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Revista da Abordagem Gestáltica

RevAbordGest Vol 18_2 Completa.pdf

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  • Revista da Abordagem Gestltica

  • Instituto de Treinamento e Pesquisa emGestalt-Terapia de Goinia ITGT

    Revista da Abordagem Gestltica

    Volume XVIII - N. 2

    2012

    Goinia Gois

    www.itgt.com.br

  • Ficha Catalogrfica

    Revista da Aborda-gem Gestltica/ Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goinia Vol. 18, n. 2 (2012) Goinia: ITGT, 2012.

    131p.: il.: 30 cm

    Inclui normas de publicao

    ISSN: 1809-6867

    1. Psicologia. 2. Gestalt-Terapia. I. Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goinia.

    CDD 616.891 43

    Citao:REVISTA DA ABORDAGEM GESTLTICA. Goinia, v. 18, n. 1, 2012. xxxp

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

  • Revista da aboRdagem gestltica

    Volume XVIII - N. 2 Jul/Dez, 2012

    Expediente

    EditorAdriano Furtado Holanda

    (Universidade Federal do Paran)

    Editores AssociadosCelana Cardoso Andrade

    (Universidade Federal de Gois)Danilo Suassuna Martins Costa

    (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)Marta Carmo

    (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Gois)

    Conselho EditorialAdelma Pimentel (Universidade Federal do Par)

    Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)Cludia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)

    nio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de So Paulo)Gizele Elias Parreira (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paran)

    Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Braslia)Josemar de Campos Maciel (Universidade Catlica Dom Bosco, MS)

    Llian Meyer Frazo (Universidade de So Paulo)Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de So Paulo)

    Marcos Aurlio Fernandes (Universidade Catlica de Braslia)Marisete Malaguth Mendona (Universidade Catlica de Gois)Mnica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

    Nilton Jlio de Faria (Pontifcia Universidade Catlica de Campinas)Patrcia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

    Pedro M. S. Alves (Universidade de Lisboa, Portugal)Srgio Lzias (Universidade Federal de Gois Campus Catalo)

    Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlndia)Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)

    William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

    Suporte TcnicoJosiane AlmeidaMarcos Janzen

    Norma Susana Romero Martinovich

  • CapaFranco Jr.

    Diagramao e Arte FinalFranco Jr.

    BibliotecrioArnaldo Alves Ferreira Junior (CRB 01-2092)

    FinanciamentoInstituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia de Goinia (ITGT-GO)

    Encaminhamento de ManuscritosA remessa de manuscritos para publicao, bem como toda a correspondncia

    de seguimento que se fizer necessria, deve ser endereada a:

    EditorRevista da Abordagem Gestltica

    Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goinia (ITGT)Rua 1.128, n 165 - St. Marista - Goinia-GO - CEP: 74.175-130

    Fone/Fax: (62) 3941-9798E-mail: [email protected]

    Normas de Apresentao de ManuscritosTodas as informaes concernentes a esta publicao, tais como normas de

    apresentao de manuscritos, critrios de avaliao, modalidades de textos, etc.,podem ser encontradas no site http://pepsic.bvs-psi.org.br

    Fontes de Indexao- Clase

    - Latindex- Lilacs

    - Index Psi Peridicos (BVS-Psi Brasil)- ScopuS

    As opinies emitidas nos trabalhos aqui publicados, bem como a exatido e adequao das referncias bibliogrficas so de exclusiva responsabilidade dos autores, portanto podem no expressar o pensamento dos editores.

    A reproduo do contedo desta publicao poder ocorrer desde que citada a fonte.

  • Sumrio

    vii Revista da Abordagem Gestltica XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012

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    EDIToRIAl ...................................................................................................................................................ix

    ARTIGoS

    - Arte e Mundo: Dilogos entre Heidegger e Castaeda .......................................................................... 131

    Ana Gabriela Rebelo dos Santos (Universidade Federal Fluminense) & Roberto Novaes de S (Universidade Federal Fluminense)

    - Ser Psicoterapeuta: Reflexes Existenciais sobre Vivncias de Estagirios-Terapeutas Iniciantes .................................................................................................................................................. 136

    Jssica Paula Silva Mendes (Universidade Paranaense/Unipar); Sionara Karina Alves de Brito Gressler (Universidade Paranaense/Unipar) & Sylvia Mara Pires de Freitas (Universidade Estadual de Maring/Universidade Paranaense)

    - os Sentidos do Sentido: Uma leitura Fenomenolgica......................................................................... 144

    Marta Helena de Freitas (Universidade Catlica de Braslia); Rita de Cssia Arajo (Universidade Catlica de Braslia); Filipe Starling Loureiro Franca (Universidade Catlica de Braslia); Ondina Pena Pereira (Universidade Catlica de Braslia) & Francisco Martins (Universidade Catlica de Braslia)

    - A Fora da Palavra em Nicolau de Cusa ................................................................................................ 155

    Sonia Lyra (Instituto Icthys de Psicologia e Religio, Paran)

    - Tdio e Trabalho na Ps-Modernidade .................................................................................................. 161

    Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie), Jlia Yoriko Hayakawa (Universidade Presbitariana Mackenzie), Suzan Emie Kuda (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisa Harumi Musha (Universidade Presbitariana Mackenzie), Tauane Cristina do Nascimento (Universidade Presbitariana Mackenzie), Bruna Bezerra Oliveira (Universidade Presbitariana Mackenzie), Elisabete Hara Garcia Rocha (Universidade Presbitariana Mackenzie), Daiany Aparecida Alves dos Santos (Universidade Presbitariana Mackenzie), Karen Ueki, (Universidade Presbitariana Mackenzie), Lucas Palhari Vasconcelos (Universidade Presbitariana Mackenzie)

    - origens e Destinos das Psicoterapias Humanistas: o Caso da Abordagem Centrada na Pessoa .................................................................................................................................................. 168

    Ana Maria Monte Coelho Frota (Universidade Federal do Cear)

    - Versando Sentidos sobre o Processo de Aprendizagem em Gestalt-Terapia .................................... 179

    Joo Vitor Moreira Maia (Universidade Federal do Cear), Jos Clio Freire (Universidade Federal do Cear) & Mariana Alves de Oliveira (Universidade Federal do Cear)

    - Adolescncia: Fenmeno Singular e de Campo ..................................................................................... 188

    Lauane Baroncelli (University College Cork)

    - A Espacialidade na Compreenso do Transtorno do Pnico: Uma Anlise Existencial .................... 197

    Gustavo Alvarenga Oliveira Santos (Universidade Federal do Tringulo Mineiro)

    - Anlise da Narrativa de Viktor Frankl acerca da Experincia dos Prisioneiros nos Campos de Concentrao ........................................................................................................................206

    Thiago Antonio Avellar de Aquino (Universidade Federal da Paraba)

  • Sumrio

    viii Revista da Abordagem Gestltica XVIII(2): vii-viii, jul-dez, 2012

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    - A linguagem Potica e a Clnica Fenomenolgica Existencial: Aproximao a Partir de Gaston Bachelard .................................................................................................................... 216

    Rafael Auler de Almeida Prado (Universidade Catlica de Pernambuco); Marcus Tulio Caldas (Universidade Catlica de Pernambuco); Karl Heinz Efken (Universidade Catlica de Pernambuco) & Carmem Lcia Brito Tavares Barreto (Universidade Catlica de Pernambuco)

    - As Psicopatologias como Distrbios das Funes do Self: Uma Construo Terica na Abordagem Gestltica ............................................................................................................................. 224

    Carlene Maria Dias Tenrio (Centro Universitrio de Braslia/UniCEUB)

    TEXToS ClSSICoS

    - Edmund Husserl e os Fundamentos de sua Filosofia (1940) ................................................................. 235

    Marvin Farber (University of Buffalo, New York)

    DISSERTAES E TESES

    - Pesquisa Fenomenolgica na Justia do Trabalho Proposta de Conciliao Humanista (2010) ..... 249

    Nayara Queiroz Mota de Sousa (Mestrado em Direito, Universidade Catlica de Pernambuco)

    - A Crise das Cincias Europias e a Fenomenologia Transcendental de Edmund Husserl: uma apresentao (2011) ......................................................................................................................... 251

    Erico de Lima Azevedo (Mestrado em Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo)

    NoRMAS

    - Normas de Publicao da Revista da Abordagem Gestltica .............................................................. 255

  • Editorial

    ix Revista da Abordagem Gestltica XVIII(2): ix, jul-dez, 2012

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    A Fenomenologia cada vez mais toma corpo no cenrio nacional e internacional, seja no tradicional contexto fi-losfico, seja em suas mltiplas aplicaes. Recentemente fomos brindados com novos estudos sobre seu pensamen-to, bem como a publicao e algumas tradues, par-ticularmente para o ingls e o francs de textos indi-tos de Husserl, onde temas complexos, como intersub-jetividade ou temporalidade foram sendo desvelados. Igualmente os desdobramentos e revises que o pensa-mento fenomenolgico foi conhecendo ao longo dos anos desenvolvem-se a passos largos. Assim, questes exis-tenciais ou mesmo reflexes no terreno das filosofias da existncia vem ganhando corpo igualmente.

    A Revista da Abordagem Gestltica, que desde o ano de 2006 se props a ser um veculo de divulgao desse conjunto de saberes mltiplos, diversificados, abertos e profundos vem se consolidando no cumprimento da sua misso, e vem cada vez mais se especializando no amplo espectro das reflexes fenomenolgicas, associa-das s cincias humanas, sociais e da sade.

    Ao encerrarmos o ano de 2012 com este nmero, esta-mos no somente consolidando nossa posio de uma re-vista de qualidade graas ao reconhecimento do Qualis-Capes como tambm de acesso livre e gratuito, graas

    ao apoio do PePSIC; e de um veculo aberto e multidisci-plinar (com a participao de variadas reas de estudo e pesquisa). Ganhamos recentemente o reconhecimento da parte dos pesquisadores em Histria da Psicologia, por nosso esforo em trazer ao pblico brasileiro tradues de textos clssicos e fundamentais da Fenomenologia, como pode ser atestado no Blog da Rede Iberoamericana de Pesquisadores em Histria da Psicologia.

    Nossa meta para o ano que se aproxima agora a consolidao da fenomenologia como nosso caminho natural. E nada mais metafrico do que encerrar o ano com a traduo de um brilhante texto de Marvin Farber, de 1940, sobre os fundamentos da filosofia husserliana.

    Ao todo, apresentamos ao leitor, um total de doze tra-balhos, nos quais se reflete essa diversidade e multiplici-dade, e onde se afirma o lugar da Fenomenologia como interlocuo, com o pensamento psicolgico com textos de Gestalt Terapia, de Abordagem Centrada na Pessoa, de fenomenologia-existencial e sobre Viktor Frankl e com outros campos do saber filosfico, social e psiquitrico.

    Boa leitura a todos

    Adriano Furtado Holanda- Editor -

  • Listamos abaixo todos aqueles que contriburam com a revista, na qualidade de pareceristas, entre os anos de 2011 e 2012. Agradecemos a colaborao e esperamos contar novamente com sua participao.

    Ado Jos Peixoto (Universidade Federal de Gois)Adelma Pimentel (Universidade Federal do Par)

    Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)ngela Schillings (Universidade Federal de Santa Catarina)

    Beatriz Helena Paranhos Cardella (Instituto de Gestalt Terapia de So Paulo)Carlos Augusto Serbena (Universidade Federal do Paran)

    Carlos Digenes Cortes Tourinho (Universidade Federal Fluminense)Celana Cardoso Andrade (Universidade Federal de Gois)

    Cibele Mariano Vaz (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)Cludia Lins Cardoso (Universidade Federal de Minas Gerais)Daniela Schneider (Universidade Federal de Santa Catarina)

    Danilo Suassuna (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goinia)Elza Dutra (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)nio Brito Pinto (Instituto de Gestalt-Terapia de So Paulo)

    Gizele Elias Parreira (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)Gustavo Gauer (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

    Joanneliese de Lucas Freitas (Universidade Federal do Paran)Jorge Ponciano Ribeiro (Universidade de Braslia)

    Josemar de Campos Maciel (Universidade Catlica Dom Bosco, MS)Josiane Almeida (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goinia)

    Karina Okajima Fukumitsu (Universidade Presbitariana Mackenzie)Llian Meyer Frazo (Universidade de So Paulo)Luiz Lillienthal (Instituto de Gestalt de So Paulo)

    Lcia Ceclia da Silva (Universidade Estadual de Maring)Mrcio Luiz Fernandes (Pontifcia Universidade Catlica do Paran)

    Marcos Aurlio Fernandes (Universidade Catlica de Braslia)Marisete Malaguth Mendona (Universidade Catlica de Gois)

    Marta Carmo (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)Mnica Botelho Alvim (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

    Nilton Jlio de Faria (Pontifcia Universidade Catlica de Campinas)Patrcia Valle de Albuquerque Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

    Roberto Novaes de S (Universidade Federal Fluminense)Sandra Albernaz (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia de Goinia)

    Selma Ciornai (Instituto de Gestalt de So Paulo)Srgio Lzias (Universidade Federal de Gois - Campus Catalo)Sylvia Mara Pires de Freiras (Universidade Estadual de Maring)

    Thiago Gomes de Castro (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)Tommy Akira Goto (Universidade Federal de Uberlndia)

    Virginia Elizabeth Suassuna Martins Costa (Pontifcia Universidade Catlica de Gois)William Barbosa Gomes (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

    NomiNata 2011-2012

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    Arte e Mundo: Dilogos entre Heidegger e Castaeda

    ARTE E MUNDO: DILOGOS ENTRE HEIDEGGER E CASTANEDA1

    Art and World: Dialogues Between Heidegger and Castaneda

    Arte y Mundo: Dilogos entre Heidegger y Castaneda

    AnA GAbrielA rebelo dos sAntos

    roberto novAes de s

    Resumo: Propomos pensar possibilidades de experincia de mundo a partir da articulao entre obra de arte, na concepo do filsofo Martin Heidegger em A Origem da Obra de Arte, e parar o mundo, idia exposta pelo antroplogo Carlos Castaneda. Segundo Heidegger, ser obra de arte instalar um mundo, deixar em aberto o aberto do mundo: abertura de sentido. Para o fi-lsofo, o homem o ente cujo ser est sempre em jogo na sua existncia. Parar o mundo um ensinamento do ndio Don Juan a Castaneda. Ele precisa parar o mundo, desmoronar seu conceito de mundo para conseguir ver o mundo desprendido do con-senso social. Os autores discorrem sobre realidades plsticas, mundos que existem a partir de experincias, formas de Ec-xistir e transitar entre mundos se mantendo na abertura do ser. No objetivamos equivaler idias, buscamos abrir um espao para pensar acerca da existncia do homem. Como recurso metodolgico, destacamos passagens da obra de Castaneda e buscamos caminhos junto s idias de Heidegger que nos auxiliem a elaborar um horizonte de dilogo.Palavras-chave: Fenomenologia; Heidegger; Castaneda; Realidade; Arte.

    Abstract: We propose to consider possibilities of world experience from the relationship between work of art, an idea developed by the philosopher Martin Heidegger in The Origin of the Work of Art and stop the world, an idea expounded by the anthro-pologist Carlos Castaneda. According to Heidegger, being a work of art is to install a world, leave open the opening of the world: opening of sense. For the philosopher, man is the being whose being is always at stake in its existence. Stop the world, is what speaks the Indian Don Juan to Castaneda. He needs to stop the world, collapsing his concept of world in order to see the world detached from social consensus. The authors discuss plastic realities, worlds that are based on experiences, forms of Existence and sometimes appearing to move between worlds and keeping the opening of Being. We do not aim to equate ideas, we open a space to think about the existence of man. As a methodological resource, we discusses highlighted passages of Castanedas work and seek ways to the ideas of Heidegger which help us to elaborate a common horizon of dialog.Keywords: Phenomenology; Heidegger; Castaneda; Reality; Art.

    Resumen: Nos proponemos estudiar las posibilidades de experiencia de mundo. Partindo de la relacin entre obra de arte, una idea desarrollada por el filsofo Martin Heidegger en El origen de la obra de arte y detener el mundo, una idea expuesta por el antroplogo Carlos Castaneda. Segn Heidegger, ser obra es la instalacin de un mundo, mantener abierto el abierto del mun-do: el sentido abierto. Para el filsofo, el hombre es el ser cuyo ser est siempre en juego en su existencia. Detener el mundo, es lo que propone el indio Don Juan a Castaneda. l tiene que detener el mundo, deshaciendo su concepto del mundo para que pueda ver el mundo separado del consenso social. Los autores hablan de realidades plsticas, de mundos que se basan en las experincias, de formas del Existir y permaneciendo en la apertura del ser. La intencin no es lo apunte a igualar las ideas, pero abrimos un espacio para pensar en la existencia del hombre. Como mtodo, utilizamos fragmentos de la obra de Castaneda jun-to de las ideas de Heidegger.Palabras-clave: Fenomenologa; Heidegger; Castaneda; Realidad; Arte.

    Introduo

    No vero de 1960, o at ento estudante de antropo-logia Carlos Castaneda parte em viagem para o sudoeste dos Estados Unidos em busca de maiores informaes sobre as plantas medicinais utilizadas pelos ndios do local. E no estado do Arizona que acontece o primeiro encontro com o ndio yaqui Don Juan Matus. O primeiro de muitos encontros que aconteceriam por mais 13 anos.

    1 A presente pesquisa foi desenvolvida no Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, pela primeira autora (Bolsista Capes), sob orientao do segundo autor.

    A princpio, Castaneda pede que o ndio lhe ensine sobre as plantas, principalmente sobre o peiote, e de alguma forma que no sabe bem explicar , se sente intrigado e atrado por Don Juan. Esse primeiro encontro descri-to pelo autor como perturbador.

    Depois disso, ainda sob o sentimento de inquietao, Castaneda descobre onde mora Don Juan e passa ento a visit-lo constantemente. Mas, nas longas horas que pas-savam juntos, durante um ano, no falaram sobre plantas. Os acontecimentos estavam dirigidos para longe de seu propsito original. Passado esse tempo, Don Juan diz a Castaneda ter certos conhecimentos que lhe foram pas-

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    oAna G. R. Santos & Roberto N. S

    sados por seu benfeitor; conhecimentos relacionados ao que ele chama de caminho do guerreiro. Por uma srie de circunstncias, que no se encerram no desejo de ne-nhum dos dois, Castaneda fora escolhido como aprendiz de Don Juan e, juntos, trilharam um caminho que abalou definitivamente o mundo daquele.

    Os primeiros cinco anos de aprendizado so re-latados no seu livro mais famoso A Erva do Diabo (Castaneda, 1968) , que foi sua dissertao de mestrado pela Universidade da Califrnia, em Los Angeles. Nele, o autor descreve principalmente suas experincias com plantas alucingenas, o que foi bastante importante no seu percurso. Cabe aqui lembrar que a viso dos feiticei-ros sobre as plantas no se esgota em sua descrio bo-tnica e a experincia de encontro com cada uma delas deve ser vista como um fenmeno, de modo que a coisa com a qual lidamos, nesse caso a planta, nunca uma coisa ideal e sim a coisa de que fazemos experincia. Dessa forma, possvel manter um olhar de abertura experincia vivida e ao seu horizonte prprio de sentido.

    Os feiticeiros podem se utilizar das plantas como aliados, mas no necessrio que se use. Em passagem de Porta para o infinito (Castaneda, 1974), podemos ver o momento em que Don Juan diz a Castaneda que no caso dele foi preciso fazer uso das plantas, porque ele era um homem muito duro e essas experincias foram necess-rias para sacudir seu mundo. Alm dessas experincias que incluam o uso de determinadas plantas, o autor nos fala, ao longo de seus doze livros, de inumerveis acon-tecimentos de outros tipos. Aquilo que a princpio lhe parecia mais improvvel, foi o que mais lhe atormentou: tudo que ele tomava como o mundo real estava abala-do. Diz Castaneda (1972/2006): O ponto crucial de meu dilema naquele momento era minha falta de vontade de aceitar o fato de que Dom Juan era bem capaz de demolir todas as minhas concepes prvias de mundo... (p. 39).

    Em fins de 1965, Castaneda se retira do aprendiza-do e decide no mais ver Don Juan. Porm, em 1968, j com seu primeiro livro em mos, ele vai visitar o ndio e a relao mestre-aprendiz restabelecida. Ao que vem a se passar a partir de ento, Castaneda chama de seu segundo ciclo de aprendizado. nesse segundo ciclo que encontramos aquilo a que vamos dar maior relevn-cia no nosso trabalho: a difcil tarefa de parar o mundo. preciso que Castaneda consiga parar o mundo. Mas o que seria parar o mundo? Essa pergunta feita muitas e muitas vezes a seu mestre, que por sua vez, evita pala-vras e prope de diversas formas que ele tenha como Castaneda fala uma experincia mais direta do mun-do. Referia-me ao conhecimento acadmico que trans-cende a experincia, enquanto ele falava do conhecimen-to direto do mundo, diz Castaneda (1971/2009, p. 10).

    Em outra passagem, quando perguntado sobre o que seria exatamente um ente a que chamam aliado, em Porta para o Infinito (Castaneda, 1974), Don Juan responde:

    No h como dizer, precisamente, o que um aliado, assim como no h meio de dizer exatamente o que uma rvore. Uma rvore um organismo vivo disse eu. Isso no me diz muito retrucou ele. Tambm posso dizer que o aliado uma fora, uma tenso. Mas isso no acrescenta muita coisa a respeito de um aliado. Assim como no caso de uma rvore, o nico meio de saber o que um aliado experimentando-o (p. 78).

    Essas e outras passagens nos fazem recordar os cami-nhos da fenomenologia, particularmente aqueles trilha-dos por Martin Heidegger. Propomos que, como o filsofo nos diz em A Questo da Tcnica (Heidegger, 1953/1997), atentemos para o caminho sem permanecermos presos a proposies e ttulos particulares, e, assim, possamos re-fletir a partir de uma livre relao de pensamento. Como diz Don Juan, em A Erva do Diabo (Castaneda, 1968), te-nhamos em vista que um caminho apenas um caminho.

    Quando Heidegger nos fala de mundo, ele no est falando de um objeto que est ante ns e que pode ser sensorialmente percebido; no se trata de um espao pr--existente a ns onde as coisas tambm j ali se encon-tram dadas e onde somos simplesmente inseridos como bonecos numa caixa. Homem e mundo no pr-existem um ao outro, homem e mundo co-emergem na expe-rincia. Mundo para Heidegger abertura de sentido. Em A Origem da Obra de Arte, lemos:

    Mundo nunca um objeto, que est ante ns e que pode ser intudo. O mundo o sempre inobjetal a que estamos submetidos enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da beno e da maldio nos mantiverem lanados no Ser (Heidegger, 1950/ 2007, p. 35).

    Segundo Heidegger, o sentido est sempre em jogo na existncia. Em seu relacionar-se com as coisas enquan-to coisas o homem habita o mundo, desvelando sentido. Em nosso modo de ser cotidiano mais comum, tomamos o mundo como algo simplesmente dado, e a ns mesmos como sujeitos empricos, cuja existncia fosse ontologi-camente separada do mundo. Quando Castaneda diz co-nhecer o mundo, ele se refere quilo que sempre, desde que ele nasceu, as pessoas vem lhe dizendo que mun-do. importante destacar aquilo que Don Juan nos fala ao longo de toda a obra de Castaneda e que parece ecoar o que a fenomenologia sinaliza como fundamental: a di-menso de abertura da experincia, abertura constituti-va de sentido, porque na prpria relao de sentido que as coisas vm a ser. Parar o mundo significa desmoronar todo o conceito prvio que se tem de mundo e, assim, o guerreiro v o mundo desprendido do que se convencio-na previamente como mundo. O ver aqui difere do olhar, diz respeito a uma apreenso que no se limita aos olhos, tampouco se determina por um suposto mundo verdadei-

  • 133 Revista da Abordagem Gestltica XVIII(2): 131-135, jul-dez, 2012

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    Arte e Mundo: Dilogos entre Heidegger e Castaeda

    ro. Quando se v, tudo se torna igual e ao mesmo tempo tudo novo. Tudo se torna igual no sentido do valor, nada (em si mesmo) mais importante que nada, e ao mesmo tempo tudo novo por percebermos as coisas despren-didas dos preconceitos cotidianos.

    Pensar o mundo como verdadeiro ou falso no faz mais sentido, pois isso implicaria tomarmos como cri-trio um mundo simplesmente dado. Ao longo de seu aprendizado, Castaneda insiste diversas vezes que Don Juan lhe fale o que ver e o que se v quando se v. A isso Don Juan responde:

    Voc tem de aprender a ver para saber disso. No posso lhe dizer. um segredo que no posso saber? No. Acontece que no posso descrev-lo. Por qu? No faria sentido pra voc. Experimente Don Juan. Talvez faa sentido para mim. No. Tem de faz-lo por si. Uma vez que aprenda, poder ver cada coisa no mundo de maneira diferente (Castaneda, 1971/2009, p. 48).

    Alm deste privilgio dado experincia como modo de ser irredutvel ao conhecimento representacional, pertinente observarmos, ainda, outra ressonncia em nossas leituras de Heidegger e Castaneda referente a essa dimenso existencial do conhecimento: trata-se das no-es de fazer e no-fazer, apresentadas por Don Juan a Castaneda. Quando perguntamos, cotidianamente, o que algo, estamos questionando, na maioria, para que serve a coisa em questo, qual sua funo ou utilidade.

    Em sua analtica da existncia, Heidegger aponta que o nosso modo predominante de ser o estar absorvido na ocupao com as coisas. Essa ocupao no para ele a mera lida objetiva com coisas previamente dadas, mas uma relao intencional, no sentido fenomenolgi-co, de constituio de sentido. Ocupar-se com as coisas participar de modo irrefletido da dinmica de reali-zao de um mundo. Nos deixamos absorver to firme-mente a essa lida ocupacional que deixamos escapar o aberto do mundo. Em uma conferncia muito posterior a Ser e Tempo, intitulada A Questo da Tcnica, Heidegger (1953/1997) trata mais especificamente do modo moderno e contemporneo de acontecimento histrico do mundo. Na era da tcnica, como denominada, por ele, a poca atual, o homem toma todos os entes como recursos para os seus afazeres, como se toda a realidade se reduzisse a mera reserva de energia disponvel para sua explorao e consumo (Novaes de S & Rodrigues, 2007). A experi-ncia do pensamento se reduz, por sua vez, s operaes calculantes que visam previso e ao controle dos entes. Heidegger diz que o mundo atual pobre de pensamento, querendo significar com isso que a presente era da tc-nica pe sob ameaa a possibilidade mais essencial do

    homem: a meditao sobre o sentido das coisas, da exis-tncia e do mundo. Para que essa possibilidade seja pre-servada em meio ao nivelamento calculante promovido pela tcnica moderna, Heidegger (1966) prope o exer-ccio de uma disposio do esprito denominada como serenidade (Gelassenheit). Inspirado no mstico alemo Mestre Eckhart, o filsofo entende essa disposio como uma equanimidade da alma, uma atitude de suspenso e desapego da vontade. A serenidade faz parte do pen-samento que medita. Ao contrrio do pensamento calcu-lante, que reduz tudo condio de disponibilidade, o pensamento meditante nos solicita uma ateno livre de qualquer violncia subjetiva, isto , de qualquer identifi-cao a um aspecto exclusivo das coisas, preservando em sua abertura compreensiva a diferena irredutvel entre as realidades que se apresentam e a dinmica de realiza-o dessas realidades. Em nossas leituras de Castaneda, no pudemos evitar a evocao do deixar-ser da sere-nidade heideggeriana quando nos deparamos com a es-tranha proposta do no-fazer de Don Juan.

    Antes de parar o mundo, um dos ensinamentos funda-mentais que Don Juan apresenta a Castaneda em Viagem a Ixtlan o no-fazer. Segundo ele o guerreiro precisa no fazer a fim de experimentar outras possibilidades de ser de uma coisa ao relacionar-se com ela. Destacamos, a seguir, um trecho da referida obra:

    Aquela pedra ali uma pedra por causa de fazer disse ele....no havia entendido o que ele queria dizer. Aquilo fazer! exclamou. Como? Isso tambm fazer. De que que est falando, Don Juan? Fazer o que torna aquela pedra uma pedra e um arbusto um arbusto. Fazer o que torna voc, voc e eu, eu.(...) Tome aquela pedra por exemplo. Olhar para ela fazer, mas v-la no fazer.Tive de confessar que as palavras dele no estavam fazendo sentido para mim. Ah, fazem, sim! exclamou. Mas voc est conven-cido do contrrio porque isso voc fazendo. assim que voc age em relao a mim e ao mundo... O mundo o mundo porque voc conhece o fazer necessrio para torn-lo mundo disse ele. Se voc no soubesse o seu fazer, o mundo seria diferente (Castaneda, 1972/2006, p. 237).

    A fim de no-fazer, Castaneda precisava conseguir parar seu dilogo interno, pois s de olhar uma pedra j estamos fazendo-a pedra pelo nosso pensamento. O nosso dilogo interno, a todo instante sustenta um mundo que nos mais familiar. A questo que trazemos : que mundo temos ns, ao longo dos ltimos tempos, feito? Don Juan

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    oAna G. R. Santos & Roberto N. S

    nos fala que todos ns fomos ensinados a concordar sobre o fazer e que no temos idia de como esse fazer pode-roso, mas felizmente, o no-fazer igualmente poderoso.

    Quando tentamos co-responder leitura desses pen-sadores, buscamos abrir um espao para pensar em no-vos modos de estar no mundo. Modos que privilegiem as possibilidades de experincia do mundo enquanto mundo. Pensar j em si uma prtica, pois pensamento uma forma de desvelar mundo. O termo desvelamento (Unverborgenheit), utilizado por Heidegger para tradu-zir a palavra grega aletheia, indica que a verdade no a correspondncia adequada a uma realidade em si, mas a prpria dinmica de acontecimento/aparecimento das realidades.

    A obra de arte, na concepo de Heidegger, tem uma articulao essencial com essas idias, na medida em que ser obra instalar um mundo, e para instalar mundo preciso deixar em aberto o aberto do mundo. A obra co-loca luz o ser das coisas e a possibilidade de abertura e transcendncia no relacionar-se com elas. Na referi-da conferncia do filsofo A Origem da Obra de Arte (Heidegger, 1950/2007) , ele toma como exemplo algumas telas do pintor holands Vincent Van Gogh, onde ele pin-ta sapatos de camponeses. Pares de sapatos camponeses, o que h de especial para se ver a? Todos ns sabemos de que matria feito um sapato, e tambm conhecemos a serventia do apetrecho sapato.

    Na lida cotidiana da camponesa com seus sapatos o que vem ao encontro de modo mais imediato e irrefletido o carter instrumental do apetrecho sapato. Seria ilu-so pensar que foi a nossa descrio, enquanto atividade subjetiva, que tudo figurou assim para depois projetar no quadro. Essa seria mais uma forma de pensar homem e mundo separados e independentes, com isso acabaramos fazendo uma gnese psicolgica para a criao artstica. A seguir, vemos um trecho de Heidegger (1950/2007):

    Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansao dos passos do tra-balhador. Na gravidade rude e slida dos sapatos est retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem at longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, est a umidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua--se a solido do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece e a sua inexplicvel recusa na desolada improdutivi-dade do campo no inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurana do po, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a misria, a angstia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaa da morte (p. 25).

    Este apetrecho sapato est abrigado no mundo da camponesa e a partir mesmo desta abrigada pertena

    que ele surge para o seu repousar-em-si-mesmo. Mas quando os sapatos esto no quadro que os vemos como possibilidade disso tudo. A obra coloca luz o ser das coisas e a possibilidade de abertura e transcendncia no relacionar-se com elas. na relao da camponesa com os sapatos que o ser sapato acontece. E esse o sapato dos longos caminhos pelo campo, do cansao do traba-lho, das horas de frio... o sapato do qual se tem experi-ncia, so esses sapatos que Vincent abre em suas telas.

    Quando Castaneda para o mundo pela primeira vez, ele conversa com um coiote que est andando pelo cam-po. Ademais, fala de uma srie de experincias que diz no poder descrever com palavras. Ao contar o ocorrido ao ndio Don Juan, este lhe diz que o coiote no falara da mesma maneira como os homens falam e que Castaneda no conseguiu reconhecer isso, mas seu corpo havia com-preendido pela primeira vez.

    Seu corpo compreendeu pela primeira vez. Mas voc no conseguiu reconhecer que no era um coiote, para comear, e que certamente no estava falando da maneira que voc ou eu falamos. Mas o coiote falou mesmo, Don Juan! Agora olhe quem est falando como um idiota. Depois de todos esses anos de aprendizado, j devia saber. Ontem voc parou o mundo e podia at ter visto. Um ser mgico lhe disse uma coisa e seu corpo foi ca-paz de entender, porque o mundo tinha desmoronado. O mundo estava como hoje, Don Juan. No estava, no. Hoje os coiotes no lhe dizem nada, e voc no consegue ver as linhas do mundo. Ontem fez tudo isso simplesmente porque alguma coisa tinha parado dentro de voc. O que foi que parou em mim? O que parou em voc ontem foi aquilo que as pes-soas tm dito que o mundo. Entenda, as pessoas nos dizem, desde o momento em que nascemos, que o mundo assim e assado, naturalmente no temos outra escolha seno ver o mundo do jeito que as pes-soas nos dizem que (Castaneda, 1972/2006, p. 314).

    Parar o mundo e ser obra de arte, falando dessas no-es, os dois autores discorrem sobre realidades plsti-cas, sobre mundos que existem a partir de experincias, sobre formas de ec-xistir e transitar entre mundos, man-tendo-se na abertura do ente. Quando Van Gogh pinta os sapatos, ele os traz presena, e aqui entendemos pre-sena como proximidade, a intensidade prpria de sua experincia. A arte no consiste em mera representao de um mundo; da mesma forma quando o guerreiro v, ele faz uma experincia livre de suas idias prvias de um mundo simplesmente dado. Parar o mundo, em Castaneda, e ser obra de arte, em Heidegger, podem ser relecionados pelo fato de apontarem para uma aber-tura de possibilidades de sentido para alm do mundo que tomamos como dado.

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    Arte e Mundo: Dilogos entre Heidegger e Castaeda

    Em Viagem a Ixtlan, aps passar por uma determi-nada experincia, Castaneda se inquieta e diz no con-seguir entender o que tinha se passado. Don Juan diz a ele: Insiste em explicar tudo como se o mundo intei-ro fosse composto de coisas que podem ser explicadas. (...) J lhe ocorreu que h poucas coisas nesse mundo que podem ser explicadas do seu jeito? (Castaneda, 1972/2006, p. 160).

    Quando Castaneda explica o mundo, ele simples-mente reafirma sua representao prvia do mundo e assim o esgota enquanto abertura de possibilidades. Em vrios momentos de sua trajetria de aprendizado, Castaneda se v dividido entre dois mundos, o mundo cotidiano dos homens e o mundo dos feiticeiros: qual mundo seguir?

    Certa vez ao ingerir uma das plantas de poder botes de peiote ele pergunta qual o caminho certo a seguir, qual o mundo certo. O esprito do peiote, Mescalito, o conduz em experincias distintas. A princpio, Castaneda tem vises e sensaes agradveis, que lhe trazem feli-cidade, mas logo depois rudos comeam a entrar nesse mundo pleno de felicidade e a experincia comea a se transformar de forma desagradvel. Castaneda se v em uma situao de luta e todo o conforto desaparece. Diante disso, ele no consegue interpretar sozinho o que foi que Mescalito veio lhe dizer; confuso pede ajuda de Don Juan que lhe diz que a lio de Mescalito foi lindamente clara. Ele disse que Castaneda acredita existirem dois mundos para ele, dois caminhos, enquanto na verdade s existe um: o mundo dos homens.

    O nico mundo possvel para um homem o mundo dos homens, porque somos homens e isso no podemos resolver largar. Na primeira experincia, onde tudo fe-licidade no h diferena entre as coisas porque no h ningum que indague pela diferena. Por isso Mescalito sacode Castaneda e o tira novamente de uma posio confortvel, para lhe mostrar como o homem pensa e luta. Trata-se de um horizonte de mistrio fundamental do ser homem: horizonte de abertura da prpria exis-tncia. Don Juan diz que presumir que se vive em dois mundos vaidade, pois se sendo homem, se vive o mun-do dos homens.

    Aproximemos este pensamento com o que desenvol-ve Heidegger sobre o modo de ser do homem, o ser-a. O homem o nico ente cujo ser est sempre em jogo em sua existncia. Para a fenomenologia, no h uma essn-cia a priori prpria experincia do existir. O homem ser-no-mundo. Don Juan diz que preciso, de certa for-ma, entender que, essencialmente, no somos nada para, assim, podermos ser tudo. Nenhum mundo o mundo certo ou verdadeiro. Mais adiante, em Viagem a Ixtlan, Don Juan fala a Castaneda que aps ver o mundo dos feiti-ceiros ele dever perceber que a grande arte do guerreiro saber transitar entre os mundos, sabendo que nenhum mais verdadeiro que o outro, mas que todos so possi-bilidades de experincia.

    No devemos concluir desse esboo de um dilogo inslito, que o mundo que convencionamos em socie-dade no importante. O que se pe em questo nesses pensamentos a cristalizao da experincia cotidiana de mundo como verdade absoluta, e, tambm, a crista-lizao dos nossos modos de ser medianos como nicas possibilidades de estar no mundo. O nosso modo de ser mais comum to prprio ao nosso existir, quanto o fato de que ele no esgota nossas possibilidades existenciais enquanto ser-no-mundo. Mais do que fazer experincias exticas de mundos, o que buscamos lembrar, atravs da ressonncia entre esses pensamentos to distintos, seja atravs da arte ou por outros caminhos, a brecha, a abertura que nos permite transitar entre mundos.

    Referncias

    Castaneda, C. (1968). A Erva do Diabo. Rio de Janeiro: Record.

    Castaneda, C. (1974). Porta para o infinito. Rio de Janeiro: Record.

    Castaneda, C. (2006). Viagem a Ixtlan. Rio de Janeiro: Nova Era (Original publicado em 1972).

    Castaneda, C. (2009). Uma estranha realidade. Rio de Janeiro: Nova Era (Original publicado em 1971).

    Heidegger, M. (1997). A Questo da tcnica. Cadernos de Traduo, nmero 2. So Paulo: DF/USP (Original publi-cado em 1953).

    Heidegger, M. (2007). A Origem da Obra de Arte. So Paulo: Edies 70 (Original publicado em 1950).

    Heidegger, M. (1966) Srnit. Em Questions III, p. 159-181. Paris: Gallimard.

    S, R. N., de & Rodrigues, J. T. (2007). A questo do sujeito e do intimismo em uma perspectiva fenomenolgico her-menutica. Em A. M. L. C. de Feijoo & R. N. de S (Orgs). Interpretaes fenomenolgico-existenciais para o sofri-mento psquico na atualidade [pp. 35-54]. Rio de Janeiro: GdN /IFEN.

    Ana Gabriela Rebelo dos Santos - Graduada em Psicologia pela Uni-versidade Federal Fluminense, Mestre em Psicologia pelo Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Universidade Federal Fluminense / Bolsista REUNI (UFF) e Arteterapeuta integrante da equipe da Cl-nica Pomar no Rio de Janeiro. Email: [email protected]

    Roberto Novaes de S - Professor Associado da Universidade Federal Fluminense, vinculado ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFF. Endereo Institucional: Universidade Federal Fluminense, Centro de Estudos Gerais, Departamento de Psicologia. Campus Gragoat, bl. O, sala 218 (So Domingos). CEP 24210-350, Niteri (RJ). Email: [email protected]

    Recebido em 01.06.2011Aceito em 21.07.2012

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    Jssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

    SER pSICOTERApEUTA: REfLExES ExISTENCIAIS SObRE vIvNCIAS DE ESTAGIRIOS-TERApEUTAS INICIANTES1

    Be Psychotherapist: Existential Reflections on Experiences of Trainees-Therapists Beginners

    Ser un Psicoterapeuta: Reflexiones Existenciales cerca de Vivncias de Alumnos-Terapeutas Principiantes

    JssicA PAulA silvA Mendes

    sionArA KArinA Alves de brito Gressler

    sylviA MArA Pires de FreitAs

    Resumo: Esta produo apresenta uma anlise reflexiva, com base no existencialismo sartreano, sobre a idealizao do estagi-rio-terapeuta iniciante sobre o Ser Terapeuta. Tal reflexo teve como ponto de partida algumas vivncias das autoras, bem como a observao das dos demais estagirios que se encontravam diante do incio da prtica da psicoterapia individual para adultos e terceira idade, desenvolvida por meio da disciplina de Estgio Especfico I, da nfase de Psicologia e Processos Clnicos, do 4 ano do curso de Psicologia da Universidade Paranaense, Campus Umuarama/PR, no ano de 2010. Partindo dessas vivncias, propomos desconstruir o lugar de soberania onde muitas vezes colocado o psicoterapeuta, lugar esse construdo por ideolo-gias que criaram o papel do profissional responsvel pela cura, valorizando-o sobremaneira ao ponto de enfatizar verdades que desconsideram a interdependncia da relao terapeuta-cliente, proporcionando sentidos que levam o estagirio-terapeuta ini-ciante a criar expectativas frente suas atuaes, as quais, ao abarcar toda a responsabilidade pela cura do Outro, nega-o como artfice de sua existncia. Diante disso, consideramos que projetos idealizados no abarcam frustraes, impossibilitando o re-conhecimento dos limites do prprio projeto de Ser terapeuta.Palavras-chave: Terapeuta iniciante; Ser psicoterapeuta; Idealizao; Fenomenologia-existencial.

    Abstract: This production presents a reflective analysis, based on Sartrean existentialism, on the idealization of the trainee-therapist Being a beginner on the therapist. This reflection has as its starting point a few experiences of the authors and the ob-servation of other trainees who were before the start of the practice of individual psychotherapy for adults and seniors, devel-oped through the discipline of Stage-Specific I, the emphasis of Psychology Clinical and Processes, 4th year of Psychology at the University of Parana, Campus Umuarama / PR, in 2010. Based on these experiences, we deconstruct the place where sovereignty is often placed on the psychotherapist, this place built by ideologies that have created the role of the professional responsible for healing, valuing it greatly to the point of value truths that ignore the interdependence of the therapist- client, providing direc-tions that lead the trainee-therapist beginner to create expectations facing his performances, which, embracing all responsibil-ity for the cure the Other, it denies its existence as a journeyman. Therefore, we believe that projects do not cover idealized frustrations, making it impossible to recognize the limits of the project itself being a therapist.Keywords: Beginning therapist; Being a psychotherapist; Idealization; Existential phenomenology.

    Resumen: Esta produccin presenta un anlisis reflexivo, basado sobre el existencialismo sartreano, en la idealizacin del aprendiz-terapeuta ser un principiante en el terapeuta. Esta reflexin tiene como punto de partida algunas experiencias de los autores y la observacin de los alumnos que estaban antes del inicio de la prctica de la psicoterapia individual para adultos y personas de edad avanzada, desarrollada a travs de la disciplina de la Etapa I-especficas, el nfasis de la Psicologa Clnica y Procesos, 4 ao de Psicologa en la Universidad de Paran, Campus Umuarama / PR, en 2010. Con base en estas experiencias, deconstruir el lugar donde la soberana es a menudo puesto en el psicoterapeuta, este lugar construido por las ideologas que han creado el papel del profesional responsable de la curacin, lo que valora en gran medida hasta el punto de toma el valor de las verdades que hacen caso omiso de la interdependencia del terapeuta- cliente, proporcionando indicaciones que llevan al alumno principiante-terapeuta para crear las expectativas frente a sus actuaciones, que, abrazando toda responsabilidad por la cura el otro, niega su existencia como un jornalero. Por lo tanto, creemos que los proyectos no cubren frustraciones idealiza-do, lo que hace imposible reconocer los lmites del propio proyecto de ser un terapeuta.Palabras-clave: Terapeuta principiante; Ser un psicoterapeuta; La idealizacin; La fenomenologa existencial.

    1 Comunicao oral apresentada no II Congresso Sul-Brasileiro de Fenomenologia & II Congresso de Estudos Fenomenolgicos do Paran, rea-lizado na Universidade Federal do Paran (UFPR), em Curitiba, de 04 a 07 de junho de 2011.

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    Ser Psicoterapeuta: Reflexes Existenciais sobre Vivncias de Estagirios-Terapeutas Iniciantes

    Introduo

    Ao pensar em psicoterapia, a idia que instiga pri-meiramente a de um tratamento cuja funo principal a cura. Tal concepo de livrar o paciente de determi-nados sintomas passa pelo senso comum, configurando--se inclusive como expectativa do prprio estudante de Psicologia frente prtica psicoterpica (Camon, 1999).

    Para Zaro, Barach, Nedelman e Dreiblatt (1980), as expectativas do estudante, quando inicia os atendimen-tos psicoteraputicos, influenciam a maneira como com-preendem as vivncias de seus clientes e suas prprias. Discutir sobre essas expectativas nos remete, necessaria-mente, a contextualizar algumas condies que levam a escolha de Ser terapeuta. Sobre esse assunto, Zaro et al. (1980) mencionam que, apesar de cada pessoa possuir seus prprios motivos, de acordo com seus projetos, geral-mente os estudantes de Psicologia tendem a compartilhar de alguns deles tais como a preocupao com o bem-estar das pessoas e o desejo em ajud-las. Associada a isto est a busca pelo reconhecimento de ser um terapeuta capaz de melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.

    Chegamos, portanto, ao possvel motivo para toda ansiedade e angstia do estagirio-terapeuta iniciante, que so vivenciadas antes mesmo do primeiro atendi-mento, ao imaginar sua atuao baseada no projeto de terapeuta ideal.

    Durante a formao do psicoterapeuta, ele geralmen-te tambm habilitado para realizar o psicodiagnstico a partir do conhecimento de teorias que fundamentaro sua prtica. Entretanto, podemos dizer que aquilo o que ele leva para a prtica, antes de qualquer coisa, a si pr-prio como pessoa. Sua relao com o cliente tambm ser construda de acordo com seu projeto de ser, podendo, a princpio e pela falta de prtica do mtodo que dever embasar sua prtica, analisar os sentimentos e compor-tamentos dos clientes com referncia em suas prprias experincias, expectativas e valores morais.

    Sobre a psicoterapia enquanto vivncia de diferentes sensaes experimentadas pelo estagirio-terapeuta ini-ciante, no se pode deixar de falar em como a superviso, tanto do acadmico em atividades curriculares, quanto dos recm formados, torna-se um recurso que viabiliza o conhecimento bsico e a experincia mnima para atu-ao enquanto prtica clnica (Boris, 2008).

    sobre as principais expectativas e sentimentos di-versos que acometem o estudante de Psicologia frente s atividades prticas em psicoterapia, ou seja, as possveis vivncias diante seu projeto em Ser terapeuta, que nos de-bruaremos reflexivamente neste artigo. Sob os conceitos da filosofia de Jean-Paul Sartre, um dos principais fil-sofos existencialista da modernidade, que fundamen-taremos nosso olhar, uma vez que, a respectiva aborda-gem difunde a idia de uma educao progressista, que coloca o estudante no centro de todo o processo, exrdio de toda discusso apresentada nesta produo cientfica.

    A concepo da Psicologia voltada prtica enquan-to Clnica vem, ao longo do tempo, se adequando s de-mandas emergentes com exigncias contemporneas cada vez mais peculiares, onde problemas das mais variadas ordens se apresentam. Tal atuao que se difundiu no meio acadmico e social como a mais nobre, revelou a figura do psiclogo que atua dentro de um contexto te-raputico tradicional.

    Historicamente, a Psicologia Clnica dispe de um sujeito idealizado, que surge para atender a uma deman-da de exaltao da subjetividade, caracterstica do indi-vidualismo moderno. H uma inverso na relao teoria e prtica, que se deve, segundo Portela (2008), tentati-va de encaixar os fenmenos em um conceito terico que acaba por engessar a historicidade e facticidade desses eventos. Nesse sentido que este autor cita o apego aos modelos cientficos como fator limitante da compreen-so dos fenmenos, uma vez visto o mtodo como forma de um (falso) controle para sua ocorrncia.

    Para Pretto, Langaro e Santos (2009), a abordagem Existencialista tem abarcado essa demanda da contem-poraneidade por meio de seus vrios instrumentos em uma metodologia fundamentada historicamente, de for-ma concreta e atualizada, e segundo as relaes que so estabelecidas. Busca-se ento uma clnica ampliada, no limitada, desenvolvida nos mais diversos contextos nos quais a Psicologia se insere, seja na sade pblica, no meio organizacional, educao ou qualquer outra rea, com uma prtica pautada na viso global desse cliente.

    No nos debruaremos na caracterizao desses va-riados contextos por acreditarmos que as expectativas do estagirio-terapeuta iniciante se assemelham indepen-dente do local onde atue. Nosso foco se mantm ento, em levantarmos sucintamente algumas dessas expectativas, destacando aspectos que nos parecem fundamentais sob a perspectiva existencialista. Antes, porm, faz-se mister definirmos alguns conceitos bsicos que fundamentam a Fenomenologia husserliana, na qual Sartre apoiou-se no conceito de conscincia intencional, para assim tam-bm podermos compreender em que Sartre transcende Husserl em suas reflexes. Posteriormente, a partir dessa breve contextualizao, partiremos para a anlise com-preensiva a temtica que nos propomos.

    1. A fenomenologia Husserliana

    Fenomenologia nada mais que um mtodo que sur-ge dentre os movimentos do pensamento do sculo XX. Na concepo husserliana, essa definio restaura um re-torno s coisas mesmas (Galeffi, 2000, p. 19), provocando assim importantes mudanas no fazer filosfico deste s-culo. Husserl se empenhou em diferenciar a conscincia do eu emprico. Para Husserl (1906/1990, p. 32) o eu no seu sentido habitual um objeto emprico, ou seja, ele no pos-sui outra unidade seno aquela que lhe dada pela prpria

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    Jssica P. S. Mendes; Sionara K. A. B. Gressler & Sylvia M. P. Freitas

    conscincia. Contudo, esta concepo do eu sofrer uma mudana radical a partir do momento em que Husserl enca-minha a fenomenologia na direo de uma filosofia trans-cendental. Uma vez que perceber o objeto intencion-lo, o ego transcendental passa a ser visto como a origem de toda significao e a fenomenologia vem a partir da, expli-car esta constituio do ego transcendental (Santos, 2008).

    Considerando o Eu transcendental, a individualidade da conscincia e esta, por sua vez caracterizada enquanto intencional e vazia, Husserl enfatiza esse Eu como res-ponsvel por todo conhecimento, constituindo e dando sentido ao mundo. Assim, a fenomenologia se desenvol-ve com o objetivo principal de descrio de vivncias, a partir das quais se constituem objetos intencionais da conscincia (Brando, 2009). Nesse sentido, para Husserl, o Eu Transcendental unifica as vivncias. ele que vai ao mundo, capta e conhece a coisa (objeto).

    A busca de Husserl ento se fundamenta naquilo que podemos chamar de uma conscincia absoluta, revelada pela reduo fenomenolgica. Seu carter epistemolgico o que define o significado de mundo para cada indiv-duo, evidenciando o contedo concreto de vida de forma autntica. Posta a ao do mundo suspensa, se permite a conscincia tornar-se plenamente consciente de si mes-ma (Giles, 1989).

    2. O Existencialismo Sartreano

    Diferente de Husserl, Sartre (1937/1994) compreende que o Eu no pode ser visto como estrutura constituinte da conscincia. Desta maneira, a definio de uma consci-ncia vazia seria aniquilada, contradizendo e comprome-tendo assim a teoria husserliana (Santos, 2008). Assim, o Eu no pode estar presente na conscincia irrefletida uma vez que o Eu penso s surge por meio do ato reflexivo. Ou seja, a reflexo que constitui este objeto transcen-dente chamado Eu, que a partir deste momento passa a existir no mundo como um Em-si. Sartre postula ento um Ego transcendido e no transcendental, haja vista ser este conhecido e no o que conhece (Bocca & Freitas, 2011).

    Apoiados no conceito de projeto da filosofia sartreana, encontramos a caracterizao do homem enquanto expres-so de sua liberdade. Nesse sentido, o Existencialismo ba-seia-se em uma anlise compreensiva da existncia a par-tir do entendimento de uma liberdade de escolha situada, no obstante, sem obrigatoriamente garantia de obteno, em que o homem opta por esse ou aquele projeto de acor-do com sua valorizao, que se respalda tambm em uma moral vigente de seu contexto. Sob essa ptica o homem passa a ser um existente separado de todos, uma vez que consciente, se apresenta como algo distinto de si. Ao passo que transporta em mim os projetos do Outro e no Outro os meus prprios projetos (Sartre, 1960/2002, p. 212).

    V-se ento a contradio fundamental entre ho-mem x mundo. Ao mesmo tempo em que o homem faz

    parte de uma totalidade, sendo o prprio todo, ele no o todo medida que se coloca contraditrio a ele. Para Perdigo (1995), o mundo que lhe d o Ser ao afirm-lo no s como sujeito, mas enquanto totalidade acabada. O Outro o objetiva, tornando-o um Em-si, coisa entre as coisas. Entretanto, o homem particulariza-se no mbito de tal contradio. Enquanto tese, o homem se contrape ao mundo que anttese, e a existncia desse no-ser em andamento entre a totalizao constituinte e o todo constitudo que estabelece a existncia dialtica de um nada ativo e, ao mesmo tempo passivo (Sartre, 1960/2002).

    Inerente construo do mundo pelo homem est a constituio deste ltimo enquanto produto desse mun-do feito por ele. Necessrio se faz, neste caso, estabele-cer relaes com outros homens para se tornar homem, j que se constitui enquanto tal pela mediao de uma realidade que ele prprio estabelece.

    Assim, a cada escolha que transcende as contradi-es inerentes a existncia humana, constitui o enfoque daquilo que Sartre denominou de histrico-dialtico. O sujeito deve ser compreendido a partir de sua histria individual e, ainda, dos contextos social, cultural, eco-nmico e poltico ao qual est inserido.

    Com foco nesta concepo histrico-dialtica de Sartre (1960/2002), sua contribuio para a Psicologia diz respeito ao estudo de um homem em situao, e princi-palmente, dos fenmenos que permeiam as relaes no decorrer de sua existncia. Toda essa investigao pro-posta pela filosofia sartreana visa alcanar a compreen-so dos diversos aspectos da existncia em todo seu mo-vimento e constituio do projeto de Ser.

    Desse modo, a fenomenologia-existencial nos fornece mtodos para a prtica clnica: do mtodo fenomenolgi-co, a partir da epoqu, abstramos a base para uma atitude compreensiva e pelo mtodo progressivo-regressivo pode-mos entender o projeto de Ser a partir das escolhas reali-zadas pelos clientes, que se do num movimento dialtico temporal. E por este mesmo movimento que a Psicologia clnica foi e continua sendo construda historicamente.

    3. A psicologia Clnica e o Sujeito Objetivado

    Falar em atuao clnica nos remete inevitavelmen-te a uma discusso, mesmo que breve, do movimento da Psicologia enquanto construo de um saber cientfico, cuja prtica foi moldada ao longo do tempo e influencia-da pelas questes sociais e antropolgicas que conferem ao homem em suas variadas formas de ser, o objeto de estudo do fazer psicolgico.

    Para concretizar-se enquanto cincia, a Psicologia, no que diz respeito prtica clnica, um campo mar-cado pela busca de um saber inquestionvel. Propunha a confiabilidade de um mtodo que fosse capaz de prever e controlar os fenmenos responsveis pela construo de um homem subjetivado. Seguindo o percurso de uma

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    Ser Psicoterapeuta: Reflexes Existenciais sobre Vivncias de Estagirios-Terapeutas Iniciantes

    subjetividade marginalizada pelo processo cientfico, medida que se ope a objetividade proposta pela cincia, ao terapeuta foi concedida a capacidade de transformar a natureza de seu cliente, cujos fenmenos caractersticos foram reduzidos apenas a um objeto de estudo.

    Nesse sentido que Neubern (2001) aponta o grande dilema da Psicologia Clnica, pois medida que se de-senvolvem novas formas de atuao, ainda assim, esbar-ramos na limitao epistemolgica que tende a excluir a subjetividade.

    Provavelmente o maior resultado dessa discrepncia para as relaes teraputicas est relacionado dificul-dade de aceitao das mais variadas formas possveis de compreenso de mundo, reduzindo as experincias a con-ceitos universalizados, logo generalizantes.

    Pode-se dizer que o conhecimento foi associado a uma hierarquia, uma relao de poder, onde as pers-pectivas do terapeuta, de maneira sutil, foram impostas, substituindo ou influenciando assim as peculiaridades do cliente. Concomitante a isto, a Psicologia foi tomando como funo oferecer explicaes confiveis, principal-mente dos sujeitos que estavam margem do conceito de normalidade. O foco no patolgico veio reafirmar a condio desse homem enquanto dependente e submis-so do processo teraputico, uma vez que a Psicologia lhe foi apresentada como uma, seno a nica, capaz de pro-mover solues eficazes.

    A avaliao das mltiplas e complexas dimenses de um processo histrico de fundamental importncia no sentido de estabelecer a prtica de um conhecimento vinculado, inclusive, s resistncias impostas por ele en-quanto obstculo epistemolgico (Neubern, 2001).

    Uma vez que partimos da disperso dos organismos humanos, vamos considerar indivduos inteiramente separados (pelas instituies, por sua condio social, pelos acasos de sua vida) e tentaremos descobrir nessa separao isto , em uma relao que tende para a exterioridade absoluta seu vnculo histrico e concreto de interioridade (Sartre, 1960/2002, p. 213).

    Por estarmos inseridos em uma estrutura social que fora organizada pela prxis de outros que nos precederam historicamente, torna a prxis individual uma reorganiza-o de um setor de materialidade inerte, cuja funo aten-der as exigncias de outro setor material, e no mais uma livre organizao do campo prtico. Matria, em um senti-do mais amplo, seria no-conscincia (Sartre, 1960/2002).

    Entretanto, segundo Perdigo (1995), no somente as prxis de nossos antecedentes, mas tambm as nossas enquanto liberdade produzem o fenmeno da contra-fi-nalidade da matria. Para este autor, o homem intervm na matria influindo nela seu prprio projeto, disperso, resultando em um fenmeno alheio que foge ao contro-le, e a matria pode responder contrariamente aos efei-tos que se buscava.

    O isolamento dos sujeitos que se condenam a sofrer a contra-finalidade aliena seus projetos livres e favorece o estabelecimento de relaes de domnio, devendo rea-lizar projetos que no lhe so prprios, e sim determina-dos por outros (Perdigo, 1995). Assim, o homem tambm escolhe e produz seus prprios condicionamentos, logo a maneira de alienar-se.

    Romagnoli (2006) define as relaes contemporneas como intrnsecas, qualitativas e afetivas, por se desenvol-verem nesse cenrio globalizado de uma sociedade pre-tensiosamente autoritria que envolve aquilo que a autora definiu como corpo social, por meio dos mais diversos mecanismos de dominao. A alienao faz com que as imposies dessa sociedade dominante sejam, ao mesmo tempo, tambm desejadas pela subjetividade, produzindo assim formas de vidas padronizadas.

    Para Luczinski e Ancona-Lopez (2010), na prtica cl-nica, a busca do psiclogo pela compreenso do homem no mundo, assim como uma forma de acompanhar esse homem em suas necessidades de acordo com os objeti-vos teraputicos. Entretanto, certo que o homem pode apresentar crescimentos e mudanas no que diz respeito ao desenvolvimento pessoal, a partir das mais diversas experincias vividas, sem que para isso seja necessria qualquer interveno psicolgica.

    Nesse aspecto que a prtica da Psicologia Clnica imersa no contexto social, no visa uma poltica de aten-o s camadas sociais mais favorecidas. Diz respeito a uma proposta para uma clnica de qualquer lugar, segundo Romagnoli (2006, p. 53). O objetivo primeiro, neste caso, seria a aniquilao de produes em massa, vinculada a uma apreenso da singularidade do cliente no submisso a um modelo de estudo. Isso vale tambm para o prprio terapeuta que no se atenha ao pensamento narcsico de detentor do poder de modelar seus clientes.

    Tendo em vista a fundamental importncia do mundo enquanto produto e produtor de subjetividades objetiva-das, cabe ressaltar o processo de sociabilidade, como se d e o nvel de influncia que este exerce sobre a constituio do homem. Em meio a esse processo encontra-se tambm a construo do Ser terapeuta, que tende ir ao encontro das expectativas da sociedade e as perspectivas dos estudan-tes que se dedicam a esta atuao profissional, como por exemplo, a conciliao indubitvel entre naturalidade e critrio, as quais sero foco de nossa reflexo mais adiante.

    4. A Sociabilidade e o Social

    Iniciaremos uma discusso a respeito da sociabili-dade a partir da conceituao de Qualidade de Vida. Ao pensar Qualidade de Vida h uma tendncia a associar tal conceito sade. Segundo definio da Organizao Mundial da Sade (OMS), sade no diz respeito somente ausncia da doena, e sim a presena de um bem estar fsico, mental e social (Fleck, 2000).

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    Em um artigo apresentado por Campos e Rodrigues Neto (2008), que trata de uma narrativa reflexiva sobre Qualidade de Vida, os autores trazem um tpico intitu-lado Instrumentos de Medida de Qualidade de Vida (p. 235), onde descrevem construtos capazes de mensurar e comparar os diversos nveis que caracterizam e determi-nam o bem-estar social.

    O tema abordado como se o fenmeno do bem-estar fosse padronizado e a tal ponto generalizado que permiti-ria uma avaliao cabal de toda e qualquer subjetividade. Nesse aspecto, ressaltamos a importante influncia exer-cida pela ascenso do capitalismo no que diz respeito ao entendimento de bem-estar contemporneo. Os padres de beleza, padres comportamentais, status social so alguns dos predicativos que diariamente so impostos pela mdia, por exemplo, e sobre os quais se fundamen-ta a condio de se ter ou no bem-estar. Podemos ob-servar tambm que para se atingir tais projetos impostos como necessrios ao bem-estar, h a necessidade de se consumir produtos para esses fins. A valorizao do ho-mem, ento, diz respeito capacidade de consumo que ele apresenta, e no daquilo que o constitui enquanto Ser.

    Nesse contexto e no senso comum, o psiclogo se in-sere como algum capaz de modificar os comportamen-tos vistos como no saudveis, proporcionando assim o bem-estar ao seu cliente. Mais que isso, qui, por al-gumas pessoas, considerado como o nico capaz de tal mudana, pelo fato de possuir conhecimento relativo ao homem enquanto processo e suas diferentes formas de compreenso do mundo.

    Em 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Paran (CRP 08) contemplou a edio n. 57 da revista Contato com a temtica Qualidade de Vida, enfocando as contri-buies da Psicologia para se alcanar esse bem-estar to almejado pelo homem. Uma das reportagens foi direciona-da profissionais envolvidos com a prtica da Psicologia em um contexto ambiental, que denunciaram os resulta-dos danosos das aes do homem sobre a natureza, que afetam sobremaneira sua qualidade de vida. Diante o que construdo por esta relao dialtica homem-mundo, por meio da qual o homem sente a contra-finalidade da matria, ou seja, o homem se v controlado por sua cria-o, cabe aqui uma anlise.

    A expresso Em-si na teoria sartreana se refere ao Ser, ou seja, tudo aquilo que , estanque, fechado. Dito de outra forma: encontra-se fora da pessoa, no mantm relao nem consigo nem com outro Ser, o universo das coisas materiais. Em contrapartida o Para-si o pleno vazio, o nada. a conscincia (Para-si) que faz reconhe-cermo-nos como Ser (Em-si) (Perdigo, 1995).

    A relao dialtica Para-si e Em-si nada mais que a relao entre a conscincia e o mundo. J disse Sartre (1943/1997, p. 131) que o homem um para-si-em-si, uma vez que ontologicamente o homem o nada, o vazio que ser preenchido por algo, tornando-se momentaneamen-te um Em-si na relao com o mundo (Para-si-Em-si).

    O nico fundamento concreto da dialtica histrica a estrutura dialtica da ao individual. E, na medida em que podemos abstrair, por um instante, essa ao do meio social onde, de fato, est submersa, surpreen-demos nela um desenvolvimento completo da inteligi-bilidade dialtica como lgica da totalizao prtica e da temporalizao real (Sartre, 1960/2002, p. 328).

    Portanto, a prtica clnica nada mais que um olhar desse homem na sociabilidade (relaes), limitado por aquilo que institudo por essas mesmas relaes, ou seja, o social ser o produto dessas relaes, como, por exemplo, as normas, as leis, as teorias e as polticas. Sendo produto, o social a anttese do individuo e seu projeto de Ser tambm ser construdo a partir desta relao, como interioriza esse social e como age sobre ele.

    Por ser falta e por estar inserida no mundo, a relao com as coisas e com os outros se d num movimento re-cproco, que remete o homem ao reconhecimento de si prprio enquanto meio, tal como v o outro, que se move em direo a um fim. Essa relao , ao mesmo tempo, mediadora e mediada pela materialidade. Um conjunto de homens e de coisas, segundo Bettoni e Andrade (2001), em meio a qual a prxis da individualidade atua para deter-minado fim a sobrevir sobre a realidade. A somatria das aes de vrios sujeitos constitui um grupo que, mais tar-de, ir demarcar e, de certa forma, exercer controle sobre a individualidade expressa em prol dos objetivos coletivos.

    Podemos dizer que enquanto a realidade coletiva se apresenta ao homem como algo imposto, esta consti-tuda tambm a partir de sua individualidade. Sob esta lgica da dialtica homem-mundo configura-se uma tota-lizao-em-curso. Cabe ento conscincia desvelar todo esse movimento dialtico e retir-lo da inrcia, fazendo com que seja possvel refletir sobre a trajetria das coisas (Bettoni & Andrade, 2001).

    5. Ser Terapeuta Ideal

    No eixo da Fenomenologia-existencial, a construo do projeto de Ser terapeuta tambm produto dessa dia-ltica ontolgica. Inicialmente, ao pensar nos objetivos da educao como sendo o de fundamentar uma identidade ao homem, a formao acadmica em Psicologia, assim como em qualquer outra rea do conhecimento, traria em seu bojo uma atitude de m-f ao tentar impor um Ser psiclogo ao No-ser, como resposta frente ao nada.

    Segundo Danelon (2004), como instituir uma essn-cia antes da existncia, a qual se constituir mais tarde como realidade interior do sujeito, servindo de referencial para que este elabore e concretize seus projetos, contra-pondo-se assim a premissa bsica do Existencialismo de que a existncia precede a essncia.

    O Ser ontolgico do homem, ao pensar, pensa sem-pre em algo que, a partir da, torna-se objeto captado por sua intencionalidade. Pensar em Ser psicoterapeuta im-

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    Ser Psicoterapeuta: Reflexes Existenciais sobre Vivncias de Estagirios-Terapeutas Iniciantes

    plicaria ento, em projetar um Ser terapeuta, primeira-mente idealizado.

    J impregnados com conceitos do senso comum sobre o papel do terapeuta, o estudante inicia a graduao po-dendo ter alguns desses conceitos reforados por paradig-mas de uma formao que limitam a prtica desse profis-sional somente ao contexto do consultrio e que designam figura do terapeuta caractersticas utpicas, como, por exemplo, a onipotncia de detentor do poder de curar o outro. E nesse aspecto que a educao pode assumir um carter perverso ao propor um Ser para o homem que se projeta a partir do que foi institudo. Compromete-se as-sim, o princpio de intencionalidade tambm, que desse momento em diante impossibilita a abertura da conscin-cia para o mundo, j que ser parte de uma subjetivida-de que lhe foi instituda anteriormente (Danelon, 2004).

    A formao, porm, tem o poder de caracterizar o su-jeito. Concretiz-lo como um Ser-em-si, que poderia ser definido como subjetividade individual, no fosse o fato da conscincia apresentar-se objetivada de conceitos que foram pr-determinados (Danelon, 2004).

    A possibilidade de livrar o cliente do sofrimento e ser reconhecido como um bom profissional tende a inci-tar o terapeuta, pois esta possibilidade de ser lhe confe-re poder. Ideologicamente fixado em conceitos, como os padres de sade mental, qualidade de vida, bem-estar, e condies sociais, por exemplo, disseminados na so-ciedade capitalista, o terapeuta iniciante pode se deter a uma pretenso de enquadrar o cliente em conceitos pr--estabelecidos, de modo que se sinta capaz de mud-lo e reinseri-lo tal como o meio exige.

    Diante o exposto, fica evidente uma intensa preocupa-o do estagirio-terapeuta iniciante, com o desempenho nos primeiros atendimentos psicoteraputicos. Certo n-vel de ansiedade demonstra as incertezas do futuro com o cliente e da habilidade para estar realmente com ele. Sabido que o que se fizer pode causar um impacto no outro, possvel aceitar tais ansiedades como normais, embora uma ansiedade demasiada talvez acabe com toda confiana que tenha em si prprio.

    O estagirio-terapeuta iniciante se encontra imer-so em um mar de dvidas em relao ao que dever ser dito e de que forma, e, apreensivo pelas coisas que acre-dita no poder dizer, pode conformar-se com o silncio em alguns momentos ou mesmo quebra-lo inadequada-mente para livrar-se da angstia diante do vazio que se instaura na relao, que pensa poder se entendido pelo outro como uma impotncia de sua parte. Nesse aspecto, a superviso funciona como moderador dessa ansiedade e angstia por meio da orientao dada por profissional que tenha experincia.

    A superviso se d com o uso de vivncias, discus-ses, dramatizao dos casos atendidos, estudo de mate-rial terico e outras atividades com o objetivo de ajudar e avaliar o desenvolvimento do estagirio-terapeuta ini-ciante na sua prtica. Isso se torna possvel por meio da reflexo, neste instigada, sobre suas habilidades, assim

    como suas limitaes, que levado a repensar a autoi-magem, relaes dentro do grupo e, paralelamente, seu crescimento pessoal (Tvora, 2002).

    A prtica idealizada da psicoterapia estaria vinculada a conciliao de uma metodologia cientfica aplicada em um contexto previsvel, agindo de forma inquestionvel sobre a motilidade que caracteriza a vida humana. Como se o estagirio-terapeuta iniciante fosse detentor de uma receita que livrasse o cliente de todo seu sofrimento, levan-do-o a crer que a cura seria algo ofertado pelo primeiro, ao invs de considerar o processo teraputico como uma caminhada para a conscientizao e apropriao do pro-jeto de Ser do e pelo cliente, que pode ser mantido ou no.

    Estagirios-terapeutas iniciantes tendem a antever seu encontro inicial com os clientes vivendo sentimentos am-bivalentes. Aplicar na prtica os conceitos tericos-meto-dolgicos aprendidos configura-se como uma das maiores preocupaes enquanto atuao. O anseio por intervir no momento que considera ser o certo, e de maneira que tambm acha ser a pertinente, acaba por vezes compro-metendo a vivncia daquilo que o cliente fala, no exato momento em que ele traz. O terapeuta fica preso a um modelo ideal de atuao e perde a singularidade do pro-cesso, em seu mbito vivencial da relao com o cliente.

    E por falar de singularidade e de relao, dois outros aspectos podem tambm ser compreendidos de maneira errnea pelo estagirio-terapeuta iniciante: (1) a questo da individualidade do indivduo ser compreendida de maneira descontextualizada do social e (2) a no conside-rao da relao dialtica no prprio setting teraputico.

    Sendo aspectos que se imbricam, a individualidade, tanto do cliente quanto do terapeuta, no est dissociada dos seus respectivos contextos coletivos. As vivncias de ambos vm carregadas do que institudo por um contexto maior por meio de suas relaes extra setting. Sendo as-sim, a maneira como superam as contradies das relaes fora do setting influenciar a relao que travaro dentro deste, bem como transcendero todas as demais. Logo, ne-nhuma delas pode deixar de ser apreendida e trabalhada.

    Outro aspecto importante a ser pontuado refere-se s atitudes de silncio do cliente que, por vezes, so signi-ficadas pelos estagirios-terapeutas iniciantes como uma barreira interveno psicoterpica. O silncio do cliente vivenciado pelo estagirio-terapeuta iniciante com um tempo interminvel e no incomum que este se sinta ameaado a ponto de buscar algo contraproducente com o fim de quebr-lo, livrando-se assim da angstia diante do vazio. Por remet-los ao vazio, o silncio passa a ser asso-ciado a uma impotncia do estagirio-terapeuta iniciante que se sente na obrigatoriedade de interromp-lo, dizendo coisas, por vezes desnecessrias, ou lanando mo de um inqurito com o nico intuito de totalizar a lacuna que se estabelece no momento em que o cliente se cala, como j dissemos anteriormente. Entretanto, assim como qualquer outro comportamento, o silncio, quando trabalhado em terapia, contribui para que o cliente obtenha conscincia de si, servindo inclusive como recurso de interveno

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    para o prprio psicoterapeuta, uma vez que pode assina-lar ao cliente a maneira como escolhe lidar com o vazio.

    No entanto, mister identificar a inteno do clien-te por meio de sua atitude de silenciar-se, haja vista que o silncio produtivo tem carter reflexivo (Erthal, 1994). Contudo, este tipo de silncio menos mobilizador de angstia no estagirio-terapeuta iniciante, pelo fato de o cliente, em sua atitude reflexiva, estar voltado para si e no para o terapeuta. Diferente do silncio estril, que tem seu significado na evitao de algum assunto em espec-fico que tenha incomodado o cliente e/ou a dificuldade de tomar a iniciativa de falar, neste, o cliente demonstra com o comportamento de silenciar-se, outras atitudes ge-ralmente no-verbais, que informam ao estagirio-tera-peuta iniciante que este quem deve quebrar o silncio. Neste caso, suportar o silncio passa a ser uma vivncia um tanto ameaadora, haja vista que, no responder ao apelo do cliente intervir com uma negativa, e como se esta no fosse tambm uma interveno.

    Quase sempre as intervenes iniciais ocorrem de ma-neira intranquila para o estagirio-terapeuta iniciante. H uma tendncia a sentir-se intimidado e receoso, como se algo que pudesse dizer tivesse o poder de destruir o clien-te de modo que ele nem retorne na sesso seguinte. Nesse sentido, evita-se falar sobre o que supe ser desagradvel para o cliente. Diante tal compreenso equivocada, a atu-ao fica restrita a uma prtica amena, amigvel, porm, a real inteno a de manter o controle da liberdade do cliente. Esta tentativa de controle remete expectativa do estagirio-terapeuta iniciante em estar de acordo com as expectativas que supe que o cliente tenha. Em outras palavras, a atuao fica vinculada uma tentativa de no frustrar o cliente para no frustrar a si prprio. Alienado em sua liberdade, e em busca de retoma-la, o estagirio--terapeuta iniciante tende a abster-se de uma possvel con-frontao com o cliente, tentando tambm transformar a liberdade deste ltimo em algo alienvel ao seu contro-le. Enfim, reverte o lugar de quem deve estar impotente.

    Outro contexto relacional em que o estagirio-tera-peuta iniciante pode mostrar o seu ideal de Ser terapeu-ta na relao com seu orientador. Assim como receia que sua atuao no seja reconhecida pelo cliente pelo modelo idealizado, o olhar do orientador tambm poder ser percebido como uma ameaa ao seu projeto. Em am-bas as relaes que trava com o cliente e com o orien-tador o estagirio-terapeuta iniciante tender controlar a liberdade da conscincia alheia. Contudo, na segunda relao, caber ao orientador a ajud-lo a conscientizar--se de seu projeto.

    Nesta trama dialtica das relaes, para obter sucesso com a psicoterapia fenomenolgico-existencial e com a orientao, todos orientador, estagirio e cliente devem se comprometer com suas escolhas: o orientador, com a de ensinar ao estagirio-terapeuta iniciante a desenvolver habilidades e competncias para a aplicao da teoria e do mtodo em questo, bem como encoraj-lo a desistir de idealizaes e assim a arriscar-se, com isso o orienta-

    dor tambm precisa se expor-se na relao; o estagirio--terapeuta iniciante, com a sua escolha pela abordagem e pelo tipo de prtica, aprendendo na orientao pode transpor a experincia para com o seu cliente, mas deve arriscar-se em ambas as relaes; e, finalmente, o cliente com a deciso de fazer terapia pode engajar-se com sua proposta, e assim apropriar-se de seu Projeto de Ser e com possveis transcendncias ao seu modo de Ser. Tais en-gajamentos provocaro mudanas nas relaes de todos.

    Consideraes finais

    Aquele que almeja ser psicoterapeuta geralmente se enquadra em caractersticas tais como: o interesse pelas pessoas, a estabilidade emocional, a capacidade de inspi-rar confiana nos outros, e principalmente, tolerncia s mais diversas formas e estilos de vida e crenas.

    Na contemporaneidade, exige-se ainda que esse tera-peuta-iniciante desenvolva a condio de compreender e aceitar o seu Eu tanto quanto os outros. Assim, quando vo prtica os estudantes de Psicologia so submetidos prova da sua capacidade de integrao e aplicao de tudo aquilo que aprenderam durante a formao acad-mica. Mesmo estando cientes da influncia que os do-centes exercem enquanto modelo de terapeuta, ignora-se a singularidade do potencial individual ao tentar imit--los. Os recursos podem e devem ser usados, mas buscan-do sempre caminhos que sejam peculiares a cada olhar.

    Ao longo dessa discusso, onde alguns paradigmas foram abordados e discutidos, ressaltamos que a forma-o cientfico-metodolgica no suficiente para garan-tir uma prtica psicoterpica com xito. A busca, no de ser um produto acabado, mas de permanecer aberto no sentido de vir-a-ser um profissional cada vez mais pre-parado, , entre outras, uma das qualidades mais impor-tantes para a experincia de tornar-se psicoterapeuta.

    Esta experincia implica correr riscos, manifestar a co-ragem e a vontade de abandonar a segurana do conhecido para mergulhar no desconhecido, de onde possa emergir muitas possibilidades de Ser. Tais funes destinadas ao ser terapeuta ocultam, por sua vez, a condio humana, pois se precaver manuteno das expectativas de um pa-pel estereotipado superpe o indivduo enquanto pessoa.

    Quando possvel, deve-se questionar os conhecimen-tos adquiridos, uma vez que a vida acadmica cons-truda por pessoas e estas no detm saberes absolutos. Teorias, mtodos, instrumentos e recursos esto no mun-do, logo passveis de serem transcendidos. Seja qual foi o grau de embasamento terico acadmico e prtico, o estagirio-terapeuta iniciante no deve sobrecarregar-se da necessidade de ser perfeito. Os erros sero cometidos tanto por principiantes quanto pelos mais experientes, afinal, o cliente no frgil a ponto de fadar vossas vi-das aos nossos erros.

    Projetos idealizados no toleram frustraes, logo no abarcam limites, sendo assim, no colocar limites ao

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    cliente, ajudando-o a se conscientizar sobre seu Projeto de Ser, tambm no querer reconhecer os limites de seu prprio projeto de Ser terapeuta.

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    Jssica Paula Silva Mendes - Discente do curso de Psicologia da Uni-versidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: [email protected]

    Sionara Karina Alves de Brito Gressler - Discente do curso de Psico-logia da Universidade Paranaense (UNIPAR). E-mail: [email protected]

    Sylvia Mara Pires de Freitas - Psicloga. Mestre em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Especialista em Psicologia do Trabalho pelo Centro Universitrios Celso Lisboa (CEUCEL/RJ). Formao em Psicoterapia Existencial pelo Ncleo de Psicoterapia Vivencial (NPV/RJ). Docente e Orientadora de Estgio em Psicologia Clnica e de Grupo, na abordagem Fenomenolgico-Existencial e Co-coordenadora do Curso de Especia-lizao em Psicologia Fenomenolgico-Existencial da Universidade Paranaense - UNIPAR/Umuarama - Paran. Docente-orientadora de Estgio em Psicologia do Trabalho, na Universidade Estadual de Marin-g (UEM/PR). Endereo Institucional: Av. Mascarenhas de Moraes, s/n. Universidade Paranaense, Campus sede Umuarama, Paran - Colegiado do curso de Psicologia. E-mail: [email protected].

    Recebido em 03.07.11Aceito em 12.03.12

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    Revista da Abordagem Gestltica XVIII(2): 144-154, jul-dez, 2012

    Marta H. Freitas; Rita C. Arajo; Filipe S. L. Franca; Ondina P. Pereira & Francisco Martins

    OS SENTIDOS DO SENTIDO: UMA LEITURA fENOMENOLGICA

    Los Sentidos del Sentido: Una Lectura Fenomenologica

    The Meanings of Meaning: A Phenomenological Reading

    MArtA HelenA de FreitAs

    ritA de cssiA ArAJo

    FiliPe stArlinG loureiro FrAncA

    ondinA PenA PereirA

    FrAncisco MArtins

    Resumo: Neste artigo, procedemos a uma leitura fenomenolgica da noo de sentido e suas mltiplas significaes. Partindo de uma primeira visada s definies apresentadas ao termo nos verbetes dos dicionrios comuns, tal multiplicidade de signi-ficaes discutida luz do conceito husserliano de intencionalidade e compreendida a partir da proposta merleau-pontyana de reabilitao do sensvel. Retomamos, ento, o termo sentido desde suas acepes fsicas e sensoriais at aquelas de cunho idealizado, relacional e teleolgico, considerando-as como um conjunto expresso num nico termo e que aponta para uma vida consciente baseada no campo da experincia corporal pr-predicativa desdobrando-se em experincia reflexiva, intersubjetiva e transcendental. Desta forma, o vocbulo sentido mostra-se como uma espcie de multiplicidade unificada e, por isso, consi-derado como que paradigmtico: pura mostrao do processo perceptivo, diante do qual se tem a contradio-continuidade da imanncia (o dado imediatamente) e da transcendncia (o que vai alm do imediatamente dado). Discutimos as implicaes desse entendimento para uma psicologia que se queira eficaz no seu processo de compreender a experincia humana funda-mental em sua insero no mundo da vida.Palavras-chave: Sentido; Fenomenologia; Intencionalidade; Husserl; Merleau-Ponty.