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revista de crítica literária e tradução ano i – número 1 – 2012 Tudo já foi dito Franz Kafka e Gonçalo Tavares, Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Bernardo Carvalho e Luis Miguel Nava, Julio Cortázar, Enrique Vila-Matas, Nuno Ramos, Paulo Henriques Britto Entrevistas com Stephen Harrison e Jacques Donguy Textos traduzidos de Christophe Tarkos e Paul Celan issn 2238-7013 Cma

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primeira edição da revista cisma – tudo já foi dito. revista da graduação da faculdade de letras da universidade de são paulo.

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r evista de cr ítica liter ár ia e tr adução

ano i – número 1 – 2012

Tudo já foi ditoFranz Kafka e Gonçalo Tavares,

Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Bernardo Carvalho e Luis Miguel Nava,

Julio Cortázar, Enrique Vila-Matas, Nuno Ramos, Paulo Henriques Britto

Entrevistas comStephen Harrison e Jacques Donguy

Textos traduzidos deChristophe Tarkos e Paul Celan

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revista de crítica literária e tradução

ano i – número 1 – 2012issn 2238-7013

CismaTudo já foi ditoFranz Kafka e Gonçalo Tavares,

Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Bernardo Carvalho e Luis

Miguel Nava, Julio Cortázar, Enrique Vila-Matas, Nuno

Ramos, Paulo Henriques Britto

Entrevistas comStephen Harrison e Jacques Donguy

Textos traduzidos deChristophe Tarkos e Paul Celan

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Sumário

Editorial ..................................................................................................... 4 Kafka e Tavares: notas sobre a barbárie civilizada – Maurício

Gomes ................................................................................................... 7 O mar homérico de Haroldo de Campos – Paulo Santana

Pereira ................................................................................................. 18O riso e a pornografia fabulosa de Hilda Hilst – Lilian Akemi

Chinem ............................................................................................ 28Nas dobras do texto – Lilian Honda .................................................. 34“Cheguei. Tarde, talvez, mas não tarde demais” – Aline Rocha .... 41O jazz na narrativa de Julio Cortázar – Carolina Pontes Rubira . 49O dito pelo não dito – Isabela de Vilhena Gaglianone .................... 58Junto ao Junco – Sofia Nestrovski ...........................................................63Entrevista – Stephen J. Harrison .......................................................... 72Entrevista – Jacques Donguy .................................................................. 78Tradução de “Osterqualm, flutend”, de Paul Celan – Walter

Solon .................................................................................................... 82Tradução de “Je ne suis pas loin de moi”, de Christophe Tarkos –

Mario Sagayama .............................................................................. 84Sobre os autores ........................................................................................ 87

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Editorial

a literatura é o que há de mais cotidiano para nós, membros da revista Cisma, a nova revista de crítica li-terária e tradução da graduação do curso de Letras da Universidade de São Paulo. A ideia de criar a Cisma surgiu pela combinação do nosso entusiasmo pela li-teratura, assim como nossa inquietação ao perceber que a crítica literária não ocupa mais um lugar ativo na vida das pessoas – é praticamente inexistente nas gran-des mídias e mesmo dentro do universo acadêmico di-ficilmente encontra espaço para alunos de graduação. Observamos que essa produção tem sido gerada e con-sumida cada vez mais por especialistas, o que acaba por encaminhar a área ao hermetismo. Que não nos enten-dam mal – não estamos pregando a ingenuidade de leituras despreparadas. Mas reivindicamos a ousadia e a sinceridade que a nossa posição enquanto alunos de graduação pode trazer.

A Cisma nasceu num curso que conta com mais de cinco mil alunos. O caminho que escolhemos dentro desse ambiente, é, como nosso nome propõe, o da insis-tência, da dúvida e, por que não, da provocação. Com isso em mente, queremos abrir portas e não fechar ain-da mais um espaço que já sofre de claustrofobia. Por isso, a importância dada à versão online da revista, que poderá ampliar o horizonte de leitores e expandir o al-cance da crítica literária realizada pelos nossos colegas. Nesse sentido, valorizamos o intercâmbio com outros

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departamentos da usp e outras universidades e quere-mos promover um diálogo com professores e pós-gra-duandos, assumindo também que ser uma revista aca-dêmica não exclui a comunicação com o mundo que fica além da universidade.

Dentro desta edição, tentamos dar conta, de al-gum modo, da diversidade nessa área. Desde a Antigui-dade, explorada em entrevista com o professor Stephen J. Harrison (Universidade de Oxford), até a poesia di-gital, assunto da nossa outra entrevista, realizada com o professor Jacques Donguy (Universidade de Sorbon-ne - Paris i). Além disso, temos a participação de uma de nossas editoras, Sofia Nestrovski, comentando Jun-co, de Nuno Ramos, livro recém-lançado e que estreia a seção Novíssimos, demonstrando nosso interesse em investigar a literatura feita hoje. A seção contará tam-bém com artigo de Aline Rocha sobre o livro Tarde, do poeta carioca Paulo Henriques Britto. Ainda dentro da literatura brasileira, esta edição traz o ensaio “O mar homérico de Haroldo de Campos”, de Paulo Santana Pereira, que explora o livro Galáxias. Lilian Akemi co-menta os limites entre o riso e a pornografia em O ca-derno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst. Lilian Hon-da cria uma ponte entre o brasileiro Bernardo Carvalho e o português Luis Miguel Nava em “Nas dobras do texto”. Outro português, Gonçalo Tavares, é assunto do ensaio “Kafka e Tavares: notas sobre a barbárie civiliza-da”, em leitura feita por Maurício Gomes. Partindo da literatura à música, Carolina Rubira aponta influências do jazz na obra de Cortázar. Por fim, Isabela de Vilhena Gaglianone analisa as relações entre a história da arte e a literatura de Enrique Vila-Matas. Esta edição contém ainda duas traduções: Walter Solon traduziu Paul Ce-lan e Mario Sagayama, Christophe Tarkos.

A escolha do tema desta edição, “Tudo já foi dito”, reflete um dos traumas mais frequentes na vida de um estudante de literatura. Quanto mais lemos, mais sen-timos que tudo já foi feito antes. Como prosseguir? A

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CismaidealizadoresSofia NestrovskiTiago Bentivoglio

orientaçãoProfa. Dra. Paula Corrêa (dlcv)

conselho docenteJorge de Almeida (dtllc)Lorenzo Mammì (Filosofia)Luiz Tatit (dl)Madalena Natsuko Hashimoto

Cordaro (dlo)Maria Augusta Fonseca (dtllc)Sandra Vasconcellos (dlm)Walter Garcia (ieb)Yudith Rosenbaum (dlcv)

2012ano 1 – número 1

editoresAdalton Orefice Jr.Carolina Silva MercêsDaiane Walker AraujoPatrícia Anette SchroederPricila Inácio MartinsSofia NestrovskiThiago Teixeira LopesTiago Bentivoglio

revisãoAdalton Orefice Jr.Carolina Silva MercêsDaiane Walker AraujoFlávia Renata Juliana de LacerdaGuilherme TauilPatrícia Anette SchroederPricila Inácio MartinsThiago Teixeira Lopes

diagramaçãoAlícia Toffani

imagem de capaSelene Alge, “Sem título”, 2010

divulgaçãoAdalton Orefice Jr.Guilherme TauilNatalia Martins

colaboradoresBruno TenanMario SagayamaVictor Buck

Cisma se move nessa questão e quer mostrar por onde uma nova leva de críticos tem se aventurado. Macedonio Fernandez, mentor de Jorge Luis Borges, já disse e nós repetimos:

“Tudo já foi escrito, tudo já foi dito, tudo já foi feito”, eis o que Deus ouviu. E ele ainda não criara o mundo, nem nada existia ainda. “Também isso já me disseram”, replicou, lá do velho e fendido Nada. E começou1.

Na lista de traumas de um estudioso de Letras, insere-se finalmente aquele de res-ponder à pergunta: “Letras? Mas o que você faz de verdade?”. E para isso também viemos nos posicionar. O que estamos fazendo, afi-nal? Estamos lendo, estamos pensando, esta-mos cismando.

Agradecemos aos professores Paula Cor-r êa, Samuel Titan Jr., Viviane Bosi e ao con-selho docente. A Victor Buck, pelo nosso pri-meiro cartaz. A Bruno Tenan e Alícia Toffani pelo projeto gráfico e pela diagramação desta edição. A Eduardo Lacerda e Aline Rocha, da Editora Patuá. Lilian Akemi, Andréa Catro-pa, Gabriela Kaufmann Sacchetto.

nota

1. Tudo e nada, trad. Sueli Barros Cassal, Imago, 1998.

universidade de são pauloreitor João Grandino Rodasvice-reitor Hélio Nogueira da Cruz

fflch-uspdiretora Profa. Dra. Sandra

Margarida Nitrinivice-diretor Prof. Dr. Modesto Florenzano

[email protected]

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Kafka e Tavares: notas sobre a barbárie civilizadaMaurício Gomes

pensar a modernidade sempre é, em alguma medida, defrontar--se com a barbárie: sua presença é verificada não apenas na quantidade de fatos catastróficos, mas também em seu substancial reflexo nas artes e no pensamento. Como explicar tamanho impacto na modernidade, tendo em vista que a barbárie pode ser considerada uma das maiores constantes da história humana? A resposta aponta, entre outras coisas, para o caráter assumido por esse conceito.

Desde a sua concepção no mundo grego, o conceito de barbárie foi entendido como o imediato oposto de civilização, portando con-sigo as marcas do irracional e do desumano. A partir do século xx, no entanto, a distinção clássica torna-se impossível: a barbárie passa a atuar como integrante do mundo civilizado, sendo controlada pelo Estado, legitimada por conceitos científicos e amparada pelo aparato técnico mais desenvolvido. Em outras palavras, pensar a modernidade é defrontar-se com a barbárie civilizada1.

O desenvolvimento paulatino dessa união de conceitos aparen-temente opostos está vinculado ao grande fracasso do esclarecimento, um dos pilares sobre os quais se erigiu o ocidente. Tal fracasso foi pos-to em termos teóricos por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer em Dialética do esclarecimento (2006), obra que, entre outros assun-tos, traça a história que vai da promessa de emancipação contida nas bases do esclarecimento até seu mais absoluto contrário: a coisificação do homem reduzido a algarismo.

Antes de sua formalização em termos teóricos, a barbárie civili-zada fora refletida ficcionalmente, e com maestria, na obra de Franz Kafka. Em sua novela Na colônia penal, o autor tcheco constrói um verdadeiro palco onde a razão impessoal assiste à brutalidade promo-vida pelo aparato técnico na punição de um soldado infrator. Kafka

CismaidealizadoresSofia NestrovskiTiago Bentivoglio

orientaçãoProfa. Dra. Paula Corrêa (dlcv)

conselho docenteJorge de Almeida (dtllc)Lorenzo Mammì (Filosofia)Luiz Tatit (dl)Madalena Natsuko Hashimoto

Cordaro (dlo)Maria Augusta Fonseca (dtllc)Sandra Vasconcellos (dlm)Walter Garcia (ieb)Yudith Rosenbaum (dlcv)

2012ano 1 – número 1

editoresAdalton Orefice Jr.Carolina Silva MercêsDaiane Walker AraujoPatrícia Anette SchroederPricila Inácio MartinsSofia NestrovskiThiago Teixeira LopesTiago Bentivoglio

revisãoAdalton Orefice Jr.Carolina Silva MercêsDaiane Walker AraujoFlávia Renata Juliana de LacerdaGuilherme TauilPatrícia Anette SchroederPricila Inácio MartinsThiago Teixeira Lopes

diagramaçãoAlícia Toffani

imagem de capaSelene Alge, “Sem título”, 2010

divulgaçãoAdalton Orefice Jr.Guilherme TauilNatalia Martins

colaboradoresBruno TenanMario SagayamaVictor Buck

universidade de são pauloreitor João Grandino Rodasvice-reitor Hélio Nogueira da Cruz

fflch-uspdiretora Profa. Dra. Sandra

Margarida Nitrinivice-diretor Prof. Dr. Modesto Florenzano

[email protected]

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parece diagnosticar a gênese do problema ao revelar que o avanço da barbárie está intimamente vinculado ao desenvolvimento de uma ra-cionalidade objetiva. A exatidão aplicada à tortura e a punição sem possibilidade de defesa, em meio à organização altamente racionali-zada da colônia, além de caracterizarem a barbárie civilizada, garan-tem ao texto um tom quase profético em relação aos campos de ex-termínio nazistas.

Seria, no entanto, falta de bom senso – pra não dizer ignorância – restringirmos esse tipo de barbárie à modernidade. A história que vivenciamos não pode ser separada da catástrofe e da barbárie civiliza-da2. A diferença entre nós e aqueles que nos precederam pode ser posta em termos de recepção, ou seja, a barbárie, em nossos dias, parece ter deixado de impressionar, banalizou-se e caminha cada vez mais rápi-do rumo à naturalização. Diante de tamanho risco, torna-se quase um imperativo retomar e expor o problema: é o que fez Gonçalo Tavares em sua tetralogia “O reino”.

Principal nome do quadro literário português contemporâneo, Tavares retoma em seus quatro romances vários aspectos das crises vivenciadas pela modernidade. Dentre esses, A máquina de Joseph Walser coloca-o em diálogo direto com as questões postas por Kafka. No romance em questão, um homem apaixonado por uma máqui-na mantém-se impessoal e refugia-se em sua racionalidade diante de uma guerra. Tavares parece reforçar a relação entre razão objetiva e barbárie, ao mesmo tempo que, ao fazer de Walser um colecionador, aponta para a importância da recordação desta como condição para sua superação.

Analisemos, então, a especificidade de cada obra para depois reali-zarmos o confronto e a reflexão mais apurada sobre o conceito de bar-bárie civilizada, com o auxílio da noção básica apresentada por Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento, quando afirmam que “com a difusão da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito é aclarado pelo sol da razão calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbárie” (adorno e horkheimer, 2006, p. 38). Atentemos também para o caráter de diagnóstico do texto de Kafka e para o de atualização do texto de Tavares.

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Kafka ou a inscrição bárbara na modernidade da razão

Poucos escritores da modernidade conjugaram em nível tão elevado a acuidade diante dos movimentos da sociedade e a capacidade de sua formalização em objeto artístico como o fez Franz Kafka. Prova dis-so é a novela Na colônia penal. Escrita alguns meses após o início da Primeira Guerra Mundial, a narrativa de Kafka aborda a sofisticação das formas de tortura e morte por meio da técnica, assim como a for-ma de pensamento que lhe serve de estrutura. O texto constrói-se em torno de uma máquina de punição muito peculiar; próximos a ela, um oficial, responsável pelo objeto, e um explorador estrangeiro, aparen-temente representando a razão de cunho humanitário, debatem a emi-nente punição de um soldado infrator.

Para refletirmos sobre a barbárie civilizada, vamos nos ater a três pontos: a forma da máquina, o motivo da punição e o caráter do julga-mento e, por fim, a postura do explorador ao fim da novela.

Sendo a máquina o verdadeiro objeto da narrativa, sua composi-ção e funcionalidade atravessam todo o relato e parecem dar o indício da subordinação do homem à técnica. A máquina de punição consti-tui-se de três partes sobrepostas, chamadas, respectivamente, de Leito, Rastelo e Desenhador. O condenado é posto sobre o Leito e tem sua sentença traçada no Desenhador; esta, por sua vez, é escrita nas costas do infrator pelo Rastelo. O mecanismo punitivo parece representar o desenvolvimento técnico concebido para o ato bárbaro, cada detalhe que o compõe é cuidadosamente pensado a fim de potencializar o so-frimento do condenado:

[...] o objetivo não é matar de imediato, mas em média num inter-valo de doze horas; a transição está calculada para a sexta hora. Muitos, muitos floreios rodeiam a escrita; a escrita propriamente dita envolve o corpo apenas em um filete estreito; todo o resto do corpo fica reservado aos ornamentos. [...] O rastelo começa a escrever; assim que a primeira inscri-ção estiver pronta nas costas do homem, a camada de algodão aos poucos vira o corpo de lado, para oferecer mais espaço ao rastelo. Enquanto isso, as partes feridas pela escrita entram em contato com o algodão, que graças ao

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tratamento especial estanca o sangramento no mesmo instante e prepara o condenado para uma inscrição mais profunda. Então, enquanto o corpo segue girando, as pontas na extremidade do rastelo retiram o algodão das feridas, deitam-no no fosso, e o rastelo volta a trabalhar. E assim vai escre-vendo cada vez mais fundo, por doze horas. (kafka, 2010, pp. 94-95)

O condenado atua como um simples álibi para que o aparato de tortura evidencie suas potencialidades, produzindo a barbárie com um deleite quase estético. Em outras palavras, o ser torna-se coisa, seu valor parece consistir em uma espécie de alimento à máquina. Nesse processo de reificação, reside a base da barbárie civilizada: o sujeito passa a ser tomado como instrumento.

No que tange à acusação e ao julgamento, o caráter autoritário e inquestionável do logos esclarecido evidencia-se em toda sua bruta-lidade. O soldado é acusado por não cumprir seu dever, que consiste em bater continência de duas em duas horas diante da porta de um oficial, tarefa amplamente justificada segundo a lógica das relações na Colônia Penal. O dever em questão é puramente alienado, sem outro propósito que não a mera afirmação de poder dos líderes da colônia. No momento em que o soldado deixa de cumprir sua tarefa, ele é ime-diatamente condenado, sem direito à defesa e sem mesmo saber sua pena: tudo sob a terrível premissa do Oficial “a culpa é indubitável” (Ibid., p. 88). No motivo da punição, evidencia-se a impossibilidade de rompimento com a naturalização do sujeito como coisa. O sol-dado deve servir aos seus superiores sem questionamento, por mais absurdas que sejam suas atribuições, e qualquer inadequação deve ser punida. Em seu julgamento, o soldado não possui o direito de defen-der-se, pois seu discurso iria necessariamente contra a lógica estabele-cida e, portanto, não pode ser levado em consideração.

Nos dois movimentos (motivo da punição e forma do julga-mento) pode-se perceber o caráter autoritário do esclarecimento: há uma estrutura preconcebida, “lógica”, com “papéis” preestabeleci-dos, na qual o sujeito deve atuar sem contrariedades. A não adequa-ção ao estatuto racional estabelecido faz com que o indivíduo deva ser suprimido. Kafka aponta para o esclarecimento enquanto legiti-mador de um pensamento totalizante que afirma o aprisionamento e o controle social como dados naturais e viabiliza a barbárie como arma punitiva.

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Se a relação entre a razão e a barbárie se torna já evidente diante da punição e da peculiaridade do aparato de tortura, ela é reforçada pela postura de negação do Explorador ao fim da novela. Mesmo reprovan-do diversas vezes o procedimento do Oficial, o que nos leva a atribuir--lhe certo caráter humanitário, o Explorador deixa a Colônia Penal sem permitir que os soldados, incluindo o condenado liberto, possam também fugir do regime no qual se encontravam. Diante da aparen-te ruptura entre o pensamento racional-humanitário do Explorador e a razão autoritária do Oficial, poderíamos pensar em um argumento otimista que contrabalançaria o texto de Kafka e apontaria para a su-peração da barbárie em sua simples negação. Contudo, a narrativa pa-rece apontar em direção oposta a uma solução simplista.

Pouco antes de partir, o Explorador adentra em uma taberna, onde estava enterrado o corpo do antigo comandante, inventor da Máquina. Na pedra que serve de lápide ao túmulo, consta a profecia que invalida a fuga do Explorador: “Aqui jaz o antigo comandante. Seus seguidores, que ora não ostentam nome algum, cavaram-lhe a se-pultura e puseram-lhe uma lápide. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, passado um certo número de anos, há de se erguer do túmulo e, a partir desta casa, conduzir seus seguidores à reconquista da Colônia Penal. Acreditai e esperai!” (Ibid., p. 124).

A inscrição torna clara a iminência do retorno da barbárie. A fuga do Explorador configura-se como uma catastrófica negação, posto que a não intervenção diante do quadro apresentado é condição necessá-ria para sua ampliação e fortalecimento. Somos apresentados, talvez, a mais perigosa das concessões da razão para com a barbárie: seu aparen-te esquecimento e consequente naturalização.

Se Kafka parece nos dizer que a barbárie deve ser combatida me-diante sua exposição e rememoração, temos em Gonçalo Tavares um bom exemplo de atualização das questões levantadas pelo autor tcheco.

Gonçalo Tavares ou o labirinto do homem racional

Rememorar e atualizar têm sido, até então, palavras de ordem na já vasta obra de Gonçalo Tavares. A retomada de aspectos e autores, em particular do século xx, aponta para a preocupação do autor por-

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tuguês em reformular questões sobre temas que seguidamente nos jul-gamos libertos. Esse é o caso do romance A máquina de Joseph Walser, o segundo da série “O reino”. No romance em questão, Tavares se co-loca em diálogo direto com a novela de Kafka, de modo que podemos pensar que o romancista faz das conclusões do autor tcheco elementos estruturais para a construção de seu protagonista.

Joseph Walser é funcionário de uma fábrica onde trabalha com uma máquina, a qual dedica um sentimento de quase louvação. Homem absolutamente encantado com a racionalidade objetiva, Walser busca permanecer neutro enquanto sua cidade natal é tomada por um exér-cito inimigo durante uma guerra. Além da máquina com a qual tra-balha, o personagem mantém uma insólita coleção de pequenas pe-ças metálicas, em um quarto trancado à chave. Se em Kafka as tensões narrativas estão divididas entre alguns personagens, na obra de Tavares elas se encontram todas sob a figura de Joseph Walser. Dessa maneira, a barbárie civilizada pode ser pensada a partir da figura de Walser e do sentido de sua coleção, ambos, de certa forma, indissociáveis.

Em quase todos os aspectos de sua personalidade, Joseph Walser atua sob o signo da racionalidade mais abstrata: sua forma de pensar o real ou mesmo os sentimentos humanos lança mão, a todo instante, de categorias formais e matematizáveis, únicas compreensíveis para o per-sonagem moldado segundo a razão3. Em seu anseio por uma espécie de pureza racional, Walser busca assemelhar-se às máquinas, em especial àquela com a qual trabalha, tentando afastar-se dos índices humanos que o compõem. É nessa aproximação à máquina que reside um dos paradoxos vividos por Walser, já apresentado em Kafka: a celebração do caráter exato da máquina, ao qual o personagem anseia, configura--se na ovação de seu próprio aprisionamento, onde o sujeito torna-se servo da máquina:

Era para ele claro em que ponto estavam as hierarquias das duas existências: a máquina era de uma hierarquia superior: poderia salvá-lo ou destruí-lo; poderia fazer com que sua vida se repetisse infinitamente, ou poderia, pelo contrário, de um momento para o outro, provocar uma alteração súbita em seus dias. (tavares, 2006, p. 22)

Mais do que a máquina, o verdadeiro algoz de Walser é a própria razão objetiva: é nela que o personagem procura refúgio diante do ab-

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surdo da guerra e de suas humilhações diárias, aflições que são justa-mente por ela legitimadas. Esse refúgio está figurado sob a forma de sua coleção de peças metálicas, que reflete em si a dualidade homem--técnica presente na personalidade de Walser.

Servindo como um universo artificial onde tudo está em ordem e pode ser racionalmente descrito, a coleção de Walser é uma barreira ilusória, ao mesmo tempo que, até certo ponto, é autêntica diante da barbárie civilizada. Ilusória, porque evidencia o sujeito completamente dominado pela técnica, sem possibilidade de fazer qualquer coisa que dela se afaste, de modo que, se o absurdo da guerra é fruto da Razão, a coleção de Walser, sendo um verdadeiro monumento à racionalidade objetiva, lança o personagem em situação de total desamparo, corren-do em círculos diante da relação Razão-Absurdo que não pode com-preender. Porém, sua coleção é autêntica na medida em que é motivada por elementos impossíveis à máquina: a consciência do devir e a bus-ca pela individualidade, últimas instâncias humanas de Walser: “[…] mas a sua coleção constituía a verdadeira marca indivídual que Joseph Walser sentia estar a deixar no mundo. Uma marca única, não copiável; ninguém tinha uma coleção como aquela” (Ibid., p. 87).

Esse esforço humano só é possível por meio de fragmentos da técnica, ou melhor, da barbárie, única linguagem concebível para o indivíduo falar até mesmo de si. A coleção é, antes de mais nada, a prova de uma curiosa impossibilidade, pois Walser, ao buscar cons-truir sua individualidade como homem, não o pode fazer senão por meio da máquina e da técnica. Ao mesmo tempo, sua coleção serve como uma espécie de testemunho dessa impossibilidade e inventário da barbárie civilizada, já que o personagem registra com cuidado as situações nas quais encontrou suas peças. Se Walser, com sua coleção, evidencia a prisão na racionalidade, promove, também, a capacidade de rememoração de seu contexto bárbaro4: é nessa dialética que reside um grande acerto de Gonçalo Tavares em sua reflexão a respeito da barbárie civilizada.

Joseph Walser se mantém até o fim da narrativa andando no la-birinto da objetividade e, em cada avanço que julga realizar rumo à racionalidade absoluta, defronta-se, sem que perceba, com a barbárie mais acentuada, fato que o torna não um covarde, como afirmam al-guns5, mas sim um sujeito em total desamparo e ignorância. Isso fica evidente em uma passagem que serve quase como síntese da obra:

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Não tinha sequer uma pistola, mas eliminara a grande fraqueza da existência, fizera desaparecer a primária fragilidade da espécie: não possuía qualquer inclinação para o amor ou para a amizade! E nesse mo-mento, a caminhar em plena rua, desarmado, observando de cima os seus sapatos castanhos, velhos, sapatos irresponsáveis como troçava Klober, nesse mesmo momento Walser sentia-se tão seguro – e ao mesmo tempo ameaçador – como se avançasse dentro de um tanque pela rua. Porém, subitamente, deu um salto para o lado. Quase pisara uma massa alta. Era um homem. E estava morto. (Ibid., pp. 143-144\)

Walser celebra sua desumanização e avança, julgando-se protegi-do pela racionalidade; contudo, sua marcha é interrompida pelo corpo de um homem fuzilado. A cena, assim como a situação do persona-gem, descreve com precisão o absurdo da barbárie civilizada: homens--máquina avançam, guiados pelo logos, por sobre os corpos e destroços deixados pela racionalidade objetiva embasada no progresso.

O confronto e algumas de suas conclusões

Como já podemos notar, em muitos aspectos é possível traçar um diá-logo entre Kafka e Gonçalo Tavares a partir da questão da barbárie civilizada. Contudo, essa relação deve ser pensada em termos de con-tinuidade de problemática, atentando-se, também, às distinções sig-nificativas entre ambos os respectivos textos. Dentre essas, destaca-se como determinante o elemento centralizador de cada narrativa.

Em Kafka, a ênfase narrativa recai sobre a máquina, com a por-menorização de seus mecanismos, elevando-a ao estatuto de objeto quase religioso para, com isso, evidenciar a degradação do valor hu-mano. Contudo, o texto kafkiano realiza um movimento através do qual, lentamente, é possível percebermos a culpabilização dos sujeitos por trás do maquinário. Parece ser este o ponto de partida de Gonçalo Tavares. No romance do autor português, a ênfase narrativa se dá, sobretudo, na figura de Joseph Walser, sendo que a guerra, momen-to em que a barbárie civilizada ocorre com mais ímpeto, permanece como um pano de fundo para auxiliar na problematização do perso-nagem. Se há em Kafka a descrição minuciosa do aparato de tortu-ra, em Tavares ocorre o aprofundamento paulatino da exposição do

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caráter de Walser e de suas formas de postar-se no mundo, buscando realizar, como já apontara Kafka, a reflexão das estruturas sociais e de pensamento que afirmam a barbárie civilizada. Pondo-se a pensar a barbárie civilizada, e mesmo expondo detidamente sua brutalidade, os textos de Kafka e Gonçalo Tavares enfatizam duas questões essenciais na configuração da nova barbárie: a instrumentalização dos sujeitos e o caráter aparentemente intransponível e autoritário de uma estrutura social racional-objetiva apriorística.

Tal qual o Oficial que atua como sacerdote do aparelho de tor-tura, sendo por ele destruído ao fim da novela, Joseph Walser tem sua consciência e humanidade tolhidas pela técnica, fato que toma forma clara na amputação de seu dedo enquanto trabalhava em sua máquina. Nas duas narrativas, sobressai a instrumentalização humana: sujeitos feitos verdadeiros escravos de seus aparatos de trabalho. Contudo, ao mesmo tempo que são subservientes ao aparato técnico, os persona-gens nutrem sentimentos de louvação diante dele. Quanto a isso, afir-mam Adorno e Horkheimer: “Desaparecendo diante do aparelho a que serve, o indivíduo se vê, ao mesmo tempo, melhor do que nunca provido por ele.” (adorno e horkheimer, 2006, p. 14).

Esse duplo caráter da relação homem-técnica, de manutenção e supressão da existência, que revela sujeitos escravizados pelas conquis-tas de sua racionalidade, cria um efeito cíclico, aparentemente inexo-rável, no qual se percebe o resultado da racionalidade orientada unica-mente para o progresso:

Por outro lado, a adaptação ao poder do progresso envolve o pro-gresso do poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas que mostram que não é o malogro do progresso, mas exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A maldição do progres-so irrefreável é a irrefreável regressão. (Ibid., p. 41)

Igualmente inexorável parece ser o autoritarismo imposto pela racionalidade esclarecida, fato elucidado no “crime” do soldado infra-tor e na coleção de Walser. Como já dito acima, o soldado da Colônia Penal é obrigado a realizar sua função alienada sem possibilidades de recusa e, quando o faz, motivo pelo qual será punido, não possui chan-ce de defesa diante do sistema solidamente estruturado, no qual reina uma lógica aparentemente clara que condena todo aquele que nela não

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se insira. Da mesma forma, a coleção de Walser atua como atestado da incapacidade de romper totalmente com os padrões da racionalidade objetiva e abstrata, embora, como vimos, haja em sua coleção um im-portante movimento dialético. Em ambos avulta o totalitarismo es-clarecido que naturaliza o quadro de dominação dos sujeitos. A esse respeito afirmam Adorno e Horkheimer:

Pois o esclarecimento é totalitário como qualquer outro sistema. Sua inverdade não está naquilo que seus inimigos românticos sempre lhe cen-suraram: o método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo está decidido de antemão. (Ibid., p. 32).

Diante da revelação e do questionamento das estruturas essen-ciais da barbárie civilizada, resta ainda a postura de ruptura ou reme-moração, posições que novamente diferem, mas acentuam o possível diálogo entre as duas narrativas. Kafka, com a aparente ruptura en-tre razão e barbárie, formaliza trágica e melancolicamente o problema diante da autodestruição do esclarecimento ainda cego por seus pos-síveis e falaciosos resultados, mas deixa antever uma possível solução em seu imediato oposto: a rememoração e o reconhecimento da bar-bárie civilizada enquanto elemento resultante dessa relação. Gonçalo Tavares, ao fazer de sua personagem um colecionador, complexifica as possibilidades do sujeito em meio à barbárie moderna e o faz realizar um ato de rememoração que, curiosamente, afirma seu aprisionamen-to na racionalidade, trazendo à tona um problema pretensamente su-perado pela sociedade contemporânea desmemoriada.

Em suma, entre a necessidade da percepção e o imperativo do re-memorar, dá-se a relação entre Kafka e Gonçalo Tavares. Seu possível diálogo atesta para o fato de que, entre o diagnóstico do primeiro e a atualização do segundo, com distanciamento histórico de quase um século, caminha a barbárie civilizada, assim como as estruturas cada vez mais racionalizadas que a alimentam. É preciso problematizá-la e repensá-la, não permitindo que ela perdure através de uma ignorância a seu respeito, ou estaremos nos colocando calmamente e com entu-siasmo sob o julgo bárbaro de sua inscrição metálica.

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Notas

1. O conceito de barbárie civilizada será aqui empregado tendo por base Michael Löwy, em Barbárie e modernidade no século xx. Conforme o autor, “[…] com o século xx, um limite é transgredido, passa-se a um nível superior; a diferença é qualitativa. Trata-se de uma barbárie especificamente moderna, do ponto de vista de seu etos, de sua ideo-logia, de seus meios, de sua estrutura”.

2. Dentre os muitos exemplos possíveis, basta que pensemos na política externa norte-americana.

3. Com bastante frequência é mencionado o desleixo com que Joseph Walser mantinha suas roupas. Tal desleixo, como podemos notar, vem de seu total desinteresse pelo exterior, fato que reforça seu ca-ráter abstrato.

4. Quanto ao caráter dialético e rememorativo da coleção, nos diz Benjamin: “[…] a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem. […] Tudo o que é lembrado, pensado, conscientizado, torna-se alicerce, moldura, pedestal, fecho de seus pertences (do colecionador). A época, a região, a arte, o dono anterior – para o verdadeiro colecionador todos esses detalhes se so-mam para formar uma enciclopédia mágica […]” (benjamin, 2004, p. 228). A postura descrita por Benjamin é exatamente a de Walser com relação a sua coleção.

5. Em diversos escritos encontrados na internet se lê tal acusação ao personagem de Gonçalo Tavares. Contudo, como é possível acusar Joseph Walser de covardia se não há, de fato, possibilidades para a co-ragem? O foco nessa impossibilidade parece ser muito mais frutífero à análise do que um simplório juízo de valores.

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a sombra da apatia paira sobre a literatura destes dias e, consequen-temente, sobre as cabeças de seus críticos e leitores precavidos. Estaria ela exausta? Essa possibilidade do seu esgotamento, a ideia de que to-dos os temas e expressões possíveis já teriam sido experimentados, en-fim, a ideia de que tudo já foi dito, questiona o fazer literário em si e quais seriam seus limites.

Entretanto, note-se que a literatura é, por excelência, o resultado de uma enorme teia de relações formada entre autores e leitores. E como estes podem pertencer a diferentes culturas e línguas e a diversos mo-mentos históricos, a literatura adquire um caráter fundamentalmente permutável, já que todo escritor é, pelo menos de início, um leitor: an-tes de escrever ele necessitará ter travado algum contato, por menor que seja, com expressões literárias que tenham antecedido-o. Isso quer dizer que no oceano das letras sempre parte-se de um porto conhecido, mes-mo que para lançar-se a “mares nunca dantes navegados”.

E é justamente o fato de haver uma tradição que coloca uma ques-tão básica para o artista: a de como posicionar-se com relação à mes-ma, uma vez que o trabalho artístico relaciona-se com tudo o que já foi realizado antes, de modo a ser dimensionado em maior ou menor grau de proximidade ou afastamento com relação à produção até en-tão existente. E, sendo esse posicionamento inevitável, ele será perce-bido no trabalho do artista, que introduzirá em sua obra, consciente ou inconscientemente, índices de sua postura frente a esse problema, pois, quanto à tradição, o artista terá, com maior ou menor intensida-de, uma conduta reprodutora ou uma conduta inovadora.

Deste modo, a obra de arte pode apresentar-se: submissa à tradi-ção, por julgar-se incapaz de superá-la, como, por exemplo, mostra-se

O mar homérico de Haroldo de Campos

Paulo Santana Pereira

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a literatura do classicismo, que via na arte clássica parâmetros incor-ruptíveis e, portanto, insuperáveis para a expressão poética; revolucio-nária, como a poesia moderna de vanguarda, que desprezou o enges-samento do habitual e buscou a inovação, e, não raro, intentou pôr abaixo a tradição, por julgá-la inexpressiva; ou harmônica, unindo o que já foi dito a processos inovadores, compreendendo a literatura sob uma perspectiva sincrônica – valendo-se dela como referencial –, mas sem acorrentar-se a ela, explorando-a e revisitando-a com olhar admi-rativo, porém crítico.

Encontro a criação poética de configuração harmônica quanto à tradição exemplarmente representada na obra de Haroldo de Campos. Assim, demonstrando como tal procedimento desenvolve-se, analiso aqui uma poesia do referido autor, interpretando os processos estéti-cos aplicados por ele em sua escrita, detendo-me especificamente no texto – originalmente sem título delimitado – “multitudinous seas”, da obra Galáxias.

Nesse livro, Haroldo de Campos exibe com minúcia seu cuidado-so e artesanal trabalho com o verbo e expõe toda uma nova face de sua poesia: a de estética neobarroca.

O senso comum, quando muito, conhece Haroldo apenas por sua poesia concreta, uma enorme injustiça, como explica Jacó Guinsburg:

[…] Restringir o autor de Galáxias, de Xadrez de Estrelas, de A Educação dos Cinco Sentidos, de Finismundo ou de A Máquina do Mundo Repensada à letra stricto sensu dos manifestos concretistas, cons-titui um apequenamento, no mínimo míope, de sua envergadura. Não que alguns dos princípios formulados ou explicitados desta poética não ti-vessem sido retomados e operados por ele ao longo de toda a sua obra, mas se os operou de um modo sistemático, não se deixou enrijecer pelo forma-lismo que tantos pretendiam imputar-lhe. Ao contrário, o que distingue o seu estro de um modo muito especial é a amplitude de seu arco temático e, mais ainda, o fecundo poder criativo que lhe permitiu aplicar os seus procedimentos de maneira singularmente inventiva em um sem-número de soluções originais e inovadoras na dicção poética e na sua cristalização escritural. (guinsburg, 2005, p. 17).

Grande poeta, tradutor, crítico, pensador das letras e criador de uma obra imensa, Haroldo de Campos transita por muitos gêneros lite-

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rários e artísticos e guarda em sua própria filosofia composicional diver-sos procedimentos oriundos das várias esferas de sua atuação no mun-do literário. De modo que, no texto criativo haroldiano, não se excluem estratégias de tradução e/ou de crítica, uma vez que para ele essas táti-cas de manuseio do texto apenas enriquecem o labor verbal. Portanto, quando Galáxias pronuncia-se de maneira tão distante daquela dos poemas concretos da década de 1960, não se trata da negação de uma poética pela outra. Trata-se da adição de uma nova forma para o dizer poético. Contudo, para o presente artigo, detenho-me nas Galáxias, sem alongar-me sobre as outras estéticas de Haroldo de Campos.

Galáxias é produto de uma construção de muitos anos e mui-tas influências, mas entendo que a principal fonte de inspiração, a cé-lula tronco desse trabalho, é a genial e revolucionária autoridade de Stéphane Mallarmé.

Dado que as Galáxias têm por epígrafe uma citação mallarmaica, Haroldo deixa claro que filia seu livro à visão de poesia do mestre fran-cês. Além disso, a constituição interna da obra revela a proximidade entre seu livro e o revolucionário poema Un coup de dés. Isso porque ele é o pai da modernidade, pois, como define Augusto de Campos, “Mallarmé é, precisamente, o ponto extremo de consciencialização da crise do verso e da linguagem” (campos, 1974, p. 25), sobretudo por-que, como ainda explica Augusto, a poética fundada com Um lance de dados volta-se para o estudo e a valorização da estrutura do poema, valorização esta também importantíssima para Haroldo de Campos.

Ora, Mallarmé, com Un coup de dés, estabelece uma nova poesia, despregada de constituintes tradicionais, como o verso, por exemplo. Ele explora espaços e técnicas jamais experimentados antes e, assim, quebra a espinha dorsal do poema, entortando-o ao ponto de deixá-lo irreconhecível. N’Um lance de dados, as palavras estão soltas e boiam sobre a página, representando os restos do naufrágio que narram. Os versos ficam fraturados, sem ordem racional ou organização cartesiana e, consequentemente, a leitura adentra o terreno da sugestão e não o da determinação. Esse procedimento tira do autor o poder sobre o verso e dá ao espectador o papel de construir o poema no momento em que ele é visualizado. Esse projeto estético que privilegia a estrutura, diz Augusto de Campos, finda as “noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo”; e o crítico reitera: “trata-se de um novo conceito de forma – uma organoforma” (Ibid., p. 23).

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Como pontua Faleiros, num artigo em que analisa os procedi-mentos tradutológicos criados por Haroldo de Campos para a ela-boração d’Um lance de dados: “Em Galáxias já se encontra o germe da leitura haroldiana de Mallarmé, em forma mais livre e fermenta-da” (faleiros, 2008, p. 4). Assim, a poesia de Haroldo, em sua face concretista ou naquela de Galáxias, mostra-se também interessada em reinventar modos de expressar-se e vale-se, não raro, desse méto-do mallarcaico para compor. Por isso o próprio Haroldo de Campos explicita, num texto escrito à guisa de suplemento de Galáxias, que informações geralmente não notadas pelo leitor, como a matéria sub-jetiva do texto, o número de folhas e páginas do volume, a dimensão dessas páginas, o tamanho das linhas, os brancos e vazios no papel, são, na verdade, fatores de alta relevância para a leitura, uma vez que esses dados intermedeiam o contato entre texto e leitor.

Quanto ao seu aspecto formal, Galáxias assemelha-se em muitos pontos com Un coup de dés, visto que as Galáxias constituem-se de enormes logoi que ocupam todos os cantos da página. Não se definem entre prosa e poesia – o que faz com que Caetano Veloso nomeie-as proesias –, não possuem acentuação gráfica, indicação de título, nume-ração ou quaisquer outros guias de leitura; o texto flui sem evidenciar--se. Contudo, o processo de leitura dos poemas haroldianos não é con-duzido pela sugestão randômica presente no Lance de dados. E a razão para isso está na alma dos dois projetos, e no que os diferencia.

Quando Mallarmé põe a pique a literatura tradicional, ele decreta a aleatoriedade da poesia e a total perda de controle do homem sobre a arte. Como indicado por ele na metáfora dos dados: para lançar um dado, alguém exerce a ação de atirá-lo; como usa seu corpo para tal movimento, o jogador experimenta radicalmente a sensação de con-trole ao segurá-lo e, em seguida, vivencia a perda abrupta, devido à multiplicidade dos possíveis resultados. Mallarmé lança tudo ao azar.

Porém as proesias haroldianas de Galáxias não contam com o aca-so, ou com a leitura fortuita, para sua compreensão. Ao ler as Galáxias, entendo que Haroldo de Campos evoca Um lance de dados, mas ressig-nifica-o. De início, ele opõe as imagens de destruição, morte e finitude do naufrágio mallarmaico à ideia de eternidade, presente no conceito de galáxia; opõe o alto e o baixo do cosmos e do mar. E se se leva em conta a comparação entre o ato de jogar dados e a observação astronô-mica, percebe-se que as possibilidades de combinação dos números no

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jogo de azar são, de fato, muitas, porém calculáveis, previsíveis e finitas. Entretanto, o espaço constelar é, realmente, infinito, incalculável e de impossível delimitação. Ao estudar os astros, o observador trava conta-to com uma linguagem estranha à sua, que estabelece relações próprias e que está infinitamente distante dessa outra, mas que, ao mesmo tem-po, não é uma linguagem eventual ou despropositada. N’Un coup de dés, o leitor junta cacos de um objeto já conhecido, porém estilhaçado; em Galáxias, o leitor tenta formar imagens unindo os pontos das estre-las, lendo palavras escritas com o misterioso brilho dos astros.

Quando Haroldo coloca sua poesia sobre o plano de fundo ga-láctico, ele afirma que a palavra é a estrela de seu trabalho artístico, e que o verbo tem o poder celestial de elevação e a capacidade de impor--se à ruína. Mais do que reavivar o poema de Mallarmé, Haroldo de Campos reverte-o.

Porém, se Galáxias se calca na modernidade de Mallarmé, como sua edificação poderia ser harmoniosa para com a tradição? As primei-ras palavras do poema “multitudinous seas”, aqui analisado, provam que esse acordo entre clássico e moderno é possível, isso porque Haroldo de Campos rompe com o tradicionalismo, mas não rejeita a tradição.

Essa poesia inicia-se com um verso da famosa “peça escocesa”. Como procurarei mostrar, o fato de Macbeth ser uma tragédia e o fato de Haroldo ter escolhido uma cena tão sinistra para o começo desse texto tem uma importância cabal na compreensão do todo dessa poe-sia, mas, primeiramente, ressaltarei uma informação mais sutil.

Se minha proposição acerca do caráter harmônico da obra harol-diana estiver correta, a citação de Shakespeare no primeiro elemento da poesia converge para a defesa de minha hipótese. Isso porque as tragédias do maior dramaturgo inglês são, necessariamente, concilia-doras em seu procedimento. Pois, enquanto o teatro shakespeariano respeita as premissas aristotélicas sobre o tom dos caracteres, a mani-festação do verso e as regras de verossimilhança, ele introduz em sua apresentação diversos elementos (pré-)românticos, como, por exem-plo, a violação das regras quanto ao espaço e ao tempo representados – que deveriam coincidir com o tempo de duração do espetáculo e com o espaço no qual era dramatizado. Assim, as tragédias de Shakespeare têm como heróis figuras elevadas da nobreza, e sua fala é representada pelo verso mais elevado e complexo. Todavia, suas cenas intercalam--se dinamicamente em diversos lugares, em diferentes castelos e cida-

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des, por exemplo, e até mesmo em países diferentes, e o tempo de sua ação não é previamente limitado, o que faz com que os roteiros de Shakespeare retratem, até mesmo, o período de muitos anos.

Ademais, no que se refere à linguagem, o autor britânico enrique-ce seu idioma materno através de empréstimos do francês e do latim, e de recriações baseadas nessas línguas. No plano temático, Macbeth representa o índice da mistura: assimila a um tema contemporâneo a si – o das disputas políticas dos Estados monárquicos da Europa do Norte – o folclore da cultura céltico-germânica, representado pela figura das Irmãs Sinistras, como informa Péricles da Silva Ramos (shakespear e, 1966, pp. 7-27); a tradição clássica, relatada pelas dei-dades latinas Hécate e Netuno; e o mundo cristão, que é constante-mente lembrado, tanto através de menções ao divino, quanto ao diabo. É por isso que entendo uma proximidade entre as galáxias haroldianas e os conceitos do drama shakespeariano, já que ambos tratam de um tema clássico de maneira revolucionária.

Voltando à poesia em questão, lembro que o seu objeto é o mar. Mais colado à frase “multitudinous seas incarnadine”, analiso como essa citação inscreve-se no conjunto do qual faz parte. Como a primei-ra grande imagem apresentada, ela expõe o assunto dessa proesia e ex-plicita que Haroldo propõe, por meio dela, a introdução dos temas: a mistura de gêneros e vozes; o fazer literário; e a relação entre os signos de natureza, os de vida e os de morte.

Apesar deste estudo não comportar espaço o bastante para uma análise microscópica do poema, levanto agora alguns de seus “versos” mais importantes.

Após invocar as águas encarnadas, o poeta deflagra o semblante ambíguo do mar. Haroldo descreve-o como “oco e regougo”, é vazio e gritante; o mar é “multitudinário” e “farinha de água”, ele é matéria extensa e imponente e produto macerado e diminuído concomitante-mente; “seas incarnadine” e “óinopa pónton”, como visto acima, trata--se do verso shakespeariano e da fórmula recorrente de Homero para delinear a cor de vinho das águas; figuras e línguas, tradicionalmente distantes, são unidas pela palavra. O vinho, fruto do trabalho e em-penho do homem, é visto como matéria semelhante ao sangue, que é conhecido apenas graças à violência de golpe ou desentendimento. Tudo isso permeado pela incidência da luz solar e o efeito do vento; sendo que a ideia principal que se deve guardar da aproximação dessas

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imagens é o fato de não haver oposição: elas são fundidas como parte de uma ordem natural. Elas são cores diferentes de uma única asa da natureza, “iris nuntia junonis”, o arco-íris; Íris, mensageira de Juno, se-gundo as Metamorfoses, de Ovídio. Esse segundo momento, do mar observado como uno e múltiplo, é seguido por uma torrente de des-crições das águas. Tal período dessa galáxia tem um ritmo bem marca-do, ditado pela imposição sistemática da adversativa “mas”. É como se Haroldo quisesse reforçar a ideia citada acima, de seu caráter incons-tante, da ambiguidade recorrente das águas, pois uma imagem sobre-põe-se à outra sem intervalos; o poeta desvela uma imagem e cobre-a em seguida. Nessa parte do poema, o “tempo” é “abolido” e “poliflui” como um “livro que se folha e refolha” constantemente.

As imagens principiam sua aparição através da nomeação de uma cor, mas não segundo os padrões humanos; as cores são analisadas sob o prisma natural. Assim, tem-se os tons identificados com a natureza: “o verde flore”, o “azul é roxo é púrpura é iodo”, é o “verde infestado de azuis e súlfur e pérola, roxoamarelo pus, negro como pele de fera” etc. O mar “dobra e desdobra nele pele sob pele pli selon pli”; os matizes do mar cambiam-se como as notas e os acordes de uma composição vanguardista: tal a obra Pli selon pli, de Pierre Boulez, maestro francês que aplicou e desenvolveu, na música, conceitos da obra de Mallarmé.

É constante a justaposição de uma imagem expansiva e uma ima-gem constritiva do mar: “maroceano soprando espondeus homéreos como uma verde bexiga de plástico”, o oceano tem, simultaneamente, a feição do mais refinado e solene verso da alta poesia clássica e o aspecto de um dos objetos mais vulgares e corriqueiros. E de modo semelhan-te: “de novo recolhe sua safra de verdes como se águas fossem redes e sua ceifa de azuis como se um fosse plus fosse dois fosse três fosse mil verdes vezes verde”; o esplendor da multiplicidade da gradação das águas, que tem a infinidade dos numerais, é também visto como uma simples rede, um instrumento cotidiano do trabalho; juntas, uma ima-gem completa a outra.

Tal exuberância descritiva e imagética é a própria característica do neobarroco haroldiano. Esse efeito de engrandecimento da expres-são linguística, uma verdadeira paixão pela palavra, é resultado de um trabalho profundo e consciente da poesia, de sua forma e de seu con-teúdo, inseparáveis no momento da concretização de sua leitura. Para unir campos semânticos de natureza distinta, o poeta utiliza a estrutu-

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ra fônica interna dos signos, explorando-a até as ultimas consequên-cias. Para explorar, delimitar e reforçar o sentido das palavras escolhi-das por ele, Haroldo de Campos usa e abusa de suas estruturas formais, proporcionando a aproximação de som e sentido, como faz entre ima-gens distantes. Vê-se tal processo constantemente em “multitudinous seas”, como no trecho “o oceano oco e regougo a proa abrindo um sul-co a polpa deixando um sulco”, no qual o som “ô” responde aos adje-tivos “oco” e “regougo”, soando fundo e secamente e repercutindo nas outras palavras. Ou na seguinte sequência: “como uma vulva violeta a turva vulva violeta do oceano”, na qual se observa o uso intensivo da consoante fricativa vozeada “v”, funcionando como um elo entre as palavras e como onomatopeia do movimento do navio que perfura a superfície das águas. Em outras séries como “pus de sumo e polpa e vurmo e goma e mel e fel”: as vogais “u” e “é” são destacadas de dentro das palavras, para que essas saltem de seu lugar de conforto e apresen-tem-se vivamente ao leitor. Entre outras tantas aliterações: “placenta plácida”, “estrelas extremas”, “aquário equóreo” etc.; e assonâncias cons-tituintes do poema: “salsugem e de marugem de negrugem e de ferru-gem, o mar remora demora na hora, músculos lúbricos” etc. Também a morfologia das palavras é explorada e usada para desenvolver e sus-citar significados, como se observa em: “a hora poliflui no azul verde e discorre e recorre e corre e entrecorre”; e em: “esse livro que se folha e refolha que dobra e desdobra”; ou em: “mar recomeçado e recome-çando”. Nota-se que a questão da forma do texto reforça a ideia de con-tinuidade do mar, pois, apesar de sua fisionomia mudar sempre, ela é sempre a mesma: “mar marcado e vário murchado e flóreo”.

Aceitar essa ambiguidade é impossível para o homem, como “multitudinous seas” defende. Haroldo exibe a dificuldade que temos em compreender a natureza às linhas finais do texto: “se eu lhe disser que o mar começa você dirá que ele cessa se eu lhe disser que ele avança você dirá que ele cansa se eu lhe disser que ele fala você dirá que ele cala e tudo será o mar e nada será o mar”. O autor mostra que, sem poder explicar a existência dúbia do mar, o ser humano cai na discussão tor-pe e insensata, no diálogo que gira em círculos, sem perceber sua pe-quenez e insignificância, encaminhando-se ao absurdo da negação do objeto de sua reflexão; já que, para perscrutar a ordem universal – de natureza aglutinante e perfeitamente cíclica –, o homem tenta impor--lhe sua visão de mundo – de caráter predominantemente dicotômico.

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“Multitudinous seas” ainda revela a autoconsciência na literatu-ra de Haroldo de Campos. Nessa poesia, são muitas as alusões à escri-ta da poesia. Galáxias é um “livro polilendo-se polilido”; é um livro que atravessa a literatura como se atravessa o mar: parte de Homero, cru za-se com Ovídio, cita Shakespeare, conversa com Mallarmé e en-contra-se consigo mesmo no momento em que é constituído, tornan-do-se metaliteratura. Ele vale-se da literatura já existente para analisar seus pressupostos e estabelecer novos paradigmas, ressignificando-os: “mas o mar é-se como o aberto de um livro aberto e esse aberto é o li-vro que ao mar reverte e o mar converte”.

Mas essa poesia haroldiana ainda quer mais. Pois ela encerra-se com o vocábulo “polúphloisbos”, traduzido como “polissonoro” pelo próprio Haroldo de Campos. Essa palavra, retirada de Homero, está posta em oposição ao verso inicial, retirado de Shakespeare. Ao con-frontar a tragédia e a epopeia, Haroldo euforiza essa segunda, optando pelos signos de vida e glória que ela carrega, em detrimento daqueles de ruína e terror. Pois, no contexto da Ilíada, a morte, ou o fim, não é um desastre ou uma deterioração, como representada n’A tragédia de Macbeth. Isso porque, em Homero, a ação do homem, no caso, a ação de escolha, é digna de ser rememorada, uma vez que Aquiles, o herói da epopeia, prefere a morte no auge da juventude, para que seu nome seja digno de memória e honra, ao invés de ter uma vida longeva e inglória; para o ideário grego, a continuidade deflagrada por “polú-phloisbós” não é a mesma da “eternidade” cristã, mas é a promessa do encerramento de uma etapa de um ciclo para o início de outra, com todo o mérito da viagem finda e a satisfação do dever cumprido. Já em Macbeth, a ação do homem é desastrosa; o simples toque de suas mãos poluídas de culpa converteria os mares em provas de seu crime, trans-mitindo-lhes seu horror. Além disso, a diferença entre os mares encar-nados e as praias polissoantes guarda outro dado importante quanto ao poder de escolha do homem, pois Macbeth está inexoravelmente destinado à destruição, enquanto que Aquiles, homem exemplar, pode decidir o seu destino e faz uma opção pela glória.

No contexto de “multitudinous seas”, Haroldo de Campos pa-rece querer dizer que, malgrado o fato da poesia acabar, resta a espe-rança da memória: o ressoar. Assim, o poema e seu assunto encerram seu espaço junto com o fim da folha, com sua última palavra impressa. Contudo, como procurei expor, trata-se de um encerramento físico,

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pois o poem a, assim como o mar, está limitado às orlas (da praia ou da página), mas repercute cada vez mais forte. Na medida em que o espectador se afasta, sua memória impregna-se dele e repercute-o poli-fluentemente, sem exaurir-se. É quando ressoa, nas mãos da crítica ou na cabeça do leitor, que a obra de arte verdadeiramente se inicia, pois é desse modo que ela crava seu lugar no mundo: desdobrando-se em novas significações, revivendo problemas antigos, provocando novas expressões artísticas e suscitando dúvidas nunca antes pensadas.

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“Se rires, é porque estás com medo.”Georges Bataille, Madame Edwarda

não é de se estranhar que a recepção do livro O caderno rosa de Lori Lamby, de Hilda Hilst, seja, por diversas vezes, exaltada, negati-va e incompreendida. Percebe-se claramente que não se trata de uma escrita qualquer, destinada a uma leitura de prazer descompromissado e tranquilo. O seu alto grau de experimentação com diferentes uni-versos e linguagens, as citações literárias e filosóficas, a miscelânea de gêneros, o tom baixo e debochado, o bombardeio de imagens sexuais explícitas e detalhadas podem, numa leitura desprevenida, assustar, principalmente quando tudo isso se encontra aliado ao imaginário de uma personagem central que possui apenas oito anos de idade.

Uma das reações frequentes perante o contato com esse cader-no rosa é, porém, o riso. Algumas vezes, parece impossível controlar o impulso de, pelo menos, sorrir desconcertadamente ao passar pelos relatos e comentários registrados nessa espécie de diário. Outras vezes, pode-se correr o risco de realmente soltar uma gargalhada, de forma que a leitura nunca se apresenta silenciosa, externa e internamente. No entanto, o que nos faz rir perante um texto pornográfico como esse? Essa reação provém da construção artística em si ou da própria vivên-cia do leitor? O que significa esse riso?

Lori Lamby é uma criança que, aparentemente, mantém relações íntimas, muitas vezes de modo oral (o que se relaciona diretamente ao seu nome) com homens mais velhos, em troca de dinheiro e por meio da monitoração da mãe e do pai, um escritor frustrado. No Caderno rosa, ela tenta escrever, à sua maneira, as experiências às quais é subme-

O riso e a pornografia fabulosa de Hilda Hilst

Lilian Akemi Chinem

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tida. Nisso, há várias descrições que não poupam o leitor de enxergar tudo o que se passa dentro do seu quarto de cortinas e molduras cor--de-rosa. Ao longo do livro, percebe-se que a ingenuidade construída e a mais perversa “lambança” vão se unir às palavras, ora por termos sexuais infantilizados, como “coisinha”, “piupiu” ou “xixoquinha”, ora por transcrições de vocábulos que Lori ouve de terceiros: “ninfetinha”, “ninfomaníaca”; ou ainda por meio de construções com proprieda-des poéticas, que a personagem copia das cartas que recebe de seu Tio Abel: “bico-pica”, “boneca de seda”, “avezinha sem penas”.

É justamente no encontro de registros obscenos, “inocentes”, poé-ticos, coloquiais, de apropriações ortográficas e lexicais, que certo efei-to cômico irá se produzir no interlocutor dessa história. Lori acom-panha de perto o desespero de seu pai, que não consegue escrever um livro, pois está sujeito aos interesses de um editor, o “Tio Lalau”. Este repete o discurso de que só as “bandalheiras” mais sujas é que fazem li-vros efetivamente rentáveis, pois ninguém está interessado em pensar. No seu diário, a garota afirma algumas vezes que também tem vontade de publicar os seus escritos e, ao final da narrativa, escreve uma carta endereçada a esse “tio”, dizendo criar histórias para crianças como ela, criações as quais são, a seu ver, “lindas!”, e que ela as intitularia de “O cu do sapo liu-liu e outras histórias”.

Inspiradas nas fábulas de La Fontaine, as narrativas apresentadas são quase uma síntese de um jogo estético construído ao longo do li-vro: costurando palavras e situações licenciosas e ridículas em uma es-trutura de texto já relacionada ao universo das crianças, a obra une o pornográfico ao infantil.

Pode-se dizer que uma fábula tradicional possui advertências de comportamento, a partir de uma sabedoria prévia, que tem por inten-ção direcionar de forma adequada o pensamento e as ações de quem a lê: “Antes de sermos obrigados a corrigir nossos maus hábitos, é ne-cessário que nos esforcemos para torná-los bons, enquanto eles ainda se acham indiferentes ao bem e ao mal” (la fontaine, 1992, p. 37). Além disso, observa-se, na maior parte das vezes, a presença de animais para representar qualidades e tipos humanos.

Nas histórias de Lori, também há bichos com características hu-manas, refletindo e falando. No entanto, o encaminhamento das fábu-las não se leva a sério, no sentido de que não parece querer trazer ensi-namentos morais, pelo contrário: as narrativas destroem e debocham

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o esforço de qualquer linguagem que queira ser séria, educativa e ade-quada aos preceitos comuns. Há uma brincadeira explícita e despudo-rada com o ato de escrever, que acaba questionando o que é moral ou imoral na criação artística e, principalmente, na distribuição desse ma-terial por meio das editoras de livros. Aparece também a pergunta: de que serve tamanha sabedoria moral, filosófica e estética, diante de um mundo que tem como seu principal órgão impulsionador o interesse econômico, rodeado de hipocrisias?

Considerando a seguinte afirmação de Henri Bergson em seu li-vro O riso – Ensaio sobre a significação da comicidade, a respeito de um dos procedimentos que fazem rir, pode-se levar em conta o peso da elaboração de palavras em um efeito cômico:

Suponhamos agora ideias expressas no estilo que lhes convém e en-quadradas assim em seu meio natural. […] Se as levarmos a expressar--se em um estilo totalmente diferente e a transmudar-se para um tom bem diferente, o que produzirá a comédia será a linguagem. (bergso n, 2004, p. 91).

É visível a transposição tonal e estilística das fábulas tradicionais àquelas de Lori, bem como de alguns procedimentos linguísticos, tais como a inserção de comentários e exclamações irônicas: “O sapo Liu-Liu tinha muita pena de seu cu. Olhando só pro chão! Coitado! Coitado do cu do sapo Liu-Liu!” (hilst, 2005, p. 97); as rimas: “[…] quando o primeiro rainho de sol entrou no fiu-fiu de Liu-Liu foi aquela chora-deira de alegria. E o país do Cu-quente, onde mora o Liu, desde então é uma festa! Do dia ao poente!” (Ibid., p. 99); provérbios: “Quem sai aos seus não degenera, Muská veia.” (Ibid., p. 100); associações literais e trocadilhos: “Pau d’Alho era um rei muito feliz porque tinha duas ca-beças. Dava tempo pra pensar duas vezes mais em seu povo.” (Ibid., p. 101), entre outros. Além disso, os nomes dos personagens nas fábu-las fogem do comum e são significantemente expressivos: “Liu-Liu”, “Fofina”, “Léa”, “Muská”, “Vertente”, “Pau d’Alho”, “Ciá”.

O enredo possui motivações toscas, como o sapo que faz de tudo para conseguir tomar sol no ânus. Nessa história, tem-se uma passa-gem que personifica e dá voz a essa parte do corpo, configurando um momento de ápice e deslumbramento, digno de um grande persona-gem romanesco, com frases de efeito e insinuações:

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Quando o cu do Liu-Liu olhou o céu pela primeira vez, ficou bobo. Era lindo! E ao mesmo tempo deu uma tristeza! Pensou assim: eu fiu-fiu, que não sou nada, sou apenas um cu, pensava que era Algo. E nos meus enrugados, até me pensava perfumado! E só agora é que eu vejo: quanta beleza! Eu nem sabia que existia borboleta! Fechou-se ensimesmado. E fechou-se tanto que o sapo Liu-Liu questionou: será que o sol me fez o cu fritado? (Ibid., p. 100).

Parece clara a intenção de fazer rir, de debochar e provocar o lei-tor até os seus últimos limites. E é justamente nesse aspecto que é ne-cessária certa cautela com o juízo de valor que envolveu e continua envolvendo a obra considerada pornográfica de Hilda Hilst: muitas vezes ela é tomada como inferior em qualidade e competência, espe-cialmente por usar palavras indecorosas e tocar em grandes tabus so-ciais. No entanto, parece prudente, ao menos como experimentação por parte do leitor, tentar reparar no que está além dessa obscenidade, na abrangência de questionamentos que podem vir à tona e na grande ousadia artística e estética dessa obra.

Em seu ensaio “A imaginação pornográfica”, Susan Sontag (1987, p. 43) diz: “Tanto os libertários como os presumidos censores con-cordam em reduzir a pornografia a um sintoma patológico e a uma mercadoria social problemática”. Essa tendência, em junção à rápida e desesperada preocupação moral, dificultaria considerar esse universo como legítimo, dentro de uma obra de arte interessante e de impor-tância. Quando rimos perante um Caderno rosa como esse, estamos diminuindo-o ou estamos sendo cúmplices daquilo que ele possui como essência?

O riso, por si só, já possui intenções de julgamento. Podem-se re-lacionar duas reflexões sobre esse ato: uma de Bergson, que analisa seus procedimentos e efeitos, e outra de Georges Bataille, que examina al-gumas reações perante o erotismo. O primeiro considera:

[…] o riso não pode ser absolutamente justo. Repetimos que ele também não deve ser bondoso. Sua função é intimidar humilhando. Não conseguiria isso se para esse fim a natureza não tivesse deixado nos melhores homens um fundinho de maldade ou pelo menos de malícia. (bergson, 2004, p. 147).

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Já o segundo expressa:

O riso é a atitude de compromisso que o homem adota diante de algo que o repugna, quando esse algo não lhe parece grave. […] é o riso que jus-tifica uma forma de condenação desonrosa. O riso nos engaja numa via onde o princípio de uma interdição, de decências necessárias, inevitáveis, se transforma em hipocrisia fechada, em incompreensão do que está em jogo. (bataille, 1981, pp. 9-10).

Dessa forma, assim como a comédia pressupõe o distanciamento para ser efetivada, o riso poderia ser a comprovação desse espaço entre o texto e o leitor. Quando rimos, podemos estar jogando o objeto do riso para longe, onde ele não estaria mais nos incomodando. Julgamo-nos superiores perante essa matéria baixa e, ao mesmo tempo, rimos porque de alguma forma compreendemos a “indecência” que vem à tona, mas não gostaríamos de admiti-la. Nas fábulas de Lori Lamby, entram em jogo a inocência da criança e a maldade do adulto, mas de forma mes-clada. O maniqueísmo perde espaço, exigindo exatamente uma malícia do leitor para aceitar o desafio de ser “cutucado” por esses textos.

Há uma intimidação explícita que nos impulsiona a eliminar por alguns instantes os nossos conceitos já massificados sobre infância, sexo, arte, nossos questionamentos já respondidos sobre a existência e a capacidade humana. Em temas e estilos com os quais já se traba-lhou muito e que poderiam parecer desgastados e/ou ultrapassados, não conseguimos ficar indiferentes ao encontrar uma narrativa que consiga remoer tudo isso e nos trazer uma provocação literária distin-ta. Abre-se a possibilidade de sentir o perigo e o ganho que se obtém quando se chega bem perto de limites, de fronteiras previamente cria-das, daquilo que é extremo e dilacerador no nosso imaginário.

Poder-se-ia dizer que tal atitude possibilita um contato real com as qualidades e competências da obra. E talvez só assim seja possível, diante de tais “baixarias”, o que Bataille chamou de “riso absoluto”, o qual se diferencia dos outros por ser aquele “que não se detém peran-te o desprezo do que pode ser repugnante, mas cuja repugnância nos afunda” (Ibid., p. 11). Ir para baixo, permitir o deslocamento (sair do lugar óbvio onde nos encontramos) sem o apoio confortável de nos-sas fórmulas literárias conhecidas, admitir a ultrapassagem: afundar--se, repugnar-se, rir-se.

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Nas dobras do texto: o duplo do narrador nos contos “Estão

apenas ensaiando”, de Bernardo de Carvalho, e “O secretário”,

de Luís Miguel NavaLilian Honda

“Tenho pensado algumas vezes se a literatura não merecia ser considerada uma empresa de conquista verbal da realidade”

Julio Cortázar

“Por mais familiar que seja o seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais”. Assim Walter Benjamin (1994, p. 197) abre o célebre texto em que trata da dissolução do narrador em ro-mances e contos, enquanto autoridade, produtor de sentido do texto ou transmissor de conhecimento, em contraste com as narrativas orais tradicionais. Nas palavras de Benjamin:

Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emanci-pou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias cama-das constituídas pelas narrações sucessivas. (benjamin, 1994, p. 206)

Sem o conhecimento advindo da experiência e da tradição, todo conto lida com o não saber. No século xix, como preconizava Edgar

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Allan Poe, esse não saber estava a serviço do efeito criado pela narra-tiva, do mistério que mantinha o interesse do leitor até um desfecho necessariamente surpreendente. A partir da metade do século xx, no entanto, a tensão do não saber transferiu-se para o narrador e, desse modo, as narrativas curtas passam a expor o impasse do ato performa-tivo da linguagem com que se faz sua transmissão.

Ao lidar com o conflito do ato de narrar, como diz Vasconcelos (2008, p. 35), “cada contista reinventa o gênero” e trata do conflito do narrador à sua moda. No caso do conto “Estão apenas ensaiando”, de Bernardo de Carvalho, surge um duplo do narrador disfarçado na for-ma de um personagem que se esgueira pela escuridão, interpondo-se entre o autor-narrador-sujeito e o real.

A primeira “pista” para análise do conto de Bernardo de Carvalho, está no próprio título: a história se passa no ensaio de uma peça teatral. No teatro, um ensaio é uma montagem experimental, a portas fechadas, daquilo que se está preparando para tornar realida-de no tempo e no espaço do palco. Por outro lado, um ensaio tam-bém significa submeter um fenômeno à observação, o que acarreta em interpretá-lo – palavra esta que, por sua vez, remete ao sentido comumente usado no teatro, o da representação de um papel. Esta brincadeira com as palavras do título procura reproduzir o jogo de sentidos presente no texto de Carvalho, que conta um conto, mas também conta algo sobre a arte de contar um conto e, mais do que isso, conta algo sobre a arte.

Carvalho brinca com a concepção de conto de Poe, que preten-dia colocar “a alma do leitor” sob o domínio da narrativa. O conto é estruturado a partir de um fio condutor central: a entrada de um homem misterioso no teatro escuro, onde se ensaia a peça, e sua pro-gressiva aproximação do palco, semioculto pelas sombras. No segun-do parágrafo, fica-se sabendo que a cena ensaiada é um diálogo entre um humilde lavrador e a morte. “Você é o malfeitor; e por isso preci-so saber quem é você, onde está, de onde vem, do que é capaz para ter tamanho poder […]”; diz, no palco, o ator que representa o lavrador, quase simultaneamente à entrada do homem misterioso. Essa é a cha-ve para o leitor se reportar a Poe e seus contos fantásticos, nos quais as histórias se desenrolam num instável equilíbrio entre um mundo real e um mundo imaginário. Assim instaura-se a tensão que se man-terá do início ao fim do conto, a despeito do deliberado distancia-

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mento do narrador, que divide a história em rápidos takes cinemato-gráficos, dando a ideia de simultaneidade das ações.

O primeiro fator de tensão que se instala é o do pacto previsto por Cortázar, da expectativa do leitor em relação à surpresa final do conto. O segundo elemento de tensão é a incerteza característica dos contos fantásticos, que provoca no leitor uma hesitação entre os parâ-metros “naturais ou científicos” do mundo real e “maravilhoso e sobre-natural” do mundo imaginário.

A tensão provocada por esses dois recursos é amplificada por efei-tos externos ao fio condutor central (ou seja, a aproximação progres-siva do homem misterioso) que, tal como numa peça teatral, são ri-gidamente marcados no texto por uma série de interrupções que se repetem sucessivamente: a suspensão da cena ensaiada pela dupla de atores a cada intervenção do diretor, a da piada contada pelo ilumina-dor ao técnico a cada reinício da cena, a mão que o diretor da peça põe e tira da coxa da assistente cada vez que se sente obrigado a interferir no ensaio, os sinais mudos com que a assistente dá a ordem para rei-nício, as manifestações recorrentes de preocupação por parte do ator que representa o lavrador pelo atraso de sua mulher e assim por diante. Tais repetições não só intensificam a tensão, como marcam o tempo, desenham a simultaneidade das ações das personagens e alimentam a noção de espera rumo ao final da narrativa. As interrupções sucessivas também dão pistas da existência de uma outra história. Ou, no caso do conto de Carvalho, de mais de uma.

Um conto sempre conta duas histórias, nos diz Ricardo Piglia (2004, p. 91): “O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma história contada de um modo enigmático. A estratégia do relato é posta a serviço dessa narração cifrada”. Assim, as interrupções do ensaio que se sucedem formam uma história em primeiro plano que sinaliza a existência do relato secreto e cria expec-tativa, enquanto prepara a revelação final que, nos contos clássicos, ilu-mina a história oculta.

A literatura […] trabalha a ilusão de um final surpreendente, que parece chegar quando ninguém espera para cortar o circuito infinito da narração e que, no entanto, já existe, invisível, no coração da história que se conta. […] O que o relato quer dizer nós só entrevemos no final: de

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pronto, aparece um desvio, uma mudança de ritmo, algo externo; algo que está no quarto ao lado. Então, conhecemos a história e podemos con-cluir. (Ibid., pp. 105-106)

Em Poe, afirma Piglia, haveria uma fatalidade no fim, um efeito trágico. Bernardo de Carvalho não somente inclui a fatalidade, como ainda joga com um novo elemento, que acaba por nos transportar a uma terceira história dentro do conto. Subvertendo a expectativa, o homem misterioso revela-se tão somente o portador anônimo de uma má notícia. O narrador, resguardado pelo distanciamento, en-trega a um personagem que é o seu duplo a verdade que surge no des-fecho da narrativa.

Entretanto, não é a morte ou a notícia da morte – já esperada pelo leitor desde o começo – a questão central. A notícia da morte da mulher do ator que representa o lavrador que, num jogo de espelhos, está interpretando um personagem que se defronta com a morte em pessoa, que teria levado sua (a do personagem) esposa, descortina um outro segredo: o de que o conto fala do próprio ato de narrar, bem como sobre o que Anatol Rosenfeld chama de “o fenômeno da desrea-lização” da arte.

As pistas sobre essa discussão acerca da verossimilhança são da-das no transcorrer da narrativa, a começar pela frase “estão apenas en-saiando”, que não só dá nome ao conto como é repetida diversas vezes no transcorrer do texto. Outro indício está no embate entre o ator que representa o lavrador e o diretor da peça. Este, ao exigir maior vigor na interpretação do sofrimento do lavrador, que deveria estar “desesperado”, “sofrendo” e “indignado” por ter perdido sua mulher na flor da idade, defende a verossimilhança como uma convenção que garante a ilusão do real; o ator, por sua vez, “declamando sua fala” com distanciamento que acredita ser mais apropriado à cena, bate na tecla da negação desta ilusão. A coincidência macabra e irônica da morte da mulher do ator com a cena ensaiada no palco, mais do que surpreender o leitor, expõe as controvérsias que envolvem as relações entre a arte e a realidade.

Não à toa, a realidade (e, portanto, a experiência concreta) já ha-via sido anunciada pela luz que se viu momentaneamente no fundo do teatro, acompanhada por burburinho de buzinas, motores e sirenes, quando o homem misterioso, duplo do narrador, abriu a porta. No es-

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curo do teatro, está a arte (ou a literatura), onde se “ensaia” um realis-mo pontuado pela frase “estão apenas ensaiando”. Por estarem apenas ensaiando, o ator está de relógio (apesar de o personagem ser do século xv), a morte não ostenta manto nem foice e assim por diante, como nos lembra constantemente o narrador. O desfecho trágico já espera-do se dá quando a revelação da morte da mulher do ator é por ele adi-vinhada a partir das reações do diretor e da assistente – mais um efeito do jogo de espelhos, como se fosse o reflexo de uma interpretação que seria, naquele momento, assistida pelo ator. Ao final, o ator compreen-de por que a cena não foi interrompida apesar de ter sido mais uma vez interpretada do modo que anteriormente desagradava ao diretor: o distanciamento da interpretação foi “preenchido” pela realidade e “por fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da morte”. A verdade chega ao ator não pelo duplo do narrador, mas pelo narrador, adivinhada durante o ato performativo da linguagem.

Por meio do jogo de espelhos, de efeitos que remetem ao cinema e da construção artificiosa do que tradicionalmente, na narrativa oral, seria a “lenta superposição de camadas”, Bernardo de Carvalho deixa entrever o conflito do ato de narrar. Já Luís Miguel Nava, em “O se-cretário”, prefere explicitar esse mesmo conflito na voz do próprio nar-rador, que revela a existência de seu duplo sem disfarces. Ou, antes, a existência desse duplo é em si o objeto da narrativa.

O narrador se duplica para questionar não mais a estrutura do conto ou o ato de narrar, mas o próprio conceito de autor, tornado narrador e personagem. Assim, Nava ficcionaliza o derrame do não saber no conto enquanto gênero, que se espalha, atingindo o autor-su-jeito-narrador. O narrador de seu conto é também o autor, que nega a sua própria existência ao apresentar um duplo responsável pela escrita, em sintonia com Foucault:

Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desaparecer […] esta relação da escrita com a morte manifesta-se também no apaga-mento dos caracteres individuais do sujeito que escreve; por intermédio de todo o emaranhado que estabelece entre ele próprio e o que escreve, ele retira a todos os signos a sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade da sua ausência. (foucault, 1992, pp. 35-37)

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Ao tornar ficção a “morte do autor”, o narrador lança mão da ironia, atribuindo ao duplo, que para ele seria uma criança ou adoles-cente, a responsabilidade pelo “tom incipiente” da escrita. Ao mesmo tempo, o narrador atribui ao duplo também ofensas contra si (na frase “levando a astúcia ao ponto de se invectivar”), num vórtice que emba-ralha as identidades de um e de outro: o narrador ofende o duplo, que ofende a si mesmo, ofendendo, assim, o narrador.

A vertigem da atribuição de autoria entre narrador e duplo torna--se em Nava a representação do vazio da enunciação, que ficcionaliza o “esgotamento” da narrativa por meio de uma história-sem-história, que é o próprio conflito do narrador-sujeito-autor, evocando Barthes, quando decreta a “morte” do autor:

A linguística acaba de fornecer à destruição do Autor um instru-mento analítico precioso, ao mostrar que a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na perfeição sem precisar de ser preenchido pela pessoa dos “interlocutores”; linguisticamente, o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, tal como “eu” não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer “supor-tar” a linguagem, quer dizer, para a esgotar. (barthes, 1988, p. 3)

Nas palavras finais do conto de Nava, o narrador chama de “tão indesejado secretário” ao seu duplo, embaralhando mais e mais a fi-gura do narrador-sujeito-autor. “Secretário” vem do latim medieval secretarius, que significa “confidente, conselheiro particular, secretá-rio, escriba”. Numa acepção antiga, descrita no dicionário Houaiss, o secretário também é aquele “que se conserva oculto; secreto”, como é o caso do duplo e, por extensão, do autor, cuja morte se decretou. Secretário também é aquele que trabalha como assistente em um es-critório; tanto a palavra “escritório” quanto “escritor” vêm do latim scriptor, que significa “aquele que marca, grava, imprime ou escreve”. A palavra cript, dentro de scriptor, relaciona a profissão de escritor (e a do secretário) às criptas e tumbas dos antigos, aludindo ao “gesto sem-pre anterior, jamais original” do escritor, conforme diz Barthes, para quem “a vida nunca faz outra coisa senão imitar o livro, e esse mesmo livro não é mais que um tecido de signos, imitação perdida, infinita-mente recuada”.

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é um gesto comum na literatura a negação da possibilidade do fa-zer poético a partir de sua execução. Movimento esse que se acentua na poesia brasileira a partir do Modernismo, perceptível em poemas como “O sobrevivente”, de Carlos Drummond de Andrade:

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.Há máquinas terrivelmente complicadas para

as necessidades mais simples.Se quer fumar um charuto aperte um botão.Paletós abotoam-se por eletricidade.Amor se faz pelo sem-fio.Não precisa estômago para digestão. Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.Os homens não melhorame matam-se como percevejos.Os percevejos heroicos renascem.Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.(Desconfio que escrevi um poema.)(andrade, 2001, p. 83)

“Cheguei. Tarde, talvez, mas não tarde demais”Aline Rocha

novíssimos

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O que vemos aqui é a demonstração de que após o fim existe ain-da um “pós-fim” – que não deve ser entendido, no entanto, como um recomeço, mas como a continuidade irremediável do fluxo. O eu líri-co anuncia entre parênteses – como uma voz que se desloca de todo o discurso anterior – sua desconfiança de ter escrito um poema, e ao desconfiar, coloca em questão tanto a categoria de poema quanto a sua capacidade de executá-lo. O que ocorre é “um mal-estar da expressão que nasce de sua insuficiência, do próprio sentimento de não poder do Eu.” (candido, 2004, p. 69). É certo, pois, que

para Drummond, o eu é uma espécie de pecado poético inevitável, em que precisa incorrer para criar, mas que o horroriza na medida em que o atrai. O constrangimento (que poderia tê-lo encurralado no silên-cio) só é vencido pela necessidade de tentar a expressão libertadora, atra-vés da matéria indesejada. (Ibid.)

Similar à sensação da impossibilidade da escrita diante de um mundo que não a almeja, mas que pede qualquer outra coisa palpável que supra as suas necessidades práticas (“Há máquinas terrivelmen-te complicadas para as necessidades mais simples.”) é o sentimento da inutilidade, recorrente, por exemplo, na poesia de João Cabral de Melo Neto:

o artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.Não fazer nada é inútil.Mas entre fazer e não fazermais vale o inútil do fazer.Mas não, fazer para esquecerque é inútil: nunca o esquecer.Mas fazer o inútil sabendoque ele é inútil e que seu sentidonão será sequer pressentido,fazer: porque ele é mais difícildo que não fazer, e dificil-mente se poderá dizercom mais desdém, ou então dizer

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mais direto ao leitor Ninguémque o feito o foi para ninguém.

(melo neto, 1994)

João Cabral reflete sobre o fazer poético e sua importância, que é, justamente, ser “mais difícil do que não fazer”, ainda que corresponda ao nada em utilidade.

Talvez mais trágico e cruel do que os sentimentos da impossibili-dade e da inutilidade da escrita seja o sentimento do “dizer tardio” e do “nada mais há a ser dito”, que envolve, além do impossível e do inútil, a relação de inferioridade que é estabelecida com determinada tradição predecessora. Esse sentimento percorre todo o imaginário da história da literatura, mas, hoje, ganha uma dimensão peculiar, na medida em que se caracteriza por alguns elementos fundamentais na construção do cenário que chamamos de “literatura contemporânea”: a extrema autoconsciência daquele que escreve e a postura melancólica e ressen-tida da crítica – características que serão esmiuçadas adiante.

Em Tarde, Paulo Henriques Britto faz da reflexão sobre o fazer poé-tico e de todas as instâncias que são adjacentes e que dizem respeito a tal ato, um ponto de partida para o próprio fazer poético, como o que ocor-re nos exemplos anteriores. O poema “op. cit., pp. 164-65”, que abre o livro, revela as principais tensões que percorrerão as páginas seguintes: o menosprezo ao rebuscamento do discurso acadêmico – presente não apenas na teoria ou na crítica literária, mas também na poesia; a relação de inferioridade que o poeta estabelece entre esse rebuscamento e toda a tradição que o precedeu; e a extrema autoconsciência daquele que es-creve. Há na poesia, hoje, uma tendência à autoexplicação claustrofóbica, proveniente dessa autoconsciência; o que Paulo Henriques faz em sua poesia é ironizar isso.

op. cit., pp. 164-65

“No poema moderno, é sempre nítidauma tensão entre a necessidadede exprimir-se uma subjetividadenuma personalíssima voz lírica

e, de outro lado, a consciência crítica

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de um sujeito que se inventa e evade,ao mesmo tempo ressaltando o que há defalso em si próprio – uma postura cínica,

talvez, porém honesta, pois de boa-fé o autor desconstrói seu artifício,desmistifica-se para o ‘leitor-

irmão…” Hm. Pode ser. Mas o Pessoa,em doze heptassílabos, já disse omesmo – não, disse mais – muito melhor.(britto, 2007, p. 9)

Nesse poema, Paulo Henriques leva ao extremo a superexposição dos métodos da produção poética, recurso – e talvez necessidade – de boa parte da poesia contemporânea. Há aqui um discurso que busca a simplicidade que parece impossível diante do hermetismo vigente tanto numa certa tendência da crítica quanto da poesia, e é interessan-te notar como tal busca se dá a partir do retorno e da alusão ao câno-ne moderno. É certo ressaltar que há nesse discurso uma dissimulada isenção, pois, ainda que o eu lírico exponha o seu incômodo pela arti-ficialidade e pela extrema autoconsciência, é essa mesma exposição que lhe serve como matéria poética. Como um uróboro, o poeta desdobra--se em seu discurso. Não há saída, não há êxito, não há falência – mas também não há esterilidade. A poesia de Paulo Henriques alimenta-se do que é a poesia. Este arriscado ato de reflexibilidade poderia estar fadado ao fracasso e à obviedade se o poeta não se valesse da ironia formal e discursiva, da paródia às características de seu tempo, e se não chamasse o seu interlocutor para essa difícil construção.

Em seu ensaio “Paulo Henriques Britto: por uma poética da fra-gilidade”, Gislaine Marins afirma:

Ao projetar a poesia para o espaço – aqui – e para o tempo – agora –, os poemas de Britto geram um efeito de obra em processo; processo que não pode prescindir da própria leitura, como instrumento que recoloca o discur-so em movimento contínuo. A fragilidade mais evidente na obra de Britto situa-se nessa abertura à interpretação facilitada pela recorrência da dêixis.

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Apesar de odiar ‘o hermetismo que obriga o leitor a um jogo de decifração e afasta-se de qualquer coisa que emperre a compreensão do poema’, como afirma Heitor Ferraz, a “água rasa” aponta para outra “água rasa”. A sim-plicidade é uma aparência pela qual o leitor deve pagar um tributo a fim de lê-la não a primeira, mas a segunda vez. (marins, 2004, p. 31)

Percebemos tal movimento em poemas como o “v”, da série “Gramaticais”.

v

(Mas nada disso faz sentido,porque é concreto, é existente.Só significa o construído,o que é postiço e excedente.

E quanto ao mundo – o que independedos artefatos, o que é dadoa todos e ninguém entende –o mundo vai bem, obrigado,

e não quer dizer coisa alguma.Porém o jogo continua,como sempre, é claro – talvez

um pouco mais seco, mais duro,sim, um pouco mais inseguro.)Pronto. – Agora é sua vez.(britto, 2007, p. 43)

Nesse poema, o eu lírico chama o seu interlocutor para a constru-ção de um discurso, de um modo cínico e paradoxal, já que o faz após apontar a falta de sentido disso. Esse mesmo tom percorre toda a obra do poeta, o que gera a relação de cumplicidade ou proximidade do eu lírico e seu interlocutor. É o que vemos, por exemplo, nos dois poemas a seguir:

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Chegamos tarde, é claro. Como todos.Chegamos tarde, e nosso tempo é pouco,o tempo exato de dizer: é tarde.

Todas as sílabas imagináveissoaram. Nada ficou por cantar,nem mesmo o não-ter-mais-o-que-cantar,

o não-poder-cantar, já tão cantadoque se estiolou no infinito banalde espelhos frente a frente a refletir-se,

restando da palavra só o resumoda pálida intenção, indisfarçada,de não dizer, dizendo, coisa alguma.(Ib., p. 84)

iii

Cheguei. Tarde, talvez, mas não tarde demais.Trazendo aquela tralha toda, parecidacom tudo aquilo que você já tem, aliás.Como era de se esperar. O forte da vida

não é a originalidade. Eu não me iludo.Abre essa porta. Frente ou fundos, tanto faz.Abre depressa, antes que desabe tudo.(Ib., p. 79)

No poema “2”, da série “Crepuscular”, vemos tematizada a impos-sibilidade do dizer frente ao nada a ser dito. “Todas as sílabas imaginá-veis/ soaram. Nada ficou por cantar,/ nem mesmo o não-ter-mais-o--que-cantar”. Ao iniciar o poema com o verbo na primeira pessoa do plural, “chegamos”, o poeta coloca seu leitor num patamar de aparente

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igualdade de papéis, dando de imediato a impressão de um diálogo com um interlocutor que compartilha com o eu lírico a “tarefa do di-zer” (ou do “não dizer, dizendo, coisa alguma”).

Do mesmo modo, vemos no poema “iii”, da série “Cinco sone-tos trágicos”, um diálogo que se inicia com o verbo na primeira pes-soa do singular, “cheguei”. Percebemos que aqui é estabelecido outro tipo de relação com o seu interlocutor – embora a relação de proxi-midade se mantenha. Seguindo a mesma temática do poema ante-rior, o eu lírico discorre sobre sua posição num cenário já saturado, mas o que percebemos neste poema – e o que é central em Tarde e muito diz a respeito da literatura contemporânea – é a consciência de que o poeta se apresenta ao seu leitor “Trazendo aquela tralha toda, parecida/ com tudo aquilo que você já tem, aliás”. E que reconhece, por fim, que “O forte da vida não é a originalidade”. O poeta dialoga a todo momento com seu leitor e supõe que este já tenha conheci-mento de causa, de modo que o que ouvimos é a tréplica de um diá-logo – pois, idealmente, já saberíamos qual o assunto, não precisan-do de explicação ou contextualização. A figura do leitor com quem Paulo Henriques dialoga em Tarde é uma entidade que compartilha com ele um determinado “saber prévio”: o poeta-acadêmico, o inte-lectual, a crítica.

Ao supor que tudo já foi dito – e que chegamos tarde demais – é necessário, antes, avaliar o que este “tudo” representa e de que forma se firmou como totalidade. Devemos pensar em que medida a sen-sação de que tudo já foi dito tem a ver com as expectativas – sempre tão melancólicas – da crítica. É este o questionamento presente nos poemas de Paulo Henriques Britto aqui analisados. O poeta coloca em cheque o estatuto do escritor, do leitor, da crítica e o modo como a literatura é encarada atualmente por tais entidades. É interessante notar que, em todos os poemas citados no decorrer deste ensaio, o foco está na exposição do problema e não exatamente numa alterna-tiva para solucioná-lo, de modo que o poeta nunca se rende à auto-piedade ou à lamentação (tom tão recorrente nos escritos contempo-râneos, sejam eles críticos ou literários). E o que nos fica, afinal, é a sensação de que essa “vertiginosa lucidez”, apontada pelo poeta, seja, ela própria, ultrapassada e ofuscante.

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Toda palavra já foi dita. Isso ésabido. E há que ser dita outra vez.E outra. E cada vez é outra. E a mesma.

Nenhum de nós vai reinventar a roda.E no entanto cada um a re-inventa, para si. E roda. E canta.

Chegamos muito tarde, e não provamoso doce absinto e ópio dos começos.E no entanto, chegada a nossa vez,

recomeçamos. Palavras tardias,mas com a vertiginosa lucidez –o ácido saber de nossos dias.(Ib., p. 87)

Referências bibliográficas

andrade, Carlos Drummond de. Alguma poesia. Rio de Janeiro: Record, 2001.

britto, Paulo Henriques. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

candido, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond”. In: _____. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004, p. 69.

melo neto, João Cabral de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

marins, Gislaine. “Paulo Henriques Britto: por uma poética da fra-gilidade”. In: _____. Cacto: poesia e crítica. São Paulo: Unimarco, 2004, n. 4, p. 31.

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O jazz na narrativa de Julio Cortázar Carolina de Pontes Rubira

“Se não se pode dizer, é preciso inventar a palavra para isso, uma vez que na in-sistência se vai peneirando a forma e a partir dos buracos se vai tecendo a rede.”

Julio Cortázar, Valise de cronópios

“Escrevo no ritmo do jazz, do swing”, diz Julio Cortázar em entre-vista a Joaquín Soler Serrano, no programa da rtve, A Fondo (1977). Essa declaração soa como uma provocação ao investigador curioso que não resiste em buscar compreender como essa prática se realiza na es-crita do autor. Nessa busca, é possível encontrar, além do jazz como tema comum em seus textos, as características rítmicas citadas pelo au-tor e algumas outras que aproximam o modo de compor sua narrativa do modo como os músicos de jazz constroem sua música.

É clara a presença do jazz como elemento temático na narrativa de Cortázar – no conto “El perseguidor”, presente no livro Las ar-mas secretas (1959); no encontro dos personagens de Rayuela (1963) no “Clube da Serpente” e em diversas outras narrações. Portanto, o jazz, ou a música, de modo geral, é elemento comum e privilegiado na escrita do autor. A música como tema é, possivelmente, o que mais se evidencia numa primeira leitura das obras de Cortázar, mas o autor fa-zia questão de deixar claro que a presença da música em sua narrativa se dá de maneira muito mais ampla, estendendo-se à cadência rítmica do texto e ao modo de compor a narrativa.

A ideia do ritmo presente na narrativa como consequência de um modo de escrever é abordada pelo autor em entrevista a Ernesto Gonzalez Bermejo (1977). Cortázar afirma que certos ritmos foram interiorizados por ele, o que se deve à sua vivência literária e musical, que possibilitou o “armazenamento” em sua memória da cadência rít-

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mica de trechos de romances lidos e músicas ouvidas no passado, e que seriam retomados, de forma voluntária ou involuntária, por sua escri-ta. Essa maneira de o ritmo se apresentar nos textos de Cortázar está ligada essencialmente a um modo de escrever muito próximo de um elemento fundamental no jazz: o improviso.

Cortázar raramente escrevia um conto mais de uma vez. Esse também era comportamento comum a muitos músicos de jazz, como o pianista Thelonious Monk, bastante citado por Cortázar, que se re-cusava a gravar uma música duas vezes e jamais gravava uma terceira vez. No documentário Straight no Chaser (1988), há uma cena em que Thelonious está gravando “Ugly Beauty” e o produtor da Columbia Records, Teo Macero, pede a ele que toque novamente aquela música. Thelonious responde que já havia tocado e que não podia tocar no-vamente; ainda assim, o produtor insiste, até que Thelonious, prova-velmente desistindo de explicar ao produtor que é impossível tocar a mesma música duas vezes sem perder o feeling; senta ao piano e toca “Ugly Beauty”. Não pela segunda vez, mas novamente pela primeira vez, sempre pela primeira vez, pois cada vez é a única.

Algo semelhante, no que se refere à importância do feeling na exe-cução de uma música, ocorre na gravação de “Lover Man”, feita por Charlie Parker em 1946 e revisitada por Cortázar através do persona-gem de Johnny Carter no conto “El perseguidor”, no qual o título da canção é substituído por “Amorous”. Trata-se de uma gravação repleta de problemas, pois Charlie Parker compareceu a ela alcoolizado e sob efeito de drogas, precisando da ajuda de um membro da banda que o mantivesse em pé e segurasse seu sax enquanto tocava.

Contudo, são justamente as falhas de Parker que fazem a gran-diosidade da sua música. “Lover Man” é uma espécie de retrato da alma de Parker, tocada com todas as falhas e dores que compunham o homem. Trata-se de uma música absolutamente honesta e executa-da de maneira tão escancarada que, mesmo apresentando muitas fa-lhas e tendo sido reprovada por Charlie Parker, foi posta no disco e é hoje tida por muitos de seus fãs como uma de suas mais expressivas gravações. Aquela era a verdadeira voz da música, repleta de feeling, e se é essa a essência do jazz, é preciso aceitar que até as falhas téc-nicas são parte da composição: no jazz o gênio também é um mero homem, tão inteiro quanto destroçado, e a música feita por esse ho-mem, porque vem dele, precisa também ser inteira e destroçada.

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Portanto, o improviso envolve muito mais que compor uma músi-ca em frente ao público; é preciso vivenciar a experiência que transmite o feeling envolvido na situação em que a música foi gerada. Talvez seja esse o modo mais eficiente na tentativa de registrar o exato momento da experiência vivida por um artista, o momento que impulsiona a cons-trução de uma obra; esse momento de inspiração absoluta que Cortázar admirava no jazz e parecia buscar registrar nos próprios textos.

Não obstante, é importante ter em conta que a arte expressa com tamanha liberdade, ao ponto de despertar cadências rítmicas guarda-das na memória – como ocorria com Cortázar –, está inserido numa composição narrativa ou musical que não ignora a técnica. Não se tra-ta de um “delírio” do autor, assim como um músico de jazz não “delira” ao construir seu solo sobre determinado tema musical. A linguagem e a técnica fazem parte dessas construções artísticas que, em toda sua liberdade, contam com uma “gramática”, uma forma que empresta cor-po à experiência, de modo que ela seja comunicada ao público como obra artística. O domínio preciso da técnica de narrar ou de compor um solo de jazz é um ponto essencial para que o escritor ou músico se-jam livres para deixar que as ideias fluam, pois sabem que são capazes de realizá-las da maneira como se apresentem.

Desse modo, o jazz não revela uma experiência vivida solitariamen-te pelo artista, registrada e reproduzida para o público: ele é um cons-tante nascimento que se apresenta vivo e pulsante diante de seu público. Parece ser esse o tipo de representação artística buscada por Cortázar:

Digo – e não sei se isso já foi dito - que o jazz é, ao lado da música da Índia, a música de todas as músicas. Ele atende à grande ambição do surrealismo na literatura, quer dizer, a escrita automática, a inspiração total, papel desempenhado no jazz pela improvisação, uma criação que não está submetida a um discurso lógico e preestabelecido, mas nasce sim das profundezas. (bermejo, 2002, p. 89)

Essa criação “não submetida ao discurso lógico” e repleta de fe el ing, ao tomar forma, parece pedir uma reconstrução da lingua-gem que a comporta. No universo musical, essa linguagem recria-da é a música fundamental que origina o jazz: trata-se do blues.

Muitos músicos de jazz e blues, em seus depoimentos sobre o que seria o blues, deixam claro que um músico não faz blues, ele

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deve “estar blues”; ou seja, não basta seguir a receita formal, can-tar uma terça ou uma sétima mais baixa do que se faria normal-mente, pois o ”estado blues” é uma vivência interna descrita essen-cialmente pela linguagem da música. É o que diz o trompetista Wynton Marsalis, no documentário Jazz, de Ken Burns (2011): “o blues tenta extrair sentido de uma situação que desafia sua capaci-dade de compreensão”. Esse feeling, essa experiência que vai além da capacidade que as palavras têm para descrevê-la, é motivador de uma busca por novos modos de se expressarem e narrarem ex-periências, o que se revela na integração entre narrativa e música presentes no blues.

O blues é uma música de teor essencialmente narrativo e que tam-bém está fortemente ligada à fala, ao diálogo (call and response) vindo do canto das igrejas batistas e dos cantos de trabalho, incorporados ao blues que, ainda hoje, utiliza o diálogo entre cantor e instrumentos ou entre instrumentos. Portanto, quando na narrativa de Cortázar reve-la-se o tratamento musical da escrita, não coincidentemente ele está relacionado ao jazz e ao blues, ritmos não apenas interiorizados pelo autor como também construídos com base na fala e em estruturas nar-rativas. Ou seja, se Cortázar leva em conta a qualidade musical de sua narrativa, os músicos de jazz e blues levam em conta a qualidade de língua que possui sua música.

Considerando a semelhança entre a construção literária e musical entendidas como linguagens, torna-se notável o fato de Cortázar ter gravado discos em que lia trechos de suas obras e até contos inteiros. A sonoridade era, de fato, tão importante para ele que o autor nos deixou esses registros sonoros de seus textos, não contentando-se apenas com os escritos, como se houvesse uma necessidade de apropriação sonora além da escrita.

No que se refere ao trabalho artístico que faz a literatura com a palavra, e ao trabalho artístico que faz a música com os ruídos, é inte-ressante notar que as características construtoras da música são muito semelhantes às do texto escrito. Isto era observado e utilizado por Julio Cortázar, segundo o que disse em entrevista no ano de 1977 a Ernesto Gonzales Bermejo:

Se você reler meus primeiros contos – “Bestiário”, por exemplo – verá que o último parágrafo de todos os relatos, o que os define, ali onde está

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em geral a surpresa final do fantástico, enfim, o desenlace (seja brutal ou patético) é sempre armado sobre um esquema rítmico inflexível. A colo-cação das vírgulas, o encontro de substantivo com adjetivo, as quedas da frase até o ponto final acontecem, mutatis mutandi, em uma partitura musical. (bermejo, 2002, p. 87)

De fato, nota-se o seguinte trecho no conto “Omnibus” de Bestiário:

Él la tomó del brazo y caminaron rápidamente por la plaza llena de chicos y vendedores de helados. No se dijeron nada, pero temblaban como de felicidad y sin mirarse. Clara se dejaba guiar, notando vagamente el césped, los canteros, oliendo un aire de río que crecía de frente. El florista estaba a un lado de la plaza, y él fue a parase ante el canasto montado en caballetes y eligió dos ramos de pensamientos. Alcanzó uno a Clara, después le hizo tener los dos mientras sacaba la billetera y pagaba. Pero cuando siguieron andando (él no volvió a tomarla del brazo) cada uno llevaba su ramo, cada uno iba con el suyo y estaba contento. (cortázar, 1994a, p. 133)

É possível perceber que a leitura é forçada a se tornar mais lenta, pela concentração maior de tônicas no final do conto, seguindo um esquema praticamente fixo de tônicas de três em três. Tal leitura des-ta passagem vem a confirmar a informação dada por Cortázar sobre o modo como teria construído os contos que compõem Bestiário.

Além desse modo de utilizar a sonoridade das palavras, também é notável nos contos de Cortázar o uso diversificado que o autor faz da linguagem e da pontuação, de modo que elas estejam sem-pre em torno de uma construção musical do texto; ou, mais especi-ficamente, em torno de uma construção que torna o leitor capaz de identificar como a leitura deve ser feita, apesar da ausência de pon-tuação – as sim como ocorre com os elementos que são cifrados na composição jazzística.

Essa narração ritmada, que quase força o leitor a ler em voz alta, é elemento comum na narrativa de Cortázar. Ela se constrói sobre a escolha de palavras exatas que determinam a leitura de certos con-tos. Como exemplo, temos o seguinte trecho em “Instruciones para matar hormigas em Roma”, do livro Historias de cronopios y de famas:

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Primero buscaremos la orientación de las fuentes, lo cual es facil porque en los mapas de colores, en las plantas monumentales, las fuen-tes tienen también surtidores y cascadas color celeste, solamente hay que buscarlas bien y envolverlas en un recinto de lápiz azul, no de rojo por-que un buen mapa de Roma es rojo como Roma, sobre el rojo de Roma el lápiz azul marcará un recinto violeta alrededor de cada fuente, y ahora estamos seguros de que la tenemos a todas y que conocemos el fol-laje de las aguas. (Ibid., p. 414)

Nota-se como este trecho do conto pede, inicialmente, uma leitu-ra rápida, por apresentar pouca concentração de tônicas em seu início e o uso de palavras longas e de fácil pronúncia. À medida que o traba-lho de matar as formigas se torna minucioso, ao final do fragmento, há uma combinação de muitas tônicas, palavras mais curtas e de difícil pronúncia, o que exige uma leitura lenta. Aí verifica-se um exemplo significativo de como ritmo e sentido constroem a narrativa de manei-ra conjunta: o ritmo não é constante, mas sim sujeito a variações de acordo com a intenção da narrativa.

Percebe-se, nessas alterações rítmicas criadas por Cortázar, um trabalho minucioso sobre a sonoridade do texto. E, entre tantas fun-ções possíveis para estas construções, uma de especial importância é a tensão criada pela alternância de uma leitura mais arrastada ou rápida num momento de revelação presente na narrativa.

A tensão é um elemento, de acordo com Cortázar, fundamen-tal para o conto moderno. E é também elemento fundamental para o jazz, sendo a tensão entre beat e solo a grande geradora do swing.

Assim como há duas linhas rítmicas dentro do jazz (a linha do beat, que marca o ritmo, e a linha que se constrói dentro do improviso, no solo), nas narrativas de Cortázar também há um universo cotidia-no, ordinário como um beat, que somente serve para marcar o tempo, para localizar o sujeito no mundo, e uma outra realidade que se opõe absolutamente ao ordinário, e que passa a ser mera matéria do fantásti-co. Dessa relação cria-se um outro mundo, um mundo fantástico cria-do com base no ordinário que se apresenta “relido”, revisitado a partir da perspectiva própria de um solo.

Essa convivência entre mundo relido no universo individual em contraste com o mundo coletivo ordinário gera não só tensão seme-lhante à encontrada nos contos de Edgar Allan Poe, de quem Cortázar

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é herdeiro, mas também gera o fantástico. Afinal, o fantástico se cons-trói em relação ao ordinário, assim como o swing se constrói na relação entre beat e solo. Os dois casos tratam de mundos opostos compondo um só corpo e travam uma luta da qual nenhum deles poderia sair ven-cedor, pois um só existe em relação ao outro.

Essa tensão entre mundos também se faz, na narrativa de Cortázar, entre história oculta e explícita e, no jazz, entre elementos tocados e cifrados. Diz Cortázar sobre a construção do conto moderno em seu conhecido ensaio “Do conto breve e seus arredores”:

Estou falando do conto contemporâneo, digamos, o que nasce com Edgar Allan Poe, e que se propõe como uma máquina infalível destinada a cumprir sua missão narrativa com a máxima economia de meios; pre-cisamente, a diferença entre o conto e o que os franceses chamam de nou-velle e os anglo-saxões long short-story se baseia nessa implacável corrida contra o relógio que é um conto plenamente realizado […]. (cortázar, 1974, p. 228)

Apresenta-se a formulação do estilo de jazz, chamado de bebop, produzido inicialmente por volta de 1940 em Nova York, a mesma busca pela economia de meios na construção da música:

O estilo criado mostrava muita flexibilidade e condução melódica nervosa. Frases ágeis ou apenas fragmentos, toda nota desnecessária era deixada de lado. Tudo foi reduzido e comprimido ao extremo. “Tudo” – assim disse certa vez um músico do bebop – “Tudo que se entende por si só é deixado de fora”. Muitas dessas frases são apenas sugeridas por cifras (na linguagem técnica musical a linguagem “cifrada” é um processo de notação semelhante ao de estenografia; fornecendo-se um mínimo de ele-mentos se estende à totalidade da idéia musical). (berendt, 1975, p. 31)

Nas primeiras gravações de jazz, nota-se um beat muito marca-do e menos notas cifradas em comparação ao jazz produzido anos mais tarde. O próprio beat, com o passar dos anos, viria a dissolver-se até desaparecer, como se os músicos contassem com o fato de que o beat já está no ouvinte e que aquilo que o ouvinte já sabe não precisa ser dito. Essa ideia de economia de recursos, que passou a firmar-se no bebop, trata-se de mais uma característica comum entre o jazz e

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a narrativa de Cortázar, defensor de uma escrita limpa, econômica, que sugere antes de dizer.

Considerando todas essas constatações, percebe-se que uma com-posição dual certamente é a característica mais notável da literatura de Cortázar por demonstrar uma tensão entre mundos que parece ser o cerne da criação do autor. A dualidade também é característica essen-cial no jazz, tendo o swing como resultado. É importante considerar que esse modo de composição é muito mais que um apelo formal, pois, por ser construída através do improviso, é capaz de tornar música e palavra a própria intenção de dizer algo; ou seja, a intenção não se es-conde sob as palavras, ela é as próprias palavras. Cortázar notou que tal modo de se expressar era o dele e também o do jazz; donde suas de-clarações de que escrevia no ritmo do jazz, do swing.

Impossível saber se o contato com a música formou o escritor ou se a aproximação da narrativa de Cortázar com a música veio depois de o escritor estar formado. Talvez o jazz tenha instalado seu ritmo nos ouvidos e na escrita de Cortázar, assim como ocorreu com as narrati-vas que lia quando criança. O fato é que é reconhecível o procedimen-to de Cortázar ao construir sua narração de modo semelhante ao que ocorre na construção do jazz.

Ainda há muito para se descobrir nesse universo narrativo--musical do autor, e mais ainda para se pensar sobre a estrutura formal da narrativa e sua aproximação da organização do jazz. No entanto, é certo que Cortázar e os músicos de jazz não dão respostas para as in-quietações provocadas pelo uso que fazem de suas linguagens; apenas colocam-nas diante de quem lê e escuta, partilhando com o mundo a perplexidade provocada por suas experiências. Com isso, o que criam é um mundo multifacetado, que abre caminho para muitas leituras, re-conhecimentos e estranhamentos. Um mundo a ser perseguido e que jamais se deixa agarrar.

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Referências

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bermejo, Ernesto Gonzalez. Conversas com Cortázar. Trad. Luís C. Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002.

burns, Ken. Jazz. São Paulo: Dueto Editorial, 2011.cortázar, Julio. Cuentos Completos/1. Buenos Aires: Alfaguara, 1994a._____. Cuentos Completos/2. Buenos Aires: Alfaguara, 1994b._____. Rayuela. Espanha: Punto de Lectura, 2006._____. Valise de Cronópios. Trad. e org. Davi Arrigucci. São Paulo: Editora

Perspectiva, 1974.eastwood, Clint & zwerin, Charlotte. Straight no Chaser. França/

eua, 1988.julio cortázar a fondo. Entrevistador: Joaquín Soler Serrano.

Realização: Ricardo Arias. Série rtve: a fondo. trasbals s.a., Espanha 1998. dvd, 123 min., som, preto e branco.

parker, Charlie. Coleção Jazz History. Verve. 1973, vol. 8._____. Live. Imagem. 1985, vol. 4 (gravação original 1951)._____. Bird: The Complete Charlie Parker on Verve-Box. Verve. 1990._____. Coleção Folha Clássicos do Jazz. Compilação. 2007, vol. 4.

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O dito pelo não ditoIsabela de Vilhena Gaglianone

enrique vila-matas, em O mal de Montano (2005a), cunha o diagnóstico literário que acomete tantos escritores: trata-se da agrafia trágica. É o bloqueio criativo que torna impotentemente ágrafo, de-sesperadamente impossibilitado de escrever, sequer uma linha, justa-mente o escritor. Muitos podem ser os motivos de uma agrafia trágica, e deparar-se com o que já foi escrito, dito e pensado pode ser um mo-tivo especial, resultado de um embate interno quixotesco do escritor, quando se coloca defronte nomes que já se tornaram ícones, quando coloca-se em relação a um passado literário de maneira a encará-lo ver-dadeiramente como um monumento. O professor Émerson de Pietri chamou de “complexo de Medusa” esse súbito emudecimento frente à monumentalidade daquilo que já foi escrito; basta um olhar para pe-trificar-se (pietri, 2011, p. 53). Talvez só um olhar sobre a Antiguidade já bastasse para petrificar: muitos já disseram que a história da filosofia é uma extensa nota de rodapé a Platão e Aristóteles. A impressão de que tudo já foi dito permeia certo discernimento literário, filosófico, artístico e crítico pessimista.

Mesmo que tudo já tenha sido dito, que os grandes temas e as grandes questões já tenham sido postos, qualquer oscilação na ma-neira de dizer encaminha uma mesma ideia a diferentes encadeamen-tos e concentra um facho de possibilidades de conclusões. Vistas sob qualquer ângulo infimamente diferente, as mesmas questões ilumi-nam-se de outros modos e inscrevem-se em circunstâncias variadas. Reformular questões não é meramente dizê-las de novo, mas colocá--las em confronto com outro momento histórico e consequente con-cepção de mundo, portanto forçá-las a responder a diferentes pergun-tas, recolocá-las em outras formas. Como disse Enrique Vila-Matas,

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dessa vez em Bartleby e companhia, “tudo permanece, mas muda, pois o de sempre se repete, perecível, ao novo, que passa rapidíssimo” (vi-la-matas, 2005b, p. 33). Daí a eterna atualidade daqueles textos que chamamos “clássicos”. Porque colocar uma questão não é esgotá-la. É assim que se pode pensar a história da filosofia, da literatura e da arte como um grande diálogo.

“Toda arte do passado, de todas as épocas, de todas as civiliza-ções, surge diante de mim, tudo é simultâneo […] As lembranças das obras de arte mesclam-se a lembranças efetivas, a meu próprio traba-lho, a toda a minha vida” (apud pleynet, 2007, p. 22, tradução mi-nha). Alberto Giacometti, pintor e escultor, expressou assim, em 1945, a significância de situar-se em relação à produção precedente, a im-portância da imersão crítica de si numa linha histórica para a tomada de certo tipo de autoconsciência. Giacometti vivenciou intensamente a incerteza da validade artística de seu trabalho, preocupava-se inces-santemente em pensar seu papel histórico e a relevância daquilo que fazia, numa época de crise da arte após a invenção da fotografia, da arte na “época de sua reprodutibilidade técnica”1, em crise com a própria ideia de autenticidade artística. Suas obras carregam uma autocrítica severa e guardam um embate intelectual, dos meios até então canôni-cos de produção artística com as novas possibilidades plásticas que os extrapolavam e, assim, deslocavam questões fundamentais, revolven-do a apreensão do sujeito artístico que se coloca entre a natureza e a representação – “É preciso fazer exatamente o que está diante de nós. E além disso, é preciso também fazer um quadro”, resumiu ele a Jean Genet (genet, 2000, p. 65). Em um ensaio intitulado “Arte após a filosofia”, de 1969, o artista plástico Joseph Kosuth define: “a arte mo-derna e as obras anteriores pareciam ligadas, em virtude de sua morfo-logia. A linguagem da arte permaneceu a mesma, mas estava dizendo novas coisas” (kosuth, 1969, pp. 155-170). Essas “novas coisas” tar-daram a ser reconhecidas como discursos artísticos válidos e concate-nados, antes corroboraram para solidificar uma imagem caricata, que perdura até hoje em torno da arte contemporânea, de mera aleatorie-dade. Sempre que paira o sentimento de que tudo já foi dito, é sobre um vácuo incólume, que emudece o presente e obriga-o a encarar-se enquanto passado, abrindo lugar para novas reflexões também sobre os meios e os métodos de representar aquilo que se queira dizer. As ar-tes plásticas são um exemplo ilustrativo, pois, após a arte moderna, re-

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conhecendo a história da arte como um acervo disponível, colocou-se o estatuto mesmo do que seja uma obra de arte em questão, estenden-do sua autocrítica, das questões de representação do mundo tal como apresenta-se, para uma crítica sobre as próprias condições de repre-sentação. Marcel Duchamp é nisso um modelo, por ser inaugurador de questões acerca da noção mesma de obra. Especialmente sobre sua influência no decorrer da arte contemporânea, tomando como ponto de partida sua obra “O grande vidro”, a crítica de arte Rosalind Krauss analisa: “Seu caráter indecifrável, seu estatuto de enigma deixariam de ser relacionados a um programa iconográfico que se pudesse atribuir a um quadro ou não. Antes de tudo, a obra seria considerada em relação ao que há de fundamentalmente mudo no signo indicial” (krauss, 2010, p. 62), ou seja, uma obra que coroava os ready-mades – recha-çados pela opinião do público e de alguns críticos contemporâneos a Duchamp, que tomavam-nos como o próprio sufoco da arte –, reser-vava em si todo um remanejamento conceitual germinal do que se-ria mesmo considerado uma obra de arte, bem como uma abertura de possibilidades artísticas, inclusive materiais.

Lendo-se assim a história, como uma linha dialogal, a impressão de que tudo já tenha sido dito aumenta; as mesmas questões atraves-sam séculos. Porém, a possibilidade de esgotamento de novas ideias, na prática, restringe-se – tendo-se em vista que o conhecimento é con-cebido como infinitamente ramificável. A história é assim compreen-dida como história das ideias. Desse modo, é possível pensar em uma arqueologia intelectual, uma escavação histórica dos conceitos, que, colocados em palavras, traduzem em um único momento todo um ca-minho teórico percorrido e conduzido por respostas entre gerações, por desenvolvimentos problematizantes de diferentes chaves de leitu-ra e consequentes embates entre ideias, capazes, portanto, de muitos resultados e conclusões. Em outras palavras, somos inventores de nos-sa própria natureza e também de nossa história. Servimo-nos de nossa história para reformular questões recorrentes e para concluirmos nos-sa própria formação. Nas palavras de Newton Bignotto, somos, por isso, divididos, ainda como o homem renascentista que

[…] de um lado, acreditava que o mundo repetia o passado e reen-contrava a antiga virtude, de outro, via o universo escorregar entre seus dedos, expandindo-se ao infinito e transformando-o numa criatura

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insignificante diante da grandeza do tempo e do espaço. (bignotto, 1992, p. 188)

Ou seja, utilizamos modelos para moldarmos a natureza de nosso presente como um Prometeu moderno.

No regresso inevitável dos mesmos temas, no eterno debruçar-se sobre si da história que é concebida circularmente, baseada na ideia de eterno retorno, seria de uma sisudez beata resignar-se ao silêncio, à agrafia, sempre trágica, frente à grandiosidade do que já foi – e quão magistralmente – escrito. A doença da literatura, o “mal de Montano”, a agrafia trágica, é da própria literatura, que parece imersa num mo-mento de autoanálise, de revisitação de si própria – ainda que esse pos-sa ser o olhar estrábico de quem não tem o distanciamento histórico prudente para diagnósticos de época. Em O mal de Montano, Vila-Matas apresenta uma dialética da memória literária, por meio de um diário que é ao mesmo tempo colagem de frases proferidas por escri-tores consagrados, em seus próprios diários fictícios. O protagonista tornara-se ágrafo após publicar um livro sobre escritores que não con-seguiam escrever, como se tivesse sido atingido por uma maldição, e resolvera procurar a cura na própria semente de seu problema, escre-vendo um diário. Esse seria seu meio de encarnar a literatura, um ex-perimento literário autofágico, em que ele amalgama sua intimidade psíquica a pensamentos de escritores que admirava, usando excertos, imaginados ou não, de seus diários e tecendo, assim, um recorte de uma história causal da literatura. Ao mesmo tempo que ele não conse-gue escrever, não pode parar de citar, e leva isso às últimas consequên-cias, tornando-se uma citação ambulante, encarnando em si caracte-rísticas dos escritores, num processo esquizofrênico em que mesmo Baudelaire se lhe aparece para acompanhar a beber num balcão de bar. Entrementes, os escritores são embatidos entre si e o livro parece re-tratar um drama da literatura, voltando-se incessante sobre si mesma, errante como uma anti-heroína. A memória constrangedora porque consagradora é esquecida de si. Ou seja, esquece-se de si enquanto me-mória, enquanto passado, profetizando-se num desdobramento futu-ro como um monumento máximo petrificante. Mas nem que tudo já houvesse sido dito viveríamos só de citações, pois o pensamento é na-turalmente inventivo e porque vivemos no tempo, sucessivo, histórico. Ainda que muitas coisas sejam lidas para o esquecimento, o que se diz

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se inaugura, não se esgota. E fica assim o dito, pelo não dito, o silêncio do presente a assegurar alguma tagarelice para o futuro.

Referências bibliográficasbignotto, Newton. “O círculo e a linha”. In: novaes, Aldauto (org.).

Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.genet, Jean. O ateliê de Giacometti. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo:

Cosac Naify, 2000.krauss, Rosalind. O fotográfico. Lisboa: Gustavo Gili, 2010.kosuth, J. “Art after Philosophy”, Studio International, pp. 155-170,

out. 1969.pleynet, Marceline. Giacometti – Le jamais vu. Paris: Éditions Dilecta,

2007. pietri, Émerson. “Lições do tótem: a relação com o legado cultural”. In:

O inferno da escrita. São Paulo: Mercado de Letras, 2011.vila-matas, Enrique. O mal de Montano. Trad. Celso Mauro Paciornik.

São Paulo: Cosac Naify, 2005a. _____. Bartleby e companhia. Trad. Josely Vianna Baptista e Maria

Carolina de Araújo. São Paulo: Cosac Naify, 2005b.

nota1. Referência ao texto de Walter Benjamin, “A obra de arte na era da

sua reprodutibilidade técnica”, de 1936, em que discute a noção da “aura” das obras de arte. Cf. benjamin, Walter. Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 2008, p. 165.

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Junto ao JuncoSofia Nestrovski

novíssimos

“As soon as two things are nearly identical, I am lost.” Samuel Beckett, Molloy

há muito o que falar sobre Junco, livro lançado em outubro de 2011 pelo artista visual, músico e escritor Nuno Ramos. Há muito o que fa-lar, porque há muito o que ler neste livro. Admito que me surpreendi com o quanto encontrei de inesperado em cada uma de minhas relei-turas. Toda vez que sentia ter dado conta de algum aspecto do livro, voltava à obra e percebia que havia muito mais lá do que lembrava. A escolha de Junco como objeto de estudo decorre, para além de sua qua-lidade, da urgência que vejo em criar fortuna crítica sobre a obra literá-ria de Nuno (pequena em relação à crítica de seu trabalho como artista visual), assim como do desafio e risco que há em analisar algo sobre o qual muito pouco ainda foi dito.

Começo, então, pela foto da capa: cachorro e tronco, ambos mor-tos, são alfinetados um em cima do outro, como se pudessem encon-trar fusão, procurando semelhança, como se fossem uma repetição de dois termos idênticos. Mas cão e tronco não são idênticos, apesar da mesma ambientação, dos tons de cinza homogeneizantes, do mesmo posicionamento dos corpos no espaço. As fotos querem ser iguais, querem ser repetição, mas, por mais que se aproximem disto, no fim não conseguem: vemos claramente suas distinções. A metamorfose plena de um em outro não se realiza, assim como na primeira estrofe do poema de abertura de Junco:

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Cachorro morto num saco de lixoareia, sargaço, cacos de vidromar dos afogados, mar também dos vivosescuta teu murmúrio no que eu digo.(ramos, 2011, p. 11)

De dentro do saco de lixo, pinçamos os cacos de vidro, uma ma-nipulação técnica de areia mais cal e carbonato de sódio ou potássio. Que o vidro esteja em cacos parece sugerir que, no extremo, cada vez mais triturado, voltará a ser areia, mas nesta areia restarão, também, os dejetos dos elementos que lhe tinham sido incorporados. Esta meta-morfose que não se completa, não avança, e quer voltar a ser o que era antes, como em alguma espécie de ciclo da natureza, acaba por gerar lixo e expõe uma fusão imperfeita que é técnica e não natural. Cão morto e sargaço se sujam com a areia e não se fundem, viram lixo. A morte, parte da natureza que promove de forma cíclica a reintegração e transformação da matéria, é distinta do lixo, dejeto técnico que gera acúmulo inútil. As coisas que oscilam entre a morte e o lixo, sem ser precisamente nem um, nem outro, tornam-se sem finalidade e tam-bém sem fim. Se estes cães são aproximados de troncos mortos des-cartados na areia, em uma tentativa de fusão, vemos o movimento im-perfeito que, se por um lado, não reintegra a matéria (como ocorreria no caso da morte), por outro, também não permite que ela permaneça imóvel, completamente inorgânica.

poema 31.

Reparanada paraaté a cascadas árvores e a pedradas ostras passam por tios ossos dos mortos, teus mortostodos– cão, latido, minutosapato engraxado

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enterro do pai –alinham-se sópara ti, reparanada paranem os mortos.(Ibid., p. 81)

Nesta constante tentativa de transformação, a matéria nunca en-contra uma possibilidade de forma final, não há um progresso que aponta para uma conclusão – a areia vira vidro que vira areia nova-mente. Assim como as ondas vêm e vão, não indo a lugar nenhum, o tédio da praia gira num movimento circular claustrofóbico. O livro é redondo nele próprio, criando um mundo autossuficiente, onde “Aqui tudo começa/ e fica/ parecido com” (“Poema 20”). Dentro desse mun-do, são alinhados elementos que escapariam a outras tentativas de or-ganização que não esta: por que cão, latido, minuto, sapato engraxado e enterro do pai estariam juntos? Por que não cão, gato, peixe? Ou sa-pato engraxado, camisa passada e vestido engomado? Ou, ainda, por que tantas rimas, assonâncias e aliterações ao longo do livro, promo-vendo ecos e ligações entre as palavras – “cal/sal; rede/sede” (“Poema 9”), “cerzido/amido; sono/contorno” (“Poema 12”), “corvos/calvos” (“Poema 13”) “outonal/ não faz mal” (“Poema 36”)?

É interessante voltar a atenção à linguagem, enxergando-a como uma tentativa de união e organização entre o homem e o todo que o circunda, criando uma corrente subcutânea que também acaba por en-globar tudo sob uma mesma pele em que disparidades tentam ser anu-ladas – mas, assim como na foto da capa, logo as diferenças começam a surgir. Como disse Lorenzo Mammì (2000, p. 109), a respeito da arte (no caso, visual) de Nuno Ramos, “[ela revela] a atração aniquila-dora que a unidade profunda exerce sobre a diferenciação superficial”. Uma possibilidade é imaginar a linguagem como sendo esta “unidade profunda” em Junco. Seria esta linguagem que, nos termos de Mammì, “aniquila” particularidades, promovendo um ambiente pantanoso em que tudo tem a possibilidade de se aproximar do ponto de fusão. Esta ideia surge a partir da possibilidade das palavras se alinharem em um movimento que poderia ser distinto, se imaginássemos que a lingua-gem pudesse ser outra, ou mesmo se ela pudesse não existir. Desde o

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título do livro isto já está sinalizado de maneira explícita: Junco não corresponde às fotos de troncos mortos. À primeira vista, associamos a palavra “junco” aos troncos, confundindo nome com imagem. A pa-lavra tenta esconder a coisa, englobando-a e destruindo-a. Como no verbo “juncar”, “1. cobrir com juncos; 2.cobrir de folhas, de flores, de ramos; 3. estar espalhado ou espalhar em quantidade sobre” (ferrei-ra, 1986), a palavra é uma camada que encobre aquilo que ela defi-ne. Além disso, é possível pensar na proximidade sonora entre junco e tronco, uma espécie de eco que remete um ao outro. Assim Nuno des-creveu em seu primeiro livro, Cujo:

Não sei como coisas tão díspares se juntam pelo nome. Podemos pôr palavras juntas, mas não os dias e as aves. Os animais têm ancas e suas ancas são cobertas pela pele. Uma pedra é tão distante de outra pedra, vi-zinha, mas nós dizemos pedra, nós, bichos de carne, que nem um corpo duro temos, só esta bolha fraca e molhada. Dizemos rosas às rosas e nosso dedo aponta. Nosso sexo empina. A pedra de nossa lápide e a cal que nos termina, estas também são coisas. Mas cuidado, a palavra é que junta tudo. Nossa roupa toca nosso peito, ela é nossa. É nossa agora, ao menos, mas não, cuidado. Roupa é a palavra entre nós e essa planta morta, teci-da fio a fio depois de arrancada e que nós usamos, pendurada. (ramos, 1997, p. 79)

Porém, na linguagem que tenta abarcar e organizar tudo em um mesmo sistema, restam sinais de autoria:

poema 10.

[…]Caligrafia camufladade um autor confuso e sonadoque tudo pôde e que tudo podeprende a renda minuciosado próprio bordadonum meio gelatinoso onde cadaum se conforma ao seu nome.[…](ramos, 2011, pp. 32-33)

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Caligrafia e bordado marcam o gesto do autor e, em seguida, ca-muflam-no para criar um falso neutro, um chão que serve de base em um sistema no qual as palavras não dão conta das coisas, a morte não dá conta da matéria, transformando-a em lixo. A morte, que seria um fim inevitável, já não é a única possibilidade. A matéria não é tomada inteiramente por ela, partes são entregues ao lixo. Mas estas partes não são distintas, não podem ser separadas e diferenciadas das outras par-tes que compõem os seres. Em paralelo, as palavras, que deveriam di-zer as coisas, afogam-nas sob uma camada homogeneizante. Cada um deve se conformar ao seu nome, ou seja, cada um, a princípio, não é seu nome e deve ser circunscrito à forma que ele lhe dá. Os nomes que re-pousam sobre tudo criam uma espessura gelatinosa em que particula-ridades são mascaradas. E isto que já está camuflado, este falso neutro da linguagem, é o chão que Nuno questiona.

poema 19.

O chão é a grande perguntaHaver chãoSe tudo voaE quer cantar.[…](Ibid., p. 53)

Dentro disso, proponho-me a pensar sobre os poemas em que Nuno fala em amor ou em sexo. O amor aqui não é lírico, e o sexo é sem êxtase: ambos os termos parecem remeter à ideia de atos que apro-ximariam coisas distintas, sem a resistência das superfícies1:

poema 16.

A mim foi dado: passo e pesofole pulmonar, gritomãos para cardarcomo a um peixe seu chocalhode espinhas. Não foi para ceder à carniçamas para amar que me foi dado. (Ibid., p. 45)

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Deve-se amar, amalgamar, não ceder à carniça que é instrumen-tal. O termo “cardar”, isto é: “1. Desenredar, destrinçar ou pentear com carda (lã ou qualquer fibra têxtil) 2. Extorquir astuciosamente dinhei-ro de; explorar” (ferreira, 1986), parece-me bastante preciso se con-siderarmos que é deste tipo de movimento organizador e ceifador que Junco procura escapar. Proponho uma conjectura na qual a comunhão de matérias dessemelhantes ocorre não só no amor e no sexo, mas tam-bém na catástrofe, no incêndio que transforma matéria em cinzas, no alagamento que arrasta tudo na água e na lama, nos furacões que despedaçam o mundo pelo vento. É válido imaginar que existem ou-tras situações possíveis nas quais a matéria perderia seu contorno fixo. Porém, interessa-me aqui pensar sobre a referida catástrofe, pois a in-terpreto como algo que ocorre na linguagem, a qual representa uma perda: as palavras nos distanciam das coisas, criam uma rede de rela-ções que une tudo, sem oferecer a possibilidade de outras relações que não dependam dela. As coisas do mundo estão todas ligadas pela nossa linguagem; ela propõe uma comunhão subcutânea entre objetos apa-rentemente dessemelhantes. Em Junco, põe-se em foco a “gosma” ou “goma” (para usar os termos do próprio livro) entre palavras e mundo, a falta de transparência nesta espessura, o que gera uma perda que nos impede de apreender a significação das coisas:

poema 34.

[…]há distânciaentre bichos e homenscoisas e nomes.Uma goma percorreesse exílio, essa ponteparadano ar, pele gelada que abraça a distância […](ramos, 2011, p. 87)

Se pensarmos que a linguagem em Junco cria um espaço no qual ela torna-se destacada, no sentido de que não foge ao poema em uma

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proposição visada diretamente a pontos referenciais no mundo, pare-ce-nos que o acúmulo de palavras neste ambiente fechado as empilha uma sobre a outra, criando uma torre em que o peso do que vai sendo sobreposto leva ao esfarelamento do que está por baixo, transforman-do tudo em areia. Uma vez esfarelada a linguagem, ela encontra-se li-vre dos seus contornos e, inútil e informe, funde-se à areia daquilo que lhe era distinto e distante, criando um ambiente em que tudo está em contato e quer a fusão. Aí, também é possível ler as quebras de palavras em alguns dos poemas, como “p/ele gelada”, ou “t/eus mortos”. Nuno Ramos expõe a arbitrariedade destas construções que parecem ínte-gras e inatas, esfarelando-as. A placa de densidade da linguagem sobre as coisas pode ser triturada, como o vidro de dentro do saco de lixo do primeiro poema. Mas é preciso ter cuidado com isto. Assim como os cacos de vidro poderão reduzir-se a areia e dejetos, imaginamos que esta areia poderia também ser retransformada em vidro, num ciclo re-petitivo que gera sempre lixo. Da mesma forma, as palavras rompidas, a linguagem fragmentada, talvez provoquem em nós a busca por outra linguagem. O que significaria que estaríamos construindo um distan-ciamento entre nós e o mundo, preenchendo este espaço com a densi-dade opaca de alguma outra linguagem inventada. Junco imagina, in-clusive, outra possibilidade, na qual existiria uma linguagem feita de matéria, em que o autor é também parte da paisagem:

poema 37.

Tão nítida que pus as lentes negras:

Praiaformada por palavrasmontes de palavrasdejetos de palavrasmascadas, cuspidas

que o vento arrastavae teciaformando(incrível!)poemas.

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Eu, ai, movia sozinhoos montes de poeira e signocom a matéria dos meus braçose pás, aspás

eram parte desses braçoscavandocovasonde pudesse acharmelancolia muda(Ibid., pp. 94-95)

O poeta que tenta criar o poema vê-se inserido nesta praia em que tudo significa, tudo pode ser lido, gerando a massa gelatinosa e taga-rela que cobre a essência das coisas – inclusive a dele próprio, já que seu corpo torna-se ferramenta e seus contornos se confundem com a paisagem. Compor um poema é cavar nesta espessura, mergulhar em busca de uma melancolia que “os montes de poeira e signo” escondem.

O escopo aqui escolhido para tratar de Junco é proposto como uma breve introdução a este livro, apontando somente para alguns de seus aspectos, deixando que outros leitores se debrucem sobre ele. Não falei aqui do apuro de composição dos poemas, nem entrei mais a fun-do nas fotos, sobretudo na da página 24, que salta bastante aos olhos por trazer dois cachorros mortos: um mais visível à frente e outro de costas, ao fundo, ao lado do que parece ser um cemitério. Isto sem con-tar as relações possíveis deste livro com as obras de Drummond e João Cabral de Melo Neto.

Para concluir, vejo neste livro a criação de um mundo melancóli-co, de ciclos sem direção e sem morte, com um acúmulo de dejetos que restam de tentativas de comunhão incompletas. Neste ambiente fe-chado, as possibilidades de movimento não escapam a ciclos de tédio, martelados pelas palavras pesadas que se impõem sobre os homens, sem que eles se deem conta disso. Nuno Ramos parece apresentar, em um primeiro plano, este mundo claustrofóbico. Em outro plano, po-rém, propõe diferentes maneiras de questionar esta linguagem asfi-xiante. Junco abre um caminho para nos levar das areias de uma praia

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em que as ondas só conseguem traçar um mesmo movimento pendu-lar e enrijecido, rumo ao mar aberto onde tudo é ainda possibilidade.

Referências bibliográficas

farias, Agnaldo. Arte brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2002 (co-leção Folha Explica)

ferreira, Aurélio B. de Hollanda. Novo dicionário da língua portugue-sa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

foucault, Michel. Isto não é um cachimbo. Trad. Jorge Coli. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

mammì, Lorenzo. “O limite da matéria”. Bravo!, n. 30, p. 109, mar. 2000.naves, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contem-

porânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.ramos, Nuno. Cujo. São Paulo: Editora 34, 1997._____. O pão do corvo. São Paulo: Editora 34, 2001._____. Ensaio geral. São Paulo: Globo, 2007._____. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008._____. O mau vidraceiro. São Paulo: Globo, 2010._____. Junco. São Paulo: Iluminuras, 2011.

Vídeo“Nuno Ramos fala sobre Carlos Drummond de Andrade”, no evento de lançamento (12 dez. 2001) das novas edições de Confissões de Minas e Passeios na ilha, publicadas pela editora Cosac Naify. Disponível em: http://bit.ly/Lanc-Nuno-Ramos. Acesso em 26 abr. 2012

nota1. Nuno descreve de maneira semelhante a palavra “amor” na poe-

sia de Drummond: “[…] entre tantas palavras que são as dele [Drummond], uma que me chama atenção é a palavra amor. O Drummond usa a palavra amor como ninguém usa. Porque não é exatamente lírica, não pertence a um sujeito […] Há na pala-vra amor, quase que um princípio de vida, de possibilidade de contato entre diferenças” (ramos, 2001).

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Stephen J. Harrisonpor Tiago Bentivoglio e Sofia Nestrovski

entrevista

no universo das letras, a área dos área dos estudos clássicos cos-tuma ser aquela na qual imaginamos com maior frequência que tudo já foi dito. E com razão: são mais de dois mil anos de crítica sobre os mesmos textos, o que soma milhares de livros sobre Homero, Sófocles, Virgílio e os outros grandes nomes do passado. Paradoxalmente, nunca se produziu tanto quanto nas últimas décadas a respeito de literatura clássica. Em conversa com Stephen J. Harrison, professor de Latim da Universidade de Oxford (Corpus Christi College), comentamos as diferentes leituras dos clássicos - realizadas tanto dentro das uni-versidades quanto pelo público não acadêmico - e a maneira pela qual as séries de televisão e adaptações teatrais da literatura antiga podem enriquecer a nossa experiência de lê-los. Abordamos também as mudanças na crítica proporcionadas pelos estudos feitos fora das universidades europeias, pensando um lugar para o Brasil nesse pano-rama. Por fim, exploramos a retomada dos autores clássicos na poesia contemporânea de língua inglesa, especialmente na obra de Anne Carson, poeta e ensaísta canadense que tem feito traduções e adapta-ções de poesias gregas e latinas.

Cisma: Em um artigo recente de Mary Beard1, publicado no New York Review of Books, a autora diz que a nostalgia por uma “idade de ouro” dos estudos clássicos tem sido presente desde quan-do a Renascença começou a recuperar textos gregos e romanos. Ela afirma que não estamos vivendo um período de decadência, como a maioria das pessoas imagina, e que o número absoluto de acadêmicos que estudam a literatura clássica aumentou, embora o número relativo tenha diminuído. Você concorda com ela?

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Stephen J. Harrison: Sim, eu acredito que ela está certa. Ela é uma pessoa bastante sensata, sempre diz coisas interessantes. Eu acho que o conhecimento e o consumo do material clássico estão, de certa maneira, sendo mais difundidos agora do que nunca – parcialmente por meio de traduções e de programas populares de televisão –; os clássicos estão sempre presentes nos canais de televisão do meu país e no teatro, com produções e versões de peças gregas. Então eu acredito que sim: nós estamos em uma época na qual menos pessoas sabem gre-go e latim, porém mais pessoas estão interessadas no mundo clássico. E eu acredito que isso tem, em parte, mais a ver com o modo através do qual os clássicos descolaram-se do que o que as pessoas naturalmente tinham em sua educação (coisas chatas que você tinha que fazer), para algo que você escolhe fazer, e do qual você pode ser entusiasta. Vejo que isso é verdade através da minha própria vida: eu estava na escola na década de 1970, quando ainda se estudavam os clássicos. Eu acho incrível que agora as pessoas venham para os clássicos não por necessidade, mas por entusiasmo. É muito interessante ver como os clássicos estão crescendo nas universidades do Brasil.

C: Como você disse, os estudos dos clássicos parecem ter encontrado uma nova vida fora da Europa. O número de acadêmicos nessa área cresceu significativamente aqui no Brasil, por exemplo. De que forma isso pode ter algum efeito na área acadêmica?

SJH: Eu acredito que isso tratá um efeito positivo para a área, pois o estudo dos clássicos tem sido principalmente comandado pelos velhos países europeus, pelos Estados Unidos e pelos países do velho Império Britânico: se você vai para a Austrália, Nova Zelândia ou Canadá, eles estudam os clássicos, porque isso foi exportado pelos britânicos. Eu acho excelente que países como o Brasil estejam expandindo os estudos clássicos, pois eles podem dar uma nova perspectiva. Particularmente no Brasil, vocês têm interesses em his-tória política e história colonial, e eu acredito que possam trazer uma nova visão para as ideias sobre império e colonização. E, além disso, acho que as pessoas que estudaram literatura no Brasil têm necessariamente um ponto de vista diferente daquelas na França, Alemanha, Itália ou Inglaterra. Eu fiquei espantado nas minhas palestras, em Campinas, como os estudantes, com suas perguntas, veem por diferentes pontos de vista. Nós tivemos um intercâmbio

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muito interessante sobre como lemos literatura. Então, acredito que as diferenças culturais de um país como o Brasil podem contribuir para os estudos clássicos internacionalmente e podem enriquecer nossa área dando novas e interessantes interpretações.

C: Até que ponto é suficiente ler os clássicos em traduções? Será somente para especialistas a leitura desses textos na língua original?

SJH: Bem, eu acredito que você pode tirar o maior proveito destes textos lendo-os na língua original. Contudo, você ainda pode ter um acesso bastante satisfatório a uma história clássica traduzi-da. Isso depende do texto, em parte. Em textos narrativos como, por exemplo, a Eneida ou os poemas homéricos, é possível obter a maior parte do efeito em uma tradução, pois são obras bastante extensas. A ênfase está na trama e na história. Já em um curto poema lírico, será mais difícil reproduzir todo o efeito na tradução. Mas eu acredito que vale a pena. As traduções são um modo maravilhoso de disponibilizar esse conjunto de obras para várias pessoas. E, no Brasil, eu acredito que estamos numa época muito promissora, pois muitos dos clássicos ainda esperam para ser traduzidos, e eu sei que, nos mestrados aqui, vocês fazem traduções para o português de textos que nunca tinham sido traduzidos antes. Do meu ponto de vista, isso é muito empolgante, pois tudo, tudo mesmo, já foi traduzido para o inglês. É bastante incomum encontrar isso.

E, claro, as traduções são parte da literatura vernácula. As traduções têm seu espaço próprio dentro da literatura inglesa, brasileira, portuguesa etc. Elas são autônomas como textos literários, o que é, de uma certa forma, separado de sua função como tradução. Por exemplo, o famoso poeta Alexander Pope fez uma tradução de Homero que é tanto um poema do próprio Pope, de sua própria natureza, quanto uma tradução de Homero para o inglês. Eu acredito que as traduções têm uma função dupla: elas dão uma versão do texto para o leitor que não conhece a língua original e se tornam obras literárias por si sós. Nesse sentido, elas fazem mais que o texto original, pois elas têm essa dupla função. Mas eu diria que, para mim, a verdadeira experiência de ler um texto clássico é lê-lo na língua original, porém, reconheço que, de certa forma, estará acessível somente a especialistas e que nós precisamos ampliar a apreciação dos clássicos produzindo traduções, e boas traduções, feitas por acadêmicos que conheçam as línguas e que

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saibam escrever. É uma parte muito importante do nosso trabalho. Eu faço pouca tradução, mas reconheço que é muito importante e gostaria de fazer mais.

C: Quando lemos a introdução do livro Living Classics, você parece apontar para o fato de que os clássicos encontraram nova vitalidade nas últimas décadas devido ao trabalho feito fora das universidades. Seria adequado afirmar que a crítica acadêmica dos clássicos está perdendo seu vigor?

SJH: Sim e não. Na presente situação, os clássicos não estão crescendo somente fora das universidades, mas os trabalhos feitos nas universidades influenciam os trabalhos feitos fora. Por exemplo, os clássicos no teatro: nós temos várias produções de peças gregas, em traduções ou versões. Isso acontece fora da universidade, mas, frequentemente, você descobre que essas versões têm auxílios ou conselhos de professores de grego. Meu colega em Oxford, Oliver Taplin, é bastante conhecido por esse tipo de trabalho. Da mesma forma na poesia – eu já trabalhei com pessoas que fazem tradução de poesia latina. Eu diria que o aumento do interesse pelos clássicos fora da universidade frequentemente acompanha uma interação com a universidade. É verdade que, nos últimos cinquenta anos, o número de pessoas estudando clássicos caiu no meu país, mas eu acho que a preocupação geral com os clássicos nos meios artísticos – em filmes, teatro, televisão, ficção moderna e poesia – cresceu. E acredito que isso tenha a ver parcialmente com a interação entre literatura criativa e universidades. E, claro, há muitas pessoas na Inglaterra e nos Estados Unidos que trabalham nos dois lados.

C: Que posição a análise intertextual ocupa nos estudos clássicos? Considerando intertextualidade como, primeiramente, a relação entre textos gregos e latinos com textos modernos ou filmes, como você tem feito (Harisson é editor do livro Living Classic: Greece and Rome in Contemporary Poetry in English) e também pensando sobre o estudo dos textos clássicos em relação à grande quantidade de crítica e interpretações que foram feitas ao longo da história.

SJH: Você está pensando em intertextualidade como recepção. Eu acho isso muito interessante e tenho trabalhado bastante nisso nos últimos anos. Um dos motivos pelos quais eu acho isso realmente

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interessante é que, como pessoas estudando os textos clássicos no século xxi, tudo que fazemos é recepção. O que estamos fazendo é receber os textos gregos e latinos no nosso próprio tempo, com nossos próprios preconceitos e nossa própria mentalidade. Por exemplo, a famosa piada sobre T. S. Eliot e Shakespeare: “Como T. S. Eliot pode influenciar Shakespeare? Ele pode influenciar Shakespeare pois nossa visão de Shakespeare é influenciada por Eliot”. A questão sobre intertextualidade é que necessariamente a nossa visão dos clássicos é influenciada por tudo que nós já lemos sobre os clássicos e por todo o resto que já lemos, logo, inevitavelmente, nós não lemos os clássicos no vácuo. Nós temos essa experiência com toda uma série de recepções. Nós conhecemos várias formas de ver a recepção – em Living Classics eu tento olhar para a recepção criativa, para como escritores têm tomado as poesias grega e latina e feito novas poesias a partir delas.

Igualmente na crítica. Como acadêmicos estamos fazendo a mesma coisa. Nós estamos lendo estes textos através de um grande número de outros textos, os quais são diferentes para cada um de nós; cada um de nós terá um repertório diferente, como os teóricos da recepção dizem, uma diferente coleção de textos. Mas o que estamos fazendo é a mesma coisa: nós estamos lendo textos antigos através de uma série de textos novos. Eu acredito que isso é muito empolgante e interessante e nos faz muito mais conscientes do lugar de onde nossas atitudes e visões estão. Nós não nos aproximamos de um texto com uma tábula rasa; nós chegamos com uma série de expectativas e preconceitos que são influenciados por um grande número de fatores. E, se pudermos analisar esses fatores e perceber que temos certas bases, isso fará de nós melhores críticos.

C: Para finalizar esta entrevista, gostaríamos de voltar ao Living Classics, mais especificamente no capítulo sobre Anne Carson. No livro Nox, Carson se apropria do poema 101 de Catulo. Como você vê o trabalho dela, considerando a ideia de que ela opera com o elegíaco latino e faz com que este transmita algo realmente pessoal e íntimo para ela, isto é, resultando num paralelo entre o sofrimento de Catulo pela perda do seu irmão e a perda do seu próprio irmão?

SHJ: Eu acho que é uma reinvenção brilhante do original. Eu conheci Anne Carson, ela foi a Oxford, é muito inteligente, interessante e inusitada. Eu acho que nesse livro ela faz algo brilhante: ela recorta o

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texto e cria análises do latim, como um aceno para a análise acadêmica. Mas eu acho que você deve estar certa, que a motivação real do poema é lidar com sua dor pelo irmão morto. É exatamente o que acontece no original: o poeta lidando com sua dor através de meios poéticos. Ela está fazendo basicamente o que Catulo fez. Interessantes são as questões de escala: o poema original de Catulo tem dez versos, mas ela o expande através dessa técnica de caderno de rascunho para algo que é consideravelmente maior. Esse caderno é bastante comovente, pois são pedaços reais de sua história particular. No geral, nos seus outros trabalhos, ela não é do tipo de pessoa que fala muito sobre si própria. O que me surpreendeu nesse trabalho é que ela realmente está expondo sua vida, mas de uma maneira sofisticada, intelectual e intertextual. É uma combinação muito interessante. Eu acho que é uma nova orientação para ela, comparada aos seus outros trabalhos sobre Catulo, como as versões em Men in the off Hours, e, certamente, bastante diferente do seu trabalho sobre Safo, ou Simonides. Eu acho que este trabalho é muito mais tocante que os outros, então eu fico satisfeito em ver que ela partiu nessa nova direção.

nota1. Inglaterra, 1955. Professora de literatura clássica em Cambridge e

editora de clássicos do Times Literary Supplement. É autora de The Invention of Jane Harrison (2000) e The Parthenon (2002).

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Jacques Donguycolaboração de Mário Sagayama

tradução de Sofia Nestrovski

entrevista

há cerca de cem anos, diversas vanguardas surgiam na Europa com manifestos que reclamavam mudar os rumos da arte. Entretanto, pou-co se sabe que das experiências futuristas, cubistas ou dadá criou-se um vasto campo de experimentação poética: a poesia fonética, sono-ra, visual e, mais recentemente, a poesia digital. Conversamos com Jacques Donguy, professor da Universidade Sorbonne Paris i, sobre alguns aspectos do experimentalismo poético do último século, che-gando à poesia digital. Donguy falou também sobre sua relação com a poesia concreta brasileira e sua recente tradução para o francês de uma coletânea de poemas de Augusto de Campos, Poètemoins (Presses du Réel, 2011).

Cisma: Como foi a sua experiência com arte digital? Quando começou seu envolvimento com a área? Continua desenvolvendo pes-quisas neste âmbito?

Jacques Donguy: Meu percurso é um percurso literário. Comecei pela poesia linear – tipográfica, evidentemente –, e, sem ter conhecimento daquilo que havia acontecido antes, achei que a poesia sendo feita na época não correspondia de modo algum à sociedade em que vivia. Então, compus Eros + Thanatos, an 2000, em 1972, uma compilação de poemas-colagens, de poesia readymade, experimentan-do com pontuação e tipografia.

Quanto aquilo que viria a se tornar poesia digital é outra histó-ria: eu e meu irmão abrimos uma galeria de arte, a J&J Donguy, em 1981, onde, desde cedo, desejei que houvesse um computador. Era o comecinho dos computadores portáteis. Minha ideia, desde o prin-cípio, era a seguinte: já que o computador é uma máquina, pode pro-duzir sem parar, produzir um texto infinito. A ideia era conceber um

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texto que não acabaria nunca, que fosse sendo publicado na tela do computador, partindo do conceito de colagem. O que significa que partiria de uma mescla aleatória de fragmentos textuais. Ao criar esta obra, Tag-Surfusion, tornei-me o primeiro poeta na França a fazer poesia em um computador. Com a criação, por Philippe Bootz1, da revista Alire, em disquete, artistas que trabalhavam com o computa-dor, como eu, começaram a ser reunidos: dentre eles, Tibor Papp2 e Philippe Castellin3, por exemplo.

Em 2002, publiquei “Le Manifeste pour la poésie numérique”, na revista Art Press, texto que, a princípio, gostaria de ter publicado no Le Figaro, por causa do manifesto de Marinetti de 1909. Que pos-sibilidades a poesia digital nos dá? Fugir do texto linear. Como argu-mentou McLuhan a respeito da escrita em livro, o problema da escrita linear é que ela só envolve um sentido – a vista – e que segue somente em uma direção: da esquerda à direita. Entretanto, o ideal seria uti-lizar os cinco sentidos. Não é algo utópico: recentemente, Eduardo Kac4 lançou Aromapoetry, um livro de poemas com aromas que fo-ram desenvolvidos em colaboração com pesquisadores científicos. É uma ideia semelhante com o computador: podemos escapar à exclu-sividade da visão. A partir do momento em que usamos uma tecnolo-gia nova, proporcionamos uma série de reflexões sobre as tecnologias dominantes – neste caso, a print-technologie, para retomar o tema de McLuhan. Portanto, com o computador, torna-se possível governar pelo menos dois sentidos: a visão e a audição. Como proceder? É o que busco fazer através de performances: meu primeiro trabalho foi feito em um dai Personal Computer. Mas como exibir esta obra se ninguém tem mais esse computador? Eis um outro problema, a obso-lescência da tecnologia.

C: Seria possível pensar, então, que a poesia feita nesses meios, que se tornam obsoletos, poderia tornar-se também obsoleta?

JD: É isto que é interessante: quando me dei conta disso, resolvi fazer o livro Tag-Surfusion, para que fosse possível ter acesso à obra sem precisar ter um computador dos anos 1980. Mas esses suportes não suprimem uns aos outros: eles se sobrepõem. Organizei uma ex-posição sobre as consequências do Coup de dés, na qual coloquei uma impressora que cuspia textos infinitamente. Como resultado, criou--se um texto ilegível. Então, decidi lê-lo em público. Por quê? Porque

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é uma maneira de torná-lo vivo, de reincorporar um texto mecânico enquanto, simultaneamente, eram projetados no espaço.

C: A prática da colagem pode ser vista como uma maneira de compor que envolve simplesmente a organização de fragmentos, sem passar por uma voz lírica que estruture o texto. É interessante ver o retorno à voz que o senhor privilegia em suas performances. O senhor crê que a voz é apenas mais um suporte?

JD: Antes de tudo, vivemos em um mundo no qual tudo é produ-zido em série. Não vejo por que não produzir um texto serial. Quando comecei a produzir, pensava que a poesia que estava sendo feita na épo-ca não correspondia à vida ao nosso redor. Retomo a ideia de Ezra Pound, do poeta como antena da raça: não iremos produzir uma poe-sia como na época de Baudelaire, pois vivemos em uma sociedade completamente diferente. Portanto, a ideia de um texto mecânico não me espanta. No que diz respeito ao trabalho com o som e a voz, eu sigo as propostas da poesia sonora, que trabalha esses elementos como uma maneira de ampliar a língua. Henri Chopin5, que vivia no norte da Escócia, compôs um poema sobre os ventos que passam pelos vãos da montanha, sobre sons indescritíveis por ele propagados.

Indescritível no sentido original da palavra: algo que não pode-mos descrever com as palavras da língua. Como proceder? Usando os sons do corpo, colocando o microfone dentro da boca.

C: Como foi a sua experiência com os poetas concretistas brasileiros?

JD: Meu primeiro contato, na verdade, foi com Haroldo de Campos, que sempre viajava muito. Depois disso, houve a exposição Poésure et peintrie [Poesura e Pinturia, em tradução livre] em 1992, em Marselha, organizada por Julien Blaine6. Lá, entrevistei os irmãos Campos e Décio Pignatari. Nessa ocasião, para o catálogo da exposi-ção, me propus a entrevistar todos os poetas vivos que estavam crian-do movimentos: poesia sonora, poesia concreta etc. Entrevistei Dick Higgins7 em Nova York, e vim a São Paulo entrevistar os poetas con-cretistas. Em seguida, escrevi a tese Poésies expérimentales: Zone nu-mérique (1953-2007) (Les Presses du Réel, 2007), que partia da poesia concreta de Eugen Gomringer8 – a qual eu viria a chamar de “canto do cisne”, expressão que diz respeito à última e mais bela obra que alguém

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realiza, da escrita tipográfica – até chegar na poesia digital.Ao que diz respeito à tradução de poesia concreta, prossegui em

colaboração com Augusto de Campos, que me enviou seus arquivos de computador dos poemas. Quando lhe disse que gostaria de tradu-zir Poetamenos, ele me respondeu “mas isso é impossível”. Contudo, trabalhamos juntos na tradução desse livro, que foi publicado e logo teve sua tiragem esgotada. Recentemente, fizemos uma segunda edi-ção com a inclusão de suas últimas compilações, como Não. É também relevante o esforço de colocar notas de rodapé para os poemas, já que, mesmo para leitores brasileiros, é difícil de entender alguns dos poe-mas do Augusto sem notas de tradução.

notas1. França, 1957. Poeta, editor e professor da Universidade Paris viii.2. Hungria, 1936. Poeta, tradutor, tipógrafo. Produziu obras em

fita cassete e computador. É editor e fundador da revista Atelier Hongroise, publicada em Paris e Budapeste.

3. França, 1948. Poeta e performer, é um dos e editores da revista de poesia experimental doc(k)s. Além de poesia linear, também pro-duziu poemas em dvd e em cd-rom.

4. Brasil, 1962. Poeta digital e pioneiro na arte holográfica, arte de te-lepresença e bioarte.

5. França, 1922-2008. Expoente da poesia sonora, publicou, durante a década de 1960, a revista em vinil Ou.

6. França, 1942. Poeta e perfomer, criou nos anos 1970 a revista doc(k)s e, em 1990, fundou o Centro Internacional de Poesia de Marselha.

7. Inglaterra, 1938-1998. Poeta, pintor, integrante do Grupo Fluxus.8. Bolívia, 1925. É, junto aos irmãos Campos e Décio Pignatari, um dos

criadores da poesia concreta.

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“Osterqualm, flutend”, de Paul Celan

tradução de Walter Solon

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paul celan nasceu em 1920, em Czernowitz, Bukowina, re-gião que pertencia à Romênia, de uma família judia de língua alemã. Cresceu num ambiente poliglota, estudou em escolas de línguas he-braica, ucraniana, romena e alemã. Com a chegada das tropas da SS à Romênia, foi enviado para campos de trabalho forçado, e, ao contrário de seus pais, sobreviveu. Após a guerra, consciente do perigo do stali-nismo, exilou-se em Paris, onde produziu uma rica obra poética, tra-duziu poesias e teve uma participação conturbada no famoso grupo de poetas alemães Gruppe 47. Suicidou-se no Sena, em 1970.

Sua obra se volta com frequência para temas judaicos, seja pelo viés religioso-mitológico, seja como uma tentativa de expressar a con-turbada história recente dos judeus. Este poema, publicado original-mente em 1967 na coletânea Atemwende, faz uma releitura da fuga dos judeus do Egito rumo à Terra Prometida, como possível alegoria para a situação dos refugiados da Segunda Guerra Mundial.

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Fumaça pascal, flutuando,com a quilha de letrasno centro.

(Nunca foi céu.Mas mar vermelho-chama ainda émar.)

Nós aqui, nós,contentes da travessia, frente à tenda,onde você assou o pão do desertode uma língua comigrante.

No canto mais extremo da visão: a dançade duas espadas sobre acorda da sombra cardíaca.

A rede por baixo, amarradapelos fins depensamento – quãoprofunda?

Lá: um centavo de eternidademastigado, cuspidopara nós através da malha.

Três vozes de areia, trêsescorpiões:o povo-hóspede, conoscono barco.

Osterqualm, flutend, mitder buchstabenähnlichen

Kielspur inmitten.

(Niemals war Himmel.Doch Meer ist noch, brandrot,Meer.)

Wir hier, wir,überfahrtsfroh, vor dem Zelt,wo du Wüstenbrot bukstaus mitgewanderter Sprache.

Am äussersten Blickrand: der Tanzzweier Klingen übersHerzschattenseil.

Das Netz darunter, geknüpftaus Gedanken-enden - in welcherTiefe?

Da: der zerbisseneEwigkeitsgroschen, zu unsheraufgespien durch die Maschen.

Drei Sandstimmen, dreiSkorpione:das Gastvolk, mit unsim Kahn.

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“Je ne suis pas loin de moi”, de Christophe Tarkos

tradução de Mario Sagayama

tradução

o poeta francês Christophe Tarkos (1963-2004) despontou no cenário da poesia francesa nos anos 1990, despertando a atenção de críticos e poetas ao ter seu nome associado a uma produção intensa. Desenvolveu trabalhos como performer, escritor e editor. Coeditou, com Nathalie Quintane, as revistas R.R (1993) e Facial (1999), que contou, também, com as parcerias com Christian Prigent e Vincent Tholomé. Destaca-se, ainda, a aparição de Tarkos na Revue de litté-rature générale (1996), editada por Pierre Alféri e Olivier Cadiot, um marco na produção de poesia da década. Hoje, boa parte de seus li-vros é de difícil acesso por não ter sido reeditada, a não ser os volumes Caisses (1995), Le signe (1998), Anachronisme (2001) e Écrits poétiques (2008).

O poema “Je ne suis pas loin de moi”, publicado em Caisses, pos-sui muitas das suas características mais marcantes, como seu modo particular de conduzir o poema, problematizando questões do sujeito poético e do corpo.

Je ne suis pas loin de moi

je ne suis pas loin de moi, je suis vers autour, je ne peux pas dire exactement où je suis parce que je ne vois pas où et parce que ça change ré-gulièrement, je ne sais pas exactement où je me trouve, je ne pourrais pas par exemple en connaissance de cause mettre directement la main dessus, me diriger directement vers la bonne direction pour l’attraper, mais je me fais confiance, je sais, j’ai l’impression, presque l’assurance que je ne suis pas loin, que c’est disons par là autour, que c’est en essayant à plusieurs reprises de mettre la main dessus que j’y parviens quelquefois, que je mets

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la main dessus, que je parviens à me toucher, ce qui me fait dire qu’en gé-néral je ne suis pas loin de moi, je ne suis pas loin, je l’attrape ou en le lais-sant venir, je ne bouge pas, pas le moins du monde, et le voilà qui vient, qui vient se poser sur ma main alors que je n’ai pas bougé ma main, pour dire que même si je n’ai pas conscience de où il se trouve en général, si je bouge ou si je ne bouge pas ma main, je peux dire qu’il n’est pas très loin, je ne veux pas dire par là qu’il se rapproche exprès de ma main pour le toucher quand je le laisse tranquille et que je ne fais rien pour l’attraper alors il viendrait, en faisant celui qui n’a pas l’intention de l’attraper, ce qui le laisserait venir en confiance, je veux dire que ce n’est pas nécessaire de chercher partout de façon appuyée et fatigante en bougeant les mains dans toutes les directions pour le trouver quand je ne sais pas où il est que je n’ai aucun moyen de le savoir, cela est inutile, c’est en passant la main dans le vague que par hasard je le touche, c’est pourquoi je dis que je ne suis pas loin, qu’en général je suis par là

Eu não estou longe de mim

Eu não estou longe de mim, estou pelo entorno, eu não posso dizer exatamente onde estou porque não vejo onde e porque isso muda regu-larmente, eu não sei exatamente onde me encontro, eu não poderia por exemplo com conhecimento de causa colocar diretamente a mão em cima, dirigir-me diretamente pela direção certa para capturá-lo, mas eu tenho confiança, eu sei, tenho a impressão, quase a segurança de que não es-tou longe, que é, digamos, por aqui, em torno, que é experimentando em várias tentativas colocar a mão em cima que às vezes chego, que coloco a mão em cima, que chego a me tocar, o que me faz dizer que em geral não estou longe de mim, não estou longe, eu o capturo ou ao deixá-lo vir, não me mexo nem um pouquinho, e eis que ele vem, que vem pousar so-bre minha mão ainda que eu não tenha movido minha mão, para dizer que mesmo que eu não tenha consciência de onde ele se encontra em ge-ral, que eu mova ou que não mova minha mão, posso dizer que não está muito longe, eu não quero dizer com isso que ele se aproxime proposital-mente de minha mão para o toque quando o deixo aproximar-se ao não fazer nada, simplesmente porque o deixo tranquilo e que não faço nada para capturá-lo, ele viria então, ao fazer como quem não tem a intenção de capturá-lo, o que o deixaria vir com confiança, quero dizer que não é

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necessário procurar por toda parte de maneira apoiada e cansativa mo-vendo as mãos em todas as direções para encontrá-lo quando não sei onde está, que não tenho nenhum meio de saber, isto é inútil, é ao passar a mão no vago que por acaso eu o toco, é por isso que digo que não estou longe, que em geral estou por aqui.

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Sobre os autores

aline rocha é graduanda em Letras com habilitação em Português e Francês pela Universidade de São Paulo. Atualmente realiza a pes-quisa de iniciação científica intitulada “Comunidade imaginária: a configuração do leitor na poesia de Paulo Henriques Britto”, fi-nanciada pela Fapesp, sob a orientação do Prof. Dr. Marcos Piason Natali. É uma das idealizadoras da Editora Patuá, um projeto de pu-blicação e difusão da produção literária contemporânea. Contato: [email protected]

carolina de pontes rubira é estudante de Letras na Universidade de São Paulo e, há três anos, vem estudando a obra de Julio Cortázar com ênfase na influência do jazz na narrativa do autor.

isabela gaglianone é estudante de Filosofia na Universidade de São Paulo e colaboradora resenhista da Livraria 30porcento.

lilian akemi chinem é estudante de Letras (Português-Francês) na fflch-usp. Faz parte do núcleo Ausência em Cena, no qual atua como assistente musical e atriz. É integrante de dois grupos de estudo sobre música corporal: o Fritos e o coordenado por Fernando Barbosa e Stênio Mendes.

lílian honda, jornalista, aluna da fflch no curso de graduação em Letras, habilitação em português e latim.

mario augusto pedrozo  sagayama  é graduando em Letras na usp (Bacharelado Português-Francês). Desenvolveu a pesquisa de iniciação científica “O Letrismo: a performance e as vanguardas”,

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com financiamento da cnpq, sob orientação do Prof. Dr. Álvaro Faleiros (dlm).

maurício gomes é aluno de graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista cnpq com pesquisas na área de teoria literária. Contato: [email protected].

paulo pereira santana é estudante de graduação da Universidade de São Paulo, onde faz bacharelado e licenciatura em Letras nas habi-litações de Português e Francês. Seus principais interesses de pesqui-sa voltam-se para a literatura brasileira moderna e contemporânea. Profissionalmente, atua como professor de língua francesa.

tiago bentivoglio é aluno do quarto ano do curso de Grego da Universidade de São Paulo. É um dos idealizadores e editores da revis-ta Cisma.

sofia nestrovski é aluna do quarto ano de Letras com habilita-ção em Inglês na Universidade de São Paulo. Publicou traduções de Raymond Queneau na revista Coyote, n. 20. É uma das editoras e idea-lizadoras da revista Cisma.

walter solon é graduando em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e cursou Literatura Alemã na Universidade de Colônia, Alemanha. Publicou contos na coletânea Seiva e Risco (Terracota, 2010\) e traduziu as “Regras do método sociológico” de Durkheim (Edipro, 2012\). Blog: http://holoclaustro.blogspot.com

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r evista de cr ítica liter ár ia e tr adução

ano i – número 1 – 2012

Tudo já foi ditoFranz Kafka e Gonçalo Tavares,

Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Bernardo Carvalho e Luis Miguel Nava,

Julio Cortázar, Enrique Vila-Matas, Nuno Ramos, Paulo Henriques Britto

Entrevistas comStephen Harrison e Jacques Donguy

Textos traduzidos deChristophe Tarkos e Paul Celan

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