em
especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por
meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por
tamanho feito
Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes
em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos
desportivos
O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme
porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que
286
ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our
own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the
family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271
123
calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de
encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo
reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que
passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando
o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila
chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de
reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia
Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute
desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro
tanto se orgulha
Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela
ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de
penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores
Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e
justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash
muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees
materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos
telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-
campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute
mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo
tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro
Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas
emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)
Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o
povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas
proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e
merecida homenagem feita pela lei
Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo
de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os
referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um
traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto
observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na
deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como
hoje em dia
Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das
conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as
empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo
brasileirardquo
124
Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da
eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o
Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser
campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes
empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que
se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por
conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo
brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento
Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o
ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais
tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo
Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros
Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor
Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro
Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e
verifique depois
[]
[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as
novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado
ao Brasil
Isso eacute o soft power Trata-se do soft power
[]
esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele
traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria
aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute
na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um
dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo
instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o
Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada
De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute
benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira
expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar
que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E
o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora
tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)
Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante
presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de
tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi
significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais
masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito
de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo
125
ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos
desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila
chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo
ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo
expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos
Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois
o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo
ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede
mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da
culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via
de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro
quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees
expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder
se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas
sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos
colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute
preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos
identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa
resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse
modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem
para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o
rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia
dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo
juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que
pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de
argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso
das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o
julgador
Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica
estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma
126
ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da
antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao
inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal
desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro
gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero
descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso
retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva
para ser assentido pelo puacuteblico
No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o
direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos
Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem
sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo
Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo
de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante
retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute
dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo
emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas
prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de
significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no
redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287
Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma
parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta
parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente
compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma
estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto
de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288
Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente
287
ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a
frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and
language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva
na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation
New York Cambridge 2014 288
ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of
lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J
Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies
vol3 2003 p 267
127
terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios
comunicacionais mais baacutesicos
Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma
questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as
nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja
constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se
deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei
atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos
com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de
sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica
emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas
vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de
normas fundado em emoccedilotildees
Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos
no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir
Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a
estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia
de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios
danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o
equiliacutebrio do meio-ambiente
Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em
discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser
evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008
diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos
pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a
visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental
Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava
embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos
argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os
ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos
constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente
ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo
em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as
128
presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-
se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de
atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo
Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que
o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam
perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao
medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as
consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um
dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-
prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a
longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289
No presente caso pode-se dizer que estava em
discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da
manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290
De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958
1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos
motivos a seguir desenvolvidos
Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens
puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante
ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)
e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da
Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera
homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que
destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de
dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial
Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o
uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional
bastante relevante
289
ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo
(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290
Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos
altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as
pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim
decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New
York Cambridge University Press 2005
129
Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos
emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos
motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo
Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco
alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira
problemaacutetica
No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do
Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a
referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser
observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo
Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo
de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido
Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes
nacionaisrdquo
Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como
esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por
expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo
Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo
estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva
a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas
especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites
juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito
O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF
Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo
civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das
culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do
processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas
pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo
desaparecerem
Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo
ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos
participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um
pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art
130
215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
popularesrsquordquo
O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute
constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou
em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave
conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I
e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e
viverrdquo
Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os
bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF
estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de
Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm
3551 de 4 de agosto de 2000291
Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de
natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica
Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo
de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal
de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar
sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de
capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito
Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)
etc292
A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash
UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os
seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo
enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo
baiano293
291
Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural
brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292
Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan
Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293
Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-
brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015
131
De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente
desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma
autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico
A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees
para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e
1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos
juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do
atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na
argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes
Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a
apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o
orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade
extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294
Desse modo ao dizer que as
conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de
que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento
patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo
proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de
gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso
O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas
que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958
e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros
foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante
De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do
chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra
problemaacutetico
Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante
cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros
natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais
e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada
pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para
programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila
294
LAZARUS R Op cit 1991 p 273
132
global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a
desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295
Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em
relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento
eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute
objeto de tal emoccedilatildeo296
Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo
primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a
ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito
ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da
compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica
Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma
quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o
conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou
simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297
No
que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da
escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a
capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298
Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de
recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa
etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no
Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio
de circularidade cultural por parte do Estado
Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio
financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava
proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais
ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves
seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a
isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da
295
ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts
toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of
vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296
Id ibid p 51 297
Id ibid p 346 298
NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge
University Press 2001 p 434
133
simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente
passam por iguais problemas financeiros
Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da
estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a
desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque
deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-
legislador
Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos
demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre
uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa
humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da
vida etc
Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia
argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento
da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a
estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram
expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza
Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que
portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)
antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica
Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes
aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido
diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava
estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana
agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e
psiacutequica
Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras
questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os
votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se
dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica
que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas
juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia
Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF
analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo
134
juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute
possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam
determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no
discurso juriacutedico
No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma
problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de
tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa
decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura
racional do juiz
Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos
da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria
da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo
que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes
emotivos
De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute
irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso
dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das
consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do
problema
Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente
relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado
quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais
argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem
precisem ser enfrentadas
Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo
humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque
sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas
Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo
porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo
coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse
que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-
mundanos
135
Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria
eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece
bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a
parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem
os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem
disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a
classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude
moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos
propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados
Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no
direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de
Adam Smith
Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do
julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou
reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo
da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos
a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor
avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que
seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299
O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela
fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por
padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser
um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a
forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo
adequado para a accedilatildeordquo300
A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar
munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a
imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica
que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de
regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar
299
SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p
XVI 300
ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up
common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for
actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII
136
num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes
de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo
Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens
sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo
afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo
semelhante
[]
Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos
suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em
seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que
ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo
que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301
Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento
julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que
informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas
ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que
pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302
Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do
agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os
sentimentos do agente e com a sua conduta
Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de
imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a
sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos
alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-
Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para
produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e
desapegadordquo303
Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria
consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute
exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais
301
ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in
which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the
imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we
enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form
some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether
unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302
ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the
suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303
ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral
judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna
Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge
University Press 2009 p 67
137
nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a
emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte
da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304
Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da
capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute
louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a
questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos
uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as
nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria
sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305
Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez
que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito
desintegrador sobre a sociedade306
Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as
inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera
individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente
por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se
tornar extremamente fanaacuteticas307
Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith
percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da
utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios
projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a
304
ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in
our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging
In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305
ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own
opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo
(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France
PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o
pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo
plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por
um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que
eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas
estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law
and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da
argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER
Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes
inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-
set 2013 pp 347-390 306
SMITH A Op cit p 101 307
FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152
138
capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que
esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as
emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-
se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente
relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas
desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar
que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de
normatividade comum na sociedade
A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de
se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a
conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites
139
4 CONCLUSAtildeO
No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves
emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e
da escola estoica
Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham
oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do
debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra
extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir
daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo
ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela
obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica
Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco
explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das
emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica
ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas
um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II
para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie
Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento
platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o
mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim
de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre
agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade
identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da
psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto
que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca
a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas
De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem
confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude
completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-
racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio
do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado
pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as
implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da
140
accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso
constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas
uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos
a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico
da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no
discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer
que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio
De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de
pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a
felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto
(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto
eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola
estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem
possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que
satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma
vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu
caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o
homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees
do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia
A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por
isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos
romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos
possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de
discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico
de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado
Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos
que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que
ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes
de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar
sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente
sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto
Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo
141
negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente
atual para a reflexatildeo do assunto
No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin
e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e
de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o
desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a
Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi
tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital
para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA
Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto
histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e
dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais
movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar
as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar
um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia
Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse
em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada
ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em
relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o
direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees
A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das
falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de
loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela
retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que
pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta
argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que
medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo
Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias
ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo
que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em
compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense
alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos
podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a
142
fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento
para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em
que satildeo utilizados
Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por
Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o
problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse
modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece
trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees
demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem
ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de
manipulaccedilotildees emocionais
Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade
profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao
nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de
avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo
Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e
estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto
sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo
avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu
surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da
razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo
Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas
atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao
fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem
acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como
os seres humanos decidem e argumentam
O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a
importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise
descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer
consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do
direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para
ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A
apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso
143
ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de
indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de
danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o
direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante
Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo
ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de
1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo
orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico
Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para
realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento
Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de
discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo
emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado
Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual
estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo
de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa
procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios
miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico
Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith
seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na
decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e
para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de
outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um
ambiente de normatividade comum na sociedade
Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o
julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em
evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um
discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas
Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees
natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no
estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e
do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais
e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente
com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a
144
forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e
argumentamos na praacutetica
De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as
emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao
tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes
criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu
peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a
emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo
precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de
avaliaccedilatildeo
Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das
emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo
juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio
145
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WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo
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AGRADECIMENTOS
Agrave Prof Dra Claudia Rosane Roesler pela orientaccedilatildeo pelos ensinamentos
acerca do direito e da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica pelas observaccedilotildees precisas
durante a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo pela paciecircncia e pela convivecircncia acadecircmica nestes
dois uacuteltimos anos Serei sempre grato
Ao Prof Dr Guy Hamelin do Departamento de Filosofia da Universidade de
Brasiacutelia - UnB pelas inspiradoras aulas sobre Aristoacuteteles e os estoicos
Ao Prof Dr Marcelo Neves pelo seu trabalho teoacuterico criacutetico em relaccedilatildeo agrave
praacutetica juriacutedica brasileira e pelas instigantes aulas
Aos demais professores de quem fui aluno neste percurso de aquisiccedilatildeo do
conhecimento Marcus Faro de Castro Juliano Zaiden Benvindo Argemiro Cardoso
Martins
Agrave Faculdade de Direito da UnB cujo processo seletivo me possibilitou realizar
esta dissertaccedilatildeo
Agrave Faculdade de Direito do Recife instituiccedilatildeo onde realizei a minha graduaccedilatildeo
A todos os amigos da Coordenaccedilatildeo-Geral Juriacutedica da Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional em especial Rafaela Mariana Cavalcanti Horta Barbosa Vanessa
Silva de Almeida Ricardo Soriano de Alencar Daniel Neiva Freire Alexandre Budib
Henrique Crisoacutestomo de Macedo Aline Nascimento Cunha Mariana Massumi Maria
Emanuelle Pinheiro
Agrave minha famiacutelia pelo constante incentivo e apoio
Liacutengua aonde vais Salvar ou destruir a cidade
(proveacuterbio antigo)
ldquoPois o comeccedilo eacute tambeacutem um deus que enquanto permanece entre os homens tudo salvardquo
(Platatildeo Leis 775e)
7
Resumo
O projeto de racionalidade construiacutedo pela atual Teoria da Argumentaccedilatildeo
Juriacutedica eacute marcado fundamentalmente por um forte silecircncio a respeito das emoccedilotildees
um tema que passou a ser considerado nos tempos atuais um indiferente teoacuterico
embora tradicionalmente tenha sido vinculado ao estudo do discurso e da eacutetica desde a
Antiguidade Essa moderna lacuna teoacuterica tem por consequecircncia a preocupante
incapacidade do atual estudante e profissional do direito de localizar de avaliar e de
refletir a presenccedila das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e mais amplamente na praacutetica
juriacutedica Este estudo objetiva compreender por que as emoccedilotildees saiacuteram de cena da Teoria
da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e tentar fornecer razotildees para que elas sejam novamente
estudadas Assim eacute preciso investigar se elas seriam compatiacuteveis com uma
argumentaccedilatildeo juriacutedica racional e mais amplamente com a explanaccedilatildeo do sistema
juriacutedico Para atingir tal objetivo este estudo parte da filosofia antiga mais
especificamente do pensamento de Aristoacuteteles e da escola estoica a fim de entender
como ambos integraram a temaacutetica das emoccedilotildees na sua eacutetica e na sua retoacuterica Em
seguida investiga-se em que contexto histoacuterico surge a Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo considerando o pensamento dos seus fundadores e das geraccedilotildees
seguintes Almeja-se igualmente pesquisar a compreensatildeo da psicologia de nossa
eacutepoca sobre as emoccedilotildees Ao fim objetiva-se identificar o bom e o mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo juriacutedica possibilitando que o tema seja resgatado com seriedade e
capacidade criacutetica a fim de melhorar a qualidade do discurso juriacutedico
Palavras-chave emoccedilotildees ndash teoria da argumentaccedilatildeo juriacutedica ndash retoacuterica ndash
psicologia ndash linguiacutestica
8
Abstract
The rationality project offered by the current Theory of Legal Argumentation is
marked fundamentally by strong silent about emotions a subject that has been
considered nowadays a theoretical indifferent although traditionally has been linked to
the study of speech and ethics since ancient times This modern theoretical gap has the
effect of disturbing inability of the current student and legal professional to identify
evaluate and reflect the presence of emotions in argument and more broadly in legal
practice This study aims to understand why emotions left the Legal Argumentation
Theory and try to provide reasons for them to be studied again Thus it is necessary to
investigate whether they would be compatible with a rational legal argumentation and
more broadly with the explanation of the legal system To achieve this goal it is
necessary to study ancient philosophy specifically the thought of Aristotle and the Stoic
school in order to understand how both have integrated the theme of emotions in his
ethics and his rhetoric Then we investigate in which historical context comes the
Modern Theory of Argumentation considering the thought of its founders and the
following generations It aims also search to understand the psychology of our time on
emotions In the end the objective is to identify the good and bad use of emotions in
legal reasoning enabling the subject to be rescued with serious and critical capacity in
order to improve the quality of legal discourse
Key-words emotions ndash theory of legal argumentation ndash rhetoric ndash psychology ndash
linguistic
9
Lista de abreviaturas e siglas
ADI ndash Accedilatildeo direta de inconstitucionalidade
ADPF ndash Arguiccedilatildeo de descumprimento de preceito fundamental
CF ndash Constituiccedilatildeo Federal
MTA ndash Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
SVF ndash Stoicorum Veterum Fragmenta
STF ndash Supremo Tribunal Federal
TAJ ndash Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica
10
SUMAacuteRIO INTRODUCcedilAtildeO 11
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA 14
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees 14
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos 19
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica 30
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica 40
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE 57
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo 57
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as emoccedilotildees no
discurso 62
23 As emoccedilotildees falaciosas 68
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso 74
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees 84
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees 92
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO 100
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito 100
32 Anaacutelise 109
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo 109
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo 115
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo 120
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica 125
4 CONCLUSAtildeO 139
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 145
11
INTRODUCcedilAtildeO
O atual interesse pela estrutura argumentativa das decisotildees judiciais eacute fruto da
crescente valorizaccedilatildeo no campo do direito da Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica ndash TAJ
que nasceu na metade do seacuteculo XX pelos trabalhos de Theodor Viehweg Stephen
Toulmin Chaiumlm Perelman e Olbrechts-Tyteca
Pode-se dizer que o atual reconhecimento do caraacuteter argumentativo do direito
guarda relaccedilatildeo direta com a substantiva importacircncia adquirida pela TAJ Neste sentido
MacCormick expressamente declara que o primeiro lugar-comum do direito eacute o fato de
ele ser uma disciplina argumentativa pois para tentar encontrar uma soluccedilatildeo juriacutedica
aos nossos problemas da vida comum precisamos primeiramente construir
proposiccedilotildees em consonacircncia com o sistema juriacutedico1
Um aspecto essencial dos recentes trabalhos que buscam analisar e avaliar a
argumentaccedilatildeo das decisotildees judiciais com suporte no instrumental teoacuterico fornecido pela
TAJ consiste na busca pelo atingimento de um determinado padratildeo de racionalidade no
discurso juriacutedico Assim via de regra analisam-se em primeiro lugar os argumentos e
apoacutes procura-se avaliar se as decisotildees judiciais estatildeo adequadamente fundamentadas
investigam-se a coerecircncia interna da argumentaccedilatildeo a coerecircncia das decisotildees judiciais
dentro de um repertoacuterio de julgados assim como a capacidade de universalizaccedilatildeo das
premissas ao fim busca-se atingir um estado oacutetimo de consistecircncia argumentativa2
Todavia nesse moderno projeto de racionalidade argumentativa natildeo ouvimos
falar a respeito das emoccedilotildees Nenhum dos atuais teoacutericos da TAJ disserta a respeito das
emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica teriam elas perdido definitivamente importacircncia na
vida do direito Eacute possiacutevel realizar uma anaacutelise e uma criacutetica do uso das emoccedilotildees numa
decisatildeo judicial As emoccedilotildees satildeo incompatiacuteveis com a TAJ e mais amplamente com a
racionalidade do direito As emoccedilotildees corromperiam o discurso juriacutedico e o ser humano
Este trabalho portanto insere-se na constataccedilatildeo de uma preocupante lacuna
teoacuterica da TAJ que consiste na ausecircncia de tematizaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees Assim com
o objetivo de tentar construir uma resposta que faccedila sentido para compreender por que
tal mateacuteria natildeo eacute mais teorizada e ao mesmo tempo por que ela deveria ser
(novamente) teorizada precisaremos realizar um especiacutefico percurso nos Capiacutetulos I e II
desta dissertaccedilatildeo
1 MACCORMICK Neil Rhetoric and the rule of law New York Oxford University Press 2010 p 14
2 ATIENZA Manuel Curso de argumentacioacuten juriacutedica Madrid Editorial Trotta 2013 p 553-557
12
No Capiacutetulo I propomos fazer um retorno agrave Antiguidade a fim de entender
primeiramente em que contexto histoacuterico surge e se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto a
discussatildeo das emoccedilotildees
Em seguida tendo em vista a sua importacircncia histoacuterica para a TAJ iremos
analisar o tema sob comento na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de examinar como o
Estagirita sistematiza e desenvolve o assunto especialmente tentando identificar (i) a
importacircncia das emoccedilotildees na referida obra aristoteacutelica (ii) a concepccedilatildeo de emoccedilatildeo
utilizada (iii) as influecircncias filosoacuteficas de tal concepccedilatildeo (iv) a maneira pela qual as
emoccedilotildees devem ser utilizadas no discurso e (v) os fundamentos psicoloacutegicos do tema
Apoacutes iremos investigar nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco em que medida
as emoccedilotildees satildeo importantes para a vida moral do indiviacuteduo tentando entender se para
Aristoacuteteles eacute suficiente que o desenvolvimento moral do ser humano esteja circunscrito
a aspectos estritamente racionais Nesse toacutepico iremos analisar como o Estagirita divide
a alma humana e de que modo isso se relacionada com a sua eacutetica das virtudes Ao fim
tentaremos identificar se o tratamento teoacuterico das emoccedilotildees na Eacutetica a Nicocircmaco eacute
compatiacutevel com aquele presente na retoacuterica
Tendo realizada a investigaccedilatildeo do tema na retoacuterica e na eacutetica aristoteacutelica iremos
realizar um contraponto teoacuterico com a filosofia estoica que advogava que as emoccedilotildees
deveriam ser eliminadas da vida comum Assim considerando a ausecircncia de
tematizaccedilatildeo contemporacircnea das emoccedilotildees tanto na TAJ quanto no direito tentar entender
por que aquela escola filosoacutefica firmou tal posicionamento contribui para a reflexatildeo
acerca de nossa atual compreensatildeo da mateacuteria Desse modo iremos analisar a eacutetica
estoica a fim de apreender a sua noccedilatildeo de virtude e de viacutecio os seus fundamentos
psicoloacutegicos e a construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio objetivando perceber de que
modo todo esse pensamento influenciou a retoacuterica estoica
Ao fim do Capiacutetulo I procuraremos realizar uma comparaccedilatildeo entre o
pensamento aristoteacutelico e o estoico tentando evidenciar o grau de importacircncia que
ambos conferiam agraves emoccedilotildees Ademais registre-se que o Capiacutetulo I forneceraacute o
fundamento filosoacutefico em relaccedilatildeo ao qual iremos retornar no desenvolvimento deste
trabalho a fim de proporcionar reflexatildeo comparaccedilatildeo e criacutetica
O Capiacutetulo II teraacute um vieacutes mais praacutetico e examinaraacute especificamente a Moderna
Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash MTA com o objetivo de (i) compreender em que contexto
histoacuterico surge tal saber teoacuterico e qual tipo de discurso era predominante agrave sua eacutepoca
(ii) como os fundadores de tal movimento se reportaram ao tema das emoccedilotildees (iii) qual
13
disciplina especiacutefica foi responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees no acircmbito da MTA
(iv) quais as reaccedilotildees teoacutericas podem ser identificadas na tentativa de introduzir as
emoccedilotildees no acircmbito da MTA (v) o que a psicologia do nosso tempo mais
especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo (psicologia cognitiva) poderia nos informar
acerca da racionalidade das emoccedilotildees Destaque-se que este Capiacutetulo teraacute por objetivo
tambeacutem localizar criteacuterios para anaacutelise e avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso
juriacutedico
No Capiacutetulo III jaacute com a compreensatildeo teoacuterica possibilitada pelos Capiacutetulos I e
II iremos abordar no primeiro toacutepico a importacircncia das emoccedilotildees para o direito
tentando relacionar de que modo este tema serviria para um melhor entendimento de
nossa praacutetica juriacutedica Ademais tentaremos responder se o modelo estoico analisado no
Capiacutetulo I seria uma boa maneira de analisar a estruturaccedilatildeo do ordenamento juriacutedico
No segundo toacutepico iremos examinar com suporte no instrumental colhido no Capiacutetulo
II trecircs julgados do Supremo Tribunal Federal no afatilde de explicitar a presenccedila de
argumentos emotivos O terceiro toacutepico estaraacute reservado a tecer consideraccedilotildees criacuteticas
aos julgados bem como tentar fornecer uma respostar teoacuterica acerca da eacutetica das
emoccedilotildees na decisatildeo e na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Ao fim deste trabalho aleacutem de responder os problemas acima elencados
procuraremos demonstrar novos caminhos a serem percorridos acerca da relaccedilatildeo entre
as emoccedilotildees e o discurso juriacutedico e mais amplamente o direito a fim de possibilitar a
melhoria da qualidade do discurso juriacutedico brasileiro e o surgimento de um debate
qualificado com a manutenccedilatildeo de uma perspectiva criacutetica sobre o tema das emoccedilotildees
14
1 O LUGAR DO PATHOS NA RETOacuteRICA E NA EacuteTICA ARISTOTEacuteLICA E
ESTOICA
11 Origens da retoacuterica e as emoccedilotildees
O primeiro problema que se impotildee quando pretendemos falar a respeito da
origem da retoacuterica diz respeito ao proacuteprio significado da palavra ldquoretoacutericardquo Ou seja de
qual ldquoretoacutericardquo falamos quando investigamos sua origem A palavra nos dias de hoje
possui muacuteltiplos significados sendo sem duacutevida o mais saliente aquele em que
preponderam afetos negativos Assim retoacuterica eacute sobretudo usado para designar um
discurso vazio (sem conteuacutedo) mentiroso falacioso incoerente apenas ornamental isto
eacute uma mera fachada linguiacutestica para uma verdadeira armadilha de intenccedilotildees
Essa carga semacircntica pejorativa tambeacutem eacute denunciada por Knudsen que lista
trecircs atuais usos da expressatildeo 1) o primeiro sendo justamente um discurso polido e ao
mesmo tempo superficial que mascara um conteuacutedo vazio e enganoso normalmente
atribuiacutedo a um poliacutetico ou a um conferencista 2) um conjunto de figuras de linguagem
encontrado na literatura cuja aplicabilidade se limita ao espaccedilo de sala-de-aula 3) uma
significaccedilatildeo mais ampla para se referir a discursos especiacuteficos em relaccedilatildeo a um tema ou
a um autor ldquoa retoacuterica do oacutediordquo ldquoa retoacuterica do Supremo Tribunal Federalrdquo ldquoa retoacuterica
do Presidente Obamardquo3
Assim a fim de cumprir nosso intento um bom ponto de partida seria tentar
localizar a primeira vez em que a palavra retoacuterica foi utilizada num texto escrito
Segundo Timmerman-Schiappa e considerando os fragmentos textuais que nos foram
legados atraveacutes do tempo o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela primeira vez em Goacutergias de
Platatildeo no iniacutecio do seacuteculo IV aC sendo provaacutevel que o proacuteprio Platatildeo tenha
inventando o termo pois eacute atribuiacuteda ao autor da Repuacuteblica a criaccedilatildeo de uma seacuterie de
palavras com terminaccedilatildeo -ike (arte de) e -ikos (a depender do contexto utilizado pode
significar pessoa com uma especiacutefica habilidade)4
Fazendo referecircncia a uma pesquisa do vocabulaacuterio grego realizada por Pierre
Chantraine em que foram analisadas mais de 350 palavras com terminaccedilatildeo -ikos
Schiappa lembra que mais de 250 natildeo foram localizadas antes de Platatildeo ldquoUma pesquisa
3 KNUDSEN Rachel Homeric speech and the origin of rhetoric Baltimore John Hopkins University
Press 2014 p 1 4 TIMMERMAN David M SCHIAPPA Edward Classical greek rhetorical theory and the
disciplining of discourse New York Cambridge University Press 2010 p 9
15
feita por computador na completa base de dados do projeto Thesaurus Linguae Graecae
sugere que as palavras gregas para eriacutestica (eristikecirc) dialeacutetica (dialektikecirc) e antilogikecirc
assim como retoacuterica originaram-se nas obras de Platatildeordquo5
Desse modo e partindo das referidas fontes o termo rhecirctorikecirc foi primeiramente
utilizado por Platatildeo para descrever aquelas atividades em que a fala era utilizada em
puacuteblico para fins de convencimento especialmente perante assembleias tribunais e
demais ocasiotildees especiais No Fedro por exemplo Soacutecrates destaca que a retoacuterica eacute
ldquo[] uma arte de conduzir as almas atraveacutes das palavras mediante o discurso []rdquo6 E
posteriormente em Aristoacuteteles ldquo[] a capacidade de descobrir o que eacute adequado a cada
caso com o fim de persuadirrdquo7 Assim a partir destes dois filoacutesofos a retoacuterica surge com
o status de um saber munido com vocabulaacuterio proacuteprio para anaacutelise do discurso
Eacute com Platatildeo tambeacutem que ocorre a conhecida cisatildeo entre retoacuterica e filosofia A
palavra rhecirctorikecirc jaacute no seu nascedouro surge para fins bem precisos isto eacute para
demarcar o campo de uma teacutecnica (techne) moralmente questionaacutevel que lida com a
opiniatildeo (doxa) e que leva atraveacutes da palavra as pessoas ao engano em contraste com a
refinada atividade do filoacutesofo cuja base de reflexatildeo estaacute fundada sob o domiacutenio da
verdade (aletheia) Em Goacutergias e no Fedro satildeo oferecidos vaacuterios exemplos da figura do
retoacuterico como algueacutem que obteacutem sucesso na arte de ludibriar intencionalmente os
outros
Antes de rhecirctorikecirc o termo mais abrangente utilizado para se referir agrave atividade
do discurso nos textos do seacuteculo V era logos que possui distintos significados na
tradiccedilatildeo grega ldquoeacute qualquer coisa que eacute lsquoditarsquo mas isso pode ser uma palavra uma frase
uma parte do discurso ou um trabalho escrito ou o discurso inteirordquo8 Logos estaacute assim
relacionado com o conteuacutedo e natildeo com aspectos estiliacutesticos ou esteacuteticos comporta a
ideia de razatildeo argumento ordem O ensino de artes verbais no seacuteculo V aC
associado ao logos portanto natildeo diferenciava a busca pelo sucesso persuasivo da busca
5 ldquoA computer search of the entire database of the Thesaurus Linguae Graecae project suggests that the
Greek words for eristic (eristikecirc) dialectic (dialektikecirc) and antilogic (antilogikecirc) like rhetoric originate
in Platorsquos worksrdquo (trad livre) Id ibid p 9-10 No sentido de que o termo ldquorhecirctorikecircrdquo aparece pela
primeira vez na obra platocircnica cf COLE Thomas The origins of rhetoric in ancient greek Baltimore
The John Hopkins University Press 1991 6 PLATAtildeO Fedro trad Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees editores 2000 p 90
7 ARISTOacuteTELES Retoacuterica trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel do
Nascimento Pena Satildeo Paulo Martins Fontes 2012 p 12 8 ldquoit is anything that is lsquosaidrsquo but that can be a word a sentence part of a speech or of a written work or a
whole speechrdquo (trad livre) KENNEDY George A A New History of classical rhetoric New Jersey
Princeton University Press 1994 p 11
16
pela verdade conforme posteriormente iria ocorrer com a radical distinccedilatildeo platocircnica
entre os fins da retoacuterica e os fins da filosofia9
Assim enquanto a retoacuterica emerge firmemente relacionada com significados
pejorativos logos sempre desfrutou de uma boa reputaccedilatildeo Os sofistas exultavam o
poder que ele possuiacutea segundo Goacutergias logos podia espantar o medo e a tristeza
incutir a compaixatildeo e o prazer10
Isoacutecrates reforccedilava o seu poder e prestiacutegio na vida
puacuteblica ldquoaqueles que satildeo haacutebeis no discurso natildeo satildeo apenas homens de poder em suas
proacuteprias cidades mas satildeo tambeacutem tidos em grande estima em outros estadosrdquo11
Mas se eacute possiacutevel numa anaacutelise textual atribuir a cunhagem da palavra retoacuterica
a Platatildeo eacute possiacutevel inferir de outra parte que a referida palavra grega soacute pode surgir
quando a atividade a que se refere jaacute estava bem consolidada na sociedade Assim a
origem que buscamos passa a ser natildeo mais da palavra mas de eventos que
supostamente deram o iniacutecio ou de fragmentos culturais que sustentavam tal atividade
Foi na Siacutecilia por volta de 426 aC que ocorreu o evento que impulsionou a
fundaccedilatildeo da retoacuterica apoacutes a expulsatildeo de tiranos que dominavam politicamente a
mencionada regiatildeo as pessoas precisaram aprender a discursar perante as assembleias e
tribunais a fim de recuperar as propriedades anteriormente perdidas no regime
ditatorial Os sicilianos Corax e Tiacutesias cientes desta necessidade foram os primeiros a
organizar isso num meacutetodo criando preceitos teoacutericos que almejavam o sucesso da fala
em puacuteblico por meio da divisatildeo do discurso do uso de argumentos de probabilidades e
de outras mateacuterias12
A novidade teoacuterica dos sicilianos foi levada a Atenas tanto por Goacutergias quanto
pelo proacuteprio Tiacutesias que parece ter ensinado Liacutesias e Isoacutecrates Por sua vez o manual
(ou manuais) de Corax e Tiacutesias era conhecido por Aristoacuteteles que os resumiu em seu
perdido Synagoge Technon (Coleccedilatildeo de Artes) que a partir de entatildeo passou a ser o
referencial teoacuterico sobre o assunto13
Ciacutecero informa que o Estagirita fez uma cuidadosa
anaacutelise das regras coletadas nos manuais antigos de retoacuterica incluindo o de Tiacutesias
9 TIMMERMAN D M op cit p 10-11
10 KENNEDY G Op cit p 25
11 ldquothose who are skilled in speech are not only men of power in their own cities but are also held in
honour in other statesrdquo(48-51) (trad livre) Cf ISOCRATES Panegyricus New York Harvard
Univesity Press vol 1 trad George Norlin 1928 p 149 12
CICERO Brutus trad J L Hendrickson CambridgeLondon Harvard University Press 46 1962 p
49 13
GAGARIN Michael Background and origins oratory and rhetoric before the sophists in
WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p
30
17
tendo superado os autores originais em clareza brevidade e estilo motivo pelo qual
apenas os escritos aristoteacutelicos passaram a ser consultados14
Todavia essa tradicional explanaccedilatildeo sobre os primeiros organizadores da arte
retoacuterica tem sido recentemente objeto de revisatildeo em virtude da inconsistecircncia das
fontes histoacutericas Cole destaca que Corax pode ter sido apenas um nome alternativo para
Tiacutesias uma vez que alguns escritos apenas fazem referecircncia a este uacuteltimo ou se Corax
realmente existiu era preocupado com argumentos de probabilidade15
Essa polecircmica a respeito da real identidade dos autores poreacutem natildeo eacute oacutebice para
assinalar o que se procura aqui dizer a partir de um determinado momento o discurso
eficiente isto eacute a fala articulada que almeja persuasatildeo passou a ser extremamente
valorizada na cultura antiga Se pudermos conjecturar que ao reivindicar a reaquisiccedilatildeo
da propriedade perdida apoacutes a expulsatildeo dos tiranos na Siciacutelia uma pessoa poderia ter
melhor sorte do que outra a depender da estrutura e do conteuacutedo do discurso podemos
entender o quatildeo dramaacutetica era a necessidade de aperfeiccediloamento desta atividade
Assim a expulsatildeo dos tiranos e a subsequente necessidade de lutar pela
restauraccedilatildeo de direitos violados foram os supostos eventos catalizadores para a
organizaccedilatildeo teoacuterica de uma atividade que posteriormente Platatildeo iraacute designar de
retoacuterica Mas ainda assim natildeo podemos relevar que no ambiente grego outros fatores
jaacute demarcavam a forte presenccedila do discurso persuasivo no fundo cultural da sociedade
Contra a tradicional tese de que a retoacuterica surgiu no seacuteculo V aC com Corax e
Tiacutesias ou de que a retoacuterica apenas emergiu como disciplina diferenciada a partir de
Platatildeo e Aristoacuteteles no seacuteculo IV aC por meio de um vocabulaacuterio especiacutefico
governado por regras que poderiam ser ensinadas e aprendidas Knudsen advoga a ideia
de que o nascedouro da retoacuterica se localiza na obra de Homero
O seu posicionamento no entanto natildeo consiste na defesa de que Homero seria
uma inspiraccedilatildeo para a retoacuterica ou um exemplo da existecircncia na eacutepoca de uma forte
cultura de eloquecircncia mas de que o narrador homeacuterico jaacute apresenta o discurso como
ldquo[] uma habilidade teacutecnica que deve ser ensinada e aprendida e que varia de acordo
com o orador a situaccedilatildeo e o auditoacuteriordquo16
Assim os personagens de Homero na Iliacuteada
14
CICERO On Invention trad H M Hubbel CambridgeMassachusetts Harvard University Press
1949 (II 6) p 171 15
COLE Thomas Who was corax In Illinois classical studies vol 16 1991 p 65-84 16
ldquo[hellip] a technical skill one that must be taught and learned and one that varies according to speaker
situation and audiencerdquo KNUDSEN R Op cit p 4
18
apresentam a retoacuterica na praacutetica enquanto Aristoacuteteles posteriormente apresenta a
retoacuterica em teoria
No Ensaio sobre a Vida e a Poesia de Homero no seacuteculo II dC o pseudo-
Plutarco teria feito o registro mais antigo a respeito do viacutenculo da obra de Homero com
a retoacuterica
Homero parece ter sido o primeiro a compreender que o discurso
poliacutetico eacute uma funccedilatildeo da arte retoacuterica pois esta eacute o poder de falar de
maneira persuasiva e quem mais senatildeo Homero estabeleceu sua
proeminecircncia nisso Ele ultrapassou todos os outros em
grandiloquecircncia e seu pensamento dispotildee do mesmo poder que sua
dicccedilatildeo17
Por sua vez no seguinte trecho da Iliacuteada pode-se observar que as caracteriacutesticas
do discurso de Odisseu e de Menelau satildeo finamente analisadas pelo narrador
demonstrando que a fluecircncia a clareza a concisatildeo a prolixidade a objetividade a
gestualidade satildeo fatores jaacute claramente distinguiacuteveis na fala e na figura do orador
Quando urdiam discursos e expunham ideias
Menelau era fluente e claro mas conciso
natildeo sendo um homem multipalavroso nem
dispersivo e tambeacutem por ser ele o mais moccedilo
Quando Odisseu poreacutem multiardiloso punha-se
de peacute para falar fixava o olhar no chatildeo
mantendo o cetro imoacutevel (nem para traacutes nem
para diante o inclinava) parecia um ruacutestico
algueacutem desatinado ou fraco de cabeccedila
Mas quando a voz do peito emitia poderosa
palavras como copos-de-neve no inverno
ningueacutem nenhum mortal o igualaria18
Knudsen todavia vai aleacutem e se dedica a analisar os discursos diretos da Iliacuteada a
fim de demonstrar que todos os recursos retoacutericos (entimema paradigma diathesis
toacutepicos ethos etc) identificados por Aristoacuteteles jaacute estavam presentes na estrutura
literaacuteria de Homero19
Ao examinar outras obras literaacuterias do mundo antigo tais como a
Epopeacuteia de Gilgamesh o Shujing o Maabaacuterata demonstra que o emprego de recursos
17
ldquoPolitical discourse is a function of the craft (τέχνη) of rhetoric which Homer seems to have been the fi
rst to understand for if rhetoric is the power to speak persuasively who more than Homer has established
his preeminence in this He surpasses all others in grandiloquence and his thought displays the same
power as his dictionrdquo (trad livre) PSEUDO-PLUTARCO Essays 161 apud KNUDSEN Id ibid p 22 18
HOMERO Iliacuteada trad Haroldo de Campos III vol 1 Satildeo Paulo Benviraacute 2002 p 212-223 19
ldquoMy overarching contention is that the Iliad through the direct speeches of its characters demonstrates
a systematic employment of persuasive techniques corresponding to the practice that would come to be
categorized as ldquorhetoricrdquo in the fourth century in particular these techniques closely match the system
explicated in Aristotlersquos Rhetoricrdquo KNUDSEN R Op cit p 84
19
retoacutericos nestas uacuteltimas eacute extremamente pobre se comparado agrave Iliacuteada Assim destaca
que natildeo se pode explicar o sofisticado sistema retoacuterico encontrado em Homero sob a
justificativa da existecircncia de um modelo retoacuterico universal Vale dizer a tese segundo a
qual haacute um padratildeo de convencimento supostamente presente em todos os discursos e
que seriam inerentes agrave natureza humana natildeo consegue ser extensiacutevel para a realidade
literaacuteria de outras obras antigas20
Assim esse hiperdesenvolvimento de um padratildeo retoacuterico nos discursos da Iliacuteada
pode ser explicado parcialmente por um ambiente extremamente favoraacutevel agrave cultura da
competiccedilatildeo do debate e da liberdade como ocorria de forma bastante original na
Greacutecia e natildeo encontrava correspondente em culturas orientais ldquodesde as primeiras
poesias gregas ateacute a oratoacuteria juriacutedica e poliacutetica da era claacutessica tardia [] a Greacutecia antiga
funcionava como uma lsquocultura de debatersquo em que o poder era conquistado e negociado
atraveacutes do discurso persuasivordquo 21
Segue-se por isso que eacute conveniente falar natildeo da ldquoorigemrdquo mas das ldquoorigensrdquo
da retoacuterica Tendo em vista a diversidade de elementos que propiciava esta cultura do
debate natildeo eacute de se impressionar que a retoacuterica tenha sido criada e amadurecida neste
ambiente havendo para ela portanto vaacuterios iniacutecios possiacuteveis vale dizer um iniacutecio na
filosofia um iniacutecio na poesia eacutepica um iniacutecio enquanto evento histoacuterico
No entanto para o que aqui pretendemos fica evidenciado o quatildeo importante
era nas suas origens a necessidade de dominar na vida puacuteblica o discurso eficiente Eacute
por essa razatildeo que a anaacutelise das emoccedilotildees (pathos) emerge na obra aristoteacutelica jaacute que
apenas num contexto de um ambiente altamente discursivo e por isso retoacuterico a
compreensatildeo sobre as emoccedilotildees se desenvolve a um niacutevel tatildeo alto
12 A retoacuterica aristoteacutelica e pathos
Preliminarmente e considerando que a partir de agora passamos a nos ocupar
mais de perto do tema central deste trabalho eacute oportuno registrar que a origem do termo
grego pathos sob cujo signo Aristoacuteteles trata o tema das emoccedilotildees se encontra no verbo
paschein que significa ldquosofrerrdquo e nessa medida explicita o caraacuteter passivo do
20
KNUDSEN R Op cit p 101 21
ldquoFrom the very earliest Greek poetry to the legal and political oratory of the late Classical era (and
much later the stylized and elaborate argumentation of the Second Sophistic) ancient Greece functioned
as a ldquodebate culturerdquo one in which power was won and negotiated through competitive and persuasive
speechrdquo (trad livre) KNUDSEN R Id ibid p 101
20
fenocircmeno emotivo22
Nos trechos a seguir transcritos observa-se que o Estagirita utiliza
o termo no sentido exposto ou seja em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees o sujeito estaacute em situaccedilatildeo
de passividade isto eacute ele eacute afetado movido por elas
Entatildeo um homem que enrubesce em virtude de vergonha natildeo eacute
chamado de enrubescido nem aquele que empalidece diante do medo
de paacutelido ao contraacuterio diz-se que ele foi de algum modo afetado
Portanto tais coisas satildeo chamadas de afecccedilotildees [pathecirc] e natildeo
qualidades23
Acrescente-se a estas consideraccedilotildees que dizemos que somos afetados
em funccedilatildeo das emoccedilotildees poreacutem natildeo dizemos que somos afetados em
funccedilatildeo das virtudes e dos viacutecios mas que nos dispomos de um certo
modo24
Saliente-se que aleacutem de ldquoemoccedilatildeordquo pathos tradicionalmente tambeacutem eacute traduzido
por ldquoafecccedilatildeordquo ou ldquoafeiccedilatildeordquo assim como tambeacutem por ldquopaixatildeordquo que vem do latim passio
sendo que nestas duas uacuteltimas traduccedilotildees (ldquoafecccedilatildeordquo e ldquopaixatildeordquo) diferentemente de
ldquoemoccedilatildeordquo persiste de certo modo aquele sentido de passividade25
De outra parte eacute interessante tambeacutem acrescentar que a temaacutetica das emoccedilotildees eacute
algo que perpassa toda a obra aristoteacutelica pois se encontra presente na Eacutetica na
Retoacuterica na Psicologia na Filosofia da Natureza na Teoria Poeacutetica Poreacutem a despeito
disso Aristoacuteteles natildeo apresenta nenhum conceito de emoccedilatildeo preferindo algumas
vezes introduzir o tema por meio de uma lista de exemplos Por isso esclarece Rapp
natildeo se pode falar de boa consciecircncia de uma ldquoTeoria das Emoccedilotildees de Aristoacutetelesrdquo mas
de elementos utilizados em diferentes contextos para tratar deste assunto26
Assim tendo realizado brevemente tais anotaccedilotildees preliminares conveacutem registrar
que eacute sobre o que convence em cada caso no discurso de que se ocupa a retoacuterica
Aristoacuteteles logo na abertura de sua obra afirma que todas as pessoas estatildeo submetidas
agraves regras da retoacuterica pois eacute impossiacutevel em vida natildeo passar pela experiecircncia de ter que
22
RAPP Cristof Aristoteles Bausteine fuumlr eine Theorie der Emotionen In LANDWEE Hilge RENZ
Ursula (hrsg) Klassische emotionstheorien von Platon bis Wittgenstein BerlinNew York Walter de
Gruyter 2008 p 48 23
ldquoThus a man who reddens through shame is not called ruddy nor one who pales in fright pallid rather
he is said to have been affected somehow Hence such things are called affections but not qualitiesrdquo (trad
livre) Cf ARISTOTELES Categories In BARNES J (ed) The complete works of Aristotle trad J
L Akrill (9b20-9b32) Princeton Princeton University Press 1991 p 17 24
ARISTOTELES Eacutethica nicomachea I13-III8 tratado da virtude moral trad Marco Zingano Satildeo
Paulo Odysseus 2008 p 48-49 (11065-7) 25
RAPP C Op cit p 48 Cf TIELEMAN Teun Chrysippusrsquo on affection reconstruction and
interpretation Leiden Brill 2003 p 15 26
RAPP C Op cit p 47 Adverte-se o leitor previamente que natildeo iremos utilizar neste trabalho um
conceito normativo de emoccedilatildeo Embora ao longo da obra algumas caracteriacutesticas das emoccedilotildees sejam
evidenciadas natildeo haveraacute o fechamento de um conceito
21
defender ou atacar argumentos Poreacutem enquanto alguns fazem esta atividade de forma
irrefletida ou entatildeo de modo mais consciente por meio de uma praacutetica conquistada pelo
haacutebito eacute possiacutevel fazecirc-la estruturadamente atraveacutes de um meacutetodo que analisaria por que
algumas pessoas obteacutem tanto sucesso ao discursarem Desse modo para Aristoacuteteles a
retoacuterica eacute uma arte (techne) ou seja ldquo[] um corpo de regras e princiacutepios gerais que
podem ser conhecidos pela razatildeordquo27
contrariando assim Platatildeo para quem a retoacuterica se
reduziria a uma mera habilidade que natildeo se submete agrave razatildeo nem consegue explicar as
causas e os motivos do que faz
Sobre a parte que especificamente eacute objeto de nosso interesse isto eacute a
explanaccedilatildeo sobre as emoccedilotildees conveacutem examinar os Livros I e II da Retoacuterica
Primeiramente urge compreender como o assunto eacute introduzido no Capiacutetulo I do Livro
I e depois como ele eacute desenvolvido tanto no Capiacutetulo II por intermeacutedio da doutrina
dos meios de convencimento quanto no Livro II no detalhamento das emoccedilotildees em
espeacutecie O objetivo de nossa exposiccedilatildeo consiste em traccedilar um panorama geral das
emoccedilotildees no campo da retoacuterica
Com efeito Aristoacuteteles introduz o tema no Capiacutetulo I do Livro I por meio de
uma forte criacutetica aos tratados de retoacuterica de sua eacutepoca que se preocupavam mais em
instigar os acircnimos emotivos dos ouvintes do que efetivamente tratar do assunto objeto
de controveacutersia Ele nomina essas distraccedilotildees do discurso como questotildees exteriores ou
natildeo essenciais ao assunto pois sobre a verdadeira substacircncia da persuasatildeo retoacuterica que
satildeo os entimemas tais manuais nada tratam
O Estagirita chega a dizer que se as leis de alguns Estados bem governados que
ele natildeo menciona fossem aplicadas em todas as unidades poliacuteticas aqueles autores de
retoacuterica praticamente nada teriam a dizer Assim para Aristoacuteteles estaria
terminantemente proibido ldquoperverterrdquo o juiz atraveacutes da ira do oacutedio da compaixatildeo e de
outros estados da alma Enfatize-se que as traduccedilotildees aqui consultadas utilizam sempre a
palavra ldquoperverterrdquo que daacute ideia de corromper a cogniccedilatildeo do julgador porque a partir
do momento em que o julgador estiver possuiacutedo por determinado estado mental
(compaixatildeo ira etc) ele estaraacute impossibilitado de conhecer de modo isento o fato
Jaacute no Capiacutetulo II em prosseguimento Aristoacuteteles relaciona as emoccedilotildees como
um dos meios de prova na seguinte classificaccedilatildeo
27
ldquo[hellip] rhetoric certainly consists of a body of rules and general principles which can be known by
reasonrdquo(trad livre) GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric I a commentary New York
Fordham University Press 1980 p 4
22
Das pisteis produzidas atraveacutes do discurso existem trecircs espeacutecies
algumas residem no caraacuteter [ecircthos] do orador outras na forma em que
dispotildeem [diatheinai] o ouvinte em determinado estado de espiacuterito e
outras no discurso [logos] em si demostrando ou aparentando
demostrar algo28
Eacute apropriado notar que Aristoacuteteles natildeo menciona explicitamente as emoccedilotildees
neste trecho Desse modo parece bastante pertinente a observaccedilatildeo de Knudsen que
prefere nominar essa segunda forma de convencimento de diathesis porque
literalmente eacute o termo utilizado no texto por Aristoacuteteles Assim diathesis eacute uma
expressatildeo mais abrangente que significa o uso de qualquer forma de sensibilidade agrave
psicologia do auditoacuterio e nesse sentido englobaria pathos29
No entanto a despeito da observaccedilatildeo a respeito da palavra diathesis feita por
Knudsen Aristoacuteteles logo em seguida explana que ldquo[] persuade-se pela disposiccedilatildeo
dos ouvintes quando estes satildeo levados a sentir emoccedilatildeo por meio do discurso []rdquo30
parecendo-nos portanto mais interessante insistir nesse uacuteltimo termo (pathos) como
meio de convencimento do que utilizar um sentido mais abrangente e vago que
englobaria inclusive o ethos e qualquer outro meio de excitabilidade psicoloacutegica
Em seguida isto eacute apoacutes vincular a ideia de persuasatildeo pela disposiccedilatildeo dos
ouvintes com as emoccedilotildees Aristoacuteteles conclui no sentindo de que nosso juiacutezo varia de
acordo com o nosso estado mental Encontrar-se afetado pela alegria ou pela tristeza
pelo amor ou pelo oacutedio estaacute diretamente relacionado ao juiacutezo que iremos formular sobre
o assunto
Logo aqui conveacutem registrar certa surpresa ao observar que a despeito da criacutetica
inicial no Capiacutetulo I Aristoacuteteles inclui sem diferenccedila hieraacuterquica as emoccedilotildees ao lado
do ethos e do logos como meios de convencimento O espanto no entanto apenas
aumenta ao notar que praticamente a metade do Livro II da Retoacuterica se destina a tratar
em peacute de igualdade as emoccedilotildees com os entimemas Sobre essa suposta contradiccedilatildeo
muito pode ser comentado
Tentando compreender a questatildeo Fortenbaugh reuacutene trecircs respostas jaacute oferecidas
para esse problema A primeira hipoacutetese entende que no Capiacutetulo I do Livro I
Aristoacuteteles defende um modelo de retoacuterica ideal em que apenas sejam utilizados
argumentos que tratem do assunto objeto de controveacutersia sendo que este modelo ideal eacute
deixado de lado no Capiacutetulo II quando se fala do discurso poliacutetico em que se faria
28
ARISTOacuteTELES Retoacuterica apud KNUDSEN R Op cit p 39 29
KNUDSEN R Id ibid p 39 30
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Op cit 2012 p 13
23
necessaacuterio o uso de apelos emotivos31
Na segunda hipoacutetese Aristoacuteteles dirigiria o seu
criticismo aos contemporacircneos que utilizam as emoccedilotildees por meios natildeo-discursivos
(choros laacutegrimas rostos irocircnicos)32
A terceira resposta preferida por Fortenbaugh seria no sentido de uma evoluccedilatildeo
do pensamento aristoteacutelico Inicialmente Aristoacuteteles teria visto as emoccedilotildees de uma
forma negativa e incompatiacutevel com uma argumentaccedilatildeo baseada na razatildeo Poreacutem
durante o periacuteodo em que frequentou a Academia de Platatildeo sabe-se que a relaccedilatildeo entre
emoccedilatildeo e pensamento era objeto de estudo o que provavelmente o levou a ter uma
visatildeo mais favoraacutevel sobre as emoccedilotildees Assim se a tarefa do orador eacute convencer o
ouvinte e isso eacute feito por intermeacutedio de uma mudanccedila de pensamento entatildeo nada
haveria de errado em fazecirc-lo por meio do emprego de argumentos razoaacuteveis que
resultaria numa resposta emocional positiva dos destinataacuterios33
Levando isso em
consideraccedilatildeo eacute possiacutevel que Aristoacuteteles tenha escrito suas primeiras criacuteticas agraves emoccedilotildees
num tratado hoje em dia perdido e posteriormente ao desenvolver a doutrina dos trecircs
meios de convencimento transferiu tais observaccedilotildees ao atual manual sem realizar uma
completa adaptaccedilatildeo do tema34
De outra parte tambeacutem se cogita que os capiacutetulos desenvolvidos por Aristoacuteteles
fossem na verdade alternativos sendo que um deles se destinava a substituir o outro ou
entatildeo que o Capiacutetulo I era natildeo apenas inconsistente com o que segue (Capiacutetulo II) mas
que ambos se destinavam a puacuteblicos diferentes Konstan assevera que essa duacutevida talvez
seja impossiacutevel de solucionar embora seja razoaacutevel afirmar que ao tratar das emoccedilotildees
no Livro II Aristoacuteteles jaacute pensava diferentemente dos seus primeiros escritos35
Frede por sua vez demonstra a mesma perplexidade com o fato de que as
emoccedilotildees tenham recebido tanta atenccedilatildeo na Retoacuterica de modo que formula as seguintes
indagaccedilotildees ldquoIsso eacute uma mera concessatildeo com os maus caminhos do mundo realrdquo ldquoSe o
inimigo o faz devo estar preparado para tambeacutem fazerrdquo36
Ela no entanto registra que
em nenhum momento Aristoacuteteles ensina artimanhas ou truques emocionais para o
discurso limitando-se a fazer um registro teacutecnico das emoccedilotildees
31
FORTENBAUGH W W Aristotlersquos art of rhetoric In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to
greek rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 117 32
Id ibid p 117 33
Id ibid p 118 34
Id ibid p 118 35
KONSTAN David Rhetoric and emotion In WORTHINGTON Ian (ed) A companion to greek
rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 414 36
FREDE Dorothea Mixed feelings in Aristotlersquos rhetoric In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays
on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 264
24
De fato embora exista uma ruptura de pensamento entre a criacutetica inicial agraves
emoccedilotildees e o seu posterior desenvolvimento nos capiacutetulos subsequentes acreditamos
que natildeo haacute motivo para largar pelo menos aquela censura direcionada ao uso das
emoccedilotildees com o objetivo de fugir das questotildees essenciais objeto de controveacutersia De
todo modo tal mudanccedila de entendimento permanece de difiacutecil explicaccedilatildeo e conforme
assevera Hall o novo posicionamento fez com que Aristoacuteteles possivelmente
influenciado por Platatildeo tenha elegido as emoccedilotildees um dos objetos centrais da retoacuterica37
Ainda sobre a importacircncia quantitativa e qualitativa que as emoccedilotildees adquirem na
retoacuterica aristoteacutelica se pensarmos que pathos eacute tema especificamente pertencente a uma
das partes da alma e por isso esperariacuteamos encontrar na obra psicoloacutegica de
Aristoacuteteles que eacute a ldquoDe Animardquo (Sobre a Alma) o seu desenvolvimento mais completo
e detalhado teremos uma certa decepccedilatildeo ao observar que no seu suposto habitat
especiacutefico a mateacuteria encontra um tratamento extremamente acanhado
comparativamente agravequele encontrado na Retoacuterica A este respeito Cooper anota ser
desapontante a abordagem do tema em ldquoDe Animardquo38
e Konstan chega a dizer que
curiosamente o melhor local para encontrar uma boa discussatildeo sobre emoccedilotildees nas
obras antigas eacute justamente nos livros de retoacuterica
Se vocecirc deseja consultar uma discussatildeo grega ou romana sobre
emoccedilotildees o lugar para procurar natildeo eacute ndash como se poderia esperar ndash em
um tratado de psicologia ou em termos claacutessicos ldquoSobre a Almardquo
(por exemplo De anima de Aristoacuteteles) mas sim um ensaio sobre
retoacuterica Em primeiro lugar no lado grego haacute a proacutepria Retoacuterica de
Aristoacuteteles com o seu tratamento detalhado no Livro II de uma duacutezia
ou mais de diferentes emoccedilotildees Na literatura latina Ciacutecero examina as
emoccedilotildees no seu De inventione assim como em outros ensaios de
oratoacuteria embora tambeacutem as trate com algum detalhe no seu diaacutelogo
filosoacutefico As Disputas Tusculanas (especialmente os livros 3 e 4)
Mais tarde no seacuteculo III DC um tal Apsines ndash se este eacute o seu nome
verdadeiro ndash pesquisou as emoccedilotildees em elaborado detalhe como parte
de um extenso livro sobre retoacuterica (apenas uma porccedilatildeo restou
especialmente a parte que trata da compaixatildeo)39
37
HALL Jon Oratorical delivery and the emotions theory and practice In DOMINIK William HALL
Jon (ed) A companion to roman rhetoric Oxford Blackwell publishing 2007 p 232 38
COOPER John M An aristotelian theory of the emotions In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed)
Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos Angeles California University Press 1996 p 238 39
ldquoIf you wish to consult an ancient Greek or Roman discussion of the emotions the place to look is not
ndash as one might have expected ndash in a treatise on psychology or in classical terms lsquoOn the Soulrsquo (for
example Aristotlersquos De anima) but rather an essay on rhetoric First and foremost on the Greek side
there is Aristotlersquos own Rhetoric with its detailed treatment in Book 2 of a dozen or more different
passions In Latin literature Cicero examines the emotions in his youthful De inventione as well as in
other essays on oratory although he also treats them at some length in his philosophical dialogue The
Tusculan Disputations (especially Books 3 and 4) As late as the third century AD a certain Apsines ndash if
that is his true name ndash surveyed the emotions in elaborate detail as part of an extensive handbook on
25
Por sua vez passando a analisar o tema mais detalhadamente no Livro II
Aristoacuteteles principia afirmando que por ser o objetivo da retoacuterica formar um juiacutezo no
ouvinte para a tomada de decisatildeo o orador natildeo deve apenas se concentrar na tarefa de
fazer criacutevel e persuasivo o seu argumento (logos) mas tambeacutem deve se preocupar tanto
com a sua proacutepria imagem tendo em vista que o seu caraacuteter (ethos) tambeacutem eacute objeto de
julgamento das pessoas quanto com a necessidade de colocar os destinataacuterios numa
determinada disposiccedilatildeo mental (pathos) reafirmando assim a doutrina dos trecircs meios
de convencimento Logo em seguida coloca esta uacuteltima forma de convencimento
(pathos) como de grande importacircncia para a oratoacuteria judicial
O relevo conferido ao trabalho retoacuterico dirigido agrave disposiccedilatildeo mental dos ouvintes
eacute devidamente esclarecido sem mais nenhuma ponderaccedilatildeo negativa da seguinte
maneira se algueacutem estiver sob o efeito do amor ou do oacutedio da indignaccedilatildeo ou da calma
os fatos lhe parecem ou totalmente distintos ou diferentes segundo criteacuterio de grandeza
ldquoquem ama acha que o juiacutezo que deve formular sobre quem eacute julgado eacute de natildeo
culpabilidade ou de pouca culpabilidade por outro quem odeia acha o contraacuteriordquo40
Assim Aristoacuteteles estabelece uma funccedilatildeo cognitiva especiacutefica para as emoccedilotildees
vale dizer eacute em funccedilatildeo delas que alteramos nossos juiacutezos acerca do mundo Estar
afetado por uma emoccedilatildeo eacute a causa ou de mudarmos nosso entendimento a respeito de
algo ou de enxergamos algo com diferente cor e intensidade Desse modo por possuir
uma funccedilatildeo tatildeo determinante no discurso o orador precisa estar preparado para bem
utilizaacute-las o que soacute se alcanccedila atraveacutes de um profundo conhecimento sobre o ser
humano
A novidade poreacutem natildeo se encerra por aiacute pois Aristoacuteteles ao dissertar sobre a
natureza das emoccedilotildees afirma que elas satildeo compostas por prazer (hedonecirc) e por dor
(lupecirc) oferecendo mais complexidade ao tema
A ideia segundo a qual as emoccedilotildees comportam tal natureza complexa ou seja
de que satildeo formadas por sentimentos mistos eacute creditada a Platatildeo que ao longo de sua
obra filosoacutefica se deparou desde cedo com o problema do prazer no Feacutedon por
exemplo o autor da Repuacuteblica adverte que o verdadeiro filoacutesofo deveria se manter
distante do prazer que eacute fonte dos maiores males (83bd) Em Goacutergias aquele que vive
desmedidamente na busca do prazer eacute considerado uma pessoa infeliz pois tenta em vatildeo
rhetoric (only a portion survives chiefly the part dealing with pity)rdquo (trad livre) KONSTAN D Op
cit p 411 40
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 84
26
preencher um jarro furado com uma peneira (493abd) Por sua vez no Filebo uma das
suas uacuteltimas obras a dor eacute definida como a desintegraccedilatildeo do estado de equiliacutebrio
natural enquanto o prazer agora numa visatildeo mais positiva busca recuperar a harmonia
perdida conforme se observa no seguinte trecho
SOCRATES O que eu afirmo eacute que quando encontramos
comprometida a harmonia nos seres vivos ao mesmo tempo haveraacute a
desintegraccedilatildeo da sua natureza e o aparecimento da dor
PROTARCO O que vocecirc diz eacute bastante plausiacutevel
SOCRATES Mas se o contraacuterio ocorre e a harmonia eacute recuperada e a
natureza inicial restabelecida precisamos dizer que o prazer surge se
devemos pronunciar apenas algumas palavras sobre as mateacuterias mais
difiacuteceis no menor tempo possiacutevel41
Com esta uacuteltima definiccedilatildeo Frede destaca que Platatildeo se concilia com alguns
aspectos da natureza humana jaacute que o prazer pelo menos agora tem uma funccedilatildeo
beneacutefica e terapecircutica para o indiviacuteduo Esta nova abordagem natildeo recorre mais agrave ideia
de que o prazer eacute um distuacuterbio ou uma doenccedila da alma e ao mesmo tempo possibilita
submeter os vaacuterios tipos de prazer a um conceito uacutenico explicando quando alguns satildeo
bons e outros natildeo (51b)42
Jaacute neste momento eacute oportuno fazer um breve cotejo entre o pensamento
platocircnico e o encontrado na Retoacuterica de Aristoacuteteles a fim de observar que o Estagirita
recorre a esta mesma ideia para estabelecer a sua definiccedilatildeo de prazer ldquoAdmitamos que
o prazer eacute um certo movimento da alma e um regresso total e sensiacutevel ao seu estado
natural e que a dor eacute o contraacuteriordquo(1370a)43
Platatildeo de outra parte apoacutes discutir vaacuterias formas de mistura de prazer e de dor
chega ao ponto que particularmente nos interessa para abordagem das emoccedilotildees na obra
aristoteacutelica Ele afirma que as emoccedilotildees tambeacutem se submetem a este mesmo fenocircmeno
misto e fornece uma lista de exemplo a ira o medo a saudade as lamentaccedilotildees o amor
a inveja a maliacutecia e outros sentimentos da mesma espeacutecie Num fragmento da Iliacuteada
citado no referido diaacutelogo a raiva eacute apresentada como algo que amarga a alma ateacute dos
41
ldquoSOCRATES What I claim is that when we find the harmony in living creatures disrupted there will
at the same time be a disintegration of their nature and a rise of pain
PROTARCHUS What you say is very plausible
SOCRATES But if the reverse happens and harmony is regained and the former nature restored we
have to say that pleasure arises if we must pronounce only a few words on the weightiest matters in the
shortest possible timerdquo(31d) (trad livre) Cf PLATAtildeO PHILEBUS trad Dorothea Frede In COOPER
John M (ed) Plato complete works IndianapolisCambridge Hacket Publishing Company 1997 p
419 42
FREDE D Op cit p 262 43
ARISTOTELES Op cit 2012 p 56
27
mais saacutebios mas ao mesmo tempo provoca um dulccedilor maior do que o mel A amargura
da raiva reside na dor que ela provoca desequilibrando o estado natural do indiviacuteduo e a
doccedilura estaacute justamente na antecipaccedilatildeo mental do ato de vinganccedila que eacute a sua imensa
fonte de prazer Por sua vez o riso que eacute um prazer quando dirigido a uma infelicidade
do outro eacute fruto da maliacutecia (Schadenfreude)44
que eacute uma dor da alma (50a)45
Retornando novamente agrave Retoacuterica Aristoacuteteles oferece uma lista de emoccedilotildees
opostas (ira calma amizade e inimizade medo confianccedila vergonha desvergonha
benevolecircncia compaixatildeo indignaccedilatildeo inveja emulaccedilatildeo etc) que seraacute enquadrada no
referido modelo teoacuterico dos sentimentos mistos Ressalte-se poreacutem que em nenhum
momento Aristoacuteteles faz referecircncia expliacutecita agrave teoria platocircnica nem utiliza a palavra
ldquomistordquo ou ldquomisturardquo e neste aspecto esclarece poucos detalhes de sua abordagem
emotiva No entanto o cotejo a seguir realizado mostra que a influecircncia platocircnica tem
fundamento e a sua investigaccedilatildeo merece ser feita a fim de compreender como foi
moldada a primeira grande abordagem retoacuterica das emoccedilotildees de que temos notiacutecia
Assim a ira eacute acompanhada de dor em funccedilatildeo de um desprezo sem razatildeo
dirigido a noacutes ou a pessoas que temos estima e de prazer na esperanccedila de se vingar que
eacute representada mentalmente no indiviacuteduo provocando um deleite comparaacutevel agravequeles
encontrados nos sonhos (1378b) O medo eacute uma dor em virtude da representaccedilatildeo de um
mal vindouro (1382a) A causa da vergonha consiste numa dor em razatildeo de males
passados presentes ou futuros que satildeo passiacuteveis de destruir a nossa reputaccedilatildeo (1383b)
A dor na inveja reside no fato de nossos semelhantes obterem sucesso na aquisiccedilatildeo de
bens desejaacuteveis ou seja o sucesso alheio eacute fonte de grande afliccedilatildeo e o prazer estaria na
possibilidade de observar o fracasso na aquisiccedilatildeo destes bens (1387b-1388a) De seu
turno na compaixatildeo a dor eacute resultado de um mal que recai naquele que natildeo a merece
fazendo-nos sofrer por extensatildeo (1385b) Na indignaccedilatildeo a dor estaacute em observar um
ecircxito imerecido (1386b) Jaacute o amor que eacute melhor tratado no Livro I nos provoca dor
diante da ausecircncia da pessoa amada cuja lembranccedila e a esperanccedila de reencontro nos
provocam prazer (1370a)
Eacute bem verdade que em relaccedilatildeo a algumas emoccedilotildees tais a amizade e a
benevolecircncia Aristoacuteteles natildeo chega a explicar quais seriam a dor e o prazer nelas
envolvidos mas conforme nota Frede isso mostra que ele estava mais preocupado em
44
A palavra alematilde Schadenfreude significa literalmente uma alegria maliciosa com o mal ou infortuacutenio
alheio 45
PLATAtildeO Op cit 1997 p 439-440
28
mostrar quais emoccedilotildees o orador deveria dominar para ser convincente no
empreendimento discursivo do que sustentar rigorosamente uma unidade teoacuterica46
De outra parte importa registrar que no detalhamento das emoccedilotildees trecircs
aspectos satildeo via de regra esclarecidos quais sejam o estado de espiacuterito em que
geralmente se encontram as pessoas que possuem determinada emoccedilatildeo contra quem ou
o que costumam ter aquela reaccedilatildeo emotiva e em quais circunstacircncias ocorrem Sem
saber estes trecircs aspectos o orador natildeo estaraacute nas condiccedilotildees ideais de alcanccedilar ecircxito no
seu empreendimento de colocar o auditoacuterio numa determinada disposiccedilatildeo mental
Por exemplo como o medo estaacute relacionado agrave visualizaccedilatildeo da ocorrecircncia de um
mal futuro que tenha possibilidade de provocar consequecircncias negativas na esfera
pessoal do indiviacuteduo o ouvinte deve estar num estado de espiacuterito que acredite que de
fato algo ruim iraacute lhe suceder Assim pessoas insensiacuteveis por jaacute terem vivenciado toda
sorte de desgraccedila na vida ou porque estatildeo muito confiantes em si mesmas por terem ou
acreditarem ter muitos amigos vigor fiacutesico prosperidade econocircmica ou outro motivo
que as fortaleccedila mentalmente natildeo sentiratildeo medo Logo a confianccedila eacute o contraacuterio do
medo e eacute um verdadeiro escudo contra o sentimento de inseguranccedila que aplaca o
medroso Por outro lado teme-se aquele que pode fazer algum mal futuro a noacutes e nesta
categoria encontram-se aqueles que satildeo injustos ou perversos desde que contem com
instrumentos para cometerem os seus atos de injusticcedila e de maldade aqueles que
provoquem temor nas pessoas mais poderosas do que noacutes os nossos concorrentes
quando o objeto de conquista natildeo pode ser compartilhado os que foram viacutetimas de
injusticcedila por estarem na espera de uma oportunidade para se vingarem Por fim em
relaccedilatildeo agrave coisa que tememos ela deveraacute ter a capacidade de nos causar grande
penosidade inclusive a proacutepria destruiccedilatildeo sendo o seu aspecto temporal altamente
relevante jaacute que tendemos a ter medo em relaccedilatildeo a um mal iminente e natildeo sentirmos
temor quanto a algo que provavelmente se sucederaacute mas a sua ocorrecircncia se daraacute num
intervalo temporal muito longiacutenquo
Na posse de tais informaccedilotildees e tentando imaginar um orador que planeje incutir
medo num auditoacuterio formado por pessoas com alto niacutevel de confianccedila certamente o
passo inicial seraacute dessensibilizar os ouvintes Se por exemplo as pessoas forem
confiantes por possuiacuterem muita riqueza seraacute necessaacuterio demonstrar no discurso que os
seus bens materiais nada poderatildeo fazer contra o mal que se aproxima Se por outro
46
FREDE D Op cit p 271
29
lado o mal lhes parece distante o discurso deveraacute enfatizar que a distacircncia natildeo eacute tatildeo
grande quanto aparenta e deveraacute reforccedilar a capacidade destrutiva deste mal bem como
certificar que apesar de longiacutenquo o infortuacutenio ocorreraacute No entanto se o auditoacuterio
estiver experimentando um medo excessivo talvez seja necessaacuterio lhes transmitir
confianccedila demonstrando que o mal natildeo seja tatildeo grande quanto aparenta ou que as
pessoas dispotildeem de meios adequados para enfrentaacute-lo
Enfim eacute preciso realizar um minucioso estudo do auditoacuterio a fim de
compreender o seu estado emocional no momento anterior ao discurso (preacute-discurso)
continuar a percebecirc-lo durante o discurso tudo isso com o objetivo de conduzir os
ouvintes a uma pretendida disposiccedilatildeo mental Nesta perspectiva a retoacuterica eacute uma
teacutecnica fundada no profundo conhecimento teoacuterico do ser humano na aquisiccedilatildeo de
experiecircncia de vida para saber decodificar as respostas emocionais especiacuteficas de um
determinado grupo social e na contiacutenua praacutetica discursiva
Cumpre acrescentar que no discurso retoacuterico haacute tambeacutem um intenso trabalho de
representaccedilatildeo mental ou melhor dizendo de imaginaccedilatildeo isto eacute phantasia As palavras
gregas phantasia e phantasma satildeo traduzidas por imagem imaginaccedilatildeo ou representaccedilatildeo
mental em diversas ocasiotildees da obra em comentaacuterio Eacute oportuno destacar que phantasia
eacute um termo teacutecnico da psicologia aristoteacutelica e natildeo se confunde com o uso atual da
palavra fantasia que significa invenccedilatildeo narrativa ficcional algo fora da realidade
A phantasia eacute uma faculdade da alma que natildeo eacute nem pensamento nem
percepccedilatildeo embora parta desta uacuteltima Ela visa dar conta de pelo menos dois
problemas a presenccedila na ausecircncia isto eacute a lembranccedila ou pensamento de objetos
ausentes a questatildeo do engano que natildeo consegue ser explicado pela ideia de que o
semelhante conhece o semelhante pois esta uacuteltima tese sustenta que o conhecimento se
identifica com os seus objetos (409b29-30) e por isso natildeo pode ldquo[] errar ou desviar
de como as coisas satildeordquo47
Assim para Aristoacuteteles a phantasia eacute uma faculdade
especiacutefica da alma que procura solucionar esse problema da cogniccedilatildeo tornando atraveacutes
da representaccedilatildeo mental o verdadeiro e o falso possiacuteveis
Desse modo Aristoacuteteles expotildee que ldquoo prazer consiste em sentir uma certa
emoccedilatildeo e a imaginaccedilatildeo [phantasia] eacute uma espeacutecie de sensaccedilatildeo enfraquecidardquo48
(1370a28-29) Ao falar acerca do prazer sentido na vitoacuteria assevera que todos gostam
47
ldquoit cannot err or deviate from the way things arerdquo CASTON Victor Aristotlersquos psychology In GILL
M L PELLEGRIN P (ed) The Blackwell Companion to Ancient Philosophy Oxford Blackwell
Publishing 2006 p 334 48
ARISTOacuteTELES Op cit 2012 p 57
30
de vencer porque criamos para noacutes mesmos uma imagem [phantasia] de superioridade
em relaccedilatildeo aos outros (1370b33) A honra e a boa reputaccedilatildeo satildeo altamente prazerosas
porque atraveacutes delas imaginamos [phantasia] estar na posse das qualidades de uma
pessoa virtuosa Na ira o prazer ocorre em face da representaccedilatildeo mental [phantasia] do
ato de vinganccedila (1378b) O medo eacute uma dor ocasionada pela representaccedilatildeo [phantasia]
de um mal iminente (1382a21) Na esperanccedila representamos mentalmente [phantasia]
que as coisas que nos transmitem seguranccedila estatildeo proacuteximas (1383a17) Por sua vez a
vergonha consiste na representaccedilatildeo imaginaacuteria [phantasia] da perda de reputaccedilatildeo pelo
indiviacuteduo (1384a24)49
Assim em vista dos trechos acima citados fica claro que phantasia tem um
papel essencial no trabalho retoacuterico porque atraveacutes de sua elaboraccedilatildeo discursiva seraacute
possiacutevel suscitar determinadas emoccedilotildees no auditoacuterio E isso porque conforme destaca
Rapp ldquomuitas emoccedilotildees surgem apenas atraveacutes da percepccedilatildeo ou da imaginaccedilatildeo
(phantasia) natildeo necessitando de uma operaccedilatildeo cognitiva superior incluindo qualquer
julgamento compreendido este uacuteltimo como uma operaccedilatildeo sofisticadardquo50
Assim em
conclusatildeo a phantasia retoacuterica consiste na induccedilatildeo de uma determinada disposiccedilatildeo
mental por meio da produccedilatildeo pelo discurso de uma imagem tipicamente associada a um
estado emocional especiacutefico
Desse modo tendo completado a exposiccedilatildeo do tema eacute possiacutevel agora notar a
evoluccedilatildeo do pensamento de Aristoacuteteles sobre as emoccedilotildees compreender de que modo
elas satildeo suscitadas entender a sua natureza complexa e a sua funccedilatildeo cognitiva precisar
quais delas satildeo importantes para o orador e por fim observar a sua centralidade dentro
da retoacuterica
13 Pathos e a eacutetica aristoteacutelica
Visto o delineamento do tema na retoacuterica aristoteacutelica e percebido o alto grau de
importacircncia que as emoccedilotildees adquirem no discurso persuasivo passamos agora a
investigaacute-las na eacutetica aristoteacutelica mais precisamente nos Livros I e II da Eacutetica a
Nicocircmaco
49
GRIMALDI William M A Aristotle Rhetoric II a commentary New York Fordham University
Press 1988 p 26 50
ldquoViele Emotionen kommen allein durch Wahrnehmung oder Einbildung (phantasia) zustande beduumlrfen
aber keiner houmlheren kognitiven Operation also auch keines Urteils falls darunter eine solche
anspruchsvollere Operation verstanden wirdrdquo (trad livre) RAPP C Op cit p 56
31
Aristoacuteteles inicia no Capiacutetulo II do Livro I dizendo que se houver um bem que
seja perseguido como um fim em si mesmo e como resultado de uma finalidade uacuteltima
tal bem dada a sua importacircncia merece por razotildees praacuteticas ser estudado e conhecido
uma vez que a tentativa de seu alcance empreende relevante esforccedilo na vida humana
Esse bem final ou supremo eacute relacionado agrave felicidade (eudaimonia) pela primeira vez no
Capiacutetulo IV ldquoverbalmente eacute-nos possiacutevel quase afirmar que a maioria esmagadora da
espeacutecie humana estaacute de acordo no que tange a isso pois tanto a multidatildeo quanto as
pessoas refinadas a ele se referem como a felicidaderdquo51
(1095a17-19)
Apoacutes discorrer sobre vaacuterias concepccedilotildees correntes sobre felicidade (eudaimonia)
oferecendo-lhes criacutetica bem como imprimindo-lhes seu ponto de vista Aristoacuteteles no
Capiacutetulo XIII afirma que ldquofelicidade eacute uma certa atividade da alma em conformidade
com a virtude perfeitardquo ou que a ldquofelicidade humana significa a excelecircncia da almardquo
justificando portanto a necessidade de se ter um conhecimento de psicologia para
melhor compreender a mateacuteria em exame
Por isso em seguida apresenta a divisatildeo da alma em uma parte dotada de razatildeo
(logon) e uma outra parte natildeo-racional (alogon) Primeiramente eacute detalhada a parte
natildeo-racional que se divide em duas uma porccedilatildeo cuida da nutriccedilatildeo e do crescimento e
por isso eacute partilhada com todos os seres vivos natildeo sendo caracteriacutestica apenas do ser
humano (parte vegetativa ou nutritiva) mas uma outra porccedilatildeo embora tambeacutem seja
natildeo-racional possui a peculiaridade de ser capaz de ouvir e obedecer a razatildeo Esta
uacuteltima porccedilatildeo eacute a sede dos desejos apetites e emoccedilotildees e geralmente eacute denominada de
parte apetitiva ou desiderativa
Poreacutem em prosseguimento sem se decidir ele observa que talvez seja mais
apropriado dividir a parte racional em duas uma que deteacutem o princiacutepio racional strictu
sensu e em si mesmo e a outra parte (a apetitiva) que natildeo possui razatildeo mas que eacute
capaz de ouvi-la ldquocomo um filho ao seu pairdquo Em ambos os casos seja a parte
irracional duplamente dividida seja a parte racional duplamente dividida uma coisa
permanece igual a parte apetitiva (desiderativa) natildeo deteacutem em si o princiacutepio racional
mas eacute capaz de escutar e obedecer a razatildeo conforme explana Rapp
Na verdade Aristoacuteteles diz que ou o sentido da frase lsquologo echonrsquo
(lsquoter razatildeorsquo) eacute bipartite ndash primeiro aquilo que tem razatildeo em sentido
estrito e a tem em si mesmo segundo aquilo que eacute capaz de obedecer
ou responder agrave razatildeo ndash ou que um elemento da parte natildeo-racional da
51
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco trad Edson Bini Satildeo Paulo Edipro 2009 p 40
32
alma eacute capaz de ouvir obedecer ou responder agravequela parte da alma
que possui razatildeo em si mesma52
Mas qual eacute a principal finalidade em apresentar esta divisatildeo da alma em uma
parte racional e outra natildeo-racional Ora se lembrarmos que a felicidade eacute um estado de
excelecircncia da alma ou em conformidade com a virtude perfeita entatildeo do conhecimento
das partes da alma e da compreensatildeo do seu bom funcionamento dependem o excelente
desempenho da totalidade da alma Assim anota Pakaluk o pressuposto impliacutecito neste
capiacutetulo eacute que a virtude do todo soacute eacute possiacutevel atraveacutes da distinccedilatildeo da virtude das
partes53
E tal portanto eacute a justificativa para apresentar a divisatildeo entre virtudes
intelectuais e virtudes morais ou eacuteticas As virtudes intelectuais satildeo aquelas pertencentes
ao campo da parte racional da alma e de seu turno as virtudes morais satildeo relacionadas
agrave parte natildeo-racional da alma mas que conforme visto tecircm a caracteriacutestica de poder
ouvir e obedecer agrave razatildeo
Interessante registrar o jogo ambiacuteguo que o vocaacutebulo ldquovirtuderdquo exerce no texto
Se num primeiro momento Aristoacuteteles usa ldquovirtuderdquo geralmente no singular para se
referir agrave felicidade conveacutem notar que agora ele passa a utilizar a palavra no plural
(virtudes intelectuais e virtudes morais) O termo grego aretecirc pode ser traduzido por
excelecircncia ou por virtude sendo que ao empregar a palavra no singular para definir a
felicidade o Estagirita quer se referir agrave atividade excelente da alma um estado que
exerce bem sua funccedilatildeo e atinge os melhores padrotildees Jaacute no segundo caso exemplificado
(plural) deseja aludir agraves virtudes individuais tais como popularmente as conhecemos
justiccedila moderaccedilatildeo coragem etc54
Assim tendo em vista tal classificaccedilatildeo o Livro II iraacute se ocupar da virtude moral
(no singular) ou seja procurar-se-aacute compreender de que maneira a parte natildeo-racional
da alma iraacute atingir o seu estado excelente enquanto as virtudes morais (no plural) iratildeo
ser exploradas em outro trecho da obra (III8-VI)
Neste propoacutesito no intuito de demonstrar em que consiste a virtude moral o
Estagirita abre a discussatildeo esclarecendo o seu modo de aquisiccedilatildeo a fim de diferenciar
tal virtude em relaccedilatildeo agrave virtude intelectual Enquanto esta uacuteltima se adquire pela
52
RAPP CPara que serve a doutrina aristoteacutelica do meio termo In ZINGANO Marco (org) Sobre a
eacutetica nicomaqueia de aristoacuteteles Satildeo Paulo Odysseus Editora 2010 p 410 53
PAKALUK Michael On the unity of the nicomachean ethics In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos
nicomachean ethics a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 31 54
RAPP C Op cit 2010 p 407-408 Cf ARISTOacuteTELES Ethica Nicomachea Op cit p 78
33
instruccedilatildeo aquela eacute produto do haacutebito (ethos) marcando com esta posiccedilatildeo clara
divergecircncia com o intelectualismo socraacutetico que entende que a virtude eacute adquirida por
meio do conhecimento vale dizer para praticar atos bons e ser considerado bom eacute
suficiente que o indiviacuteduo compreenda o que eacute bondade para ser justo eacute satisfatoacuterio
conhecer o que eacute justiccedila Diferentemente no modelo aristoteacutelico algueacutem soacute se torna
virtuoso caso realize atos em conformidade com a virtude Por conseguinte eacute preciso
realizar atos de coragem ou de justiccedila para por exemplo ser considerado corajoso ou
justo
Ademais as virtudes morais natildeo satildeo inatas natildeo satildeo geradas pela natureza
(phusei) nem satildeo contraacuterias agrave natureza (paraphisen) Embora nos sejam concedidas
como potecircncias (dynameis) necessitam ser exercidas para serem adquiridas e natildeo
permanecerem em eterno estado de latecircncia Isso porque a virtude eacute uma hexis
(disposiccedilatildeo) um estado de caraacuteter adquirido que se tornou estaacutevel fixo natildeo sujeito a
regressotildees55
Eacute por isso que a sua aquisiccedilatildeo soacute ocorre mediante a repeticcedilatildeo de vaacuterios
atos (haacutebito) necessitando tambeacutem que haja conhecimento e deliberaccedilatildeo na sua praacutetica
(1105a30-35)
Poreacutem onde se encaixam as emoccedilotildees neste modelo teoacuterico Qual eacute o papel que
desempenham para o atingimento do estado de excelecircncia da parte natildeo-racional da
alma
No Capiacutetulo I do Livro II Aristoacuteteles fornece o primeiro exemplo empiacuterico
relativo agrave importacircncia das emoccedilotildees para a o desenvolvimento do caraacuteter do indiviacuteduo
ldquoatraveacutes da accedilatildeo em situaccedilotildees arriscadas e ao formar o haacutebito do [sentimento] do medo
ou [aquele] da autoconfianccedila eacute que nos tornamos corajosos ou covardesrdquo56
No Capiacutetulo
II reafirma-se o mesmo exemplo a pessoa que sente medo em relaccedilatildeo a tudo querendo
fugir de todas as situaccedilotildees iraacute adquirir o caraacuteter de um covarde sendo que aquele que
natildeo vivencia medo em face de qualquer situaccedilatildeo um temeraacuterio
Apoacutes o Estagirita enfatiza que as virtudes morais possuem seu campo de
incidecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Assim em relaccedilatildeo a estas uacuteltimas estar na
posse de uma virtude moral significa que o indiviacuteduo se encontra bem ou mal disposto a
55
WOLF Ursula A eacutetica nicocircmaco de Aristoacuteteles trad Enio Paulo Giachini Satildeo Paulo Ediccedilotildees
Loyola 2013 p 69-70 56
ARISTOacuteTELES Op cit 2009 p 68
34
sofrer o governo das emoccedilotildees ldquoas disposiccedilotildees satildeo os estados de caraacuteter formados
devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relaccedilatildeo agraves paixotildeesrdquo57
Com efeito se pensarmos que a teoria moral aristoteacutelica concerne agraves emoccedilotildees e
o vocaacutebulo pathos derivado de paschein traz consigo a ideia de que o indiviacuteduo eacute
afetado por algo isto eacute ele sofre a accedilatildeo de uma emoccedilatildeo e por isso se encontra numa
condiccedilatildeo passiva e considerando que esta mesma teoria moral tambeacutem se preocupa
com a accedilatildeo (praxis) isto eacute quando o indiviacuteduo atua e respectivamente estaacute numa
posiccedilatildeo ativa o modelo eacutetico em comentaacuterio se preocupa natildeo apenas com o agir
devidamente mas tambeacutem com o ser afetado devidamente Assim a arte de viver bem
natildeo se resume a uma arte de agir adequadamente mas sobretudo a uma arte de sentir
de modo adequado as emoccedilotildees58
Dessa forma com o objetivo de fornecer um esclarecimento conceitual acerca de
como atingir esse ponto de excelecircncia em relaccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves emoccedilotildees Aristoacuteteles
apresenta a doutrina do meio termo
Ora de tudo que eacute contiacutenuo e divisiacutevel eacute possiacutevel tomar a parte maior
ou a menor ou uma parte igual e essas partes podem ser maiores
menores e iguais seja relativamente agrave proacutepria coisa ou relativamente a
noacutes a parte igual sendo uma mediania entre o excesso e a deficiecircncia
Por mediania da coisa quero dizer um ponto equidistante dos dois
extremos o que eacute exatamente o mesmo para todos os seres humanos
pela mediania relativa a noacutes entendo aquela quantidade que nem eacute
excessivamente grande nem excessivamente pequena o que natildeo eacute
exatamente o mesmo para todos os seres humanos59
Assim em vista do modelo conceitual oferecido a excelecircncia eacutetica estaraacute no
distanciamento do muito e do muito pouco em direccedilatildeo ao centro isto eacute ao ponto
mediano A boa disposiccedilatildeo de caraacuteter eacute alcanccedilada quando se evita tanto o excesso
quanto a deficiecircncia que seriam modos de falhar tanto na accedilatildeo quanto na forma de
sentir a emoccedilatildeo
Rapp destaca que as interpretaccedilotildees normativas desta doutrina
tradicionalmente a observam como uma regra geral de onde se poderiam subsumir os
casos individuais e encontrar consequentemente uma soluccedilatildeo Assim ela tem sido
compreendida como uma diretiva (a) para que todas as nossas accedilotildees ou emoccedilotildees sejam
57
Id ibid p 74 58
KOSMAN L A Beeing properly affected virtues and feelings in Aristotlersquos ethics In RORTY
Ameacutelie Oksenberg Essays on aristotlersquos ethics BerkeleyLos Angeles California University Press
1980 p 104-105 59
ARISTOacuteTELES Eacutetica a nicocircmaco Op cit p 76
35
moderadas (b) para que apenas selecionemos as accedilotildees ou as reaccedilotildees emotivas
equidistantes dos dois extremos60
Todavia a melhor saiacuteda seria observar o seu caraacuteter anti-dedutivo jaacute que no
campo eacutetico a infinidade de situaccedilotildees e peculiaridades desaprova uma leitura ldquoregra-
casordquo desse modelo teoacuterico ldquoo melhor que a teoria eacutetica pode fazer eacute formular
enunciados que se sustentam somente mais das vezes (hocircs epi to polu) e natildeo em
geralrdquo61
Nesta aacuterea que natildeo eacute a do necessaacuterio natildeo se podem formular premissas
cogentes a partir das quais deduziriacuteamos soluccedilotildees firmes
Aristoacuteteles nesse ponto adiciona uma seacuterie de paracircmetros a fim de explanar
conceitualmente a boa medida da accedilatildeo ou da emoccedilatildeo experimentar uma emoccedilatildeo
adequadamente significa senti-la na ocasiatildeo certa oportunamente em relaccedilatildeo agraves
pessoas e aos fins certos e de maneira correta o que demonstra a complexidade do
aperfeiccediloamento eacutetico uma vez que se espera do indiviacuteduo uma grande sensibilidade agrave
experiecircncia concreta
Em tal perspectiva sentir uma emoccedilatildeo devidamente pode significar reagir de
modo eneacutergico porque uma situaccedilatildeo especiacutefica pode reclamar que a pessoa tenha uma
resposta emocional intensa Isso natildeo anula a noccedilatildeo de virtude moral esclarecida
conceitualmente pela doutrina do meio-termo porque a pessoa que natildeo reage de forma
adequada agrave ocasiatildeo em face daqueles paracircmetros expostos estaraacute ou falhando por
deficiecircncia ou por excesso Por exemplo o indiviacuteduo que frequentemente reaja com
raiva em relaccedilatildeo agraves pessoas erradas ou de maneira inoportuna ou que reaja de maneira
equivocada ou natildeo reaja quando deveria estaraacute mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees62
Assim ateacute o momento o modelo apresentado buscou esclarecer de que maneira
algueacutem estaraacute bem ou mal disposto em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees uma vez que conforme se
delineou a parte natildeo-racional da alma apenas exerce bem a sua funccedilatildeo quando ouve a
razatildeo e no campo das emoccedilotildees isso ocorre quando o indiviacuteduo as sente adequadamente
de acordo com as circunstacircncias
Poreacutem Aristoacuteteles demonstrando que no terreno da eacutetica as peculiaridades satildeo
muitas afirma que para determinadas emoccedilotildees (a inveja a malevolecircncia a impudiciacutecia
e outras semelhantes) o modelo da mediania eacute inuacutetil e os paracircmetros sequer aplicaacuteveis
60
RAPP C 2010 p 416 61
Id ibid p 419 62
RAPP COp cit 2008 p 66
36
porque tais paixotildees satildeo maacutes em si mesmas para elas soacute existe o erro pois natildeo haacute como
senti-las no momento certo quanto agrave pessoa certa ou de modo certo etc
Assim enquanto para uma gama de emoccedilotildees eacute possiacutevel afirmar que eacute possiacutevel
senti-las adequadamente e isso implica pressupor que quando apropriadamente
vivenciadas algo de bom teraacute ocorrido da sua fruiccedilatildeo para outras tal pensamento natildeo eacute
extensiacutevel
Temos que nos socorrer do Livro II da Retoacuterica a fim de evidenciar por que a
inveja seria do ponto de vista eacutetico uma emoccedilatildeo vil em si mesma o Estagirita afirma
que a mesma pessoa que experimenta alegria com a dor alheia eacute aquela que sente inveja
da felicidade dos outros e consequentemente esta mesma pessoa teraacute grande regozijo
ao observar o fracasso alheio Enquanto a indignaccedilatildeo e a inveja partilham de um ponto
comum por serem emoccedilotildees penosas engatilhadas por algo que recai na esfera alheia
entre elas existe uma destacada diferenccedila a indignaccedilatildeo eacute uma dor gerada pela
observaccedilatildeo de um sucesso imerecido (injusto) enquanto a inveja eacute uma dor provocada
pela conquista de um bem merecido (justo) Enquanto a indignaccedilatildeo e a compaixatildeo estatildeo
ligadas ao bom caraacuteter a inveja estaacute relacionada a pessoas de alma pequena
(mikropsykhoi) Ao comparar a emulaccedilatildeo com a inveja destaca que aquela eacute
experimentada por pessoas de bem de alma grande enquanto a uacuteltima por pessoas vis
despreziacuteveis que poderatildeo inclusive impedir que os outros conquistem o que merecem
Enfim parece que natildeo foi agrave toa que Aristoacuteteles de forma inusual brigou com os poetas
no iniacutecio da Metafiacutesica ao dizer que eacute mais provaacutevel que eles sejam mentirosos
conforme profere o proveacuterbio do que os deuses invejosos (1386b10-25 1387b30-39
1388a30-37 983a1-5)
Leighton nomeia de perversas (wicked) tais emoccedilotildees que satildeo vis em si mesmas
fundamentando-se na palavra grega mochteria utilizada em trecho em que eacute discutido
este mesmo assunto na Eacutetica a Eudemo (1221b21)63
Eacute bem verdade que mochteria
tambeacutem foi vertida por ldquoviacuteciordquo em algumas traduccedilotildees deste mesmo trecho na referida
obra aristoteacutelica64
mas natildeo deixa de ser um uso interessante para a descriccedilatildeo das
mencionadas emoccedilotildees parecendo-nos oportuna a sua utilizaccedilatildeo65
63
LEIGHTON Stephen Inappropriate passion In MILLER Jon (ed) Aristotlersquos nicomachean ethics
a critical guide Cambridge Cambridge University Press 2011 p 211 64
ARISTOTLE Eudemian ethics trad Michael Woods Oxford Clarendon Press 2005 p 18 65
Cf a explanaccedilatildeo dada para mochteria ldquocorrupt corruption (mochtheros mochtheria) A strong term
used to describe vicious human beings Like the English term the Greek has a range of meanings from
morally bad or wicked to perverse or depraved in ones longings and the like it can also mean in non
moral contexts simply lsquodefectiversquo or lsquobad conditionrsquo In the Ethics mochtheria is sometimes used
37
Assim por exemplo a inveja eacute uma emoccedilatildeo perversa porque conforme se viu
eacute anti-meritoacuteria O sujeito invejoso natildeo consegue enxergar um valor positivo na
conquista alheia e espera pela sua desgraccedila Consequentemente eacute uma emoccedilatildeo
relacionada ao cometimento de injusticcedilas
Mas de um modo geral todas as emoccedilotildees perversas compartilham de algo em
comum elas satildeo incompatiacuteveis com o bom caraacuteter Consoante nota Leighton as
emoccedilotildees perversas ldquo[] natildeo contribuem em nada mas apenas inibem uma vida virtuosa
ou proacutespera Enquanto a maioria das emoccedilotildees eacute objeto de elogio ou de censura
conforme as circunstacircncias particulares em que se manifestam estas merecem censura
simplesmente por serem sentidasrdquo66
Ora pelo visto ateacute o presente momento Aristoacuteteles divide as emoccedilotildees em dois
grupos aquelas que podem ser adequadamente ou natildeo-adequadamente sentidas de
acordo com as circunstacircncias e aquelas que satildeo vis em si mesmas (perversas) Naquele
primeiro grupo de emoccedilotildees os indiviacuteduos virtuosos sentiratildeo as emoccedilotildees
adequadamente enquanto aqueles natildeo-virtuosos sentiratildeo inadequadamente No segundo
grupo apenas os sujeitos de caraacuteter falho (natildeo-virtuoso) as sentiratildeo67
Desse modo de
acordo com este modelo quando devidamente formadas na disposiccedilatildeo de caraacuteter do
indiviacuteduo as emoccedilotildees contribuiratildeo significativamente no alcance de uma vida feliz
Poreacutem a despeito disso quais satildeo as outras implicaccedilotildees deste modelo
O primeiro ponto consiste em perceber que vaacuterias questotildees essenciais para a
vida inclusive para a vida em sociedade natildeo estatildeo localizadas no acircmbito de uma
racionalidade strictu sensu Se o indiviacuteduo natildeo for por haacutebito levado a constituir uma
disposiccedilatildeo de caraacuteter que o faccedila detestar a crueldade ou a indignar-se contra atos
perversos provavelmente seraacute indiferente emocionalmente a accedilotildees truculentas ou
brutas contra outras pessoas
Nesse sentido conforme pontua Striker a falha em perceber qual o melhor curso
de accedilatildeo a tomar diante de determinada situaccedilatildeo estaacute relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional
porque eacute esta que iraacute possibilitar ao indiviacuteduo ter uma boa perspectiva moral
permitindo-lhe enxergar e reconhecer o que eacute o melhor em cada circunstacircncia Pessoas
synonymously with the word for lsquovicersquo and so can serve as the contrary of lsquovirtuersquordquo ARISTOacuteTELES
Aristotlersquos nichomachean ethics tradRobert Bartlett e Susan D Collins ChicagoLondon Chicago
University Press 2011 p 307 66
ldquoThey cannot contribute to but only inhibit a virtuous or flourishing life While most passions deserve
praise and blame in terms of their manifestation in particular circumstances (indashiii) these deserve blame
simply for being feltrdquo (trad livre) LEIGHTON S Op cit p 215 67
LEIGHTON SId ibid p 226
38
incapazes de sentir adequadamente indignaccedilatildeo ou compaixatildeo seratildeo inaacutebeis em prevenir
ou aliviar o sofrimento alheio assim como natildeo estaratildeo interessadas em reparar uma
injusticcedila68
Ademais registre-se que sem medo a pessoa natildeo tem como deliberar
adequadamente diante de um perigo (1383a5) E por uacuteltimo a depender da situaccedilatildeo
talvez seja necessaacuterio responder com muita indignaccedilatildeo ou muita raiva porque a
conjuntura pode demandar uma resposta eneacutergica de modo que o ideal de que as
emoccedilotildees sejam sempre sentidas diluidamente em pequenas quantidades (metriopatheia)
natildeo estaacute condizente com tal abordagem69
De outra parte conveacutem tambeacutem compreender de que maneira este modelo eacute
extensiacutevel a outros domiacutenios pois ateacute entatildeo a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
perversas esteve atrelada ao prisma eacutetico da vida comum Mas conforme adverte
Leighton eacute possiacutevel pensar a questatildeo da adequaccedilatildeo e da perversidade das emoccedilotildees na
poliacutetica na retoacuterica na trageacutedia e nos demais domiacutenios70
Por exemplo segundo Aristoacuteteles na trageacutedia o medo e a compaixatildeo satildeo duas
emoccedilotildees-chaves e estrategicamente utilizadas para garantir o efeito cataacutertico sobre o
puacuteblico (1452a3-12) que eacute levado a se surpreender e se horrorizar com o destino do
personagem Neste acircmbito a adequaccedilatildeo de tais emoccedilotildees assim como de outras que
porventura emergirem (amor oacutedio etc) natildeo satildeo orientadas pelos criteacuterios eacuteticos da vida
comum mas pela forma poeacutetica O medo que se destina agrave catarse na trageacutedia exerce
outra funccedilatildeo na eacutetica da vida ordinaacuteria relacionando-se com a virtude da coragem Por
sua vez as emoccedilotildees adequadas agrave comeacutedia deveratildeo ser outras71
Assim como conciliar a inadequaccedilatildeo de uma emoccedilatildeo na vida ordinaacuteria e sua
adequaccedilatildeo em outro domiacutenio (trageacutedia comeacutedia poliacutetica retoacuterica etc) Leighton
oferece duas respostas
Primeiramente ele lembra que Aristoacuteteles provavelmente confiante no poder do
haacutebito de que a sua teoria moral eacute devota eacute um filoacutesofo bem mais otimista do que
Soacutecrates em relaccedilatildeo agrave corrupccedilatildeo moral Por exemplo para o Estagirita uma pessoa
pode aproveitar dos prazeres de uma comeacutedia sem que o seu caraacuteter moral seja
68
STRIKER Gisela Emotions in context aristotlersquos treatment of the passions in the rhetoric and his
moral psychology In RORTY Ameacutelie Oksenberg (ed) Essays on aristotlersquos rhetoric BerkeleyLos
Angeles California University Press 1996 p 298 69
RAPP COp cit 2008 p 66 70
LEIGHTON S Op cit p 226 71
Id ibid p 227
39
destruiacutedo porque ela jaacute eacute possuidora de uma disposiccedilatildeo fixa permanente Esta primeira
hipoacutetese enfatiza o impacto psicoloacutegico das emoccedilotildees sobre o puacuteblico72
Na segunda hipoacutetese a explicaccedilatildeo enfatiza a proacutepria ideia de domiacutenio ldquoas
circunstacircncias da vida mundana natildeo satildeo as mesmas da trageacutedia da comeacutedia da retoacuterica
e vice-versa a sua localizaccedilatildeo difere dentro do sistema teleoloacutegico aristoteacutelicordquo73
Assim eacute plenamente possiacutevel no pensamento aristoteacutelico algo ser inadequado numa
circunstacircncia e adequada em outra natildeo haacute uma pretensatildeo prima facie de que se algo eacute
inadequado num determinado domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro
Portanto a adequaccedilatildeoinadequaccedilatildeo estaacute relacionada com os fins e a forma de um
especiacutefico domiacutenio sendo que os criteacuterios de adequaccedilatildeo em cada acircmbito natildeo estatildeo em
competiccedilatildeo Conveacutem registrar poreacutem que pensar na pluralidade de domiacutenios e sua
respectiva independecircncia em termos de adequaccedilatildeo natildeo significa que eles sejam
completamente autocircnomos e desconectados pois em verdade todos os domiacutenios estatildeo
subordinados agrave teleologia aristoteacutelica do bem74
Assim Leighton afirma que uma explicaccedilatildeo baseada no domiacutenio prefere a uma
psicoloacutegica por trecircs motivos 1) explica por que Aristoacuteteles oferece diferentes criteacuterios
de adequaccedilatildeo para domiacutenios distintos 2) natildeo necessita recorrer agrave ideia de que se algo eacute
inadequado em um domiacutenio seraacute necessariamente inadequado em outro 3) possibilita
que faccedila sentido a ideia aristoteacutelica de que a adequaccedilatildeo de determinadas atividades varia
de acordo com o domiacutenio Por outro lado uma explanaccedilatildeo psicoloacutegica falha por
tambeacutem trecircs motivos 1) embora seja coerente com a noccedilatildeo de haacutebito natildeo explica a
diferenccedila entre domiacutenios 2) natildeo deixa de carregar uma censura moral consigo 3) natildeo
compreende a visatildeo aristoteacutelica de adequaccedilatildeo emotiva por domiacutenios distintos75
De fato a explicaccedilatildeo por domiacutenios oferece uma boa compreensatildeo do tema em
relaccedilatildeo agravequelas emoccedilotildees enquadraacuteveis no grupo das adequadasinadequadas de acordo
com as circunstacircncias Poreacutem o que dizer das emoccedilotildees vis em si mesmas perversas A
inveja por exemplo pode eventualmente ser adequada por domiacutenio (poliacutetica retoacuterica
etc)
Leighton afirma que a rigor uma emoccedilatildeo perversa natildeo pode ser adequada em
nenhuma circunstacircncia nem em nenhum domiacutenio considerando todas as caracteriacutesticas
72
Id ibid p 230 73
ldquoThe circumstances of mundane life are not those of tragedy comedy rhetoric and vice versa their
placement within Aristotlersquos teleological framework differsrdquo (trad livre) Id ibid p 231 74
Id ibid p 231-232 75
Id ibid p 231
40
jaacute relacionadas a respeito de tais emoccedilotildees Poreacutem ele simplesmente natildeo consegue
explicar por que Aristoacuteteles endossa o uso das emoccedilotildees perversas na retoacuterica ldquonoacutes
entendemos melhor aquilo e por que os poetas estavam errados em atribuir a inveja agrave
natureza divina mas permanecemos desconcertados por que Aristoacuteteles nos prepara
para utilizar a inveja na retoacutericardquo76
Para tentar solucionar esse verdadeiro enigma de que tratamos no toacutepico
anterior e que agora novamente retorna Leighton deveria tambeacutem ter enfrentado o
problema da compatibilidade do pensamento aristoteacutelico nos Livros I e II da Retoacuterica
Conforme dissemos anteriormente a criacutetica inicial de Aristoacuteteles ao uso das emoccedilotildees no
Capiacutetulo I do Livro I eacute conflitante com o posicionamento oferecido no Livro II e por
isso sem pressupor alguma mudanccedila de entendimento no pensamento do Estagirita fica
difiacutecil uma boa explicaccedilatildeo
Ainda assim eacute razoaacutevel supor que Aristoacuteteles tenha permanecido criacutetico em
relaccedilatildeo a um uso retoacuterico das emoccedilotildees que conduzisse ao desvirtuamento do problema
enfrentado Poreacutem no Livro II da Retoacuterica ele prepara o orador para utilizar todas as
emoccedilotildees inclusive aquelas condenaacuteveis na eacutetica da vida comum De certa forma tendo
em vista os propoacutesitos da retoacuterica e considerando que a arena puacuteblica por vezes nos
reserva situaccedilotildees inesperadas e certamente desagradaacuteveis eacute mais desejaacutevel estar
preparado para usar todas as emoccedilotildees sem censuraacute-las previamente em si mesmas
Talvez sob esta perspectiva seja justificaacutevel a quebra de coerecircncia
Por fim como fechamento desta investigaccedilatildeo eacute necessaacuterio registrar que a eacutetica
aristoteacutelica consegue ateacute hoje manter a sua atualidade pelo modo como integrou as
emoccedilotildees dentro de seu modelo de vida virtuosa Com exceccedilatildeo das emoccedilotildees perversas o
indiviacuteduo virtuoso aristoteacutelico sente as emoccedilotildees que todos noacutes sentimos na vida comum
embora ele tenha adquirido um grande diferencial sua resposta emocional eacute excelente
isto eacute ele sente medo raiva indignaccedilatildeo compaixatildeo amor mas numa intensidade
adequada agrave situaccedilatildeo experenciada
14 Apatheia o pathos na eacutetica e na retoacuterica estoica
Apoacutes analisar as emoccedilotildees primeiramente na retoacuterica e depois na eacutetica
aristoteacutelica passa-se agora a investigaacute-las no acircmbito da teoria estoica Se em relaccedilatildeo agrave
76
ldquoWe understand better that and why the poets were wrong to attribute envy to the divine nature but
remain puzzled why Aristotle prepares us to deploy envy in rhetoricrdquo (trad livre) Id ibid p 235
41
obra do Estagirita percorremos o referido trajeto agora teremos que comeccedilar o estudo
pela eacutetica estoica para depois chegarmos agrave retoacuterica O motivo para a alteraccedilatildeo de
percurso reside no fato de que sabemos bem mais detalhes da eacutetica do que da retoacuterica
estoica Ademais registre-se que nada sobrou dos textos de Zenatildeo de Ciacutecio (334-262
aC) Cleanto de Assos (331- aC) e Crisipo de Soles (280-204 aC) os fundadores do
estoicismo
Embora o estoicismo tenha sido praticado por um longo periacuteodo que abrange
cinco seacuteculos foi a partir do seu decliacutenio no seacuteculo III dC que as suas obras
inaugurais deixaram de ser preservadas Hoje em dia o estudo dos fundadores da escola
se baseia exclusivamente em fontes indiretas de autores tardios e sobretudo por meio
de comentaacuterios de seus adversaacuterios77
Crisipo embora natildeo tenha iniciado a escola estoica foi o seu mais importante
pensador sendo que muito do que hoje imputamos genericamente ao estoicismo eacute na
verdade o seu pensamento Dos seus mais de 705 (setecentos) livros escritos que
incluem um tratado exclusivamente sobre retoacuterica e outro sobre as emoccedilotildees soacute restam
fragmentos ou comentaacuterios Credita-se sobretudo a ele o enorme desenvolvimento da
loacutegica estoica considerada uma verdadeira preciosidade pelos especialistas Brennan eacute
incisivo ao dizer que ldquoentre os antigos apenas Platatildeo e Aristoacuteteles o ultrapassam como
filoacutesofordquo78
Com efeito considerado o extenso periacuteodo de tempo abrangido eacute de se esperar
que o desenvolvimento da escola estoica tenha passado por fases distintas de modo que
a histoacuteria do estoicismo eacute tradicionalmente dividida em trecircs momentos (i) fase inicial
periacuteodo no qual estaacute inserida a figura de Crisipo e que vai da fundaccedilatildeo da escola por
Zenatildeo em torno do seacuteculo III aC ateacute o fim do seacuteculo II dC (ii) fase intermediaacuteria que
coincide com a era de Paneacutecio e Posidocircnio (iii) fase do estoicismo romano coincide
com o periacuteodo imperial romano e os autores principais satildeo Secircneca Epicteto e Marco
Aureacutelio79
A nossa abordagem poreacutem natildeo se interessaraacute em investigar o desenvolvimento
do tema a ser estudado desde os fundadores do estoicismo ateacute os seus autores tardios
77
TIELEMAN T Op cit p 1 CHAUIacute Marilena Introduccedilatildeo agrave histoacuteria da filosofia as escolas
heleniacutesticas Satildeo Paulo Companhia das Letras 2010 p 118 78
ldquoAmong the ancients only Plato and Aristotle surpass him as philosophersrdquo (trad livre) BRENNAN
Tad The stoic life emotions duties amp fate Oxford Clarendon Press p11 SEDLEY David The school
from zeno to arius didymus In INWOOD Brad (ed) The Cambridge companion to the stoics
Cambridge Cambridge University Press p 17 LAEacuteRCIO Dioacutegenes Lives of eminent philosophers
trad R D Ricks London William Heineman 1925 p 317 79
SEDLEY D Op cit p 7
42
(fase do estoicismo romano) nem explanar eventuais discordacircncia entre eles Ao inveacutes
disso revela-se suficiente empreender um estudo que possibilite a compreensatildeo
tradicional das emoccedilotildees no campo da eacutetica possibilitando visualizar os eventuais
reflexos sobre a retoacuterica estoica
Ainda assim a delimitaccedilatildeo da abordagem natildeo deixa de ser desafiadora dado o
impressionante grau de sistematicidade da teoria estoica Atento a isso Ciacutecero diz que eacute
difiacutecil tirar um uacutenico elemento da teoria estoica sem prejudicar todo o resto do sistema
a que ele compara a um edifiacutecio
Certamente nenhuma obra da natureza (embora nada seja mais
finamente disposto do que a natureza) ou produto fabricado revela
tamanha organizaccedilatildeo tamanha estrutura firmemente soldada
Conclusatildeo segue infalivelmente da premissa posterior
desenvolvimento da ideia inicial Vocecirc pode imaginar outro sistema
em que a remoccedilatildeo de uma uacutenica letra como uma peccedila de encaixe
faria com que todo o edifiacutecio viesse a baixo80
Desse modo a fim de iniciar a nossa explanaccedilatildeo conveacutem registrar
primeiramente que para os estoicos a virtude eacute a uacutenica coisa boa que existe e o viacutecio
que eacute o seu contraacuterio a uacutenica coisa maacute Excluindo as virtudes e os viacutecios todo o resto
estaacute incluiacutedo na categoria dos indiferentes Assim sauacutede beleza forccedila riqueza
reputaccedilatildeo nascimento nobre satildeo considerados indiferentes assim como os seus
opostos doenccedila pobreza feiura etc ldquoos estoicos jamais diriam que a riqueza algumas
vezes eacute boa ou que em algumas vezes participa do bem ou que eacute boa se usada
corretamenterdquo81
Isso porque para eles a riqueza eacute algo invariavelmente classificado
como indiferente Ademais anote-se que a posse de tais indiferentes que satildeo
considerados bens externos natildeo eacute necessaacuterio para o indiviacuteduo ser feliz
Dentro da categoria dos indiferentes nem todos estatildeo no mesmo patamar
porque alguns estatildeo em conformidade com a natureza outros contraacuterios agrave natureza e
outros nem um nem outro Sauacutede e beleza por exemplo satildeo indiferentes que estatildeo em
conformidade com a natureza e por isso satildeo valorados positivamente Diante da
possibilidade devemos selecionar os indiferentes em conformidade com a natureza e
80
ldquoSurely no work of nature (though nothing is more finely arranged than nature) or manufactured
product can reveal such organization such a firmly welded structure Conclusion unfailingly follows
from premise later development from initial idea Can you imagine any other system where the removal
of a single letter like an inter-locking piece would cause the whole edifice to come tumbling downrdquo
(trad livre) CICERO On Moral ends trad WOOLF Raphael Cambridge Cambridge University
Press 2004(III74) p 88 81
BRENNAN T Op cit p 120
43
natildeo selecionar os indiferentes contraacuterios agrave natureza que satildeo desvalorados Por sua vez
dentre os indiferentes em conformidade com a natureza alguns possuem mais valor do
que outros e logo satildeo considerados preferiacuteveis A mesma ideia eacute extensiacutevel aos
indiferentes contraacuterios agrave natureza alguns possuem mais desvalor do que outros e dessa
forma satildeo menos preferiacuteveis
Um primeiro problema em relaccedilatildeo aos indiferentes diz respeito agrave sua
incontrolabilidade uma vez que satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna e por isso agrave
contingecircncia82
Outro problema consiste na possibilidade de tanto causarem benefiacutecio
quanto prejuiacutezo Riqueza e sauacutede por exemplo natildeo satildeo bons em si mesmos porque
podem ser utilizados tanto para o bem quanto para o mal e tudo aquilo que ostenta tal
possibilidade natildeo eacute bom Eacute melhor por exemplo natildeo ter sauacutede caso ela seja o
instrumento que possibilite a praacutetica de atos vis conforme explana Graver
Nem mesmo a sauacutede eacute beneacutefica o tempo todo Se um ditador violento
pretende recrutar vocecirc para se tornar parte de um esquadratildeo da morte
entatildeo eacute preferiacutevel natildeo estar fisicamente apto (Secircneca que teve
alguma experiecircncia com ditadores recomenda suiciacutedio em tais casos)
Por esta razatildeo os estoicos argumentam que nem sauacutede nem riqueza
nem qualquer outro objeto externo eacute verdadeiramente beneacutefico em
tudo e tambeacutem os seus opostos natildeo satildeo totalmente prejudiciais O
verdadeiro valor natildeo aparece e desaparece com a ocasiatildeo83
Tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que virtude e felicidade e por outro lado viacutecio e
infelicidade coincidem na eacutetica estoica sendo que a virtude eacute identificada como um
estado de caraacuteter consistente que deve ser escolhida por si mesma e natildeo por outro
objeto externo84
Plutarco destaca que em uacuteltima instacircncia eacute a razatildeo que possibilita a
aquisiccedilatildeo de tal caraacuteter ldquo[] todos esses homens concordam em considerar a virtude
como um certo caraacuteter e poder da faculdade-comandante da alma engendrada pela
razatildeo ou melhor um caraacuteter que eacute em si mesmo consistente firme e de razatildeo
imutaacutevel[]rdquo85
A palavra ldquohomologiardquo traduzida por ldquoconsistecircnciardquo apreende bem a
82
Id ibid p 122 83
ldquoNot even health is beneficial all the time If a brutal dictator is seeking to conscript you to become part
of a death squad then it is preferable not to be physically fit (Seneca who had some experience of
dictators recommends suicide in such instances) For this reason the Stoics argue neither health nor
wealth nor any other external object is truly beneficial at all and neither are their opposites harmful
Genuine value does not come and go with the occasionrdquo GRAVER Margaret R Stoicism and emotion
ChicagoLondon The University of Chicago Press 2007 p 49 84
LAEacuteRCIO Diogenes 789 (SVF 339) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers translations of the principal sources vol 1 Cambridge Cambridge University Press 1987
p 377 85
ldquo[hellip]All these men agree in taking virtue to be a certain character and power of the souls commanding-
faculty engendered by reason or rather a character which is itself consistent firm and unchangeable
44
essecircncia desse modelo de eacutetica pois homo-logia significa tambeacutem ldquoharmonia com a
razatildeordquo demonstrando que a virtude eacute uma consistecircncia racional86
Os estoicos advogam a tese da unidade da virtude pois quem possui uma possui
todas as virtudes87
Quem age de acordo com uma age de acordo com todas A perfeiccedilatildeo
eacute apenas atingida quando o homem possui todas as virtudes e as suas accedilotildees satildeo
praticadas de acordo com todas elas88
Ademais ter uma vida feliz significa viver em conformidade com a natureza
que implica ao mesmo tempo viver de acordo com a virtude Neste particular natureza
significa a do proacuteprio homem e de tudo que o circunda (o todo) sendo que em ambas
permeia a reta razatildeo89
A razatildeo eacute aquilo que haacute de melhor e mais peculiar aos seres
humanos Quando correta e perfeita eacute a soma total da felicidade humana90
Um ponto central na eacutetica estoica reside na construccedilatildeo teoacuterica da figura do saacutebio
O saacutebio estoico eacute o modelo do indiviacuteduo virtuoso e autossuficiente faz tudo de modo
correto consistente e seacuterio natildeo faz nada de que poderia se arrepender nem nada contra
a sua vontade natildeo eacute assustado por nada ainda que aconteccedila algo inesperado e estranho
ele vive consistentemente conforme agrave natureza e por isso estaacute sempre feliz ldquoeacute uma
faacutecil conclusatildeo para os estoicos uma vez que perceberam que o bem final eacute uma
conformidade com a natureza e viver consistentemente com a natureza o que eacute natildeo
apenas a funccedilatildeo proacutepria do homem saacutebio mas tambeacutem estaacute em seu poderrdquo91
Poreacutem para compreender as emoccedilotildees e entender melhor as caracteriacutesticas
atribuiacutedas ao saacutebio eacute preciso esclarecer alguns aspectos da psicologia estoica
especialmente os conceitos de assentimento de impressatildeo e de impulso
Ordinariamente assentir significa concordar com aderir a algo conceder
aprovaccedilatildeo No entanto na escola estoica assentir eacute um termo teacutecnico e portanto
desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica em sua sistemaacutetica filosoacutefica Assim de acordo com
reason[hellip]rdquo Cf PLUTARCO On moral virtue 44OE-441D In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 378 86
Id ibid p 383 87
STOBAEUS 2636-24 (SVF 3280 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 379 88
PLUTARCO On Stoic self-contradictions 1046E-F (SVF 3299 243) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 379 89
LAEacuteRCIO Dioacutegenes 787-9 In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers p
395 90
SENECA Letters 769-10 (SVF 3200a) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 395 91
ldquoIt is an easy conclusion for the Stoics since they have perceived the final good to be agreement with
nature and living consistendy with nature which is not only the wise mans proper function but also in
his powerrdquo (trad livre) Cicero Tusculan disputations 581-2 In LONG A A SEDLEY D N The
Hellenistic philosophers p 398
45
os estoicos o objeto de assentimento eacute sempre uma impressatildeo que eacute a traduccedilatildeo do
termo grego phantasia Plutarco nos diz que uma impressatildeo eacute uma marca na alma92
sendo que Crisipo registra que eacute uma afecccedilatildeo ocorrida na alma93
quando atraveacutes da
visatildeo observamos um ramalhete de flores amarelas num vaso este objeto causa uma
modificaccedilatildeo na alma que eacute afetada provocando-nos a impressatildeo de que haacute um
ramalhete de flores amarela num vaso Assim o que eacute objeto de meu assentimento e
passa a ser a minha crenccedila eacute a impressatildeo de que existe um ramalhete de flores amarela
num vaso ldquoo ato de acreditar de assentir a uma impressatildeo eacute uma espeacutecie de aprovaccedilatildeo
agrave impressatildeo dizendo ldquosimrdquo a ela concordando que as coisas estejam certas que o
mundo realmente eacute como a impressatildeo retrata que sejardquo94
Como seria de se esperar o problema da impressatildeo e do assentimento diz
respeito agrave questatildeo do verdadeiro e do falso Se eu assentir a uma impressatildeo falsa terei
uma crenccedila falsa da realidade Por conseguinte o assentimento a uma impressatildeo
verdadeira iraacute originar uma crenccedila verdadeira sobre o mundo Poreacutem qual seria a este
respeito o criteacuterio que distinguiria o verdadeiro do falso
Nesse ponto entra em cena um tipo de impressatildeo que eacute o proacuteprio carro-chefe da
epistemologia estoica Chamada de phantasia kataleptike (impressatildeo cognitiva) ela
garante o conhecimento verdadeiro da realidade Eacute uma impressatildeo que apreende
precisamente o objeto tal qual ele eacute sem erros nem desvios conforme resume Sexto
Empiacuterico
A impressatildeo cognitiva eacute aquela que surge a partir do que eacute e eacute
marcada e impressa exatamente de acordo com o que eacute de tal modo
que natildeo poderia surgir a partir do que natildeo eacute Uma vez que eles [os
estoicos] sustentam que essa impressatildeo eacute capaz de apreender os
objetos com precisatildeo e eacute marcada com todas as suas peculiaridades de
forma artesanal eles dizem que tal impressatildeo tem cada um destes
fatores como atributo95
92
PLUTARCO On common conceptions 1084F-1085A (SVF 2847) In LONG A A SEDLEY D
N The Hellenistic philosophers p 238 93
AETIUS 4121-5 (SVF 254 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 237 94
ldquoThe act of believing of assenting to the impression is a kind of endorsement of the impression saying
lsquoyesrsquo to it agreeing that it gets things right that the world really is as the impression depicts it to berdquo
(trad livre) BRENNAN TOp cit p 59 95
ldquo(3) A cognitive impression is one which arises from what is and is stamped and impressed exactly in
accordance which what is of such a kind as could not arise from what is not Since they [the Stoics] hold
that this impression is capable of precisely grasping objects and is stamped with all their peculiarities in a
craftsmanlike way they say that it has each one of these as an attributerdquo EMPIRICUS Sextus Against
the professors 7247-52 (SVF 265) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 243
46
Portanto enquanto muitas impressotildees satildeo falsas porque surgem a partir do que
natildeo eacute a impressatildeo cognitiva eacute veraz pois apenas surge a partir do que eacute De outra parte
ainda que surjam a partir do que eacute muitas impressotildees representam com falha o seu
objeto o que natildeo acontece com a impressatildeo cognitiva uma vez que o seu objeto
impressor eacute representado com exatidatildeo Assim phantasia kataleptike eacute gerada a partir
do que eacute e em perfeita correspondecircncia com o que eacute ldquopara ser kataleptic a impressatildeo
precisa ser acompanhada de um tipo de garantia se vocecirc estaacute experimentando esta
impressatildeo entatildeo as coisas satildeo realmente como a impressatildeo diz que elas satildeordquo96
E isso
soacute eacute possiacutevel porque para viver em conformidade com a natureza noacutes seres dotados de
razatildeo somos equipados pela proacutepria natureza com o instrumental necessaacuterio para
realizar distinccedilotildees precisas sobre as coisas97
Todavia eacute fundamental compreender que nem todo assentimento agraves impressotildees
eacute igual Um assentimento eacute considerado forte quando eacute insuscetiacutevel de ser alterado por
meio de questionamento racional Por sua vez a caracteriacutestica do assentimento fraco
reside na sua reversibilidade Essas diferenciaccedilotildees satildeo importantes para entender que
para os estoicos o conhecimento soacute eacute possiacutevel quando simultaneamente existe um
assentimento forte a uma impressatildeo cognitiva A ausecircncia de quaisquer destas
condiccedilotildees conduz agrave formaccedilatildeo de uma mera opiniatildeo (doxa)98
Registre-se que conceder assentimentos fortes a impressotildees cognitivas eacute algo
apenas reservado ao saacutebio o qual nunca tem opiniotildees nem estaacute sujeito ao engano99
Somente o saacutebio vive uma vida plena de coerecircncia racional pois nunca erra jamais seu
conjunto de crenccedilas incorre em contradiccedilatildeo muito menos concede assentimento a algo
caso exista a miacutenima possibilidade de que este assentimento possa ser revertido100
Uma
das consequecircncias desse alto grau de exigecircncia epistecircmica consiste no fato de que as
pessoas ordinaacuterias isto eacute todos noacutes inclusive os fundadores da escola estoica natildeo
temos conhecimento a respeito de nada pois soacute assentimos de modo fraco e por isso
possuiacutemos tatildeo-soacute opiniatildeo sobre as coisas101
96
ldquoTo be kataleptic the impression has to come with a sort of guarantee if you are having this
impression then things are really as the impression says they arerdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit
p 68 97
LONG A A SEDLEY D Op cit p 250 98
BRENNAN T Op cit p 69-70 LONG A A SEDLEY D Op cit p 256-257 99
CICERO Academica 141-2 (SVF 160) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophers p 254 100
STOBAEUS 2111 18-1128 (SVF 3-548) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic
philosophershellip p 256 101
BRENNAN T Op cit p 72-73
47
Por uacuteltimo o impulso (hormecirc) pertence a uma especial classe de assentimento e
pode ser compreendido como o antecedente mental que gera uma accedilatildeo voluntaacuteria Antes
que no mundo externo uma accedilatildeo voluntaacuteria seja praticada deve ocorrer mentalmente
um evento que entenda que aquela accedilatildeo eacute apropriada para o caso Este evento eacute um
assentimento a uma impressatildeo ldquoimpulsoacuteriardquo102
Quando vejo um ramalhete de flores
amarelas numa loja e tenho a crenccedila de que ldquoseraacute uma boa coisa compraacute-la para colocar
no vaso da minha salardquo eu assinto a uma impressatildeo e minha mente se dirige para
realizar a accedilatildeo potencial contida na proposiccedilatildeo avaliativa da minha impressatildeo Por sua
vez o impulso como todo assentimento pode ser um episoacutedio de conhecimento ou de
opiniatildeo e por isso ldquoo Saacutebio deve-se dizer conhece o que ele estaacute fazendo e
especialmente o valor do que ele estaacute fazendo enquanto os natildeo-saacutebios desconhecem
tanto um quanto o outrordquo103
Com efeito na posse destes conceitos torna-se agora possiacutevel explanar
compreensivelmente o motivo pelo qual os estoicos desejam se livrar de todas as
emoccedilotildees (apatheia)
Primeiramente do ponto de vista linguiacutestico eacute necessaacuterio registrar que os
estoicos se referem ao presente tema por meio da palavra grega pathos cuja traduccedilatildeo
varia Long-Sedley verteram o termo por paixatildeo uma expressatildeo que hoje em dia para
a grande maioria das pessoas estranhas agrave sua etimologia jaacute natildeo reteacutem aquela ideia de
passividade derivada de passio uma vez que no uso comum da liacutengua inglesa e da
portuguesa paixatildeo busca designar de modo mais saliente um sentimento arrebatador
muitas vezes de caraacuteter eroacutetico Esta traduccedilatildeo pode se mostrar bastante conveniente ao
reduzir a uma questatildeo etimoloacutegica a disputa teoacuterica entre peripateacuteticos (metriopatheia) e
estoicos (apatheia) Ciente disso Tieleman prefere o termo ldquoafecccedilatildeordquo que natildeo tem os
problemas da atual significaccedilatildeo da palavra paixatildeo e ainda tem a vantagem de respeitar
a ideia de passividade e de um outro importante significado da palavra pathos que eacute a de
doenccedila Segundo defende eacute neste uacuteltimo sentido que em importantes aspectos Crisipo
utiliza o termo104
Neste mesmo sentido Buddensiek tambeacutem prefere o termo
afecccedilatildeo105
Preferimos no entanto utilizar o termo emoccedilatildeo porque concordando com
102
GRAVER M Op cit p 26-27 BRENNAN T Op cit p 86-88 103
ldquoThe Sage we might say knows what he is doing and especially the value of what he is doing while
the non-Sage knows neitherrdquo (trad livre) BRENNAN T Op cit p 103 104
TIELEMAN T Op cit p 15-16 105
BUDDENSIEK Friedmann Stoa und epikur affect als defekte oder als weltbezug In
LANDWEER Hilge RENZ Ursula (hrsg) Klassische Emotionstheorien Von Platon bis Wittgenstein
BerlinNew York Walter de Gruyter 2008 p 69-93
48
Graver noacutes designariacuteamos com esta palavra os exemplos em que os estoicos utilizam o
termo pathos106
Ademais considerando que este trabalho natildeo trata exclusivamente
sobre a filosofia estoica utilizar o termo emoccedilatildeo se adequa aos propoacutesitos de
harmonizaccedilatildeo linguiacutestica do estudo
Dito isso para os estoicos as emoccedilotildees satildeo consideradas um ldquoimpulso que eacute
excessivo e desobediente aos ditados da razatildeo ou um movimento da alma que eacute
irracional e contraacuterio agrave naturezardquo107
Desta definiccedilatildeo muito se pode extrair
primeiramente as emoccedilotildees satildeo enquadradas como um impulso mas um impulso
qualificado de extravagante e por isso transborda os limites que a razatildeo prescreve
Num segundo momento diz-se que eacute o proacuteprio movimento irracional da alma que eacute
contraacuterio agrave natureza Em suma a referida conceituaccedilatildeo em poucas palavras demonstra
o quanto as emoccedilotildees estatildeo numa posiccedilatildeo antagocircnica aos fins da filosofia eacutetica estoica
porque elas contrariam tudo o que haacute de mais caro nesta escola de pensamento as
emoccedilotildees satildeo excessivas contraacuterias agrave natureza irracionais e desobedientes aos
comandos do logos
Uma singularidade do pensamento estoico que tambeacutem ajuda a compreender
esse posicionamento diz respeito agrave sua concepccedilatildeo de alma Conforme visto
anteriormente Aristoacuteteles concebe a alma dividida numa parte racional e numa parte
natildeo-racional sendo que uma porccedilatildeo desta uacuteltima tem a particularidade de ouvir e
obedecer a razatildeo Assim porque a virtude (excelecircncia) do todo depende da virtude
(excelecircncia) das partes o bom funcionamento da parte natildeo-racional eacute imprescindiacutevel na
eacutetica aristoteacutelica e por isso as emoccedilotildees tem um espaccedilo tatildeo importante e satildeo encaradas
de maneira positiva Ter uma boa disposiccedilatildeo emocional significa ser devidamente
afetado pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias e isso contribui decisivamente
para a aquisiccedilatildeo de uma vida feliz
Eacute bem verdade que as emoccedilotildees tambeacutem tecircm um espaccedilo muito importante na
filosofia estoica mas eacute difiacutecil afirmar que satildeo encaradas de maneira positiva a alma
estoica natildeo eacute dividida em partes nem haacute porccedilatildeo irracional pois ela eacute pura razatildeo Diz-se
entatildeo que ela eacute monoliacutetica sem possibilidade de haver conflito entre as partes ldquoos
estoicos tambeacutem afirmavam em oposiccedilatildeo aos platonistas e aos aristoteacutelicos que os
106
GRAVER M Op cit p 14-15 107
ldquoThey [the Stoics] say that passion is impulse which is excessive and disobedient to the dictates of
reason or a movement of soul which is irrational and contrary to naturerdquo (trad livre) STOBAEUS
2888-906 (SVF 3378 389 part) In LONG A A SEDLEY D N The Hellenistic philosophers
p 410
49
homens satildeo racionais no sentido de que satildeo apenas racionaisrdquo108
Dessa forma as
emoccedilotildees tambeacutem se encontram em contrariedade agrave concepccedilatildeo de alma defendida pelos
fundadores estoicos
Os estoicos agrupam as emoccedilotildees em quatro grandes gecircneros dentro dos quais se
acomodam emoccedilotildees especiacuteficas
Desejo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja boa de modo que
devemos persegui-la
Medo eacute a opiniatildeo de que alguma coisa futura seja ruim de modo que
devemos evitaacute-la
Prazer eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute boa de modo que
devemos ficar contentes com isso
Dor eacute a opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim de modo que
devemos ficar abatidos com isso109
Em primeiro lugar observa-se que a divisatildeo das emoccedilotildees eacute feita por criteacuterio
temporal e por criteacuterio valorativo o desejo (epithumia) e o medo (phobos) satildeo
direcionados a algo futuro enquanto o prazer (hedone) e a dor (lupe) concernem a algo
que transcorre no momento presente Por sua vez o desejo e o prazer atribuem a um
objeto um valor positivo (bom) enquanto o medo e a dor imputam a algo um valor
negativo (ruim) Em todos os casos estamos diante de uma opiniatildeo isto eacute um
assentimento fraco (reversiacutevel) a uma impressatildeo
Exemplificativamente dentro do gecircnero ldquodesejordquo enquadram-se as seguintes
emoccedilotildees em espeacutecie raiva rancor exasperaccedilatildeo amor eroacutetico saudade acircnsia No
gecircnero ldquomedordquo relutacircncia receio consternaccedilatildeo vergonha supersticcedilatildeo pavor pacircnico
No gecircnero ldquodorrdquo inveja rivalidade ciuacuteme compaixatildeo luto ansiedade preocupaccedilatildeo
anguacutestia tristeza agonia No gecircnero ldquoprazerrdquo schadenfreude encantamento etc110
Ora em vista das definiccedilotildees expostas para os estoicos as emoccedilotildees satildeo impulsos
(os antecedentes mentais da accedilatildeo) e natildeo passam de opiniatildeo isto eacute assentimento ao
falso assentimento fraco (aquele que natildeo sobrevive a questionamento racional) Assim
quem atua guiado pelas emoccedilotildees age mal porque estaraacute sempre incidindo em episoacutedios
108
ldquoThe Stoics also claimed in opposition to Platonists and Aristotelians that humans are rational in the
sense that they are only rationalrdquo (trad livre) BRENNAN Tad The old stoic theory of emotions In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 23 BUDDENSIEK F Op cit p 72-73 109
ldquoDesire is the opinion that some future thing is a good of such a sort that we should reach out for it
Fear is the opinion that some future thing is an evil of such a sort that we should avoid it Pleasure is the
opinion that some present thing is a good of such a sort that we should be elated about it Pain is the
opinion that some present thing is an evil of such a sort that we should be depressed about itrdquo (trad
livre) BRENNAN T Op cit 2005 p 93 110
CICERO Tusculan disputations trad Margaret Graver ChicagoLondon The University of Chicago
Press 2002 (416) p 45
50
de engano em relaccedilatildeo ao mundo arrependendo-se posteriormente do que fez Mas por
que isso ocorre
Segundo Crisipo emoccedilotildees satildeo sobretudo avaliaccedilotildees111
e por assim serem
atribuem um determinado valor a algo quando algueacutem deseja fama beleza riqueza
amor eroacutetico julga que estas coisas satildeo boas e necessaacuterias agrave sua felicidade e age em
direccedilatildeo agrave sua conquista Poreacutem ao assim proceder natildeo faz mais do que contrariar toda
eacutetica estoica porque tudo isso satildeo apenas indiferentes a uacutenica coisa boa eacute a virtude No
medo avaliamos equivocadamente a realidade entendendo que algo eacute ruim quando na
verdade o uacutenico mal eacute o viacutecio E ainda que algueacutem avalie algo adequadamente
atribuindo o valor a algo que verdadeiramente lhe corresponda as emoccedilotildees continuam
sendo irracionais porque o assentimento concedido eacute fraco e por isso vacilante
possibilitando que entremos em contradiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves nossas crenccedilas e condutas112
Enfim as emoccedilotildees satildeo inconsistentes e quem age impulsionado por elas eacute incapaz de
perceber as coisas como satildeo porque se encontra num estado de cegueira conforme
resume Crisipo
A raiva [orgecirc] eacute cega frequentemente impede que vejamos coisas que
satildeo oacutebvias e frequentemente se coloca no caminho de coisas que [jaacute]
estatildeo sendo compreendidasporque as emoccedilotildees tatildeo logo comecem a
atuar expulsam o raciociacutenio e as evidecircncias em contraacuterio e nos
empurram violentamente em direccedilatildeo a accedilotildees contraacuterias agrave razatildeo113
Essa explanaccedilatildeo nos leva a indagar o que efetivamente sentiria o saacutebio estoico
porque todas as emoccedilotildees acima definidas estatildeo em total contrariedade com as
caracteriacutesticas de sua figura Assim para natildeo tornaacute-lo um ser apaacutetico e insensiacutevel foi
construiacutedo um conjunto de sentimentos compatiacutevel com as qualidades do saacutebio A esta
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees deu-se o nome de eupatheiai (eupatheia no singular)
que pode ser traduzido por ldquoboas emoccedilotildeesrdquo ou ldquosentimentos apropriadosrdquo mas que
Ciacutecero preferiu utilizar o termo ldquoconsistecircnciardquo (constatiae) Graver registra que isso
tanto pode ser uma traduccedilatildeo criativa do autor romano quanto uma terminologia
alternativa perdida do grego De toda forma consistecircncia acaba por descrever as
propriedades destes sentimentos do saacutebio que satildeo experimentados de forma racional
111
LAEacuteRCIO D Op cit (VII111) p 217 112
BRENNAN T Op cit 2005 p 96 113
ldquoAnger [orgecirc] is blind it often prevents our seeing things that are obvious and it often gets in the way
of things which are ltalreadygt being comprehended For the passions once they have started drive out
reasoning and contrary evidence and push forward violently towards actions contrary to reasonrdquo (trad
livre) PLUTARCO De virtute morali 10 (Mor 450c) apud HARRIS William V Restraining rage the
ideology of anger control in classical antiquity CambridgeMassachusetts Harvard University Press
2001 p 370
51
com prudecircncia sem engano em relaccedilatildeo agrave realidade e que atribuem os predicados de
bom e ruim agraves uacutenicas coisas que satildeo de fato boas e ruins (virtudes e viacutecios)
Assim o saacutebio natildeo sente medo mas cautela que eacute o conhecimento de um mal
futuro de modo a evitaacute-lo Natildeo haacute prazer no saacutebio mas alegria que eacute o conhecimento de
que alguma coisa presente eacute boa de sorte que se deve ficar contente com isso Ele natildeo
experimenta desejo mas vontade ou voliccedilatildeo (boulesis) que eacute o conhecimento de que
alguma coisa futura eacute boa de modo que se deve buscaacute-la114
Quanto agraves emoccedilotildees em
espeacutecie sobreviveram poucos exemplos a reverecircncia e a modeacutestia subordinam-se agrave
cautela Na alegria encontram-se o enlevo o contentamento e a equanimidade e por
fim na vontade benevolecircncia respeito amizade e afetuosidade Todavia em relaccedilatildeo agrave
dor (opiniatildeo de que alguma coisa presente eacute ruim) percebe-se que natildeo existe nenhum
eupatheia correspondente e a justificativa para isso reside no fato de que como a uacutenica
coisa ruim eacute o viacutecio e o saacutebio se livrou de todos os viacutecios ele simplesmente natildeo sente
que alguma ruim se passa com ele Assim diante da humilhaccedilatildeo da miseacuteria da fome
da doenccedila o saacutebio natildeo eacute tomado por emoccedilotildees dolorosas muito menos se torna um
sujeito infeliz porque ele adquiriu a autossuficiecircncia e sabe que tudo isso natildeo passa de
indiferentes
Frise-se que todos esses sentimentos estatildeo de acordo com a natureza e desde
que o saacutebio eacute o uacutenico que assente de modo forte a impressotildees cognitivas nunca se
arrepende posteriormente ao agir guiado por eupatheiai Ainda que algo
ordinariamente assustador se passe a exemplo de um suacutebito barulho amedrontador a
alma do saacutebio apenas se contrai leve e rapidamente por efeito de um movimento
involuntaacuterio mas muito logo percebe que nada tem para assentir nestas impressotildees e
por isso nenhum medo lhe transcorre porque ele natildeo experimenta as emoccedilotildees do
homem inferior
Assim tendo sido exposta a doutrina estoica das emoccedilotildees e percebido que o
saacutebio estoico atinge um estado que ao se livrar de toda pathecirc libertou-se do falso e
passou a atribuir valor agrave uacutenica coisa que realmente merece ser estimada (a virtude)
parte-se agora para compreender em que medida esse posicionamento influencia a
retoacuterica estoica considerando que as emoccedilotildees tradicionalmente participavam de
maneira bastante marcante da praacutetica do orador
114
BRENNAN T Op cit 2005 p 98 CIacuteCERO Op cit 2002 (412-14) p 44 GRAVER M Op
cit 2007 p 51-53 LAEacuteRCIO D Op cit VII114-117 p 221
52
Em anaacutelise da obra aristoteacutelica observou-se que embora inicialmente criacutetico de
uma retoacuterica exclusivamente centrada nas emoccedilotildees e que desviasse do assunto objeto de
controveacutersia o Estagirita muda de entendimento e faz uma explanaccedilatildeo detalhada das
emoccedilotildees e prepara satisfatoriamente o orador para utilizaacute-las em sua praxis Por sua
vez nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco as emoccedilotildees atuam destacadamente na
construccedilatildeo de uma vida virtuosa e sem elas eacute impossiacutevel tomar boas decisotildees na vida
comum Embora seja aceitaacutevel distinguir entre emoccedilotildees adequadas e inadequadas de
acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas tal classificaccedilatildeo natildeo invade o campo
da retoacuterica aristoteacutelica que se constitui num domiacutenio proacuteprio jaacute que o orador eacute
instruiacutedo para utilizar no discurso inclusive as emoccedilotildees perversas
No que concerne agrave retoacuterica estoica e comparativamente agrave obra estudada de
Aristoacuteteles dispotildee-se nitidamente de bem menos material para consulta Laeacutercio
aponta que tanto Zenatildeo quanto Crisipo escreveram manuais de retoacuterica poreacutem nada foi
preservado115
Assim o que de fato temos satildeo comentaacuterios especialmente em relaccedilatildeo
ao desempenho de oradores estoicos romanos que ajudam a construir apenas em linhas
bem gerais o que teria sido a teoria retoacuterica defendida pelos estoicos116
Primeiramente por Laeacutercio sabe-se que a retoacuterica eacute definida pelos estoicos
como a ciecircncia de bem falar numa narrativa contiacutenua e a dialeacutetica como a ciecircncia de
falar corretamente por meio de perguntas e respostas sendo que ambas compotildeem a
parte loacutegica da exposiccedilatildeo filosoacutefica A dialeacutetica eacute considerada uma virtude e por isso o
saacutebio que possui todas as virtudes tambeacutem eacute um mestre na dialeacutetica que o permite
diferenciar o verdadeiro do falso a perceber o que eacute meramente plausiacutevel e ambiacuteguo de
modo a nunca cair em truques argumentativos117
Zenatildeo informa Ciacutecero utiliza uma metaacutefora para explicar a diferenccedila entre a
dialeacutetica e a retoacuterica a dialeacutetica seria representada com uma matildeo de punhos cerrados
uma vez que o seu estilo eacute compacto Por sua vez a retoacuterica atraveacutes da palma da matildeo
aberta dado o estilo expansivo do discurso dos oradores Ele defendia tambeacutem que a
retoacuterica natildeo era algo exclusivo para oradores mas tambeacutem pertence ao domiacutenio dos
115
LAEacuteRCIO D Op cit (VII 4-5) p 115 201-202 e 317 116
ATHERTON Catherine Hand over fist the failure of stoic rhetoric In Classical quarterly 38
1988 p 393 117
LAEacuteRCIO D Op cit p 42 e 47-48
53
filoacutesofos118
Sobre este ponto Ciacutecero interessantemente relata que o estoicismo eacute a
uacutenica escola que considera a retoacuterica uma virtude e uma sabedoria119
E se de fato eacute uma virtude entatildeo a retoacuterica estoica por igual estaacute sob os
cuidados do saacutebio e em assim sendo eacute de se esperar que ela apresente pelo menos
algumas peculiaridades A primeira delas jaacute se pode antever pela proacutepria definiccedilatildeo
apresentada anteriormente por Laeacutercio natildeo encontramos referecircncia a qualquer
finalidade persuasiva em sua conceituaccedilatildeo como encontramos em Platatildeo Aristoacuteteles e
outros autores de modo que o orador estoico natildeo discursa para convencer mas para
bem falar no sentido de falar corretamente
Ciacutecero eacute enfaacutetico ao detalhar uma seacuterie de dificuldades nesta retoacuterica O primeiro
problema diz respeito agrave transferecircncia do modelo da dialeacutetica para a retoacuterica Nesse
sentido Brutus assevera ldquo[] praticamente todos os adeptos da escola estoica satildeo
muito haacutebeis em argumentos precisos trabalham por regras e sistema e satildeo bons
arquitetos no uso das palavras mas ao levaacute-los da discussatildeo para a oratoacuteria percebe-se
o quatildeo satildeo pobres e sem recursosrdquo120
Concordando com a afirmaccedilatildeo Ciacutecero diz que na
verdade a atenccedilatildeo dos estoicos estaacute absorvida na dialeacutetica e por isso utilizam um estilo
que eacute muito compacto e discursivo para o emprego no foacuterum judiciaacuterio ou na
assembleia popular121
Tambeacutem eacute na dialeacutetica e natildeo na retoacuterica que se concentra o ensino sobre as cinco
virtudes de estilo hellenismus que consiste no uso de uma linguagem sem erro
gramatical e livre de vulgaridades clareza que eacute o uso de uma linguagem apresentada
de maneira inteligiacutevel concisatildeo ou brevidade que eacute o emprego de palavras natildeo mais do
que o estritamente necessaacuterio para apresentar um tema adequaccedilatildeo o uso de um estilo
de linguagem apropriado ao tema distinccedilatildeo que consiste em evitar o coloquialismo122
Ao utilizar todas essas recomendaccedilotildees no terreno da oratoacuteria Ciacutecero diz que isso resulta
num estilo sem fluecircncia sem vida magro compacto e insignificante ldquose algum homem
118
CICERO Op cit 2004 II17 p 32 119
CICERO On the orator book III trad H Rackham CambridgeMassachusetts Harvard University
Press 1942 (III 65) p66 120
ldquo[] pratically all adherents of the Stoic school are very able in precise argument they work by rule
and system and are fairly architects in the use of the words but transfer them from discussion to
oratorical presentation and they are found poor and unresourcefulrdquo (trad livre) CICERO Op cit
1962 (118) p 107 121
CICERO Op cit 1962 (119-120) p 107-108 122
LAEacuteRCIO D Op cit (VII-59) p 167-168 ATHERTON C Op cit p 396
54
aconselhar esse estilo seria apenas no sentido de que ele eacute inadequado para um
oradorrdquo123
Todavia eacute no campo das emoccedilotildees que a eacutetica estoica tem sua influecircncia decisiva
para a retoacuterica Uma vez que a figura normativa do saacutebio se livrou de toda pathe a
retoacuterica estoica natildeo faz uso de emoccedilotildees tradicionalmente tatildeo importantes para o orador
tais como o medo a compaixatildeo a ira ou a indignaccedilatildeo porque tudo isso satildeo impulsos
excessivos irracionais contraacuterios agrave natureza sendo errado corromper a cogniccedilatildeo dos
destinataacuterios do discurso por meio de tais artifiacutecios Assim ldquoo assentimento do puacuteblico
natildeo pode ser conquistado pelo apelo agrave compaixatildeo ou agrave admiraccedilatildeo ou despertando a sua
ira ou jogando com o seu esnobismo estupidez ou vulgaridaderdquo124
Eacute certo que o saacutebio
experimenta alguns bons sentimentos (eupatheiai) mas ainda que permitido o seu uso
no discurso o seu efeito praacutetico eacute nulo
Embora expressamente nomeada como ldquoretoacutericardquo pelos estoicos eacute difiacutecil
encaixar esse modelo discursivo dentro do quadro de referecircncias que entendemos por
retoacuterica isto eacute uma disciplina preocupada em fornecer os instrumentos necessaacuterios agrave
persuasatildeo pelo discurso Atherton nesse sentido chega agrave conclusatildeo de que ldquo[] natildeo
existe tal coisa como uma lsquoretoacuterica estoicarsquo e discuti-la natildeo eacute possiacutevel natildeo (a desculpa
usual) porque inexiste evidecircncia mas porque natildeo existe nada para falar a seu
respeitordquo125
Por isso ao comentar sobre os manuais de retoacuterica de Crisipo e de
Cleantes Ciacutecero diz que eles satildeo muito bons para quem quisesse ficar calado126
Todavia a despeito do evidente paradoxo de ensinar uma retoacuterica que natildeo tinha
o miacutenimo interesse em persuadir existia de fato uma retoacuterica estoica e ela era objeto
de ensino e de praacutetica E tanto era levada a seacuterio que existiam oradores romanos que se
guiavam por este meacutetodo Ciacutecero cita os nomes de Tuberius Fannius Rutilius e Cato
Dentre estes o uacutenico estoico que tinha perfeita eloquecircncia (summam eloquentiam) era
Cato mas a justificativa para isto eacute bem simples Cato aprendeu o que tinha de bom
para aprender com a filosofia estoica mas a retoacuterica mesmo ele estudou e praticou com
123
ldquoif any man commends this style it will only be with the qualification that it is unsuitable to an oratorrdquo
(trad livre) CICERO On the orator book II trad E W Sutton CambridgeMassachusetts Harvard
University Press 1942 (159) p 313 124
ldquoan audiencersquos assent cannot be secured by winning its pity or admiration or by arousing its anger or
by playing on its snobbery or stupidity or vulgarityrdquo (trad livre) ATHERTON C Op cit p 411
Nesse mesmo sentido cf KONSTAN D Op cit p 421 125
ldquo[hellip] there is no such thing as lsquoStoic rhetoricrsquo and discussing it is not possible not (the usual excuse)
because there is no evidence but because there is nothing to talk aboutrdquo ATHERTON C Op cit p
426 126
CICERO Op cit 2004 (IV-7) p 91
55
os mestres do discurso Publius Rutilius Rufus num outro extremo entrou para histoacuteria
como um exemplo de fracasso desse meacutetodo ao se defender no estilo estoico (triste
seco e severo) de uma injusta acusaccedilatildeo de extorsatildeo se recusou a utilizar de eloquecircncia
ou fazer qualquer apelo emotivo e acabou condenado assim como Soacutecrates127
Uma vez finalizada a exposiccedilatildeo a respeito da eacutetica e da retoacuterica estoica
finalmente temos em matildeo o posicionamento a respeito das emoccedilotildees de duas respeitadas
fontes da Antiguidade
De um lado e em resumo temos a abordagem de Aristoacuteteles que tanto em sua
eacutetica quanto na sua retoacuterica esboccedila uma visatildeo positiva a respeito do tema Haacute uma forte
articulaccedilatildeo do Estagirita no sentido de destacar a relevacircncia das emoccedilotildees nestes dois
campos No fim do Livro I da Eacutetica a Nicocircmaco destaca-se que a virtude da totalidade
da alma eacute dependente da virtude de suas partes (uma racional e outra natildeo-racional) No
Livro II explana-se de que modo a parte natildeo-racional iraacute desempenhar bem a sua
funccedilatildeo Assim enfatiza-se o quatildeo importante eacute ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que
significa ser afetado adequadamente pelas emoccedilotildees de acordo com as circunstacircncias
Desse modo as emoccedilotildees satildeo sumamente relevantes para uma boa decisatildeo eacutetica pois
para o agente moral aristoteacutelico eacute impossiacutevel deliberar bem apenas com racionalidade
strictu sensu Por outro lado conforme jaacute frisamos a classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees
adequadas e inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas
realizada no Livro II da Eacutetica a Nicocircmaco natildeo invade o domiacutenio da retoacuterica muito
menos inviabiliza a tarefa persuasiva do orador
De seu turno o posicionamento estoico a respeito das emoccedilotildees necessita ser lido
de acordo com a sua peculiar sistemaacutetica filosoacutefica o fim do progresso para os estoicos
seria alcanccedilar a compreensatildeo correta do mundo128
e atingir uma felicidade
autossuficiente As emoccedilotildees portanto estatildeo na contramatildeo de tal propoacutesito porque por
meio delas sempre avaliamos equivocadamente a realidade atribuiacutemos valores a bens a
que natildeo deveriacuteamos dar a miacutenima importacircncia agimos sobretudo mal pois natildeo
percebemos as coisas como elas realmente satildeo No entanto todo esse sistema filosoacutefico
invadiu o domiacutenio da retoacuterica originando um meacutetodo no miacutenimo sui generis porque
estava em total contraposiccedilatildeo com os fins de um discurso persuasivo A retoacuterica estoica
127
CICERO Op cit 1942 (I-229-230) CICERO Op cit 1962 (113-116) p 103-105 128
ldquoFor the founding Stoics the endpoint of progress was simply that one should come to understand the
world correctlyrdquo GRAVER M Op cit p 210
56
natildeo emprega emoccedilotildees natildeo utiliza ornamentos valoriza o miacutenimo de palavras possiacutevel e
coloca secamente os fatos para serem assentidos pelo puacuteblico
Por uacuteltimo independentemente das peculiaridades de cada sistema filosoacutefico
exposto uma coisa havia em comum entre Aristoteacuteles e os estoicos as emoccedilotildees eram
levadas extremamente a seacuterio e ambos natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar
das emoccedilotildees Mesmo para o estoicismo que se mostra uma escola tatildeo sistemaacutetica tatildeo
loacutegica que valoriza tanto a coerecircncia e a consistecircncia racional natildeo se pode negar que as
emoccedilotildees (ainda que hostilmente) entrem de maneira destacada em seu sistema
filosoacutefico Conforme destaca Sorabji os estoicos realizaram um debate de alto niacutevel
sobre o tema e ateacute hoje satildeo lembrados por isso129
129
SORABJI Richard Chrysippus ndash Posidonius ndash Seneca a high-level debate on emotion In
SIHVOLA Juha ENGBERG-PEDERSEN Troels (ed) The emotions in Hellenistic philosophy
Dordrecht Kluwer Academic Publishers 1998 p 149
57
2 AS EMOCcedilOtildeES A MODERNA TEORIA DA ARGUMENTACcedilAtildeO E A
INTERDISCIPLINARIDADE
21 O contexto histoacuterico do surgimento da Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo
No Capiacutetulo anterior iniciamos a exposiccedilatildeo deste trabalho oferecendo um
panorama sobre as origens da retoacuterica O objetivo da contextualizaccedilatildeo foi evidenciar
que o desenvolvimento do estudo das emoccedilotildees no discurso soacute foi possiacutevel dentro de
uma atmosfera que valorizava o debate e a fala persuasiva em puacuteblico Portanto foi
neste ambiente Grego livre e altamente retoacuterico que se observou a necessidade de se
refletir a respeito da dimensatildeo emotiva do discurso porque se chegou agrave conclusatildeo de
que a formaccedilatildeo de um juiacutezo acerca de um determinado assunto eacute dependente do estado
emocional do sujeito
Jaacute este Capiacutetulo tem outro propoacutesito pois num vieacutes mais praacutetico objetiva
investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a Moderna Teoria da Argumentaccedilatildeo ndash
MTA130
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de
Toulmin e de Perelman-Tyteca ambas datadas de 1958 (respectivamente Os Usos do
Argumento e o Tratado da Argumentaccedilatildeo ou a Nova Retoacuterica) Aleacutem de averiguar a
relevacircncia das emoccedilotildees na MTA tambeacutem procuraremos criteacuterios de anaacutelise e de
julgamento da dimensatildeo emotiva do discurso que possam ser uacuteteis para o Capiacutetulo III
momento em que iremos realizar a anaacutelise e a avaliaccedilatildeo da fundamentaccedilatildeo de decisotildees
do Supremo Tribunal Federal - STF
Assim tal como fizemos no Capiacutetulo anterior tentaremos fornecer alguma
contextualizaccedilatildeo ao aparecimento da MTA pois como natildeo existe conhecimento
humano a-histoacuterico toda novidade do pensamento vem comprometida com os seus
problemas de eacutepoca
Para tanto a nossa intenccedilatildeo consiste em perquirir que tipo de discurso
caracterizou o contexto poliacutetico europeu que precedeu o surgimento da MTA A poliacutetica
sempre seraacute uma influecircncia importante no que diz respeito a uma teoria que se proponha
agrave anaacutelise e agrave avaliaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo E isso natildeo apenas porque a retoacuterica que eacute o
seu antecedente teoacuterico considerava desde o iniacutecio o discurso poliacutetico como um dos
130
Utilizamos a expressatildeo ldquoModerna Teoria da Argumentaccedilatildeordquo para contrastar com a Teoria da
Argumentaccedilatildeo aristoteacutelica aderindo agrave terminologia de Cristof Rapp e Tim Wagner RAPP Cristof
WAGNER Tim On some aristotelian sources of modern argumentation theory In Argumentation
Journal vol 27 Issue 1 2013 p 7-30
58
seus gecircneros por excelecircncia de discurso mas porque o discurso da esfera poliacutetica por
ter a qualidade de atingir a todos indistintamente acaba por ser um ponto comum de
reflexatildeo sobre a forma de teorizar a argumentaccedilatildeo
Assim e considerando tal finalidade eacute difiacutecil escolher outro evento poliacutetico que
natildeo os movimentos totalitaacuterios para falar neste toacutepico E desde jaacute sobressai uma
especiacutefica forma de comunicaccedilatildeo atraveacutes do qual tais movimentos estabeleciam contato
com a massa a propaganda
Embora hoje a palavra ldquopropagandardquo seja frequentemente associada a uma
informaccedilatildeo de conteuacutedo enganoso Kallis lembra que no iniacutecio do seacuteculo XX ela natildeo
desfrutava de tatildeo maacute-fama pois era empregada de modo mais isento a fim de
descrever um modo de gestatildeo da informaccedilatildeo com o objetivo de comunicar a um grande
nuacutemero de indiviacuteduos e assim obter uma especiacutefica resposta destes Dessa forma a
propaganda como espeacutecie de comunicaccedilatildeo e de persuasatildeo caracteriacutestica da
modernidade aparece com o objetivo de (i) suprir a enorme demanda de informaccedilatildeo e
de formaccedilatildeo de opiniatildeo da crescente esfera puacuteblica (ii) facilitar atraveacutes de variados
meios a absorccedilatildeo de tais informaccedilotildees131
Poreacutem para aleacutem da simples difusatildeo de informaccedilatildeo a propaganda sendo
absorvida na engrenagem do Estado aparece com outros objetivos tais como a
integraccedilatildeo a orientaccedilatildeo a mobilizaccedilatildeo a continuidade a diversatildeo Diante de
sociedades saturadas com tanta informaccedilatildeo a propaganda possibilita a criaccedilatildeo de um
ambiente comunicativo comum carregado de siacutembolos significados e desejos
compartilhados Ela tambeacutem orienta e mobiliza o indiviacuteduo em direccedilatildeo a determinados
comportamentos e accedilotildees traz uma narrativa que promove uma continuidade no tempo
conectando passado presente e futuro por fim tem a capacidade de promover diversatildeo
e relaxamento evitando o cansaccedilo132
Todos estes objetivos satildeo de suma importacircncia no contexto de naccedilotildees em guerra
e eacute em tal conjuntura histoacuterica que o debate acerca de uma abordagem sistemaacutetica sobre
a propaganda se desenvolve conforme explana Kallis
Natildeo eacute coincidecircncia que o debate sobre a formulaccedilatildeo de uma
abordagem sistemaacutetica para a lsquopropagandarsquo emergiu no contexto da
Primeira Guerra Mundial na Alemanha e em outros lugares Numa
eacutepoca de completa mobilizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo de um objetivo
nacional (tal como a vitoacuteria no confronto militar) a necessidade por
131
KALLIS Aristotle A Nazi propaganda and the second world war New York Palgrave
Macmillan 2005 p 1 132
Id ibid p 2
59
estrateacutegias de informaccedilatildeo metoacutedicas e eficientes que viessem reforccedilar
a moral do front nacional e mobilizassem toda a sociedade era
particularmente destacada133
Ellul ressalta que para atingir seus propoacutesitos comunicativos e ser de fato
efetiva a propaganda precisa ser total isto eacute ela necessita utilizar todas as miacutedias
disponiacuteveis no momento (televisatildeo raacutedio filme jornal revista internet etc) Uma vez
que cada tecnologia por suas proacuteprias caracteriacutesticas tem uma esfera de alcance
limitada haacute necessidade de que uma miacutedia complemente a outra de modo a realizar
uma completa dominaccedilatildeo sobre o indiviacuteduo134
Em relaccedilatildeo aos efeitos sobre os seus destinataacuterios a propaganda eacute acusada de
irrestrita manipulaccedilatildeo Natildeo haacute mais pensamento e accedilatildeo orientados por uma ideologia
espontacircnea Tudo resta condicionado pela trilha deliberadamente condutora da
propaganda Atraveacutes da criaccedilatildeo de estereoacutetipos enfraquece-se a capacidade de criacutetica e
de reflexatildeo da populaccedilatildeo Os detalhes e as contradiccedilotildees de opiniotildees individuais satildeo
eliminados a fim de que tudo reste homogeneizado Quanto mais potente a propaganda
mais fraco eacute o dissenso jaacute que o pensamento puacuteblico se esgota em raciociacutenios
simploacuterios maniqueiacutestas sem qualquer complexidade135
Ademais apoacutes a ingerecircncia da propaganda o que antes eram apenas sentimentos
sociais vagos e dispersos transformam-se em ideias delineadas Ellul aponta um dos
grandes trunfos para a propaganda atingir tamanho sucesso persuasivo o uso das
emoccedilotildees ldquoIsto eacute ainda mais notaacutevel porque a propaganda como vimos age muito mais
atraveacutes de choque emocional do que por convicccedilatildeo racionalrdquo136
Nada eacute mais interessante poreacutem do que ler os proacuteprios mentores da propaganda
discorrerem a respeito do tema a fim de realmente compreender de que modo eles
enxergavam o papel da propaganda no seu projeto poliacutetico e qual valor atribuiacuteam agraves
emoccedilotildees no intento persuasivo A este respeito no arquivo alematildeo de propaganda satildeo
valiosas as informaccedilotildees contidas no perioacutedico mensal do partido nazista Unser Wille
133
ldquoit is no coincidence that the debate about the formulation of a systematic approach to lsquopropagandarsquo
emerged in the context of the First World War in Germany and elsewhere At a time of full mobilisation
for the attainment of a national goal (such as victory in the military confrontation) the need for
methodical and efficient information strategies that would bolster the morale of the home front and
mobilise society was particularly highlightedrdquo (trad livre) Id ibid p 2 134
ELLUL Jacques Propaganda the formation of menrsquos attitudes trad Konrad Kellen e Jean Lerner
New York Vintage Book 1973 p 9 135
Id ibid p 201-206 136
ldquoThis is all the more remarkable because propaganda as we have seen acts much more through
emotional shock than through reasoned convictionrdquo (trad livre) Id ibid p 204
60
und Weg (Nosso Desejo e Caminho) publicado entre 1931 a 1941 e direcionado a
instruir os seus propagandistas
No perioacutedico de inauguraccedilatildeo em 1931 Goebbels foi bastante direto em afirmar
a suma importacircncia da propaganda no afatilde de alcanccedilar o almejado poder poliacutetico A
propaganda nacional socialista teria a missatildeo de transformar o caraacuteter da populaccedilatildeo e
para tanto precisaria traduzir numa linguagem clara e acessiacutevel toda a teoria nazista
Com a ajuda indispensaacutevel da engrenagem propagandiacutestica o partido ganharia novos
membros e eleitores e convenceria a todos a respeito do acerto de suas ideias
Assim a propaganda nacional-socialista eacute o aspecto mais importante
da nossa atividade poliacutetica Ela estaacute no primeiro plano dos nossos
objetivos praacuteticos Sem ela todo o nosso conhecimento seria inuacutetil
sem efeito
[]
A propaganda nacional-socialista serve para educar o povo Sua tarefa
natildeo eacute apenas ganhaacute-los para as tarefas de hoje mas ajudar na
transformaccedilatildeo de caraacuteter das grandes massas Estamos convencidos de
que uma nova poliacutetica na Alemanha soacute eacute possiacutevel apoacutes uma completa
transformaccedilatildeo do nosso caraacuteter nacional depois de toda uma nova
maneira nacional de pensar137
Em 1934 num artigo intitulado Politische Propaganda (Propaganda Poliacutetica)
Schulze-Wechsungen novamente enfatizou o papel da propaganda nacional socialista no
intuito de conquistar a populaccedilatildeo alematilde Para isso exalta-se o poder que a propaganda
possui de trabalhar as emoccedilotildees do povo pois sem isso restaria impossiacutevel atingir
convincentemente as massas
Poucas pessoas satildeo capazes de trazer o coraccedilatildeo e a mente em pleno
acordo A propaganda frequentemente tem particular importacircncia na
medida em que fala para as emoccedilotildees em vez de para o puro intelecto
O indiviacuteduo bem como as massas estatildeo sujeitos a lsquoatitudesrsquo suas
emoccedilotildees determinam sua condiccedilatildeo O poliacutetico natildeo pode friamente
ignorar essas emoccedilotildees ele deve reconhecer e compreendecirc-las se
deseja escolher o que eacute adequado da propaganda para atingir seus
objetivos138
137
ldquoThus National Socialist propaganda is the most important aspect of our political activity It is in the
foreground of our practical goals Without it all our knowledge would be fruitless without effect
[hellip]
National Socialist propaganda serves to educate the people Its task is not only to win them for the tasks
of today but to assist in the transformation of the character of the broad masses We are convinced that a
new politics in Germany is possible only after a complete transformation of our national character after
an entirely new national way of thinkingrdquo (trad livre) GOEBBELS Joseph Will and way In Wille und
Weg vol 1 1931 p 2-5 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archivewillehtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 138
ldquoFew people are able to bring heart and mind into full agreement Propaganda often has particular
importance in that it speaks to the emotions rather than to pure understanding The individual as well as
the masses are subject to lsquoattitudesrsquo their emotions determine their condition The politician may not
coldly ignore these emotions he must recognize and understand them if he is to choose the proper of
propaganda to reach his goalsrdquo (trad Livre) SCHULZE-WECHSUNGEN Politische propaganda In
61
Poreacutem eacute num artigo de tiacutetulo bastante sugestivo ldquoCoraccedilatildeo ou Razatildeordquo de 1937
direcionado para os oradores do partido que se discute espirituosamente qual eacute a
melhor forma de obter adesatildeo das pessoas que vatildeo aos encontros do partido Apoacutes
alguma explanaccedilatildeo realiza-se de iniacutecio uma forte criacutetica a certos oradores que buscam
apresentar as ideias do nacional-socialismo num estilo matemaacutetico por meio de
argumentos precisos de estatiacutestica cheios de detalhes tal como os oradores estoicos
talvez fariam ldquoexistem oradores que investigam e esculpem o seu assunto com exatidatildeo
quase cientiacutefica e esquecem totalmente que eles deveriam estar pregando uma visatildeo de
mundordquo139
Assim lembra-se que caso os primeiros oradores do partido nazista buscassem
novos adeptos por meio de um discurso cientiacutefico matemaacutetico cheios de detalhes eles
ainda estariam tentando conquistar o poder Portanto um discurso racional seria a pior
das opccedilotildees para os propoacutesitos do partido
Desse modo a soluccedilatildeo parece bastante evidente o discurso precisaria sair do
coraccedilatildeo do orador para o coraccedilatildeo dos seus destinataacuterios Em outras palavras caso
pretenda sucesso a comunicaccedilatildeo precisaria ser emotiva porque o ecircxito da fundaccedilatildeo do
partido assim como o caminho ateacute a conquista do poder ocorreu desta maneira O
convencimento do povo alematildeo natildeo poderia ser feito de modo racional
O orador e ele era a forccedila do corpo de oradores do nacional
socialismo natildeo falou para a razatildeo mas para o coraccedilatildeo Ele falou de
seu coraccedilatildeo para o coraccedilatildeo do seu ouvinte E tatildeo melhor ele
compreendeu como executar este apelo para o coraccedilatildeo tatildeo melhor ele
explorou isso e tatildeo mais receptivo foi o puacuteblico agrave sua mensagem
Naquele tempo algueacutem natildeo poderia completamente persuadir o povo
alematildeo pelo argumento racional as coisas funcionaram mal para os
partidos que tentaram essa abordagem As pessoas foram conquistadas
pelo homem que atingiu a corda que os outros tinham ignorado ndash as
sensaccedilotildees o sentimento ou como se queira chamaacute-lo o coraccedilatildeo140
Unser wille und weg vol 4 1934 p 323-332 Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-
propaganda-archivepolprophtm Acesso em 10 de janeiro de 2015 139
ldquoThere are speakers who investigate and carve up their subject with almost scientific exactitude and
utterly forget that they are supposed to be preaching a worldviewrdquo (trad livre) RINGLER Hugo Heart
or Reason what we donrsquot want from our speakers In Unser wille und weg vol 7 1937 p 245-249
Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-archiveringlerhtm Acesso em 11 de
janeiro de 2015 140
ldquoThe speaker and he was the strength of the National Socialist Speakerrsquos Corps spoke not to the
understanding but to the heart He spoke out of his heart into the heart of his listener And the better he
understood how to execute this appeal to the heart the more willingly he exploited it and the more
receptive was the audience to his message One could not at all at that time persuade the German people
by rational argument things worked out badly for parties that tried that approach The people were won
by the man who struck the chord that others had ignored mdash the feelings the sentiment or as one wants to
62
Diante de tudo o quanto foi aqui exposto se pudermos eleger algo traumaacutetico
com o qual a MTA teve que lidar jaacute no seu nascimento natildeo poderia haver melhor
candidato do que todo esse modelo de propaganda defendido pelos movimentos
totalitaacuterios e especialmente todo o forte apelo emotivo envolvido em seu discurso
Plantin baseado na classificaccedilatildeo encontrada na obra de Tchakhotine (ldquoa
violaccedilatildeo das massas pela propaganda poliacuteticardquo) lembra que a propaganda dos regimes
totalitaacuterios eacute considerada uma ldquosensopropagandardquo pois se caracteriza pelo apelo aos
sentimentos irracionais do indiviacuteduo Em contraposiccedilatildeo alega a existecircncia de uma
ldquoratiopropagandardquo isto eacute uma propaganda baseada na razatildeo141
Portanto eacute neste contexto pela busca de uma ldquoratiopropagandardquo e de um
repensar sobre o logos que os estudos da argumentaccedilatildeo reaparecem com o preciso fim
de rechaccedilar o modelo de discurso totalitaacuterio fundado em emoccedilotildees e possibilitar o
surgimento de um padratildeo de discurso racional que viabilizasse a democracia142
22 Theodor Viehweg Stephen Toulmin Chaim Perelman Olbrechts-Tyteca e as
emoccedilotildees no discurso
Neste toacutepico iniciando efetivamente a busca por criteacuterios para anaacutelise e
avaliaccedilatildeo do discurso emotivo a ser realizado no Capiacutetulo III intencionamos realizar a
investigaccedilatildeo da importacircncia das emoccedilotildees para Viehweg Toulmin e Perelman-Tyteca
A nossa escolha por tais autores justifica-se por razotildees evidentes ao mesmo
tempo em que satildeo os precursores contemporacircneos de toda uma geraccedilatildeo de estudiosos da
argumentaccedilatildeo e da retoacuterica guardando por isso uma proeminente posiccedilatildeo simboacutelica
em qualquer estudo sobre o assunto tais autores chegaram a elaborar cada qual uma
abordagem teoacuterica proacutepria
Ressalte-se que o fato de termos no Capiacutetulo I investigado a importacircncia das
emoccedilotildees na retoacuterica aristoteacutelica nos coloca agora num local privilegiado Isso porque
natildeo apenas jaacute sabemos nesta altura do trabalho como foi elaborada teoricamente a
primeira abordagem emotiva do discurso em nosso pensamento ocidental mas tambeacutem
call it the heartrdquo (trad livre) Id ibid Disponiacutevel em httpresearchcalvinedugerman-propaganda-
archiveringlerhtm Acesso em 11 de janeiro de 2015 141
PLANTIN Christian A argumentaccedilatildeo histoacuteria teorias perspectivas trad Marcos Marcionilo Satildeo
Paulo Paraacutebola Editorial 2013 p 20-21 142
Id ibid p 21
63
temos em matildeo um referencial fundamental para prosseguir nesta obra uma vez que
Aristoacuteteles foi o ponto de partida para a MTA
Isso natildeo significa dizer ressalta Rapp-Wagner que todos os teoacutericos da MTA
satildeo em um ou em outro sentido aristoteacutelicos mas que eles foram significativamente
influenciados pela teoria aristoteacutelica da argumentaccedilatildeo143
Em relaccedilatildeo a Toulmin e Perelman-Tyteca destaca-se que ldquoo programa que eacute
realizado no Usos do Argumento e na Nova Retoacuterica elabora algo como uma mistura da
Toacutepica e da Retoacuterica de Aristoacuteteles []rdquo144
Assim enquanto o esquema argumentativo
de Toulmin estaacute mais proacuteximo da Toacutepica o de Perelman-Tyteca estaacute da Retoacuterica Desse
modo a pergunta que fazemos eacute a seguinte teriam estes autores sido influenciados
tambeacutem pela abordagem aristoteacutelica das emoccedilotildees
Antes de analisar os chamados ldquopais fundadoresrdquo da Moderna Teoria da
Argumentaccedilatildeo (Toulmin e Perelman-Tyteca) conveacutem examinar em primeiro lugar o
pensamento de Viehweg que se natildeo eacute costumeiramente chamado de um fundador da
MTA pode-se dizer que foi um dos importantes precursores de tal movimento e
justifica uma anaacutelise neste mesmo toacutepico
Em 1953 Viehweg lanccedila a primeira ediccedilatildeo da sua obra Toacutepica e Jurisprudecircncia
que se dedica a investigar a relaccedilatildeo entre o saber juriacutedico e a retoacuterica Partindo do
trabalho de Vico ldquoDe nostre temporis studiorum rationerdquo que realiza uma comparaccedilatildeo
entre o meacutetodo de estudo da Antiguidade (retoacutericotoacutepico) e o da modernidade
(criacuteticocartesiano) a fim de demonstrar as desvantagens deste uacuteltimo e sua
inaplicabilidade agrave sabedoria praacutetica Viehweg problematiza a utilizaccedilatildeo dos modelos
oriundos das ciecircncias exatas para a estruturaccedilatildeo do pensamento juriacutedico conforme
expotildee Roesler
A partir da alusatildeo de Vico o problema que move a investigaccedilatildeo de
Viehweg desdobra-se na pergunta sobre a possibilidade de a
sistematizaccedilatildeo dedutiva pretendida pelos modelos matematizantes de
ciecircncia que predominaram a partir do seacuteculo XVII ser inadequada
para organizar o saber juriacutedico e dele retirar ou nele ocultar
caracteriacutesticas fundamentais145
Assim a preferecircncia do autor alematildeo pelo uso do vocaacutebulo ldquoJurisprudecircnciardquo um
termo que alude agrave eacutetica da Antiguidade claacutessica ao inveacutes de ldquoCiecircncia do Direitordquo o
143
RAPP C WAGNER T Op cit p 8 144
ldquothe program that is carried out in The Use of Arguments and in The New Rhetoric elaborates on
something like a blend of Aristotlersquos Topics and Rhetoric [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 8 145
ROESLER Claacuteudia Rosane Theodor Viehweg e a Ciecircncia do Direito toacutepica discurso racionalidade
Arraes Editores Belo Horizonte 2013 p 23
64
qual transmitiria a ideia de um saber rigorosamente cientiacutefico demostra a sua atitude
questionadora em relaccedilatildeo ao padratildeo cientiacutefico elaborado a partir de Descartes e
supostamente emprestaacutevel ao direito146
Resgatando o pensamento de Aristoacuteteles e de Ciacutecero e observando que o saber
juriacutedico eacute uma teacutecnica orientada para a soluccedilatildeo de problemas a tese de Viehweg se
funda na ideia de que a Jurisprudecircncia possui uma estrutura toacutepica Para o filoacutesofo
germacircnico o aspecto mais importante da toacutepica eacute ser uma teacutecnica de pensamento que
enfatiza os problemas ldquoa funccedilatildeo dos topoi e eacute indiferente que esses topoi se
apresentem como topoi gerais ou como topoi especiais consiste pois no fato de servir
agrave discussatildeo dos problemasrdquo147
A relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia reside justamente nesse liame Ambas se
orientam pelo problema E por isso uma teacutecnica que privilegie o tratamento de
problemas se revela mais adequada ao direito
Se a Jurisprudecircncia for uma aacuterea de problemas na qual nunca se pode
afastar completamente a irrupccedilatildeo de questotildees novas e a necessidade
de reavaliar as premissas jaacute preparadas anteriormente ou seja na qual
o problema eacute um dado constante e natildeo eliminaacutevel entatildeo podemos
pensar que a toacutepica enquanto procedimento de busca de premissas
confere-lhe a estrutura fundamental148
Ora mas se Viehweg evidencia a relaccedilatildeo entre toacutepica e Jurisprudecircncia e
demonstra a partir do trabalho teoacuterico de Aristoacuteteles e de Ciacutecero a importacircncia da
retoacuterica para o direito ele natildeo chega a explorar o viacutenculo entre as emoccedilotildees e a
argumentaccedilatildeo juriacutedica149
Eacute verdade conforme enfatiza Roesler que o referido autor
natildeo propotildee realizar uma anaacutelise exaustiva sobre o tema Mas eacute certo dizer por outro
lado que natildeo temos na abordagem de Viehweg nenhuma tentativa de anaacutelise da
relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a argumentaccedilatildeo juriacutedica150
146
ROESLER C R O papel de Theodor Viehweg na fundaccedilatildeo das teorias da argumentaccedilatildeo juriacutedica
Revista Eletrocircnica Direito e Poliacutetica Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo Stricto Sensu em Ciecircncia Juriacutedica da
UNIVALI Itajaiacute v 4 n 3 3ordm quadrimestre de 2009 pp 36-54 p 39 147
VIEHWEG Theodor Toacutepica e Jurisprudecircncia uma contribuiccedilatildeo agrave investigaccedilatildeo dos fundamentos
juriacutedico-cientiacuteficos trad Kelly Susane Alflen da Silva Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2008
p 39 148
ROESLER C ROp cit 2013 p 142 149
Sobre a importacircncia da toacutepica ciceroniana em Viehweg cf ROESLER C R CARVALHO Angelo
Gamba Prata de A recepccedilatildeo da Toacutepica ciceroniana em Theodor Viehweg In Direito amp Praxis vol 6 nordm
10 2015 p 26-48 150
A partir do trabalho de Viehweg surge na Alemanha a Escola de Mainz e a retoacuterica analiacutetica atraveacutes
de Ballweg e Sobota No Brasil Adeodato defende uma retoacuterica realista como meacutetodo para o estudo do
direito Cf ADEODATO Joatildeo Mauriacutecio Uma Teoria Retoacuterica da Norma Juriacutedica e do Direito Subjetivo
Satildeo Paulo Editora Noeses 2011 Sobre uma anaacutelise retoacuterica da corte constitucional brasileira e alematilde cf
65
De outra parte o modelo de anaacutelise de argumentos desenvolvido por Toulmin
realiza uma criacutetica ao modo pelo qual a loacutegica formal vinha sendo aplicada ao campo da
argumentaccedilatildeo Logo na abertura da sua obra ele demonstra a preocupaccedilatildeo pela maneira
como os argumentos satildeo utilizados na praacutetica e pela forma como satildeo teorizados151
Assim sua abordagem preocupa-se em desenvolver um modelo racional de anaacutelise com
o objetivo de alargar o campo da loacutegica isto eacute possibilitar ldquo[] uma transformaccedilatildeo da
loacutegica de ciecircncia formal em ciecircncia praacuteticardquo152
Em seu conhecido layout de argumentos estatildeo presentes seis elementos uma
conclusatildeo ou alegaccedilatildeo (claim) que eacute afirmada com base em um dado (date) o qual eacute
uma informaccedilatildeo ou algo conhecido do qual se pode tirar uma conclusatildeo uma garantia
(warrant) que eacute considerada uma lei de passagem isto eacute ela autoriza o passo
argumentativo entre o dado e a alegaccedilatildeoconclusatildeo um suporte (backing) que por
vezes eacute necessaacuterio para reforccedilar a garantia um modalizador ou qualificador (qualifier)
que eacute uma espeacutecie de atenuante (ldquomitigadorrdquo) entre a passagem dos dados para a
conclusatildeo e a refutaccedilatildeorestriccedilatildeo (rebuttal) que satildeo aplicadas agrave garantia a fim de retirar
sua autoridade geral
Apoacutes descrever tais elementos natildeo eacute preciso ir mais longe para observar que
este modelo natildeo busca analisar a dimensatildeo emotiva do discurso Por meio dele eacute
possiacutevel fazer certos tipos de anaacutelise mas natildeo a que noacutes pretendemos realizar As
noccedilotildees de orador e de auditoacuterio estatildeo ausentes natildeo havendo a integraccedilatildeo de tal layout a
um esquema comunicativo153
E eacute por isso que se coloca Toulmin mais perto da
dialeacutetica do que da retoacuterica
Por sua vez em relaccedilatildeo ao modelo de Perelman-Tyteca a influecircncia da retoacuterica
eacute observada de imediato no proacuteprio tiacutetulo do trabalho ldquoTratado da Argumentaccedilatildeo ou a
Nova Retoacutericardquo O desenvolvimento de sua Nova Retoacuterica representa uma criacutetica ao
racionalismo cartesiano conforme eacute deixado claro logo no iniacutecio da obra ldquoa publicaccedilatildeo
de um tratado consagrado agrave argumentaccedilatildeo e sua vinculaccedilatildeo a uma velha tradiccedilatildeo a da
a tese de doutorado de Isaac Costa Reis Limites agrave legitimidade da jurisdiccedilatildeo constitucional anaacutelise
retoacuterica das cortes constitucionais do Brasil e da Alemanha 2013 Recife UFPE 151
TOULMIN Stephen E Os usos do argumento trad Reinaldo Guarany Satildeo Paulo Martins Fontes
2006 p 2 152
BRETON Philippe GAUTHIER Gilles Histoacuteria das teorias da argumentaccedilatildeo trad Maria
Carvalho Lisboa Editorial Bizacircncio 2001 p 75-76 153
MICHELI Raphaeumll Lrsquoeacutemotion argumenteacutee lrsquoabolition de la peine de mort dans le deacutebat
parlamentaire franccedilais Paris Les Eacuteditions du Cerf 2010a p 73
66
retoacuterica e da dialeacutetica gregas constituem uma ruptura com uma concepccedilatildeo da razatildeo e do
raciociacutenio oriunda de Descartes []rdquo154
Assim Perelman-Tyteca retomam as noccedilotildees de orador e de auditoacuterio afirmando
expressamente que este eacute o campo da retoacuterica tradicional que especialmente lhes atrai
atenccedilatildeo Todo discurso se dirige a um determinado grupo de indiviacuteduos Todo texto
escrito ainda que redigido solitariamente imagina dirigir-se a algueacutem A maacute-fama da
retoacuterica na Antiguidade estava ligada ao fato de que buscava persuadir um puacuteblico de
ignorantes e de que natildeo realizava um trabalho de investigaccedilatildeo seacuterio155
Os referidos autores realizam a distinccedilatildeo entre persuadir e convencer vinculada agrave
noccedilatildeo de auditoacuterio universal O convencimento estaacute preocupado com o caraacuteter racional
da argumentaccedilatildeo e por isso a persuasatildeo guarda um estatuto teoacuterico inferior Uma
argumentaccedilatildeo persuasiva eacute dirigida a um auditoacuterio particular enquanto uma
argumentaccedilatildeo convincente busca a adesatildeo de todo o conjunto de seres racionais Ao
argumentar para o auditoacuterio universal o sujeito deve convencer ldquo[] do caraacuteter coercivo
das razotildees fornecidas de sua evidecircncia de sua validade intemporal e absoluta
independentemente das contingecircncias locais ou histoacutericasrdquo156
Particularmente quanto agraves emoccedilotildees todavia natildeo houve nenhuma recepccedilatildeo da
retoacuterica antiga No sumaacuterio da obra natildeo haacute qualquer referecircncia ao tema Se numa
pesquisa para a palavra ldquorazatildeordquo encontramos 396 (trezentos e noventa e seis)
referecircncias para a palavra ldquoemoccedilatildeordquo encontramos 13 (treze) referecircncias
Ainda assim Plantin identifica esparsamente as seguintes perspectivas sobre as
emoccedilotildees na Nova Retoacuterica (i) uma abordagem psicoloacutegica para a qual as emoccedilotildees satildeo
elementos de perturbaccedilatildeo do discurso (i) uma abordagem filosoacutefica fundada no topos
ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo (iii) uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor por meio do qual este
uacuteltimo eacute visto como menos pejorativo e (iv) um recurso que pode demonstrar
sinceridade157
Sob a influecircncia da psicologia da eacutepoca que entendia as emoccedilotildees como
perturbadoras da accedilatildeo158
o Tratado da Argumentaccedilatildeo esposa em certo trecho uma
compreensatildeo das emoccedilotildees como degradaccedilatildeo do ato linguiacutestico ldquoos indiacutecios de paixatildeo
154
PERELMAN Chaiumlm OLBRECHTS-TYTECA Lucie Tratado da argumentaccedilatildeo a nova retoacuterica
trad Maria Ermantina de Almeida Prado Galvatildeo Satildeo Paulo Martins Fontes 2005 p 1 155
Id ibid p 7 156
Id ibid p 35 157
PLANTIN Christian Les bonnes raisons des eacutemotions principes et meacutethode pour lrsquoeacutetude du
discours eacutemotionneacute Berne Peter Lang 2011 p 49 158
Id ibid p 49
67
podem pois dar azo a figuras a hesitaccedilatildeo o hipeacuterbato ou inversatildeo que substitui a
ordem natural da frase por uma ordem nascida da paixatildeordquo159
Em outra parte da obra
anota-se que a excitaccedilatildeo decorrente das emoccedilotildees deturpa a argumentaccedilatildeo do homem
apaixonado que soacute se preocupa consigo mesmo e perde a noccedilatildeo das pessoas a quem seu
discurso se destina ldquoo homem apaixonado enquanto argumenta o faz sem levar
suficientemente em conta o auditoacuterio a que se dirigerdquo160
Numa outra perspectiva realiza-se uma oposiccedilatildeo entre emoccedilatildeo e valor do
seguinte modo as emoccedilotildees podem possuir uma acepccedilatildeo negativa sendo obstaacuteculos na
argumentaccedilatildeo ou podem servir de suporte para uma argumentaccedilatildeo positiva Nesta
uacuteltima hipoacutetese a fim de se livrarem de sua carga semacircntica negativa as emoccedilotildees seratildeo
nomeadas de valores ldquohaacute que notar que as paixotildees enquanto obstaacuteculo natildeo devem ser
confundidas com as paixotildees que servem de apoio a uma argumentaccedilatildeo positiva e que
habitualmente seratildeo qualificadas por meio de um termo menos pejorativo como
valorrdquo161
A despeito dos trechos acima citados que demonstram uma concepccedilatildeo negativa
das emoccedilotildees natildeo existe nenhum tratamento sistemaacutetico do assunto natildeo tendo a retoacuterica
antiga sido recepcionada neste ponto Todavia considerando que a obra sob anaacutelise se
trata de uma ldquoNova Retoacutericardquo a ausecircncia de um tema que Aristoacuteteles dedicou tanto
espaccedilo conforme visto no Capiacutetulo I natildeo deixa de ser simboacutelica Mesmo que o objetivo
da obra de Perelman-Tyteca consista no alargamento do campo da racionalidade parece
estar impliacutecito que o orador da Nova Retoacuterica deve convencer sem se emocionar
Por uacuteltimo eacute preciso dizer que natildeo surpreende o fato de que os autores acima
estudados natildeo se interessaram pelo estudo das emoccedilotildees Considerando o contexto em
que as obras emergiram tal como discutido no toacutepico precedente este tema era um
interdito para eacutepoca Aliaacutes Perelman-Tyteca tinham plena consciecircncia de que estavam
vivendo no seacuteculo da publicidade e da propaganda como afirmam no iniacutecio da sua
obra162
Portanto pode-se afirmar que o trabalho dos ldquopais fundadoresrdquo se situa melhor
num campo de reflexatildeo sobre o logos
159
PERELMAN C Op cit p 518 160
PERELMAN C Op cit p 27 161
PERELMAN COp cit p 539 162
PERELMAN C Op cit p 5
68
23 As emoccedilotildees falaciosas
Antes de dar o proacuteximo passo e realizar no toacutepico subsequente um estudo
acerca de uma abordagem normativa sobre as emoccedilotildees eacute preciso discutir neste toacutepico
a questatildeo das falaacutecias e a sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees
As falaacutecias satildeo um dos temas centrais para qualquer teoria da argumentaccedilatildeo
Eemeren aponta que a qualidade de uma teoria da argumentaccedilatildeo estaacute diretamente
relacionada agrave maneira pela qual ela compreende as falaacutecias Assim ldquose uma teoria da
argumentaccedilatildeo consegue lidar com as falaacutecias de um modo satisfatoacuterio trata-se de um
teste positivo para o alcance e para o poder de explanaccedilatildeo de tal teoriardquo163
Isso porque uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa necessariamente oferecer
criteacuterios e normas para avaliar quando argumentaccedilotildees satildeo ou natildeo razoaacuteveis Desse
modo diz-se que as falaacutecias satildeo ardis contaminantes da argumentaccedilatildeo que caso
passem despercebidas deturpam completamente a racionalidade do discurso Em outras
palavras satildeo perigosas camuflagens que necessitam ser identificadas na
argumentaccedilatildeo164
Natildeo haacute em grego uma palavra que corresponda exatamente ao vocaacutebulo
ldquofalaacuteciardquo o seu correspondente seria ldquosofismardquo165
Falaacutecia portanto deriva do termo
em latim ldquofallaciardquo que por sua vez tem sua origem no verbo grego ldquosphalrdquo que
significa ldquocausar uma quedardquo Walton destaca que este significado eacute consistente com a
ideia aristoteacutelica de refutaccedilatildeo sofiacutestica como algo intencionalmente enganoso ou um
truque argumentativo utilizado com o objetivo de ldquocausar uma quedardquo no adversaacuterio166
Por sinal Aristoacuteteles eacute considerado um dos fundadores da disciplina Em sua
Refutaccedilotildees Sofiacutesticas ele oferece um tratamento sistemaacutetico para identificar quando um
argumento eacute incorreto ou enganoso Para o Estagirita uma falaacutecia eacute invariavelmente
uma inferecircncia que aparenta ser um silogismo poreacutem sem ser conclusivo Portanto
163
ldquoIf an argumentation theory can deal with fallacies in a satisfactory way this is a positive test as to the
scope and explanatory power of that theoryrdquo (trad livre) EEMEREN Frans van GARSSEN Bart
MEUFFELS Bert Fallacies and judgments of reasonableness empirical research concerning the
pragma-dialectics discussion rules New York Springer 2009 p 1 164
EEMEREN Frans H van et al Handbook of argumentation theory New York Springer 2014 p
25 165
HAMBLIN Charles L Fallacies London Methuen CO LTD 1970 p 50 166
WALTON Douglas The place of emotion in argument Pennsylvania The Pennsylvania State
University Press 1992 p 17
69
diante de uma falaacutecia o sujeito se encontra num estado de ilusatildeo porque imagina que a
conclusatildeo decorreu das premissas oferecidas167
Todavia o tratamento aristoteacutelico das falaacutecias foi modernamente objeto de
criacuteticas Ao utilizar conceitos metafiacutesicos como ldquopropriedade essencialrdquo ou
ldquopropriedade acidentalrdquo ou dirigir-se restritivamente apenas agrave dialeacutetica a abordagem
aristoteacutelica passou a ser considerada insuficiente para lidar com a complexidade do atual
estado de arte da argumentaccedilatildeo168
Uma das mais importantes contribuiccedilotildees acerca do tema em comentaacuterio e que
particularmente nos interessa consiste no desenvolvimento das chamadas ldquofalaacutecias adrdquo
Neste campo de estudo atribui-se a John Locke em seu Ensaio sobre o Entendimento
Humano de 1690 a invenccedilatildeo dos argumentos ad Tendo em vista a relevacircncia histoacuterica
para a mateacuteria transcreve-se a seguir o trecho em que o filoacutesofo anuncia o seu
pensamento
Antes de encerrar este assunto pode valer a pena utilizar o nosso
tempo para refletir um pouco sobre quatro tipos de argumentos que os
homens nos seus raciociacutenios com os outros normalmente fazem uso
para prevalecer o seu assentimento ou pelo menos para impressionaacute-
los assim como para silenciar sua oposiccedilatildeo
O primeiro eacute alegar as opiniotildees de homens cujas partes
aprendizagem eminecircncia poder ou alguma outra causa ganhou um
nome e estabeleceu sua reputaccedilatildeo no estima comum com algum tipo
de autoridade
[]
Isso eu acho que pode ser chamado de argumentum ad verecundiam
Em segundo lugar uma outra maneira que os homens normalmente
utilizam para conduzir os outros forccedilaacute-los a submeter aos seus juiacutezos
assim como receber a sua opiniatildeo em debate consiste em exigir que o
adversaacuterio admita como prova aquilo que eles alegam ou que
designem uma melhor E isto eu chamo argumentum ad ignorantiam
Uma terceira maneira eacute pressionar um homem com as consequecircncias
extraiacutedas de seus proacuteprios princiacutepios ou concessotildees Isto jaacute eacute
conhecido sob o nome de argumentum ad hominem
O quarto argumento sozinho nos avanccedila em direccedilatildeo ao conhecimento
e ao julgamento O quarto eacute usado de provas extraiacutedas de qualquer um
dos fundamentos do conhecimento ou probabilidade Isso eu chamo de
argumentum ad judicium Este por si soacute de todos os quatro traz a
verdadeira instruccedilatildeo com ela e nos avanccedila em nosso caminho para o
conhecimento169
167
RAPP C WAGNER T Op cit 2013 p 27 168
Id ibid p 27 169
ldquoBefore we quit this subject it may be worth our while a little to reflect on four sorts of arguments
that men in their reasonings with others do ordinarily make use of to prevail on their assent or at least to
awe them as to silence their opposition
The first is to allege the opinions of men whose parts learning eminency power or some other cause
has gained a name and settled their reputation in the common esteem with some kind of authority
70
Locke registra que estas espeacutecies de argumento (argumentum ad verecundiam
ad ignoratiam ad hominem) satildeo utilizadas geralmente quando algueacutem deseja obter
ecircxito na discussatildeo pois se destinam a impressionar a fazer prevalecer o entendimento
exposto e a emudecer o oponente Resta evidente que o filoacutesofo aqui se refere a um
modelo interativo de discurso (dialeacutetica) Ademais conveacutem notar que embora as obras
de loacutegica passaram a tratar tais argumentos como falaacutecias natildeo se observa qualquer
comentaacuterio em tal sentido pelo pensador inglecircs
Aleacutem disso eacute digno de nota o registro de Locke segundo o qual o argumento ad
hominem jaacute era conhecido agrave sua eacutepoca Mas era conhecido em qual sentido Era
conhecido em sua definiccedilatildeo ou na proacutepria expressatildeo ldquoad hominemrdquo Hamblin destaca
que provavelmente a inspiraccedilatildeo do termo vem da traduccedilatildeo em latim do seguinte trecho
das Refutaccedilotildees Sofiacutesticas de Aristoacuteteles ldquo[] estas pessoas dirigem suas soluccedilotildees
contra o homem natildeo contra o argumento []rdquo ldquo[] hi omnes non ad orationem sed ad
hominem solvunt []rdquo170
Em 1826 Whately por sua vez ao se referir aos argumentos ad populum ad
verecundiam ad hominem registra que quando ldquoinjustamente utilizadosrdquo eles satildeo
chamados falaciosos estabelecendo entatildeo uma conexatildeo com o tema das falaacutecias
Interessante salientar que o loacutegico inglecircs opotildee os argumentos anteriormente citados ao
argumentum ad rem171
Assim considerando que rem em latim significa coisa eacute
possiacutevel inferir que enquanto o argumento ad rem se direciona ao cerne da questatildeo ao
alvo argumentativo isto eacute ldquoagrave coisardquo os argumentos ad populum ad verecundiam ad
hominem representam um desvio do assunto pois se dirigem agrave pessoa ou a outras
fontes Acrescente-se ainda que Whately afirma que provavelmente o argumento ad
rem significa aquilo que outros autores (Locke por exemplo) chamam de argumento ad
judicium
Secondly Another way that men ordinarily use to drive others and force them to submit to their
judgments and receive their opinion in debate is to require the adversary to admit what they allege as a
proof or to assign a better And this I call argumentum ad ignorantiam
A third way is to press a man with consequences drawn from his own principles or concessions This is
already known under the name of argumentum ad hominem
he fourth alone advances us in knowledge and judgment The fourth is the using of proofs drawn from
any of the foundations of knowledge or probability This I call argumentum adjudicium This alone of all
the four brings true instruction with it and advances us in our way to knowledgerdquo (trad livre) LOCKE
John The Works of John Locke London C Baldwin 1824 p 260-261 170
ldquo[] these persons direct their solutions against the man not against his argumentrdquo (trad livre)
HAMBLIN C Op cit p 161-162 171
WHATELY Richard Logic London John Joseph Griffin amp CO 1849 p 80
71
Ademais se pensarmos que neste caso a palavra ldquoargumentumrdquo pode ser
substituiacuteda com sucesso pela palavra ldquoapelordquo e sabendo que o termo em latim ldquoadrdquo
denota ldquoem direccedilatildeo ardquo ldquoparardquo pode-se afirmar que o argumento ad populum significa
apelo ao povo ou aos sentimentos do povo o argumento ad verecundiam apelo agrave
modeacutestia ou agrave autoridade o argumento ad hominem apelo ao caraacuteter ou agraves
caracteriacutesticas do sujeito Estes apelos portanto natildeo estariam dirigidos a ldquoevidecircncias
objetivasrdquo mas a subjetividades algo presente na mente ou melhor na fantasia das
pessoas172
Recentemente o estudo das falaacutecias alcanccedilou notaacutevel desenvolvimento graccedilas
ao trabalho pioneiro de Charles Hamblin que em 1970 publicou a sua obra ldquoFalaacuteciasrdquo
Neste estudo o filoacutesofo australiano comeccedila com uma forte criacutetica em relaccedilatildeo agrave forccedila
que em nosso tempo a tradiccedilatildeo ainda vinha desempenhando sobre o assunto a despeito
de tantos avanccedilos na loacutegica e em outras aacutereas ldquodepois de dois milecircnios de estudo ativo
de loacutegica e em particular depois de transcorrido mais da metade daquele que eacute
considerado o mais iconoclasta dos seacuteculos o XX dC ainda encontramos as falaacutecias
sendo classificadas apresentadas e estudadas da mesma maneira antigardquo173
Eemeren destaca que eacute enorme a importacircncia de Hamblin para o assunto sendo
o seu livro uma soacutelida referecircncia pois realiza um rigoroso apanhado histoacuterico sobre as
falaacutecias elenca as deficiecircncias no tratamento da mateacuteria oferece a sua pessoal
contribuiccedilatildeo teoacuterica e sistematiza o tema Assim ainda que tenha sido objeto de criacuteticas
a sua obra eacute considerada ao mesmo tempo um ponto de partida e o tratamento standard
da disciplina174
Ao fazer uma sistematizaccedilatildeo sobre as ldquofalaacutecias adrdquo Hamblin esboccedila uma
abundante classificaccedilatildeo do tema sendo que tendo em vista a importacircncia para o nosso
trabalho destacamos as seguintes falaacutecias
(i) apelo agrave inveja argumentum ad invidiam
(ii) apelo ao medo argumentum ad metum
(iii) apelo ao oacutedio argumentum ad odium
(iv) apelo ao orgulho argumentum ad superbiam
(v) apelo agrave amizade argumentum ad amicitiam
172
WALTON D Op cit p 4-9 173
ldquoAfter two millennia of active study of logic and in particular after over half of that most iconoclastic
of centuries the twentieth AD we still find fallacies classified presented and studied in much the same
old wayrdquo (trad livre) HAMBLIN C Op cit p 9 174
EEMEREN F Op cit 2009 p 12
72
(vi) apelo agrave compaixatildeo argumentum ad misericordiam
(vii) apelo agraves emoccedilotildees em geral argumentum ad passiones
Aleacutem destas tambeacutem se destacam as seguintes falaacutecias ad verecundiam ad
ignorantiam ad hominem ad baculum (apelo agrave ameaccedila) ad superstitionem (apelo agrave
supersticcedilatildeo) ad imaginationem (apelo agrave imaginaccedilatildeo) ad nauseam (apelo agrave prova por
repeticcedilatildeo) ad fidem (apelo agrave feacute) ad socordiam (apelo agrave estupidez) ad ludicrum (apelo
ao teatralismo) ad captandum vulgus ad fulmen ad vertiginem a carcere175
Natildeo eacute coincidecircncia que para cada emoccedilatildeo da retoacuterica estudada no Capiacutetulo I
agora exista uma ldquofalaacutecia adrdquo correspondente E ainda que eventualmente venha lhe
faltar uma classificaccedilatildeo apropriada a expressatildeo guarda-chuva ldquoargumentum ad
passionerdquo iraacute capturar alguma emoccedilatildeo fugitiva Aliaacutes eacute essa a ideia apresentada pelo
loacutegico inglecircs Issac Watz citado por Hamblin senatildeo vejamos
Haacute ainda um outro ranking de argumentos que tecircm nomes latinos sua
verdadeira distinccedilatildeo deriva dos toacutepicos ou meios-termos que satildeo
usados neles eles satildeo chamados de apelos para o nosso julgamento
para a nossa feacute para a nossa ignoracircncia para a nossa profissatildeo para a
nossa modeacutestia e para as nossas emoccedilotildees
[]
6 Acrescento por fim quando um argumento eacute emprestado de algum
toacutepico que se preste a atrair as inclinaccedilotildees e as emoccedilotildees dos ouvintes
para o lado do orador em vez de convencer o julgamento ele eacute
chamado argumentum ad passiones um apelo para as emoccedilotildees176
Por tambeacutem termos estudado o pensamento estoico no Capiacutetulo I agora tambeacutem
podemos afirmar que isso eacute uma forma estoica de pensar Obviamente natildeo no sentido
de que tal pensamento derive da escola estoica Poreacutem numa acepccedilatildeo mais ampla no
sentido de sua hostilidade em relaccedilatildeo agraves emoccedilotildees ou de que conveacutem eliminaacute-las do
discurso por serem irracionais enganadoras excessivas No entanto tal pensamento
parece ser demasiadamente simploacuterio porque natildeo consegue indagar se as emoccedilotildees
eventualmente podem ser razoaacuteveis na argumentaccedilatildeo Existiriam criteacuterios para
distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees no discurso
175
HAMBLIN C Op cit p 41 176
ldquoThere is yet another rank of arguments which have latin names their true distinction is derived from
the Topics or middle Terms which are used in them tho they are called an Address to our Judgment our
Faith our Ignorance our Profession our Modesty and our Passions [hellip]6 I add finally when an
argument is borrowed from any topics which are suited to engage the inclinations and passions of the
hearers on the side of the speaker rather than to convince the judgment this is argumentum ad passiones
an address to the passionsrdquo (trad livre)WATZ Issac Logic or the right use of reason in the inquiry
after truth Boston West amp Richardson 1842 p 242
73
Eacute claro que a disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo natildeo nos exige que deixemos de sentir o
que sentimos uma vez que poderiacuteamos imaginar que existe separadamente o campo do
discurso e existe o campo do sujeito de modo que o objetivo da estudada classificaccedilatildeo
consiste em despir a estrutura do discurso do uso das emoccedilotildees e dos seus efeitos
negativos quanto agrave relaccedilatildeo de inferecircncias Mas considerando que o homem vive na
linguagem eacute possiacutevel de modo plausiacutevel pensar que existam certas e profundas
conexotildees entre essas coisas
Sobre este ponto Plantin destaca que eacute justamente na questatildeo do sujeito e das
emoccedilotildees que existe uma forte ruptura entre a MTA e a retoacuterica A teoria standard da
argumentaccedilatildeo ao introduzir a noccedilatildeo de falaacutecia ad passiones erigiu as emoccedilotildees como
um dos principais inimigos da argumentaccedilatildeo ldquoa teoria das falaacutecias eacute a uacutenica parte da
teoria da argumentaccedilatildeo que se ocupa realmente das emoccedilotildees mas para removecirc-las
como se o discurso argumentativo para ser admissiacutevel devesse primeiro expulsar seus
atoresrdquo177
O linguista francecircs assevera que essa invariaacutevel exigecircncia normativa exalta a
argumentaccedilatildeo apaacutetica como um modelo desejado de discurso178
Assim pathos parece
retomar um dos seus sentidos originais presente na Greacutecia antiga isto eacute o de
patoloacutegico de sofrimento
Eacute interessante igualmente notar a maciccedila presenccedila de termos em latim na
classificaccedilatildeo das ldquofalaacutecias adrdquo Eacute sabido que na eacutepoca moderna o latim teve uma
grande importacircncia para o estudo do direito da filosofia e da loacutegica Mas o seu
constante emprego para tratar do presente tema quando se dispotildee de suficiente
vocabulaacuterio para abordar o assunto parece querer doar desnecessariamente um grau de
sofisticaccedilatildeo ou de autoridade agrave disciplina A este respeito Plantin endereccedila forte criacutetica
ldquo[] em inuacutemeros casos esse latim de ocasiatildeo aparece como defeituoso gratuito
pedante e finalmente ridiacuteculo []rdquo179
Por fim tendo em vista que este Capiacutetulo se destina a investigar a importacircncia
das emoccedilotildees para a MTA pode-se dizer agora que pelo menos para a teoria standard
da argumentaccedilatildeo as emoccedilotildees tecircm uma funccedilatildeo negativa no discurso O uacutenico local em
que as emoccedilotildees guardam um relativo espaccedilo para tematizaccedilatildeo eacute no estudo das falaacutecias
177
ldquola theacuteorie des fallacies est la seule theorie de largumentation qui socuppe reellement des eacutemotions
mais cest pour les eacuteliminer comme si le discours argumentatif pour etre recevable devait dabord
expulser ses acteursrdquo (trad livre) PLANTIN C Op cit 2011 p 63 178
Id ibid p 63 179
ldquo[hellip] dans de nombreux cas cest latin doccasion apparaicirct comme fautif gratuit jargonnant et
finalemente ridicule [hellip]rdquo (trad livre) Id ibid p 66
74
Poreacutem tal posicionamento parece sofrer de ausecircncia de complexidade jaacute que natildeo
consegue fornecer nenhum criteacuterio para distinguir um bom e um mau uso das emoccedilotildees
na argumentaccedilatildeo nem consequentemente consegue encontrar um razoaacutevel papel para
elas no discurso Portanto diante do exposto parece que o debate acerca das emoccedilotildees
restou significativamente empobrecido
24 Douglas Walton e uma abordagem normativa das emoccedilotildees no discurso
Aleacutem de evidenciar a estreita e difiacutecil relaccedilatildeo existente entre a disciplina das
falaacutecias e o estudo das emoccedilotildees um dos objetivos do toacutepico precedente tambeacutem foi
preparar-nos para neste espaccedilo examinar e compreender o pensamento de Douglas
Walton
Em 1992 Walton insatisfeito com a forma pela qual o tratamento standard das
falaacutecias compreendia o fenocircmeno emotivo publicou uma obra (O Lugar da Emoccedilatildeo no
Argumento) dedicada a aprofundar o tema Ainda que o modelo utilizado pelo
canadense seja dirigido ao discurso dialeacutetico e natildeo se ocupe especificamente do
domiacutenio juriacutedico embora tambeacutem o abranja as suas observaccedilotildees satildeo bastante uacuteteis e
aplicaacuteveis para os objetivos deste trabalho quais sejam construir um espaccedilo para a
discussatildeo das emoccedilotildees no discurso juriacutedico e localizar criteacuterios para avaliaccedilatildeo do uso
das emoccedilotildees Ademais e a fim de organizar a apresentaccedilatildeo deste toacutepico pretendemos
expor as premissas os escopos as criacuteticas e as conclusotildees do teoacuterico canadense
Dito isso Walton afirma que uma boa teoria da argumentaccedilatildeo precisa natildeo
apenas se posicionar de maneira clara sobre as emoccedilotildees mas tambeacutem levaacute-las a seacuterio
Assim eacute fraca e implausiacutevel uma teoria que expulse previamente as emoccedilotildees para fora
do seu acircmbito ou que nomeie indistintamente de falaciosa qualquer conclusatildeo que se
sustente ainda que parcialmente em um apelo emotivo ldquoqualquer teoria da
argumentaccedilatildeo que exclua tais apelos por inteiro deve ser uma teoria muito limitada
inaplicaacutevel para vaacuterios e significantes argumentos do dia-a-diardquo180
Assim reconhece-se que o fenocircmeno emotivo faz parte do discurso porque
decidimos tambeacutem com base em emoccedilotildees em importantes momentos de nossas vidas
A abertura para a sensibilidade da ocasiatildeo para as nossas proacuteprias emoccedilotildees e para as
180
ldquoany theory of argument that rules such appeals out of court altogether must be very limited theory
inapplicable to many significant everyday argumentsrdquo (trad livre) WALTON D Op cit p 69
75
emoccedilotildees dos outros pode permear de maneira saudaacutevel decisotildees importantes em
sociedade181
Exemplificativamente diante de discussotildees de ordem poliacutetica ou juriacutedica em
que esteja no cerne do debate o caraacuteter ou a moralidade de um participante pode-se
cogitar que seja natildeo apenas relevante o uso de um argumento emotivo (ad hominem por
exemplo) mas extremamente necessaacuterio para responder adequadamente uma
alegaccedilatildeo182
De outra parte a despeito de admitir o uso de argumentos emotivos por
entender que eles satildeo importantes e legiacutetimos no diaacutelogo persuasivo Walton aconselha
cautela na sua utilizaccedilatildeo porque eles tambeacutem podem ser usados falaciosamente183
Assim a seu ver dois fatores combinados aumentam a possibilidade de que tais
argumentos sejam mal utilizados (i) primeiramente o apelo agrave emoccedilatildeo pode ter pouca
relevacircncia para o caso pois pode natildeo contribuir para os fins do diaacutelogo no qual os seus
participantes estejam comprometidos convertendo-se inclusive em instrumento para
bloquear os objetivos do discurso (ii) os argumentos baseados em emoccedilotildees possuem
uma tendecircncia de serem logicamente fracos no sentido de que sua premissa natildeo
sustenta de modo suficientemente forte a conclusatildeo e por isso natildeo preencha
adequadamente o ocircnus da prova184
Assim o uso falacioso das emoccedilotildees estaacute presente
quando ldquo[] o proponente explora o impacto do apelo para disfarccedilar a fraqueza ou a
irrelevacircncia do argumentordquo185
Poreacutem como determinar em concreto tais paracircmetros Advertindo que o seu
estudo natildeo eacute uma tese de psicologia empiacuterica mas uma abordagem normativa da
argumentaccedilatildeo cujo principal objetivo consiste em possibilitar a identificaccedilatildeo de usos
corretos e incorretos das emoccedilotildees no discurso186
o autor propotildee o estudo de quatro
ldquofalaacutecias adrdquo que na sua oacutetica satildeo extremamente fortes quanto agrave possibilidade de
aticcedilar os sentimentos e as mais profundas inclinaccedilotildees emotivas do puacuteblico argumentum
ad populum argumentum ad misericordiam argumentum ad baculum e argumentum ad
hominem
181
Id ibid p 69 182
Id ibid p 68 183
Id ibid p 1 184
Id ibid p 1-2 e 28 185
ldquo[hellip] the proponent exploits the impact of the appeal to disguise the weakness andor irrelevance of an
argumentrdquo Id ibid p 2 186
Id ibid p 28
76
Para nosso trabalho no entanto e a fim de delimitar a nossa competecircncia de
estudo eacute suficiente comentar os aspectos mais importantes relacionados ao uso do apelo
agrave compaixatildeo do apelo ao caraacuteter e do apelo agrave ameaccedila Poreacutem antes de prosseguir eacute
preciso explanar previamente e de modo breve alguns conceitos empregados na teoria
em comentaacuterio
Primeiramente conveacutem ser dito que a abordagem normativa em estudo estaacute
estruturada em funccedilatildeo de uma especiacutefica classificaccedilatildeo de tipos de diaacutelogo
Um diaacutelogo eacute considerado ldquo[] uma troca de atos de fala em sequecircncia
alternada entre dois parceiros de discurso a fim de alcanccedilar um objetivo comumrdquo187
Assim a coerecircncia do diaacutelogo depende de que o ato de fala individual se adeque ao fim
comum do tipo de diaacutelogo em que os participantes estejam atrelados Ademais tendo
em vista que em alguns tipos de diaacutelogo os participantes necessitam provar alguma
coisa surge a noccedilatildeo de ocircnus de prova que ldquo[] eacute um peso de presunccedilatildeo alocado
idealmente no estaacutegio inicial do diaacutelogordquo188
e que se mostra um recurso uacutetil para que o
diaacutelogo chegue num prazo razoaacutevel ao fim
Entre os tipos de diaacutelogo destacam-se
(i) o diaacutelogo persuasivo (discussatildeo criacutetica) os participantes utilizando como
premissas as proposiccedilotildees em que a outra parte esteja comprometida
(commitment) procuram convencer um ao outro a respeito de uma tese189
(ii) o diaacutelogo investigativo ldquoo objetivo da investigaccedilatildeo eacute provar que uma
particular proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa ou que natildeo existe evidecircncia
suficiente para provar que tal proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsardquo190
(iii) a negociaccedilatildeo o objetivo das partes consiste em por meio de barganha em
cima de interesses e de bens de concessatildeo de certas coisas e de insistecircncia em
outras fechar um acordo diferentemente do diaacutelogo persuasivo ou do
investigativo a verificaccedilatildeo da veracidade ou falsidade de proposiccedilotildees ainda
que em alguma medida relevante eacute algo secundaacuterio pois a finalidade consiste
187
ldquo[] an exchange of speech acts between two speech partners in turn-taking sequence aimed at a
collective goalrdquo (trad livre) Id ibid p 19 188
ldquo[] a weight of presumption allocated ideally at the opening stage of the dialoguerdquo (trad livre) Id
ibid p 20 189
WALTON Douglas The New dialectic conversational contexts of argument TorontoLondon
University of Toronto Press 1998 p 37-40 190
ldquothe goal of the inquiry is to prove that a particular proposition is true or false or that there is
insufficient evidence to prove that this proposition is either true or falserdquo Id ibid p 70
77
em realizar um bom negoacutecio que geralmente recai em cima de dinheiro certos
tipos de bens ou outros itens de valor191
e
(iv) a briga (quarrel) eacute um tipo de diaacutelogo eriacutestico cujo objetivo de cada parte
reside em atingir verbalmente a outra os argumentos natildeo possuem valor em si
mesmo senatildeo para golpear o adversaacuterio Tal ldquodiaacutelogordquo tem uma relevante funccedilatildeo
cataacutertica ao possibilitar que profundas emoccedilotildees sejam liberadas evitando um
confronto fiacutesico192
Esta classificaccedilatildeo eacute importante por dois motivos primeiramente ela possibilita
compreender quando existe uma mudanccedila iliacutecita de tipo de diaacutelogo (dialectical shifts)
um diaacutelogo investigativo natildeo pode se transformar num diaacutelogo persuasivo (discussatildeo
criacutetica) porque os objetivos e os meacutetodos de cada qual satildeo diversos e por isso os
argumentos tambeacutem o satildeo Em segundo lugar compreende-se que eacute no diaacutelogo
persuasivo que as emoccedilotildees tecircm o seu habitat especiacutefico podendo ser positivas e
contribuiacuterem com os objetivos da discussatildeo Todavia entende-se que nos outros tipos
de diaacutelogo (negociaccedilatildeo por exemplo) e a depender do caso elas tambeacutem podem ser
legiacutetimas193
Por uacuteltimo antes de adentrar no estudo das falaacutecias conveacutem enfatizar que a
noccedilatildeo de raciociacutenio presuntivo tem um destacado papel neste modelo de anaacutelise do
discurso argumentativo porque possibilita que a discussatildeo caminhe em direccedilatildeo ao fim
mesmo quando no estado de conhecimento as evidecircncias satildeo insuficientes e as
premissas fracas ldquoa presunccedilatildeo no diaacutelogo permite que a argumentaccedilatildeo avance de um
modo uacutetil e revelador mesmo se evidecircncia suficiente natildeo estaacute disponiacutevel para permitir
que cada lado se comprometa categoricamente a certas premissas especiacuteficasrdquo194
Assim uma vez finalizada a exposiccedilatildeo de tais conceitos passa-se agrave explanaccedilatildeo
do apelo agrave compaixatildeo
Para saber quando o apelo agrave compaixatildeo eacute ou natildeo usado falaciosamente a
abordagem tradicional recomenda distinguir se um caso diz respeito a fatos ou a
sentimentos Caso o problema envolva mateacuteria factual o apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
sendo adequado de seu turno caso apenas envolva sentimentos195
191
Id ibid p 100 192
WALTON D Op cit 1992 p 21-23 193
Id ibid p 23-24 194
ldquopresumption in dialogue enables argumentation to move forward in a revealing and useful way even
if sufficient evidence is not available to enable either side to commit itself categorically to some particular
premisesrdquo Id ibid p 57 195
Id ibid p 106
78
Em relaccedilatildeo a esta bifurcaccedilatildeo Walton endereccedila forte criacutetica pois a compreende
muito otimista em achar que fatos e sentimentos satildeo coisas totalmente isoladas Por
exemplo em casos como aborto e eutanaacutesia natildeo estatildeo em consideraccedilatildeo apenas
facticidades E sentimentos satildeo muito importantes embora tambeacutem possam ser
excessivos ou inadequados Assim para alegar que um apelo agrave compaixatildeo eacute falacioso
precisa-se demonstrar a sua irrelevacircncia ou inadequaccedilatildeo para a hipoacutetese tratada196
Exemplificativamente no seguinte caso ocorrido na Casa dos Comuns do
Canadaacute em 1987 eacute relatado que um parlamentar durante o debate poliacutetico solicitou
fundos do governo federal para finalizar um projeto de enciclopeacutedia pertencente ao Sr
Joey Smallwood uma figura poliacutetica canadense ldquorespeitadardquo e ldquobem-conhecidardquo
considerado um dos uacuteltimos ldquoPais da Confederaccedilatildeordquo ainda vivos Ademais eacute dito que
Smallwood estaacute por volta dos seus 80 (oitenta) anos num estado de sauacutede debilitado e
mereceria ter seu projeto que se revelaraacute num inestimaacutevel recurso para o povo
canadense ser concluiacutedo em vida ldquoeacute uma grande distorccedilatildeo ver uma das lendas vivas do
Canadaacute sendo forccedilado a lidar com xerifes na sua idade avanccedilada e em seu mau estado
de sauacutede Certamente o governo pode encontraacute-lo em seu coraccedilatildeo agorardquo diz o
deputado197
Walton diz que a questatildeo central no caso consiste em saber se tal projeto de
enciclopeacutedia eacute valoroso o suficiente para merecer ser financiado com dinheiro puacuteblico
Assim caso apenas o apelo agrave compaixatildeo esteja suportando a conclusatildeo de que o projeto
vale a pena ser financiado entatildeo tal emoccedilatildeo natildeo eacute relevante ou uacutetil pois eacute preciso
questionar em si mesmo o meacuterito do projeto Poreacutem na presunccedilatildeo de que o projeto
realmente valha a pena a compaixatildeo pode ser um argumento adequado fazendo parte
de um argumento maior a respeito do merecimento do projeto198
Este eacute um caso de forte apelo emocional que envolve sentimentos patrioacuteticos em
relaccedilatildeo a uma pessoa admirada por muitas outras num paiacutes Poreacutem a despeito da
tradiccedilatildeo de nomear tal tipo de argumentaccedilatildeo de falaciosa Walton entende que eacute preciso
atentar para a questatildeo do contexto em que tal discurso foi produzido Assim
considerando que ele foi declamado numa especiacutefica sessatildeo da Casa dos Comuns
196
Id ibid p 106-107 197
ldquoit is a great travesty to see one of Canadas living legends being forced to deal with sheriffs at his
advanced age and in his poor state of health Surely the government can find it in its heart nowrdquo (trad
livre) Id ibid p 111 198
Id ibid p 111
79
destinada a fazer recomendaccedilotildees de financiamento de projetos a emoccedilatildeo empregada eacute
adequada agraves regras do debate e natildeo destoa do tipo de discurso utilizado
Ademais Walton reforccedila que a proacutepria noccedilatildeo de apelo agrave compaixatildeo por estar
amarrada a conotaccedilotildees pejorativas quanto a sentimentos de pena influencia o
entendimento de que por si soacute jaacute seria errado inadequado ou falacioso utilizaacute-lo ldquose
perguntado se eles querem compaixatildeo pessoas deficientes ou veteranos de guerra
provavelmente diratildeo lsquonatildeorsquo porque lsquocompaixatildeorsquo tem conotaccedilotildees de
condescendecircnciardquo199
Assim a seu ver seria mais apropriado chamar de ldquoapelo agrave
simpatiardquo do que ldquoapelo agrave compaixatildeordquo o que evitaria tal carga semacircntica negativa
Em outro exemplo em 1987 tambeacutem na Casa dos Comuns do Canadaacute discute-
se um projeto de lei cujo texto busca regulamentar o uso de cigarro em locais puacuteblicos
bem como restringir a sua publicidade
Na fala do parlamentar Brud Bradley que se posiciona contra tal projeto de lei
o apelo agrave misericoacuterdia se corporifica na visualizaccedilatildeo das consequecircncias negativas sobre
todo um grupo de pessoas que depende da induacutestria do tabaco para sobreviver Apoacutes
relatar a difiacutecil saga dos produtores de tabaco muitos deles constituiacutedos por imigrantes
que chegaram ao Canadaacute e conseguiram criar sem nenhuma ajuda uma atividade que
rende bilhotildees para o paiacutes questiona-se a difiacutecil situaccedilatildeo em que todos esses cidadatildeos
ficaratildeo ldquonas aacutereas de cultivo de tabaco do Canadaacute temos falecircncias desagregaccedilatildeo
familiar e suiciacutedio E quanto a esses agricultores E sobre os 2600 produtores de tabaco
dedicados no Canadaacute O que a legislaccedilatildeo faz por elesrdquo200
Em resposta Dan Heap defendendo o ato alega que o que se estaacute em discussatildeo
eacute o direito agrave sauacutede que em seu olhar eacute muito mais importante do que o direito de ser
um produtor de tabaco Aleacutem disso 35000 pessoas morrem anualmente no Canadaacute de
doenccedilas relacionadas ao cigarro o que eacute um nuacutemero bem superior aos 2600 produtores
de tabaco
Walton analisando o caso registra que ambas as alegaccedilotildees apelam para
argumentos de consequecircncia Enquanto Bradley advoga as consequecircncias negativas do
projeto de lei Heap busca explorar as positivas O problema eacute que o argumento
utilizado por Bradley eacute fraco e altamente unilateral embora natildeo deva ser rejeitado como
199
ldquoIf asked whether they want pity disabled persons or returning war veterans will probably say lsquonorsquo
for pity has connotations of condescensionrdquo (trad livre) Id ibid p 112 200
ldquoin the tobacco growing areas of Canada we have bankruptcies family breakdown and suicide What
about those farmers What about the 2600 dedicated tobacco farmers in Canada What does the
legislation do for themrdquo (trad livre) Id ibid p 124
80
um todo porque eacute razoaacutevel tambeacutem se preocupar com as consequecircncias sociais
negativas geradas pela nova legislaccedilatildeo Ademais falta evidecircncia que suporte a relaccedilatildeo
causal entre a legislaccedilatildeo tabagista e a alegada falecircncia desagregaccedilatildeo familiar e suiciacutedio
de produtores de tabaco que tambeacutem ocorre em outras culturas agriacutecolas do Canadaacute
Assim tendo em vista que para bem deliberar acerca de um projeto de lei eacute preciso
visualizar todas as consequecircncias possiacuteveis da nova legislaccedilatildeo a extrema
unilateralidade do argumento utilizado por Bradley prejudica o objetivo da discussatildeo
Apoacutes analisar outros casos Walton estabelece a seguinte classificaccedilatildeo para
avaliar o uso do apelo agrave compaixatildeo
(i) razoaacutevel adequado ao contexto do diaacutelogo
(ii) fraco mas natildeo irrelevante ou falacioso quando o apelo eacute unilateral e estaacute
aberto a questionamento criacutetico
(iii) irrelevante o apelo agrave compaixatildeo eacute irrelevante por exemplo numa
investigaccedilatildeo cientiacutefica cujo objetivo eacute reunir evidecircncias para provar se uma
proposiccedilatildeo eacute verdadeira ou falsa e
(iv) falacioso o uso do apelo eacute fraco e utilizado agressivamente para bloquear os
fins do diaacutelogo e se proteger de questionamentos criacuteticos201
Aleacutem disso mais importante do que determinar se um uso eacute falacioso consiste
em saber como reagir adequadamente ao uso de tal emoccedilatildeo Para isso fornece-se o
seguinte checklist com sete fatores
(i) contexto identificar o contexto do diaacutelogo indagar se o uso da emoccedilatildeo eacute
adequado para aquele contexto e se contribui para os fins da discussatildeo
(ii) peso identificar o tamanho da importacircncia a ser dado ao uso do apelo no
caso em questatildeo o apelo agrave compaixatildeo eacute a questatildeo central do problema ou eacute
apenas algo secundaacuterio
(iii) neutralizaccedilatildeo caso o apelo seja o objeto central da discussatildeo eacute necessaacuterio
reagir energeticamente
(iv) outras consideraccedilotildees importantes caso o apelo agrave misericoacuterdia seja algo
secundaacuterio determinar quais satildeo as questotildees principais para o caso
(v) sopesamento quando o apelo agrave misericoacuterdia eacute utilizado por meio de
argumento por consequecircncias eacute necessaacuterio sopesar ambos os lados
201
Id ibid p 140
81
(vi) presunccedilotildees inadequadas os casos falaciosos geralmente se apresentam
quando o proponente por meio do apelo insere agressivamente uma presunccedilatildeo
com o objetivo de mascarar a necessidade de argumentar adequadamente e
(vii) mais informaccedilotildees ao inveacutes de precipitadamente taxar uma argumentaccedilatildeo
de ldquofalaciosardquo conveacutem requerer mais informaccedilotildees sobre as particularidades do
caso202
De outra parte em relaccedilatildeo ao apelo ao caraacuteter (ad hominem) Walton
diferentemente da abordagem tradicional da loacutegica que o presume sempre falacioso
defende que em determinados casos ele eacute adequado porque no cerne da questatildeo pode
interessar saber questotildees relacionadas ao caraacuteter da pessoa203
Eacute conveniente primeiramente notar que o apelo ao caraacuteter natildeo eacute em si mesmo
uma emoccedilatildeo A inclusatildeo entre as falaacutecias emocionais se justifica por conta dos seus
efeitos isto eacute pela sua capacidade de instigar os acircnimos emotivos nos seus
destinataacuterios204
Assim por exemplo no tribunal podem emergir duacutevidas razoaacuteveis sobre a
credibilidade do depoimento de uma testemunha A sua confiabilidade pode restar
prejudicada diante de inconsistecircncias de afirmaccedilotildees diante da demonstraccedilatildeo de que se
trata de uma pessoa tendenciosa ou de que eacute possuidora de mau caraacuteter Em todas essas
hipoacuteteses eacute razoaacutevel o uso de argumentos que coloque em cheque o caraacuteter da
pessoa205
Em campanhas poliacuteticas depois da chamada ldquoonda eacuteticardquo passou-se a
considerar que questotildees ligadas ao caraacuteter do candidato satildeo de interesse puacuteblico de
modo que eacute razoaacutevel em debates explorar inconsistecircncia de afirmaccedilotildees problemas de
conduta no passado do candidato financiamentos de campanha duvidosos206
O grande problema de argumentos que se destinem a atingir o caraacuteter de outra
pessoa estaacute na sua propensatildeo em transformar um diaacutelogo criacutetico em uma verdadeira luta
verbal em que os acircnimos dos participantes se elevam aos piores niacuteveis ldquode fato o que
acontece muito frequentemente eacute que o diaacutelogo criacutetico original se deteriora num diaacutelogo
eriacutestico ou em espeacutecies de lsquocombate verbalrsquo em que o senso criacutetico eacute deixado para traacutes e
202
Id ibid p 141-142 203
Id ibid p 193 204
Id ibid p p 259-260 205
Id ibid p 195-196 206
Id ibid p 193-194
82
o uacutenico objetivo eacute lsquogolpearrsquo verbalmente a outra parte para lhe ferirrdquo207
Neste caso o
uso do apelo ao caraacuteter eacute considerado falacioso porque altera ilicitamente um diaacutelogo
criacutetico para uma briga verbal (quarrel)208
Por uacuteltimo em relaccedilatildeo ao apelo agrave ameaccedila Walton diz que ele pode ser imoral
ilegal repulsivo brutal sem ser falacioso Para resultar numa falaacutecia ele precisa ir
contra os objetivos do diaacutelogo ldquomuito frequentemente os textos simplesmente
presumem que dado um brutal ou repulsivo ou moralmente repugnante apelo agrave forccedila os
estudantes ou os leitores natildeo necessitaratildeo de mais nenhum esforccedilo persuasivo para
classificaacute-lo como falaacuteciardquo209
Poreacutem em negociaccedilotildees diplomaacuteticas tais apelos satildeo adequados porque este tipo
de diaacutelogo normalmente envolve ameaccedila de sanccedilotildees de retaliaccedilotildees de rompimento de
relaccedilotildees econocircmicas etc Assim eacute preciso estar atento para o tipo de diaacutelogo e o
contexto em que o apelo foi utilizado Ademais eacute necessaacuterio observar se a forma pela
qual foi utilizado objetivou bloquear os objetivos do diaacutelogo Portanto para avaliar a
adequaccedilatildeo do uso da emoccedilatildeo faz toda diferenccedila se as partes se encontram numa
negociaccedilatildeo ou num diaacutelogo persuasivo210
Tendo realizada essa breve exposiccedilatildeo das falaacutecias parte-se agora para os
comentaacuterios finais acerca do modelo de anaacutelise de argumentos em comentaacuterio
Em primeiro lugar eacute preciso dizer que Walton se mostra bastante consciente a
respeito de duas abordagens que podem ser utilizadas para pensar as emoccedilotildees Assim eacute
possiacutevel entendecirc-las como contraacuterias agrave razatildeo e por isso natildeo lhes confiar nenhum
espaccedilo na argumentaccedilatildeo porque o seu uso de todo modo seria suspeito211
Neste
uacuteltimo modelo imperaria o paradigma da loacutegica fria (cold logic) isto eacute uma maneira de
pensar desapaixonada calma e fundada na loacutegica212
De outra parte eacute possiacutevel pensar
que as emoccedilotildees possuem uma funccedilatildeo importante em discussotildees eacuteticas poliacuteticas em
assuntos em que natildeo existe conhecimento conclusivo sobre o meacuterito da questatildeo213
207
ldquoIn fact too often what happens is that the original critical discussion deteriorates into an eristic
dialogue or species of lsquoverbal combatrsquo where critic restraint is left behind and the only aim is to lsquohit outrsquo
verbally to injure the other partyrdquo (trad livre) Id ibid p 192 208
Id ibid p 216 209
ldquoToo often the texts simply presume that given a brutal or repulsive or morally repugnant appeal to
force the students or readers of the text will need no further persuasion to classify it as fallacyrdquo Id ibid
p 78 210
Id ibid p 159 211
Id ibid p 67 212
Id ibid p 2 213
Id ibid p 67
83
Essas duas formas de pensar as emoccedilotildees estatildeo presentes respectivamente na
filosofia de Aristoacuteteles e dos estoicos Se pudeacutessemos realizar uma aproximaccedilatildeo entre
tais formas de pensar com o modelo que aqui expusemos afirmariacuteamos que Walton estaacute
proacuteximo do pensamento de Aristoacuteteles Poreacutem natildeo do pensamento presente na retoacuterica
aristoteacutelica mas da abordagem emotiva construiacuteda na Eacutetica a Nicocircmaco que
compreende que a boa medida das emoccedilotildees ocorre quando elas satildeo sentidas
adequadamente e isso significa dizer que elas devem ser experimentadas no momento
certo de modo correto em relaccedilatildeo agraves pessoas e aos fins certos Em outras palavras as
emoccedilotildees podem ser adequadas ou inadequadas de acordo com as circunstacircncias
Walton admite que as emoccedilotildees podem desempenhar uma importante funccedilatildeo na
argumentaccedilatildeo mas eacute preciso ter cautela porque elas tambeacutem podem ser mal utilizadas
Assim satildeo fornecidos alguns paracircmetros para verificar o seu grau de adequaccedilatildeo ou
inadequaccedilatildeo eacute necessaacuterio atentar para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo
para o impacto do uso da emoccedilatildeo e para o contexto em que satildeo utilizadas Quando bem
empregadas elas satildeo legiacutetimas e importantes para uma boa decisatildeo
Ademais o canadense tambeacutem informa que essa ldquodisputardquo estre aristoteacutelicos e
estoicos a respeito das emoccedilotildees continua nos dias de hoje a exercer a sua influecircncia e
deu azo para que Brinton justificasse a criaccedilatildeo do argumentum ad indignationem Como
se sabe sentir raiva para a eacutetica estoica eacute terminantemente proibido sob qualquer
circunstacircncia mas para Aristoacuteteles natildeo sentir raiva em relaccedilatildeo a uma situaccedilatildeo que
merecesse seria uma falha de caraacuteter Adotando este uacuteltimo posicionamento o
argumentum ad indignationem seria o uso da raiva na argumentaccedilatildeo na medida
adequada agrave situaccedilatildeo214
Walton justifica que estudar os aspectos falhos da argumentaccedilatildeo e
principalmente compreender quando as emoccedilotildees satildeo utilizadas inadequadamente eacute um
exerciacutecio importante para o aperfeiccediloamento da praacutetica argumentativa porque em
assuntos polecircmicos e difiacuteceis geralmente ficamos presos a inclinaccedilotildees pessoais
tornamo-nos facilmente apaixonados e perdemos a perspectiva criacutetica ldquoataques
pessoais diversatildeo emocional e outras tentaccedilotildees satildeo caracteriacutesticas mais frequentes da
argumentaccedilatildeo humana do que o uso de argumentos corretos e friamente imparciaisrdquo215
214
Id ibid p 68 215
ldquopersonal attack emotional diversion and other temptations are more often characteristic of human
reasoning than correct and coolly impartial argumentsrdquo (trad livre) Id ibid p 64
84
Por derradeiro registre-se que ao tentar encontrar um lugar para as emoccedilotildees na
argumentaccedilatildeo como o proacuteprio tiacutetulo da sua obra sugere Walton procura devolver
complexidade agrave mateacuteria evitando o impulso de previamente classificar qualquer apelo
emotivo como falacioso Desse modo a abordagem sob comento concilia-se com alguns
aspectos da argumentaccedilatildeo praacutetica mas frise-se sem perder a perspectiva criacutetica jaacute que
natildeo abandona a censura quanto ao mau uso das emoccedilotildees no discurso
De outra parte por ser um estudo criacutetico em relaccedilatildeo agraves ldquofalaacutecias adrdquo Walton
fica preso a este paradigma classificatoacuterio e por isso natildeo explora algumas questotildees
importantes para a mateacuteria Por exemplo como identificar as emoccedilotildees no discurso De
que modo elas podem se apresentar Tentar responder tais perguntas consiste no
objetivo do proacuteximo toacutepico
25 A abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees
Localizar as emoccedilotildees no discurso natildeo eacute uma atividade oacutebvia e a linguiacutestica
recentemente tem envidado relevante esforccedilo para encontraacute-las embora nem sempre
tenha sido assim
Kerbrat-Orechionni afirma que o espaccedilo para as emoccedilotildees na linguiacutestica do sec
XX foi miacutenima216
Desse modo falando em nome de toda uma geraccedilatildeo Saphir em
1921 diz que o material da liacutengua satildeo os conceitos as ideias e a realidade objetiva
sendo que as emoccedilotildees satildeo consideradas subjetividades linguiacutesticas de importacircncia
secundaacuteria que tentam expressar questotildees interiores do homem O linguista alematildeo
categoricamente afirma que as emoccedilotildees na qualidade de manifestaccedilotildees instintivas que
partilhamos com os seres irracionais natildeo podem ldquo[] ser consideradas como fazendo
parte da concepccedilatildeo cultural essencial da linguagemrdquo217
Fazendo um contraste com esta afirmaccedilatildeo e jaacute num outro momento do seacuteculo
XX Schieffelin e Ochs em 1989 defendem que para aleacutem da funccedilatildeo de comunicar
informaccedilotildees referenciais a liacutengua eacute veiacuteculo fundamental na transmissatildeo de sentimentos
estados de espiacuterito e disposiccedilotildees ldquoesta necessidade eacute tatildeo criacutetica e tatildeo humana quanto
216
ORECCHIONI-KERBRAT Catherine Quelle place pour les eacutemotions dans la linguistique du XXe
siegravecle Remarques et aperccedilus In PLANTIN Christian DOURY Marianne TRAVERSO Veacuteronique
(dir) Les eacutemotions dans les interations Lyon Presses Universitaires de Lyon 2000 p 33 217
ldquothey cannot be considered as forming part of the essential cultural conception of languagerdquo (trad
livre) SAPHIR Edward Language an introduction to the study of speech New York Hartcourt Brace
and Company 1921 p 40
85
aquela de descrever eventosrdquo218
Assim separando os canais de transmissatildeo dos afetos
entre verbais e natildeo-verbais (expressotildees faciais gestos etc) os mencionados autores
concentram os seus estudos nos meios verbais de expressatildeo A conclusatildeo alcanccedilada eacute
que a liacutengua como um todo eacute um campo do afeto inclusive aquelas aacutereas
tradicionalmente consideradas circunscriccedilotildees exclusivas da loacutegica
Natildeo se pode arguir por exemplo que a sintaxe sirva exclusivamente a
funccedilotildees loacutegicas enquanto as funccedilotildees afetivas satildeo realizadas pela
entonaccedilatildeo e pelo leacutexico O afeto permeia o sistema linguiacutestico por
inteiro Praticamente qualquer aspecto do sistema linguiacutestico que eacute
variaacutevel eacute candidato a expressar afeto219
Eacute sobre esse tema que a escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo tem se preocupado
nos uacuteltimos tempos sendo Plantin um dos pioneiros no estudo das emoccedilotildees no discurso
Assim no intento de buscar referecircncias de anaacutelise para o exame de decisotildees judiciais a
ser realizado no Capiacutetulo III iremos abordar a classificaccedilatildeo proposta por Micheli um
dos representantes de tal escola
Eemeren conforme vimos anteriormente afirma que o ldquoteste aacutecidordquo de uma
teoria da argumentaccedilatildeo diz respeito agrave sua compreensatildeo sobre as falaacutecias Se ela passar
nessa difiacutecil prova pode-se dizer que estamos diante de uma teoria da argumentaccedilatildeo
com bom poder de explanaccedilatildeo e de alcance
Assim se levarmos rigorosamente tal afirmaccedilatildeo em consideraccedilatildeo podemos
dizer que iremos analisar uma teoria da argumentaccedilatildeo que perdeu o seu ldquoinstintordquo uma
vez que a abordagem utilizada eacute puramente descritiva A despeito disso abordagens
descritivas tecircm o seu papel pois procurando narrar os eventos do mundo de maneira
mais interessante podem organizar melhor determinados temas ou ateacute possibilitarem
melhores insights prescritivos
Dito isso Micheli considera que um dos grandes problemas em relaccedilatildeo ao
exame das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade O objetivo do seu
trabalho portanto consiste em fornecer um modelo que possibilite analisar e distinguir
o complexo processo em que as emoccedilotildees satildeo semiotizadas no discurso Para isso
apresenta-se uma tipologia classificatoacuteria econocircmica mas ao mesmo tempo
218
ldquoThis need is as critical and as human as that of describing eventsrdquo (trad livre) OCHS Elinor
SCHIEFFELIN Bambi Language has a heart In Interdisciplinary journal for the study of discourse 7-
26 p9 219
ldquoOne cannot argue for example that syntax exclusively serves logical functions while affective
functions are carried out by intonation and the lexico Affect permeates the entire linguistic system
Almost any aspect of the linguistic system that is variable is a candidate for expressing affectrdquo (trad
livre) Id ibid p 22
86
teoricamente forte o suficiente para descrever satisfatoriamente o fenocircmeno em
comentaacuterio220
Primeiramente adverte-se que tal modelo natildeo se interessaraacute pelas emoccedilotildees
efetivamente experimentadas pelos sujeitos do discurso Assim natildeo seraacute objeto de
especulaccedilatildeo se o sujeito realmente experimenta aquilo que ele exprime ou procura
suscitar no seu discurso (orador) nem seraacute o cerne da pesquisa saber se o destinataacuterio
do discurso de fato sente aquela emoccedilatildeo endereccedilada (auditoacuterio) porque poderaacute haver
discrepacircncias entre aquilo que eacute publicizado e o que eacute efetivamente sentido ldquoum estudo
da construccedilatildeo das emoccedilotildees no discurso natildeo concerne assim nem agrave emoccedilatildeo efetivamente
sentida pelo locutor nem aquela efetivamente suscitada no alocutaacuteriordquo221
Assim excluindo a categoria da emoccedilatildeo experimentada a tipologia apresentada
por Micheli para a anaacutelise do discurso emotivo eacute a seguinte a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada
Na categoria da emoccedilatildeo dita percebe-se a presenccedila de enunciados em cujo seio
se apresenta uma palavra do leacutexico que designa especificamente uma emoccedilatildeo (ldquoestes
problemas processuais me datildeo raivardquo ldquoo reacuteu estava indignadordquo) Uma das
caracteriacutesticas da emoccedilatildeo dita eacute que ela faz referecircncia a um ente que sente a emoccedilatildeo
(ldquomerdquo ldquoo reacuteurdquo) Assim natildeo pertencem a esta categoria aquelas hipoacuteteses em que uma
emoccedilatildeo eacute ela mesma objeto de descriccedilatildeo (ldquoa raiva eacute cegardquo ldquoo amor eacute capaz de tudordquo)
natildeo sendo estes enunciados hipoacuteteses de um discurso emotivo222
Desse modo na emoccedilatildeo dita eacute preciso que o item lexical designador de uma
emoccedilatildeo seja atribuiacutedo a uma entidade humana ou humanizaacutevel (ldquoo povordquo ldquoelerdquo ldquoeurdquo
algum animal etc) 223
Portanto uma das caracteriacutesticas do discurso que diz a emoccedilatildeo eacute
que ele tanto pode auto-atribuir a emoccedilatildeo (ldquoa situaccedilatildeo me deixa indignadordquo) quanto
pode alo-atribuiacute-la (ldquoa raiva tomou conta da meninardquo) Assim haacute uma relaccedilatildeo
predicativa entre duas expressotildees ldquouma que incorpora um termo emotivo e outro que
designa uma entidade humana ou humanizaacutevel que deveria sentir tal emoccedilatildeordquo224
220
MICHELI Raphaumlel Les eacutemotions dans les discours modegravele drsquoanalyse perspectives empiriques
Louvain-la-Neuve De Boeck Supeacuterieur 2014 p 11-12 221
ldquoUne eacutetude de la construction des eacutemotions dans le discours ne concerne ainsi ni lrsquoeacutemotion
effectivement ressentie par le locuteur ni celle effectivement susciteacuteeacute chez lrsquoallocutairerdquo (trad livre) Id
ibid p 118 222
Id ibid p 43 223
Id ibid p 43 224
ldquolrsquoune incorporant un terme drsquoeacutemotion lrsquoautre deacutesignant une entiteacute humaine ou humanisable censeacutee
ressentir cette eacutemotionrdquo (trad livre) Id ibid p 46
87
Ademais conveacutem registrar que existem fatores variaacuteveis nas declaraccedilotildees que
dizem uma emoccedilatildeo Por exemplo o termo emotivo pode pertencer a vaacuterias categorias
lexicais um nome (ldquoindignaccedilatildeordquo) um adjetivo (ldquoindignadordquo) um verbo (ldquoindignar-serdquo)
um adveacuterbio (ldquoindignadamenterdquo) De outra parte o termo emotivo pode ocupar
diferentes posiccedilotildees sintaacuteticas sujeito (ldquoa compaixatildeo se apoderou do juizrdquo)
complemento direto (ldquoele sentiu muita vergonhardquo) Vaacuterios verbos satildeo capazes de
facilitar esse processo ldquoinvadirrdquo ldquosubmergirrdquo ldquotomarrdquo ldquoterrdquo ldquoserrdquo ldquosentirrdquo
ldquoexperimentarrdquo ldquoexplodirrdquo etc (ldquoo depoimento da testemunha fez com que todos
explodissem de raivardquo)225
Se a emoccedilatildeo dita tem por sua caracteriacutestica o fato de ser mais facilmente
observaacutevel a categoria da emoccedilatildeo demonstrada carece de contornos precisos a sua
interpretaccedilatildeo eacute possiacutevel apenas atraveacutes de indiacutecios que nos possibilitam inferir a
presenccedila de uma emoccedilatildeo ldquoenunciados que demonstrem uma emoccedilatildeo tecircm caracteriacutesticas
que embora potencialmente muito heterogecircneas satildeo todas passiacuteveis de uma
interpretaccedilatildeo indicialrdquo226
Assim na emoccedilatildeo demonstrada natildeo haacute a presenccedila de um expliacutecito termo
emotivo e por essa razatildeo inexiste uma relaccedilatildeo predicativa que a conecta a uma
entidade humana afetada pela emoccedilatildeo Por isso a sua interpretaccedilatildeo reside na procura de
indiacutecios ldquoIndiacuteciordquo aqui significa a presenccedila de um signo a partir do qual se infere a
presenccedila de determinado objeto porque normalmente diante da ocorrecircncia do
primeiro tambeacutem ocorre o segundo Em outras palavras pode-se afirmar que em face
da apresentaccedilatildeo de determinadas caracteriacutesticas discursivas eacute plausiacutevel inferir que ela eacute
causada por uma emoccedilatildeo supostamente sentida pelo locutor227
Registre-se que nesta categoria natildeo interessa saber a respeito da descriccedilatildeo de
processos fisioloacutegicos ou comportamentais da emoccedilatildeo (ldquoo coraccedilatildeo disparou os laacutebios
tremeram e ele sentiu um enorme frio na barrigardquo) pois se os indiacutecios satildeo verbalizados
e detalhados eles natildeo satildeo mais indiacutecios228
Assim a fim de esclarecer sem exaustividade quais indiacutecios satildeo importantes
para a categoria da emoccedilatildeo demonstrada oferecem-se alguns marcadores que precisam
ser interpretados dentro de um contexto situacional determinado a fim de compreender
225
Id ibid p 49-51 226
ldquoLes eacutenonceacutes qui montrent lrsquoeacutemotion preacutesentent des caracteacuteristiques qui bien que potentiellement tregraves
heacuteteacuterogegravenes sont toutes passibles drsquoune interpreacutetation indiciellerdquo (trad livre) Id ibid p 63 227
Id ibid p 64 228
Id ibid p 66-67
88
de que modo eles satildeo utilizados e a que espeacutecies de emoccedilatildeo eles se referem Por
exemplo (i) as interjeiccedilotildees (ldquonossa quanto processordquo ldquomeu deusrdquo ldquoahrdquo) (ii) a
exclamaccedilatildeo (ldquopreciso ir emborardquo ldquoque julgamentordquo) (iii) os enunciados eliacutepticos que
por meio de uma reduccedilatildeo sintaacutetica possibilitam a manifestaccedilatildeo indicial de uma emoccedilatildeo
(iv) os enunciados averbais (v) os enunciados deslocados agrave direita pois existe uma
relaccedilatildeo entre o modo de ordenar a frase dando ecircnfase a determinados elementos e as
emoccedilotildees (ldquoeacute muito trabalhador esse juizrdquo)229
Por uacuteltimo e de maior interesse para o nosso trabalho estaacute a ideia de emoccedilatildeo
suportada Nesta categoria eacute possiacutevel inferir que uma emoccedilatildeo fundamenta um
especiacutefico discurso natildeo porque ela seja nomeada explicitamente nem porque existam os
tipos de indiacutecios descritos logo acima mas porque a estrutura linguiacutestica do discurso
espelha ou ldquoesquematizardquo a estrutura cognitiva de uma determinada emoccedilatildeo
Primeiramente para explicar esta categoria Micheli fundamentado na
psicologia cognitiva especialmente na Teoria da Avaliaccedilatildeo que iremos abordar com
mais detalhes no proacuteximo toacutepico procura estabelecer uma relaccedilatildeo entre as emoccedilotildees e a
avaliaccedilatildeo da realidade A experiecircncia emocional do sujeito estaacute diretamente relacionada
agrave avaliaccedilatildeo que ele faz de uma determinada situaccedilatildeo Dois indiviacuteduos podem avaliar
uma mesma situaccedilatildeo diferentemente e por isso obterem distintas respostas emocionais
Ademais baseando-se numa perspectiva socioloacutegica e antropoloacutegica enfatiza-se que o
contexto sociocultural tem destacada funccedilatildeo na forma pela qual o indiviacuteduo avalia a
realidade O pertencimento a uma determinada cultura pode explicar a preponderacircncia
de determinadas respostas emotivas em detrimento de outras230
Tais observaccedilotildees satildeo feitas com o objetivo de transpocirc-las para o campo da
anaacutelise do discurso ldquoa questatildeo agora eacute saber como tirar parte desses diversos trabalhos
numa oacutetica das ciecircncias da linguagem e para aquilo que nos interessa da anaacutelise do
discursordquo231
Para isso o autor recorre agrave noccedilatildeo de ldquoesquemardquo discursivo derivada de Grize O
esquema eacute uma especiacutefica forma de organizar a realidade fazecirc-la compreensiacutevel e
assim transmitir linguisticamente as emoccedilotildees Desse modo fornecem-se 7 (sete)
229
Id ibid p 75-95 230
Id ibid p 106-112 231
ldquoLa question est maintenant de savoir comment tirer parti de ces divers travaux dans une optique de
sciences du langage et pour ce qui nous concerne drsquoanalyse du discoursrdquo (trad livre) Id ibid p 112
89
criteacuterios de esquematizaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo emotiva derivados tanto da psicologia
cognitiva quanto dos trabalhos de Plantin
(i) as pessoas implicadas identificar quem satildeo as pessoas presentes no discurso
como elas satildeo representadas e nomeadas e quais papeis satildeo a elas associadas
(ii) as noccedilotildees de tempo e de espaccedilo identificar como a situaccedilatildeo eacute descrita no
tempo e no espaccedilo pelo locutor a fim de enfatizar os seus aspectos emotivos
ldquoontem mesmordquo ldquotodos os dias no Brasilrdquo
(iii) as consequecircncias e o grau de probabilidade identificar como o discurso
descreve as consequecircncias da situaccedilatildeo esquematizada e de que modo eacute
enfatizado o grau de probabilidade de seu acontecimento
(iv) a atribuiccedilatildeo causal e a autoria identificar se o discurso assinala uma causa
para a situaccedilatildeo esquematizada e se haacute um agente cuja accedilatildeo ou omissatildeo resultou
na hipoacutetese narrada por exemplo na indignaccedilatildeo a descriccedilatildeo do sofrimento de
um determinado sujeito eacute resultado de uma accedilatildeo ou de uma omissatildeo imputaacutevel a
um agente
(v) o potencial de controle identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo
emotiva eacute esquematizado O discurso pode enfatizar o grau de incontrolabilidade
de uma determinada situaccedilatildeo a fim de despertar o medo ou pode enfatizar a sua
controlabilidade para fundar sentimentos de aliacutevio e de alegria
(vi) a semelhanccedila identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute comparada com
outra situaccedilatildeo a fim de lhe emprestar conteuacutedo emocional Por exemplo
Micheli narra que em 1791 Robespierre no debate parlamentar a respeito da
aboliccedilatildeo da pena de morte na Franccedila lanccedila a seguinte comparaccedilatildeo a fim de
demonstrar a desproporcionalidade de forccedilas presente em duas situaccedilotildees um
homem que mata uma crianccedila a qual poderia ter sido simplesmente desarmada
parece ser um monstro um prisioneiro que a sociedade condena estaacute numa
situaccedilatildeo de maior fragilidade do que a de uma crianccedila ante a um adulto
(vii) a significaccedilatildeo normativa identificar se a situaccedilatildeo esquematizada eacute
compatiacutevel ou incompatiacutevel com os valores e normas compartilhados em relaccedilatildeo
a um grupo de referecircncia A vergonha por exemplo atua diante da crenccedila da
incapacidade de atingir as normas de determinados grupos (profissional
familiar amigos etc)232
232
Id ibid p 115-119
90
Assim e a tiacutetulo comparativo na emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo eacute expressamente
designada por meio de um termo emotivo enquanto que na emoccedilatildeo demonstrada e
suportada a identificaccedilatildeo da emoccedilatildeo eacute alcanccedilada por meio de uma interpretaccedilatildeo
inferencial Por outro lado na emoccedilatildeo demonstrada parte-se de indiacutecios (signos) a fim
de se inferir a presenccedila de determinada emoccedilatildeo e na emoccedilatildeo suportada haacute uma
esquematizaccedilatildeo dos fundamentos de uma determinada emoccedilatildeo a partir do qual se infere
a sua presenccedila233
Ademais saliente-se que estas trecircs categorias (a emoccedilatildeo dita a emoccedilatildeo
demonstrada e a emoccedilatildeo suportada) podem simultaneamente estar presentes num
mesmo discurso ou natildeo ou seja eacute possiacutevel que um discurso seja portador de uma
emoccedilatildeo sem que expressamente a mencione
Tendo finalizada a exposiccedilatildeo da classificaccedilatildeo elaborada por Micheli eacute preciso
registrar que um dos objetivos da abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees no discurso e que
vem ao encontro do escopo deste trabalho consiste em diminuir a forte separaccedilatildeo
atualmente existente entre logos e pathos
Nesse sentido Plantin destaca que em nossa eacutepoca os aspectos racionais e
emocionais andam tatildeo desconectados que ao se falar que um discurso tem caraacuteter
emotivo levanta-se automaticamente a suspeita de se estar tratando de algo em direccedilatildeo
oposta agrave razatildeo ldquoa antinomia racional e emocional estaacute tatildeo profundamente assentada que
caracterizar um discurso como lsquoemocionalrsquo equivale praticamente a dizer que ele natildeo eacute
racional Esta interpretaccedilatildeo deve ser fortemente rejeitadardquo234
Motivos para essa forte separaccedilatildeo com niacutetido prejuiacutezo para o estudo do campo
das emoccedilotildees natildeo faltam temos a longa tradiccedilatildeo pejorativa da retoacuterica as emoccedilotildees
foram intensamente utilizadas e associadas agrave propaganda de regimes totalitaacuterios a
disciplina das falaacutecias eacute o uacutenico espaccedilo dentro da teoria standard da argumentaccedilatildeo que
tematiza as emoccedilotildees e se pudermos refletir este assunto ainda mais distante no tempo
temos antigas tradiccedilotildees filosoacuteficas tal como a escola estoica que entendem as emoccedilotildees
como irracionais contraacuterias agrave natureza excessivas e que por isso deveriam ser
suprimidas a fim de compreendermos corretamente o mundo
233
Id ibid p 119-120 234
ldquoThe antonomy rationalemotional is so deeply grounded that characterizing a discourse as lsquoemotionalrsquo
practically amounts to implying that it is not rational Such an interpretation should be strongly rejectedrdquo
(trad livre) PLANTIN Christian On the Inseparability of Emotion and Reason in Argumentation In
WEIGAND Edda (ed) Emotion in dialogic interaction AmsterdamPhiladelphia John Benjamins
Publishing Company 2004 265-276 p 274
91
No entanto e sob a perspectiva argumentativa Plantin destaca que eacute
impraticaacutevel se livrar das emoccedilotildees na linguagem jaacute que o argumentar implica tambeacutem
assumir posiccedilotildees afetivas diante do mundo ldquoEacute impossiacutevel moldar linguisticamente um
evento sem no mesmo gesto mostrar uma atitude emocional em relaccedilatildeo a este evento
Manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees emocionais natildeo satildeo distintas das manipulaccedilotildeesconstruccedilotildees
racionaisrdquo235
Destaque-se que na abordagem tradicional ou padratildeo da MTA as emoccedilotildees satildeo
vistas como ldquoreforccedilosrdquo ou ldquonatildeo-argumentosrdquo ocupam papel ldquoauxiliarrdquo no discurso satildeo
registradas como ldquoapelosrdquo e por isso tecircm um tratamento teoacuterico bem limitado
aparecendo no mais das vezes como erros de argumentaccedilatildeo na disciplina das ldquofalaacutecias
adrdquo
Contra este panorama Micheli advoga que as emoccedilotildees podem ser
argumentaacuteveis isto eacute elas mesmas podem ser objeto do discurso e por isso de
construccedilatildeo argumentativa ldquoa este respeito os falantes argumentam a favor ou contra
uma emoccedilatildeo eles datildeo razotildees para fundamentar por que eles sentem (ou natildeo sentem)
esta emoccedilatildeo e por que ela deveria (ou natildeo deveria) ser legitimamente sentidardquo236
Ao analisar os registros do debate parlamentar francecircs acerca da aboliccedilatildeo da
pena de morte entre 1791 ateacute 1981 Micheli anota que havia algo em comum entre
abolicionistas e anti-abolicionistas ambos forneciam razotildees para sentir ou natildeo sentir
uma determinada emoccedilatildeo
Por exemplo no debate de 1791 tanto os abolicionistas quanto os anti-
abolicionistas elaboram o sentimento de medo por meio de argumentos de
consequecircncia
Do lado abolicionista os efeitos do ldquoespetaacuteculo da execuccedilatildeordquo sobre o puacuteblico
satildeo construiacutedos argumentativamente do seguinte modo a pena de morte alimenta o
sentimento de crueldade nas pessoas porque ocorre um processo de dessensibilizaccedilatildeo
do ser humano ldquoo espetaacuteculo da execuccedilatildeo tem por efeito atenuar ou inibir as
disposiccedilotildees morais e afetivas saudaacuteveisrdquo237
Ademais a crueldade tornada puacuteblica eacute um
235
ldquoIt is impossible to linguistically shape an event without in the same gesture displaying an emotional
attitude towards this event Emotional manipulationsconstructions are not distinct from rational
manipulations constructionsrdquo (trad livre) Id ibid p 274 236
ldquoIn this respect speakers argue in favor of or against an emotion they give reasons supporting why
they feel (or do not feel) this emotion and why it should (or should not) be legitimately feltrdquo (trad livre)
MICHELI Raphaumlel Emotions as objects of argumentative constructions In Argumentation Journal
2010b vol 24 Issue 1 1ndash17 p 13 237
ldquole spectacle de lrsquoexeacutecution a pour effet drsquoatteacutenuer voire drsquoinhiber des dispositions morales et
affectives sainesrdquo (trad livre) MICHELI R op cit 2010a p 248
92
estiacutemulo para que pessoas perversas venham a cometer crimes ou seja cria-se um
ambiente propiacutecio ao cometimento de mais delitos238
Por sua vez do lado anti-abolicionista explora-se a ineficaacutecia das penas
alternativas em diminuir a criminalidade O criminoso potencial natildeo seraacute mais
atemorizado por nada o resultado disso eacute uma sociedade cheia de crimes e de
delinquentes
Em resumo por meio da construccedilatildeo de argumentos que antecipem as
consequecircncias negativas da nova legislaccedilatildeo cada parte do debate procurou estruturar o
sentimento de medo no discurso
Por uacuteltimo conveacutem registrar que embora a teoria desenvolvida por Micheli natildeo
tenha fornecido criteacuterios para a avaliaccedilatildeo do discurso emotivo ela significativamente
melhorou a visualizaccedilatildeo do tema ao possibilitar a organizaccedilatildeo do assunto por meio de
uma classificaccedilatildeo econocircmica compreensiacutevel e com capacidade descritiva Nesse ponto
eacute necessaacuterio reconhecer que aleacutem de natildeo se interessar pelo tema das emoccedilotildees a teoria
normativa da argumentaccedilatildeo parece tambeacutem sofrer de um deacuteficit descritivo
26 A psicologia cognitiva e as emoccedilotildees
Enfrentar o tema das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo implica tambeacutem se posicionar a
respeito de problemas de psicologia e talvez resida neste especiacutefico ponto um dos
grandes diferenciais das escolas filosoacuteficas da Antiguidade Isso porque o pensamento
antigo era caracterizado por ser integral ou seja ele abrangia os mais diversos aspectos
do saber humano (eacutetica poliacutetica retoacuterica fiacutesica epistemologia etc) o que facilitava
significativamente o tratamento do presente assunto porque a proacutepria escola filosoacutefica
produzia a sua psicologia que depois era aplicada em outras aacutereas Desse modo tanto
Aristoacuteteles quanto os estoicos transitaram com autoridade sobre o tema das emoccedilotildees
justamente porque elaboraram sua proacutepria disciplina psicoloacutegica
Eacute certo que o forte desenvolvimento da ciecircncia moderna eacute tambeacutem resultado do
fenocircmeno da especializaccedilatildeo do saber o que permite por exemplo que uma pessoa
passe a sua vida inteira apenas pesquisando sobre as propriedades dos neutrinos Mas
por outro lado eacute razoaacutevel pensar que estes ldquodesligamentosrdquo entre as aacutereas provocaram
algumas fraturas de pensamento que hoje em dia a interdisciplinaridade procura um
pouco diminuir
238
Id ibid p 248-249
93
Desse modo a fim de possibilitar a compreensatildeo psicoloacutegica de nossa eacutepoca
acerca das emoccedilotildees nosso intento neste toacutepico consiste em apresentar alguns aspectos
principais da chamada Teoria da Avaliaccedilatildeo pertencente ao campo da psicologia
cognitiva
Assim em primeiro lugar situando historicamente o nascimento da Teoria da
Avaliaccedilatildeo interessa perceber que ateacute por volta de 1960 a importacircncia das emoccedilotildees
para a psicologia era praticamente nula devido agrave resistecircncia em relaccedilatildeo ao tema por
parte do behaviorismo e do positivismo loacutegico campos da psicologia predominantes na
eacutepoca A ecircnfase dos textos de psicologia era direcionada para a aprendizagem para a
personalidade para a motivaccedilatildeo para a percepccedilatildeo para a fisiologia e para a
psicopatologia239
Quando o presente tema era abordado a uacutenica emoccedilatildeo que ganhava algum
destaque por influecircncia freudiana era a anguacutestia entendida como emoccedilatildeo-chave para
explicar os transtornos de ordem mental as demais emoccedilotildees natildeo eram tematizadas
muito menos individualizadas Havia algum interesse em relaccedilatildeo agrave culpa tambeacutem por
influecircncia da psicanaacutelise e em relaccedilatildeo agrave depressatildeo mas esta uacuteltima natildeo eacute considerada
uma emoccedilatildeo mas um complexo processo mental em que vaacuterias emoccedilotildees negativas
estatildeo atuantes240
Outro pensamento influente era de que as emoccedilotildees natildeo passavam de
interrupccedilotildees das operaccedilotildees mentais natildeo merecendo por isso atenccedilatildeo241
Assim em
resumo ldquoos psicoacutelogos acadecircmicos pareciam estar pouco interessados nas emoccedilotildees e
uma vez que eles natildeo as incluiacuteam no curriacuteculo oficial eacute possiacutevel dizer que eles as
consideravam uma mateacuteria altamente especializada talvez ateacute exoacuteticardquo242
O pecircndulo da balanccedila comeccedilou a mudar em virtude dos trabalhos pioneiros de
Magda Arnold e de Richard S Lazarus na deacutecada de 1960 Assim divergindo do
paradigma da eacutepoca Arnold defendeu na sua teoria cognitiva que a deflagraccedilatildeo da
emoccedilatildeo depende em primeiro lugar da avaliaccedilatildeo feita pelo indiviacuteduo de uma
determinada situaccedilatildeo Por sua vez Lazarus realizando pesquisas entre a relaccedilatildeo das
239
LAZARUS Richard S Emotion amp adaptation New YorkOxford Oxford University Press 1991
p 4-5 240
Id ibid p 5 241
SCHOR Angela Appraisal the evolution of an idea In SCHERER Klaus R SCHORR Angela
JOHNSTONE Tom (ed) Appraisal processes in emotion theory methods research New York
Oxford University Press 2001 20-36 p 20 242
ldquoAcademic psychologists have seemed little interested in emotion and because they do not include it
in the core curriculum they could be said to regard it as a highly specialized perhaps even exotic topicrdquo
(trad livre) LAZARUS op cit p 5
94
emoccedilotildees com o stress utilizou tambeacutem a noccedilatildeo de avaliaccedilatildeo e de reavaliaccedilatildeo No
Simpoacutesio Loyola de 1970 Lazarus destaca
Estendendo a posiccedilatildeo de Magda Arnold apenas um pouco noacutes
argumentamos que o padratildeo de excitaccedilatildeo observada na emoccedilatildeo deriva
de impulsos para agir que satildeo gerados pela situaccedilatildeo avaliada pelo
indiviacuteduo e pelas possibilidades avaliadas disponiacuteveis para a accedilatildeo243
Assim foi a partir destes trabalhos que surgiu um novo campo de estudos sobre
as emoccedilotildees na psicologia cujo denominador comum consiste em colocar a ideia de
avaliaccedilatildeo no centro de suas pesquisas Em outras palavras as emoccedilotildees satildeo o resultado
de uma avaliaccedilatildeo acerca de uma determinada situaccedilatildeo realizada pelo sujeito
Antes de prosseguir a primeira observaccedilatildeo a ser feita em relaccedilatildeo a este
posicionamento diz respeito ao fato de que ele vai ao encontro do entendimento de
Crisipo que compreendia que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees sobre a realidade Esta
surpreendente coincidecircncia eacute expressamente notada por Scherer ldquoeste fenocircmeno jaacute
tinha sido descrito pelo filoacutesofo estoico Crisipo que pode muito bem ter sido o primeiro
verdadeiro teoacuterico da avaliaccedilatildeordquo244
Outro ponto digno de menccedilatildeo quanto a esse novo momento teoacuterico vivido na
psicologia foi o aparecimento do interesse por parte dos psicoacutelogos pelo estudo da obra
de Aristoacuteteles mais precisamente pelo Livro II da Retoacuterica parte em que satildeo tratadas as
emoccedilotildees sob uma oacutetica cognitiva Lazarus destaca que com algumas breves exceccedilotildees
na histoacuteria houve praticamente um intervalo de dois mil anos ateacute que o cognitivismo
emotivo pudesse ser novamente abordado245
O fato eacute que a construccedilatildeo teoacuterica realizada tanto por Aristoacuteteles quanto pelos
estoicos eacute de boa qualidade e a despeito do tempo continua a ser bastante atual e uma
preciosa referecircncia histoacuterica acerca do tema Relembrando o que dissemos o Estagirita
compreendia que a nossa visatildeo a respeito dos mais variados assuntos se altera de acordo
com os nossos estados emocionais Aleacutem disso esquematizou e individualizou a
243
ldquoExtending Magda Arnolds position just a bit we argue that the pattern of arousal observed in
emotion derives from impulses to action which are generated by the individuals appraised situation and
by the evaluated possibilities available for actionrdquo (trad livre) LAZARUS Richard S AVERILL James
R OPTON Edward M Torwards a cognitive theory of emotions in ARNOLD Magda (org) Feelings
and emotions the Loyola symposium New YorkLondon Academic Press 1970 207-232 p 218 244
ldquoThis phenomenon has already been described by the stoic philosopher Chrysippus who may well
have been the first real appraisal theoristrdquo (trad livre) SCHERER Klaus R The nature and study of
appraisal a review of the issues In SCHERER Klaus R SCHORR Angela JOHNSTONE Tom (ed)
Appraisal processes in emotion theory methods research New York Oxford University Press 2001
369-391 p 384 245
LAZARUS R Op cit p 14
95
estrutura de vaacuterias emoccedilotildees importantes sendo que os livros de psicologia cognitiva
tecircm adotado a mesma praacutetica hoje em dia Ademais conveacutem recordar que refinamentos
da psicologia aristoteacutelica tal como a ideia de phantasia explicam o surgimento e a
estruturaccedilatildeo das emoccedilotildees Do lado estoico pode-se dizer que o cognitivismo foi ainda
mais marcante porque natildeo fazia uso da ideia de sentimentos mistos (prazer e dor)
derivada de Platatildeo Por fim aleacutem de dizer que as emoccedilotildees satildeo avaliaccedilotildees os estoicos
originalmente utilizaram a ideia de impulso de assentimento e de atribuiccedilatildeo de valores
para explicar o agrupamento de determinadas emoccedilotildees
Tendo registrado essas observaccedilotildees conveacutem agora compreender com mais
detalhes a abordagem da Teoria da Avaliaccedilatildeo delimitando a competecircncia da nossa
investigaccedilatildeo ao pensamento de Lazarus e de Scherer
Assim em primeiro lugar em relaccedilatildeo agrave sua deflagraccedilatildeo as emoccedilotildees satildeo
iniciadas apenas diante de eventos que de alguma forma avaliamos relevantes para a
nossa esfera pessoal Nesse sentido satildeo para noacutes subjetivamente importantes aspectos
factuais relacionados a valores necessidades objetivos ou bem-estar geral Quando
alguns destes fatores estatildeo em jogo numa dada situaccedilatildeo e a depender de como os
avaliamos deflagra-se uma especiacutefica resposta emocional (raiva oacutedio aliacutevio vergonha
alegria amor) Portanto o evento-gatilho da emoccedilatildeo precisa ser pessoalmente
significativo pois de outra forma haveraacute indiferenccedila emocional246
Aleacutem de avaliar se um evento eacute significativo ou natildeo surge uma outra etapa do
processo avaliativo em que ponderamos possiacuteveis opccedilotildees para lidar com a situaccedilatildeo Por
exemplo diante de um problema especiacutefico geralmente abrem-se duas estrateacutegias (i)
podemos tratar de solucionaacute-lo porque ele eacute da espeacutecie dos solucionaacuteveis (dialogar ou
entrar com uma medida judicial especiacutefica podem ser alternativas possiacuteveis para
resolver a raiva causada diante de um vizinho que continuamente desrespeite a lei do
silecircncio) (ii) podemos ter que trabalhar as nossas proacuteprias emoccedilotildees diante de
problemas resistentes ou insoluacuteveis (doenccedila crocircnica grave crise financeira etc) Assim
pode ser necessaacuterio a alteraccedilatildeo da significaccedilatildeo pessoal do evento por meio de uma
reavaliaccedilatildeo fundada em bases realiacutesticas Somos seres capazes de substituir
interpretaccedilotildees que deflagrem respostas emocionais disfuncionais e altamente destrutivas
por outras melhores247
246
LAZARUS Richard S LAZARUS Bernice N Passion amp reason making sense of our emotions
New YorkOxford Oxford University Press 1994 p 143 247
Id ibid p 152-161
96
Assim em resumo na avaliaccedilatildeo o sujeito natildeo se limita a ser um mero agente
passivo e receptor das informaccedilotildees externas mas tambeacutem possui um papel ativo na
forma como lida com os fatores ambientais podendo inclusive reavaliar a significaccedilatildeo
do evento ldquouma avaliaccedilatildeo ndash de que as emoccedilotildees satildeo dependentes ndash eacute muitas vezes um
julgamento complexo sobre como estamos nos relacionando com o ambiente e com as
nossas vidas em geral e como lidar com potenciais prejuiacutezos e benefiacuteciosrdquo248
Acrescente-se que no complexo momento avaliativo compreende-se que vaacuterias
escalas de julgamento satildeo possiacuteveis isto eacute podem ocorrer desde avaliaccedilotildees impliacutecitas e
automaacuteticas ateacute aquelas com alto niacutevel de consciecircncia portando conteuacutedo conceitual e
proposicional249
Aleacutem do sistema avaliativo acima descrito destacam-se tambeacutem os seguintes
componentes que estatildeo presentes no processo emotivo (i) componente motivacional
situaccedilotildees emocionalmente relevantes satildeo motivacionais de modo que nos impelem a
alterar o nosso curso de accedilatildeo a fim de adequaacute-lo agraves novas circunstacircncias (ii)
componente orgacircnico o nosso organismo (sistema motor somato-visceral atenccedilatildeo
expressatildeo accedilatildeo) fica integralmente comprometido com a situaccedilatildeo significativa (iii)
componente prioritaacuterio situaccedilotildees emotivas reclamam precedecircncia sobre a nossa atenccedilatildeo
e sobre o nosso controle comportamental250
Uma especiacutefica preocupaccedilatildeo dos teoacutericos da Teoria da Avaliaccedilatildeo diz respeito agrave
verificaccedilatildeo da correccedilatildeo da ideia segundo a qual maacutes decisotildees estatildeo fundadas em
emoccedilotildees e boas decisotildees estatildeo baseadas em razatildeo pura Esta eacute uma questatildeo que
tambeacutem especialmente nos interessa porque via de regra a resistecircncia quanto ao
tratamento teoacuterico das emoccedilotildees estaacute assentada na forte dicotomia ldquorazatildeo vs emoccedilatildeordquo
Primeiramente eacute preciso ter em mente que apoacutes a emoccedilatildeo ter sido deflagrada o
controle da resposta emocional por intermeacutedio de avaliaccedilotildees a respeito de que modo
iremos lidar com as tendecircncias de accedilatildeo geradas pela emoccedilatildeo eacute um momento em que a
racionalidade se faz presente Uma accedilatildeo cujas consequecircncias sejam socialmente
destrutivas deve ser num juiacutezo avaliativo repelida Essa ideia de controle emocional
por intermeacutedio da razatildeo natildeo eacute desconhecida e de certo modo esse jaacute era o
248
ldquoAn appraisalmdashon which emotions dependmdashis often a complex judgment about how we are doing in
an encounter with the environment and in our lives overall and how to deal with potential harms and
benefitsrdquo (trad livre) Id ibid p 144 249
SCHERER Klaus R What are emotions And how can they be measured In Social Science
Information vol 44 n 4 2005 695-729 p 701 250
SCHERER Klaus R On the rationality of emotions or when are emotions rational In Social
Science Information vol 50 2011 330-350 p 334-335
97
posicionamento de Aristoacuteteles na Eacutetica a Nicocircmaco quando diz que as emoccedilotildees tecircm a
capacidade de ouvir a razatildeo
Todavia Lazarus afirma que a racionalidade tambeacutem se faz presente no primeiro
momento do processo emotivo o surgimento de uma emoccedilatildeo soacute ocorre porque uma
avaliaccedilatildeo compreende que certos objetivos valores ou crenccedilas acerca do mundo estatildeo
sendo numa determinada situaccedilatildeo prejudicados ou beneficiados Esta avaliaccedilatildeo
depende de racionalidade e vem acompanhada de pensamentos ainda que o raciociacutenio
em que tal julgamento seja embasado possa ser agraves vezes equivocado251
Sob tal perspectiva pode-se dizer que as emoccedilotildees estatildeo fundadas em razotildees
porque elas repousam numa loacutegica proacutepria A raiva de um determinado sujeito pode
soar desarrazoada para um estranho e de fato as atitudes geradas pela referida emoccedilatildeo
podem trazer um grande prejuiacutezo social por falta de adequado controle mas uma
pesquisa mais detalhada dos seus motivos revela que uma avaliaccedilatildeo conduziu a esta
resposta emocional especiacutefica porque entendeu que valores objetivos ou necessidades
do sujeito foram prejudicados numa determinada situaccedilatildeo
Assim anota Lazarus a razatildeo estaacute presente em todos os estaacutegios do processo
emotivo mas isso natildeo significa dizer que haja uma supremacia da razatildeo sobre a
emoccedilatildeo porque entre as duas haacute uma relaccedilatildeo de dupla dependecircncia natildeo apenas a
emoccedilatildeo precisa de aspectos racionais para o seu surgimento e para o seu controle mas a
razatildeo soacute eacute proveitosa diante do balanceamento da emoccedilatildeo Nesse sentido pontua
ldquoexiste algo de equiliacutebrio entre a razatildeo e a emoccedilatildeo Caso contraacuterio aiacute reside a
loucurardquo252
As emoccedilotildees assim tecircm uma funccedilatildeo primordial na sobrevivecircncia na
adaptaccedilatildeo no conhecimento e na qualidade de vida do indiviacuteduo
Uma consequecircncia de tal abordagem reside na reduccedilatildeo da dicotomia ldquorazatildeo vs
emoccedilatildeordquo porque ainda que a avaliaccedilatildeo em que se fundou a emoccedilatildeo seja pouco realista
natildeo-saacutebia e ateacute tola eacute possiacutevel extrair racionalidade que vincula o seu surgimento a
objetivos e crenccedilas do indiviacuteduo Desse modo ao inveacutes de insistir na mencionada
dicotomia eacute mais interessante tentar identificar quando raciociacutenios em que se baseiam
as emoccedilotildees satildeo considerados razoaacuteveis ou natildeo
Lazarus nesse intento relaciona uma lista de motivos que geralmente resultam
num erro de avaliaccedilatildeo (i) retardaccedilatildeo mental psicose e danos cerebrais (ii) falta de
251
LAZARUS R Op cit 1994 p 199-200 252
ldquoThere is something of a balance between them If not there lies madnessrdquo (trad livre) Id ibid p
203
98
conhecimento (iii) crenccedilas pessoais (iv) ambiguidade (v) falta de atenccedilatildeo (vi)
rejeiccedilatildeo253
Por exemplo um relevante segmento da populaccedilatildeo pode avaliar que a presenccedila
de imigrantes estaacute relacionada ao crescimento do cometimento dos mais diversos crimes
e agrave perda da identidade cultural da naccedilatildeo deflagrando-se um generalizado medo social
contra pessoas oriundas de outros paiacuteses Para solucionar tal problema avalia-se que a
melhor accedilatildeo a ser tomada consiste no enrijecimento da poliacutetica de imigraccedilatildeo do paiacutes
Essa avaliaccedilatildeo generalizada pode estar fundada em vaacuterios erros de julgamento
como a falta de conhecimento de estatiacutesticas que comprovem que natildeo apenas o nuacutemero
de imigrantes seja iacutenfimo mas que o nuacutemero de crimes praticados por imigrantes seja
muito irrelevante Ela pode estar pouco atenta ao fato de que o paiacutes natildeo tem uma
poliacutetica de integraccedilatildeo de imigrantes fazendo que muitos deles permaneccedilam excluiacutedos
da sociedade Ela pode desconsiderar o fato de que o paiacutes precisa de matildeo-de-obra
imigrante para o setor de serviccedilos e consequentemente para o seu crescimento
econocircmico E pode ateacute desconhecer que alguns imigrantes estavam em condiccedilatildeo de
risco em seus paiacuteses de origem Assim um trabalho de investigaccedilatildeo estaacute comprometido
em identificar em que se sustenta esse medo para possibilitar a criaccedilatildeo de poliacuteticas
puacuteblicas especiacuteficas que busquem desconfirmar as razotildees que o suportam
Scherer por sua vez ressalta que o paradigma da racionalidade perfeita em que
teriacuteamos todo o tempo possiacutevel para tomar decisotildees e disporiacuteamos de abundantes e
conclusivas informaccedilotildees a respeito do assunto objeto de deliberaccedilatildeo raramente eacute
atingido nas condiccedilotildees da vida praacutetica em que geralmente temos limitado prazo para
solucionar algo e natildeo possuiacutemos tantas informaccedilotildees quanto gostariacuteamos Assim no
mundo real em que vivemos as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas agrave
situaccedilatildeo satildeo bons suportes para decisotildees e compatiacuteveis com as concepccedilotildees de
racionalidade usualmente aceitas (instrumental inferencial e consensual) A seu ver a
tentativa de enquadraacute-las como irracionais eacute incompatiacutevel com a sua importacircncia
o sistema emotivo eacute um dos mais eficientes mecanismos
filogeneticamente evoluiacutedos para a adaptaccedilatildeo em organismos
superiores Mais especificamente pode-se mostrar que foi o
desenvolvimento das emoccedilotildees que libertou os organismos do riacutegido
controle de estiacutemulos proporcionando assim um repertoacuterio
comportamental altamente flexiacutevel e portanto uma oacutetima adaptaccedilatildeo
253
Id ibid p 208-213
99
para um ambiente de constante mudanccedila e de muacuteltiplos contextos
sociais254
Assim diante do modelo teoacuterico exposto parece-nos que uma abordagem que
leve em consideraccedilatildeo as emoccedilotildees natildeo pode partir do pressuposto de que elas natildeo satildeo
dignas de tematizaccedilatildeo por sua manifesta irracionalidade Ademais uma teoria da
argumentaccedilatildeo que encare seriamente o fenocircmeno emotivo precisa acessar um saber
psicoloacutegico sob pena de se construir em cima de bases artificiais
254
ldquoThe emotion system is one of the most efficient phylogenetically evolved mechanisms for adaptation
in higher organisms More specifically it can be shown that it was the development of emotion that freed
organisms from rigid stimulus control thus providing for a highly flexible behavioral repertoire and thus
optimal adaptation to an ever-changing environment and multiple social contextsrdquo (trad livre)
SCHERER K Op cit 2011 p 331
100
3 O LUGAR DAS EMOCcedilOtildeES NO DIREITO
31 A importacircncia das emoccedilotildees para o direito
Se no Capiacutetulo I examinamos a importacircncia do estudo das emoccedilotildees na
Antiguidade o Capiacutetulo II foi dedicado a investigar a sua recepccedilatildeo pela MTA com o
objetivo de inclusive coletar criteacuterios para anaacutelise e para avaliaccedilatildeo de decisotildees
judiciais Nesse intuito construiacutemos o ambiente histoacuterico do surgimento da MTA
observamos a abordagem teoacuterica dos ldquopais fundadoresrdquo examinamos o tema na
disciplina das ldquofalaacutecias adrdquo percebemos a reaccedilatildeo teoacuterica de Douglas Walton Por fim
analisamos uma abordagem linguiacutestica e descritiva do discurso emotivo bem como o
posicionamento da psicologia cognitiva especificamente a Teoria da Avaliaccedilatildeo a
respeito deste assunto
Este Capiacutetulo por sua vez busca refletir especificamente a importacircncia das
emoccedilotildees no acircmbito do direito Assim este toacutepico buscaraacute responder agrave pergunta mais
baacutesica sobre esse tema eacute possiacutevel pensar o fenocircmeno juriacutedico sem as emoccedilotildees Qual a
sua relevacircncia
Um possiacutevel ponto de partida para refletir este toacutepico seria pensarmos a partir do
proacuteprio desenvolvimento teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo e as suas respectivas
consequecircncias na aacuterea do direito Conforme vimos as emoccedilotildees satildeo deflagradas diante
de eventos que avaliamos relevantes do ponto de vista de valores crenccedilas objetivos
bem-estar geral Em outras palavras as emoccedilotildees encontram terreno feacutertil para serem
iniciadas apenas em face de eventos significativamente salientes A este respeito
poderiacuteamos desde jaacute elucubrar que o direito seria o haacutebitat especiacutefico deste tema
porque os assuntos de que ele se ocupa em grande parte nos tocam profundamente e
satildeo deflagradores de fortes emoccedilotildees crimes hediondos homiciacutedio latrociacutenio
maioridade penal direito de famiacutelia divoacutercio adoccedilatildeo uniatildeo homoafetiva direitos
humanos cotas raciais direito do consumidor aborto eutanaacutesia direito agrave sauacutede
indenizaccedilatildeo moral e tantos outros
Contra esta ideia e prosseguindo no raciociacutenio eacute possiacutevel arguir de maneira
plausiacutevel que natildeo deveriacuteamos nos guiar por nenhuma dessas emoccedilotildees eventualmente
suscitadas caso contraacuterio os efeitos seriam catastroacuteficos Assim pessoas com
descontrolaacutevel raiva munidas de tremendo oacutedio e de indignaccedilatildeo ou melhor
101
apaixonadas estatildeo desprovidas da capacidade de raciociacutenio e por isso natildeo podem ser
paracircmetro de direcionamento nem para a legislaccedilatildeo nem para a decisatildeo judicial
O direito estaria assim exclusivamente no campo de uma racionalidade strictu
sensu natildeo lhe sendo admitida a intromissatildeo de qualquer elemento exoacutegeno Nussbaum
nesse ponto diz que uma possiacutevel reaccedilatildeo em face da tentativa de introduzir elementos
emotivos no acircmbito juriacutedico seria alegar a sua completa irracionalidade e por isso a
impossibilidade de levaacute-los em consideraccedilatildeo ldquoexiste um famoso lugar-comum no
sentido de que o direito eacute baseado na razatildeo e natildeo na paixatildeordquo255
Eacute possiacutevel chamar a
tradiccedilatildeo legal que compreende as emoccedilotildees como estranhas ao direito de proposta ldquonatildeo-
emotivardquo Poreacutem um tal posicionamento simplesmente desqualifica tanto o debate
teoacuterico e praacutetico acerca do direito ldquoem primeiro lugar o direito sem apelo agrave emoccedilatildeo eacute
virtualmente impensaacutevelrdquo256
A introduccedilatildeo de uma abordagem emotiva no direito eacute necessaacuteria agrave compreensatildeo
do fenocircmeno juriacutedico em vaacuterios sentidos conseguimos entender por que alguns tipos de
danos contra nossa esfera privada e coletiva satildeo condenados e outros natildeo por que
algumas leis adquirem determinada forma por que decisotildees judiciais podem levar em
consideraccedilatildeo certos tipos de emoccedilatildeo ldquomais profundamente eacute difiacutecil compreender a
racionalidade de muitas das nossas praacuteticas juriacutedicas a menos que levemos em
consideraccedilatildeo as emoccedilotildeesrdquo257
Uma maneira adequada para compreender essa relaccedilatildeo em comentaacuterio consiste
em observar que o direito soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres passiacuteveis de vulnerabilidade
isto eacute a existecircncia de proteccedilatildeo legal apenas pode resguardar sujeitos cujas vidas
possam de algum modo sofrer certos tipos de danos ou contingecircncias Assim num
exerciacutecio de imaginaccedilatildeo natildeo faria sentido uma norma cujo conteuacutedo protegesse seres
invulneraacuteveis autossuficientes imortais porque eles natildeo podem sofrer nenhum
prejuiacutezo nada lhes pode ferir ou causar qualquer espeacutecie de estrago258
E somente em relaccedilatildeo a seres cuja constituiccedilatildeo seja caracterizada pela
vulnerabilidade eacute que as emoccedilotildees fazem sentido Assim as emoccedilotildees satildeo respostas agraves
mais diversas fragilidades existentes no ser humano Por exemplo uma vez que a nossa
255
ldquoThere is a popular commonplace to the effect that the law is based on reason and not passionrdquo (trad
livre) NUSSBAUM Martha Hiding from humanity disgust shame and the law PrincetonOxford
Princeton University Press 2004 p 5 256
ldquoFirst of all law without appeals to emotion is virtually unthinkablerdquo (trad livre) Id ibid p 5 257
ldquoMore deeply it is hard to understand the rationale for many of our legal practices unless we do take
emotions into accountrdquo (trad livre) Id ibid p 6 258
Id ibid p 6
102
reputaccedilatildeo eacute vulneraacutevel e por isso pode ser socialmente destruiacuteda estamos sujeitos agrave
vergonha e a lei penal nos protege por meio da tipificaccedilatildeo dos crimes de caluacutenia de
difamaccedilatildeo ou de injuacuteria A lei penal tambeacutem nos protege do medo de eventualmente
termos nossa integridade fiacutesica psiacutequica patrimonial violada porque em todas essas
aacutereas somos sujeitos a vaacuterias espeacutecies de danos
Assim um ser cuja constituiccedilatildeo natildeo possa de alguma forma sofrer danos natildeo
poderaacute experimentar uma resposta emotiva Nada lhe deflagraraacute medo jaacute que nenhum
mal pode lhe sobrevir Nada lhe provocaraacute vergonha raiva ou qualquer sorte de emoccedilatildeo
deflagrada pela razoaacutevel possibilidade de ocorrer prejuiacutezos agrave sua esfera pessoal ldquoeles
natildeo possuiriam razotildees para ter tristeza porque sendo autossuficientes natildeo amariam
nada fora de si pelo menos natildeo com o necessaacuterio tipo de amor humano que daacute origem a
uma profunda perda e depressatildeordquo259
Neste momento parece-nos apropriado retomar a ideia estoica de apatheia
Conforme vimos os estoicos possuiacuteam uma escala de valores bem singular a uacutenica
coisa boa que existe eacute a virtude e a uacutenica ruim eacute o viacutecio a virtude se confunde com a
felicidade e o viacutecio com a infelicidade Assim sauacutede beleza riqueza fama bens
materiais satildeo considerados indiferentes eacute certo que alguns satildeo preferiacuteveis (sauacutede por
exemplo) e outros natildeo-preferiacuteveis mas ainda assim todos satildeo indiferentes porque a
sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a conquista da felicidade Eacute possiacutevel ser feliz na miseacuteria
na doenccedila na tortura Poreacutem eacute impossiacutevel ser feliz caso o indiviacuteduo natildeo possua virtude
Os indiferentes se caracterizam pela sua contingecircncia e pela sua ambiguidade isto eacute
eles satildeo extremamente sujeitos agrave fortuna mundana aleacutem de poderem ser tanto beneacuteficos
quanto maleacuteficos Nessa ordem de ideias ateacute a sauacutede pode ser mal utilizada caso a
detenccedilatildeo de boa sauacutede seja instrumentalizada para objetivos ruins (participar de roubos
assaltos etc)
Nesse modelo teoacuterico as emoccedilotildees precisam ser eliminadas porque quem
experimenta as emoccedilotildees do homem comum valora equivocadamente o que de fato eacute
bom ou ruim O saacutebio estoico tendo atingido a suma racionalidade no caminho para a
compreensatildeo do mundo corretamente livrou-se de todas as emoccedilotildees desvinculou-se
dos bens externos (indiferentes) e tornou-se um ser autossuficiente e virtuoso ldquoos
filoacutesofos estoicos gregos e romanos recorreram a esta ideia ao pedir na medida em que
259
ldquoThey would have no reasons for grief because being self-sufficient they would not love anything
outside themselves at least not with the needy human type of love that gives rise to profound loss and
depressionrdquo (trad livre) Id ibid p 6
103
pudermos para nos tornarmos pessoas autossuficientes extirpando as emoccedilotildees de
nossas vidasrdquo260
Diante de tal concepccedilatildeo eacute possiacutevel indagar o modelo estoico da apatheia eacute uma
abordagem plausiacutevel para a compreensatildeo do sistema juriacutedico tal qual o conhecemos
Certamente natildeo
O sistema juriacutedico eacute um conjunto de regras e princiacutepios que tutela os nossos bens
materiais a nossa integridade fiacutesica e psiacutequica a nossa sauacutede a nossa esteacutetica o nosso
patrimocircnio cultural a nossa intimidade a nossa reputaccedilatildeo social e identidade E assim o
faz porque atribuiacutemos enorme valor a todos esses aspectos de nossa existecircncia
Ademais por valorarmos todos esses aspectos e por temermos possiacuteveis prejuiacutezos ou
danos em relaccedilatildeo a eles o direito leva em consideraccedilatildeo as nossas emoccedilotildees
Se desprezarmos todas as respostas emocionais que nos ligam a este
mundo daquilo que os estoicos chamavam de lsquobens externosrsquo
deixamos de lado uma grande parte da nossa humanidade e uma parte
que estaacute no cerne de explicar por que temos leis civis e criminais e
que forma elas tomam261
Assim qualquer ordenamento juriacutedico apenas adquire contorno apoacutes a seleccedilatildeo
das condutas e dos bens (materiais e imateriais) em virtude dos quais as nossas
respostas emotivas satildeo relevantes A estrutura das leis criminais e civis espelha o medo
social de sua eacutepoca As leis que protegem a vida expressam a medida desse temor e
declaram a indignaccedilatildeo contra condutas que se contraponham aos seus mandamentos
ldquotoda a estrutura do direito penal pode-se dizer que implica uma imagem do que temos
razotildees para estar zangado ou temerosordquo262
Mas a questatildeo natildeo se restringe apenas agrave formataccedilatildeo da legislaccedilatildeo Por exemplo
em 1976 a Suprema Corte americana declarou inconstitucional a lei da Carolina do
Norte que estabelecia pena de morte porque natildeo possibilitava que o reacuteu apresentasse a
sua histoacuteria de vida nem apelasse agrave compaixatildeo dos jurados nos seguintes termos
Um processo que atribui nenhum significado para relevantes facetas
de caraacuteter e os antecedentes do infrator ou as circunstacircncias de
determinado delito exclui de consideraccedilatildeo na fixaccedilatildeo da pena de
morte a possibilidade de fatores de compaixatildeo ou atenuantes
decorrentes das diversas fragilidades do ser humano Ele trata todas as
260
ldquoThe Greek and Roman Stoic philosophers draw on this idea when they ask us all to become such self-
sufficient people insofar as we can extirpating the emotions from our livesrdquo (trad livre) Id ibid p 6 261
ldquoIf we leave out all the emotional responses that connect us to this world of what the Stoics called
lsquoexternal goodsrsquo we leave out a great part of our humanity and a part that lies at the heart of explaining
why we have civil and criminal laws and what shape they takerdquo (trad livre) Id ibid p 7 262
the whole structure of criminal law might be said to imply a picture of what we have reason to be
angry at what we have reason to fear (trad livre) Id ibid p 11
104
pessoas condenadas por um delito natildeo como seres humanos
unicamente individuais mas como membros de uma indiferenciada
massa sem rosto para serem submetidos agrave imposiccedilatildeo cega da pena de
morte263
De outra parte no direito norte-americano o acusado de crime de homiciacutedio
voluntaacuterio pode obter uma reduccedilatildeo penal caso prove que o homiciacutedio tenha sido
cometido em resposta a uma provocaccedilatildeo da viacutetima que tal provocaccedilatildeo tenha sido
ldquoadequadardquo que a raiva do acusado possa ser enquadrada como uma raiva atribuiacutevel a
um homem-meacutedio e que o homiciacutedio tenha sido cometido no calor da emoccedilatildeo sem
tempo suficiente para reflexatildeo264
No Brasil de seu turno uma violenta emoccedilatildeo eacute causa
atenuante da pena de acordo com os arts 65 III ldquocrdquo 121 sect 1ordm e 129 sect 9ordm do Coacutedigo
Penal
Para a configuraccedilatildeo da legiacutetima defesa exige-se que ela seja praticada em face
de uma conduta que provoque medo razoaacutevel de modo que o medo precisa ser
argumentado para fins da decisatildeo judicial Ademais o apelo agrave compaixatildeo eacute largamente
admitido no direito penal norte-americano ldquomesmo os juristas mais cautelosos
concordam que a compaixatildeo eacute construiacuteda no processo de condenaccedilatildeo e qualquer
tentativa de eliminaacute-la viola os direitos fundamentaisrdquo265
Nussbaum partindo dos estoicos e da filosofia claacutessica recorre ao modelo da
psicologia cognitiva a fim de utilizar um paradigma teoacuterico acerca das emoccedilotildees
passiacutevel de ser empregado para compreender o direito Assim a seu ver as emoccedilotildees satildeo
resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos Apenas temos respostas
emocionais diante de algo ou de uma situaccedilatildeo significativamente relevante para a nossa
esfera pessoal Caso a situaccedilatildeo envolva banalidades ela seraacute emocionalmente
irrelevante Desse modo diferentemente da propagada ideia popular que as
compreende como meros impulsos instintuais ou algo desprovido de qualquer
raciociacutenio as emoccedilotildees natildeo podem ser consideradas irracionais num sentido descritivo
embora elas o possam ser num sentido normativo isto eacute quando fundadas em crenccedilas
263
Trata-se do caso Woodson v North Carolina (1976) citado por Nussbaum ldquoA process that accords no
significance to relevant facets of the character and record of the individual offender or the circumstances
of the particular offense excludes from consideration in fixing the ultimate punishment of death the
possibility of compassionate or mitigating factors stemming from the diverse frailties of humankind It
treats all persons convicted of a designated offense not as uniquely individual human beings but as
members of a faceless undifferentiated mass to be subjected to the blind infliction of the penalty of
deathrdquo Id ibid p 21 264
Id ibid p 37 265
ldquoeven the most cautious jurists agree that compassion is built into the sentencing process and that any
attempt to eliminate it violates fundamental rightsrdquo Id ibid p 56
105
ou pensamentos equivocados (racismo sexismo etc)266
ldquopodemos destacar quando a
emoccedilatildeo de algueacutem repousa sobre crenccedilas que satildeo verdadeiras ou falsas e (um ponto
separado) razoaacutevel ou natildeo razoaacutevelrdquo267
No entanto o mais importante a ser destacado eacute que elas satildeo factiacuteveis de
observaccedilatildeo e de discussatildeo criacutetica Para aleacutem de tal constataccedilatildeo descritiva (as emoccedilotildees
satildeo resultados de avaliaccedilotildees e satildeo acompanhadas de pensamentos) tambeacutem eacute possiacutevel
avaliar as emoccedilotildees vale dizer eacute aceitaacutevel ponderar o papel que elas desempenham em
determinados ramos do direito e de que modo elas poderiam ser o nossos guias na vida
puacuteblica restabelecendo assim o debate aristoteacutelico entre emoccedilotildees
adequadasinadequadas de acordo com as circunstacircncias e as emoccedilotildees perversas isto eacute
aquelas que natildeo deveriam ser os nossos paracircmetros em nenhuma hipoacutetese
Exemplificativamente a repugnacircncia268
eacute uma emoccedilatildeo bastante marcante na
vida do ser humano e na constituiccedilatildeo da formaccedilatildeo cultural de uma sociedade Ela estaacute
relacionada ao acircmbito de nossas necessidades iacutentimas ao que entendemos por limpeza
por sujeira ou imundiacutecie agrave maneira pela qual administramos os resiacuteduos fecais a urina
os gases puacutetridos as secreccedilotildees o lixo ela gerencia os odores suportaacuteveis e natildeo
suportaacuteveis do indiviacuteduo estaacute relacionada ao que entendemos por nojento repulsivo
asqueroso tem uma funccedilatildeo na fisiologia humana porque nos adverte sobre possiacuteveis
contaminantes existentes no ambiente (comida liacutequido etc) que podem nos infectar
provocando doenccedilas e ateacute a morte Em resumo a repugnacircncia nos guia na nossa rotina
diaacuteria de limpezas escovaccedilotildees asseios lavagens isolamentos embalagens
organizaccedilotildees no uso de bactericidas de inseticidas de perfumes de aromatizantes etc
Mas para aleacutem do acircmbito das intimidades e da funccedilatildeo fisioloacutegica a repugnacircncia
invade outras aacutereas da existecircncia humana Assim a nossa vida moral eacute tambeacutem
constituiacuteda por essa emoccedilatildeo que nos conduz a fazer certas escolhas no domiacutenio privado
e puacuteblico Por consequecircncia (e inevitavelmente) ela adentra no acircmbito do direito ldquoa
repugnacircncia tambeacutem desempenha um papel poderoso no direito Ela aparece em
primeiro lugar como a principal ou mesmo a uacutenica justificaccedilatildeo para tornar algumas
condutas ilegaisrdquo269
266
Id ibid p 10-11 267
ldquoWe can point out that someonersquos emotion rests on beliefs that are true or false and (a separate point)
reasonable or unreasonablerdquo (trad livre) Id ibid p 31 268
O termo inglecircs eacute disgust cuja traduccedilatildeo tambeacutem pode ser vertida por nojo ou por aversatildeo mas que
preferimos a expressatildeo ldquorepugnacircnciardquo por acharmos mais adequada agrave nossa cultura emocional 269
ldquoDisgust also plays a powerful role in the law It figures first as the primary or even the sole
justification for making some acts illegalrdquo (trad livre) Id ibid p 72
106
Assim a lei que regula os atos obscenos eacute guiada em grande parte pelos
pensamentos de repugnacircncia prevalecentes no padratildeo moral da sociedade de sua eacutepoca
A Suprema Corte americana observou quando da aplicaccedilatildeo da lei de atos obscenos que
a proacutepria palavra ldquoobscenordquo deriva do latim caenum cujo significado eacute repugnante A
repugnacircncia do criminoso em relaccedilatildeo a uma viacutetima homossexual jaacute foi considerada fator
atenuante em crime de homiciacutedio Aleacutem disso a repugnacircncia do juiz ou do juacuteri tambeacutem
eacute considerada um guia para ponderar na decisatildeo a presenccedila de potenciais fatores
agravantes no fato delituoso270
Na comissatildeo de exame de assuntos eacuteticos do governo americano acerca das
pesquisas de ceacutelulas-tronco o especialista em bioeacutetica Leon Kass argumentou que as
novas possibilidades da medicina deveriam ser submetidas agrave ldquosabedoria da
repugnacircnciardquo a fim de alcanccedilarmos uma conclusatildeo eacutetica sobre o seu disciplinamento
juriacutedico Quanto agrave possibilidade de clonagem humana o seu banimento foi justificado
por idecircntico motivo271
No Brasil a repugnacircncia eacute criteacuterio expresso em nossa legislaccedilatildeo para a criaccedilatildeo
de fatos tiacutepicos Assim os crimes hediondos satildeo aqueles que nos provocam repulsa
repugnacircncia nojo aversatildeo Hediondo vem da palavra em latim ldquofoetibundusrdquo que
significa ldquoo que cheira malrdquo a outra palavra relacionada em latim eacute ldquofoetererdquo que
significa ldquofeder ter mau cheirordquo
Em defesa da repugnacircncia como guia na vida puacuteblica podem-se colher os
seguintes argumentos (i) toda sociedade tem o direito agrave autopreservaccedilatildeo moral e para
isso as leis devem ser elaboradas levando em consideraccedilatildeo as respostas emotivas de
repugnacircncia dos seus membros (ii) a repugnacircncia eacute uma sabedoria social que nos
impede transgredir o que eacute moralmente profundo numa determinada comunidade (iii) eacute
preciso combater os viacutecios de uma determinada sociedade por meio de sentimentos de
repugnacircncia e (iv) a repugnacircncia eacute essencial para condenar e reprimir crueldades272
Todavia alega Nussbaum a repugnacircncia nunca deveria ser paracircmetro para
elaboraccedilatildeo de leis pois tal emoccedilatildeo estaacute ligada a pensamentos de pureza de
contaminaccedilatildeo de contaacutegio Do ponto de vista teoacuterico estaacute conectada agrave ideia do
decaimento das condiccedilotildees naturais do nosso corpo da nossa mortalidade da nossa
animalidade A repugnacircncia historicamente foi direcionada a certos grupos sociais
270
Id ibid p 72 271
Id ibid p 72-73 272
Id ibid p 73
107
(mulheres homossexuais negros etc) que eram associados a todos os predicados
(imundos sujos nojentos fedorentos) respeitantes a tal emoccedilatildeo
ao longo da histoacuteria certas propriedades repugnantes ndash viscosidade
fedor ligosidade decadecircncia imundiacutecie ndash tecircm repetida e
monotonamente sido associadas ou melhor projetadas em grupos de
referecircncia a quem os grupos privilegiados procuram contrastar o seu
estado humano superior Judeus mulheres homossexuais intocaacuteveis
pessoas de classe baixa todos eles satildeo imaginados como maculados
pela sujeira do corpo273
Outra emoccedilatildeo fortemente relacionada ao direito eacute a vergonha No direito norte-
americano discute-se a imposiccedilatildeo de penalidades que tenha a capacidade de
profundamente envergonhar o cidadatildeo em substituiccedilatildeo agraves denominadas ldquopenas
alternativasrdquo (penas pecuniaacuterias ou prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade) jaacute que estas
natildeo tecircm a aptidatildeo de gerar a transformaccedilatildeo do caraacuteter do indiviacuteduo Ateacute a cadeia
ambiente em que o indiviacuteduo estaacute longe do olhar social punitivo natildeo tem a capacidade
de lhe humilhar Assim as penalidades que imponham severos sentimentos de vergonha
conseguiriam atingir de maneira muito mais eficiente o propoacutesito de retribuiccedilatildeo de
dissuasatildeo de expressatildeo e de reforma ou reintegraccedilatildeo necessaacuterios para a vida em
sociedade274
Com efeito os exemplos acima descritos demonstram que a relaccedilatildeo entre o
direito e as emoccedilotildees eacute muito mais profunda do que se pode a princiacutepio imaginar
Ademais eacute interessante notar que essa constataccedilatildeo tem sido objeto de investigaccedilatildeo nos
EUA haacute algum tempo originando um campo de estudo hoje denominado de ldquoLaw and
Emotionrdquo em cujo contexto a obra de Nussbaum estaacute inserida
Maroney destaca que a trajetoacuteria do movimento ldquoLaw and Emotionrdquo tem sido
dura porque a construccedilatildeo teoacuterica da modernidade juriacutedica estaacute fundada na ideia de que
a razatildeo e a emoccedilatildeo se localizam em campos tatildeo distintos que eacute necessaacuterio eficiente
policiamento a fim de que as emoccedilotildees natildeo escorreguem no campo do direito e
corrompam o discurso juriacutedico ldquoEste modelo teoacuterico tem persistido apesar de sua
273
ldquothroughout history certain disgust propertiesmdashsliminess bad smell stickiness decay foulnessmdash
have repeatedly and monotonously been associated with indeed projected onto groups by reference to
whom privileged groups seek to define their superior human status Jews women homosexuals
untouchables lower-class peoplemdashall these are imagined as tainted by the dirt of the bodyrdquo (trad livre)
Id ibid p 108 274
Id ibid p 227-228
108
implausibilidade como modelo de como os seres humanos vivem ou de como o nosso
direito eacute estruturado e administradordquo275
Natildeo obstante esse novo campo de estudo em que a interdisciplinaridade se faz
fortemente presente recentemente tem conseguido cada vez mais adeptos sendo
possiacutevel visualizar as seguintes abordagens teoacutericas sugeridas por Maroney
Haacute um interesse no estudo das emoccedilotildees em si mesmas isto eacute investiga-se de
que modo emoccedilotildees especiacuteficas influenciam ou deveriam influenciar a elaboraccedilatildeo de
leis Assim conforme visto a repugnacircncia a vergonha e o medo satildeo exemplos de
emoccedilotildees que despertam curiosidade de anaacutelise e de criacutetica
O medo por exemplo aumenta sentimentos de percepccedilatildeo de risco e gera
demanda por novos mecanismos de seguranccedila promovendo significativas alteraccedilotildees
juriacutedicas ldquoo medo torna os indiviacuteduos mais propensos a apoiar medidas de seguranccedila
em detrimento de outras liberdades importantes e incentiva o apoio a poliacuteticas
conservadoras em geralrdquo276
Por outro lado exemplificativamente discute-se como o
medo decorrente da ldquosiacutendrome das mulheres agredidasrdquo isto eacute uma especial condiccedilatildeo
mental presente em mulheres constantemente viacutetimas de agressatildeo por seus
companheiros deve ser considerado na defesa do processo penal para configuraccedilatildeo da
legiacutetima defesa277
Tambeacutem eacute objeto de preocupaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma teoria das emoccedilotildees com
metodologia categorias e conceitos proacuteprios a fim de possibilitar uma aplicaccedilatildeo
sistemaacutetica e coesa ao direito278
Existe a chamada abordagem doutrinaacuteria em que se estuda como uma especiacutefica
aacuterea do direito incorpora poderia ou deveria incorporar uma determinada emoccedilatildeo Haacute a
abordagem da teoria juriacutedica que analisa criticamente sob o seu ponto de vista a teoria
das emoccedilotildees E haacute uma abordagem sobre a influecircncia das emoccedilotildees sobre o papel dos
atores juriacutedicos ldquoa abordagem do ator-juriacutedico enfatiza os seres humanos que povoam
275
ldquoThis theoretical model has persisted despite its implausibility as a model of either how humans live or
how our law is structured and administeredrdquo (trad livre) MARONEY Terry A Law and Emotion A
Proposed Taxonomy of an Emerging Field In Law and Human Behavior vol 30 2006 119-142 p
120-121 Disponiacutevel em httpssrncomabstract=726864 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 276
PIZARRO David We cannot be emotionless but we are capable of rational debate Disponiacutevel
em httpwwwtheglobeandmailcomglobe-debatewe-cannot-be-emotionless-but-we-are-capable-of-
rational-debatearticle4310309 Acesso em 15 de marccedilo de 2015 277
MARONEY T Op cit p 126 278
Id ibid p 126
109
os sistemas juriacutedicos e explora como a emoccedilatildeo influecircncia e informa ou deveria
influenciar ou informar o desempenho da funccedilatildeo legal atribuiacuteda a essas pessoasrdquo279
Portanto ao contraacuterio do que poderia aparentar agrave primeira vista as emoccedilotildees
participam em vaacuterios niacuteveis da constituiccedilatildeo do direito e de sua praacutetica de modo que
uma abordagem que tambeacutem privilegie o seu estudo permitiraacute uma melhor compreensatildeo
da dinacircmica do fenocircmeno juriacutedico possibilitando proveitosamente novas formas de
criacutetica teoacuterica agrave maneira pela qual o direito eacute estruturado
32 Anaacutelise
Uma vez exploradas algumas conexotildees existentes entre o direito e as emoccedilotildees
parte-se agora para a anaacutelise de trecircs decisotildees judiciais do STF em cujo corpo
procuraremos demonstrar a presenccedila de argumentos emotivos Escolhemos os julgados
pela sua repercussatildeo social assim como para demonstrar que as emoccedilotildees estatildeo
presentes ao contraacuterio do que se poderia imaginar nos mais variados temas juriacutedicos
Neste toacutepico nosso intuito consiste em realizar um exame argumentativo apenas
sob um vieacutes descritivo utilizando como auxiacutelio a classificaccedilatildeo argumentativa proposta
por Micheli no Capiacutetulo II Conforme vimos na referida classificaccedilatildeo existe a emoccedilatildeo
dita a emoccedilatildeo demonstrada e a emoccedilatildeo suportada Embora ao longo de nossa anaacutelise
iremos destacar quando presentes as emoccedilotildees ditas e as demonstradas o nosso
objetivo consiste em evidenciar de que modo as emoccedilotildees satildeo suportadas no discurso
Ademais conveacutem registrar que considerando a grande extensatildeo dos votos seratildeo
selecionados os principais argumentos utilizados pelos ministros para sustentar uma
determinada emoccedilatildeo
321 O ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo
Na Arguiccedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental ndash ADPF nordm 101 (DJ
2462009) ajuizada pelo Presidente da Repuacuteblica estava em discussatildeo a
constitucionalidade da importaccedilatildeo de pneus usados e remoldados em territoacuterio nacional
O julgamento era necessaacuterio porque numerosas decisotildees proferidas por juiacutezes federais
das Seccedilotildees Judiciaacuterias do Cearaacute do Espiacuterito Santo de Minas Gerais do Paranaacute do Rio
279
ldquoThe legal-actor approach focuses on the humans that populate legal systems and explores how
emotion influences and informs or should influence or inform those personsrsquo performance of the
assigned legal functionrdquo (trad livre) Id ibid p 131
110
de Janeiro e de Satildeo Paulo amparavam a importaccedilatildeo de tais pneus que segundo o autor
da accedilatildeo violava preceitos fundamentais da Constituiccedilatildeo Federal ndash CF tais como dentre
outros o direito agrave sauacutede e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado (art 196 e 225
da CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencido o ministro Marco Aureacutelio
A seguir iremos analisar mais detidamente o voto da relatora da accedilatildeo a
ministra Caacutermen Luacutecia que foi acompanhada pelos demais ministros e em seguida
resumidamente os votos dos ministros Gilmar Mendes Carlos Ayres Brito e Joaquim
Barbosa Por uacuteltimo mencionamos o posicionamento do ministro Marco Aureacutelio
A ministra Caacutermen Luacutecia apoacutes cuidar de questotildees formais em toacutepicos
direcionados ao ldquoobjeto da accedilatildeordquo agrave ldquoadequaccedilatildeo da accedilatildeordquo e agrave ldquoexclusatildeo de alguns
arguidosrdquo bem como apoacutes apresentar algumas questotildees preparatoacuterias para o
enfrentamento do problema num toacutepico denominado ldquobreve histoacuterico da legislaccedilatildeo da
mateacuteriardquo inicia a sua argumentaccedilatildeo propriamente dita na seccedilatildeo destinada a dissertar
sobre o ldquopneurdquo
A partir daiacute a ministra utiliza para fundamentar a sua decisatildeo da estrutura
cognitiva tiacutepica do medo isto eacute argumentos de consequecircncia negativa Walton destaca
que o medo eacute estruturado do ponto de vista argumentativo por meio de consequecircncias
negativas ldquoo argumento do tipo apelo ao medo [] eacute uma espeacutecie de argumento de
consequecircncias negativasrdquo280
Diferenciando o apelo ao medo do apelo agrave ameaccedila cuja estrutura eacute mais
complexa porque conteacutem mais um elemento que eacute a ameaccedila do proponente Walton
observa que ambos satildeo argumentos de consequecircncia ldquoeacute o argumento de consequecircncias
como a estrutura subjacente na qual tanto o apelo ao medo quanto o apelo agrave ameaccedila satildeo
construiacutedos que explica a real relaccedilatildeo entre os doisrdquo281
Aleacutem disso de acordo com os criteacuterios apresentados por Micheli outro ponto a
ser observado consiste em identificar como o grau de controle sobre a situaccedilatildeo narrada eacute
esquematizado pois a avaliaccedilatildeo acerca da incapacidade de controle de algo negativo eacute
condizente com a deflagraccedilatildeo e a majoraccedilatildeo de sentimentos de medo
Assim estabelecidas essas premissas adentra-se agora nos argumentos do
julgado
280
ldquothe fear appeal type of argument [hellip] is a species of argument from negative consequencesrdquo (trad
livre) WALTON Douglas Scare tactics arguments that appeal to fear and threats Springer 2000 p
143 281
ldquoit is argument from consequences as the underlying structure upon which both appeal to fear and
appeal to threat are built that explains the real relationship between the twordquo (trad livre) Id ibid p
139
111
Inicialmente a ministra num toacutepico destinado a discorrer sobre ldquoa induacutestria
automobiliacutestica e o resiacuteduo da borrachardquo estabelece que haacute uma enorme quantidade de
pneus vulcanizados em circulaccedilatildeo no mundo ressaltando um primeiro problema que eacute
a difiacutecil decomposiccedilatildeo do seu material e enfatizando a incapacidade de controle de sua
destinaccedilatildeo apoacutes o uso ldquoresultado haacute um total de aproximadamente 4 bilhotildees de pneus
novos em circulaccedilatildeo pelo mundo feito de borracha vulcanizada que eacute um material de
difiacutecil decomposiccedilatildeo e de mais difiacutecil ainda gestatildeo de sua destinaccedilatildeo apoacutes o usordquo
Ao enfrentar o argumento da defesa segundo o qual um dos melhores meios
para superar a questatildeo referente agrave destinaccedilatildeo dos pneus usados consiste em reutilizaacute-los
na manta asfaacuteltica adverte-se que tal mistura resulta na maior emissatildeo de poluentes no
momento em que a roda do automoacutevel entra em fricccedilatildeo com o asfalto advindo a partir
daiacute consequecircncias negativas ldquoentretanto emite mais poluentes no momento da fricccedilatildeo
do pneu aleacutem de ser mais oneroso e com probabilidade de ocasionar doenccedilas de
natureza ocupacionalrdquo
Quanto agrave chamada reciclagem energeacutetica dos pneus para fins de geraccedilatildeo de
calor tambeacutem se enfatiza a sua incontrolabilidade ldquotodavia tambeacutem aqui se depara
com o problema da administraccedilatildeo dos resiacuteduos decorrentes dessa incineraccedilatildeordquo
Assim a tecnologia das incineradoras natildeo controla a situaccedilatildeo porque eacute incapaz
de zerar a emissatildeo de material queimado e a consequecircncia disso eacute que materiais
poluentes metais pesados e compostos toacutexicos (dioxinas e furanos) satildeo liberados na
atmosfera
O que se constatou eacute que apesar de eficiente a queima em
incineradoras dedicadas nunca lsquozerarsquo o material queimado dele
podem resultar efluentes soacutelidos e gasosos que aleacutem de conterem
material poluente podem se apresentar com alto grau de
contaminaccedilatildeo de metais pesados aleacutem de compostos orgacircnicos
toacutexicos em especial dioxinas e furanos
Desse modo em face de liberaccedilatildeo de tais poluentes na atmosfera e com o
consequente processamento quiacutemico dos compostos o efeito negativo reside na
formaccedilatildeo de chuvas aacutecidas
o ponto negativo desse tipo de destinaccedilatildeo dada aos pneus eacute que
produz poluiccedilatildeo ambiental pois nesse processo satildeo emitidos gases
toacutexicos em especial o dioacutexido de enxofre e a amocircnia que em
contato com as partiacuteculas de aacutegua suspensas no ar provocam o
fenocircmeno denominado chuva aacutecida
112
Por sua vez a chuva aacutecida eacute causadora de consequecircncias deleteacuterias numa seacuterie
de oacuterbitas ldquoa chuva aacutecida eacute responsaacutevel por grandes formas de aniquilamento do meio
ambiente por provocar danos nos lagos rios florestas e nos animais bem como nos
monumentos e obras construiacutedos pelos homensrdquo
Outra possiacutevel destinaccedilatildeo para os pneus seria o seu uso na co-incineraccedilatildeo
principalmente nas faacutebricas de cimento todavia novamente outra consequecircncia
negativa ldquosob altas temperaturas esses materiais datildeo origem agraves dioxinas e furanos
considerados substacircncias canceriacutegenasrdquo
Num outro momento do julgado jaacute apoacutes discorrer sobre normas constitucionais
respeitantes ao assunto a rel novamente aborda as consequecircncias negativas do descarte
de pneus usados mas agora se enfatiza o aparecimento de doenccedilas tropicais tal como a
dengue e o subsequente risco agrave vida das pessoas
Constatado que o depoacutesito de pneus ao ar livre ndash a que se chega
inexoravelmente com a falta de utilizaccedilatildeo dos pneus inserviacuteveis
mormente quando se daacute a sua importaccedilatildeo nos termos pretendidos por
algumas empresas - eacute fator de disseminaccedilatildeo de doenccedilas tropicais
[]
Entretanto as pesquisas e as estatiacutesticas satildeo taxativas ao comprovar os
riscos agrave vida acarretados pelas doenccedilas tropicais em especial a
dengue que tem como uma de suas principais causas exatamente a
presenccedila de resiacuteduos soacutelidos como os pneus natildeo utilizados e natildeo
descartados de forma a garantir a salubridade
A seguir enfatiza-se a fragilidade do controle em relaccedilatildeo ao armazenamento dos
pneus usados
A ceacutelere urbanizaccedilatildeo aliada agrave maacute qualidade da limpeza urbana
sem adequados procedimentos de remoccedilatildeo de entulhos em
especial pneus velhos eacute responsaacutevel pelo aparecimento de
criadouros de mosquitos
Alerta-se quanto a outro possiacutevel efeito negativo pois considerando o formato
oval do pneu um ambiente ideal para armazenar organismos vivos eacute possiacutevel que
doenccedilas sequer imaginadas ou ateacute jaacute erradicadas sejam trazidas para o nosso paiacutes
trazendo sofrimento e risco de perda de vida de cidadatildeos
Informa-se ainda que os pneus usados que chegam de outros Paiacuteses
podem conter ovos de insetos transmissores de doenccedilas ateacute agora
natildeo incidentes no Brasil ou jaacute erradicadas no Paiacutes o que demandaria
ndash aleacutem de maior sofrimento das pessoas - mais gastos estatais com a
jaacute precaacuteria condiccedilatildeo da sauacutede puacuteblica no Brasil sem falar insista-se
no risco de perda de vida de cidadatildeos
113
Ademais o aumento de doenccedilas e a consequente fragilizaccedilatildeo da sauacutede da
populaccedilatildeo tecircm uma seacuterie de efeitos negativos para o paiacutes sendo um deles a perda do seu
potencial econocircmico Em outras palavras ateacute o produto interno bruto eacute atingido quando
um governo eacute incapaz de promover uma boa poliacutetica de sauacutede para os seus cidadatildeos
A cada ano a Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas ndash ONU elabora uma
classificaccedilatildeo dos Paiacuteses e mede a qualidade vida em pelo menos trecircs
elementos sauacutede educaccedilatildeo e produto interno bruto Jaacute se concluiu
que enquanto um Paiacutes natildeo tiver resolvido problemas relacionados
agrave sauacutede (saneamento baacutesico incluiacutedo) e agrave educaccedilatildeo da populaccedilatildeo
natildeo haacute como elevar o seu produto interno bruto
De seu turno o ministro Gilmar Mendes tambeacutem fundamenta o seu
posicionamento por meio de argumentos da mesma espeacutecie isto eacute apontam-se as
consequecircncias negativas (ldquoproliferaccedilatildeo de doenccedilasrdquo ldquosubstacircncias nocivas agrave sauacutede e ao
meio ambienterdquo ldquomaterial de difiacutecil composiccedilatildeordquo) e a ausecircncia de controle acerca da
situaccedilatildeo avaliada como negativa (ldquofalta de meacutetodo atualmente eficiente de controlerdquo)
resumindo assim alguns dos argumentos presentes no voto da ministra Caacutermen Luacutecia
O grau de nocividade a falta de meacutetodo atualmente eficiente de
controle da eliminaccedilatildeo das substacircncias nocivas agrave sauacutede e ao meio
ambiente (constataccedilatildeo de descumprimento reiterado da Resoluccedilatildeo
CONAMA nordm 25899) a proliferaccedilatildeo potencial de vetores de
doenccedilas e outros agravos e o aumento do passivo ambiental de
material inserviacutevel de difiacutecil decomposiccedilatildeo satildeo elementos que
constituem a formaccedilatildeo do convencimento juriacutedico acerca do
conhecimento cientiacutefico existente sobre a potencialidade dos danos
ambientais decorrentes do descarte irregular dos pneus usados
O ministro Carlos Ayres apoacutes destacar que os pneus natildeo satildeo biodegradaacuteveis
enfatiza cinco consequecircncias negativas em relaccedilatildeo agrave importaccedilatildeo de pneus usados e
remoldados (i) ocupaccedilatildeo de consideraacutevel espaccedilo fiacutesico para sua armazenagem (ii) risco
de faacutecil combustatildeo (iii) poluiccedilatildeo de rios lagos e correntes de aacutegua (iv) transmissatildeo de
doenccedila por insetos (incluindo a dengue que ele qualifica ser ldquotatildeo temida entre noacutesrdquo) (v)
e os pneus remoldados tem vida uacutetil muito curta e se tornam mais rapidamente um
passivo ambiental O referido ministro tambeacutem expressa indignaccedilatildeo com o fato de que
nos paiacuteses de origem tais pneus natildeo passam de ldquolixo ambientalrdquo e a sua importaccedilatildeo faz
do Brasil ldquouma espeacutecie de quintal do mundordquo com graves danos a bens juriacutedicos (sauacutede
e meio ambiente) tutelados pela Constituiccedilatildeo Federal
Por sua vez o ministro Joaquim Barbosa enfatiza a incontrolabilidade de
situaccedilotildees negativas natildeo haacute meacutetodo eficaz para lidar com os resiacuteduos dos pneus o que
114
ocasiona danos diretos ao meio ambiente natildeo haacute controle sobre o empilhamento e
descarte de pneus o que aumenta a proliferaccedilatildeo de vetores de doenccedila Aleacutem disso alega
a existecircncia de risco de aplicaccedilatildeo de sanccedilotildees no campo das relaccedilotildees internacionais por
desobediecircncia agraves normas da Organizaccedilatildeo Mundial do Comeacutercio - OMC
Por uacuteltimo destaque-se que o ministro Marco Aureacutelio entendeu que para proibir
a importaccedilatildeo de tais pneus deveria haver lei especiacutefica nesse sentido Ademais procura
deslegitimar os argumentos de consequecircncia negativa acima deduzidos ao dizer que a
mera proibiccedilatildeo de importaccedilatildeo natildeo seria suficiente para ldquosalvar a Matildee Terrardquo ldquo[] como
disse e parece que encerrado este julgamento estaraacute salva - a Matildee Terrardquo
Com efeito a argumentaccedilatildeo vencedora no presente caso eacute consistente com a
descriccedilatildeo do medo realizada por Aristoacuteteles em sua retoacuterica isto eacute a possibilidade de
acontecimento de algo ruim que tenha a capacidade de nos provocar danos ou seacuterios
prejuiacutezos Nesta mesma direccedilatildeo Walton enfatiza que o argumento que apela ao medo
envolve a demonstraccedilatildeo da existecircncia de algum perigo que pode ou poderaacute causar
prejuiacutezos a um determinado sujeito implicando a ideia de que eacute necessaacuterio tomar
alguma accedilatildeo para evitaacute-lo282
Portanto na referida decisatildeo estatildeo em consideraccedilatildeo perigos que iratildeo atingir a
ldquopopulaccedilatildeordquo os ldquocidadatildeosrdquo e o ldquomeio-ambienterdquo do Brasil E os males capazes de
atingi-los satildeo muitos materiais poluentes gases toacutexicos dioxinas e furanos substacircncias
canceriacutegenas metais pesados compostos orgacircnicos toacutexicos doenccedilas de natureza
ocupacional ovos de inseto doenccedilas tropicais e desconhecidas poluiccedilatildeo de rios lagos e
correntes de aacutegua chuva aacutecida dengue aumento de gastos estatais para tratar novas
doenccedilas e ateacute o impacto na economia Ademais eacute expressamente dito que tais perigos
tecircm a capacidade de ldquoaniquilarrdquo o meio ambiente e pocircr em risco a vida das pessoas
Tendo em vista a ausecircncia de tecnologia ou de fiscalizaccedilatildeo que tivesse a capacidade de
controlar tais consequecircncias negativas a procedecircncia da accedilatildeo buscou fundar
sentimentos de aliacutevio
Por uacuteltimo eacute interessante tambeacutem notar que embora as palavras ldquoperigordquo ou
ldquoperigosordquo apareccedilam com frequecircncia na decisatildeo a palavra ldquomedordquo natildeo eacute em si mesma
dita mas a despeito disso observa-se que o medo foi argumentado por meio de
argumentos de consequecircncia negativa isto eacute ele foi o suporte emotivo da decisatildeo
282
Id ibid p 143
115
322 O ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo
Na ADPF nordm 54 (DJ 1242012) ajuizada pela Confederaccedilatildeo Nacional dos
Trabalhadores na Sauacutede ndash CNTS estava sob julgamento a possibilidade juriacutedica da
antecipaccedilatildeo terapecircutica do parto na hipoacutetese de fetos anenceacutefalos uma vez que diversos
juiacutezes e tribunais negavam tal pleito agraves gestantes com fundamento nos dispositivos que
regem o crime de aborto no Coacutedigo Penal Os preceitos fundamentais da CF apontados
como violados foram a dignidade da pessoa humana o princiacutepio da legalidade da
liberdade da autonomia da vontade e o direito agrave sauacutede (arts 1ordm IV 5ordm II 6ordm e 196 da
CF) A ADPF foi julgada procedente por maioria vencidos os ministros Ceacutesar Peluso e
Ricardo Lewandowski
Primeiramente iremos analisar a argumentaccedilatildeo do voto do ministro Peluso
Poreacutem para entender a construccedilatildeo argumentativa do referido ministro eacute necessaacuterio
expor a estrutura cognitiva da indignaccedilatildeo
Para nosso objetivo pode-se dizer que tal emoccedilatildeo eacute deflagrada mediante a
avaliaccedilatildeo negativa de uma situaccedilatildeo (accedilatildeoomissatildeo) geradora de sofrimento e danos cuja
responsabilidade causal eacute passiacutevel de imputaccedilatildeo a um agente culpaacutevel Assim existe
uma accedilatildeoomissatildeo atribuiacutevel a algueacutem que eacute julgada condenaacutevel injusta pois causa
um especiacutefico prejuiacutezodanosofrimento a um sujeito283
Portanto a fim de caracterizar a indignaccedilatildeo no discurso eacute preciso analisar como
a accedilatildeoomissatildeo eacute narrada quem eacute o agente responsaacutevel como ele eacute caracterizado no
discurso quem eacute o sujeito passivo e como ele eacute caracterizado no discurso Neste julgado
especiacutefico os dois atores objeto de predicaccedilatildeo satildeo a gestante (a matildee) e o feto
Assim posto isso conveacutem dizer que apoacutes estabelecer que ldquotodos os fetos
anenceacutefalos [] satildeo inequivocamente dotados dessa capacidade de movimento
autoacutegeno vinculada ao processo contiacutenuo da vida e regida pela lei natural que lhe eacute
imanenterdquo o ministro afirma que o aborto de feto anecenfaacutelico eacute conduta criminosa
No seguinte trecho em que o ministro conclui com uma notaacutevel exclamaccedilatildeo
(emoccedilatildeo demonstrada) a conduta condenaacutevel e injusta eacute narrada como ldquofunestamente
danosa agrave vida ou agrave incolumidade fiacutesica alheiardquo caracterizando sofrimento e dano ao
feto ldquonatildeo se concebe nem entende em termos teacutecnico-juriacutedicos uacutenicos apropriados ao
283
Nesse sentido cf MICHELI R op cit 2014 p 113 e NUSSBAUM M op cit 2004 p 99 e 166
A raiva e a indignaccedilatildeo tecircm basicamente a mesma estrutura cognitiva de modo que poderiacuteamos utilizar
tanto uma quanto a outra emoccedilatildeo
116
caso direito subjetivo de escolha [] de comportamento funestamente danoso agrave vida
ou agrave incolumidade fiacutesica alheia e como tal tido por criminoso Eacute coisa abstrusardquo
No seguinte trecho haacute a estrutura completa da indignaccedilatildeo isto eacute o agente
culpado (a gestante) eacute caracterizado como algueacutem com poder desproporcional agrave viacutetima
(ldquoser poderoso superior detentor de toda forccedilardquo) existe a conduta condenaacutevel e
geradora de danos e sofrimentos que eacute comparada a um ato brutal de violecircncia
(ldquoextermiacuteniordquo ldquopena de morterdquo) e existe o sujeito passivo que eacute descrito como algueacutem
totalmente indefeso ldquono caso do extermiacutenio do anenceacutefalo encena-se a atuaccedilatildeo
avassaladora do ser poderoso superior que detentor de toda a forccedila inflige a pena
de morte ao incapaz de pressentir a agressatildeo e de esboccedilar-lhe qualquer defesardquo
A conduta da gestante eacute caracterizada como condenaacutevel injusta e infligidora de
sofrimento vaacuterias vezes Assim a fim de lhe emprestar conteuacutedo emotivo tal
procedimento eacute comparado com situaccedilotildees que via de regra nos provocam ou deveriam
provocar indignaccedilatildeo e raiva tais como a ldquopena capitalrdquo o ldquoracismo sexismo e
especismordquo e ateacute o nazismo Aleacutem disso tal conduta nominada de ldquoodiosardquo reduz o
feto ldquoagrave condiccedilatildeo de lixordquo
[] ao feto reduzido no fim das contas agrave condiccedilatildeo de lixo ou de
outra coisa imprestaacutevel e incocircmoda natildeo eacute dispensada de nenhum
acircngulo a menor consideraccedilatildeo eacutetica ou juriacutedica
[]
Essa forma odiosa de discriminaccedilatildeo que a tanto equivale nas suas
consequecircncias a formulaccedilatildeo criticada em nada difere do racismo do
sexismo e do chamado especismo Todos esses casos retratam a
absurda defesa e absolviccedilatildeo do uso injusto da superioridade de
alguns (em regra brancos de estirpe ariana homens e seres humanos)
sobre outros (negros judeus mulheres e animais respectivamente)
Em outra passagem novamente a conduta eacute comparada com situaccedilotildees que nos
provocam ou deveriam provocar sentimentos de indignaccedilatildeo e raiva podendo-se
inclusive cogitar que a argumentaccedilatildeo implica o medo de que um passado baacuterbaro da
nossa histoacuteria volte novamente a se repetir O ministro demonstra ao final a emoccedilatildeo
com uma exclamaccedilatildeo Confira-se
Faz muito a civilizaccedilatildeo sepultou a praacutetica ominosa de sacrificar
segregar ou abandonar crianccedilas receacutem-nascidas deficientes ou de
aspecto repulsivo como as disformes aleijadas surdas albinas ou
leprosas soacute porque eram consideradas ineptas para a vida e
improdutivas do ponto de vista econocircmico e social
117
Num toacutepico que trata sobre ldquoriscos de eugeniardquo o ministro tambeacutem utiliza de
argumentos de consequecircncia negativa (medo) a fim de demonstrar os perigos que
poderatildeo advir caso a accedilatildeo seja julgada procedente O primeiro deles seria permitir que
outras mulheres possam pleitear tratamento juriacutedico semelhante sob qualquer motivo
(anomalia fetal social econocircmico familiar) implicando a ideia de que novamente seraacute
infligido sofrimento a outros seres inocentes
Eacute possiacutevel imaginar o ponderaacutevel risco de que julgada procedente
esta ADPF mulheres entrem a pleitear igual tratamento juriacutedico a
hipoacuteteses de outras anomalias natildeo menos graves ou porque a gravidez
seja indesejada em si mesma ou porque agrave conta de fatores
econocircmicos sociais familiares etc seria insuportaacutevel ou
insustentaacutevel ter um filho
A ausecircncia de tecnologia meacutedica que permita diagnoacutestico 100 seguro eacute
apontada como outro fator de risco em relaccedilatildeo agrave permissatildeo de tal espeacutecie de aborto
demonstrando assim a incontrolabilidade da situaccedilatildeo sob julgamento
E o que surpreende e admira eacute que quem a invoca parece ignorar que
a temaacutetica estaacute indissociavelmente vinculada ao problema da
dificuldade teacutecnico-cientiacutefica de se detectar com precisatildeo absoluta
quais casos satildeo de anencefalia de modo a diferenciaacute-los de outras
afecccedilotildees da mesma classe nosoloacutegica das quais se distingue apenas
por questatildeo de grau
[]
Por que se evite possibilidade concreta de em decorrecircncia das
incertezas teacutecnico-cientiacuteficas e da consequente falibilidade dos
diagnoacutesticos eliminarem-se arbitrariamente fetos acometidos de
malformaccedilotildees diversas da anencefalia eacute imperioso proibir-lhes o
aborto ainda em tais casos
Ademais para o ministro Peluso a matildee ao pretender a permissatildeo juriacutedica para a
praacutetica do referido aborto configura-se um ser ldquoegocecircntricordquo e ldquoindividualistardquo que em
nome do ldquoprinciacutepio do prazerrdquo e a fim de evitar seu sofrimento psiacutequico e suas
anguacutestias recusa o oferecimento de compaixatildeo e piedade a quem na verdade eacute
merecedor desses sentimentos isto eacute o feto
[] reflete apenas uma atitude individualista e egocecircntrica enquanto
sugere praacutetica cocircmoda de que se vale a gestante para se livrar do
sofrimento e da anguacutestia
[]
Tal ansiedade que voltada para si mesma depende da histoacuteria e da
conformaccedilatildeo psiacutequicas de cada gestante eacute exaltada na proposta em
detrimento do afeto da piedade da compaixatildeo da doaccedilatildeo e da
abnegaccedilatildeo que participam da dimensatildeo de grandeza do espiacuterito
humano
118
Por outro lado se nos votos dos demais ministros eram claramente divergentes
as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do iniacutecio da vida ou do que eacute a vida da laicidade
estatal de questotildees penais de princiacutepios juriacutedicos (dignidade da pessoa humana
autonomia da vontade etc) parece que havia pelo menos um ponto de consenso que
era a necessidade de se ter compaixatildeo para com o sofrimento vivido pela gestante
Lazarus destaca que o tema nuacutecleo da compaixatildeo consiste em ser movido pelo
sofrimento alheio284
Por sua vez na estrutura cognitiva da compaixatildeo existe uma
avaliaccedilatildeo acerca da seriedade do sofrimento vivido por determinado sujeito e de certo
modo estatildeo ausentes consideraccedilotildees acerca da culpa do proacuteprio sujeito por estar em tal
situaccedilatildeo aflitiva285
Assim no voto do relator ministro Marco Aureacutelio realiza-se uma comparaccedilatildeo
entre as emoccedilotildees positivas que geralmente se fazem presentes numa gestaccedilatildeo normal e
as emoccedilotildees negativas que a gestante tem que suportar na hipoacutetese de anencefalia do
feto
Enquanto numa gestaccedilatildeo normal satildeo nove meses de
acompanhamento minuto a minuto de avanccedilos com a predominacircncia
do amor em que a alteraccedilatildeo esteacutetica eacute suplantada pela alegre
expectativa do nascimento da crianccedila na gestaccedilatildeo do feto anenceacutefalo
no mais das vezes reinam sentimentos moacuterbidos de dor de
anguacutestia de impotecircncia de tristeza de luto de desespero dada a
certeza do oacutebito
Assim conclui-se pela impossibilidade de se exigir que a matildee suporte tamanho
sofrimento a que se compara agrave tortura
O ato de obrigar a mulher a manter a gestaccedilatildeo colocando-a em uma
espeacutecie de caacutercere privado em seu proacuteprio corpo desprovida do
miacutenimo essencial de autodeterminaccedilatildeo e liberdade assemelha-se agrave
tortura ou a um sacrifiacutecio que natildeo pode ser pedido a qualquer pessoa
ou dela exigido
Mostra-se inadmissiacutevel fechar os olhos e o coraccedilatildeo ao que vivenciado
diuturnamente por essas mulheres seus companheiros e suas famiacutelias
Igualmente o ministro Joaquim Barbosa anota a presenccedila de um conjunto de
emoccedilotildees negativas (culpa raiva tristeza etc) deflagradas para os pais quando do
diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal concluindo com uma pergunta retoacuterica (emoccedilatildeo
demonstrada)
as reaccedilotildees emocionais dos pais apoacutes o diagnoacutestico de malformaccedilatildeo
fetal abrangem conjuntamente ou natildeo os seguintes sentimentos
284
LAZARUS R Op cit 1991 p 289 285
NUSSBAUM M Op cit 2004 p 49-50
119
ambivalecircncia culpa impotecircncia perda do objeto amado choque
raiva tristeza e frustraccedilatildeo Eacute facilmente perceptiacutevel a enorme
dificuldade de se enfrentar um diagnoacutestico de malformaccedilatildeo fetal E eacute
possiacutevel imaginar a quantidade de sentimentos dolorosos por que
passam aqueles que de suacutebito se veem diante do dilema moral de
interromper uma gestaccedilatildeo unicamente porque nada se pode fazer para
salvar a vida do feto Seria reprovaacutevel uma decisatildeo pela
interrupccedilatildeo da gestaccedilatildeo nesse caso
Por sua vez a ministra Caacutermen Luacutecia expressamente se refere agrave necessidade de
se ter compaixatildeo para com a gestante tendo em vista o enorme sofrimento gerado pela
presenccedila de inuacutemeras emoccedilotildees negativas (medo vergonha anguacutestia) atribuiacutedas agrave
mulher
A mulher que natildeo pode interromper essa gravidez tem o medo do que
vai acontecer o medo de que lhe pode ser acometido o medo fiacutesico o
medo psiacutequico e o medo ainda de vir a ser punida penalmente por
uma conduta que ela venha a adotar
[]
Natildeo se haacute negar compaixatildeo porque seria injusticcedila menos ainda o
direito porque seria antijuriacutedico agrave mulher que trazendo um pequeno
caixatildeo no que eacute o seu berccedilo fiacutesico vai agraves portas do Judiciaacuterio a
suplicar pela sua vida
[]
A mulher gestante de feto anenceacutefalo vive anguacutestia que natildeo eacute
partilhaacutevel pelo que ao Estado natildeo compete intervir vedando o que
natildeo eacute constitucionalmente admissiacutevel como proibido
Em igual sentido o ministro Gilmar Mendes e o ministro Luiz Fux assinalam a
necessidade de se levar em consideraccedilatildeo para a soluccedilatildeo da controveacutersia o sofrimento
que a mulher tem que passar nesse percurso de gestaccedilatildeo
Entrementes o aborto do feto anenceacutefalo tem por objetivo preciacutepuo
zelar pela sauacutede psiacutequica da gestante uma vez que desde o
diagnoacutestico da anomalia (que pode ocorrer a partir do terceiro mecircs de
gestaccedilatildeo) ateacute o parto a mulher conviveraacute com o sofrimento de
carregar consigo um feto que natildeo conseguiraacute sobreviver segundo a
medicina afirma com elevadiacutessimo grau de certeza (ministro Gilmar
Mendes)
[] levar a gestaccedilatildeo ateacute os seus uacuteltimos termos causa na mulher um
sofrimento incalculaacutevel do qual resultam chagas eternas que podem
ser minimizadas caso interrompida a gravidez de plano (ministro
Luiz Fux)
O ministro Carlos Ayres o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber
enfatizam o mesmo aspecto isto eacute o sofrimento pelo qual a mulher passa eacute
desnecessaacuterio comparando-o novamente a uma tortura
120
Daiacute que vedar agrave gestante a opccedilatildeo pelo aborto caracteriza um modo
cruel de ignorar sentimentos que somatizados tem a forccedila de derruir
qualquer feminino estado de sauacutede fiacutesica psiacutequica e moral aqui
embutida a perda ou a sensiacutevel diminuiccedilatildeo da autoestima
[]
Por isso que levar agraves uacuteltimas consequecircncias esse martiacuterio contra a
vontade da mulher corresponde agrave tortura a tratamento cruel
Ningueacutem pode impor a outrem que se assuma enquanto maacutertir o
martiacuterio eacute voluntaacuterio (ministro Carlos Ayres)
Nessa especiacutefica situaccedilatildeo a causa supralegal mencionada traduziraacute
hipoacutetese caracterizadora de inexigibilidade de conduta diversa uma
vez que inexistente em tal contexto motivo racional justo e legiacutetimo
que possa obrigar a mulher a prolongar inutilmente a gestaccedilatildeo e a
expor-se a desnecessaacuterio sofrimento fiacutesico eou psiacutequico com grave
dano agrave sua sauacutede e com possibilidade ateacute mesmo de risco de morte
consoante esclarecido na Audiecircncia Puacuteblica que se realizou em funccedilatildeo
deste processo (ministro Celso de Mello)
[] a imposiccedilatildeo da gestaccedilatildeo contra a vontade da mulher eacute tortura
fiacutesica e psicoloacutegica em razatildeo de crenccedila (natildeo importa se
institucionalizada por meio de lei ou de decisatildeo juriacutedica ainda eacute mera
crenccedila) nos exatos termos da Lei dos Crimes de Tortura (ministra
Rosa Weber)
Assim sob uma anaacutelise emotiva pode-se dizer que enquanto o voto do ministro
Ceacutesar Peluso construiacutedo atraveacutes de uma forte predicaccedilatildeo contra o aborto de feto
anenceacutefalo era fundado na indignaccedilatildeoraiva direcionado agrave conduta da gestante no
medo em relaccedilatildeo agraves consequecircncias do julgamento e na tentativa de criar compaixatildeo para
com o feto os votos dos demais ministros forneciam razotildees para se ter compaixatildeo para
com o sofrimento da matildee que era descrito como uma tortura um sofrimento a que ela
natildeo deu causa um martiacuterio desnecessaacuterio Desse modo observa-se que as emoccedilotildees
foram argumentadas por meio de suas estruturas cognitivas e muitas vezes
expressamente ditas e atribuiacutedas aos atores (gestante feto) objetos de consideraccedilatildeo no
julgamento
323 O ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e 1970rdquo
A ADI nordm 4976 (DJ 1052014) foi ajuizada pelo Procurador-Geral da Repuacuteblica
contra dentre outros dispositivos os arts 37 a 47 da Lei nordm 12663 de 5 de junho de
2012 que concediam aos jogadores titulares ou reservas das seleccedilotildees brasileiras
campeatildes das copas mundiais masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970
121
um precircmio em dinheiro no valor fixo de R$ 10000000 (cem mil reais) e um auxiacutelio
especial mensal para jogadores sem recursos ou com recursos limitados De acordo com
a argumentaccedilatildeo presente na peticcedilatildeo inicial da referida ADI a concessatildeo de tais
benefiacutecios financeiros ao referido grupo de jogadores violaria o princiacutepio da isonomia
A ADI neste ponto foi julgada por unanimidade improcedente
No voto do rel ministro Ricardo Lewandowski apoacutes ser destacado que a CF
por meio do art 217 fomenta as praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais protege e
incentiva as manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacional e atraveacutes do art 215 e 216
salvaguarda as manifestaccedilotildees da cultura popular e os bens de natureza imaterial chega-
se agrave conclusatildeo que o fundamento para desequiparaccedilatildeo consiste no fato de que tais
atletas conseguiram uma ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo Aleacutem do
mais em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados sustenta-se que a ldquoextrema penuacuteria materialrdquo vivida por alguns
colocaria em xeque o ldquoprofundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras
que disputaram as Copas do Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFArdquo
Diante dessas diretrizes constitucionais parece-me plenamente
justificada a iniciativa dos legisladores federais - legiacutetimos
representantes que satildeo da vontade popular - em premiar materialmente
a incalculaacutevel visibilidade internacional positiva proporcionada por
esse grupo especiacutefico e restrito de atletas bem como em evitar que a
extrema penuacuteria material enfrentada por alguns deles ou por suas
famiacutelias ndash com a perda de dignidade pessoal que acompanha essas
circunstacircncias ndash ponha em xeque o profundo sentimento nacional
em relaccedilatildeo agraves seleccedilotildees brasileiras que disputaram as Copas do
Mundo de 1958 1962 e 1970 da FIFA as quais representam ainda
hoje uma das expressotildees mais relevantes conspiacutecuas e populares
da identidade nacional
Nesse pequeno trecho esboccedila-se a presenccedila de vaacuterias emoccedilotildees que
fundamentam a desequiparaccedilatildeo a ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo e a
ldquoidentidade nacionalrdquo satildeo expressivas do sentimento do orgulho a ldquoextrema penuacuteria
materialrdquo diz respeito agrave compaixatildeo ldquoo profundo sentimento nacionalrdquo faz uso do apelo
aos sentimentos do povo
Lazarus destaca que o nuacutecleo temaacutetico do orgulho diz respeito agrave ldquomelhoria da
identidade do ego de algueacutem tomando creacutedito um objeto valioso ou uma conquista seja
a nossa proacutepria ou a de algueacutem ou a de um grupo com o qual nos identificamos - por
122
exemplo um compatriota um membro da famiacutelia ou um grupo socialrdquo286
Assim no
orgulho estaacute presente uma avaliaccedilatildeo positiva de que nossa imagemidentidade foi
significativamente melhorada e engrandecida em virtude da conquista por noacutes mesmos
ou por outros com qual nos identificamos de algo socialmente relevante O evento
deflagrador do orgulho aleacutem de ser considerado positivo aumenta o valor da nossa
imagem
Em relaccedilatildeo ao auxiacutelio especial mensal para os jogadores sem recursos ou com
recursos limitados a desequiparaccedilatildeo tambeacutem eacute justificada a tiacutetulo de compaixatildeo
porque os ldquojogadores daquela eacutepocardquo natildeo ganhavam o suficiente para uma
aposentadoria digna
Recordo nesse sentido que a final da Copa do Mundo de 1950 entre
as seleccedilotildees brasileira e uruguaia realizada no Rio de Janeiro ndash oito
anos portanto antes do primeiro tiacutetulo nacional ndash teve o maior
puacuteblico da histoacuteria do Estaacutedio do Maracanatilde superando 200 mil
pessoas Natildeo obstante como eacute notoacuterio poucos foram os jogadores
daquela eacutepoca mesmo os de maior renome que obtiveram
rendimentos suficientes para garantir na inatividade um sustento
digno para si e seus familiares
No voto do ministro Luiz Fux os ex-campeotildees satildeo descritos como ldquoverdadeiros
heroacuteis do paiacutesrdquo Por sua vez as suas conquistas construiacuteram o ldquonosso patrimocircnio
histoacuterico nacionalrdquo e ldquoalccedilaram o Brasil a outro patamar em termos desportivosrdquo de
modo que natildeo existe agressatildeo agrave isonomia em razatildeo do reconhecimento por ldquotamanho
feitordquo
[] as consequecircncias dos mundiais de 1958 na Sueacutecia de 62 no
Chile e de 70 no Meacutexico foram decisivas para a construccedilatildeo desse
patrimocircnio histoacuterico nacional
Daiacute por que natildeo haacute qualquer ofensa agrave Lei fundamental de 1988 em
especial ao princiacutepio da isonomia quando o Estado promove por
meio de concessatildeo do benefiacutecio ora previsto o reconhecimento por
tamanho feito
Natildeo se pode negligenciar que esses atletas ao representarem o paiacutes
em tais mundiais alccedilaram o Brasil a outro patamar em termos
desportivos
O ministro diz que a importacircncia da conquista de tais jogadores eacute enorme
porque fez com que abandonaacutessemos o complexo de que ldquosoacute seriamos uma paacutetria que
286
ldquoenhancement of ones ego-identity by taking credit for a valued object or achievement either our
own or that of someone or group with whom we identify mdash for example a compatriot a member of the
family or a social grouprdquo (tradlivre) LAZARUS R Op cit p 271
123
calccedila chuteirasrdquo Assim alegar a inconstitucionalidade de tal norma significa ir de
encontro agraves conquistas de que ldquoo povo brasileiro tanto se orgulhardquo
reconhecer a importacircncia dos atores dessa transmudaccedilatildeo por que
passou o Brasil e a identificaccedilatildeo do paiacutes com o futebol abandonando
o complexo de que noacutes soacute seriacuteamos uma Paacutetria que calccedila
chuteiras evidencia a implementaccedilatildeo de poliacutetica puacuteblico-estatal de
reconhecimento que contempla o princiacutepio da isonomia
Afirmar a inconstitucionalidade de tais preceitos concessa venia eacute
desestimular e depreciar as conquistas das quais o povo brasileiro
tanto se orgulha
Quanto agrave atual situaccedilatildeo de miseacuteria de alguns jogadores ela eacute justificada pela
ausecircncia de profissionalismo no futebol de antigamente Ademais tal condiccedilatildeo de
penuacuteria eacute atestada pelos telejornais e pela rede mundial de computadores
Natildeo havia o profissionalismo que vivenciamos nos dias de hoje e
justamente por isso - esse eacute um argumento talvez interdisciplinar ndash
muitos desses verdadeiros heroacuteis do paiacutes natildeo possuem condiccedilotildees
materiais miacutenimas para a sua subsistecircncia Natildeo raro haacute relatos nos
telejornais e na proacutepria rede mundial de computadores de ex-
campeotildees do mundo vivendo em completo esquecimento e ateacute
mesmo na miseacuteria de maneira que merece ser festejada e natildeo
tripudiada a iniciativa do Estado Brasileiro
Ao final do seu voto o ministro Fux atribui ao povo brasileiro mais duas
emoccedilotildees positivas relacionadas aos feitos dos ex-atletas (alegria e gratidatildeo)
Por fim Senhor Presidente egreacutegia Corte eu tenho certeza de que o
povo brasileiro por todas as alegrias que esses atletas
proporcionaram tem uma diacutevida de gratidatildeo e natildeo repudiaraacute a justa e
merecida homenagem feita pela lei
Para o ministro Luiacutes Barroso inexiste violaccedilatildeo agrave isonomia porque a concessatildeo
de tal premiaccedilatildeo e do auxiacutelio-especial estaacute fundada na ldquoavaliaccedilatildeo poliacutetica de que os
referidos jogadores realizaram um feito notaacutevel contribuindo para desenvolver um
traccedilo marcante da cultura nacional e difundir o nome do Brasil no mundordquo De resto
observa que alguns ex-jogadores enfrentam ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo e que na
deacutecada de 50 60 70 natildeo se retirava proveito econocircmico da atividade esportiva como
hoje em dia
Por sua vez o ministro Dias Toffoli oferece outra razatildeo para se ter orgulho das
conquistas dos ex-jogadores qual seja apoacutes ser campeatildeo contra a Sueacutecia em 1958 as
empresas suecas ldquodescobriram o Paiacutesrdquo o que resultou em ldquoriquezas para a Naccedilatildeo
brasileirardquo
124
Em 1958 quando o paiacutes vivia aquele processo de industrializaccedilatildeo da
eacutepoca de Juscelino Kubitschek as induacutestrias suecas olharam para o
Brasil exatamente quando viram o Brasil jogar na Sueacutecia e ser
campeatildeo numa final da Copa do Mundo contra a Sueacutecia As grandes
empresas suecas na aacuterea de tecnologia na aacuterea automobiliacutestica que
se instalaram haacute cinquenta anos no Brasil descobriram o Paiacutes por
conta do futebol o que resultou em riquezas para a Naccedilatildeo
brasileira com a geraccedilatildeo de empregos e de desenvolvimento
Indagado se o Brasil era de fato desconhecido do mundo antes de 1958 o
ministro Toffoli diz que a industrializaccedilatildeo sueca estaacute registrada nos livros Ademais
tais conquistas no futebol resultaram no soft power brasileiro no mundo
Ah eu natildeo vou citar os nomes das empresas mas isso estaacute nos livros
Estaacute na histoacuteria do desenvolvimento brasileiro basta ler Senhor
Presidente Basta ler a histoacuteria do desenvolvimento brasileiro
Verifique se tinha induacutestria sueca antes de 58 investindo no Brasil e
verifique depois
[]
[] a muacutesica brasileira traz retorno ao Brasil a cultura brasileira as
novelas brasileiras que passam no exterior trazem um capital agregado
ao Brasil
Isso eacute o soft power Trata-se do soft power
[]
esse chamado soft power ele traz um retorno agrave Naccedilatildeo brasileira ele
traz dividendos que extrapolam a proacutepria aacuterea do futebol a proacutepria
aacuterea do desporto e agrega valor a toda a Naccedilatildeo brasileira e repercute
na economia de modo geral Como eacute um fato - isso eacute um fato eacute um
dado histoacuterico - que muitas empresas suecas que hoje estatildeo
instaladas haacute mais de cinquenta anos no Brasil olharam para o
Brasil apoacutes a Copa de 1958 laacute organizada
De seu turno o ministro Gilmar Mendes alega que a hegemonia no futebol eacute
benfazeja simpaacutetica no mundo e eacute disso que se trata o soft power Embora natildeo se refira
expressamente aos dispositivos constitucionais acima mencionados ele chega a destacar
que caso bem aproveitada a Copa serviria para ldquorevirar esse complexo de vira-latardquo E
o ministro Marco Aureacutelio alega que o reconhecimento dos ex-atletas eacute justo embora
tenha vindo tarde (cinquenta e quatro anos depois)
Observa-se portanto que a estrutura cognitiva do orgulho se fez bastante
presente na argumentaccedilatildeo desenvolvida pois para fins de justificar a desequiparaccedilatildeo de
tratamento legislativo se avaliou que a imagem do Brasil ou a identidade brasileira foi
significativamente melhorada (e ateacute construiacuteda) apoacutes a vitoacuteria nas copas mundiais
masculinas da FIFA nos anos de 1958 de 1962 e de 1970 Vaacuterias descriccedilotildees a respeito
de tal conquista confirmam isso ldquoincalculaacutevel visibilidade internacional positivardquo
125
ldquotamanho feitordquo ldquofeito notaacutevel ldquoalccedilou o Brasil em outro patamar em termos
desportivosrdquo ldquoabandonou o complexo de que seriacuteamos uma paacutetria que soacute calccedila
chuteirasrdquo ldquoas grandes empresas suecas descobriram o Brasilrdquo ldquosoft power mundialrdquo
ldquoagrega valor a toda Naccedilatildeo brasileirardquo Desse modo o orgulho foi uma emoccedilatildeo
expressamente atribuiacuteda agrave populaccedilatildeo e extensamente argumentada pelos votos
Por outro lado a estrutura cognitiva da compaixatildeo tambeacutem esteve presente pois
o sofrimento dos ex-jogadores eacute descrito como ldquoextrema penuacuteria materialrdquo ldquomiseacuteriardquo
ldquoseacuterias dificuldades financeirasrdquo tudo isso atestado pelos ldquotelejornaisrdquo e pela ldquorede
mundial de computadoresrdquo Tambeacutem estava fora de consideraccedilatildeo questotildees acerca da
culpa dos proacuteprios jogadores para estarem em tal estado de miserabilidade jaacute que via
de regra os ministros avaliaram que naquela eacutepoca natildeo se ganhava tanto dinheiro
quanto hoje em dia Ademais vimos que a alegria e a gratidatildeo foram emoccedilotildees
expressamente atribuiacutedas agrave populaccedilatildeo
33 As emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Este uacuteltimo toacutepico estaraacute divido em trecircs momentos O primeiro busca responder
se eacute possiacutevel uma retoacuterica estoica no direito O segundo tece consideraccedilotildees criacuteticas
sobre os julgados a fim de tentar explicitar em que medida os argumentos emotivos
colaboraram positivamente ou natildeo para a decisatildeo Sobre esse segundo momento eacute
preciso ressaltar que no atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo natildeo conseguimos
identificar criteacuterios que pudessem ser aplicados de maneira sistemaacutetica e coesa
resultando numa rigorosa metodologia de avaliaccedilatildeo de argumentos emotivos Desse
modo sobre este especiacutefico momento avaliativo eacute preciso registrar que muito se tem
para evoluir sobre o tema e por isso natildeo faremos mais do que esparsamente e sem o
rigor desejado ponderar a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum a relevacircncia
dos argumentos identificados e a sua integraccedilatildeo no contexto de uma argumentaccedilatildeo
juriacutedica Portanto intencionamos natildeo mais do que coletar alguns criteacuterios miacutenimos que
pudessem servir para ulterior desenvolvimento teoacuterico acerca da avaliaccedilatildeo de
argumentos Por fim o terceiro momento tentaraacute responder se existe uma eacutetica no uso
das emoccedilotildees na decisatildeo juriacutedica buscando construir paracircmetros de neutralidade para o
julgador
Inicialmente em relaccedilatildeo ao primeiro ponto conveacutem relembrar que a eacutetica
estoica influenciou fortemente a formataccedilatildeo de sua retoacuterica que era considerada uma
126
ciecircncia e uma virtude (diferentemente do que entendia todas as escolas filosoacuteficas da
antiguidade) No entanto a retoacuterica estoica tinha uma seacuterie de peculiaridades pois ao
inveacutes de propoacutesitos persuasivos buscava a correccedilatildeo do discurso Assim para atingir tal
desiderato natildeo utilizava ornamentos valorizava ao maacuteximo a brevidade e o apuro
gramatical repudiava coloquialismos e sobretudo natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero
descrevia esse estilo como seco severo compacto e apaacutetico Em suma o discurso
retoacuterico estoico absorvido na sua dialeacutetica era apresentado destituiacutedo de carga emotiva
para ser assentido pelo puacuteblico
No entanto a utilizaccedilatildeo desse modelo de discurso como paradigma para o
direito especialmente no que tange agraves emoccedilotildees natildeo eacute viaacutevel por uma seacuterie de motivos
Inicialmente se formos realmente radicais nessa ideia ela teria que ser bem
sucedida em sua capacidade de esvaziamento da linguagem de seu conteuacutedo emotivo
Mas isso seria impossiacutevel desde que as palavras se destinam a carregar uma constelaccedilatildeo
de informaccedilotildees experiecircncias e emoccedilotildees por detraacutes delas Seria inclusive desnorteante
retirar o peso emotivo de palavras teacutecnicas e eacuteticas do direito tais como boa-feacute
dignidade da pessoa humana direitos humanos etc Tais palavras tecircm uma dimensatildeo
emotiva forte e por isso satildeo causas de agir isto eacute nos impulsionam em suas
prescriccedilotildees conforme destaca Stevenson ldquodefiniccedilotildees eacuteticas envolvem um casamento de
significado descritivo e emotivo e consequentemente possuem um uso frequente no
redirecionamento e intensificaccedilatildeo de atitudesrdquo287
Ademais Fillmore destaca que toda definiccedilatildeo eacute composta por duas partes uma
parte descritiva relacionada ao significado de uma palavra especiacutefica sendo que esta
parte eacute dependente de outra qual seja o fundo de conhecimento culturalmente
compartilhado da palavra Assim toda palavra eacute dependente de frame isto eacute ldquouma
estrutura de conhecimento ou de conceituaccedilatildeo que subjaz ao significado de um conjunto
de itens lexicais que em certos sentidos apelam para essa mesma estruturardquo288
Portanto um projeto de apatia do discurso juriacutedico precisaria elaborar uma eficiente
287
ldquoethical definitions involve a wedding of descriptive and emotive meaning and accordingly have a
frequent use in redirecting and intensifying attitudesrdquo (trad livre) STEVENSON Charles L Ethics and
language New Haven Yale University Press 1944 p 210 Sobre a importacircncia da linguagem emotiva
na argumentaccedilatildeo cf WALTON Douglas MACAGNO Fabrizio Emotive language in argumentation
New York Cambridge 2014 288
ldquoby frame I mean a structure of knowledge or conceptualization that underlies the meaning of a set of
lexical items that in some ways appeal to that same structurerdquo (trad livre) FILLMORE Charles J
Double-decker definitions the role of frames in meaning explanations In Sign language studies
vol3 2003 p 267
127
terapecircutica para se livrar das caracteriacutesticas da proacutepria linguagem e dos seus anseios
comunicacionais mais baacutesicos
Todavia a impossibilidade de uma retoacuterica estoica no direito ultrapassa uma
questatildeo estritamente linguiacutestica Conforme vimos o direito leva em consideraccedilatildeo as
nossas emoccedilotildees porque a proteccedilatildeo juriacutedica soacute faz sentido em relaccedilatildeo a seres cuja
constituiccedilatildeo seja passiacutevel de danos pois eacute a partir dessa fragilidade constitutiva que se
deflagram respostas emocionais juridicamente relevantes O direito assim se constroacutei
atraveacutes de um conjunto de normas e decisotildees que fornecem elementos para entendermos
com que tipos de danos temos razatildeo para nos indignar ou para ter raiva ou que tipos de
sofrimento nos habilitam a buscar prestaccedilatildeo jurisdicional Portanto existe uma eacutetica
emotiva que informa a elaboraccedilatildeo das leis instrumentaliza-se processualmente e muitas
vezes ingressa no discurso juriacutedico Em outras palavras o direito eacute um sistema de
normas fundado em emoccedilotildees
Isso estaacute intrinsicamente conectado com a anaacutelise das decisotildees que apresentamos
no toacutepico anterior e que agora passamos a discutir
Por exemplo no ldquocaso dos pneumaacuteticosrdquo natildeo faria o menor sentido utilizar a
estrutura cognitiva do medo (argumentos de consequecircncia negativa) caso a existecircncia
de determinados perigos natildeo tivesse a possibilidade de realmente provocar seacuterios
danos a sujeitos e bens juridicamente tutelados pela CF isto eacute a sauacutede da populaccedilatildeo e o
equiliacutebrio do meio-ambiente
Desse modo o uso de argumentos de medo se fez necessaacuterio porque estava em
discussatildeo a presenccedila de riscos juridicamente relevantes que precisavam ser
evidenciados e ponderados Na audiecircncia puacuteblica realizada em 9 de junho de 2008
diversos especialistas manifestaram posicionamentos a favor e contra a importaccedilatildeo dos
pneus usados e remoldados de sorte que para uma boa soluccedilatildeo da questatildeo a
visualizaccedilatildeo de perigos relacionados agrave referida importaccedilatildeo era fundamental
Conveacutem destacar que na decisatildeo o uso de argumentos de medo estava
embasado em material teacutecnico elaborado por especialistas Ademais os referidos
argumentos estavam integrados dentro de uma argumentaccedilatildeo juriacutedica porque os
ministros desenvolveram a ideia de que aqueles perigos contrariavam dispositivos
constitucionais relacionados ao tema tais como o direito ao meio-ambiente
ecologicamente equilibrado o princiacutepio da precauccedilatildeo e o direito agrave sauacutede Por exemplo
em relaccedilatildeo ao art 225 da CF destaca-se o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado o que impotildee ao poder puacuteblico o dever de defendecirc-lo e preservaacute-lo para as
128
presentes e futuras geraccedilotildees O princiacutepio da precauccedilatildeo exige a necessidade de prevenir-
se contra riscos de danos previsiacuteveis quanto ao art 196 da CF enfatiza-se o dever de
atuaccedilatildeo do poder puacuteblico em face de riscos agrave sauacutede da populaccedilatildeo
Assim tal argumentaccedilatildeo demonstra a atualidade da afirmaccedilatildeo aristoteacutelica de que
o medo pode ser beneacutefico para a deliberaccedilatildeo de determinados assuntos que envolvam
perigos Walton tambeacutem evidencia este aspecto ao dizer que argumentos que apelem ao
medo satildeo legiacutetimos e racionais quando a decisatildeo envolva a necessidade de ponderar as
consequecircncias de determinadas escolhas ou mais especificamente quando existe um
dilema entre manter um benefiacutecio atual ou visualizar aspectos de seguranccedila a longo-
prazo ldquoestes argumentos frequentemente envolvem uma escolha entre a seguranccedila a
longo-prazo e a gratificaccedilatildeo imediatardquo289
No presente caso pode-se dizer que estava em
discussatildeo a seguranccedila a longo prazo da populaccedilatildeo e do meio-ambiente em face da
manutenccedilatildeo dos interesses econocircmicos de certas empresas290
De outra parte analisando o ldquocaso dos campeotildees da copa do mundo de 1958
1962 e 1970rdquo entendemos que os argumentos emotivos foram mal utilizados pelos
motivos a seguir desenvolvidos
Em primeiro lugar antes de prosseguir eacute preciso registrar que homenagens
puacuteblicas (sem premiaccedilatildeo em dinheiro) a cidadatildeos brasileiros que alcanccedilaram relevante
ecircxito em suas aacutereas de atuaccedilatildeo profissional (artiacutestica cultural cientiacutefica esportiva etc)
e divulgaram positivamente o nome do Paiacutes satildeo comuns e fazem parte da conduta da
Administraccedilatildeo Puacuteblica Todavia na referida ADI natildeo estava em discussatildeo uma mera
homenagem mas a constitucionalidade de dispositivos da Lei nordm 12663 de 2012 que
destinavam a especiacuteficos ex-jogadores a tiacutetulo de premiaccedilatildeo um relevante montante de
dinheiro puacuteblico no valor total de R$ 52 milhotildees de reais aleacutem de um auxiacutelio especial
Assim considerando a singularidade da homenagem seria necessaacuterio demonstrar que o
uso do dinheiro puacuteblico no caso buscava atingir algum propoacutesito constitucional
bastante relevante
289
ldquoThese arguments frequently involve a choice between long-term safety and immediate gratificationrdquo
(trad livre) WALTON D Op cit 2000 p 23 290
Sunstein em obra especiacutefica explora a relaccedilatildeo entre o medo e o princiacutepio da precauccedilatildeo Em contextos
altamente emotivos o autor argumenta que ocorre o fenocircmeno da negligecircncia probabiliacutestica isto eacute as
pessoas tendem a ignorar a real probabilidade de acontecimento dos riscos imaginados tomando assim
decisotildees irracionais Cf SUNSTEIN Cass R Laws of fear beyond the precautionary principle New
York Cambridge University Press 2005
129
Todavia da leitura dos votos dos ministros observa-se que o uso de argumentos
emotivos suplantou qualquer tentativa de desenvolvimento argumentativo a respeito dos
motivos constitucionais que fundamentariam tal premiaccedilatildeo
Apenas o relator o ministro Lewandowski conseguiu desenvolver um pouco
alguns suportes constitucionais para a decisatildeo mas ainda assim de maneira
problemaacutetica
No primeiro suporte cita-se o art 217 da CF cujo caput diz que eacute dever do
Estado fomentar praacuteticas desportivas formais e natildeo-formais a autorizaccedilatildeo para a
referida homenagem estaria no inciso IV deste dispositivo o qual diz que devem ser
observados ldquoa proteccedilatildeo e o incentivo agraves manifestaccedilotildees desportivas de criaccedilatildeo nacionalrdquo
Todavia a expressatildeo ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo que parece indicar a necessidade de proteccedilatildeo
de manifestaccedilotildees desportivas criadasoriginadas no Brasil eacute entendida em outro sentido
Assim ldquocriaccedilatildeo nacionalrdquo eacute compreendida no sentido de ldquoincorporada aos costumes
nacionaisrdquo
Desse modo o ministro Lewadowski chega agrave conclusatildeo de que o futebol como
esporte incorporado ao costume nacional ldquodeve ser protegido e incentivado por
expressa imposiccedilatildeo constitucional mediante qualquer meio que a Administraccedilatildeo
Puacuteblica considerar apropriadordquo Em outras palavras a Administraccedilatildeo Puacuteblica natildeo
estaria sujeita a limites quando no intuito de fomentar determinada praacutetica desportiva
a protege e incentiva com dinheiro puacuteblico inclusive atraveacutes de homenagens a pessoas
especiacuteficas Parece que tal conclusatildeo natildeo estaacute condizente com a ideia de limites
juriacutedicos presente num Estado Democraacutetico de Direito
O segundo suporte seria uma combinaccedilatildeo do art 215 sect1ordm com o art 216 da CF
Aquele primeiro dispositivo reza que ldquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo
civilizatoacuterio nacionalrdquo Assim o sect 1ordm do art 215 preocupa-se com as manifestaccedilotildees das
culturas populares indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do
processo civilizatoacuterio nacional porque compreende que a vulnerabilidade de culturas
pertencentes a grupos minoritaacuterios necessita de proteccedilatildeo estatal diferenciada para natildeo
desaparecerem
Todavia o ministro Lewandowski realiza uma ablaccedilatildeo no referido dispositivo
ao retirar a parte que fala de ldquo[] indiacutegenas e afro-brasileiras e das de outros grupos
participantes do processo civilizatoacuterio nacionalrdquo Na sua decisatildeo aparece apenas um
pedaccedilo do dispositivo senatildeo vejamos ldquovale lembrar ainda nesse diapasatildeo que o art
130
215 sect 1ordm da Carta Magna dispotildee que lsquoo Estado protegeraacute as manifestaccedilotildees das culturas
popularesrsquordquo
O art 216 por sua vez declara que o patrimocircnio cultural brasileiro eacute
constituiacutedo por bens de natureza material e imaterial ldquo[] tomados individualmente ou
em conjunto portadores de referecircncia agrave identidade agrave accedilatildeo agrave memoacuteria dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileirardquo Assim o ministro Lewandowski chega agrave
conclusatildeo de que o futebol eacute um bem de natureza imaterial e faz referecircncia aos incisos I
e II deste artigo quais sejam ldquoformas de expressatildeordquo e ldquoos modos de criar fazer e
viverrdquo
Poreacutem no direito brasileiro eacute preciso ressaltar que para ganhar tal alcunha os
bens culturais de natureza imaterial por expressa determinaccedilatildeo do art 216 sect 1ordm da CF
estatildeo sujeitos a processo de registro e de reconhecimento especiacutefico pelo Instituto de
Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional - IPHAN regulamentado pelo Decreto nordm
3551 de 4 de agosto de 2000291
Assim ateacute hoje foram registrados pelo IPHAN os seguintes bens culturais de
natureza imaterial ofiacutecio das paneleiras de goiabeiras kusiwa (linguagem e arte graacutefica
Wajatildepi) ciacuterio de Nossa Senhora de Nazareacute samba de roda do recocircncavo baiano modo
de fazer viola-de-cocho ofiacutecio das baianas de acarajeacute jongo no Sudeste modo artesanal
de fazer queijo de Minas samba do Rio de Janeiro frevo cachoeira de Iauaretecirc (lugar
sagrado dos povos indiacutegenas dos Rios Uaupeacutes e Papuri) feira de Caruaru e roda de
capoeira toque dos sinos em Minas Gerais ofiacutecio de Sineiro festa do Divino Espiacuterito
Santo de Pirenoacutepolis Rtixogravekograve (expressatildeo artiacutestica e cosmoloacutegica do Povo Karajaacute)
etc292
A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura ndash
UNESCO apenas reconhece como patrimocircnio cultural imaterial da humanidade os
seguintes elementos do Brasil roda de capoeira frevo yaokwa (ritual do povo
enawene) expressotildees orais e graacuteficas dos wajapis e samba de roda do recocircncavo
baiano293
291
Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimocircnio cultural
brasileiro cria o Programa Nacional do Patrimocircnio Imaterial e daacute outras providecircncias 292
Cf em httpportaliphangovbrportalmontarPaginaSecaodoid=12456ampretorno=paginaIphan
Acesso em 19 de marccedilo de 2015 293
Cf em httpwwwunescoorgnewptbrasiliacultureworld-heritageintangible-cultural-heritage-list-
brazilc1414250 Acesso em 19 de marccedilo de 2015
131
De toda sorte todos os dispositivos acima citados pelo ministro satildeo brevemente
desenvolvidos na argumentaccedilatildeo e mesmo assim natildeo parecem conceder uma
autorizaccedilatildeo para a dita homenagem com o uso de dinheiro puacuteblico
A partir de entatildeo apenas surgem argumentos emotivos que procuram dar razotildees
para se ter orgulho e compaixatildeo pelos campeotildees da copa do mundo de 1958 1962 e
1970 Todavia a questatildeo eacute que tais argumentos desconectam-se dos seus motivos
juriacutedicos afastam-se da questatildeo central em discussatildeo que era a verificaccedilatildeo do
atingimento de propoacutesitos constitucionais e adquirem um peso desproporcional na
argumentaccedilatildeo passando a ser irrelevantes
Conveacutem destacar que a argumentaccedilatildeo realizada pelo ministro Luiz Fux chega a
apresentar as caracteriacutesticas do que seria uma patologia do orgulho Segundo Lazarus o
orgulho pode demonstrar uma faceta doentia quando proveniente de uma identidade
extremante fraacutegil e em duacutevida sobre o seu proacuteprio valor294
Desse modo ao dizer que as
conquistas dos referidos jogadores fizeram com que abandonaacutessemos ldquoo complexo de
que noacutes soacute seriacuteamos uma paacutetria que calccedila chuteirasrdquo o ministro fornece um fundamento
patoloacutegico para a concessatildeo da premiaccedilatildeo Ademais dizer que as vitoacuterias da seleccedilatildeo
proporcionaram bastante alegria agrave populaccedilatildeo e que tal premiaccedilatildeo seria uma diacutevida de
gratidatildeo do povo brasileiro eacute irrelevante para a soluccedilatildeo juriacutedica do caso
O ministro Toffoli por sua vez destaca sem especificar fontes bibliograacuteficas
que a descoberta das empresas suecas pelo Brasil ocorreu em virtude da vitoacuteria de 1958
e seria um bom motivo para se orgulhar da seleccedilatildeo Tal argumento como tantos outros
foge da questatildeo central em julgamento e eacute igualmente irrelevante
De outra parte o uso da compaixatildeo que formatou a concessatildeo legislativa do
chamado auxiacutelio especial e ingressou nos argumentos juriacutedicos tambeacutem se mostra
problemaacutetico
Primeiramente eacute preciso dizer que a compaixatildeo eacute uma emoccedilatildeo de importante
cultivo na vida puacuteblica pois seria impossiacutevel conviver numa sociedade cujos membros
natildeo tivessem a capacidade de reconhecer a seriedade do sofrimento vivido pelos demais
e de lhes auxiliar Assim Nussbaum destaca que tal emoccedilatildeo quando bem utilizada
pode desempenhar relevante funccedilatildeo no direito ldquoela pode fornecer bases cruciais para
programas de assistecircncia social para a ajuda externa e outros esforccedilos para a justiccedila
294
LAZARUS R Op cit 1991 p 273
132
global e para muitas formas de mudanccedila social que abordam a opressatildeo e a
desigualdade de grupos vulneraacuteveisrdquo295
Todavia ela tambeacutem pode ser mal utilizada pelo Estado principalmente em
relaccedilatildeo a uma etapa da estrutura cognitiva da compaixatildeo que diz respeito ao julgamento
eudemonista isto eacute uma fase avaliativa em que aferimos a extensatildeo de pessoas que eacute
objeto de tal emoccedilatildeo296
Eacute caracteriacutestico do ser humano que ele tenha preocupaccedilatildeo
primeiramente por ele proacuteprio e depois por aqueles que lhes satildeo proacuteximos tendendo a
ser indiferente consequentemente com aqueles que estatildeo afastados de seu estreito
ciacuterculo de empatia Tal estrutura de pensamento estaacute presente na descriccedilatildeo da
compaixatildeo realizada por Aristoacuteteles em sua Retoacuterica
Um dos possiacuteveis erros nessa etapa alerta Nussbaum consiste em incluir uma
quantidade muito restrita de pessoas em tal ciacuterculo Ou seja geralmente ocorre que o
conjunto de indiviacuteduos digno de tal sentimento eacute aquele culturalmente proacuteximo ou
simpaacutetico de uma sociedade excluindo-se estranhos e pessoas que estatildeo distantes297
No
que tange agrave criaccedilatildeo de tais ciacuterculos a miacutedia possui um tremendo poder pois atraveacutes da
escolha de imagens e de narrativas e inclusive por pressotildees mercadoloacutegicas tem a
capacidade de produzir empatia e influenciar julgamentos eudemonistas298
Poreacutem o Estado quando se baliza pela compaixatildeo para direcionamento de
recursos puacuteblicos precisa estar atento a isso e realizar uma avaliaccedilatildeo autocriacutetica nessa
etapa de julgamento Estendendo tal raciociacutenio ao presente caso pode-se dizer que no
Brasil o exerciacutecio de compaixatildeo por jogadores campeotildees de futebol padece de um viacutecio
de circularidade cultural por parte do Estado
Assim utilizar argumentos de que determinados atletas mereceriam um auxiacutelio
financeiro porque na eacutepoca de suas atividades profissionais esportivas natildeo se retirava
proveito econocircmico como hoje em dia ou porque a presente situaccedilatildeo financeira de tais
ex-campeotildees colocaria em ldquoxeque o profundo sentimento nacional em relaccedilatildeo agraves
seleccedilotildees brasileiras que disputaram a Copa do Mundo de 1958 1962 e 1970rdquo afronta a
isonomia em prejuiacutezo de atletas de outras modalidades excluiacutedas do ciacuterculo cultural da
295
ldquoIt can provide crucial underpinnings for social welfare programs for foreign aid and other efforts
toward global justice and for many forms of social change that address the oppression and inequality of
vulnerable groupsrdquo (trad livre) NUSSBAUM M Op cit p 55 296
Id ibid p 51 297
Id ibid p 346 298
NUSSBAUM Martha Upheavals of thought the intelligence of emotions Cambridge Cambridge
University Press 2001 p 434
133
simpatia social que tambeacutem alcanccedilaram feitos notaacuteveis para o Paiacutes e que atualmente
passam por iguais problemas financeiros
Acrescente-se que a isonomia eacute um instrumento juriacutedico de manutenccedilatildeo da
estabilidade emocional numa sociedade cujo direito valorize a igualdade Desse modo a
desequiparaccedilatildeo arbitraacuteria juridicamente desmotivada ou fraca deve ser evitada porque
deflagra reaccedilotildees juridicamente relevantes de raiva e de indignaccedilatildeo em face do Estado-
legislador
Por uacuteltimo no ldquocaso dos fetos anenceacutefalosrdquo tem-se um julgamento distinto dos
demais porque os argumentos emotivos ainda que salientes estavam diluiacutedos entre
uma seacuterie de outros argumentos acerca de questotildees penais de dignidade da pessoa
humana de laicidade estatal de autonomia do indiviacuteduo de definiccedilatildeo sobre o iniacutecio da
vida etc
Poreacutem conforme vimos os votos vencedores estavam em sintonia
argumentativa em pelo menos um aspecto qual seja o reconhecimento do sofrimento
da gestante que foi comparado muitas vezes a uma tortura a um martiacuterio revelando a
estrutura cognitiva da compaixatildeo Ademais vaacuterias emoccedilotildees negativas foram
expressamente atribuiacutedas agrave figura da matildee medo vergonha anguacutestia raiva tristeza
Ressalte-se que tal constataccedilatildeo tinha fundamento no depoimento de mulheres que
portaram fetos anenceacutefalos na opiniatildeo de meacutedicos (ginecologistas psiquiatras)
antropoacutelogos e demais especialistas ouvidos na audiecircncia puacuteblica
Acreditamos que tais argumentos eram juridicamente relevantes pelos seguintes
aspectos Primeiramente a demanda considerando o objeto da accedilatildeo soacute faria sentido
diante da seriedade do sofrimento experimentado pela gestante E isso estava
estreitamente conectado a questotildees juriacutedicas respeitantes agrave dignidade da pessoa humana
agrave liberdade e agrave autonomia da vontade ao direito agrave sauacutede que engloba a sauacutede fiacutesica e
psiacutequica
Obviamente a gravidade do sofrimento da gestante era apenas uma entre outras
questotildees que precisavam ser argumentadas e por isso haveria um erro de peso caso os
votos apenas se sustentassem nesse ponto o que natildeo aconteceu No entanto pode-se
dizer que a estrutura argumentativa do julgado estava fundada numa emoccedilatildeo especiacutefica
que era a compaixatildeo e que isso diante das caracteriacutesticas do problema e das normas
juriacutedicas invocadas tinha uma relevacircncia juriacutedica para o deslinde da controveacutersia
Tendo realizado essas observaccedilotildees em relaccedilatildeo aos trecircs julgados do STF
analisados no toacutepico anterior verifica-se que o estudo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo
134
juriacutedica e mais amplamente no direito se justifica pois a partir desta perspectiva eacute
possiacutevel compreender por que alguns julgamentos e ateacute por que algumas leis tomam
determinada formataccedilatildeo sendo admissiacutevel inclusive criticar o uso das emoccedilotildees no
discurso juriacutedico
No entanto para o fechamento deste toacutepico ainda resta discutir mais uma
problemaacutetica que se relaciona agrave eacutetica da utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo e suas
implicaccedilotildees para um discurso juriacutedico que tenha a pretensatildeo de neutralidade e de
tecnicidade na soluccedilatildeo de problemas Assim a introduccedilatildeo de elementos emotivos numa
decisatildeo poderia representar uma ameaccedila agrave necessaacuteria imparcialidade exigida da figura
racional do juiz
Em parte pensamos jaacute ter respondido tal duacutevida tanto na exposiccedilatildeo que fizemos
da psicologia cognitiva quanto na anaacutelise das decisotildees judiciais do STF Para a Teoria
da Avaliaccedilatildeo natildeo haveria como falar de racionalidade dissociada das emoccedilotildees sendo
que muitas das boas decisotildees de nossa vida praacutetica estatildeo amparadas em suportes
emotivos
De outra parte vimos que em determinadas decisotildees judiciais seria ateacute
irracional decidir e fundamentar sem recorrer agraves emoccedilotildees como por exemplo no ldquocaso
dos pneumaacuteticosrdquo em que o medo se fez presente atraveacutes da visualizaccedilatildeo das
consequecircncias negativas (perigos) o que era extremamente adequado para a soluccedilatildeo do
problema
Ademais adicionamos que os argumentos emotivos precisam ser juridicamente
relevantes para o caso considerando tanto o conjunto de normas juriacutedicas invocado
quanto a especiacutefica problemaacutetica factual a ser enfrentada Por fim o peso de tais
argumentos precisa guardar uma relaccedilatildeo de proporccedilatildeo com outras questotildees que tambeacutem
precisem ser enfrentadas
Todavia aqui intencionamos tratar de algo diferente e expor um fictiacutecio modelo
humano que pudesse servir de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no julgamento porque
sabemos que elas tanto podem ser bem utilizadas quanto mal utilizadas
Em primeiro lugar o saacutebio estoico natildeo seria um bom paracircmetro de reflexatildeo
porque uma vez que se livrou das emoccedilotildees do homem comum e apenas possui uma
ldquoversatildeo corrigidardquo das emoccedilotildees (eupatheia) ele tem uma sistemaacutetica de valores que natildeo
coincide com a nossa e a do nosso ordenamento juriacutedico e provavelmente caso tivesse
que julgar o homem inferior teria uma difiacutecil compreensatildeo dos seus problemas juriacutedico-
mundanos
135
Vimos que Aristoacuteteles confere bastante importacircncia agraves emoccedilotildees em sua teoria
eacutetica e na retoacuterica aleacutem de possuir uma visatildeo sobre o tema que ainda permanece
bastante atual Ademais o homem aristoteacutelico tem a virtude completa porque nele a
parte racional e a parte natildeo-racional da alma desempenham bem a sua funccedilatildeo e atingem
os melhores padrotildees demonstrando corretamente que natildeo existe racionalidade sem
disposiccedilatildeo emocional Todavia vimos que Aristoacuteteles natildeo recepciona na retoacuterica a
classificaccedilatildeo emocional da Eacutetica a Nicocircmaco Aleacutem disso para o Estagirita a virtude
moral eacute conquistada pelo haacutebito o que embora concordemos em parte se distancia dos
propoacutesitos mais intelectuais aqui objetivados
Assim entendemos que um bom ponto de reflexatildeo para o uso das emoccedilotildees no
direito e especificamente na decisatildeo juriacutedica seria o modelo do espectador imparcial de
Adam Smith
Na sua Teoria dos Sentimentos Morais Smith procura explanar a estrutura do
julgamento da vida moral na sociedade isto eacute o meio pelo qual aprovamos ou
reprovamos condutas de indiviacuteduos incluindo noacutes mesmos considerando a adequaccedilatildeo
da accedilatildeo de um determinado agente num determinado contexto Primeiramente julgamos
a correccedilatildeo das accedilotildees como espectadores diretos mas em busca de uma melhor
avaliaccedilatildeo tentamos recorrer a outros tipos de espectadores ateacute chegarmos agravequele que
seria o melhor tipo de julgador ou seja o espectador imparcial299
O ato de julgar eacute o desafio de conectar um conjunto de eventos marcados pela
fortuna e por isso pelas suas singularidades a um mundo que necessita ser regido por
padrotildees normativos em comum vale dizer ldquo[] um mundo de mentes que soacute pode ser
um mundo comum quando a imaginaccedilatildeo criativa estabelece normas comuns para a
forma de avaliar os motivos para a accedilatildeo ou seja o que deve ser considerado um motivo
adequado para a accedilatildeordquo300
A fim de realizar devidamente tais julgamentos o espectador precisa estar
munido de dois indispensaacuteveis instrumentos morais quais sejam a simpatia e a
imaginaccedilatildeo Por meio da imaginaccedilatildeo conseguimos superar a descontiguidade fiacutesica
que nos separa necessariamente dos outros homens e o hiato temporal que via de
regra nos aparta da situaccedilatildeo experimentada pelos outros permitindo-nos posicionar
299
SMITH Adam The theory of moral sentiments Cambridge Cambridge University Press 2002 p
XVI 300
ldquo[hellip] world of minds which can only be a common world when the creative imagination sets up
common standards for how to assess motives for action that is for what counts as a proper motive for
actionrdquo (trad livre) Introduccedilatildeo in Id ibid p XVII
136
num mundo de eventos que pessoalmente nunca vivenciamos mas que somos capazes
de reconstruir mentalmente e de alguma forma senti-lo
Como natildeo temos experiecircncia imediata do que os outros homens
sentem natildeo podemos formar uma ideia da forma como eles satildeo
afetados senatildeo concebendo o que noacutes sentiriacuteamos na situaccedilatildeo
semelhante
[]
Pela imaginaccedilatildeo nos colocamos em sua situaccedilatildeo concebemo-nos
suportando todos os mesmos tormentos entramos por assim dizer em
seu corpo e nos convertemos em alguma medida a mesma pessoa que
ele e daiacute formamos uma ideia de suas sensaccedilotildees podendo sentir algo
que embora em menor grau natildeo eacute totalmente contraacuterio ao deles301
Assim eacute atraveacutes da imaginaccedilatildeo baseada em evidecircncias em relaccedilatildeo ao evento
julgado que o espectador consegue compreender os motivos e as emoccedilotildees que
informaram a atitude do agente E a sua simpatia se funda nesta imaginaccedilatildeo pois apenas
ela permite ldquo[] levar para si mesmo cada pequena circunstacircncia de sofrimento que
pode eventualmente ocorrer a quem sofrerdquo302
Assim ao se imaginar na posiccedilatildeo do
agente o espectador iraacute avaliar se agiria da mesma forma simpatizando com os
sentimentos do agente e com a sua conduta
Poreacutem a despeito de o espectador imparcial possuir essa viacutevida qualidade de
imaginar a situaccedilatildeo alheia e por isso ter uma racionalidade composta por emoccedilotildees a
sua especial condiccedilatildeo lhe possibilita estar apartado da violecircncia dos sentimentos
alheios permitindo-lhe produzir julgamentos morais imparciais Assim anota Forman-
Barzilai ldquomas eacute fundamental notar que o modelo de simpatia eacute eficaz para Smith para
produzir juiacutezos morais imparciais porque o espectador eacute ao mesmo tempo envolvido e
desapegadordquo303
Assim o espectador imparcial que eacute a terceira pessoa ideal imaginaacuteria
consegue temperar as emoccedilotildees porque estaacute localizado num lugar que nem eacute
exatamente o nosso proacuteprio com as nossas eternas inclinaccedilotildees e preferecircncias pessoais
301
ldquoAs we have no immediate experience of what other men feel we can form no idea of the manner in
which they are affected but by conceiving what we ourselves should feel in the like situation [hellip] By the
imagination we place ourselves in his situation we conceive ourselves enduring all the same torments we
enter as it were into his body and become in some measure the same person with him and thence form
some idea of his sensations and even feel something which though weaker in degree is not altogether
unlike themrdquo (trad livre) Id ibid p 11-12 302
ldquo[hellip] to bring home to himself every little circumstance of distress which can possibly occur to the
suffererrdquo (trad livre) Id ibid p 26 303
ldquoBut it is key to note that the sympathy model is effective for Smith for producing impartial moral
judgments because the spectator is at once both involved and detachedrdquo FORMAN-BARZILAI Fonna
Adam Smith and the circles of sympathy cosmopolitanism and moral theory Cambridge Cambridge
University Press 2009 p 67
137
nem o da pessoa observada Conforme adverte Nussbaum a emoccedilatildeo precisa ser a
emoccedilatildeo de um espectador ldquoisso tambeacutem significa que noacutes temos que omitir essa parte
da emoccedilatildeo que deriva de um interesse pessoal em nossas proacuteprias metas e projetosrdquo304
Um tal modelo de espectador imparcial implica o desenvolvimento da
capacidade de autocriacutetica e de criacutetica porque lembra Pitts o nosso julgamento do que eacute
louvaacutevel eacute inserido sempre num determinado contexto social e eacute necessaacuterio aprender a
questionaacute-lo em seus preconceitos e nas suas parcialidades Assim ldquonoacutes desenvolvemos
uma concepccedilatildeo do que seria o julgamento de um espectador imparcial observando as
nossas proacuteprias opiniotildees e as de observadores reais ndash membros da nossa proacutepria
sociedade ndash e destes destilando um julgamento desapaixonado e imparcialrdquo305
Smith portanto estava preocupado com a manutenccedilatildeo da ordem social uma vez
que para ele a ausecircncia de determinados preceitos de justiccedila tem forte efeito
desintegrador sobre a sociedade306
Na preservaccedilatildeo dessa ordem confrontar as
inclinaccedilotildees emotivas eacute essencial e isso deve ser realizado numa dupla esfera
individualmente atraveacutes do escrutiacutenio das preferecircncias particularistas e coletivamente
por meio do exame das preferecircncias parciais de facccedilotildees civis e eclesiais que podem se
tornar extremamente fanaacuteticas307
Com efeito tendo visto o que seria o modelo de espectador imparcial de Smith
percebe-se que ele representa um bom ponto de reflexatildeo para pensar a eacutetica da
utilizaccedilatildeo das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Primeiramente as emoccedilotildees natildeo podem ser aquelas resultantes dos proacuteprios
projetos e inclinaccedilotildees particulares do julgador e nessa medida ele precisa ter a
304
ldquoit also means that we have to omit that portion of the emotion that derives from a personal interest in
our own goals and projectsrdquo (trad livre) NUSSBAUM Martha Emotion in the language of judging
In St Johns Law Review vol 70 issue 1 1996 23-30 p 28 305
ldquoWe develop a conception of what the impartial spectatorrsquos judgments would be by observing our own
opinions and those of actual observers and from these distilling a dispassionate and unbiased judgmentrdquo
(trad livre) PITTS Jennifer A turn to empire the rise of imperial liberalism in Britain and France
PrincetonOxford Princeton University Press 2005 p 44 Neil Maccormick busca conciliar o
pensamento de Smith com o de Kant ao formular o seguinte imperativo categoacuterico smithiano ldquoEntre tatildeo
plenamente quanto possiacutevel nos sentimentos de todas as pessoas diretamente envolvidas ou afetadas por
um incidente ou por um relacionamento e imparcialmente forme uma maacutexima de julgamento sobre o que
eacute certo que todos pudessem aceitar se estivessem comprometidos com a manutenccedilatildeo de crenccedilas muacutetuas
estabelecendo um padratildeo comum de aprovaccedilatildeo entre sirdquo MACCORMICK Neil Practical reason in law
and morality OxfordNew York Oxford University Press 2008 p 64 Para uma anaacutelise da
argumentaccedilatildeo do STF e do STJ com base nos paracircmetros fornecidos por Maccormick cf ROESLER
Claudia LAGE Leonardo A argumentaccedilatildeo do STF e do STJ acerca da periculosidade de agentes
inimputaacuteveis e semi-imputaacuteveis In Revista Brasileira de Ciecircncias Criminais Ano 21 Vol 104 Out-
set 2013 pp 347-390 306
SMITH A Op cit p 101 307
FORMAN-BARZILAI F Op cit p 152
138
capacidade de filtrar as suas propensotildees pessoais e tambeacutem criticar as do grupo em que
esteja socialmente inserido e as de outros grupos sociais dominantes a fim de que as
emoccedilotildees alcanccediladas sejam a de um espectador imparcial Poreacutem a despeito disso sabe-
se que ele natildeo eacute um observador apaacutetico de modo que as emoccedilotildees quando juridicamente
relevantes e pertinentes ao conjunto normativo discutido podem ser argumentadas
desde que devidamente fundamentadas em evidecircncias Por fim eacute preciso acrescentar
que o julgador por meio de suas decisotildees eacute responsaacutevel por preservar um ambiente de
normatividade comum na sociedade
A manutenccedilatildeo da confianccedila social na figura do juiz reside na sua capacidade de
se colocar adequadamente nesse papel de espectador imparcial possibilitando a
conservaccedilatildeo do ideal da lei como limites
139
4 CONCLUSAtildeO
No Capiacutetulo I iniciamos este trabalho investigando a importacircncia conferida agraves
emoccedilotildees na Antiguidade precisamente na retoacuterica e na eacutetica da filosofia de Aristoacuteteles e
da escola estoica
Primeiramente contextualizamos o tema e observamos que as emoccedilotildees ganham
oportunidade para tematizaccedilatildeo apenas dentro de uma sociedade em que a cultura do
debate eacute valorizada A retoacuterica surge num ambiente em que a fala articulada se mostra
extremamente necessaacuteria para a soluccedilatildeo de problemas na vida comum nascendo a partir
daiacute a sua teorizaccedilatildeo e tambeacutem a sua criacutetica atraveacutes de Platatildeo que cunha o termo
ldquorhecirctorikecircrdquo Ademais a proacutepria literatura representada na sua maior qualidade pela
obra de Homero impulsiona e antecipa o desenvolvimento teoacuterico da retoacuterica
Por sua vez ao analisar a retoacuterica aristoteacutelica destacamos um ponto pouco
explorado do autor que diz respeito agrave sua mudanccedila de posicionamento acerca das
emoccedilotildees Se no Capiacutetulo I do Livro I da Retoacuterica observamos uma contundente criacutetica
ao uso das emoccedilotildees no discurso a partir do Capiacutetulo II as emoccedilotildees jaacute satildeo consideradas
um dos meios de convencimento e apoacutes dedica-se praticamente a metade do Livro II
para descrever com um grande grau de detalhes as emoccedilotildees em espeacutecie
Vimos tambeacutem que Aristoacuteteles foi influenciado pela evoluccedilatildeo do pensamento
platocircnico e incorpora em sua obra a ideia de sentimentos mistos pois para o
mencionado filoacutesofo as emoccedilotildees satildeo acompanhadas de prazer e de dor Ademais a fim
de explanar como ocorre o mecanismo de surgimento das emoccedilotildees o Estagirita recorre
agrave ideia de phantasia um termo teacutecnico emprestado de sua psicologia Uma curiosidade
identificada foi o fato de que o tema das emoccedilotildees que a rigor eacute um assunto proacuteprio da
psicologia natildeo eacute desenvolvido na obra aristoteacutelica supostamente adequada para tanto
que seria a ldquoDe Animardquo (Sobre a alma) evidenciando o quanto na sabedoria da eacutepoca
a retoacuterica jaacute estava vinculada a questotildees psicoloacutegicas
De outra parte nos Livros I e II da Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles tambeacutem
confere bastante relevacircncia agraves emoccedilotildees O homem virtuoso aristoteacutelico possui a virtude
completa que eacute alcanccedilada pelo bom funcionamento da parte racional e da parte natildeo-
racional da alma A virtude moral eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter que eacute atingida por meio
do haacutebito e ter uma boa disposiccedilatildeo emocional que significa ser devidamente afetado
pelas emoccedilotildees eacute determinante para aquisiccedilatildeo de uma vida feliz Exploramos as
implicaccedilotildees morais desse modelo eacutetico ao dizer que uma falha na decisatildeo do curso da
140
accedilatildeo moral estaacute tambeacutem relacionada agrave disposiccedilatildeo emocional do indiviacuteduo Aleacutem disso
constatamos que Aristoacuteteles realiza uma classificaccedilatildeo entre emoccedilotildees adequadas e
inadequadas de acordo com as circunstacircncias e emoccedilotildees perversas sendo que estas
uacuteltimas natildeo devem ser sentidas em nenhuma circunstacircncia Por uacuteltimo ao compararmos
a classificaccedilatildeo emocional desenvolvida na Eacutetica a Nicocircmaco com o tratamento teoacuterico
da Retoacuterica percebemos que o orador eacute instruiacutedo a utilizar todas as emoccedilotildees no
discurso inclusive aquelas denominadas de perversas motivo pelo qual se pode dizer
que a retoacuterica foi erigida num domiacutenio proacuteprio
De seu turno os estoicos desenvolveram uma peculiar sistemaacutetica de
pensamento em que a uacutenica coisa considerada boa eacute a virtude que se confunde com a
felicidade e a uacutenica coisa ruim eacute o viacutecio que significa a infelicidade todo o resto
(reputaccedilatildeo riqueza sauacutede bom nascimento beleza etc) eacute considerado indiferente isto
eacute a sua posse natildeo eacute necessaacuteria para a felicidade Ademais para os fundadores da escola
estoica a alma humana eacute monoliticamente constituiacuteda apenas pela razatildeo sem
possibilidade de haver conflito entre as partes Nessa ordem de ideias as emoccedilotildees que
satildeo entendidas como avaliaccedilotildees por Crisipo devem ser eliminadas da vida comum uma
vez que por meio delas estamos sempre valorando indevidamente a realidade Em seu
caminho para a aquisiccedilatildeo da autossuficiecircncia e para a compreensatildeo correta do mundo o
homem virtuoso estoico que eacute representado pela figura do saacutebio se livrou das emoccedilotildees
do ser humano inferior e adquiriu uma ldquoversatildeo corrigidardquo denominada eupatheia
A retoacuterica estoica por sua vez recebeu uma grande influecircncia da sua eacutetica e por
isso natildeo fazia uso das emoccedilotildees Ciacutecero nos traz um relato histoacuterico de oradores estoicos
romanos como figuras que embora haacutebeis na dialeacutetica e no uso de argumentos precisos
possuiacuteam um estilo seco severo apaacutetico e conciso A ineficaacutecia desse modelo de
discurso eacute relatada no julgamento de Rutilius Rufus que ao se defender no estilo estoico
de uma injusta acusaccedilatildeo foi condenado e exilado
Da exposiccedilatildeo da filosofia aristoteacutelica e estoica acerca das emoccedilotildees concluiacutemos
que o tema era extremamente relevante para as referidas escolas de pensamento e que
ambas natildeo concebiam falar de racionalidade sem falar das emoccedilotildees Aristoacuteteles antes
de explanar sobre os entimemas que eacute a parte do logos na Retoacuterica ou antes de falar
sobre a parte racional da alma na Eacutetica a Nicocircmaco preferiu discursar primeiramente
sobre as emoccedilotildees conferindo uma precedecircncia e um significado simboacutelico ao assunto
Por sua vez ainda que os estoicos em virtude de sua axiologia ilustrassem uma visatildeo
141
negativa sobre as emoccedilotildees eles realizaram um debate de alto niacutevel e extremamente
atual para a reflexatildeo do assunto
No Capiacutetulo II buscamos investigar a importacircncia das emoccedilotildees para a MTA
que tem nascimento preciso na segunda metade do seacuteculo XX com as obras de Toulmin
e de Perelman-Tyteca Ademais tambeacutem procuramos identificar criteacuterios de anaacutelise e
de avaliaccedilatildeo da dimensatildeo emotiva do discurso Igualmente examinamos o
desenvolvimento teoacuterico das emoccedilotildees para a psicologia cognitiva especialmente para a
Teoria da Avaliaccedilatildeo Ressalte-se que um dos objetivos fundamentais de tal capiacutetulo foi
tambeacutem tentar compreender como o tema das emoccedilotildees que era considerado tatildeo vital
para o discurso e para a eacutetica na Antiguidade foi recepcionado pela MTA
Em primeiro lugar vimos que o surgimento da MTA ocorreu num contexto
histoacuterico bem especiacutefico em que os movimentos totalitaacuterios ingressaram no poder e
dominaram a vida poliacutetica europeia e mundial O tipo de discurso utilizado por tais
movimentos era a propaganda que empregava um forte apelo emocional para mobilizar
as massas A MTA surge com o objetivo de se afastar desse tipo de discurso e de fundar
um modelo de argumentaccedilatildeo racional que viabilizasse a existecircncia da democracia
Nesse sentido tanto Toulmin quanto Perelman-Tyteca natildeo esboccedilaram nenhum interesse
em falar sobre as emoccedilotildees Assim eacute interessante perceber que justamente na chamada
ldquoNova Retoacutericardquo nada sobre as emoccedilotildees da retoacuterica aristoteacutelica foi recepcionado Em
relaccedilatildeo a Viehweg embora o autor demonstre a relaccedilatildeo entre a toacutepica a retoacuterica e o
direito tambeacutem natildeo vimos nenhum interesse em dissertar sobre as emoccedilotildees
A disciplina responsaacutevel por recepcionar as emoccedilotildees na MTA foi a teoria das
falaacutecias ldquoadrdquo Dessa forma toda emoccedilatildeo da retoacuterica antiga se transformou num erro de
loacutegica para a argumentaccedilatildeo de modo que o discurso apaacutetico tal como propugnado pela
retoacuterica estoica passou a ser um modelo ideal de argumentaccedilatildeo fazendo com que
pathos retomasse o seu sentido de patoloacutegico Todavia criticamos tal proposta
argumentativa pela ausecircncia de complexidade e por ser incapaz de discutir em que
medida as emoccedilotildees poderiam desempenhar um bom papel na argumentaccedilatildeo
Em resposta ao tratamento dispensado agraves emoccedilotildees pela disciplina das falaacutecias
ldquoadrdquo vimos que Douglas Walton reage com forte criacutetica Uma teoria da argumentaccedilatildeo
que exclua de suas consideraccedilotildees argumentos emotivos se mostra inaacutebil em
compreender a forma como argumentamos na praacutetica Todavia o teoacuterico canadense
alerta que as emoccedilotildees tambeacutem podem ser mal utilizadas pois argumentos emotivos
podem ser irrelevantes numa discussatildeo e o impacto do seu apelo pode querer disfarccedilar a
142
fraqueza da argumentaccedilatildeo Assim a fim de avaliar tais apelos eacute preciso estar atento
para o tipo de diaacutelogo para o objetivo do diaacutelogo para o impacto e para o contexto em
que satildeo utilizados
Em seguida analisamos a abordagem linguiacutestica das emoccedilotildees desenvolvida por
Micheli representante da escola francoacutefona de argumentaccedilatildeo que destaca que o
problema do estudo das emoccedilotildees no discurso diz respeito agrave sua observabilidade Desse
modo o linguista suiacuteccedilo sistematiza os resultados encontrados na linguiacutestica e oferece
trecircs categorias para a identificaccedilatildeo das emoccedilotildees na liacutengua as emoccedilotildees ditas as emoccedilotildees
demonstradas e as emoccedilotildees suportadas Outrossim verificamos que as emoccedilotildees podem
ser objeto de argumentaccedilatildeo e que manipulaccedilotildees racionais natildeo satildeo distintas de
manipulaccedilotildees emocionais
Por fim considerando que o tema das emoccedilotildees eacute desde a antiguidade
profundamente conectado com a psicologia procuramos dar um suporte psicoloacutegico ao
nosso trabalho com o saber teoacuterico da Teoria da Avaliaccedilatildeo que coloca a ideia de
avaliaccedilatildeo como o centro da deflagraccedilatildeo do processo emotivo
Nesse ponto observou-se a grande atualidade da abordagem aristoteacutelica e
estoica sobre as emoccedilotildees pois ambas tinham uma compreensatildeo cognitiva do assunto
sendo que Crisipo expressamente se pronunciou no sentido de que as emoccedilotildees satildeo
avaliaccedilotildees Vimos tambeacutem que as emoccedilotildees satildeo dependentes da razatildeo para o seu
surgimento e para o seu controle poreacutem neste processo natildeo haacute uma prevalecircncia da
razatildeo porque esta uacuteltima para se manter equilibrada precisa da emoccedilatildeo
Observamos que as emoccedilotildees quando fundadas em avaliaccedilotildees adequadas
atendem a criteacuterios usuais de racionalidade (instrumental inferencial e consensual) Ao
fim concluiacutemos que a construccedilatildeo de uma teoria da argumentaccedilatildeo precisa tambeacutem
acessar um saber psicoloacutegico sob pena de ser um artefato teoacuterico artificial sobre como
os seres humanos decidem e argumentam
O Capiacutetulo III foi dividido em trecircs partes a primeira se destinou a evidenciar a
importacircncia das emoccedilotildees para o direito a segunda buscou aplicar os criteacuterios de anaacutelise
descritiva do discurso emotivo identificados no Capiacutetulo II a terceira procurou fazer
consideraccedilotildees criacuteticas ao uso das emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo juriacutedica
Na primeira parte concluiacutemos que eacute impossiacutevel compreender a estruturaccedilatildeo do
direito sem estudar as emoccedilotildees pois estas satildeo causas para a elaboraccedilatildeo de leis para
ingressar com uma demanda em juiacutezo e para solucionar uma controveacutersia juriacutedica A
apatheia estoica eacute um modelo inadequado para explicar o direito porque o nosso
143
ordenamento juriacutedico valoriza e protege aqueles bens que os estoicos denominariam de
indiferentes Ademais as nossas emoccedilotildees satildeo respostas aos mais diversos tipos de
danos que a nossa vulneraacutevel constituiccedilatildeo fiacutesico-psiacutequica pode apresentar sendo que o
direito leva isso em consideraccedilatildeo quando socialmente relevante
Ao analisar descritivamente trecircs julgados do STF (ldquoo caso dos pneumaacuteticosrdquo
ldquoo caso dos fetos anenceacutefalosrdquo e o ldquocaso dos campeotildees da Copa do Mundo de 1958 de
1962 e de 1970rdquo) observamos o quanto as emoccedilotildees (medo raiva indignaccedilatildeo gratidatildeo
orgulho compaixatildeo) foram determinantes para a soluccedilatildeo do problema juriacutedico
Concluiacutemos que conhecer a estrutura cognitiva de tais emoccedilotildees eacute fundamental para
realizar uma boa descriccedilatildeo dos suportes emotivos do julgamento
Na terceira parte defendemos que uma retoacuterica estoica seria um modelo de
discurso inalcanccedilaacutevel para o direito seja pela impossibilidade de esvaziar o conteuacutedo
emotivo da linguagem seja pela forma como o direito eacute estruturado
Antes de realizar consideraccedilotildees criacuteticas aos julgados expusemos que no atual
estado de arte da teoria da argumentaccedilatildeo natildeo identificamos um meacutetodo para avaliaccedilatildeo
de argumentos emotivos Assim sem pretender efetuar uma avaliaccedilatildeo rigorosa
procuramos a partir do trabalho de Walton e de Nussbaum identificar alguns criteacuterios
miacutenimos que pudessem ser uacuteteis a um trabalho criacutetico
Apoacutes isso expusemos que o modelo do espectador imparcial de Adam Smith
seria um oportuno ponto de reflexatildeo para compreendermos a eacutetica das emoccedilotildees na
decisatildeo juriacutedica porque as emoccedilotildees do julgador necessitam ser as de um espectador e
para tanto ele deve ter a capacidade de criticar as proacuteprias inclinaccedilotildees emotivas e as de
outros grupos sociais a fim de atingir um estado de imparcialidade e manter um
ambiente de normatividade comum na sociedade
Todavia ainda que seja um espectador imparcial compreendemos que o
julgador natildeo eacute apaacutetico de modo que quando juridicamente relevantes e fundadas em
evidecircncias as emoccedilotildees podem ser argumentadas e integradas dentro do contexto de um
discurso juriacutedico e em referecircncia a um conjunto de normas juriacutedicas
Ao final deste trabalho podemos dizer que natildeo haacute motivos para que as emoccedilotildees
natildeo sejam incorporadas numa Teoria da Argumentaccedilatildeo Juriacutedica e mais amplamente no
estudo do direito porque natildeo eacute possiacutevel falar de racionalidade sem falar de emoccedilotildees e
do seu respectivo controle Se existe um receio de que elas sejam elementos irracionais
e que corrompam o discurso juriacutedico acreditamos que tal avaliaccedilatildeo natildeo eacute condizente
com a importacircncia que as emoccedilotildees possuem na estruturaccedilatildeo da psique humana com a
144
forma pela qual o direito jaacute eacute construiacutedo e com a maneira que decidimos e
argumentamos na praacutetica
De outra parte este trabalho procurou tambeacutem evidenciar em que medida as
emoccedilotildees podem ser mal utilizadas a fim de manter uma postura criacutetica em relaccedilatildeo ao
tema Podem-se censurar as emoccedilotildees no direito de vaacuterias formas a partir dos seguintes
criteacuterios a sua relevacircncia juriacutedica a ausecircncia de evidecircncias a sua parcialidade o seu
peso na argumentaccedilatildeo equiacutevocos de avaliaccedilatildeo na estrutura cognitiva da emoccedilatildeo a
emoccedilatildeo em si mesma Tais criteacuterios diante do atual estado de estudo da argumentaccedilatildeo
precisam ser desenvolvidos teoricamente a fim de resultar numa metodologia segura de
avaliaccedilatildeo
Assim pensamos que o desenvolvimento de uma pedagogia do uso das
emoccedilotildees que recupere o vocabulaacuterio emotivo atualmente perdido na argumentaccedilatildeo
juriacutedica e no direito eacute muito mais interessante do que o seu atual estado de silecircncio
145
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