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Revista Convergência Lusíada, 23

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Revista Convergência Lusíada, 23

Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro

DIRETORIA (Biênio 2006/2008)

Antonio Gomes da Costa (Presidente)Alcides Martins (Vice-Presidente Administrativo)

DEPARTAMENTOSCentro de Estudos:

Gilda da Conceição Santos (Vice-Presidente)Madalena Simões de Almeida Vaz Pinto (Diretora)

Biblioteca:António Basílio Gomes Rodrigues (Vice-Presidente)

Esther Caldas Guimarães Bertoletti (Diretora)Secretaria:

Albino Ferreira Macedo (Vice-Presidente)Armênio Santiago Cardoso (Diretor)

Finanças:Jorge Manuel Mendes Reis Costa (Vice-Presidente)

Francisco Gomes da Costa (Diretor)Patrimônio:

Agostinho da Rocha Ferreira dos Santos (Vice-Presidente)Ângelo Leite Horto (Diretor)

Procuradoria:Bernardino Alves dos Reis (Vice-Presidente)

Antônio da Silva Correia (Diretor)Centro Cultural:

António da Silva Peña Loulé (Vice-Presidente)José Manuel Matos Nicolau (Diretor)

Diretores:João Manuel Marcos Rodrigues Reino

Joaquim Manuel Esparteiro Lopes da CostaLuís Patrício Miranda de Avillez

Carlos Alberto Soares dos Reis Martins

Sede Própria:Rua Luís de Camões, 30 – Centro

20051-020 – Rio de Janeiro – RJ – BrasilTelefone: 55 (21) 2221-3138 – Fax: 55 (21) 2221-2960

[email protected]

Torne-se sócio do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.

Revista Convergência Lusíada, 23

Número especialCentenário de Agostinho da Silva

(1906–2006)

Real Gabinete Português de Leitura do Rio de JaneiroCentro de Estudos

1º Semestre - 2007

Pede-se permuta. We ask for exchange. Pide-se canje. On demande l’échange.Man bittet um Austausch. Chiedesi scambio.

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Revista Convergência LusíadaISSN 1414-0381

CONSELHO EDITORIALA. Gomes da CostaAntónio Basílio RodriguesAntónio da Silva Peña LouléBeatriz BerriniCarlos ReisCleonice BerardinelliElza MineEsther BertolettiEvanildo BecharaGilberto VelhoGilda SantosIzabel MargatoJorge Fernandes da SilveiraLaura Cavalcante PadilhaLélia Parreira DuarteMarisa Lajolo

ORGANIZAÇÃO DESTE NÚMEROAntónio Gomes da Costa - Editor Amon Pinho DaviCarlos Francisco MouraGilda Santos

Revisão de textos em inglês:Berty Biron e Natália GuerreiroPreparação de originais: Sebastião Edson MacedoRevisão: José Bernardino CottaCapa: Rossana HenriquesEditoração: Rossana Henriques e Ruy Barbosa

Ilustração da capa: “Agostinho da Silva, poeta à solta” – Ilustração de Victor Hugo Marrei-ros segundo idéia de Luís Sá Cunha (edição do “Elos Clube de Macau”, Junho de 2006)

Pórtico

A. Gomes da Costa Homenagem a Agostinho ............................................................................11

Depoimento

Luís Sá Cunha Com Agostinho: Macau no Quinto Império ...............................................15

Ensaios

Adriano de Freixo A Língua Portuguesa como Utopia: Agostinho da Silva e o Ideal da Comunidade Lusófona ............................................................21

Amon Pinho A diáspora da inteligência lusa na hermenêutica histórica de Agostinho da Silva: uma teoria antielitista da história de Portugal? ..............................................................................28

António Braz Teixeira Agostinho da Silva e a “Escola de São Paulo” .............................................45

António Cândido Franco Nótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva ..............................55

António Telmo Agostinho da Silva e os Titãs .......................................................................63

Carlos Francisco Moura O Professor Agostinho da Silva e o Núcleo de Documentação e Informação de História Regional da Universidade Federal de Mato Grosso .........................................................................68

SUMÁRIO

Celeste Natário A arte de viver em Agostinho da Silva ........................................................75

Constança Marcondes César Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito ............................79

Dalila Pereira da Costa Agostinho da Silva: Um Filósofo Pedagogo e uma Teocracia ......................88

Germán Labrador Méndez Poética da Nação em Agostinho da Silva. Comunidades de discurso globalizadas e hermenêutica da literatura nacional.................93 Helena Maria Briosa e Mota Agostinho e a Literatura Portuguesa .........................................................112 Henryk Siewierski Brasil, país do futuro: segundo Stefan Zweig e Agostinho da Silva ..................................................................................148

Isaque Pereira de Carvalho Teologia e mitopoiética da história em Agostinho da Silva ......................159

João Ferreira O pensamento filosófico de Agostinho da Silva .........................................170

João Maria de Freitas Branco Subsídios para um perfil filosófico .............................................................180

Joaquim Domingues Ser ou não ser filósofo ................................................................................205

José Eduardo Reis A genealogia do pensamento utopista de Agostinho da Silva ...................212

José Santiago Naud Deus e liberdade em Agostinho da Silva ...................................................228

Magda Costa Carvalho Como “cada momento do mundo é mais rico e complexo do que o anterior”: Agostinho da Silva e Henri Bergson ........................232

Manuel Cândido Pimentel O Fingimento – Permanência de um tema pessoano em Agostinho da Silva ...............................................................................244

Maria Leonor L. O. Xavier Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge .........................259

Miguel Real Agostinho da Silva, personificação do intelectual português .....................272

Olga Pombo A Escola como Memória do Futuro ..........................................................281

Paulo Borges Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística de Agostinho da Silva ................................................................................292

Pinharanda Gomes Tito Lucrécio Caro segundo Agostinho da Silva ........................................326

Renato Epifânio A Visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa ................................................................................331

Romana Valente Pinho O racionalismo-místico: a herança de António Sérgio no pensamento de Agostinho da Silva .......................................................342

Documentos

Amon Pinho Antologia Comemorativa: nota prévia......................................................356

Agostinho da Silva Filosofia Nova ..........................................................................................358 O Problema das Penínsulas Mediterrâneas .............................................362 Duas Idades de Ouro ...............................................................................372 Reflexão sobre Dinheiro ...........................................................................375 Comunidade e Política .............................................................................379 Filosofia Nacional ....................................................................................382 Perspectiva Brasileira de uma Política Africana ......................................386 Fontes e Pontes do Futuro. Tema: Educadores Portugueses – António Sérgio ...........................................394 Alguma Nota sobre Casais ........................................................................400 Ombrear com Herculano ..........................................................................405

Resenhas

Miguel Real Sobre o pensamento de Agostinho da Silva Visão analítica e plural .............................................................................409 Visão culturalista .....................................................................................418 Visão espiritualista ....................................................................................422 Visão racionalista ......................................................................................438

Quem somos: o PPRLB .......................................................................444

Normas editoriais da revista Convergência Lusíada ........445

PÓRTICO

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Homenagem a Agostinho

No 1º centenário de nascimento de Agostinho da Silva, o Real Gabinete Português de Leitura dedica à memória do Mestre este número especial da Convergência Lusíada.

Reuniram-se, além de textos dele próprio, vários estudos e trabalhos de autoria de alguns de seus amigos, que tiveram o privilégio de conviver com ele, no Brasil ou em Portugal, e de outros, que sendo também admira-dores de sua Obra e de seu Magistério repartiram a distância com Agostinho da Silva o “Reino do Espírito Santo” e a visão do “Quinto Império”.

Com feitiço e sem licença, todos foram condôminos de sonhos, de uto-pias e esperanças.

Em nome do Real Gabinete Português de Leitura, agradecemos penho-radamente a valiosa colaboração que recebemos para editar este número de louvor e de homenagem a um Homem que, nas palavras de António Sérgio, foi, acima de tudo, um Apóstolo. Que nos perdoem os demais autores dos escritos ora publicados, mas permitimo-nos destacar, desde logo, o trabalho admirável que teve para a edição deste número o Professor Amon Pinho, tanto na seleção e organização da antologia agostiniana, como no empenho junto a vários colaboradores e na excelência dos textos de sua autoria.

Conhecemos pessoalmente Agostinho da Silva depois de seu retorno definitivo a Lisboa. Por várias vezes estivemos em sua casa – ou no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade – a ouvir as análises que fazia, com rara clarividência e sem compromissos, sobre o Brasil e “o mundo que os portugueses criaram”. Nem todas as suas projeções feitas, na maioria das vezes, em períodos de mu-tações políticas e sociais foram confirmadas pelos acontecimentos posteriores, o que foi uma pena, como ele, talvez já desconfiasse, olhando os mapas dos continentes, a insensibilidade dos políticos e os nevoeiros da costa...

Por seu conselho e com sua ajuda, elaboramos o esboço de estatutos de uma Fundação que teria por escopo principal construir “pontes” de diversos tamanhos e espécies entre os países e as comunidades de Língua Portuguesa. E foi com base nesse projeto e nas conversas de Agostinho da Silva que pouco tempo depois, juntamente com o Embaixador José Manuel Fragoso, fomos ter

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com empresários portugueses e brasileiros (cerca de 20) para convencê-los a criar a Fundação Cultural Brasil-Portugal. Tinha ela o objetivo de promover, nos campos da Educação, da Cultura, das Artes, das Ciências e da Cooperação o desenvolvimento entre os povos de Língua Portuguesa, independentemente das diversidades étnicas, políticas ou religiosas. A missão foi cumprida com êxito e, então, pensamos que poderia estar ali o embrião do sonho maior de Agostinho da Silva. Sentimos que o fruto que tínhamos nas mãos poderia ama-durecer. Nas “cartas várias” que mandava periodicamente a seus amigos, não só de Portugal, mas também do estrangeiro, ele, que era homem de ação, mas tinha o jeito de missionário e o olhar de monge contemplativo, nunca tocava em meios materiais. Nem sequer nas despesas de fotocópias e de correio que pagava do próprio bolso para enviar suas reflexões. A propósito desse traço de seu caráter, vale a pena lembrar o encontro que teve com o Primeiro-Ministro Cavaco Silva e do pedido que lhe fez ao final da conversa: “Um dia, se eu preci-sar de alguma coisa para a qual não me chegue o dinheiro, então, nessa altura, tomarei a liberdade de lhe dizer quanto preciso...” (Vide A Última Conversa de Luiz Machado.) No entanto, numa das tardes em que falávamos sobre a Fun-dação, deixou-nos entrever que a idéia já de anos não avançara, não porque esperasse verbas do Governo ou o apoio de grandes mecenas, pois, no fundo, o que queria era que se formasse uma corrente gigantesca de homens de boa vontade, dispersos por todo o espaço da lusofonia, unidos pela Língua e pela Cultura, parceiros de sonhos e de valores espirituais, que estivessem dispostos a apontar caminhos de futuro e a lutar pela construção de um mundo novo – e um mundo melhor.

A. Gomes da Costa

DePOIMenTO

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Com Agostinho: Macau no Quinto Império

Luís Sá Cunha*

Foi há vinte anos. Vésperas da minha partida para a longíngua Ma-cau (“a que foi que tão longe nos trouxeram?”, inquiria Camilo Pessanha...).

Francisco Palma Dias “marcou-me” um encontro de despedida com Agostinho da Silva.

Acabado de chegar, depois de 20 anos no Tibete, o Francisco, na sua figura e verbo, transparecia a paz e a luz só hauridas naquelas alturas onde convivem o azul e o oiro puros.

Agostinho da Silva lá estava, com o seu perfil de medalha antiga, na sua simpleza de profeta humilde, de pobre franciscano esmoler de infinitos, ou de marinheiro aparelhado a todas as navegações e pronto a todas as par-tidas sempre.

Por todos os lados, os gatos, calmos, imprevisíveis, no suave “ballet” dos gestos elásticos.

Na parede, fascinava um caixilho com duas dezenas de nós de mari-nheiro: que imaginação, que flexibilidade, que delicadeza de rendado operado pelos grossos dedos dos homens do mar!

Foram quatro, cinco (?) horas de conversa vadia, ao melhor estilo de Agostinho da Silva, em trina comunhão encerrada num inolvidável ritual de despedida. É que tive o pressentimento, então inconsciente, de ter sido ali no-meado para uma nova missão, como se espada invisível me aflorasse os om-bros. Só tive consciência mais clara desse momento, e desse desígnio, muitos anos mais tarde em Macau.

* Luís Sá Cunha, residente em Macau há 20 anos, foi Director da Revista da Cultura do Instituto Cultural de Macau (1986-2001), editou um número especial sobre as relações históricas Macau/Brasil, prefaciado por Agostinho da Silva). É actualmente Secretário-Geral do Instituto Internacional de Macau, Presidente do Elos Clube de Macau, Membro do Conselho Permanente do Conselho das Comunidades Macaenses e da Direcção da Confraria da Gastronomia Macaense, e Director das revistas Macau/Focus e Oriente/Ocidente do Instituto Internacional de Macau.

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Durante muitos anos Director da Revista da Cultura do Instituto Cul-tural de Macau (de 1986 a 2001), procurei que fosse entroncado um ramo da sinologia e do orientalismo ao movimento da cultura de expressão lusófona nos finais do século XX.

Em Macau, depois do desfalecimento de Portugal em Alcácer-Qui-bir, continuara, sob o dossel do Padroado, o movimento do grande encon-tro de culturas convocado pela vocação universalista da alma lusíada.

Depois de “descobrir” o Outro, impunha-se a fase seguinte de conhe-cer e compreender o “Outro”. No meio das cinzas de uma pátria esvaída, só o verbo áureo do P.e António Vieira teve assomos enérgicos de vibrar o clarim para continuar. Mas só em Macau, pelos jesuítas, encandecidos no sonho de evangelização do Japão e da China, o movimento espiritual logrou operar o maior fenómeno de mútuo conhecimento e compenetração culturais alguma vez acontecido em algum tempo na História da Humanidade.

Também tudo isso foi entrando em vias de esgoto, pelas eras, mas a sua memória e continuidade foram retomadas nos finais do século passado, nos quinze anos em que Portugal preparou o retorno de Macau à mãe China.

Quando em 1995 aconteceu o tempo de dedicar um número integral da Revista da Cultura às ligações históricas entre Macau e o Brasil, foi como se um grande oceano do passado refluísse aos tempos presentes e logo surgiu a lembrança de convocar a voz mais própria à apresentação da edição – Mestre Agostinho da Silva.

Contactei-o para lhe pedir que me transmitisse por escrito um resumo do que explicara, abrira, iluminara e propusera sobre a missão de Macau na religação ao mundo da Língua Portuguesa e concretamente ao Brasil, naquela conversa em sua casa em maio de 1986.

Para ele, o movimento agora teria que ser em sentido contrário, e Ma-cau, cabo do mundo lusíada, teria como missão trazer o Oriente para Ociden-te, passando por África de permeio em direcção ao planalto brasileiro – reno-vada cosmografia espiritual de um abraço do universo ao universo.

Só mais tarde percebi que um certo optimismo transparecente nas suas palavras provinha talvez da materialização daquela edição. Longe de Portugal, ignorava eu então que Agostinho da Silva se desiludira, em textos anteriores, do contributo de Macau para a arquitectação da Pátria Lusófona, porque Ma-cau se abolira em fábricas de jogo. Nada haveria que esperar mais de Macau... As aparências davam-lhe razão, num momento em que a imagem projectada pelas notícias inculcava aquela degenerescência da civitas de Macau, irremedi-ável e exclusivamente cristalizada como cidade do jogo.

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Era um tempo em que Agostinho balançava entre duas esperançosas expectativas – se seria a China de Deng Xiao Ping (a despertar para a comu-nidade das nações e para o cumprimento de uma nova etapa do seu destino) ou o Brasil-síntese-do-todo-universal ao encontro do futuro – qual dos dois equivalentes espaços protagonizaria o movimento prossecutor da escatologia do Reino dos Céus na Terra, regida a ecúmena dos homens pelo Evangelho Eterno, e pousando a coroa imperial sobre a fronte da Criança.

Logo se viu que Agostinho mentava a prioridade do Brasil, nau capitânea de todo o espaço lusófono na demanda daquele eschaton de perfeição na Terra.

Se há ditado popular que valha um inteiro sistema de filosofia será aquele em que a voz popular (que é de Deus) confia em que escreve Deus direi-to por linhas tortas. Foi girando o planeta e foram girando as roletas dos casi-nos, as ideias dos homens e os novos cenários. Em Macau, sempre os relógios rolaram mais depressa. Por orientação de Pequim, Macau passou a ser, desde há dois anos, a plataforma de intercâmbios comerciais entre a China e os Pa-íses de Língua Portuguesa. Logo se enfileiraram algumas iniciativas culturais a acolitar tantas e tão gradas operações económicas, o que não estava previsto nos planos lucrativos. Em dois anos viu-se a espantosa multiplicação de factos e realizações que confirmaram Macau como centro propulsor e dinamizador de um arrastado ânimo, retracto e titubeante, do movimento lusófono. Não há mês, não há semana, que se não realize em Macau qualquer encontro ou seminário de instituições ou classes profissionais dos países lusófonos.

Depois do Fórum Para a Cooperação Económica e Comercial (já re-alizado duas vezes), os 1os. Jogos da Lusofonia convocaram a Macau o mais belo convívio de embaixadas humanas de todos os territórios que em Portu-guês se conversam.

No Instituto Internacional de Macau, assinámos mais de quarenta protocolos, em seis anos, com grandes instituições de países lusófonos, sobre-tudo do Brasil, que permanentemente são confirmados em actos, realizações e contactos mútuos. Organizaram-se seminários e publicaram-se livros, verbi gratia, um volume em chinês do principal especialista em assuntos do Brasil da Academia de Ciências Sociais de Pequim, com a história económica, políti-ca e social do Brasil, dos anos de 1920 ao fim do século XX.

Aliado à Fundação Jorge Álvares, à Fundação Calouste Gulbenkian e à Comissão Organizadora dos 1os. Jogos da Lusofonia, o Instituto Internacional acabou de realizar em Macau o “1º Encontro de Poetas Lusófonos e Chineses”, onde foram convocadas algumas das mais altas vozes das ars poetica da luso-fonia e da China.

Com Agostinho: Macau no Quinto Império Luis Sá Cunha

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O Elos Clube de Macau propôs-se, durante este ano de assinalamento do Centenário do nascimento do Mestre, associar-se ao grande programa de actos comemorativos, tendo organizado a mostra de duas exposições evoca-tivas de Agostinho da Silva e uma evocação do Mestre durante a Assembleia Geral de AULP em Macau (juntamente com o IIM) e editado um pôster come-morativo (“Agostinho da Silva, Poeta à Solta”) e um desdobrável com um texto de Agostinho alusivo à relação de Macau com o Brasil (que titulámos “Macau no Quinto Império”).

Prosseguiremos nesta orientação durante o ano de 2007, e pelos próxi-mos, em meio de ventos que nos rodeiam ou de absoluta calma ou de rajadas ponteiras.

Agostinho da Silva, cremos bem, teria ficado contente, ao ver as coisas a mexer assim, e, assim, tocadas de imprevisibilidade, sopradas pelo Espírito.

Em Agostinho, vemos agora, sobretudo, o Profeta da Pátria lusófona, antecipação na Terra daquela Jerusalém que há-de descender dos Céus pa-ra aqui implantar a sua puríssima arquitectura diamantina. Pátria lusófona que, por razões písticas e sóficas, vemos destinada a embrionar a sua síntese no Brasil.

Aqui, de Macau, polarizados no seu pensamento e modelo humano, trabalharemos para o progresso daquele projecto universal, que é cultural, e de síntese da Europa e África e Oriente, onde Macau continuará a ser ponte de influência, para o Ocidente, da disciplina confucionista depois superada pela libertária e imprevisível vadiagem taoísta, quando começar a ser o tem-po de ser Deus.

Em Macau – neste princípio de Milénio, na auscultação dos arcanos mais fundos da Pátria da Luz e na contemplativa intuição das leis cíclicas a que as Eras obedecem, crentes na transcendente emergência daquela ínclita Pátria, pátria de mátrias conversáveis na unidade da mesma língua, modelo da irmandade universal, operadora da religação do separado e de harmonização dos contrários, abolidora das distâncias e das divergências, transmutadora do tempo em espaço para realizar a eternidade no presente, onde Tudo é para to-dos, gratuita a Vida e o Eterno Evangelho será falado em Português.

Em Macau, também aparelhamos já a nau para o desembarque ama-nhã nas areias doiradas da Ilha dos Amores.

enSAIOS

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A Língua Portuguesa como Utopia: Agostinho da Silva e o Ideal da Comunidade Lusófona

Adriano de Freixo*

Em julho de 1996 – há exatamente onze anos – era criada oficialmente a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP–, em uma Cimeira realizada em Lisboa que reuniu os Chefes de Estado e de Governo dos sete países – Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe – que então adotavam o português como idioma oficial. A articulação efetiva desta organização internacional representou a concreti-zação do velho ideal da construção de uma “Comunidade Lusófona” presente, pelo menos, desde o final do século XIX e revivido reiteradas vezes ao longo do século XX.

No entanto, foi a partir da segunda metade do século passado – quan-do diversos intelectuais brasileiros e, principalmente, portugueses começaram a pensar na constituição dessa comunidade, sob diferentes perspectivas – que esta idéia começou efetivamente a ganhar força:

A CPLP é uma visão de caráter mais ou menos utópico, a partir da década de 50, teorizada por intelectuais da craveira de Agostinho da Silva, Gilber-to Freyre, Joaquim Barradas de Carvalho, Adriano Moreira, Darcy Ribeiro, entre outros. Era o sonho que então se designava por Comunidade Luso-Afro-Brasileira.1

Porém, embora a concretização da criação da CPLP se deva muito à atuação de um brasileiro – José Aparecido de Oliveira, Embaixador em Lisboa durante o governo de Itamar Franco (1992-1994) –, foi o Estado português o

* Doutorando em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Coordenador do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário Metodista Bennett. É Mestre em História Política pela UERJ. Organizou, juntamente com Oswaldo Munteal Filho, os livros A Ditadura em Debate: Estado e Sociedade nos Anos do Autoritarismo (Rio de Janeiro: Contraponto, 2005) e O Brasil de João Goulart: Um Projeto de Nação (Rio de Janeiro: Contraponto/Editora da PUC-Rio, 2006).

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grande incentivador de sua criação. É importante ressaltar que, na década de 1980, setores da elite política portuguesa – notadamente do Partido Socialista – e da intelectualidade progressista encamparam o ideal da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e que, nesse momento, se procurou construir um consenso nacional em torno da sua construção, através da idéia da “lusofonia”, uma releitura, em novos parâmetros, do discurso secular da originalidade da cultura portuguesa e das marcas que ela deixou no mundo, a partir das gran-des navegações dos séculos XV e XVI.

Deste modo, era necessário referendar esse discurso buscando em ex-periências passadas ou em escritos de intelectuais e pensadores bastante dis-tintos entre si os elementos necessários para o processo de legitimação dessa Comunidade, então em processo de gestação. Isso ocorre na perspectiva da “invenção de tradições” explicitada por E. Hobsbawm e T. Ranger, no mo-mento em que Portugal ensaia o seu “retorno à África” depois de quase uma década de esquecimento. Esses autores, ao analisarem as “tradições inventa-das”, afirmam que elas parecem classificar-se em três categorias superpostas:

a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade; e c) aquelas cujo propósito principal é a socialização de idéias, sistemas de valores e padrões de comportamento.2

No entanto, como os mesmos autores deixam claro, mesmo as tradi-ções inventadas devem possuir respaldo social, senão não conseguiriam so-breviver.3 Assim, a idéia da Comunidade Lusófona busca apoio em elementos bastante presentes no imaginário social português, desde a percepção de que aquela pequena nação teria desempenhado um papel singular na História do Mundo Ocidental até o velho, e sempre presente, sonho imperial.

O resgate dessas questões foi essencial para a construção do discurso que procura legitimar a constituição de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, visto que, como argumenta Enilde Fausltich, um dos pontos de vista possíveis para se apreender o conceito de lusofonia é aquele que:

(...) localiza em todos os portos tocados pelos portugueses, nos quais a língua foi disseminada, como espaço de lusofonia. Nestes, os sujeitos são identitários de uma cultura ibérica que, em maior ou menor grau, formou a cidadania do Estado-nação. 4

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Assim, a obra de diversos dentre esses intelectuais começou a ser res-gatada e relida, dentro da perspectiva de legitimação do discurso da lusofonia e da CPLP que então estava sendo articulada. Nesse contexto, alguns deles são lembrados – nos discursos oficiais e na produção intelectual do período – como “pais-fundadores” da nascente Comunidade, os visionários que teriam antevisto a integração do mundo lusófono e formulado as suas bases teóricas e – por que não dizer – ideológicas.5 Dentre eles, destaca-se a figura de Agostinho da Silva (1906-1994), um dos mais originais pensadores portugueses do século XX.

Freqüentemente citado em discursos e mesmo em documentos ofi-ciais como um dos inspiradores da CPLP, Agostinho da Silva – “misto de edu-cador, filósofo e pensador, considerado como uma espécie de guia espiritual de parte da intelectualidade brasileira e portuguesa deste século”6 – formulou a concepção de uma “Comunidade Luso-Afro-Brasileira” bastante original e pessoal refletindo uma visão de caráter universalista, místico, visionário, espi-ritualista, mítico e messiânico que remonta aos escritos de Joaquim de Fiore – na Idade Média – sobre o “Reino do Espírito” e os do P.e António Viei-ra sobre o “Quinto Império”. Para ele, Portugal, responsável pelo início do processo de mundialização, carregaria uma missão histórico-messiânica: a de ser o responsável pela paz mundial devido aos laços constituídos por ele, no passado, com os diversos povos do mundo, pois “se, no passado, Portugal uni-ficou o mar, sua tarefa futura será a unificação do mundo pelo espírito, pela língua, constituindo-se a nação portuguesa como a pátria virtual de quan-tos a falam”,7 entendendo, assim, esse Portugal como, acima de tudo, a língua portuguesa e seus valores e não mais o Portugal-Território preso aos limites de suas fronteiras geográficas.8 Dessa maneira, essa “missão” concretizar-se-ia através de uma Comunidade de Língua Portuguesa em que Portugal se sacrificaria, enquanto nação, para ser só mais um dos elementos componentes dessa Comunidade que marcaria o início de uma nova era:

A Comunidade Luso-Brasileira tem de ser, quando existir, não outra qualquer espécie de Império, uma força concorrendo com outras forças, uma outra centralização que siga a monótona corrente das centraliza-ções, mas realmente o começo de uma vida nova para a Humanidade, o primeiro passo seguro para a reconquista de um Paraíso que só tem estado em espírito de teólogos ou de filósofos ou de poetas, mas que jamais entrou nas cogitações de políticos; a linha mística e religiosa tem de ser aqui mais importante do que as argúcias dos realistas que manejam homens como se eles não fossem à imagem e semelhança de Deus: e nenhuma economia, nenhuma sociologia, nenhum ato huma-

A Língua Portuguesa como Utopia... Adriano de Freixo

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no verdadeiramente criador tem de ser considerado senão como o sinal, a manifestação e a indicação de que está na vontade divina, na própria estrutura do evoluir no mundo, que ele siga pelos caminhos a que a Comunidade o pode dirigir.9

Crítico dos sistemas políticos contemporâneos, Agostinho da Silva definia o capitalismo como uma fatalidade histórica da qual os homens de-veriam libertar-se e considerava o socialismo – apesar de melhor do que o seu sistema antagônico – imperfeito. Para ele, um dia “tanto o capitalismo como o socialismo desaparecerão da face do mundo, já que a revolução que se aproxima, de base tecnológica, determinará a supressão quase completa do trabalho obrigatório. Essa ocupação passará a ser desempenhada pelas má-quinas, voltando o homem à sua verdadeira vocação”.10 O mundo novo com o qual ele sonhava consistia na “expressão crescente de homens seguros de que é possível, pela técnica, garantir vida e acesso aos bens da cultura a todos; homens abertos ao amor e a ação”.11

Nesta nova era, a língua portuguesa desempenharia um papel funda-mental por ser falada em todas as partes do globo e representar o símbolo da expansão portuguesa que lançou as bases da construção do “novo mundo”, do “Reino do Espírito”. Nesta nova ordem, o Brasil teria um papel fundamental, pois traria em si os elementos do verdadeiro Portugal, aquele Portugal arcaico que se perdeu com o fracasso histórico da nação. Para ele, em sua utopia, o Brasil é a concretização do sonho do Quinto Império, é a Ilha dos Amores de Camões, o Não-Lugar capaz de ser o centro de uma nova civilização por ser o ponto de encontro de diversas culturas, onde a miscigenação favoreceu a tolerância e a moderação. O significado do Brasil para Agostinho da Silva é bastante perceptível quando ele descreve os seus sentimentos e impressões ao chegar ao país, fugindo do obscurantismo salazarista:

Então ao chegar ao Brasil, logo várias coisas foram sucedendo. A pri-meira, talvez, foi a que me encontrei a mim próprio; de repente, des-cobri-me, sem que houvesse qualquer ato voluntário: (...) eu me deixei levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo vir de fo-ra, efetivamente, me batia à porta para que eu abrisse. (...) me deixei abrir, me deixei ser o que eu próprio na realidade era (...). Afinal, o que era? Eu como que dei um pulo atrás de mim próprio e fui inserir-me no século XV (...), e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em direção à África para fugirem do regime econômico, social e religioso de Portugal ou que depois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer, o que o

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Brasil fez comigo, logo que lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no chão, para ir cair aí pelo século XV ou XVI. (...) Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim próprio, eu fui outro. (...) O segundo ponto foi o de descobrir no Brasil aquele Portugal que eu pre-cisava compreender, aquele Portugal que nunca mais me desapareceu do espírito, e que hoje permanece nítido.12

Dessa forma, o verdadeiro Portugal, o Portugal real, concretizar-se-ia nesta comunidade em que a verdadeira pátria de todos os povos lusófonos – brasileiros, portugueses, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos, timo-renses e demais – seria a língua portuguesa, o idioma universal, por excelência.

Sem exercer uma militância política direta no Brasil, além de articu-lar-se com o grupo de intelectuais portugueses aqui exilados, Agostinho da Silva ocupou o cargo de Assessor de Política Cultural Externa da Presidência da República, no início dos anos de 1960. Neste período, estabeleceu uma sólida relação de amizade com políticos e intelectuais brasileiros como Darcy Ribeiro – sobre quem exerceu grande influência – e José Aparecido de Oliveira, que chega a afirmar que “a Política Externa Independente de Jânio Quadros, com sua inclinação para a África e para a Ásia, teve em Agostinho da Silva um de seus inspiradores”.13 Essa afirmação é feita, sem sombra de dúvidas, porque na nova “ordem mundial”, pensada por Agostinho da Silva, países como o Brasil, o México e a China deveriam desempenhar um papel fundamental, visto que, em sua concepção, a crise do nosso tempo é a crise da civilização européia – e, por extensão, da civilização ocidental – racional e materialista. Assim, o Brasil, lugar por excelência da fusão de etnias e culturas, seria o pólo do “Reino do Espírito” e deveria buscar o “diálogo” com o Oriente – em especial com a China – para abrir caminho para uma nova “idade do ouro” para a humanidade.

Retornando a Portugal, continuou com uma intensa produção inte-lectual, além de desenvolver outras atividades, como, por exemplo, a apresen-tação de um programa de televisão intitulado “Conversas Vadias”, uma ilha de inteligência em meio à mesmice televisiva. Além disso, na década de 1980, tor-nou-se Diretor do Centro de Estudos Latino-Americanos do Instituto de Rela-ções Internacionais da Universidade Técnica de Lisboa e do Gabinete de Apoio do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa do Ministério da Educação, além de continuar a proferir palestras e conferências em diversas partes do mundo, sempre difundindo a cultura portuguesa e os ideais pelos quais lutou ao longo de sua vida. Em 1994, morreu em Lisboa aos 88 anos de idade deixando cen-tenas de discípulos – seduzidos por suas idéias, onde a cultura e a civilização

A Língua Portuguesa como Utopia... Adriano de Freixo

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portuguesas aparecem com um papel da maior importância na realização do homem em sua totalidade – que se articulam em torno de instituições como a Associação Agostinho da Silva e o Círculo dos Amigos de Agostinho.

Portanto, se realmente podemos falar em “pais-fundadores” da CPLP, Agostinho da Silva é um dos mais importantes – ao lado de Gilberto Freyre – dentre eles. Arauto do “Quinto Império”, que se concretizaria através da Língua Portuguesa – um império sem imperadores, no sentido estrito do termo –, ele imagina o reinado da fraternidade universal, onde a humanidade atingiria a sua plenitude, mesclando a liberdade com o bem-estar econômico e social. Até que ponto a CPLP – a “Comunidade Lusófona” efetivamente existente – pode con-tribuir para a concretização dessa utopia é algo passível de inúmeros questiona-mentos; porém, sem sombra de dúvida, é um belo sonho a ser sonhado. E como diz uma conhecida canção portuguesa “(...) sempre que um homem sonha/o mundo pula e avança/como bola colorida/ entre as mãos de uma criança”.14

Notas1 BRAGA, José Alberto (Coord.). José Aparecido: o homem que cravou uma lança na lua. Lisboa: Trinova Edito-ra, 1999, p. 37.

2 HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (Orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, 2a ed, p. 17.

3 Idem. p. 272.

4 FAULSTICH, Enilde. “CPLP: um lugar de falas múltiplas”. In: SARAIVA, José Flávio (Org.). CPLP – Comuni-dade dos Países de Língua Portuguesa. Brasília: IBRI, 2001, p. 118.

5 Utilizamos aqui a concepção de “Ideologia” formulada por Antonio Gramsci. Nesse sentido, a ideologia deve ser entendida como um discurso que justifica/explica, simbolicamente, as práticas dos diversos grupos sociais; sendo assim, não podemos considerá-la como “falseamento do real”, mas como “(...) uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas (...)”. In: GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética de História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, 8ª ed., p.16.

6 RIBEIRO, Maria de Fátima Maia. “À Volta da Comunidade: formações luso-brasileiras em colóquio”. In: SANTOS, Gilda (Org). Brasil e Portugal: 500 Anos de Enlaces e Desenlaces – revista Convergência Lusíada, no 17 (Número Especial). Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2000, pp. 246-7.

7 VARELA, Maria Helena. “O Visionário Agostinho da Silva: Sofia e Paradoxia”. In: Convergência Lusíada, no 16. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1999, pp. 88-89.

8 CESAR, Constança Marcondes. “Entre o Oriente e o Ocidente: Agostinho da Silva”. In: Convergência Lusíada, no 14. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 1997, p. 90.

9 Trecho da comunicação “Condições e missão da comunidade luso-brasileira”, proferida por Agostinho da Sil-va no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros promovido, em 1959, pela Universidade da Bahia e pela UNESCO, citado pela: RIBEIRO, Maria de Fátima Maia,. op. cit., p. 247.

10 BRAGA, José Alberto. Op. cit., pp. 31-32.

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11 CESAR, Constança Marcondes. Op. cit., p. 91.

12 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organi-zação e prefácio de Henryk Siewierski, pp. 86-88 e 101.

13 BRAGA, José Alberto. Op. cit. p. 33.

14 “Pedra Filosofal”. António Gedeão e Manuel Freire.

ResumoA partir da década de 1980, a constituição de uma Comunidade de Países de Língua Por-

tuguesa tornou-se uma das questões centrais da política externa do Estado português,

ao mesmo tempo em que amplos setores da sociedade daquele país eram mobilizados

em torno do discurso da lusofonia. Nesse processo, as idéias de alguns intelectuais que

desenvolveram diferentes visões de uma “Comunidade Lusófona” ao longo do século XX

foram resgatadas dentro da perspectiva de legitimação da atual CPLP que então estava

sendo criada. Dentre eles destaca-se a figura de Agostinho da Silva, um dos mais origi-

nais pensadores portugueses do último século, que é comumente lembrado como um dos

“pais-fundadores” dessa Comunidade e que desenvolveu em diversas de suas obras uma

concepção bastante original do que ela deveria ser e de qual papel poderia desempenhar

na ordem mundial contemporânea.

Palavras-chaves: Lusofonia; CPLP; Portugal; Agostinho da Silva.

AbstractSince the 1980’s decade, the creation of a Community of Portuguese Language Countries

(CPLP) became one of the main concerns of Portugal’s foreign policy. Concurrently, vast

sectors of the Portuguese society became involved in the debate about Lusophony. In this

process, in order to legitimate the CPLP that was then being created, the ideas of some

intellectuals who developed various concepts of a “Portuguese-Speaking Community”

throughout the twentieth century were recovered. Among those intellectuals stands Agos-

tinho da Silva, one of the most original Portuguese thinkers of the last century. Usually

remembered as one of the “founding fathers” of the Community, he developed in several

of his works a rather original concept of what the Community should be and what role it

could perform in the contemporary world order.

Keywords: Lusophony; CPLP; Portugal; Agostinho da Silva.

A Língua Portuguesa como Utopia... Adriano de Freixo

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A diáspora da inteligência lusa na hermenêutica histórica de Agostinho da Silva: uma teoria antielitista da história de Portugal?1

Amon Pinho*

(...) a minha ida para o Brasil, em 1940, realizou-se sob o imperati-vo de circunstâncias alheias à minha vontade. A expatriação é sempre dolorosa. Mas nenhum país pode para um português substituir a sua pátria, a não ser o Brasil. Depois, viver no Brasil é conhecer, sob certos aspectos, um Portugal mais português que o da metrópole (...). Não é pequena lição e proveito para um português haver compreendido este fato e transformá-lo em programa de ação. O Brasil é hoje [segunda metade dos anos 1950] uma nação essencialmente americana, com tendências, interesses e ideais americanistas. (...) tendem a esquecer, quando não a depreciar, as origens portuguesas do Brasil. A todo e qualquer português cabe, pois, ali, uma ação catalisadora: marcar, pela simples presença e uma conduta exemplar, a substância, a excelência e o prestígio daquelas origens. (...) afirmar o que, apesar dos erros inevi-táveis, houve de benéfico na ação colonizadora dos portugueses. Esse foi constantemente o meu programa.

Jaime Zuzarte Cortesão

* Doutor em História Social pela FFLCH-USP. Membro dos Projetos “Agostinho da Silva: Estudo do Espólio” e “A Questão de Deus. História e Crítica”, ambos vinculados ao Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa; vem desenvolvendo, no âmbito do segundo projeto, um estudo sobre a teologia negativa do filósofo e crítico literário judeu-alemão Walter Benjamin. Entre outros escritos, é autor de Hermenêutica e Materialismo Histórico na Encruzilhada da História: Leituras especulares de Gadamer e Benjamin; Notas sobre europeísmo e iberismo no pensamento de Agostinho da Silva; e de O Pensamento Político do Jovem Agostinho da Silva: da primeira Faculdade de Letras do Porto e da Renascença Portuguesa ao ingresso no grupo Seara Nova; É co-organizador do In Memo-riam de Agostinho da Silva: 100 anos, 150 nomes. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006; e do Caderno de Lembranças, autobiografia de Agostinho da Silva, igualmente publicado pelas Edições Zéfiro.

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“Acho que conhecer o Brasil é, talvez, a coisa fundamental da minha vi-da. Se nunca tivesse saído de Portugal, nunca teria percebido o que há de essencial na cultura portuguesa e que me parece estar muito mais vivo, muito mais claro no Brasil”.

Agostinho da Silva

Objetivo neste escrito definir a teoria da história portuguesa elabo-rada por Agostinho da Silva, em meados do século passado, enquanto uma teoria antielitista da história. O que, a meu ver, necessariamente requer o desenvolvimento e a explicitação dum par de pressupostos. Em primeiro lugar, um pressuposto de caráter histórico-político-cultural. E, em segundo, o que poderíamos denominar uma pressuposição biográfica.

O pressuposto de caráter histórico-político-cultural diz respeito à sig-nificativa emigração de intelectuais portugueses para o Brasil, entre os anos de 1940 e 1974, cuja expressiva extensão e intensidade acabou por constituir o que um renomado crítico literário brasileiro, Antônio Cândido, com a propriedade que lhe é peculiar, denominou de “uma não planejada ‘missão portuguesa’”.2

“Não planejada” porque diferente daquelas missões de professores estrangeiros que, na década de 1930, foram contratadas, compostas e plane-jadas oficialmente, junto aos governos dos seus respectivos países, para então colaborar no processo de implantação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, fundada em 1934. Não houve, nesse processo de implantação, a participação de uma missão portuguesa. Houve uma missão francesa e uma missão italiana, podendo-se também falar de uma missão alemã, mas por extensão, posto que constituída, de forma vir-tual, por professores judeu-alemães recrutados individualmente e à margem do governo hitlerista que os proscrevia.

Os portugueses, todavia, não estiveram totalmente ausentes nos tem-pos inaugurais da Universidade de São Paulo. O filólogo Francisco da Luz Re-belo Gonçalves, primeiramente, e, depois, Fidelino de Figueiredo e Urbano Canuto Soares lá deram a sua contribuição. Mas, como foram apenas três, a sua presença não chegou a configurar nem mesmo uma missão de caráter tá-cito e virtual, contratada individualmente, como foi o caso da alemã.3

No entanto, como observa Antônio Cândido, “quando pensamos [a partir da década de 1940] na atuação de tantos intelectuais portugueses no Brasil (...), vem logo a idéia de que eles constituíram ao longo dos anos um agrupamento virtual de grande importância, que pesou mais do que se pensa em muitos setores: Jornalismo; Artes Plásticas; Política; Ensino Universitário

A diáspora da inteligência lusa... Amon Pinho

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de Letras, História, Filosofia, Matemática. Se concebermos essa ampla ativi-dade como emanada de um conjunto não sistemático nem cronologicamente concentrado de pessoas, veremos que ela abrangeu boa parte do país e contri-buiu para o adensamento de nossa cultura. Daí o rótulo que propus de ‘missão portuguesa’ para designar essa atuação”.4

Como se sabe, na origem da emigração de quase todos esses intelectuais lusos, estava a situação política determinada pelo Estado Novo de Antônio de Oliveira Salazar, cuja Polícia de Vigilância e de Defesa do Estado (PVDE) pu-nha e dispunha dos destinos alheios. Polícia política fascista não apenas no nome (depois modificado para Polícia Internacional e de Defesa do Estado – PIDE), mas sobretudo no exercício dos seus poderes quase ilimitados e que, por exemplo e para permanecermos no âmbito do que aqui nos interessa, pu-nha e dispunha do corpo científico e docente das universidades portuguesas, demitindo ou admitindo quem melhor lhe conviesse.

Testemunha eloqüente desse estado de coisas foi o historiador e pro-fessor Joaquim Barradas de Carvalho, então exilado no Brasil e, coincidente-mente, ensinando na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, só que cerca de trinta anos depois de Rebelo Gonçalves. Pois bem, Barradas de Carvalho escreveu, a partir de 1964, uma série de artigos para o jornal Portugal Democrático, editado por anti-salazaristas portugueses radicados na cidade de São Paulo, artigos que tratavam precisamente da situ-ação vexatória das universidades na sua terra natal.

No que abre a série, afirma-se que “uma das principais vítimas do obs-curantismo salazarista tem sido a Universidade, e um dos principais meios de ação desse obscurantismo têm sido as ‘limpezas’ sucessivas a que ela tem sido submetida. Às demissões isoladas sucederam-se as demissões coletivas e a essas sucedeu um apertado policiamento na admissão de professores”.5 E pros-segue Barradas de Carvalho: “Em mais de trinta anos de regime salazarista a Universidade portuguesa tem sofrido golpes só comparáveis aos sofridos pela Universidade alemã nos tempos de Hitler, pela Universidade italiana nos tem-pos de Mussolini ou pela Universidade espanhola no período de instauração do regime de Franco.” 6

Constrangidos dessa e doutras formas em seus direitos sociais e políticos e restringidos, quando não impedidos, no exercício das funções dos seus ofícios (os não-acadêmicos, inclusive), a muitos intelectuais portugueses não restou se-não o caminho da expatriação. “E daí poder dizer-se, com uma ironia repassada de melancolia, que Portugal ‘exporta’ quadros científicos”,7 pois “a verdade cientí-fica não é compatível com a quietude do cemitério que é o Portugal de Salazar”.8

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Originada, portanto, num regime que semeava e disseminava o em-pobrecimento de espírito, a diáspora da inteligência lusa desdobrou-se, no outro lado do Atlântico, num importante e enriquecedor contributo ao uni-verso da cultura brasileira. Se no Portugal da malfamada PIDE os intelectuais que não coadunavam com o Poder encontravam-se à margem das institui-ções universitárias, no Brasil eles terminaram por coletivamente constituir uma não planejada, tácita, virtual e livre missão portuguesa cuja atuação deu-se no seio mesmo das instituições oficiais de ensino, nas quais muitas vezes desempenharam o papel de fundadores.

Circularam então pelo Brasil daqueles idos lusos homens de letras da envergadura de um Jaime Cortesão, de um Hernâni Cidade, de um Adolfo Ca-sais Monteiro, de um Jorge de Sena, de um Eduardo Lourenço, de um Eudoro de Sousa, para não falar num Manuel Rodrigues Lapa, num Vítor Ramos, num Barradas de Carvalho ou em tantos outros cujas sementes germinaram não no meio acadêmico, mas no jornalismo, nas artes, na literatura e na poesia.

Essas décadas que separam os anos de 1940 dos de 1970 testemunha-ram a manifestação, no Brasil, do que de melhor havia na cultura de expressão portuguesa, e que pelas mecânicas contraditórias, complexas e surpreendentes da história cá veio frutificar. Atente-se, por exemplo, que não era em Lisboa, no Porto ou em Coimbra que a mais qualificada escola de matemáticos portu-gueses se exercia, era no Recife, na Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco), onde lecionavam Ruy Luís Gomes, José Morgado, Alfredo Pereira Gomes e Manuel Zaluar Nunes, todos professores universitá-rios perseguidos pela ditadura de Salazar.9

Agostinho da Silva, que, a propósito, também ensinou na Univer-sidade do Recife, vivenciou e protagonizou intensamente esse marco fun-damental do diálogo cultural luso-brasileiro, marco que, tanto quanto sua obra, até pouco tempo atrás não era suficientemente lembrado, estudado ou discutido no Brasil, mas que parece agora estar revivescendo, ainda que timidamente, mas revivescendo, à sombra de algumas universidades e inicia-tivas. Os livros Intelectuais Portugueses e a Cultura Brasileira, publicados em 2002, e A Missão Portuguesa, editado em 2003, parecem, ao menos, sinalizar nesse sentido.

Mas, como dizia, Agostinho participou ativamente dos movimentos e realizações plasmados na corrente dessa interlocução atlântica ancorada em terra, influenciando e deixando-se influenciar. Mais precisamente, ele mergu-lhou fundo na sua experiência de Brasil e terminou por encontrar o que se lhe apresentou como o fundamento e o firmamento de Portugal e de si mesmo.

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A citação é longa, mas vale a pena: “Então ao chegar ao Brasil, logo vá-rias coisas foram sucedendo. A primeira, talvez, foi a que me encontrei a mim próprio; de repente, descobri-me, sem que houvesse qualquer ato voluntário: (...) eu me deixei levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo vir de fora, efetivamente, me batia à porta para que eu abrisse. (...) [Eu] me deixei abrir, me deixei ser o que eu próprio na realidade era (...). Quer dizer, a minha abertura no Brasil, no meio em que mergulhei (...), é a tal viagem às nascentes: abandonei-me à corrente e parece que o rio dava uma volta ao mundo sobre si próprio, voltava à nascente e depois eu não tinha mais traba-lho nenhum senão o de deixar levar-me pelas águas, abandonar-me completa-mente ao que ia acontecendo pelo mundo. (...) uma atitude de (...) ir ao sabor da corrente e depois a própria corrente ia-me fazer encontrar aquilo que de fato poderia ser interessante e que no fundo me formou. [¶] Afinal, o que era? Eu como que dei um pulo atrás de mim próprio e fui inserir-me no século XV (...), e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em direção à África para fugirem do regime econômico, social e religioso de Portugal, ou que de-pois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer: o que o Brasil fez comigo, logo que lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no chão, para ir cair aí pelo século XV ou XVI.”10 “Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim próprio, eu fui outro.”11 “O segundo ponto foi o de descobrir no Brasil aquele Portugal que eu precisava compreender, aquele Portugal que nunca mais me desapareceu do espírito, [e] que hoje permanece nítido.”12

Entre a chegada de Agostinho à América Ibérica, em 1944, e o mo-mento em que se perfazem as vivências pessoais há pouco referidas, haviam se passado cerca de dez anos. Estamos em 1952, e Agostinho dirige-se a um dos estados da Região Nordeste do Brasil, a Paraíba, então governada por José Américo de Almeida. Político e escritor, autor de um romance que renovou a literatura regionalista nordestina, José Américo pretendia implantar o en-sino de nível superior naquela unidade da Federação. E para lá se deslocou Agostinho da Silva, de modo a se integrar ao grupo dos professores que iriam estabelecer os primeiros pilares acadêmicos da Universidade.

O interessante, porém, a se notar é que a experiência de Agostinho, tanto na capital quanto no sertão da Paraíba, onde também desenvolveu ati-vidades, não consistiu apenas nos termos exteriores da fundação de uma uni-versidade e da atuação como professor de ensino superior, consistiu sobretudo nos termos interiores da refundição de si próprio, isto é, numa metanóia ou revolução pessoal de caráter singular. “Então lá, afirma Agostinho, ao fim de

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dois anos, é que entendi o meu fenômeno e o de Portugal no seu conjunto.”13

Mas com o que, afinal, o autor de Considerações se deparou na Pa-raíba, a ponto de se dizer outro, mais aberto, livre e verdadeiro; a ponto de assumir que ali ele apreendeu algo de essencial, encontrando-se a si e desco-brindo efetivamente Portugal, algo que no fundo o formou e que era relativo às suas nascentes, quer dizer, ao que lhe era originário?

Agostinho da Silva se deparou com sobrevivências de um Portugal que ele pensava morto e apagado; um Portugal que não lhe era vivamente familiar ou que lhe era, apenas, livrescamente familiar. Um Portugal cuja li-nha essencial de vida havia sido brutalmente interrompida pelas infiltrações estrangeiras do capitalismo comercial, do absolutismo real e da Contra-Re-forma, e que, portanto, foi se tornando residual desde fins do século XV a começos do XVI, para não mais soerguer-se. E, nesse sentido, é esclarecedor considerar, para um mais largo entendimento de aspectos decisivos da vida e da obra de Agostinho da Silva, o Salazarismo como uma espécie de citação do obscurantismo de longa duração que, desde o Quinhentos, toldara o belo e austero perfil do rosto helênico, romano e cristão, também mouro e tam-bém judeu, da Península. E note que eu disse “da Península” e não “da Euro-pa”, posto que, para Agostinho, tributário que era do pensamento da geração (espanhola) de 1898 – de Miguel de Unamuno e de Ángel Ganivet, principal-mente –, “Ibéria não é Europa”.14

Se “geologicamente a África só começa umas tantas léguas depois do estreito de Gibraltar”,15 cultural e etnicamente há uma extensão signi-ficativa dela nas gentes e terras de Portugal e Espanha, herança dos sécu-los de ocupação árabe, e durante a qual, por certo período, a Península foi “mestra incontestada de europeus”:16 “quando judeus, cristãos e muçulma-nos conviviam do Mediterrâneo ao Atlântico; quando em Toledo se cele-bram num mesmo recinto os três grandes cultos de Cristo, Moisés e Mao mé; quando se teve com o Califado um dos poucos períodos da História que pode ombrear com o de Péricles ou o dos Tang; quando ensinamos à Europa os algarismos, a álgebra, a filosofia grega e a geografia árabe.”17

A Ibéria, portanto, corporifica um fenômeno étnico-cultural intermé-dio entre África e Europa ou – para utilizarmos as palavras de um autor caro a Agostinho, e também ele leitor marcado pelos escritos da geração de 98 – uma “espécie de bicontinentalidade”, na qual a Europa reina “sem governar: gover-nando antes a África”.18

Daí que, na visão de Agostinho da Silva, a Europa ela-mesma, tout court, está para além da cadeia montanhosa dos Pireneus; uma Europa vin-

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cada pelo Direito Romano redivivo e pelas idéias políticas de Maquiavel, por uma economia guiada pelo lucro, uma reforma religiosa que aprova o princí-pio do juro e uma ciência que vai mais pela sujeição da natureza do que pela sua contemplação. Numa palavra, a Europa que se alicerça no exercício da dominação.

É essa a Europa cujas tropas invadem a Península, segundo o autor de Reflexão, manifestando-se, por exemplo, no regime opressor e centralista de Castela sobre as demais regiões da Ibéria. E que a invadem pelas formas de pensar, agir e sentir das elites locais (da nobreza, do clero e da realeza), pois se trata não de tropas militares, mas de tropas culturais. Em Portugal, com Dom João II, o Príncipe Perfeito, vem junto Maquiavel;19 com Dom Manuel I, o capitalismo comercial do império venturoso da pimenta; com Dom João III, a Inquisição; e com Dom Pedro II, o triunfo da Monarquia absoluta.

E para trás, soterrado e esquecido, quedou-se aquele Portugal medie-val que Agostinho, inspirando-se em Alexandre Herculano e Jaime Cortesão, entre outros, pensava enquanto uma Monarquia popular e democrática, com suas Cortes e concelhos, seu comunitarismo agro-pastoril e sua educação pela experiência da liberdade criativa. Um Portugal marcado pela presença do es-piritualismo franciscano, pela religiosidade do Espírito Santo, e no qual con-viviam, como já referido, mouros, judeus e cristãos.20

É o encontro com as sobrevivências seculares de certos aspectos deste Portugal medieval, na Paraíba, aquilo que desperta Agostinho, em sua meta-nóia ou revolução pessoal, para uma nova concepção de si e de sua terra natal. E o órganon desse despertar, isto é, o meio pelo qual esse despertar se realiza, é o fenômeno da semelhança ou das correspondências históricas. No caso, o fenômeno da profunda semelhança entre duas situações separadas no tempo por séculos e cujas afinidades não causalmente se elegeram.

Na esteira do notável historiador-filósofo judeu-alemão Walter Benja-min, a semelhança histórica é concebida, aqui, como a expressão da trama do passado no tecido do presente, como a forma de aparição dos acontecimentos do ontem citados nos acontecimentos do hoje, ou seja, como o modo de ma-nifestação dos mais atuais aspectos do passado: daqueles aspectos do passado que nos são lembrados pelo devir dos acontecimentos presentes, em razão das correspondências ou afinidades que apresentam entre si.

Em seu vir a ser, os acontecimentos presentes, com maior ou menor grau de explicitação, como que citam os acontecimentos passados que lhes são semelhantes. Mas perceber essas citações, nem sempre evidentes, do se-melhante é algo que depende da qualidade da atenção e do grau de conheci-

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mento do intérprete. Pois, verdade seja dita, o presente a todo o momento cita o passado. Do passado, o presente se encontra repleno, e no seu desdobrar-se precipitam-se séculos.

“A verdadeira imagem do passado [considera Benjamin] perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irre-versivelmente, no momento em que é reconhecido (...). Pois irrecupe-rável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela.”21 “Cada presente é determinado pelas imagens [do passado] que lhe são sincrônicas; cada Agora é o Agora de uma conhecibilidade determinada.”22

Ao perceber, especialmente no tecido da cultura popular tradicional do sertão do Nordeste brasileiro, a trama de determinados aspectos da Idade Média portuguesa, Agostinho compreendeu o quanto aquele passado, em positivo, lhe visava, concernia-lhe, tornava-se-lhe sincrônico, e o quanto esse mesmo passado, em negativo, concernia à própria experiência histórica do Portugal de sua época, então dominado por Salazar.

Se Agostinho da Silva, tal como diz, se sentiu como os portugueses de fins do século XV a começos do XVI, que por incompatibilidade abandona-ram o Portugal do capitalismo comercial, do absolutismo real e do catolicismo ortodoxo de Trento, quer dizer, um país que se lhes havia tornado econômica, política e religiosamente insuportável, se assim ele se sentiu, é porque no devir dos acontecimentos da sua experiência de vida produziu-se algo de efetiva-mente correspondente ou semelhante.

É essa, ao menos, a interpretação que ele mesmo perspicazmente deu, quer na já mencionada Vida Conversável, quer em interlocução decorrida anos antes, na qual com toda a clareza declarou: vim para o Brasil “na esteira de milha-res de portugueses que, a partir do século XVI, a ele vieram na busca de espaço ideológico que o absolutismo real, o capitalismo comercial e a Contra-Reforma lhes haviam estreitado na Pátria, já que não há verdadeiramente Portugal, nem nação alguma se poderá reclamar de seu cerne, se não for simultaneamente de democracia popular, de coletivismo econômico e de liberdade religiosa. Vim em 1944, depois de demitido do lugar de professor por me ter recusado a hipotecar a minha liberdade futura, num protesto que só tive por companheiro Fernando Pessoa, o que faz pensar em quanto a obediência dos povos alimenta a tirania dos governos; (...) e de me ter sido proibida a campanha de educação do povo que empreendera com publicações, exposições e palestras”.23

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Agostinho da Silva expatria-se de Portugal motivado sobretudo pe-la situação política adversa representada pelo Salazarismo. E que para ele se projetou não apenas enquanto proibição da extraordinária campanha de edu-cação do povo, que empreendeu com um conjunto notável de atividades de divulgação cultural, mas também como perseguição e ameaças, espionagem e interceptação indiscriminada de correspondência, confiscação de bens pes-soais, prisão e tortura.

A atmosfera do País tornou-se-lhe irrespirável, tanto quanto séculos antes se havia tornado para o que ele chama os “verdadeiros”, os “tradiciona-listas” ou “reais portugueses”,24 isto é, os portugueses que não compactuaram com os rumos políticos, econômicos e espirituais do Portugal quinhentista, tão adversos à carreira medieval portuguesa, e que emigraram para o Brasil, levando, segundo sua concepção, o melhor espírito de Portugal.

O espírito de um Portugal essencialmente popular que, no Portugal invadido pelas tropas culturais européias, se ia abastardando sob os interesses econômicos e políticos dos seus dirigentes e das suas elites. Espírito presente, por exemplo, no fenômeno paradigmático do culto popular do Divino Espí-rito Santo, perseguido e proibido pela Inquisição e, por extensão, banido para as ilhas atlânticas e para o Brasil, onde veio a se tornar, no caso das extensas e não facilmente fiscalizáveis terras brasileiras, o cerne de um catolicismo po-pular exuberante, colorido, festivo e profundamente mestiço, profundamente entrecruzado pelos legados culturais africano e ameríndio.

Meu Divino Espírito SantoDa Glória celestialMe ajude a vencerEsta batalha real

Esta batalha realNós havemos de vencêA mesma croa [coroa] divinaEla é de nos valê,25

São versos que, ainda hoje, com força, beleza e verdade resso-am no cantar das negro-mestiças caixeiras do Divino Espírito Santo da Casa Fanti Ashanti, de São Luís, no Maranhão, para citarmos uma dentre tantas outras celebrações populares à Terceira Pessoa da Trindade, vivamente espraiadas por todo o Brasil, como para citarmos uma dentre tantas outras

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expressões da cultura popular tradicional brasileira que, se perspectivadas em conjunto e para além da vulgar acepção corrente de folclore – não obstan-te folklore signifique, etimologicamente, “conhecimento, saber, educação, do povo” –, nos permitem entrever que, “observadas a fundo, há camadas subter-râneas da cultura [tradicional popular] brasileira que convergem para visões inspiradas de concórdia, solidariedade e justiça, as quais destoam dramatica-mente do destino de desigualdade, violência e obscurantismo que marcam a história do país.”26 Sintomático e conseqüente “destoar”, aliás, diga-se. Pois não é o sofrimento o fundamento da busca da felicidade? E não é o desespero o húmus da fé e da esperança? Ou, para lançarmos mão de um exemplo de base, não é a extenuante faina diária do trabalhador braçal o que está na raiz do que de mais belo há nos cantos de trabalho?

Historicamente submetido, explorado, marginalizado, sofrido – pro-fundamente sofrido –, no culto ao Divino Espírito Santo, ao coroar uma criança como imperador do mundo; ao libertar os presos das prisões; e ao servir um banquete gratuito para todos que nele se queiram banquetear, perfazendo assim os três precípuos momentos deste auto do Pentecostes, em que, ainda hoje, o que se comemora não é o passado, mas uma idéia-imagem do futuro – declara

“o povo em primeiro lugar, e quantos já o viram ou de tal souberam jamais o poderão esquecer, que a figura mais importante no mundo é a de Criança, que do mundo se coroa Imperador (...); é a Criança quem deve mandar em nós todos, primeiro para que nos dê alguma coisa de sua imaginação, de sua inocência, de seu contínuo sonho, de seu esquecer-se de tempo e de espaço, de sua levitante vida, e depois para que dela se desenvolva, sem que nenhuma qualidade se perca e muitas outras se acrescentem, um adulto bem diferente de nós, que tão brutos somos, em parte por desistências ou covardias nossas, em parte porque a vida ainda é uma violenta luta e algum deleite ainda nós (...) tiramos de nosso triste papel nas referidas lutas.[¶] Posta a Criança em primeiro lugar, num penhor de que toda a nossa ativida-de a ela vai, como devia, ter por centro, para que para sempre desapa-reçam as crianças famintas, as crianças nuas, as crianças escravas, as crianças mártires (...), volta-se esse povo das ilhas, e de muito ponto do Brasil, como outrora se voltava o de todo o território português, para o que sofrem os adultos no mundo em que vivemos. A grande festa do culto, logo depois de coroado o novo redentor monarca, era e é o banquete geral, todo de comidas oferecidas, gratuitas (...); nin-guém haveria com fome naquela idade nova [a do Espírito Santo]

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que começava, todos teriam, por existir, o direito de continuar vivos. (...) ninguém deve haver no mundo passando fome, quer se trate da fome que significa não comer mesmo, quer da fome de carências em proteína, vitamina ou gordura, quer da fome de abrigo, quer da fome de amor; que há para que tal se consiga sistemas econômicos que não se baseiam na concorrência, na exploração dos outros e no lucro individual, duramente, cruelmente conseguido.”27

Na simbólica do culto popular do Divino Espírito Santo, Agostinho pois, com razão, discernia aspirações, valores e ideais de renovação, de ima-ginação criadora e de justiça social, de prosperidade, de fraternidade e de li-berdade. Não eram os presos, por sua vez, libertos de suas cadeias físicas e espirituais? Daí que o que sobretudo importa dizer é que é nesta apreciação agostiniana de aspectos simbólicos da cultura popular tradicional luso-afro-brasileira – que ele preferencialmente perspectivava pelo prisma da Festa do Divino – que está fundada a noção agostiniana de povo, povo com o qual George Agostinho dizia ter aprendido “o sentido profundo das tradições por-tuguesas transplantadas para o Brasil e no Brasil florescendo.”28

Pensar a teoria agostiniana da história portuguesa enquanto uma teo-ria antielitista da história significa ter em conta os tais pressupostos de cunho histórico-político-cultural e biográfico, tanto como o conjunto de questões de que me ocupei até agora, e que podem ser resumidos no interessante e peda-gógico paralelo que a categoria da semelhança histórica nos permite explorar. Paralelo não apenas explicativo, quero dizer, teórico, mas efetivo. E tão efetivo que Agostinho da Silva o experienciou de forma substantiva e determinante.

É este paralelo histórico, estabelecido não por relações causais e me-cânicas, mas por relações dialéticas de semelhança, a pedra angular da teoria agostiniana da história portuguesa, teoria na qual o presente compreende-se e define-se pelo passado e o passado pelo presente, em que o Portugal do século XX compreende-se e define-se pelo do século XVI e vice-versa. Um transitar entre duas épocas, diria o historiador francês Marc Bloch.

A teoria da história elaborada por Agostinho da Silva não se resume a uma perspectiva compreensiva (hermenêutica) do passado português; ela tam-bém constitui-se numa reflexão política sobre o seu tempo presente, numa crí-tica aguda das instituições antidemocráticas do Estado Novo português, que o perseguiu a ele, que o oprimiu a ele e a tantos outros que se exilaram no Brasil, para lá também levando, analogamente aos “tradicionalistas” ou “verdadeiros portugueses” do Quinhentos tendências do melhor espírito de Portugal.

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Se defino como antielitista esta teoria da história, é porque suponho que só assim conquistamos uma compreensão mais completa e acertada dela; só assim conseguimos capturar, pelo entendimento, o ponto central a partir do qual ela se articula. Que há nela mitopoese ou um “vezo lírico”,29 para utilizar-mos a expressão de Agostinho, disso ninguém duvida, nem mesmo ele próprio, que conhecia a história de Portugal como poucos e que se definia, à semelhan-ça de Fernando Pessoa, como um “artista criador de mitos supremos.”30

Mas não apenas. Agostinho pensou-se igualmente como propugnador de uma política livre, não partidária e não dogmática, sempre atento ao papel dos grupos dirigentes, por um lado, e ao dos populares, por outro, nos desdo-bramentos cruciais da história política, social, econômica e cultural portugue-sa. Tendo sido, por cerca de dez anos, entre 1928 e 1938, um dos mais ativos colaboradores do grupo e da revista Seara Nova, não esquecera a tese seareira de que a vida política duma nação é, em grande medida, decorrência da sua vida intelectual e do seu movimento de idéias, como das profundas aspirações dos grupos sociais hegemônicos, e de que, portanto, a origem da secular crise nacional residia na aguda degeneração das estruturas mentais da sociedade lusa, as das classes dirigentes precípua e particularmente.

Se defino, portanto, como antielitista a sua construção teórica da his-tória, é porque, nela, são as elites as responsáveis pela introdução daquelas idéias européias que, na forma de capitalismo, do absolutismo e da Contra-Reforma, fraturaram a coluna vertebral de um Portugal popular tradicional-mente comunitarista, municipalista e heterodoxamente religioso. E se eti-mologicamente elite significa “aquilo que há de melhor”, historicamente, no pensamento político de George Agostinho da Silva, é o que há de pior, seja na razão absolutista, seja na razão fascista de Estado.31

A esse propósito, por sinal, e também para finalizar, seria de in-teresse recordar, por um lado, a sua menção concordante a uma obser-vação feita pelo “filósofo do séc. XIX Émile Boutroux, que veio a Portu-gal e disse: ‘Este é um país curiosamente diferente, o oposto da França, onde as elites são estupendas e o povo não presta. Aqui o que pres-ta é o povo, as elites não valem nada’.”32 Por outro, a afirmação de que “o que derruiu Portugal, e por culpa dos mesmos governantes, foi uma falta de senso moral, foi o terem posto a razão de Estado como padrão de ações.”33 “Demasiado em sua vida pretérita obedeceu Portugal às chamadas razões de Estado.”34 “Não que o Povo não protestasse sempre que podia, recusando-se a ser cúmplice dos pecados dos chefes (...). Os chefes, porém, porque o não são plenos, nunca em Portugal ouviram o Povo.”35 E o “espantoso”, o “miraculoso”

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deste Povo, e dos demais Povos que se expressam ou se expressaram em portu-guês “é que tenham sobrevivido a séculos da contínua tentativa de deformação que têm sido os nossos sistemas políticos, as nossas instituições educacionais e as nossas práticas religiosas, tudo de acordo com um capitalismo que re-pugna às suas tendências de generosa solidariedade; que tenham ultrapassado, sobretudo, os exemplos que tantos de cima tanto lhe deram”.36 Os exemplos, reiteraria, que tantos de cima tanto lhe dão:

“(...) até quando, adverso mundo, falharão as revoluções do Povo?”.37

Notas1 O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-nológico – CNPq; inédito no Brasil, trata-se de uma versão revista e ampliada de “Breve interpretação da teoria agostiniana da história portuguesa”, artigo publicado em Portugal, na obra coletiva Agostinho da Silva e o Pen-samento Luso-Brasileiro. Lisboa: Âncora, 2006, pp. 17-31. Organização de Renato Epifânio; introdução de Paulo Alexandre Esteves Borges.

2 Cândido, Antônio. “Intelectuais portugueses e a cultura brasileira”. In: GOBBI, Márcia Valéria Zamboni; FER-NANDES, Maria Lúcia Outeiro; JUNQUEIRA, Renata Soares (orgs.). Intelectuais portugueses e a cultura brasileira: depoimentos e estudos. São Paulo: Editora UNESP; Bauru, SP: EDUSC, 2002, p. 30.

3 A estada de Rebelo Gonçalves, no Brasil, foi breve, estendendo-se de 1935 a 1937; já as do professor de língua e literatura greco-latina Urbano Canuto Soares – de quem Agostinho da Silva foi aluno na Faculdade de Letras da Universidade do Porto – e do ensaísta, crítico literário e professor Fidelino de Figueiredo foram bem mais duradouras, tendo a do primeiro decorrido de 1939 a 1954 e a do segundo de 1938 a 1951. Sobre a presença desses três intelectuais portugueses nos primórdios da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, pode-se também consultar: Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, no. 22, Set./Dez. 1994. Trata-se de número comemorativo dos sessenta anos da Universidade de São Paulo. Encontra-se igualmente disponível em versão eletrônica, no sítio http://www.usp.br/iea/revista. Acesso em: 19 Fev. 2005.

4 Cândido, Antonio. “Prefácio”. In: LEMOS, Fernando; LEITE, Rui Moreira (orgs.). A missão portuguesa: rotas entrecruzadas. São Paulo: Editora UNESP; Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 15.

5 CARVALHO, Joaquim Barradas de. O obscurantismo salazarista. Lisboa: Seara Nova, 1974, p. 13.

6 Id., ibid., p. 13.

7 Id., ibid., p. 14.

8 Id., Ibid., p. 41.

9 Embora sejam políticos os motivos que estiveram na origem da emigração de parte substantiva dos intelec-tuais portugueses que desembarcaram no Brasil, entre os anos de 1940 e 1974, vale lembrar que também pisaram o solo brasileiro pensadores lusos não constrangidos politicamente pelo Salazarismo; ao menos, não diretamente. Frise-se, não obstante, que mesmo estes não encontraram, de uma forma ou de outra, espaço para atuação na exi-güidade do Portugal da época. Abordando a questão no seu aspecto social, e sem referências explícitas, como era de se esperar, ao político, considera Antônio Quadros: “A nossa cultura não é, com efeito, tão pródiga de valores, que possamos dispensar esses que, como Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Casais Monteiro ou Antônio Boto, partiram para o Brasil em busca de novos horizontes. Alguns destes casos revelam flagrantemente a situação social do escritor português (...). Depois da emigração dos trabalhadores rurais será a emigração dos intelectuais? Tão

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difícil é, com efeito, a vida do escritor em Portugal, que não se pode senão lamentar uma decisão tantas vezes sem alternativa. (...) Bem significativo é o caso de Eudoro de Sousa, que, como Agostinho da Silva, encontrou o abrigo na Universidade de Sta. Catarina (...). Era sem dúvida o primeiro helenista português. (...) Possuía uma profunda cultura germânica e conhecia bem a filosofia portuguesa. Mas faltava-lhe o papel, o diploma, a licenciatura. Bateu a todas as portas e todas se lhe fecharam. (...) Mais realista, o Brasil procura a qualidade, não os requisitos buro-cráticos concebidos pelos juristas. E um outro valor acaba de partir, desta vez para a Bahia: Eduardo Lourenço. Estaremos a praticar o suicídio mental, sem ver que está em causa a própria sobrevivência? Justifica-se o grito de alarme. A classe dos escritores é a menos protegida, a mais mal paga, a mais abandonada de todas as classes. Por outro lado, enquanto as cátedras universitárias se tornam por demais permeáveis aos medíocres (...), os valores autênticos sofrem ou emigram (...)”. QUADROS, Antônio. “Agostinho da Silva e a emigração dos intelectuais por-tugueses.” 57, Movimento de Cultura Portuguesa, Cascais, Portugal, no. 5, set. 1958, p. 21. Em respeito à exatidão, observo que este artigo, publicado no (notável) jornal 57, não vem assinado, mas, pelos termos em que está escrito e pela posição central que nele ocupava Antônio Quadros, é deste sem dúvida a sua autoria.

10 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organi-zação e prefácio de Henryk Siewierski, pp. 86-87. As gravações dos diálogos, entre o autor e o organizador, que deram origem a este livro-entrevista datam de 1985.

11 Id., ibid., p. 88.

12 Id., ibid., p. 101.

13 Id., ibid., p. 89.

14 SILVA, Agostinho da. “Bahia: coleção de folhetos [2]”. In: ____. Dispersos. 2a ed. Lisboa: ICALP: Ministério da Educação, 1989. Organização e apresentação de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 494. Bahia: coleção de folhetos [2]. Texto originalmente publicado em 1971.

15 SILVA, Agostinho da. “Moçambique, porto de escala entre o Oriente e o Ocidente” [entrevista]. A Voz de Moçambique, Lourenço Marques, no. 411, 11 abr. 1975, p. 7.

16 SILVA, Agostinho da. “De que há povo”. In: ____. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e brasileira, v. II, Lisboa: Âncora, 2001. Organização de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 59. Texto originalmente publicado em 1970.

17 SILVA, Agostinho da. “Educação de Portugal”. In: ____. Textos pedagógicos, v. II, Lisboa: Âncora, 2000. Orga-nização de Helena Maria Briosa e Mota, p. 106. Livro indispensável, e que pode ser considerado síntese dos mais relevantes e diversificados aspectos do pensamento de Agostinho da Silva, foi redigido em 1970, mas somente publicado em 1989.

18 FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriar-cal. 12ª ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1963, pp. 70-71.

19 É freqüente encontrarmos em escritos de Agostinho da Silva a idéia de que o reinado de D. João II representou a introdução, em Portugal, do maquiavelismo: “Com D. João II entrou Maquiavel ...”, afirma, por exemplo, na sua Re-flexão à margem da literatura portuguesa. Deve-se observar, contudo, que, embora se trate de maquiavelismo, é como maquiavelismo avant la lettre que o devemos compreender. Afinal, aquele rei ocupou o trono português de 1481 a 1495, ou seja, muitos anos antes de Nicolau Maquiavel expor, em O Príncipe, as suas conhecidas idéias amorais sobre conquista e conservação do poder. De todo modo, a “ação do novo rei, a quem os inimigos chamaram O Tirano e os amigos O Príncipe Perfeito, já tem sido relacionada com a teoria política que Maquiavel expõe n’O Príncipe (...). (...) D. João II foi contemporâneo dos Médicis e soube ser um vigoroso representante do estilo de pragmatismo político que então se afirmou na Europa”. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 17ª ed. Mem Martins, Portugal: Publicações Europa-América, 1995, pp. 129-130.

20 Pelos termos esclarecedores da formulação, é de proveito a leitura da seguinte passagem de Agostinho da Sil-va, na qual ressoam ecos não apenas de Herculano e Cortesão, mas também do Antero de Quental das Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos: “(...) ter mentalidade medieval não significa de modo

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algum pensar o que tantos julgam que se pensava, ou antes, se não pensava durante a Idade Média, aqueles para os quais ainda vigora a concepção de que os dez séculos medievais foram épocas de treva e que foi o Renasci-mento que de novo lançou a Humanidade no seu caminho de progresso; ter mentalidade medieval significa para o povo português estar dentro de uma economia coletivista, que vinha já dos tempos pré-romanos e, portanto, contra a economia capitalista que, partindo da Alemanha e da Itália, invade a nação do século XVI; significa igualmente ser fiel às organizações republicanas, democráticas, populares dos concelhos (...); significava ainda que se desejava liberdade religiosa, e é bom lembrarmo-nos de que grande parte dos condenados a degredo para o Brasil o foi por motivos de heresia religiosa, já depois do Concílio de Trento (...). As tradições liberais do país vêm da Idade Média portuguesa, não dos séculos em que Portugal foi inteiramente subjugado pelo capitalismo das viagens de longo curso, pelo absolutismo real baseado no direito cesarista e pela intolerância religiosa que principia, com D. João II, pela perseguição dos judeus e firmemente se estabelece com os inquisidores a partir do reinado de D. João III”. SILVA, Agostinho da. “Num estilo quase de adivinha...”. In: ____. Ensaios sobre cultura e literatura portuguesa e brasileira, v. II, p. 206. Texto originalmente publicado em 1971. Em vista do que se tratará adiante, cabe ainda acrescentar que, no artigo “Noutro ponto a fonte...”, de 1970, inserto neste mesmo volume, D. João II e D. João III são caracterizados como “reis de razão de Estado, frios e calculistas”.

21 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: ____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224 (Obras escolhidas; v. I).

22 BENJAMIN, Walter. Paris, Capitale du XIXe Siècle: Le Livre des Passages. 3e ed. Paris: Les Éditions du Cerf, 2000, p. 479. Embora pareça-nos suficientemente claro, não deixa de ser oportuno observar que não preten-demos aqui efetuar quaisquer aproximações entre os pensamentos de Agostinho da Silva e Walter Benjamin. O recurso aos conceitos benjaminianos de semelhança histórica e “Agora da conhecibilidade” nos interessa na medida em que lançam luz sobre o ponto a partir do qual a teoria agostiniana da história de Portugal se arma, articula ou constitui. Trata-se pois de aportes teóricos, e não de um meio pelo qual propuséssemos estabelecer possíveis conexões entre os dois pensadores, como, por exemplo, inferiu Paulo Archer de Carvalho – a partir da crítica que fez à primeira versão deste texto –, no seu Historiosofia e mitologia: A Ibéria na obra de Agostinho da Silva, comunicação apresentada no Colóquio “Agostinho da Silva e a Ibéria”, promovido pelo Centro de Estudos Ibéricos da Guarda, em 3 de Novembro de 2006, Guarda, Portugal.

23 SILVA, Agostinho da. “Entrevista a Tereza Sá Nogueira” (separata para cem amigos). In: ____. Dispersos, p. 23. Originalmente publicada em 1975.

24 Cf. SILVA, Agostinho da. Reflexão à margem da literatura portuguesa. 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1990, pp. 97-98. Escrito em 1956 e originalmente publicado em 1957.

25 CAIXEIRAS DA CASA FANTI-ASHANTI. “Apareça Santa Croa”. In: ____. Caixeiras da Casa Fanti-Ashanti tocam e cantam para o Divino. São Paulo: Itaú Cultural: Associação Cultural Cachuera!, 2002. 1 CD. Faixa 6.

26 SEVCENKO, Nicolau. Pindorama revisitada: Cultura e sociedade em tempos de virada. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 17.

27 SILVA, Agostinho da. “O Espírito Santo das Ilhas Atlânticas”. In: ____. Dispersos, p. 569. Texto de 1972.

28 SILVA, Agostinho da. “Compostela: Carta sem prazo a seus amigos – Primeira de 71”. In: ____. Dispersos, p. 513. Texto de 1971.

29 SILVA, Agostinho da. “Carta chamada Santiago”. In: ____. Dispersos, p. 605. A carta citada é a de 2 de Julho de 1974.

30 SILVA, Agostinho da. “FPH” [Fragmenta Pharmaceutica]. In: ____. Dispersos, p. 419. Texto originalmente publicado em 1968. Numa das últimas cartas de sua correspondência pública, escrita cerca de um ano antes da própria morte, Agostinho da Silva volta a dissertar sobre este aspecto mitopoético decisivo, mas, a meu ver, não exclusivamente definitivo da sua concepção da História de Portugal. Considerá-lo, aliás, como exclusi-vamente definitivo desta parece-me reducionismo, apreensão incompleta e descomplexificante do seu pene-trante e matizado pensamento, a um tempo, histórico e mítico, político e metafísico (cadinho, por exemplo, da fundamental noção agostiniana do “Portugal-idéia”). E equívoco em que, sintomaticamente, incorrem

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intérpretes e críticos das mais distintas cepas, simpáticos ou não às suas reflexões – tais como as que cons-tam da carta há pouco referida, que passo a citar: “A História de Portugal, inteligente, documentada, válida e duradoura, diz que a Nação nasceu por; se fixou por; se defendeu com pinheirais e castelos sempre por; navegou por; entristeceu e se alegrou por; finalmente acabou por. Aquela História de Portugal pela qual eu vou, História sentimental e fantasiosa, meio inventada talvez em muito ponto, garante-me logo de começo que a Nação nasceu para, se definiu para; casou para; navegou para; desanimou para e reagiu para e acabará para. Eu me explico tanto quanto posso. Nasceu para ocupar a melhor das costas, dando naturalmente para o mar, mas sobretudo para o Oceano, que permite ir a todo lado; para aprender a bolinar; para completar o Im-pério Romano que soberanos e legiões tinham deixado só como esboço, com uns lambiscos de Europa e uns desembarcadouros de África e umas vagas idéias de Ásia; para universalizar Direito tirado pelos romanos da Filosofia grega, como engenharia baseada no Euclides; lógica de guerrear da de pensar; para, depois de ouvir a Isabelinha de Aragão, projetar para o mundo inteiro o entender e adorar o Divino, de ser a criança o maior dos milagres, de não se ter de ganhar a vida, o que a amesquinha, e de não haver prisões, nem as de grades, nem sobretudo, porquanto piores, as que são de dúvidas. Têm razão os sábios, que tanto respeito, que Portugal foi por; mas insisto em pensar, sem autoridade alguma, que Portugal sempre foi, sempre é e sempre será para. Obrigando-nos a todos nós, a que sejamos para, servindo-nos para tal do que somos por. Vocês não acham?” SILVA, Agostinho da. As últimas cartas do Agostinho... Alhos Vedros, Portugal: Cooperativa de Animação Cul-tural, 1995, p. 15. Uma expressão condensada possível do que se acaba de citar, seria o subseqüente aforismo de extração vieirina: “O bom historiador escreve do passado, criticando o presente e projetando o futuro. Toda a história que vale é do futuro. SILVA, Agostinho da. “Pensamento à solta”. In: ____. Textos e ensaios filosóficos, v. II, Lisboa: Âncora, 1999, p. 146. Organização e introdução de Paulo Alexandre Esteves Borges, p. 146. Pensa-mento à solta é obra publicada postumamente, e sua redação parece ter-se dado no despontar dos anos 1980. Por fim, como aditamento matizante do conteúdo epistolar aduzido, incorporo ainda o seguinte excerto: “(...) por aí irei dizendo o que me parece ter sido a história desta Nação – tão lógica em meu espírito, (...) que, respeitando os documentos que já se conhecem, espero que se encontrarão um dia aqueles que vierem a fazer prova do que penso: pois que me é geral concepção a de que a rede do real só se desvia da rede do pensar se não foi este de coerência perfeita”. SILVA, Agostinho da. “Fantasia portuguesa para orquestra de história e de futuro”. In: ____. Dispersos, p. 706. Originalmente publicado em 1982.

31 Por duas vezes, neste trabalho, utilizei-me do termo “fascista” para definir o caráter político do regime dita-torial português encabeçado pelo ex-seminarista de Santa Comba Dão. E o fiz levando em conta as conclusões a que o professor João Medina chegou em seus estudos, dentre as quais transcrevo: “(...) o Salazarismo foi um re-gime autoritário, antiliberal e anti-socialista, visceralmente conservador e tradicionalista, católico e ruralista, um paternalismo ríspido e retrógrado, ainda que sutilmente apostado em camuflar as suas arestas repressivas mais evidentes (...). Fascismo? Digamos que foi antes uma espécie de ‘pseudofascismo’ ou ‘semifascismo’, de ‘fascismo’ cauteloso, manhoso e envergonhado, mais tradicionalista do que agressivamente inspirado em modelos que só relutantemente imitou (ou fingiu imitar), um pragmatismo eclético, uma espécie de integralismo republicano ou de republicanismo conservador monarquizado, um ‘fascismo de cátedra’ (Unamuno) com componentes es-colásticas e castrenses, habilidoso na sua política externa e nas relações com os aliados tradicionais ou naturais, renitente em alinhar-se com belicismos ou proselitismos, tanto de Roma como de Berlim, egoísta e estreito, mas astuto e oportunista. (...) formalmente cortês e cristão, mas, afinal, intoleravelmente opressivo, do pior gênero das violências: aquela que é feita por torcionários disfarçados de bons samaritanos. Não foi assim que os definiu Neruda, num poema sobre o Portugal salazarista: ‘carceleros de luto / retóricos, correctos, / arreando presos a las islas’... ?”. MEDINA, João. Salazar, Hitler e Franco: estudos sobre Salazar e a Ditadura. Lisboa: Livros Horizonte, 2000, pp. 42-43.

32 SILVA, Agostinho da. “Considerações” [entrevista]. A Phala, Lisboa: Assírio & Alvim, no. 10, jul./set. 1988, p. 4.

33 SILVA, Agostinho da. “O Baldio do Povo – 2”. In: ____. Dispersos, p. 534. Texto originalmente publicado em 1971.

34 SILVA, Agostinho da. “Proposição – Aditamento um”. In: ____. Dispersos, p. 629. Texto escrito em 1975.

35 SILVA, Agostinho da. “Carta chamada Santiago”. In: ____. Dispersos, p. 605.

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36 SILVA, Agostinho da. “Educação de Portugal”. In: ____. Textos pedagógicos, v. II, p. 114.

37 SILVA, Agostinho da. “Fantasia portuguesa para orquestra de história e de futuro”. In: ____. Disper-sos, p. 711. Embora tenha optado por não desenvolver neste texto a questão que indico a seguir, devo, re-portando-me a ela, sumariamente considerar que a teoria agostiniana da história portuguesa deve ser compreendida dentro das esferas maiores de uma teoria da história universal – tal como concebida n’A Comédia Latina, ensaio publicado em 1952 (e não, como se supõe, em 1946/1947), enquanto prefácio a peças de Plauto e de Terêncio, selecionadas e traduzidas por Agostinho da Silva em obra homônima – e de uma filosofia ou teologia da história, sobretudo inspirada no pensamento de Joaquim de Fiore (1135-1202), o abade calabrês que escalonou trinitariamente a totalidade do tempo histórico, atribuindo-lhe um sentido último e pro-videncial, nas Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A teoria agostiniana da história portuguesa, portanto, não está voltada somente para a compreensão do passado e para a crítica do presente: é rememoração histórica e reflexão política determinada nos marcos de uma vigorosa e decidida imaginação utópica, profética e messiâ-nica, a que também não escapou uma peculiar, substantiva e significativa assunção do sebastianismo e da noção de Quinto Império, já antes pensados pelo Padre António Vieira e por Fernando Pessoa, assim como da idéia camoniana da Ilha dos Amores. A título de informação, as referências bibliográficas completas da antologia das peças dos comediógrafos mencionados são: PLAUTO, Tito Mácio; AFER, Públio Terêncio. A Comédia Latina. Porto Alegre: Editora Globo, 1952. Prefácio, escolha, tradução e notas de Agostinho da Silva.

ResumoÉ na condição de perseguido político do Estado Novo português que Agostinho da Silva

auto-exila-se no Brasil, neste país vindo a encontrar ou reencontrar tantos outros intelec-

tuais lusos, também aqui expatriados – donde a idéia de uma “missão portuguesa”, conso-

ante os termos de Antônio Cândido –, situação que se nos afigura ter sido decisiva para o

caráter que imprimiu à sua teoria da história de Portugal, neste texto definida enquanto

antielitista. É através da sua experiência de Brasil, de quase um quarto de século, que Agos-

tinho da Silva redescobre-se redescobrindo efetivamente a sua terra natal.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; “missão portuguesa”; teoria da história; cul-

tura popular tradicional; crítica das elites.

AbstractIt is as a refugee from political persecution by the Portuguese Estado Novo (New State)

that Agostinho da Silva exiles himself in Brazil, where he gets to meet or see again many

other Portuguese intellectuals, also expatriates – hence the idea of a “Portuguese mission”,

as Antonio Candido put it. This situation seems to have been decisive for the aspect Agos-

tinho da Silva lent to his theory of Portuguese History, here presented as anti-elitist. It is

through his experience of Brazil, of almost a quarter of a century, that Agostinho da Silva

rediscovers himself rediscovering his homeland.

Keywords: Agostinho da Silva; “Portuguese mission”; theory of history; folk cul-

ture; critique of the elite.

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Agostinho da Silva e a “escola de São Paulo”

António Braz Teixeira*

Por pensarem que as tentativas de compreensão da realidade cultural, histórica e social do Brasil, levadas a cabo pelos promotores da Semana de Arte Moderna de 1922 e seus seguidores, se tinham contribuído, de modo decisi-vo, para renovar profundamente a criação literária e artística, no entanto, ha-viam descurado inteiramente a actividade especulativa que não fosse estética, e que o ensino filosófico ministrado nas universidades brasileiras não curava de estimular a reflexão criadora e autónoma e ignorava ou desvalorizava, so-branceiramente, todo o passado da meditação nacional, como, em diversos termos, anteriormente, o tinham feito Sílvio Romero1 e Leonel Franca,2 em 1949, alguns intelectuais paulistas, de marcada vocação reflexiva, de que se destacavam Miguel Reale (1910), Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) e He-raldo Barbuy (1913-1979), acompanhados por alguns dos mais promissores representantes da nova geração (Luís Washington Vita, Renato Cirell Czerna, Gilberto de Mello Kujawski), decidiram tomar a iniciativa de criar uma nova instituição cultural, destinada a promover a reflexão filosófica livre, a partir da concreta situação espiritual brasileira, e a resgatar o esquecido passado espe-culativo nacional.3

Surgiu, assim, em Outubro desse ano, o Instituto Brasileiro de Filoso-fia, que, a partir do ano seguinte, passou a ter como órgão a Revista Brasileira

* Professor universitário, pensador e ensaísta. Exerceu funções docentes na Faculdade de Direito de Lisboa, na Universidade de Évora e na Universidade Autónoma de Lisboa, onde é, actualmente, professor associado. É membro efectivo da Academia das Ciências de Lisboa, membro correspondente da Academia Portuguesa da História, da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia (Rio de Janeiro) e membro efetivo da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa. É autor, entre outros, de A Filosofia Ju-rídica Portuguesa Actual (1959), O Pensamento Filosófico-Jurídico Português (1983), Sentido e Valor do Direito: Introdução à Filosofia Jurídica (1990), Caminhos e Figuras da Filosofia do Direito Luso-Brasileira (1991), Deus, o Mal e a Saudade (1993), O Pensamento Filosófico de Gonçalves de Magalhães (1994), O Espelho da Razão (1997), Ética, Filosofia e Religião (1997) e Formas e Percursos da Razão Atlântica (2001). Recentemente, publicou ainda A Filosofia da Saudade e Diálogos e Perfis: Estudos sobre o Pensamento Português e Luso-Brasileiro, ambos em 2006. É um dos fundadores do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira.

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de Filosofia, cuja publicação trimestral não sofreu, até hoje, qualquer hiato, suspensão ou atraso, tendo ambos à sua frente, desde o início até hoje, a figura ímpar de Miguel Reale.

Fiel aos seus propósitos fundadores, ao longo destes 55 anos, o Insti-tuto Brasileiro de Filosofia e a sua revista têm conseguido congregar um sig-nificativo número de pensadores e de estudiosos das mais diversas correntes, gerações e orientações especulativas, que aí têm podido expor e confrontar, livremente, as suas ideias, ao mesmo tempo que desenvolveram e estimularam uma inovadora actividade de estudo e reedição dos textos mais importantes da meditação filosófica brasileira, cujos mais sazonados frutos foram a monu-mental História das Ideias Filosóficas no Brasil, e estudos complementares, rea-lizada por António Paim,4 na senda dos trabalhos pioneiros de Miguel Real5 e Luís Washington Vita,6 e as colecções Estante do Pensamento Brasileiro, editada entre os anos de 1967 e 1977, e Biblioteca do Pensamento Brasileiro, que lhe deu continuidade de 1981 a 1987.

Em torno dos dois principais impulsionadores do Instituto (Miguel Reale e Vicente Ferreira da Silva) e estimulada pela actividade que desenvol-veu ou promoveu na primeira e dinâmica década e meia da sua existência, veio a constituir-se, informalmente, uma verdadeira escola filosófica, a que tenho chamado “Escola de São Paulo”,7 de que aqueles dois filósofos seriam os mais influentes mestres e na qual, além dos outros três fundadores mais jovens atrás referidos, se integrariam também figuras como Milton Vargas (1914), Adolpho Crippa (1929-2000), os portugueses ou luso-brasileiros Agostinho da Silva (1906-1994) e Eudoro de Sousa (1911-1987) e o checo Vilém Flusser (1920-1980), cumprindo ainda não esquecer a contribuição que ao diálogo especulativo da “Escola” deram o jusfilósofo italiano Luigi Bagolini (1913), que, durante a década de 50, exerceu funções docentes na Faculdade de Direi-to paulista, o tomista belga Leonardo Van Acker (1896-1986), João de Scan-timburgo (1915) e a grande poetisa Dora Ferreira da Silva (1918), mulher de Vicente e uma das expressões maiores da literatura e da cultura brasileiras da segunda metade da passada centúria.

Como noutra oportunidade notei já, apesar da marcada e inegável individualidade de cada um dos pensadores que considero integrarem ou constituírem a “Escola de São Paulo” e das diferentes linhas e tendências espe-culativas que definem o pensamento dos dois mestres-fundadores e dos seus companheiros e discípulos, desde o culturalismo histórico-axiológico de Rea-le, da doutrina da mitologia de Vicente, Eudoro ou Crippa, do franciscanismo paraclético de Agostinho e do neotomismo de Barbuy, ao idealismo de Czerna,

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à reflexão epistemológica de Milton Vargas, ao raciovitalismo de Kujawski ou Luís Washington e à filosofia da linguagem de Flusser, são muito significativas as afinidades e convergências teóricas, reflexivas e temáticas entre eles, que revelam a pertença de todos a uma mesma “família espiritual”.

Do meu ponto de vista, seriam traços essenciais caracterizadores da “Escola” o interesse especulativo pelo sagrado e pela experiência religiosa, a re-flexão sobre a cultura, seu conceito, origem e sentido e sua relação com o mito e com os valores, o problema do homem e da sua constitutiva historicidade, a consideração filosófica da poesia, da arte e da técnica, a partir de diversas, mas não antagónicas concepções ou visões do espírito compreendido como liberdade, assim vindo a tecer-se um subtil e tácito nexo da “Escola” com o pensamento espiritualista de Gonçalves de Magalhães ou do Farias Brito de O Mundo Interior.

Cabe notar ainda que, mau grado as profundas diferenças entre as po-sições e atitudes especulativas deste valioso e significativo grupo de pensa-dores, no seu pessoal percurso filosófico, acabaram por vir, frequentemente, a trilhar caminhos ou a demandar vias reflexivas insuspeitadamente próxi-mas, afins ou convergentes. Foi o que aconteceu com certas confluências do pensamento da maturidade de Barbuy, Czerna, Flusser ou Milton Vargas com algumas posições filosóficas do último Vicente, para não falar já no que ao magistério directo deste, como, em menor medida, ao de Eudoro, deve a obra especulativa de Crippa e, de algum modo, também a de Kujawski, não poden-do esquecer-se, ainda, o permanente diálogo que Czerna tem mantido com o pensamento de Reale, de cujo culturalismo é tributária a obra especulativa de Luís Washington, bem como os seus esboços de interpretação compreensiva e valorativa do passado filosófico brasileiro.

A obra e a actividade especulativa de Agostinho da Silva, no perío-do de mais intenso contacto e convívio com os outros elementos da “Escola”, encontra-se mais próxima da linha de Vicente e Eudoro do que da de Real e seus mais directos discípulos ou companheiros, constituindo, como, noutro plano, também Delfim Santos, os dois mais potentes elos de ligação entre a Escola Portuense e a sua congénere paulista, ligação para que não deixaram também de contribuir, de forma relevante, do lado português, Álvaro Ribeiro, Sant’Ana Dionísio, Orlando Vitorino e Afonso Botelho e, do lado brasileiro, Luís Washington Vita.8

Esta relação intelectual e afectiva de Agostinho e Eudoro com Vicente e Dora Ferreira da Silva está bem patente no conteúdo do pensamento e da obra que realizaram e pensaram neste período e, de modo mais expressivo, no Diá-

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logo do Mar e no Diálogo da Montanha, que o malogrado filósofo de Dialéctica das Consciências escreveu pouco tempo antes de falecer e de que os quatro são protagonistas, embora com diversos nomes, excepto, precisamente, Agostinho da Silva, que aí figura com o seu nome próprio, George.9

Se as convergências e afinidades entre o pensamento de Eudoro e o da derradeira e inclusa fase do prematuramente desaparecido especulativo pau-lista são por demais evidentes, profundamente interessados ambos na filo-sofia da mitologia, ainda que o pensador português, referindo sempre o seu pensamento mítico-teodiceico ao cristianismo, nunca haja subscrito o neo-paganismo vicentino, não deixam também de apresentar significativo relevo as confluências dos interesses especulativos e da atitude reflexiva do pensador portuense com os do filósofo brasileiro ou com o mais fundo sentido trans-cendente da inspirada obra poética de sua mulher.

Registe-se, desde logo, o interesse reflexivo de ambos pela obra maior de Spengler, apesar de ser de contraposto sinal a atitude que perante ela to-maram, pois, enquanto o jovem autor de O Sentido Histórico das Civilizações Clássicas (1929) profundamente dissentirá do filósofo alemão e da interpreta-ção que fez da cultura grega e latina, nomeadamente quando aquele afirmava carecer ela de sentido histórico, sem preocupação do passado e do futuro, ten-do vivido exclusivamente concentrada no “presente puro”, já Vicente Ferreira da Silva verá nele, acima de tudo, um arauto da superação crítica do raciona-lismo, ao valorizar o domínio poético do símbolo.10

Esta diversa posição relativamente ao pensador de A Decadência do Ocidente não deve, porém, ocultar o muito que aqui une os dois membros da Escola paulista, e, designadamente, o conceito de razão que perfilham e o modo como entendem as matriciais relações entre a razão e o outro da razão e as formas do pretenso irracional, que, como advertira já Leonardo Coimbra, o são por excesso e não por defeito, ou o “saber do coração” de que, nos alvores do Quatrocentos, falara o nosso sábio rei D. Duarte.

Se, na fase da sua actividade especulativa que precedeu a sua ida para o Brasil – o decénio e meio que vai de 1928 a 1945 –, o pensador portuense fez do mundo cultural grego a referência ideal da sua reflexão, em obras como Sentido Histórico das Civilizações Clássicas, A Religião Grega (1930), Conversa-ção com Diotima (1944), Pólicles (1944), Apólogo de Pródico de Ceos (1944) e Diário de Alcestes (1945),11 como sempre o farão Eudoro de Sousa e o Vicente do ciclo iniciado com Introdução à Filosofia da Mitologia (1955), será, no en-tanto, a partir dos ensaios já escritos no Brasil12 que se definirá o paracletismo franciscano que constitui o fundo mais pessoal e original do seu pensamento,

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visivelmente inserido numa tradição que, por um lado, prolonga e actualiza a visão escatológica e providencialista de Vieira e Pessoa e, por outro, amplia e radicaliza a fraterna ética cósmica de Leonardo e Cortesão, que, de algum modo, também Sérgio veio a partilhar.

Dada a decisiva e fundamental importância de que a teoria do mito, o sa-grado e a análise da experiência religiosa apresentam na generalidade dos mem-bros do que denominei “Escola de São Paulo”, necessário se afigura começar por considerar aqui a primeira fase da demanda especulativa de Agostinho da Silva, aquela que incidiu, preferente, se bem que não exclusivamente, sobre a cultura grega e seu fundamento religioso, não esquecendo também o lugar que já então atribuía ao cristianismo.

Ao admitir, a propósito da Grécia, que as mais altas expressões da sua cultura foram “inspiradas e provocadas pela religião”,13 o pensador portuense avança uma tese que, com a máxima amplitude, i.e., estendida a toda e qual-quer cultura humana, virá a ser corroborada pelo seu companheiro de longos anos de peregrinações brasileiras Eudoro de Sousa, e também por Vicente Fer-reira da Silva, Heraldo Barbuy, Adolpho Crippa e Gilberto de Mello Kujawski, ainda que nenhum deles compartilhe a interpretação que faz da religiosidade grega ou o conceito de mito de que parte.

A esta ideia uma outra anda associada na interpretação que Agostinho da Silva nos propõe: a de que o que, essencialmente, caracteriza o espírito gre-go é “o amor insaciável da Beleza, o desejo de qualquer coisa que seja sempre mais alta e mais nobre”.14

Representando a harmonia completa da alegria, da natureza, da vida e da beleza, a religião grega, desde o início, sempre esteve próxima da filosofia, razão pela qual os seus deuses são o resultado de uma abstracção progressiva da divinização de forças naturais, da beleza física, de atributos morais, das ac-tividades humanas, enquanto os heróis proporcionavam ao grego “uma gran-de e nobre lição de virtude, de coragem, de espírito de sacrifício”.15

É nesta interpretação da religião grega que se inspira, por um lado, a noção de mito acolhida pelo sábio pensador que hoje aqui celebramos e, por outro, a teoria do sacrifício que, sumariamente, esboça.

De modo muito diverso do que, mais tarde, virão a fazer Eudoro, Cri-ppa ou Kujawski, o jovem Agostinho da Silva tenderá a ver no mito “uma ex-crescência poética da religião em que ninguém verdadeiramente cria”, fábulas inventadas a partir de acontecimentos e figuras reais, transfiguradas pelo tem-po e pela imaginação dos poetas,16 concepção que, claramente, se insere na linha do evemerismo, expressamente acolhida, entre nós, por Teófilo Braga

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nas Origens Poéticas do Cristianismo (1880) e em As Lendas Cristãs (1892), mas que o pensador parece haver depois abandonado.

Por seu turno, no que respeita à teoria do sacrifício, o autor de A Religião Grega revela-se aqui sequaz do pensamento desenvolvido pelo seu mestre Teixeira Rego, na sua obra capital,17 sustentando ser possível que, a princípio, aquele “simbolizasse a queda por um alimento animal, a expiação da morte da primeira rês”, a substituição, por motivos desconhecidos, da pri-mitiva alimentação frugívora pela alimentação com a carne de animais, até aí considerados sagrados pelo homem, o que não poderia deixar de provocar nele o horror pelo crime de haver morto um companheiro e um amigo, pelo que o seu primeiro movimento foi o de fuga e, depois, para que os deuses lhe perdoassem esta gravíssima falta, fazia-os participar nessa festa.18

Apesar de, no ensaio sobre A Comédia Latina, Agostinho da Silva aco-lher ainda a mesma concepção sobre o sacrifício que defendera quinze anos antes, significativas modificações se operaram, entretanto, no seu modo de pensar não só a religião e a cultura antigas como o próprio sentido humano e transcendente do processo histórico.

Sustentava agora o pensador luso-brasileiro que um novo estudo dos mitos primitivos, associado às novas investigações dos etnólogos e viajantes, desde o final do Oitocentos, parecia provar que a Idade de Ouro não era uma fantasia de poetas teogónicos, porquanto havia ainda povos que, não tendo tido contacto algum com a nossa civilização técnica e industrial, “viviam dos frutos que colhiam nas florestas (...), eram extremamente alegres, fidelíssimos às instituições monogâmicas, dando perfeita igualdade de tratamento às mu-lheres, incapazes de castigar as crianças, e sem nenhuma espécie de proprieda-de, sem organização social e sem nenhum vestígio de religião organizada”.19

A passagem deste paraíso para aquilo que o mundo fora depois só poderia explicar-se por uma quase transformação da Natureza, uma queda que, fiel ainda à lição de Teixeira Rego, Agostinho da Silva situava na pas-sagem da alimentação exclusiva com frutos da floresta para a alimentação baseada na caça e na pesca e para uma forma primitiva de agricultura e de pecuária, substituindo-se, assim, ao anterior e primitivo contacto perfeito com a Natureza, quando a alimentação era exclusivamente frugívora, uma guerra com a Natureza.

Consequências directas disso teriam sido, por um lado, a escraviza-ção da mulher, das crianças e dos animais e, por outro, o aparecimento das primeiras sociedades, das primeiras religiões organizadas, do sentimento da posse, a submissão e extinção gradual dos instintos e das espontaneidades

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criadores, substituídos agora pela regra, tal como o sacrifício substituiu a alegria e a sociedade substituiu a natureza, sendo só então que surgiu a vida religiosa e a noção de sagrado. Entendia o filósofo portuense que, verdadei-ramente, a religião só apareceu, numa dimensão consciente, com a primeira ideia de um Deus transcendente ou de um ser além do humano que, de-purada depois, teria possibilitado o aparecimento de uma noção imanente de Deus, complementar daquela, pois o auge do sentimento religioso, que consiste na experiência mística, é a fusão entre o objecto do culto e o sujeito do culto, “a transformação do amador na coisa amada, o aparecimento da unidade perfeita onde a dualidade existia”.

Pensava ainda Agostinho da Silva que as manifestações religiosas pri-mitivas apresentam sempre um carácter de totalidade, ou seja, que, para o homem religioso primitivo, todo o mundo é sagrado, não havendo, por isso, nenhuma acção da vida desprovida de marca sobrenatural e que não fosse ocasião de cerimónias rituais.

O processo histórico da civilização humana, marcado por um cres-cente e cada vez mais poderoso desenvolvimento técnico, foi um processo de dessacralização, de laicização ou de profanação, em que a noção de sagrado se foi diluindo ou desaparecendo, surgindo agora o mundo não já como um con-junto de sinais divinos, “que o homem venera, teme ou respeita, e de que par-ticipa pelas formas sacramentais”, mas como exclusiva e absoluta propriedade do homem, que dele pode, “usar, gozar e abusar”, como titular do “direito de destruir os animais e as plantas, de escravizar os irmãos homens, de transfor-mar a vida inteira” em algo cujo fim único é sustentar a sua vida material, afas-tando-se, assim, cada vez mais, da primitiva inocência da originária Idade de Ouro e renunciando a reconquistar o Paraíso perdido.

Neste movimento histórico descendente, o cristianismo aparecia ao autor de As Aproximações como um processo de ressacralização do mundo, ao afirmar a unidade do homem e a unidade da criação no infinito amor divino e ao ter como objectivo essencial a liberdade e não a segurança, o afecto e não a disciplina, a contemplação da beleza simples das criaturas e não a unidade e a eficiência do corpo social, ao anunciar um Reino de Deus que seria a Idade de Ouro ampliada pela alegria da redenção.20

Na visão do pensador, numa primeira fase, representada pelo Velho Testamento e pelo direito romano, o homem cristão, aliando os propósitos divinos e os humanos e racionalizando a disciplina, procurou vencer os obs-táculos que se lhe deparavam, sem abdicar dos seus direitos e sem esquecer a lembrança da originária Idade de Ouro, enquanto na que lhe sucedeu, ao

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comando de Deus se junta a sua dimensão de paternidade, o ideal do amor que o leva a aceitar o sacrifício pelo irmão homem.

A estas duas primeiras idades, do Pai e do Filho, deveria suceder no futu-ro uma terceira idade, em que se abriria “livre acesso àquele poder de imaginação criadora que sempre esteve mais ou menos limitado pelo esforço de disciplina e de sacrifício” e se reuniria “a universalidade dos homens no consolador, livre e vital universalismo do Espírito Santo”.21

Este modo de entender o processo histórico e transcendente do sagra-do, esboçado por Agostinho da Silva no período de constituição da “Escola de São Paulo” e desenvolvido, depois, nas múltiplas obras e ensaios que escre-veu até ao fim da vida, afasta-se, com decisão, das outras mais significativas concepções sobre o tema propostas pelos seus mais influentes companheiros, designadamente da visão de Eudoro de Sousa, para quem “toda a cosmofonia é teocriptia”, visto que é a morte de um deus que dá origem ou torna possível um mundo, assim como da concepção final de Vicente Ferreira da Silva, se-gundo a qual o cristianismo teria operado a dessacralização da natureza em proveito do homem, transformando-a, de realidade viva, animada e divina, em que os deuses habitavam, num mero conjunto de manifestações físicas, desprovidas de qualquer interioridade ou animação e objecto exclusivo das manipulações ou transformações utilitárias, ou ainda da ideia de Renato Cirell Czerna de que Deus, sendo o irracional originário, mas que inclui a razão, e começo absoluto que se nega à medida que se põe, é um Deus em devir, um Deus que está sendo construído e que, em certo sentido, não pode passar sem o homem, pois este é o lugar ou a instância em que o divino se realiza a si pró-prio e toma consciência de si.22

Maio de 2004

Notas1 A Filosofia no Brasil, 1878.

2 Noções de História da Filosofia, 2ªed., 1928.

3 Cfr. Miguel Reale, Memórias, vol. I, São Paulo, 1986, pp. 219-229.

4 Editada, pela primeira vez, em 1967, conheceu a sua 5ª edição, muito ampliada, em 1997, completada, hoje, pelos 7 volumes de Estudos Complementares à História das Ideias Filosóficas no Brasil, Londrina, 1997-2003.

5 A Doutrina de Kant no Brasil, São Paulo, 1949, Filosofia em São Paulo, id., 1962, Figuras da Inteligência Brasi-leira, Rio de Janeiro, 1984, e Estudos de Filosofia Brasileira, Lisboa, 1994.

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6 Escorço da Filosofia no Brasil, Coimbra, 1964.

7 Cfr. A. Braz Teixeira, “Haverá uma ‘Escola de São Paulo’?”, na Rev. Brasil. Fil., nº 186, 1997, pp. 236-239, e em O Espelho da Razão: Estudos sobre o pensamento filosófico brasileiro. Londrina: Ed. da UEL, 1997, pp. 223-226, e “O Sagrado e a Experiência Religiosa na ‘Escola de São Paulo’. Contribuição para o seu Estudo”, em Cultura, vol. XII (2ª série), UNL, Lisboa, 2000-2001, pp. 155-181.

8 Cfr. A. Braz Teixeira, “O Porto e o Diálogo Filosófico Luso-Brasileiro”, nas Actas do Congresso Internacional Pensadores Portuenses Contemporâneos (1850-1950), vol. I, Lisboa, 2002, pp. 217-242.

9 Escritos em 1962, permaneceram inéditos em vida do autor, só sendo divulgados alguns anos após a sua morte. Encontram-se publicados, em Portugal, em Dialéctica das Consciências e outros Ensaios, Lisboa, INCM, 2002, pp. 501-529.

10 “Spengler e o Racionalismo” (1941), em Obras Completas, vol. II, São Paulo, 1966, pp. 269-275. Igualmente significativo é o diálogo que com Spengler mantém Gilberto de Mello Kujawski em O Ocidente e sua Sombra, Brasília, 2002.

11 Recolhidos, hoje, nas Obras de Agostinho da Silva, Âncora Editora, Lisboa, o primeiro no volume de Estudos sobre Cultura Clássica, 2002 e os restantes no I de Textos e Ensaios Filosóficos, 1999.

12 Cfr. “A Comédia Latina” (1946-47?), “Superação do Protestantismo” (1954), Reflexão à Margem da Litera-tura Portuguesa (1957), Um Fernando Pessoa (1959), As Aproximações (1960), “Considerando o Quinto Impé-rio” (1960), Só Ajustamentos (1962), “Ecúmena” (1964), “Quinze Princípios Portugueses” (1965), “Aqui falta Saber, Engenho e Arte” (1965), “Ensaio para uma Teoria do Brasil” (1966) e “Algumas Considerações sobre o Culto Popular do Espírito Santo” (1967), recolhidos, hoje, no já citado volume de Estudos sobre Cultura Clássi-ca, no vol. II, dos Textos e Ensaios Filosóficos, 1999, e no vol. I dos Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, 2000.

13 A Religião Grega, Coimbra, 1930, p. 6.

14 Idem, p. 5.

15 Idem, p. 58.

16 “Sobre Algumas Páginas de Spengler”, ed. cit., pp. 250-255.

17 Nova Teoria do Sacrifício, Porto, 1918.

18 A Religião Grega, pp. 73-74 e “A Comédia Latina”, na ed. cit., p. 302.

19 “A Comédia Latina”, ed. cit., p. 302.

20 Est. e loc. cits., pp. 303-307.

21 “Superação do Protestantismo”, nos Textos e Ensaios Filosóficos, vol. II, pp. 188-189.

22 Cfr. o nosso estudo, já citado, “O Sagrado e a Experiência Religiosa na Escola de São Paulo”, pp. 162-176.

ResumoComeçando por definir o que denomina como “Escola de São Paulo” – conjunto de pen-

sadores que, em meados do século passado, em torno de Miguel Reale e Vicente Ferreira

da Silva, desenvolveu inovadora e convergente atividade especulativa – procura este artigo

tratar das significativas afinidades teóricas, reflexivas e temáticas entre os pensamentos de

alguns dos seus representantes, especialmente entre os de Agostinho da Silva, Eudoro de

Sousa, Vicente e Dora Ferreira da Silva. Afinidades que, não obstante as especificidades

Agostinho da Silva e a “Escola de São Paulo” António Braz Teixeira

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da obra de cada um desses autores, demonstram a sua pertença a uma “família espiritual”

comum, aqui pensada segundo os termos do que efetivamente se constituiu em verdadeira

escola filosófica.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; “Escola de São Paulo”; Eudoro de Sousa;

Vicente e Dora Ferreira da Silva.

AbstractThis article starts by defining what is here called “Escola de São Paulo” (São Paulo School),

a group of thinkers around Miguel Reale and Vicente Ferreira da Silva who developed an

innovative and convergent speculative thinking in the middle of the last century. After

that, it deals with the significant theoretical, reflexive and thematic affinities among some

of the school’s representatives, especially Agostinho da Silva, Eudoro de Sousa, Vicente

and Dora Ferreira da Silva. Those affinities, despite the individualities of their bodies of

work, show that the authors belong to a common “spiritual family” here conceived in the

terms of what constituted a true philosophical school.

Keywords: Agostinho da Silva; Escola de São Paulo; São Paulo School; Eudoro de

Sousa; Vicente and Dora Ferreira da Silva.

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nótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva

António Cândido Franco*

A ideia de Quinto Império chegou à cultura portuguesa no século XVII, altura em que o padre António Vieira no quadro da Restauração e dos desenvolvimentos finais dos Descobrimentos comenta numa carta ao bispo do Japão o sonho de Nabucodonosor interpretado por Daniel. Foi esse comen-tário que originou a ideia que aqui nos interessa. A noção de Quinto Império tal como Vieira a legou aos seus contemporâneos sofreu depois uma absorção em termos de imaginário cultural português, não mais se perdendo; apesar dos seus temporários apagamentos, ela regressou sempre, e em autores de pri-meira importância, não abandonando a sua raiz vieirina mas apresentando novos revestimentos histórico-culturais. É provável que sob novas vestes, mais adequadas a contextos históricos diferentes do de Vieira, a ideia de Quinto Império tenha sempre continuado a dizer na cultura portuguesa o mesmo que dizia no momento da sua criação. Duas das mais recentes actualizações da ideia foram feitas por Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, isto depois de um compreensível apagamento na idade das Luzes e do Positivismo. É escusado falar da ideia de Quinto Império nestes três autores maiores – Vieira, Pessoa e Agostinho – sem perceber com a devida atenção o que lhe está na base.

Comecemos pois pelo sonho de Nabucodonosor. Abramos o livro bí-blico de Daniel, no Antigo Testamento. Depois da queda de Jerusalém em 587 a. C., Daniel no cativeiro é obrigado a servir o rei da Babilónia, Nabucodono-sor. Tem este um sonho, que o impressiona muito, ordenando aos seus adivi-nhos que o interpretem. Para ter a certeza que a interpretação é verdadeira, obriga os seus magos a adivinhar também o sonho. Desesperam estes da tarefa

* António Cândido Franco nasceu em Lisboa em 1956. Licenciatura em Filologia Românica (1981); mestrado em Literaturas Brasileira e Africanas de Expressão Portuguesa (1988); Doutoramento em Literatura Portuguesa (1997); Agregação em Cultura Portuguesa e culturas ibéricas (2006). Professor na Universidade de Évora. Autor de dois romances históricos em torno de Inês de Castro: Memória de Inês de Castro (1990) e A Rainha Morta e o Rei Saudade (2003); estudioso de Teixeira de Pascoaes, a quem dedicou a sua tese de doutoramento e um romance de viagens, Viagem a Pascoaes (2006).

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até que Daniel se apresenta diante da corte, dizendo que toma a seu cargo a incumbência do rei. Depois de uma visão nocturna, onde lhe é revelado o so-nho e indicada a sua interpretação, apresenta-se diante do rei para lhe expor o que sabe. O sonho é como se segue. Viu o rei uma grande estátua, terrível e brilhante. A cabeça da estátua era de oiro fino; o peito e os braços de prata; o ventre e as coxas de bronze; as pernas de ferro e os pés parte de ferro e parte de argila. De repente, vinda não se sabe donde, uma pedra voou, esmagando os pés da estátua. Logo de seguida, foram reduzidos a pó a argila e o ferro dos pés e das pernas, o bronze das coxas e do ventre, a prata do peito e dos braços, o oiro da cabeça, pó que o vento logo dispersou sem deixar dele qualquer rasto. No vazio que se segue, a pedra que atingira os pés da estátua transforma-se numa grande montanha que ocupa a terra inteira.

Eis o sonho. Leia-se agora a sua interpretação por Daniel. A cabeça de oiro da estátua é o próprio Reino de Nabucodonosor. Depois deste, outro Reino virá, de prata, e depois dele um terceiro chegará ainda mais inferior, feito de bronze. Por fim, virá um quarto Reino, feito de ferro forte e feio, que reduzirá os outros três a pó. Este Reino, misturado que anda à argila, aca-bará também por sucumbir e desaparecer sem deixar rasto. Em lugar destes quatro Reinos, aparecerá por vontade de Deus aquela pedra miúda que os destruiu a todos, ocupando para sempre o seu espaço e transformando-se na Terra inteira feita montanha.

A base da ideia portuguesa de Quinto Império está nesta passagem bí-blica. Percebe-se por quê, já que nela nos aparecem descritos e interpretados quatro Reinos terrenos, perecíveis e humanos, seguidos por um imprevisível e surpreendente quinto, de natureza intemporal. É provável que o segmento nar-rativo que importa reter desta seqüência concorde em muito com outras passa-gens míticas do texto bíblico, em primeiro lugar o da criação inicial do mundo e o da estadia do homem no Paraíso. Quer dizer, nestas e noutras passagens, aquilo que interessa talvez reter é o intento explicativo da História da humani-dade, primeiro como queda e degradação, depois como impulso salvífico. No caso do sonho de Nabucodonosor temos a progressiva degradação da História humana, passando do oiro ao ferro, até que se chega a um último colapso, que no sonho corresponde ao embate da pedra nos pés da estátua gigante. É a par-tir dele que se dá a sua pulverização. Ora este momento de colapso, se é um ca-so extremo de degradação, é também o sinal de uma reabilitação providencial. É da pedra que destrói que nasce o derradeiro Reino sem tempo nem metal. A destruição é aqui uma forma de criação.

Vieira tratou o segmento bíblico no contexto da primeira mundiali-

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zação desencadeada pelos descobrimentos ibéricos. É natural que o passo lhe tenha chamado a atenção no quadro de um mundo que pela primeira vez apresentava uma dimensão planetária. Esta nova dimensão do mundo, desco-nhecida antes, levou Vieira a pensar que nenhum momento histórico anterior podia corresponder ao momento da pulverização dos Reinos perecíveis e que só o mundo saído dos descobrimentos ibéricos iniciados pelos portugueses estava em condições de poder experimentar quer a pulverização dos Reinos perecíveis, quer o aparecimento de um novo e definitivo estádio, que desse saída ao impulso messiânico que se fazia sentir na história humana desde o texto bíblico. Foi a isso que ele chamou o Quinto Império do mundo ou as esperanças de Portugal.

Trata-se de uma projecção para o futuro, mas de projecção histórica, com alicerces cronológicos e passagens tangíveis. Para Vieira este Quinto Im-pério não podia nascer, por exemplo, antes das navegações portuguesas, já que sem elas nenhum império se poderia estender a toda a Terra; só depois dessas navegações aparecem reunidas as condições de extensão e duração para que o quinto Reino surja com a completude e a eternidade que Daniel lhe apontava. Neste sentido, o Quinto Império de Vieira não é português, pois ele estende-se a toda a Terra e a todos os povos, tudo unindo no mesmo abraço. Percebe-se porém em Vieira, e esse é mesmo ponto basilar do excurso vieirino sobre o Quinto Império, a responsabilidade particular dos portugueses no caso, já que o quinto Reino é uma conseqüência, involuntária primeiro, consciente depois, das navegações portuguesas. Talvez por isso Vieira haja centrado esse quinto Reino no Brasil e não em Portugal. Portugal era uma parte do velho mundo, castigado pelas progressivas degradações do mundo antigo, enquanto o Brasil era para ele o nome daquela parte do mundo que faltava descobrir. Só ele, o Brasil, podia pois animar o intemporal sem corrupção que estava anuncia-do para a História da humanidade desde o tempo da primeira destruição do Templo, em 587 a. C.

Em Fernando Pessoa o projecto de Vieira ganha contornos abstractos. Aquilo que foi noção quase geográfica com aplicação imediata no caso de Viei-ra volve-se em Pessoa uma ideia no céu do pensamento ou um mito na pele inconsútil da História. Nesse sentido, o Quinto Império torna-se mais uma visão da alma que um corpo com escala histórica, dimensionado para projecto colectivo, que era o que inicialmente fora para Vieira, mesmo descontando o que de interior deslumbramento decerto houvera num Vieira acabado de de-sembarcar na infância em São Salvador da Bahia, no novo mundo. Com Agos-tinho da Silva e a sua releitura do mito do Quinto Império regressa a urgência

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de um projecto histórico, o gosto quase exclusivo pela reflexão civilizacional e a reactualização do concreto geográfico tão acarinhado por Vieira.

Assim, Agostinho preocupa-se em determinar com alguma segurança o estado presente do mundo, dizendo a dado passo, no texto “Fantasia Portu-guesa para Orquestra de História e Futuro” (1982):

“Momento crucial é este em que vivemos – e o mais belo que jamais houve em vida de homem; momento de definida escolha entre a vi-da e a morte, tendo como única perspectiva a de um mundo deserto, em cujas costas se quebrará um lamentoso, fúnebre mar, ou a de uma humanidade livre de opressões físicas, sem nenhuma fome do preciso e sem nenhum esmagamento do supérfluo.”

Nesta passagem indica-se, sem campo de dúvida, uma avaliação do processo de evolução civilizacional da humanidade, por aí logo mostrando o interesse do seu autor na História e nos seus projectos. Para este Agostinho o momento que se vive é o da escolha entre a morte e a vida, quer dizer, entre o desaparecimento da humanidade, vítima de prolongada e obstinada luta fra-tricida, ou o seu pleno e ridente desabrochar. Não andamos muito longe de acertar se associarmos este momento ao que no sonho de Nabucodonosor corresponde ao aparecimento da pedra que esmaga primeiro os pés da estátua gigante e depois pulveriza as suas várias partes. É o momento do fim e simul-taneamente, se assim o desconhecido o desejar, o do princípio do novo, aquele em que a destruição é tangencial à criação.

Se isto tem alguma razão de ser, paga o trabalho perceber em que momento civilizacional este derradeiro momento da História humana se de-senha para Agostinho da Silva. Há passo no mesmo texto citado de 1982 que nos pode ajudar nesta detecção. É a passagem final, onde de forma sibilina se diz o seguinte:

“(…) bem unidos estejam todos os que se entendem nas línguas que, de início parecendo condenadas aos estreitos lugares de Ibéria, ao universo abriram suas asas; o que de serviço foi, apesar das falhas, o que de puro amor foi, apesar das tentações, o que de harmoniosa dança foi, apesar de seus pesados pés; pés de ouro e chumbo.”

Passo curioso este onde, porventura de forma involuntária, ou talvez não se pensarmos que nesse mesmo texto dedica passagem ao Quinto Impé-rio de Vieira, se intertextualiza um dos pontos cruciais do sonho descrito por

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Daniel, os pés da estátua, também eles pesados e fortes, e se indicam os extre-mos dos metais, o ouro e o chumbo, como no sonho de Daniel se indicam a propósito da estátua gigante o ouro e o ferro. Compreende-se então que os pés do mundo, pés de chumbo e ouro, resumindo neles toda a anatomia anterior do corpo, pesados pés que fizeram a humanidade avançar para aquilo que em Daniel é o quarto Reino, foram os da Ibéria. Quer dizer, Portugal e a Espanha são essas duas extremidades que superaram tudo o que antes deles fora feito pelo corpo a que pertenciam, deixando para trás os Reinos correspondentes às pernas, ao peito e à cabeça.

O quarto Reino histórico, o dos pés, que passa por ser o derradeiro no sonho comentado por Daniel, é assim o dos Descobrimentos ibéricos, melhor, esse Reino é aquele que esses Descobrimentos abriram, já que eles foram ape-nas uma porta de entrada, estreita e curta até, para uma idade bem mais larga e longa, a da sucessiva drenagem dos níveis de mundialização, sob a sua influên-cia da qual ainda estamos vivendo. É o momento delicado a que Agostinho se refere como sendo aquele a que tanto se pode seguir a vida como a morte, a plenitude como a desolação mais extrema. Nos versos incorruptíveis de Pessoa é aquilo que na última estância do poema “Quinto Império” de Mensagem se chama Europa (recordamos os versos de Pessoa: Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro se vão/ Para onde vai toda a idade.) e que nós hoje crisma-mos Estados Unidos, pois este nome nada mais é que uma metamorfose mais ampla daquilo que num outrora próximo foi a Europa e num outrora mais longínquo foi a Ibéria. Estes três momentos da quarta idade em que vivemos – Ibéria, Europa, Estados Unidos – traduzem três formas de mundialização – a das estradas marítimas, a das estradas de ferro e a das estradas digitais –, que foram exaurindo círculos cada vez mais largos desse processo de aproximação dos lugares e das pessoas do planeta Terra.

Nesta digressão falta perguntar: por onde anda o quinto Reino em Agostinho? Sabemos que o quarto Reino se confunde com a modernidade, tomando em si as suas várias metamorfoses, desde as primeiras que ganhou com as navegações à vela até às últimas com as navegações digitais de Silicon Valey. Sabemos que estamos a chegar ao ponto extremo desta idade moder-na, pois é para aí que aponta aquela radical e definida escolha entre a vida e a morte que é para Agostinho o que melhor caracteriza o nosso tempo. E sabemos ainda que uma dessas escolhas, a da vida ou a da completude ci-vilizacional do homem, sem fomes nem opressões, pode ser lida como uma idade perene e plena com larga correspondência com aquela montanha que toma conta da Terra toda no sonho descrito por Daniel e que é por ele inter-

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pretado como o perdurável Reino intemporal que substituirá por vontade de Deus os quatro anteriores.

Apesar da escolha delicada em que Agostinho da Silva deixa o homem de hoje, tudo abrindo ao aleatório ou ao acidental, tanto contando a deso-lação como a plenitude, muito, se não todo, do pensamento de Agostinho afirma o primado da vida sobre a morte, não supondo sequer que uma idade seca e sem vida possa suceder ao momento histórico que surgiu com as na-vegações ibéricas. É para aí que aponta o texto “Portugal ou as Cinco Idades”, também de 1982, cujo título nos mostra desde entrada um gosto explícito pelo imaginário cultural do Quinto Império, apesar de o autor dessa pequena ficção que é o “Portugal ou as Cinco Idades”, que tem como subtítulo “Conto de Páscoa”, nos avisar que é a poesia que por ali corre e não a matemática. Quer dizer, tudo corre no texto no plano da criação imaginativa, não no da certeza verificada ou verificável.

De que se trata afinal? De um exercício ficcional, em que um português do século XXIII nos restitui a sua visão retrospectiva da cultura que é a sua, a portuguesa, dando-nos ao mesmo tempo algumas indicações precisas sobre o que se passa no seu presente, que é o nosso futuro e futuro distante. A Histó-ria portuguesa é dividida em cinco idades, começando a quinta nos finais do século XXI com a união política da Península Ibérica e o desaparecimento no território da nova união da noção de propriedade, quer colectiva, quer privada, substituída que é pela não-propriedade. Depois desta união, num efeito domi-nó, segue-se, segundo o novo modelo ibérico, a união da América do Sul, a ree-laboração, afastando de vez a herança vinda de Berlim, das fronteiras na África, a alteração da fisionomia do sudeste da Ásia. Esta recomposição das fronteiras políticas do planeta é acompanhada pela modificação em profundidade das relações sociais entre os homens a partir da ideia de que nada é de ninguém.

Oiçamos o autor:

“ (…) a viragem decisiva para a entrada em nova fase do mundo se deu com a constituição política de uma Península diversa e una; a qual, embora pensada e debatida nos séculos XIX e XX, só teve forma a partir dos fins de XXI: todas as regiões ou nacionalidades ou etnias, como se queira, tiveram sua inteira autonomia sem que, no entanto, se desirmanassem; se puseram de acordo quanto às bases da economia, passando da noção de propriedade colectiva para a de não proprieda-de (… ) o que significou que ninguém foi nunca mais dono disto ou daquilo, excepto naturalmente o que era de uso pessoal de cada um, inclusive as casas com seus jardins e campos de recreio: a terra não foi

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mais nem sequer de Portugal; Portugal e a terra eram o mesmo, coin-cidiam, e era o solo tão livre como o ar – lá se foi também isto de mar exclusivo e de espaço aéreo – e mais livre ainda do que o ar quem não mais tinha a propriedade fosse do que fosse; a própria renda de uso tem vindo a diminuir e espero que em breve, pelo sempre contínuo aperfeiçoamento das técnicas, nem a tal tenhamos de satisfazer, em termos de trabalho esporádico. (…) O resto por si veio: milhões ou bilhões de homens saíram da sua pré-humanidade, fizeram na idade própria o que lhes cabia de serviço civil – fui eu ordenança de hospi-tal e cooperei nas Fidji durante três anos – e nunca mais ninguém lhes exigiu coisa alguma, a não ser que se realizassem.”

Eis a visão que Agostinho tem da quinta idade do mundo. É uma visão histórica e política, muito marcada por aspirações sociais conhecidas. Trata-se de idade que diz respeito a todos os homens e a todos os povos, uma idade de escala planetária, que não está centrada em Portugal ou no Brasil, mas na qual estes dois países parecem ter uma responsabilidade especial em conjun-to com a Espanha e os países hispano-americanos. No desenho preciso dos contornos desta quinta idade do mundo tal como Agostinho a projecta para os dois próximos séculos reconhece-se alguma coisa do imaginário do Quin-to Império tal como Vieira o explora a partir da passagem bíblica de Daniel, mais que não seja pela presença de uma idade final, intemporal, feliz, que em Agostinho significa a realização plena do Homem, depois de Vieira ter sido a evangelização dele.

Estamos no fundo diante da mesma ideia, só que em contexto diferen-te, o de Vieira, num mundo quase virgem de contactos, à espera de um caso providencial, um faça-se luz que parecia estar prestes a acontecer no coração do Amazonas, o de Agostinho, num mundo castigado até ao mais íntimo de si por uma rede labiríntica de terramotos, mas esperando desse choque uma pulverização redentora.

17 de Fevereiro de 2006

Resumo Procura esta “Nótula sobre o Quinto Império em Agostinho da Silva” explorar o tema

do Quinto Império desde a sua chegada à cultura portuguesa com a obra do padre

António Vieira até Agostinho da Silva, passando pelo Fernando Pessoa da Mensagem

que recolocou em circulação a ideia no século XX. Interessa ainda perceber a funda-

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mentação literal da ideia a partir da passagem do Livro de Daniel que lhe está na base e

cuja hermenêutica passa em geral despercebida. Recorrem-se a textos de Agostinho da

Silva, como “Portugal ou as Cinco Idades”, que apontam para um entendimento social e

civilizacional do Quinto Império.

Palavras-Chave: Quinto Império; História; Humanidade; Civilização; Futuro.

AbstractThis “Brief Note About the Quinto-Império (Fifth Empire) in Agostinho da Silva” seeks to

explore the theme of the Fifth Empire from its debut at the Portuguese culture via Father

António Vieira’s oeuvre to Agostinho da Silva, including the Fernando Pessoa in Message,

who restored the idea for the twentieth century. It is also interesting to notice the literal

foundation of that idea from/which we can gather from the passage of the Book of Daniel

which is in its base and whose hermeneutics usually goes unnoticed. We shall turn to texts

by Agostinho da Silva, such as “Portugal ou as Cinco Idades” (Portugal or The Five Ages),

which point to a social and civilizational understanding of the Fifth Empire.

Keywords: Quinto Império; Fifth Empire; History; Humanity; Civilization; Future.

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Agostinho da Silva e os Titãs

António Telmo*

Os anos em que vivemos estão marcados por duas manifestações do ser humano aparentemente contraditórias: o titanismo e o infantilismo. Ti-tânicas são as construções em altura das grandes cidades do mundo, os vôos de metal cruzando os espaços, a comunicação das palavras e dos números vencendo enormes distâncias, a multidão inumerável dos automóveis etc., etc.; mas tudo isto assume a forma de brinquedo pelo modo como os tele-móveis, a televisão, os computadores, a internet se tornam os mais comuns e gozosos entretenimentos dos homens e das mulheres e sobretudo das crian-ças. Eis depois o futebol, esse gigantesco movimento lúdico que empolga o mundo e que é a própria manifestação do infantilismo. E há disto um sinal evidente: os calções. Aqui há cinquenta anos, só os rapazes os usavam e a primeira vez que punham calças compridas o sentimento que vivia o ado-lescente era o de ser recebido como iniciado na sociedade dos homens.

Esta combinação do titanismo com o infantilismo envia-nos para a profecia de Daniel interpretando os pés de barro do ídolo do sonho de Nabuco-donosor como o frágil suporte de toda a construção histórica da humanidade.

O barro é, segundo o Génesis, a original matéria de onde, pelo sopro de Deus, se formou o primeiro homem, o homem na sua infância; o ferro é o metal que simbolicamente caracteriza a última manifestação do ciclo, na velhice do mundo.

Agostinho da Silva via tudo isto e muito mais. Via-o em íntima clarida-de, interpretava-o em profundidade. Mas o impressionante é que, perante o es-pectáculo de um mundo a desfazer-se, em nítida descida para o abismo, conti-nuava a confiar nos homens e nas mulheres que incitava à valentia, ao denodo, à esperança, a crer que só o bem poderia estar no fim e nisso era um aristotélico, porque segundo o sábio grego “a melhor das quatro causas é a final”.

* António Telmo (n. 1927), Professor e Filósofo, tem-se dedicado a estudos de sociologia e simbolismo ao lon-go de toda a sua vida, sendo um dos continuadores do movimento da Filosofia Portuguesa fundado por Álvaro Ribeiro. Viveu no Brasil, onde ensinou na Universidade de Brasília e onde ouviu quotidianamente Agostinho da Silva. Além destas duas grandes figuras, também conviveu com o filósofo José Marinho.

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É por este traço, excepcional no nosso tempo, que ele, sendo o filó-sofo de Portugal e do Brasil, é ao mesmo tempo o filósofo do Mundo. Por ele se distingue das duas posições correntemente tomadas perante a fase que vivemos do evoluir histórico e que são: ou pensar que estamos no cul-minar do progresso, que atingimos com a tecnologia e com a electrónica o cume do aperfeiçoamento humano; ou considerar que caminhamos para o abismo e que, mais ano menos ano, mais década menos década, estaremos totalmente perdidos.

Agostinho diz as duas ao mesmo tempo, mas, para que o paradoxo se possa sustentar, introduz uma terceira: a de tudo depender da decisão do ho-mem, que pode utilizar a tecnologia e a electrónica para ganhar o ócio, que é o pedaço de liberdade que herdámos do Paraíso. O homem, repete ele muitas vezes, não nasceu para trabalhar, mas para contemplar o Santo Nome de Deus e, contemplando, trazer a divina energia que por esse modo obtém para tudo quanto faça, sinta ou pense. A filosofia poética do autor de Considerações (lem-bremo-nos de que a palavra considerações tem no seu seio a palavra sidério) é, por um dos seus mais relevantes aspectos, um Manifesto Contra o Trabalho. Uma vez derrotado, deixará um vazio imediatamente preenchido pela activi-dade poética, se o ensino ordenar o espírito da criança para a realização do que mais importa, para a aceitação activa do imprevisível.

Agostinho da Silva vê o perigo. Os computadores podem libertar os humanos do trabalho, mas ao mesmo tempo tornar tudo previsível, como já se começa a ver em meteorologia. Ora, sendo o imprevisível manifestação do Espírito Santo, tornar tudo calculável não será como que um esboço do único pecado imperdoável?

Ele tinha um nome por assim dizer secreto. Chamava-se também Ge-orge, mas este nome só era usado entre os mais íntimos. Era o nome próprio, o nome inalienável.

Georges (do grego Gêourgos) é quem trabalha a Terra, é o grande agri-cultor do mundo humano. Todavia, não nos deixemos enganar. Agostinho da Silva só valorizava uma espécie de trabalho, aquele que é um paradoxo de si mesmo, em que trabalhar tem por fim libertar do trabalho superando-o infi-nitamente pela criatividade. É o sentido do que diz em entrevista no Jornal de Notícias (17 de Novembro. de 1987):

“Foram Portugal e Espanha – sobretudo Portugal – a darem ao Mundo o conhecimento de si mesmo. Agora lhes conviria e lhes caberia o papel de dar o conhecimento daquilo que é fundamen-

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tal nesse Mundo. Toda a gente por ter aquilo a que chamo de ‘vida poética’, no sentido de criadora, em qualquer dos domínios: artes, ciência, filosofia, mística. Isso é possível e deveria fazer-se.”

Hoje, como está à vista e se sofre na pele, lançou-se sobre os humanos uma rede do tempo que os acorrenta ao trabalho, que os escraviza, rede essa que nem espaços entre os fios consente por onde se escape alguém para aquele modo de vida poética. Só em sonho, dormindo, imaginam fazê-lo. Sabemos, porém, que só somos criadores de algo verdadeiro quando estamos lúcidos e bem despertos.

Mais uma vez não nos deixemos enganar confundindo ócio com pre-guiça e desemprego, o ócio que, segundo Agostinho, é o que ainda nos ficou do Paraíso. Os acorrentados a um dia inteiro de trabalho, a uma vida inteira, a uma eternidade, sempre com ele preocupados porque é donde lhes vem o dinheiro com que possam alimentar-se e vestir-se a si e aos seus, é inevitável que temam o desemprego que os entregaria de novo à miséria e eis o motivo por que o espírito calculador que comanda hoje a humanidade faz com que haja sempre uma bem estudada margem de desemprego para que todos se sintam ameaçados. Assiste-se então a esta enormidade: são os próprios escravos a fazer a apologia daquilo que os escraviza.

Sic transit mundus. Agostinho da Silva vê-o passar como um rio de águas turbulentas que ignore o mar que o vai absorver. Olha-o tranquilo, em-bora indignado, pois sabe que sem tranquilidade não há verdadeira bondade. Sabe também, na qualidade de Gêourgos, que o dragão se deixa dominar por um leve toque de lança, toque tão suave como nos ouvidos da nossa alma obs-cura a palavra que ilumina.

* * *

Estas linhas que foram ficando para trás são o débil eco das sucessivas leituras, do imenso convívio com os livros de Agostinho da Silva, e com ele próprio, sobretudo durante os anos em que vivi em Brasília, no Centro por ele fundado de Estudos Portugueses. Ali, como ao lado, no Centro de Estudos Clássicos dirigido pelo insigne helenista Eudoro de Sousa, não se era escravo do trabalho. Todos tinham o tempo do seu ócio, uns imaginando com Camões ou com Virgílio, outros procurando compreender a história de Portugal e do Brasil, pelo culto do Espírito Santo, outros como o Teodoro, modesto funcio-nário daquele Centro, criando a Casa Cultural de Sobradinho.

Agostinho da Silva e os Titãs António Telmo

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Era aqui, nos fins de semana, que Agostinho da Silva ensinava aos po-bres de espírito, que todos éramos ou pretendíamos ser, o sebastianismo de Portugal e de Canudos ou a fantástica proeza de S. Jorge dominando o Dragão, explicava o sentido da bandeira do Brasil, não pelo positivismo de Augusto Comte, mas como uma manifestação de Kidr o Verde, animando do ouro da madrugada a Ordem e o Progresso.

Num mundo em que o infantilismo anda de mãos dadas com o ti-tanismo, a Ordem confunde-se com o Comando dos Titãs que escravizam ao trabalho, iludindo com jogos e pantomimas as inumeráveis gentes que o Progresso põe on-line. Como sempre fazia, Agostinho lançava o paradoxo, ia encontrar liberdade onde se lia ordem e progresso, ligando movimento e con-templação, num rapto metafísico que nos abria as portas do conhecimento no Clube do Teodoro, em Sobradinho, cidade satélite de Brasília.

ResumoO mundo em que vivemos, o mundo como Agostinho da Silva o conheceu, está marcado

pelo titanismo (das construções em altura das grandes cidades do mundo, dos vôos de

metal cruzando os espaços, da comunicação das palavras e dos números vencendo enor-

mes distâncias, da multidão inumerável dos automóveis etc.) e o infantilismo (patente no

modo como os telemóveis, a televisão, os computadores, a internet, o futebol se tornam

os mais comuns e gozosos entretenimentos da humanidade). Agostinho da Silva perante

o espectáculo de um mundo em descida para o abismo continuava excepcionalmente a

confiar nos homens e nas mulheres que incitava à valentia, esperança e crença que só o

bem poderia estar no fim. Distinguindo-se das posições correntemente tomadas perante a

fase actual do evoluir histórico, afirma que tudo depende da decisão do homem, que pode

utilizar a tecnologia e a electrónica para ganhar o ócio, que é o pedaço de liberdade que o

homem herdou do Paraíso. A sua filosofia poética é um Manifesto Contra o Trabalho.

Palavras-chave: Titanismo; Infantilismo; Vida Poética.

AbstractThe world we live in, the world as Agostinho da Silva knew it, is marked by titanism (as

in the massive constructions in the world’s big cities, the metallic flights crossing air, the

communication of words and numbers conquering huge distances, the innumerable cro-

wd of cars, etc.) and infantilism (evident in the way mobile phones, TV, computers, the

internet and soccer have become the most common and enjoyable forms of entertainment

for humankind). Agostinho da Silva, looking at the spectacle of a world sinking into an

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abyss, continued to trust men and women, who he incited to bravery, hope and belief

in that only good could be in the end. Differing from the positions usually taken in the

current phase of historical evolution, he states that everything relies on humans’ decision,

who can use technology and electronics to secure idleness, which is the piece of liberty that

humankind inherited from Paradise. His poetic philosophy is a Manifest Against Work.

Keywords: Titanism; Infantilism; Poetic Life.

Agostinho da Silva e os Titãs António Telmo

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O Professor Agostinho da Silva e o núcleo de Documentação e Informação de História Regional da Universidade Federal de Mato Grosso

Carlos Francisco Moura*

Entre a grande semeadura de focos e difusão cultural que o Professor Agostinho da Silva criou ou apoiou ao longo do território brasileiro, não deve ser esquecido o NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade Federal de Mato Grosso. E por mais de uma razão, como veremos.

Na realidade as pessoas mais autorizadas a falar sobre o assunto seriam a Prof.a Maria de Lourdes de Lamônica Freire, discípula do Prof. Agostinho da Silva no Centro de Estudos Portugueses da UnB, e responsável pelas gestões que culminaram com a criação do Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional, na UFMT, e a Prof.a Maria Cecília Guerreiro de Sousa, paleógrafa e organizadora da respectiva microfilmoteca.

Completamente absorvido pela pesquisa, praticamente alheiado a quase tudo o mais, só nos resta dar um depoimento quase exclusivamente “bibliográfico”.

A Universidade Federal de Mato Grosso foi a primeira fundada no vas-to Estado que então abrangia também o território do atual Estado de Mato Grosso do Sul. Em dezembro de 1970.

A Prof.a Maria de Lourdes que, já concluído o curso em Brasília, se transferira para Cuiabá, sugeriu ao Reitor Dr. Gabriel Novis Neves que convi-

* Carlos Francisco Moura, arquiteto e prof., trabalhou no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Uni-versidade de Brasília com o Prof. Agostinho da Silva, e no NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional, da Universidade Federal de Mato Grosso. Membro da Academia Portuguesa da História, da Academia de Marinha (Lisboa), do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e da Sociedade Brasileira de História da Ciência.

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dasse o Prof. Agostinho da Silva para participar da organização da nova Uni-versidade.

O Prof. Agostinho não pôde aceitar o convite e sugeriu a contratação da Prof.a Maria Cecília Guerreiro de Sousa. Irmã do grande helenista Prof. Eudoro de Sousa, que o Prof. Agostinho tinha conseguido levar para a UnB, a Prof.a Maria Cecília trabalhava no CBEP e se especializava em paleografia.

Por essa época, tendo em vista que o endurecimento da repressão po-lítica no Brasil colocava em risco o Prof. Agostinho e a existência do CBEP, a Prof.a Maria Cecília fora enviada a Portugal com uma bolsa para pesquisar nos Arquivos Portugueses. A aceitação do convite não foi imediata, mas afinal, até porque, por coincidência, havia localizado documentos importantes sobre Mato Grosso, ela acabou aceitando.

Estava também programada uma ida do Prof. Agostinho a Cuiabá, mas agravando-se ainda mais as perspectivas político-militares, ele resolveu anteci-par-se, viajando para Portugal.

Na UFMT a Prof.a Maria Cecília foi lotada no DEPES, Departamento de Ensino e Pesquisa, que posteriormente se transformou no NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional. Dizia-se na época que só havia outro organismo com a mesma denominação e com o mesmo estatuto: na Universidade Federal da Paraíba, não por acaso, uma das instituições a que o Prof. Agostinho da Silva prestara notável contribuição.

O NDIHR contou, portanto, desde logo, com uma professora do CBEP da UnB e dos trabalhos de investigação que vinha fazendo anteriormente. E com a orientação e o apoio logístico do Prof. Agostinho, instalado definitiva-mente em Portugal.

A Prof.a Maria Cecília na “Nota Prévia” ao vol. 1 do Inventário de Do-cumentos Históricos sobre o Centro-Oeste declara:

“Devemos ressaltar a inestimável colaboração do Professor George Agostinho da Silva. Além de incentivar a implantação do Núcleo, orientou e supervisionou as pesquisas realizadas na Europa. A sua constante e competente assistência técnico-científica, a sua amizade, interesse e apoio contribuíram para a realização deste trabalho.”

Um breve resumo do admirável trabalho realizado pela Prof.a Maria Cecília. Em diversas viagens que fez à Europa, a primeira em 1972, ela pesqui-sou e fez microfilmar imensa quantidade de documentos referentes a Mato Grosso e ao Centro-Oeste em geral.

O Professor Agostinho da Silva e o Núcleo de Documentação... Carlos Francisco Moura

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Um levantamento de agosto de 1984 avaliou em 110.000 os fotogramas incorporados ao acervo do Núcleo. E nos anos seguintes o trabalho de micro-filmagem continuou.

Não se restringiu o seu trabalho à pesquisa em uma única instituição: Arquivo Histórico Ultramarino, Torre do Tombo, Biblioteca da Ajuda, Arqui-vo da Marinha, Biblioteca Nacional, Tribunal de Contas, Arquivo do Exército, Biblioteca Municipal de Évora, Biblioteca Provincial da Ilha da Madeira e Ar-quivo General de Índias, de Sevilha.

Mas a Prof.a Maria Cecília não se limitou à pesquisa e reprodução em microfichas e microfilmes dos documentos para os disponibilizar para consul-ta em Mato Grosso.

Publicou quatro volumes do Inventário de Documentos Históricos so-bre o Centro-Oeste com os Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino, coleção “Documentos Ibéricos – Série Inventários”, nos quais são apresentados resu-mos de cada documento, e índices utilíssimos, o alfabético geral (incluindo antroponímico, toponímico e de assuntos) e o de datas, além de várias repro-duções fac-similares.

O volume I abrange 198 documentos datados de 1720 a 1734. O vol. II, 202 documentos, de 1735 a 1744. O vol. III, 307 documentos, de 1743 a 1765. E o vol. IV, 299, de 1743 a 1760. Um quinto volume que a Prof.a Maria Cecília deixou pronto, não sabemos se chegou a ser publicado.

Pode-se dizer que esse projeto pioneiro, idealizado, orientado e acom-panhado pelo Prof. Agostinho, e realizado por uma das suas mais eficientes colaboradoras, foi um dos precursores do Projeto Resgate realizado atualmente com muito maiores recursos financeiros e de pessoal, com a colaboração de muitas Universidades e organismos oficiais brasileiros e portugueses, e que visa abranger todas as antigas capitanias.

Na apresentação do vol. 1, Inventário de Documentos Históricos sobre o Centro-Oeste, diz o Reitor Gabriel Novis Neves: “O trabalho da Professora Ma-ria Cecília Guerreiro de Sousa será um instrumento indispensável à necessária lucidez que devem possuir os que participam da atual transformação histórica desta região.”

A Professora Maria Cecília ensinou e treinou em pesquisa e paleografia várias professoras e estagiários. Das que mais se destacaram foram as Professo-ras Ana Mesquita Martins de Paiva e Nyl-Iza Valadão Freitas Ferreira.

O NDIHR iniciou a publicação da Coleção Estudos Ibéricos – Série Capitães-Generais, com a corresponência de D. Antônio Rolim de Moura, Pri-meiro Conde de Azambuja, primeiro governador de Mato Grosso, compilação

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transcrição e indexação das Professoras Ana Mesquita, Maria Cecília e Nil-Iza. Os documentos, em grande maioria inéditos, foram microfilmados pela Prof.a Maria Cecília na coleção de Avulsos do Arquivo Histórico Ultramarino e na Coleção Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa. O primeiro volume abrange cartas de 1751, 1752, 1753 e 1754, e foi publicado em 1982 como parte das comemorações do bicentenário da morte de Rolim de Moura. O segundo volume, com cartas de 1755 e 1756, e o terceiro com cartas de 1756, 1757 e 1758 foram publicados em 1983, os três pela Imprensa Universitária da UFMT. Não sabemos informar se um 4º volume, já concluído, chegou a ser publicado.

Foi, portanto, fundamental para o NDIHR e a UFMT a indicação, pelo Prof. Agostinho da Silva, da Prof.a Maria Cecília Guerreiro de Sousa.

Nós também tivemos parte nos trabalhos do NDIHR. Colaborador do Prof. Agostinho no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da UnB, fomos por ele encarregado de várias pesquisas, entre elas as do Projeto Japão, sobre o qual já em outra oportunidade apresentamos relatório.1

Com o encerramento das atividades do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da UnB e a demissão, ficamos sem saber o que fazer com os es-tudos já iniciados e com a bibliografia e os microfilmes adquiridos por conta própria durante bolsa em Portugal. Desse impasse tirou-nos a Prof.a Maria Cecília que, de Cuiabá, escreveu comunicando que fora informada de nosso novo endereço pelo Prof. Agostinho, e solicitando que enviássemos ao Prof. Célio da Cunha, Diretor do DEPES, currículo e lista de temas cuja pesquisa já tínhamos iniciado. A contratação foi imediata. Graças aos estudos iniciais desenvolvidos no CBEP sob orientação do Prof. Agostinho, pudemos elaborar rapidamente trabalhos pioneiros na historiografia regional.

Inicialmente apresentamos projeto de levantamento do patrimônio histórico e artístico de Mato Grosso. O projeto, que teve pareceres favoráveis em várias instâncias, não chegou a ter aprovação final pelo Ministério, que na época privilegiou as artes cênicas.

Apesar disso, trabalhando escoteiramente, conseguimos publicar al-guns trabalhos: A Igreja da Chapada dos Guimarães 1779-1979,2 primeiro estu-do publicado do mais famoso templo histórico de Mato Grosso, tombado pelo IPHAN; Notas sobre a Arquitetura em Mato Grosso (Rótulas e Gelosias),3 As Artes Plásticas em Mato Grosso nos Séculos XVIII e XIX,4 O Forte de Coimbra,5 A Expedição Langsdorff em Mato Grosso – Desenhos e Pinturas Inéditos há mais de 150 Anos.6 O estudo As Artes Plásticas em Mato Grosso, que constitui apenas um folder para uma exposição de arte contemporânea em Cuiabá, organizada pela Prof.a Aline Figueiredo, do Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT,

O Professor Agostinho da Silva e o Núcleo de Documentação... Carlos Francisco Moura

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tomou tal desenvolvimento que se tornou o primeiro livro sobre o tema, e teve mais de uma edição.

Em congresso sobre o Barroco realizado em Ouro Preto, apresentamos a comunicação Apontamentos para o Dicionário de Artistas Plásticos, Artífices e Construtores em Mato Grosso nos Séculos XVIII e XIX, que foi publicada na revista Barroco.7

Aplicamo-nos também ao estudo do teatro na região e publicamos o primeiro livro sobre o tema: O Teatro em Mato Grosso no Século XVIII,8 em comemoração aos 250 anos da primeira representação documentada em Cuiabá (1729-1979). A ele se seguiram estudos de peças representadas em Cuiabá no século XVIII: O Saloio Cidadão.9 O Tutor Namorado e as Indús-trias das Mulheres.10

Esses estudos possibilitaram a publicação de outras obras, já depois de minha saída da UFMT. Teatro a Bordo de Naus Portuguesas nos Séculos XV, XVI, XVII e XVIII foi publicado no Rio de Janeiro em 2000 pelo Instituto Lu-so-Brasileiro de História. A versão inicial dessa pesquisa foi publicada em 1981 no número especial Homenagem a Agostinho da Silva, da revista Tulane Studies in Romance Languages and Literature, da Tulane University, de New Orleans.

Na UFMT foi organizado um grupo teatral com estudantes do Depar-tamento de Letras que, sob a direção do Prof. Leônidas Querubim Avelino, representou em Cuiabá a comédia O Saloio Cidadão e o entremez O Tutor Namorado, quase duzentos anos depois de essas peças terem sido levadas à cena na mesma cidade. O Saloio Cidadão foi também representado pelo grupo no histórico teatro de Ouro Preto, durante a realização do simpósio sobre o barroco (1893).

Outro estudo que realizamos no HDIHR foi o de uma das peças re-presentadas em alto-mar, à altura do nosso Cabo de Santo Agostinho, du-rante a viagem de Lisboa para o Brasil do governador nomeado de Mato Grosso, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres. Só anos depois de nosso desligamento da UFMT conseguimos publicá-la, com o título As Pre-ciosas Redicolas – Entremez Representado a Bordo da nau Santa Ana – Carmo – S. Jorge em 1771.11

A outra peça representada na mesma viagem – O Velho Namorado – es-tá pronta para publicação.

Com base na documentação microfilmada pela Prof.a Maria Cecília e pesquisas por nós realizadas em Portugal, publicamos o primeiro livro sobre D. Antônio Rolim de Moura, Conde de Azambuja, Primeiro Governador e Capi-tão-General de Mato Grosso, Governador da Bahia, Vice-Rei do Brasil.12

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A UFMT estava empenhada na criação da Faculdade de Medicina e publicou nossa pesquisa Médicos e Cirurgiões em Mato Grosso no Século XVIII e início do XIX,13 que teve mais de uma edição.

Vários estudos foram publicados fora da Universidade, e alguns de-pois de nosso desligamento, mas todos decorrentes daquela fase inicial de implantação, cujo entusiasmo é inesquecível. Dentre eles destacamos: A Contribuição Naval à Formação Territorial do Extremo Oeste (Mato Grosso, Rondônia e Mato Grosso do Sul),14 As Fronteiras do Extremo Oeste e a Estraté-gia da Expansão Portuguesa,15 Boats Used by the Settlers of Mato Grosso in the 18th and 19th Centuries,16 Embarcações Usadas pelos Colonos no Extremo Oeste nos Séculos XVIII e XIX (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rondônia),17 O Ensino em Mato Grosso no Século XVIII e Início do XIX,18 Arraial do Cuyabá – Vila Real do Senhor Bom Jesus,19 Mato-Grossenses na Universidade de Coim-bra nos Séculos XVIII e XIX.20

Enfim, mais uma série de outros trabalhos menores, mas tratando de temas inéditos ou pouco abordados anteriormente, dispersos por revistas de cultura de Portugal e do Brasil, e seria interessante reunir e publicar em con-junto. Nisso estamos pessoalmente empenhados.

Não podemos deixar de lembrar o apoio com que contamos, a Prof.a Maria Cecília e nós, na realização das pesquisas, do primeiro Reitor da UFMT, Dr. Rafael Novis Neves, do Vice-Reitor e depois Reitor, Prof. Benedito Pedro Dorileo, do Vice-Reitor Atílio Ourives, do Prof. Célio da Cunha, Diretor do DEPES, da Prof.a Terezinha de Jesus Arruda, Coordenadora do NDIHR.

Notas1 Cf. MOURA, Carlos Francisco. “O Projecto Japão”. In: DAVI, Amon Pinho; EPIFÂNIO, Renato; PINHO, Ro-mana Valente (orgs.) In Memorian de Agostinho da Silva: 100 anos, 150 nomes. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006, pp. 99-103.

2 UFMT, Cuiabá, 1979.

3 UFMT-SUDAM Belém, 1976.

4 UFMT, S. Paulo, 1976.

5 UFMT, Cuiabá, 1975.

6 NDIHR, 1984.

7 Belo Horizonte, 1983.

8 UFMT - SUDAM, Belém, 1976.

9 UFMT, Cuiabá, 1979.

10 UFMT, Cuiabá, 1982.

O Professor Agostinho da Silva e o Núcleo de Documentação... Carlos Francisco Moura

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11 Rio de Janeiro, 2001.

12 UFMT, 1982.

13 Cuiabá, 1978.

14 Rio de Janeiro, 1986, e Lisboa, Museu Naval, 1987.

15 Viana do Castelo, 1994.

16 Oxford, 1988.

17 Lisboa, 1966.

18 Rio de Janeiro, 1977.

19 Rio de Janeiro, 1979.

20 Coimbra, 1992.

ResumoO Prof. Agostinho da Silva e a criação do NDIHR da UFMT. Contribuição da paleógrafa

Maria Cecília Guerreiro de Sousa e publicação dos primeiros inventários de documentos

setecentistas referentes a Mato Grosso. Bibliografia resultante publicada. História do Tea-

tro e Artes Plásticas. Arquitetura, Medicina, Ensino.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; paleografia; documentação setecentista; in-

ventários; teatro; história; artes plásticas; arquitetura; medicina; ensino; bibliografia.

AbstractProf. Agostinho da Silva and the creation of the Center for Regional History Documen-

tation and Information (NDIHR, in the Portuguese acronym) of the Federal University

of Mato Grosso. The paleographer Maria Cecilia Guerreiro de Sousa’s contribution and

the publishing of the first inventories of 18th-century documents related to Mato Grosso.

Resulting bibliography published. History of Theater and Plastic Arts. Architecture, Me-

dicine, Teaching.

Keywords: Agostinho da Silva; paleography; 18th-century documents; inventories;

theater; history; plastic arts; architecture; medicine; teaching; bibliography.

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A arte de viver em Agostinho da Silva

Celeste Natário*

Decorreram já mais de dois anos sobre o nosso primeiro texto sobre Agostinho, texto esse resultante de um encontro que, sendo gratificante, cons-tituiu para nós um grande desafio pelo deficiente conhecimento da obra deste singular pensador.

Todavia, quando na vida encontros desta natureza acontecem, torna-se difícil, senão impossível, afastarmo-nos assim de alguém que tanto nos mar-cou logo ao princípio, razão pela qual hoje algumas considerações ousamos de novo fazer, não por um conhecimento profundo e exaustivo da sua obra, mas por uma crescente empatia com o seu pensamento.

Com efeito, desde esse primeiro encontro, nunca mais de Agostinho nos conseguimos afastar. Ao invés, na sua companhia temos sentido, crescen-temente, um raro acolhimento e afago, sobretudo pela sua tantas vezes des-concertante sabedoria, aquela verdadeira sabedoria, a sabedoria para a vida, que é, segundo cremos, a que mais importa.

Cumpre-se, na nossa perspectiva, essa sabedoria para a vida, no querer fazer o impossível – dado que, como lapidarmente escreveu o próprio Agos-tinho, “só há homem quando se faz o impossível; o possível todos os bichos o fazem”.1 Ao contrário do que possa parecer, não é esse querer um acto gratuito, um gesto fantasista, mas uma aposta: no melhor de nós, no melhor do ser, no melhor da vida, porque só assim a vida é uma arte, porque só assim a vida pode ser um poema…

É esse o único caminho para uma vida autêntica, caminho onde todos os atalhos têm que ser explorados e onde, por isso, natural e espontaneamente

* Professora de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutoramento em Filosofia em Portugal, aprovada por unanimidade, com a tese intitulada: O Pensamento Filosófico de Raul Proença, apresenta-da à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002. Mestrado em Filosofia do Conhecimento pela Facul-dade de Letras da Universidade do Porto, com a classificação final de Muito Bom, com a dissertação intitulada: O Pensamento Dialéctico de Leonardo Coimbra, Reflexão sobre o seu valor antropológico, sob a orientação do Prof. Eduardo Silvério Abranches de Soveral, em 1994.

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o paradoxo emerge, qual feixe de forças tensivas, senão mesmo antagónicas, tão-só o resultado da aceitação do todo e do tudo que na vida vai sendo… Re-aliza-se, esse caminho, numa contínua batalha contra o que desvia o homem da plenitude, por Agostinho entendida como o nosso único dever, o horizonte para uma existência com real significado e valor.

É uma existência assim concebida que torna activo e dinâmico o pen-samento deste homem que se interpelando nos interpela, que se revelando nos revela e coloca perante um olhar plural sobre o mundo, a vida e o homem, olhar esse que, pela sua inexcedível disponibilidade de escuta, ao mesmo tempo nos diz que só o Amor pode conduzir a Humanidade pelos mais elevados rumos, pois que, como escreveu Agostinho, só o Amor, esse “outro” Amor – “outro” porque verdadeiramente pleno – é “capaz de sacrificar todas as possibilidades de quem o sente, para que o inferior não fique na sua inferioridade”.2

Por assim ser, é esse Amor simultaneamente humano e divino, é esse um Amor que acontece por uma espontânea adesão, disponibilidade de escuta, comunhão, irmanação – no dizer de Paulo Borges, “um amor omnicompreen-sivo e unitivo que, sendo místico, no sentido de consistir na fusão com o fundo último e inexprimível do real, não deixa de ser criador, pois consubstancial ao Infinito agostiniano, simultaneamente humano e divino, no qual Deus e as mentes co-inventam a cada instante a si e ao mundo”.3

Por assim ser, simultaneamente humano e divino, “omnicompreensivo e unitivo”, é esse um Amor que tudo supera e transfigura pela “atenção contí-nua e profunda ao que mais vale em si”, resultante daquela doação que só pode decorrer de uma inteira entrega de todo o nosso ser ao que verdadeiramente é… Essa consonância entre o que se é e o que se pensa, entre o ser e o pensar, é, aliás, na nossa perspectiva, o que mais singulariza o seu pensamento filosó-fico, apesar de Agostinho recusar esta classificação bem como outras similares designações, chegando inclusivamente a escrever, em Conversação com Dioti-ma, “eu não sou um filósofo (…), sou um poeta: mais imagino a vida que a explico…”.4

Deseja Agostinho que a missão dos homens seja a de reali-zar o que está, a priori, para além do seu alcance, o tal “impossível”, o que é também um modo de libertação de si próprio e de transcensão do egoís-mo, na abertura amorosa a toda a alteridade. Certamente que não é fácil esta tarefa. É, ao invés, a mais difícil, a mais “impossível”. Ainda e sem-pre, tudo está, contudo, nas nossas mãos. Assim o queiramos – como escreveu ainda o próprio Agostinho: “Felicidade ou paz nós a construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico

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e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva”.5

Sozinho tanto no nascer como no morrer, tendo como “única compa-nhia a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente”, o homem, toman-do sobre si o espírito do amor – o mesmo é dizer, tão-só, o próprio Espírito –, seguirá no mundo o caminho que o levará, o elevará, ao mais alto, ao além de si mesmo, já que este Amor tudo funde, unifica e redime, por uma elevação do humano ao divino… É este um caminho de santidade, de transcensão, o único caminho através do qual o homem verdadeiramente se cumpre, ao descer ao mais fundo de si, à sua mais funda verdade, ascendendo, nessa descida, ao que mais absolutamente o transcende, a própria “plenitude de Deus”. Ainda nas palavras de Agostinho, é essa a nossa única “obrigação”: “Para o homem existe apenas uma obrigação: a de atingir a plenitude de Deus. E só por um meio o alcançar: o de, ao longo da vida, se tornar no homem que é”.6

Não se trata pois aqui de um caminho de alienação, nem, muito me-nos, de negação de si. O homem não se aliena nem, muito menos, se nega ao cumprir este caminho. Muito pelo contrário, cumpre-se, assim, pois, nele se afirmando o mais possível… Para Agostinho, com efeito, o homem e Deus não são rivais, não tendo, por isso, que se combater entre si. Daí que nem o homem se afirme na negação de Deus nem Deus se afirme na negação do homem. Ao invés, o homem tanto mais se afirmará quando mais se afirmar em Deus… De resto, para Agostinho, Deus não é sequer um real “outro” para o homem. Como escreveu na sua Doutrina Cristã, que tanta polémica levantou na altura da sua publicação, “pode-se, sem blasfémia, falar não de Deus mas apenas do Universo, com Espírito e Matéria, formando um todo indissolúvel.”7

Terá sido Agostinho, ao escrever estas palavras, um herético ou, ao in-vés, um santo?… Nem uma coisa nem outra, a nosso ver. Se é verdade que a vida de Agostinho manifesta uma tal autenticidade que chega a afigurar-se, no sentido mais comum do termo, como a vida de um santo, e não apenas como a vida de um homem, a verdade é que Agostinho foi apenas isso: um homem. Nem sequer um homem perfeito, mas, apenas, um homem. Um homem que, contudo, quis a perfeição – como fez questão de frisar, é esse, aliás, o estado mais perfeito do homem: “Não há homens perfeitos; há quando muito (…) homens que querem ser perfeitos.”8 E que, por isso, sem o querer, se tornou para todos nós um exemplo. Um exemplo de procura da perfeição, do “impos-sível”. Um exemplo de como fazer da nossa vida um poema. Um exemplo de como fazer da nossa vida um caminho que vale realmente a pena percorrer até ao fim. Um exemplo, em suma, da arte de viver.

A arte de viver em Agostinho da Silva Celeste Natário

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Notas1 Cf. Sete Cartas a um Jovem Filósofo, in Textos e Ensaios Filosóficos, org. de Paulo A.E. Borges, Lisboa, Âncora, 1999, vol. I, p. 268.

2 Cf. Conversação com Diotima, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. I, p. 167.

3 Cf. Agostinho da Silva: uma antologia, org. e apres. de Paulo A.E. Borges, Lisboa, Âncora, 2006, p. 123.

4 Cf. Conversão com Diotima, ed. cit., p. 169.

5 Cf. Só Ajustamentos, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. II, p. 94.

6 Cf. Pensamento à solta, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. II, p. 162.

7 Cf. Doutrina Cristã, in Textos e Ensaios Filosóficos, ed. cit., vol. I, p. 81.

8 Cf. Conversação com Diotima, ed. cit., p. 168.

ResumoPara nós, Agostinho da Silva é um exemplo: um exemplo de procura da perfeição, do “im-

possível”, um exemplo de como fazer da nossa vida um poema, um exemplo de como fazer

da nossa vida um caminho infinito, um exemplo da arte de viver.

Palavras-Chave: Agostinho da Silva; exemplo; arte de viver.

AbstractFor us, Agostinho da Silva is an example: an example of search for perfection, for the “im-

possible”, an example of how to make one’s life a poem, an example of how to make one’s

life an infinite pathway, an example of the art of living.

Keywords: Agostinho da Silva; example; the art of living.

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Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito

Constança Marcondes César*

Para compreendermos o significado do Reino do Espírito, na obra de Agostinho da Silva, é preciso tomarmos como ponto de partida suas conside-rações sobre o mundo atual, sobre a crise da sociedade contemporânea.

O tempo em que vivemos apresenta, na ótica de nosso autor, várias analogias com o fim do Império Romano. Tais analogias são levadas ao ex-tremo quando o pensador julga poder reconhecê-las na oposição entre o hemisfério Norte e o hemisfério Sul. O hemisfério Norte e suas “sucursais”, como ele chama a Austrália e a África do Sul, são as regiões mais desen-volvidas. Na periferia dessa área, e mesmo dentro dela, acham-se inúmeros desempregados.

A área desenvolvida é identificada com um segundo Império Roma-no. As menos desenvolvidas, cheias de famintos e sem trabalho, são os novos bárbaros, que já começam a invadir a área “civilizada”. Os pólos de entrada desses novos bárbaros serão o que nosso autor chama de as duas Penínsulas Ibéricas: a primeira, constituída por Portugal e Espanha; a outra, pelos países da América Latina.1

O desafio consiste no fato de as áreas desenvolvidas enfrentarem uma persistente crise, decorrente de um progresso tecnológico desordenado, pro-duzindo efeitos indesejáveis, do ponto de vista humano.

Assim, de um lado, temos desumanização e desmoronamento de um mundo; de outro, o alvorecer de uma nova época.

No mundo que se desmantela, encontramos o conflito entre liberdade e sobrevivência. Agostinho se refere explicitamente ao conflito que opunha, na década de 80, as duas grandes potências: EUA e Rússia. A primeira celebra a liberdade de pensamento, mas estoca alimentos enquanto parte da população

* Constança Marcondes César é Professora titular da PUC de Campinas; membro do Instituto Brasileiro de Fi-losofia, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira e da Academia Brasileira de Filosofia, da Academia Internacional de Filosofia, da Academia de Ciências de Toulouse.

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mundial morre de fome; aqui se vê crescer o uso de drogas e o suicídio de jovens; e aumentar a violência e o número de prisioneiros. A outra potência celebra a eliminação da fome; mas essa foi feita à custa da instauração de governos ditato-riais, totalitários e repressivos.2

A organização atual da sociedade parece fadada a desencadear uma crise de enormes proporções. Ela se expõe no amplo desemprego dos que não podem ser absorvidos pelo mercado de trabalho; no desespero dos jovens que, “educados para trabalhar, chegam à idade de trabalhar e não trabalham. Não podem comer sem trabalhar; e não podem sequer divertir-se sem trabalhar”.3 O impasse vem se acentuando e duas saídas igualmente difíceis se anunciam: a ampliação da busca das drogas e do álcool ou a violência.

A crise ocorre por falha do Estado, que foi incapaz de orientar cor-retamente os resultados da capacidade inventiva do homem. Trata-se, para Agostinho, de reduzir o tempo de trabalho de todos; de possibilitar o amplo acesso a alguma tarefa; de canalizar o tempo livre de todos para o lazer e o aprimoramento.

O Estado atual só melhorou as condições daqueles que já têm acesso ao trabalho. Acentuou, assim, a divisão entre empregados e desempregados.

O caráter burocrático e desumano da sociedade atual vai perdurar muito tempo. Mas já começam a surgir sinais de que a situação pode ser superada. É

“só a fé no homem, nas possibilidades divinas do homem [que] nos pode levar de novo à Idade de Ouro (...), [ao] tempo de fraternidade e de amor, sem angústia e sem dramas, tempo de contemplação e de absorção em Deus, tempo de ação mental, a mais verdadeira e a mais eficaz de todas as ações”.4

A possibilidade está aberta para sairmos dessa circunstância opressiva: cabe-nos, diz o mestre, usar a imaginação.

É recorrendo à teoria da história de Joaquim de Flora, que pensa a su-cessão do tempo à luz das três figuras da Trindade, que Agostinho vai oferecer alternativas. O Reino do Espírito será construído ao buscarmos novos modos de viver e ser, ousando o impossível.

O impossível é a realização do Reino de Deus na Terra, o Reino do Espírito Santo, caracterizado pela liberdade, criatividade, plenitude. Do lado do império econômico e político que se desmantela, não há liberdade políti-ca, não há liberdade econômica: há “coação exercida pelos que dispõem dos

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meios de produção, de transportes e de crédito (...)”, [há] “fácil corrupção do voto” (...) [e] “a miséria nem pensar pode”.5

A sociedade atual está baseada na opressão de uns sobre outros, na idéia do homem como instrumento de produção; baseia-se na concorrência e no lucro, na propriedade.

Ora, “a questão é que não se pode ser capitalista e religioso”,6 diz Agos-tinho. Não se pode afirmar a fraternidade, sem o respeito ao outro; e ainda: “Não há propriedade alguma que Deus possa abençoar; Deus só pode aben-çoar a não-propriedade”,7 o serviço a todos. Trata-se, para o nosso autor, de instaurar a liberdade econômica, mediante a “propriedade coletiva da terra”, como “ponto a que se dirigem, convergindo, o progresso da consciência ética e o progresso da utilização técnica das ciências”,8 estabelecendo cooperativas.

Se essa iniciativa não for levada a efeito imediatamente, “conseqüên-cias graves [advirão] para todo o mundo (...)”,9 na opinião de nosso autor.

Uma revolução está em marcha, provocada pela automação: “um futuro tempo em que todo o produto manufaturado, pelo emprego das fábricas auto-máticas, não exigirá de ninguém trabalho involuntário (...)”.10

Essa revolução virá; caso a propriedade seja coletiva, virá mais depres-sa. No capitalismo, com a automação, só vai crescer o número de desempre-gados, e os trabalhadores em atividade acabarão por não ser capazes de pagar o subsídio para os outros. Desse impasse, decorrerão guerras ou revoluções, dando lugar a uma nova etapa: a de luta entre a não-propriedade e a proprie-dade coletiva, luta do hemisfério Sul contra o hemisfério Norte.11

Daí a exigência de se construir uma nova ordem, aquilo que Agosti-nho chama de Reino do Espírito. Essa nova ordem é uma nova concepção do religioso, das virtudes, com ressonâncias no âmbito da economia, da po-lítica, da educação.

No plano religioso: a religião do Espírito Santo não é confessional, mas resulta da convergência de três princípios: “O homem deve dominar as coisas e não ser dominado por elas (...) deve obedecer ao que o transcende e não aos seus caprichos; nenhum corpo deve fazer o que a alma reprova, nenhuma alma deve fazer o que reprova o corpo.”12 As virtudes de “humildade (...), generosa alegria (...), imaginação (...), inocência”,13 presentes nas crianças, consideradas como modelo de vida, de entusiasmo, tiveram grande expressão nos momen-tos históricos de maior criatividade, como ocorreu entre os gregos, os árabes de Córdoba, os italianos do Renascimento.

Recriar esse espírito de entusiasmo, de invenção, de sacralização da vi-da e do mundo é a proposta de Agostinho.

Agostinho da Silva e a construção do mundo do espírito Constança Marcondes Cesar

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A instauração do Reino se inicia, diz nosso autor, no espírito dos ho-mens; consiste na celebração de uma nova ordem, a partir de três votos essen-ciais: “o de criar beleza (...), o de servir (...), o de rezar (...)”.14

Esse espírito é essencialmente religioso: a religião do Espírito propõe a cada um a fidelidade a si e o amor aos outros, como princípios essenciais.15 Religioso é tudo o que enfoca como valor essencial a unidade; é o “desejo su-premo de fusão no Uno”,16 é o desejo de fraternidade, acima da busca do saber ou do conhecimento.17

No Reino do Espírito, o ideal de governo é “o não haver governo”;18 o “de economia, o não haver economia” eliminando-se a oposição produtor/con-sumidor, patrão/operário;19 no plano de vida política, é a superação das antino-mias entre criança/adulto, ignorante/sábio, homem/mulher.20

Definindo a política como “uma ponte de passagem entre um hoje e um futuro”,21 trata de discernir as características da política que possa con-duzir ao Reino do Espírito, de modo que este não seja apenas uma utopia, um sonho, mas irrompa no agora. Para tanto, uma “política sem partidos”,22 é condição de nos irmanarmos, de acentuarmos não o que nos opõe, mas o que nos une.

Trata-se, assim, de levar o homem a chegar a compreender “a mais alta idéia, a de que o sonho vale mais do que a realidade, a de que o contemplar sobrepuja o agir (...)”.23

As escolas, por sua vez, terão que acentuar a capacidade de criação, de invenção, em todos os campos; serão “escolas sem professores, apenas com o encontro quotidiano de pesquisadores e inventores e criadores em vários graus de progresso (...)”.24

A escola atual segrega o aluno, faz dele um especialista, dócil às expec-tativas dos adultos e o torna ferozmente competitivo.

A escola do futuro dará a prioridade à criança, levando o adulto a re-aprender a imaginação, o jogo, o sonho.25 Nosso autor busca criar “o lugar cí-vico de educação e de vida (...) em que o criar vá muito além do saber (...) em que o jogar se encontre com o trabalho, em que a liberdade crie sua própria disciplina e em que o contemplar domine o agir, e o adorar se sobreponha ao poder (...)”.26

A construção do Reino do Espírito passa pela atuação importante de Centros de Estudos, de Universidades. Atribuindo um papel essencial ao Brasil, nessa abertura de um novo tempo, Agostinho assinala a importância do surgi-mento da Universidade de Brasília, que ajudou a fundar.

Estabelecendo analogias entre a época em que vivemos e a do surgi-

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mento das ordens monásticas, propõe como inspiração o lema de São Bento: ora e trabalha. Ou seja, acha importante associar o estudo e o trabalho, de modo que o povo se reúna à volta das Universidades, como outrora, dos agru-pamentos circundantes aos mosteiros, surgiu o que hoje é a Europa. Talvez desse modo, diz o pensador, possa surgir, num mundo “frágil e ameaçado”, uma nova raça “de sábios, monges e soldados”27 que possa superar as guerras e conflitos em que estamos mergulhados.

Agostinho, a partir de sua atuação nas Universidades brasileiras, criou Centros de Estudo que realizaram, concretamente, o estabelecimento de laços entre América, África, Europa e Ásia.

O grande projeto de fundação de Centros Universitários interligados está exposto no texto Bahia.Coleção de Folhetos. Refere-se a um projeto feito no Brasil, mas publicado em Lisboa em 1971.28

Aí, narra a criação, em 1959, do Centro de Estudos Afro-Orientais, na Bahia; a criação, em 1962, do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de Estudos Clássicos, na Universidade de Brasília. Refere-se à formação de grupo de colaboradores, professores pesquisadores de diferentes áreas: História, Fi-lologia, Arte, Filosofia, Música, Poesia.

Mirar o sonho, ousar o impossível; e com fé, alegria, paciência, persis-tência, realizar o possível, nas circunstâncias dadas. Foi o que Agostinho fez, ao longo de sua vida inteira. Reuniu grupos de estudiosos que abraçaram o sonho e trataram de pô-lo em andamento.

O entusiasmo, a profundidade de sua contribuição fizeram de nosso autor um mestre, a semear uma espantosa obra cultural, e a ascensão hu-mana e pessoal daqueles que tiveram a felicidade de encontrá-lo e com ele colaborar.

A fé no sonho, na capacidade do homem de realizar o melhor de si mesmo; o convite a traduzir em ação e em vida o conhecimento, o saber; a poderosa inflexão de suas idéias e de seus projetos tiveram impacto decisivo na transformação das regiões do Brasil onde esteve. Fundador de Centros de Estudos e de Universidades, fez de sua atuação em diversos deles uma ponte para o futuro: a construção do Reino do Espírito. Entendendo o mundo novo também como um mundo profundamente interligado e dialogante e conside-rando que esse diálogo teria que se estabelecer acima dos conflitos e interesses, acima dos jogos de poder e das lutas que contrapõem culturas, religiões, eco-nomias, filosofias –, Agostinho estabeleceu metas concretas para o papel a ser desempenhado pelas universidades, nesse campo.

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Assim, diz:

“(...) suponho ter ficado mais ou menos definido (...) que, a po-der-se um dia voar mais largo, teriam que se estabelecer os Centros, não [só] no Brasil, mas nas regiões em que se estivesse interessado, criando junto de todas as Universidades brasileiras postos de recru-tamento de bolsistas e, nas respectivas bibliotecas centrais, sessões especializadas (...)”.29

O Brasil seria, na perspectiva de nosso autor, o novo ponto focal entre

Europa, Ásia e África, uma vez que já representa esse encontro, dos pontos de vista cultural e racial.

O grupo de estudiosos que se reuniu em Brasília, na fundação da Uni-versidade, em torno do Centro de Estudos Portugueses e do Centro de Estudos Clássicos, em colaboração com Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, teve, dentre outros, nomes como os de Ordep Serra, Emanuel Araújo, altamente ex-pressivos no cenário nacional.

O projeto da Universidade de Brasília enfatizava os estudos clássicos, a tradução direta do latim e do grego, a organização de coleções de edições bilíngües, assim como a tradução de manuais básicos de diferentes áreas. A Universidade deveria ter postos avançados em diferentes pontos do mundo.

A certeza de que o sonho é possível, a fé no homem e nas suas poten-cialidades criadoras, a esperança no futuro, que conduz a ações concretas para a realização do melhor em nós e nos outros, talvez seja o grande legado de Agostinho.

O sonho impulsiona; funciona como valor-horizonte, meta que pro-duz uma orientação geral da vida para a realização de um novo mundo. O grupo que trata de instaurar o novo, “é fundamentalmente do lugar em que qualquer um de nós reside e da obra que estivermos realizando (...)”.30

O importante não é esperar, para agir, circunstâncias absolutamente favoráveis; é, antes, ter um projeto e pautar a vida por ele; é pôr o sonho em marcha, realizando o que for possível.

O legado de Agostinho é uma ética do possível, uma ética do sonho. Como ele mesmo diz, “o sonho vale mais que a realidade”,31 a contemplação conduz à ação. E se não é possível realizar de uma vez por todas e de imediato o mundo sonhado, é, contudo, um convite e uma incitação começar realizá-lo no instante presente, na circunstância dada, com os instrumentos, alternativas e pessoas disponíveis.

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Em resumo, pode-se dizer que:

a) o ponto de partida da interpretação da situação contemporânea, em Agostinho, é a constatação da crise presente. Tal crise é ana-lisada como resultante de uma ruptura entre o fazer técnico e o significado profundo do existir humano. As atuais estruturas eco-nômico-políticas só acentuam essa ruptura, produzindo fome e desemprego, contraposição entre países desenvolvidos e não-de-senvolvidos, guerras e conflitos entre culturas, gerações, trabalha-dores e desempregados;

b) recorrendo à interpretação da história de Joaquim de Flora, monge medieval discípulo de Santo Agostinho, nosso pensador se refere à Idade do Espírito, como objetivo a ser buscado, ideal a ser concreti-zado. Afirma a fé nas possibilidades criadoras do homem como fio condutor para sairmos do impasse atual; afirma o amor como via privilegiada dessa realização, e a esperança não como espera vazia, mas como certeza de que a utopia é possível.

Fé, esperança e amor se unem na férrea disciplina intelectual, no exercício quotidiano da busca de conhecimento e na repartição desse conhecimento através de ações concretas, educativas, e do es-treito diálogo com grupos de intelectuais atentos às possibilidades abertas pelos recursos da ciência atual;

c) a crítica à sociedade contemporânea e a afirmação das virtudes estão vinculadas, em Agostinho da Silva, a uma ética do possível.

Por ética do possível entendemos sua concepção de agir voltado para a realização do melhor, a cada momento dado. É uma sabedoria prática, interes-sada em solucionar problemas concretos, visando alcançar a máxima expressão do humano como resultado. Trata-se de suscitar, em si e nos outros, a coragem transformadora do mundo, libertando o ser humano da servidão do trabalho repetitivo, para a vida criadora, na qual “o sonho vale mais que a realidade”.32

Notas1 A. da Silva. “Carta Vária: XLI”. In: Dispersos. Lisboa: ICALP, 1988, p. 830.

2 A. da Silva. “Carta Vária: LIV”. In: Op. cit., pp. 842-843.

3 A. da Silva. “A minha meta é o ponto sem dimensão” (entrevista ao Diário de Notícias). In: Op. cit., p. 142.

4 A. da Silva. “A Comédia Latina”. In: Op. cit., p. 190.

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5 A. da Silva. “Considerando o Quinto Império”. In: Op. cit., p. 193.

6 A. da Silva, ibidem.

7 A. da Silva, ibidem.

8 A. da Silva, ibidem.

9 A. da Silva, ibidem. p. 194.

10 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 231.

11 A. da Silva, ibidem. p. 232.

12 A. da Silva. “Considerando o Quinto Império”. In: Dispersos, p. XXXXXX

13 A. da Silva, ibidem.

14 A. da Silva, ibidem. p. 198.

15 A. da Silva. “Carta chamada Santiago”. In: Op. cit., p. 586.

16 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 227.

17 A. da Silva, ibidem. p. 228.

18 A. da Silva. “Considerando o Quinto Império”. In: Op. cit., p. 199.

19 A. da Silva, ibidem. p. 200.

20 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 232.

21 A. da Silva, ibidem. p. 233.

22 A. da Silva, ibidem.

23 A. da Silva, ibidem. p. 239.

24 A. da Silva. “Considerando o Quito Império”. In: Op. cit., p. 199.

25 A. da Silva. Ecúmena. In: Op. cit., p. 235 e ss.

26 A. da Silva, ibidem. p. 237.

27 A. da Silva. “Notas para uma posição ideológica e pragmática da Universidade de Brasília”. In: Op. cit., p. 252.

28 A. da Silva. Op.cit., pp. 493-499

29 A. da Silva. “Bahia Coleção de Folhetos”. In: Op. cit., p. 494.

30 A. da Silva, ibidem. p. 497.

31 Cf. nota 23.

32 Cf. nota 23.

ResumoPartindo da constatação da crise do mundo atual, Agostinho da Silva, inspirado em Joa-

quim de Flora, propõe como alternativa a construção de uma nova forma de convivência

entre os homens, que afirme os valores do conhecimento, da fé , do amor e da esperança.

Trata-se de instaurar uma ética do possível, através do diálogo entre grupos de intelectuais

e de centros de pesquisa, favorecendo o intercâmbio de idéias e a vida criadora.

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Palavras-chave: Espírito; Joaquim de Flora; Virtudes; Conhecimento; Crise.

AbstractStarting from the perception of the world’s ongoing crisis and inspired by Joachim of

Fiore, Agostinho da Silva suggests as an alternative the building of a new form of living

in society, one which affirms the values of knowledge, faith, love and hope. It is about

instauration of an attainable ethic, through the dialogue between intellectual groups and

research centers, favoring the interchange of ideas and creative life.

Keywords: Spirit; Joachim of Fiore; Virtues; Knowledge; Crisis.

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Agostinho da Silva: Um Filósofo Pedagogo e uma Teocracia

Dalila Pereira da Costa*

Se ainda quisermos confirmar, por suas próprias palavras, sempre tão claras e rigorosas, a posição que assumiu Agostinho da Silva como filósofo, ouçamo-lo, e aqui em confissão própria: “E se por acaso é pedagogo, coisa que acontece muito a filósofos, não porque queiram especialmente educar o gênero humano, mas porque não pode existir nenhum verdadeiro pensador que não ame em cada homem o reflexo de Deus e não deseje que todo o minério pre-cioso se desprenda da ganga”.1

Aqui estará bem definida a função do vero mestre espiritu-al, tal como foi Agostinho da Silva, ainda na senda de seus próprios mes-tres da Renascença Portuguesa. Longe de qualquer imposição ou domínio pessoal. Lembremos a parábola evangélica dos talentos, o servo no seu dever fazendo multiplicar, render, os bens de seu Senhor, a si confiados em depósito; mas pelo sentido que antes lhe dará o nosso filósofo, aqui se lhe poderá chamar alquimia interior; outros lhe chamarão ainda maiêutica.

Ato de trazer à luz, desocultar as qualidades, dons, do discípulo, até en-tão só latentes, ocultas no seu fundo mais fundo, como sua verdade. Ou esse mi-nério precioso, que será em si o reflexo de Deus. “E ato pedagógico que”, como confia Agostinho da Silva, “só vale quando é feito como uma ascese por amor de que se liberte o Deus que em nós reside.”2

Cumprindo assim o único verdadeiro dever que, humanamente, há neste mundo, o de ser santo. De realizar em si o homem transmutado, ou regenerado. Então esta pedagogia surgindo como parte do messianismo: este realizando um mundo transmutado ou regenerado. Tal a meta conduzindo os portugueses sempre através de sua História. E que iria persistir, na visão

* Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra; ensaísta, poetisa e investigadora nas áreas da filosofia, da religião e da cultura portuguesa. Entre outros títulos da sua obra publicada, figuram O esoterismo de Fernando Pessoa (Porto: Lello & Irmão, 1971); A nau e o Graal (Porto: Lello & Irmão, 1984); Mís-ticos portugueses do século XVI (Porto: Lello & Irmão, 1986); Entre desengano e esperança: ensaios portugueses (Porto: Lello & Irmão, 1996); Mensagens do Anjo da Aurora (Lisboa: Hugin, 2000).

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própria teocêntrica, para além do Renascimento, que iniciou na Europa o an-tropocentrismo.

Tal ainda nos surge Agostinho da Silva; e também Álvaro Ribeiro, seu condiscípulo na antiga e suburbana Quinta Amarela, tão acolhedora nos seus grandes arvoredos, sede da Faculdade de Letras do Porto, criada por um escol de mestres: eis dois veros pensadores religiosos, ambos partilhando da mesma verdade, expressada pelo nosso pedagogo: “Filosofia separada de teologia é invenção do diabo.”3

Então e também, nesta progressão de união, se dará a “última e defini-tiva revolução, a do sobrenatural. A de se transformar a terra e o céu nalguma coisa que os supere; a de se casarem tempo e eternidade; a de não haver mais distinção alguma entre o homem e Deus”.4

Eis os anúncios dessa revolução que esperava Agostinho da Silva: a teocracia.

E a que correu secretamente sempre no espírito dos portugueses.Portugal foi, desde sua fundação por D. Afonso Henriques, uma nação

consagrada desde o alto, sob o signo de um milagre.Vivendo na esperança messiânica universal do estabelecimento do

Reino de Deus sobre a Terra: esperança que, através dos tempos, tomará manifestações sucessivas, como sebastianismo, Quinto Império; e que, nos últimos séculos, positivistas e materialistas, em outras seguintes recorrências cada vez mais profanizadas, assumirá aspectos de teor degradado.

Mas, nos seus primeiros séculos, afigura-se que, como nação, renuncia a qualquer forma de natureza estritamente terrena, havendo tradicionalmente em Portugal uma feição com algo de teocrática. Sempre latente, ora subindo à superfície, à luz, atuante, ora permanecendo oculta; mas sempre viva, presen-te; e sempre se declarando pela voz de seus profetas, na sua concepção provi-dencialista: Deus sendo o Senhor da História.

Assim, não tendo havido escolha de um destino tranqüilo, fechado e limitado sobre si próprio, como nação, mas vivendo para a humanidade.

O messianismo foi a vocação de Portugal, integrando-o desde a Recon-quista, na História continental e logo na universal. Dimensão universal que foi acentuada por Bandarra, P.e Antônio Vieira e, presente e potentemente, por Agostinho da Silva; demonstrando-se, através do devir histórico, esse filum tradicional de feição transcendente.

Mas tudo levará a crer que Portugal se esgotou neste último ato que o levou para além de si próprio, como nação; dando-se todo a esse ato, como meta única de existência. Como dever: sacrifício no seu vero sentido sagrado.

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Obra universal, em que colaboram seus reis, todo o povo, soldados, navegantes, descobridores, cartógrafos, missionários, mártires e santos.

“Nenhum outro país do mundo tivera tal audácia, nenhum dera a tal ponto o sinal de consciência de uma missão”.5

Enquanto conservou no seu pensamento e ação esta meta superior, levando-a para além de si próprio como finalidade de vida, viveu verdadei-ramente, ocupou e desempenhou alto papel no mundo, na sua vera essência, perseverando no seu ser; quando perdeu essa meta, também simultaneamente, um princípio de morte, começo de decomposição, entrando em si.

Então também, decaindo na submissão à Europa, a seus falsos mo-delos, tão alheios a si; como perda de sua identidade, confiança em si, na sua verdade própria.

E essa futura descoberta surgindo para seus profetas, como algo que faltava ainda cumprir; não no sentido natural, como a primeira, mas no senti-do espiritual; nova Descoberta, perante a qual, no dizer de Pessoa, a primeira não teria sido mais do que um ante-arremedo carnal.

Nova Descoberta na qual os filósofos poetas da Renascença Portuguesa, como Agostinho da Silva, depositaram toda sua esperança: como obra de fra-ternidade racial e universal, partilha do Espírito Santo; futuro nascer de uma humanidade e de um mundo.

E nessa futura missão, que espaço da terra e seu povo teria havido pre-destinadamente eleito desde os fundos mistérios dos inícios?

“Possivelmente a permanência de D. João VI no Brasil teria decidido de vez a possibilidade de um mundo português feito de nações independentes e livres, com seu centro de gravidade não mais em Portugal, mas no Brasil.”6

Agora ousemos ligar este possivelmente de Agostinho da Silva à afir-mação de vaticínio de André Malraux, na década de 60 do século passado, quando de sua visita oficial ao Brasil, como Ministro da Cultura da França, no seu discurso (que ouvi então) em São Paulo, declarando que o Brasil poderia ocupar o lugar de vanguarda na futura civilização mundial, se perseverasse na sua essência específica, não se submetendo a qualquer influência cultural de outra nação estrangeira. Notemos esta afirmação, vinda de alguém detentor de tão alto nível espiritual e autoridade; e afirmação possuindo tal elogio do Brasil: e esperança nele depositada.

Digamos ainda: agora o Brasil podendo por si transmitir sua específica e preciosa mensagem, e ainda a de Portugal, como uma das suas heranças pró-prias; “porque o ter emigrado o salvou, ou salvou sua mensagem”.7

E na esperança de nosso filósofo duma futura vera teocracia, “o tal por-

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tuguês preador lança seus fundamentos do que será muito possivelmente a base futura de renascimento católico”.8

Assumirá por si essa nova era de paz, multirracial? Na sabedoria uni-da de índios, pretos e brancos: pela maior força do mundo, o amor. E que nossos profetas, e entre eles, ultimamente, Agostinho da Silva de forma su-perior, proclamaram messianicamente, como Reino do Espírito Santo.

Eis então realizada essa sua desejada teocracia.

Porto, 7 de Setembro de 2006

Notas1 As Aproximações, pp. 117-118.

2 Op. cit., p. 85.

3 Op cit., p. 120.

4 Op. cit., p. 134.

5 Reflexão à margem da literatura portuguesa, p. 60.

6 Op. cit., p. 106.

7 Reflexão à margem da literatura portuguesa, p. 93.

8 As Aproximações, pp. 29-30.

ResumoAgostinho da Silva viveu nos nossos dias ainda como representante da corrente tradicio-

nal do messianismo português e de seu alto projeto de estabelecer no mundo uma Idade

da paz universal, em fraternidade multirracial. Agora, como mundo em ressurreição, após

sua descida aos infernos, iniciando uma teocracia na esperança do filósofo e ainda con-

tendo em si a mensagem do Brasil e de Portugal. Como mestre espiritual, Agostinho da

Silva assumiu sua vera missão: a de levar o discípulo à sua realização própria, o que será

cumprir o projeto que Deus tinha sobre ele desde a preexistência. O filósofo continuou a

cosmovisão teocêntrica da Idade Média, que Portugal também continuou, mesmo após

o Renascimento, que estabeleceu na Europa o antropocentrismo. Assim e também, sua

filosofia foi considerada como começo de conhecimento da teologia: esta como sua vera

realidade, completude final.

Palavras-chave: Messianismo; Fraternidade Universal; Liberdade; Santifica-

ção; Teocracia.

Agostinho da Silva: Um Filósofo Pedagogo e uma Teocracia Dalila Pereira da Costa

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RésuméAgostinho da Silva a vécu de nos jours, tel le representant du courant traditionnel du

messianisme portugais et de son haut projet d’établir au monde un âge de paix univer-

selle en fraternité multiraciale. Aujourd’hui, comme monde en résurrection, après sa

descente aux infers, encore vivant une théocracie et dans l’espoir du philosophe, conte-

nant en soi le message du Brésil et du Portugal. Comme maître spirituel, le philosophe a

vécu sa vraie fonction, celle d’émmener le disciple a sa realization: comme d’accomplir

le project que Dieu avait pour lui dès la préexistence. Agostinho da Silva continue la

cosmovision theocentrique du Moyen Âge, tel que Portugal avait fait, même après la

Renaissance et son anthropocentrisme établi en Europe. Ainsi, la philosophie était vue

comme début de connaissance, ou préparation vers la théologie: celle-ci comme sa vraie

realité, completude finale.

Mots-clé: Messianisme; Fraternité Universelle; Liberté; Sanctification; Théocratie.

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Poética da nação em Agostinho da Silva. Comunidades de discurso globalizadas e hermenêutica da literatura nacional.

Germán Labrador Méndez*

1. O seu nome é Nação

Idade de Ouro se chamou a uma vaga lembrança alterada e embelezada por poetas – ou Paraíso Terreal, bem tocado de seu celeste, é o nome pró-prio ou heterónimo, e, como para todos os heterónimos, a pergunta fun-damental, de tão difícil resposta, é heterónimo de quê? (AGOSTINHO DA SILVA, 1986: 9)

Desejo começar estas páginas com uma breve circulação pelos conceitos que vou tratar nas páginas seguintes, por aqueles que formam o seu título e por aqueles que o seu título aproxima. Porque o que aqui vou abordar não será mais do que algumas elípticas possíveis à volta desse corpus de metáforas, de mitos, de nar-rativas insólitas que forma a produção de Agostinho da Silva, linguagens que ilu-minam não pela convicção mas sim pela metáfora, que confiam as suas estratégias à “reminiscência” e não à “inteligência”, não à “definição”, mas sim ao “pressenti-mento” (Um Fernando Pessoa, 1959: 19).

* Germán Labrador Méndez (Departamento de Literatura Espanhola e Hispano-americana, Universidade de Salamanca). Bolsista FPU do MEC, última tese de doutoramento com co-tutela (Salamanca-Sorbonne). Sua trajetória investigadora se desenvolve entre os estudos culturais e a filosofia da cultura, com abordagens em campos e épocas diferentes, que vão desde a escritura do começo da modernidade até processos culturais da atualidade recente. Seu campo de especialização é a Transição Espanhola e especificamente o estudo dos movimentos contraculturais da mesma, sobre os quais tem publicado numerosos trabalhos em revistas de investigacão. É licenciado em Filologia Hispânica e Filologia Românica pela Universidade de Salamanca, ten-do completado sua formacão na Università degli Studi di Urbino (Italia), L’Université Paris IV-La Sorbonne (França) e University of California em Berkeley (EUA). É co-diretor do Seminário “Discurso, Memória e Legi-timacão” (Universidade de Salamanca).

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O primeiro desses conceitos é o de escritura da nação. Ou seja, o de con-ceber a ideia da identidade nacional, a sua relação com o território e com as ins-tituições políticas, jurídicas e socioculturais, desde uma perspectiva antiessencia-lista, antimetafísica, histórica, contingente e imanente. A nação é principalmente um facto de discurso, desde este ponto de vista, um texto, uma escritura, ou melhor, um amplo conjunto de textos e de escrituras que se solapam, se contra-dizem, se justapõem e se subordinam. Desta forma, seguindo Bhabha (1990), a construção da nação só se pode imaginar, desde estas coordenadas, como uma actividade literária de escritura de espaços de sentido, de contextos textuais de certeza (e incerteza) (rODríGuez-velAScO, 2006), através dos quais uma deter-minada comunidade encontra um lugar de sentido, um espaço linguístico para partilhar e se contar a si mesma e construir-se, não como identidades isoladas mas sim como partes de uma narração mais ampla, a narração nacional. Nation and narration: a nação é a sua escritura, o seu relato. A História com maiúsculas (History) é a história com minúsculas (story).

Vista assim, a nação transforma-se numa metáfora, num nome, um termo submetido a intercâmbio e negociação. Desprovido o conceito dos me-canismos de autoridade e poder com que se essencializa (brONcANO, 2007), a nação aparece mais amável, mais querida, mais partilhável. O conceito desta maneira pode propor-se como algo aberto, dinâmico, produtivo. E também, se a nação é um acto literário, podemos pensar que na configuração dos seus limites conceptuais podem intervir outros fenómenos próprios da escritura e, particularmente no que nos interessa, pode intervir a intertextualidade, de forma a que a escritura contemporânea da nação seja ao mesmo tempo a re-escritura de outras formas literárias anteriores, onde as metáforas prévias ger-minem e se cristalizem em metáforas posteriores ao serviço não sempre de projectos nem tão amáveis nem tão ingénuos.

No seu terreno público, como derivação do anterior, cabe esperar a existência de mecanismos pelos quais essa escritura nacional se dote de estra-tégias políticas e discursivas através de que possa manter-se estável, unificada, na medida em que se entenda uma relação entre a coesão do seu relato e a coesão simbólica do Estado que este relato cristaliza. Assim, pois, é fácil in-tuir a possibilidade de uma preceptiva para vigiar o uso da referida linguagem nacional, preceptiva que aqui indicaremos com o termo de uma “ortografia nacional”, metáfora tomada de Pessoa, ou melhor, de uma exegese de Pessoa, como veremos. Se a nação é discurso, se a nação se pode propor aos outros co-mo um projecto de “léxicos partilhados” (Rorty, 1996), então cabe interrogar-se pela possibilidade de uma gramática da nação, ou seja, algum conjunto de

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normas, de princípios que sirvam para situar os seus elementos numa ordem de discurso determinado. Qualquer discurso não é mais do que uma forma determinada de organizar as coisas (Foucault, 1999), mas cabe estabelecer so-cialmente a necessidade ou o interesse de estruturar um manual de conduta, umas práticas partilhadas de escritura que unifiquem, que legislem o modo desses discursos.

Assim, uma gramática da nação teria, na sua forma mais externa e me-nos reflexiva, também a sua própria ortografia, o que introduz uma ideia do uso correcto, do emprego adequado da língua nacional, utilizando agora este conceito na sua dupla acepção, a do relato colectivo e a do idioma nacional, reificado como máxima e material manifestação do primeiro. A ortografia é construída como uma moralidade pública, como um código de decoro e de decência, no momento de escrever a língua da nação e no momento de escrever a própria nação. Mas toda a ortografia, como foi demonstrado por Martínez de Sousa (1991), entranha frequentemente as suas violências simbólicas, as suas naturalizações, os seus projectos de controle, através das instituições que velam pelo cumprimento das suas normas e que sancionam e castigam a sua falta.

Desta maneira, o projecto de uma escritura nacional relaciona-se desde muito cedo com o da institucionalização dessa escritura, com a cristalização de formas determinadas, de significantes atrás dos quais se encontram rela-ções de poder, estratégias de controle simbólico e interesses determináveis.

Na nossa exposição, vamos fazer funcionar a escritura da nação em sin-cronia com a ideia de poesia e a questão da ortografia com a ideia de filologia como instituição. Poesia e filologia formam então um par de sentido que vai guiar a nossa exploração. Poesia introduz a expressão de uma carga imaginária nesse discurso nacional, estabelece que a configuração de uma ideia da pátria é levada a cabo através da articulação de mitos, de poéticas, de símbolos, de ele-mentos de carga psicológica que deslocam a ideia de identidade colectiva de um lugar racional, intelectivo, para o imaginário social, para a sugestão, para a sedu-ção, para a elaboração de metáforas felizes que tenham fortuna, rentabilidade, acção social num determinado espaço. Isto por um lado, mas ao mesmo tempo indicando que os poetas, como produtores simbólicos, como gestores privile-giados deste tipo de linguagens, formaram uma vez um corpo especializado na produção de sentidos nacionais, que existiram momentos históricos onde os poetas como colectivo estavam embarcados numa tarefa pública de tal tipo.

E a filologia, tomada no seu sentido mais amplo, como hermenêutica de discursos, aparece como o passo natural seguinte. Para glosar o escuro, para explicar o inexplicável, para tomar os símbolos e dizer que significam isto ou

Poética da Nação em Agostinho da Silva... Germán Labrador Méndez

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que significam algo mais, organiza-se uma instituição, um corpo de intelectu-ais especializados na exegese, aqueles que lubrificarão as metáforas dos poetas no discurso da nação. A filologia, então, como disciplina capaz de integrar as imagens poéticas, de dar-lhes um sentido concreto ao seu carácter de visão irracional e, ao mesmo tempo, de limitar as suas possíveis interpretações, de controlar o seu potencial significativo. A filologia elaborando um metadiscur-so, uma interpretação, a correcta, a adequada, ou seja, gerando um discurso novo e dizendo que é exactamente igual ao anterior. A filologia recobrindo as fontes de uma linguagem própria e fazendo crer que a sua linguagem é na realidade a que se encontra no interior das referidas fontes.

2. Tomar emprestados os nomes dos espíritos do passado

No entanto, qualquer propósito de gerar linguagens públicas ao ser-viço de projectos colectivos não pode conceber-se sem a procura de modelos anteriores a partir dos quais trabalhar. A escritura da nação, a imaginação da comunidade são projectos discursivos muito delicados que requerem, como primeira estratégia básica, a sua ancoragem no seio de uma tradição, ou seja, um lugar semântico prévio e conhecido cuja memória seja fácil de aludir e cujos signos sejam fáceis de imitar, e, como segundo procedimento, dotar-se de formas discursivas pragmaticamente úteis. As linguagens das gerações precedentes, ou as outras linguagens dos contemporâneos, oferecem um in-ventário de recursos, um corpo de metáforas a tomar emprestadas ou a fazer funcionar de maneira inovadora, revestidas também de uma vaga, ainda que densa, aparência de superioridade moral. E nesse sentido, desde a consciência de habitar numa continuidade histórica com esses discursos, no seio de uma história literária, recorre-se aos grandes nomes das letras nacionais, na procu-ra de engrenagens, cadeias, mecanismos que possam ser novamente usados. Invocam-se espectros no panteão da literatura na medida em que as suas es-crituras tivessem incorporado alguma possibilidade de esboçar a intuição de um lugar familiar, uma construção a assimilar ao espaço de sentido que a nova linguagem nacional quer propor.

Estes problemas não são exclusivos deste caso. Na realidade são pró-prios de qualquer exercício de revisão histórica e como tal já foram abordados por Agostinho da Silva, na sua talvez maior tarefa de pensamento: o esforço de imaginar no seu presente histórico uma “empresa” colectiva na qual a filosofia e a literatura servissem para um melhoramento humano global, de tipo social, económico e espiritual, e na qual todos os indivíduos na sua condição moral

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de “homens” se pudessem implicar. A utopia humanista do filósofo, da chega-da de um “Tempo da Eternidade” (22) que expulsasse a violência e as formas de opressão e domínio do âmbito social, era escrita como uma “identidade revelada”, um espaço linguístico partilhável no qual os indivíduos podem e devem reconhecer-se e permanecer.

Espaço cujos limites estão a todo o momento submetidos à negociação, à permanente discussão com os léxicos dos outros, mas cuja primeira descri-ção se sente como urgente e necessária. Assim, para Agostinho, o importante consiste em oferecer um primeiro projecto desse lugar, provisório e atraente, capaz de mobilizar indivíduos numa longa marcha. E na altura da fundação simbólica deste Reino utópico, o filósofo volta a vista para os textos do passado e em especial para os dos poetas épicos. Com que Portugal pode contribuir para a utopia? Um conjunto de metáforas parece ser a resposta de Agostinho. A questão pode ser enfocada ao contrário: é possível edificar esse espaço sem os materiais prévios, os elementos dados, sem o peso da tradição e de uma li-teratura, entendida como máxima expressão de uma política, ou de uma certa maneira de entender a política (Eagleton, 2006)? Para Agostinho não, para ele a utopia, entendida num sentido marxista, como ideal permanente não atingível, mas em cuja aspiração se transforma o meio, só pode ser nomeada através do poético: a distância entre o presente real e o futuro utópico só pode ser salva desde o passado literário.

É essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistá-vel o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se afirma triun-fantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo o seu íntimo Império feito de anseios, de lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo ou espaço, o seu Reino de alma humana continuamente sendo e continuamente ansiosa de mais ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma afirmação puramente pessoal e de uma felicidade; o mar bate nas costas do Im-pério, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo de nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então, através de todo o nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Ho-ra; o Encoberto, em milagre supremo, se descobrirá. (1959: 22-3)

Pode ser útil distinguir, pelo menos, três ciclos de produção na trajec-tória investigadora e criativa de Agostinho da Silva, cujos limites e momentos a grandes traços oferecem uma correspondência com as fracturas históricas

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de Portugal no século XX. O primeiro deles, de juventude, seria anterior ao Estado Novo, e nele estão incluídos os seus trabalhos sobre as filosofias antigas e as civilizações clássicas, assim como os seus primeiros escritos de filosofia. O terceiro ciclo é contemporâneo à democracia do 25 de Abril e aí Agostinho, retornado do Brasil, põe o seu pensamento ao serviço da incipiente sociedade e da sua vontade de lhe devolver a confiança. A filosofia literária propõe-se então como consolação pública, como Educação de Portugal (1989), tónico reificante para uma sociedade em transição necessitada, segundo o filósofo, da crença mais do que do conhecimento. E isso tem o seu fundamento numa das convicções críticas mais profundas do filósofo, “a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir a ser é o substrato do que é” (1959: 19), de que o mito poético é, desta forma, uma necessidade antropológica, ainda maior nas fases nas quais as sociedades se redefinem e transformam (18).

O seu segundo ciclo intelectual, produzido em e desde o Brasil, durante o seu exílio, será aquele que contribui com elementos mais interessantes para a nossa problemática, por ser ali onde Agostinho se aplica a questões de her-menêutica do discurso e de teoria poética. O livro central no nosso trabalho, e aquele a que pertence a citação anterior, é a sua obra Um Fernando Pessoa, uma antologia de poemas acompanhada de um ensaio de 90 páginas. Desde o seu mesmo título, desnaturalizando a antologia como representativa ou admi-nistradora do potencial do autor, este texto partilha a dialéctica poesia-filolo-gia que tínhamos indicado, ao apresentá-la como uma, como possível, como viável. Uma “antologia de releitura” (93) é o título no qual agrupa os poemas dos diversos heterónimos. Ler Pessoa através de um acto filológico, um acto de poder como é uma antologia (Serra, 2002), é ler duas vezes, ou, melhor, é ler duplamente. É ler um Pessoa, ou seja, ler outro, que, além disso, o veremos, de repente deixa de ser a multiplicidade dos seus heterónimos para passar a ser só um, formado pela sua heterogeneidade.

Dessa forma, a edição do poeta deixa de ser uma tarefa ecdótica para converter-se numa obra plena, num livro de ensaio, tal e como se reconhece através dessas estratégias textuais. A antologia é acompanhada de um estudo com mais de oitenta páginas, no qual se abre o seu potencial significativo, dando um novo sentido aos textos e fazendo-os dizer coisas novas. O interessante, na nossa perspectiva, é que a operação faz-se a descoberto, ou seja, prescindindo de toda a tentação de internalizar o metadiscurso, advertindo sempre do carácter contingente do projecto em curso. Mas que entranha reler (reescrever) Pessoa na nossa trajectória? Quem ou que é este um, ou quem ou que começa a ser?

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3. Atlas de utopia

Os projectos de escritura da nação no século XIX, no espaço europeu, tendem a articular-se em torno de uma ideia de tipo metafísico e de natu-reza poética. A nação decimonónica descobre-se pela inspiração, assume-se de uma forma intuitiva, revelada, e legitima-se através do léxico do destino (Álvarez Junco, 2001). Uma pátria supra-individual, que se pensa como trans-cendência, que se manifesta mais além do humano, e perante a qual a indivi-dualidade do homem só pode reconhecer a sua inferioridade, só a pode servir. Obrigação, missão, destino são os termos através dos que se nomeia, ou me-lhor, através dos que a nomeiam os seus poetas.

Isto é particularmente certo no contexto da primavera dos povos, na qual os projectos de escritura da nação nutrem-se da fascinação de alguns pro-dutores simbólicos por uma intuição da pátria como entidade deslocada, do-lorosa, que requer um esforço colectivo (um sacrifício) para ser restabelecida, um território pensado como “campo das chagas de Cristo” (SIlvA, 1959:18).

Este é o momento no qual os poetas começam também a gerar auto-representações de tipo mitológico, no nascimento de uma estética prometeica na qual o poeta se apresenta em público como um ser moralmente superior que, no cumprimento de uma missão transcendente que só a ele lhe é enco-mendada, lega, transmite aos seus semelhantes o conhecimento da natureza da pátria e a responsabilidade a ele associada. Os poetas épicos do naciona-lismo moderno deitam o peso da Nação sob os ombros, como novos Atlas, e numa posição endurecida transmitem por escrito as dores que o peso, que o destino de semelhante abóbada lhes causa.

A função pública do poeta épico das sociedades do renascimento está encaminhada para uma legitimação simbólica de uma violência fundacio-nal, um projecto de conquista e expansão territorial através do qual a nação (império) funda-se justamente (28). Trata-se da implementação poética de uns desenvolvimentos já acontecidos e da sua articulação política, metafísica, como simples prolongamento de um desenho transcendente. O poeta épico moderno apresenta uma dinâmica de outra índole, que entranha uma pro-jecção em direcção ao futuro, numa lógica de destino futuro revelado. Isto se fundamenta na crença de conseguir uma ligação directa com uma “alma” nacional que, através da estética, pode traduzir a sua linguagem espiritual em símbolos de potencialidade política, tal em Madame de Stäel, Schiller, Fernan-do Pessoa ou Rubén Darío, em formas, evidentemente, muito diferentes em cada um dos casos.

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No espaço português esta escritura apresenta-se através de uma ma-triz de linguagem muito instalada na tradição portuguesa: o mito sebastianis-ta. Ou seja, o discurso segundo o qual se espera a chegada de um rei oculto, o Encoberto, cujo reinado será simultaneamente uma época de paz e justiça entre os homens e de realização de um esplendor nacional, tal e como tinha prognosticado o sapateiro Bandarra. Este mito de longo percurso, pertencente a um fundo antropológico tradicional de carácter pan-europeu, foi subme-tido a um estudo sociológico profundo. António Quadros (1982), num livro dedicado com razão a Agostinho da Silva, demonstra como existe uma pre-cisa sociologia que determina os momentos de emergência deste discurso e as coordenadas concretas nas quais vai tomar a sua nova forma. Da mesma maneira, prova como essa mesma estrutura de imagens pode pelo seu carác-ter ambivalente suportar desenhos de diferentes tipos, como de repente pode servir à articulação de um processo de unidade nacional como estar ao serviço de tramas sucessórias de diferentes tipos, como pode sustentar um projecto de expansão colonial ou como serve de amálgama identitária num contexto de emancipação indígena.

Aquilo que Quadros também prova é a capacidade mobilizadora que tem esse mito, como a sua cuidadosa gestão do futuro e as suas consequên-cias imediatas sobre a realidade possuem implicações de tipo pragmático. Ou seja, reconhece ao discurso sebastianista, na sua própria forma, um poten-cial performativo específico que o faz especialmente útil e dúctil na altura de apresentar projectos identitários de tipo colectivo. E nisso tem muito a ver a sua natureza hermética, que permite uma especial variabilidade semântica sem ter que forçar demasiado a própria literalidade dos seus textos, abrindo significativamente o seu espaço interpretativo, como também tem a ver a sua fidelidade a uma tradição discursiva que, por ter tido uma certa continuação histórica, aparece como constitutiva de um nacional não alterado. Assim, o se-bastianismo teria acompanhado a constituição política e social do Portugal da modernidade, tingindo os seus discursos desde o princípio da decadência do Antigo Regime até o surgimento dos movimentos socialistas (Serrão, 1983), configurando redes de palavras que pretendem todas elas definir de uma ma-neira verdadeira e plena conceitos do nacional que se excluem mutuamente.

Mas é claro, existe uma série de mediações necessárias entre a acti-vidade criadora do poeta e a sua implicação na aparição de formas sociais organizadas, existe um trânsito entre os versos de Bandarra nos cárceres da Inquisição e os levantamentos messiânicos posteriores ou entre Pessoa escre-vendo poemas para a arca (Silva, 1959: 91) e qualquer eventual participação

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sua na escritura da nação do Portugal moderno, como a que aqui sugiro. E esse lugar mediador produz-se através de um campo literário (Bourdieu, 1991), uma esfera pública (Habermas, 1991) ou uns aparelhos ideológicos do Estado (Althusser, 1970). Chama a atenção que justamente esse momento no qual Serrão regista a perda de visibilidade dos discursos sebastianistas seja também o dia da ruptura entre os produtores poéticos e o seu público (Litvac, 1990), e o mesmo momento no qual escreve Pessoa. Ou seja, um tempo de desconexão entre a produção poética e a sua verificação pública, de isolamento dos criado-res em relação ao social que, no entanto, deixa em reserva as suas linguagens à espera de uma recepção (e um uso) posteriores.

Talvez desde essas coordenadas de isolamento se possa começar a ler de outra forma o livro Mensagem de Pessoa e a noção do Quinto Império Cul-tural que profetiza nas suas páginas. Tal e como reconstruiu com inteligência García Martín (1998), existe uma interessante relação entre o projecto literá-rio de Pessoa e a sua rentabilidade política, no sentido de uma “língua com-panheira do império”. Nesse sentido, cabe suspeitar que pudessem derivar-se consequências nada ingénuas atrás da ilusão compensatória de um império cultural, regido por poetas, e na elaboração de uma legislação ortográfica que a pudesse acompanhar, ali onde língua e identidade nacional se solapam e on-de a literatura, a gramática e a lei, como as suas formas correctas e prestigiadas, formam também uma unidade de sentido.

Dessa forma, o projecto cultural de Mensagem de Pessoa pôde ser dota-do de uma nova semântica no seio do Estado Novo, onde a política filofascista pôde obter uma perfeita cobertura simbólica na arquitectura poética do texto. Trata-se do momento no qual se produz o encontro entre Atlas e Hércules, no qual a parte militar toma conta do peso da nação recebido das mãos do poeta, com o objectivo de salvá-la. Podemos demarcar uma reescritura, uma apro-priação por parte do salazarismo de certas vertentes pessoanas, que teriam sido muito oportunas, da mesma maneira que se podem aduzir conexões pa-recidas no seio dos usos de um primitivismo africano (Serra, 2006). Estratégia de legitimação por outro lado típica dos regimes totalitários, ao preencher no presente profecias poéticas que ainda não tinham o seu referente estabelecido. A processos de recepção comparáveis foram submetidos Rubén Darío ou Gar-cilaso no contexto espanhol.

No entanto, no nosso argumento de que a potencialidade pública de um texto só se verifica no seio da sua ortografia, tomada no nosso sentido do termo, na ideia da sua adequação a critérios de norma no seio de um espa-ço social de criação de sentidos, numa “comunidade de discurso” (Wuthnow,

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1989), podemos apresentar outras variações do mesmo mito ao serviço de projectos de fundação nacional muito diferentes. Como, por exemplo, no seio da literatura galega do Rexurdimento, num espaço linguístico que fez sempre da hipersimbolização uma efectiva estratégia discursiva. A literatura galaica contemporânea aos processos descritos resulta especialmente atraente na hora de visualizar um espaço de encontro com esse projecto: tal e como pensava Agostinho da Silva seria necessário negociar com ela qualquer possível ideia de uma Ibéria integradora (1959: 29).

Em primeiro lugar, esse mito reescreve-se na obra poética de Pondal, em especial em Queixumes dos pinos (1886), e em “Os Pinos”, esse texto que posteriormente a ortografia nacional elevaria à condição de hino galego, ma-nifesto no qual se prevê o regresso de Breogán, herói mítico que adopta a função simbólica do Encoberto. Escrito no ben acompasado monótono fungar das altas copas, nos sinais que sobre a vegetação provoca o raio transparente do prácido luar, nos desígnios dos benignos astros está uma mensagem de renas-cimento nacional que, através da palavra dos bardos das idades, a comunidade pode reconhecer. O poeta profético pondaliano eleva-se como guia espiritu-al que pretende encaminhar a comunidade para um processo de tomada de consciência, onde o mito de um passado remoto de tipo celta (inspirado em Macpherson) e helénico apresenta-se como ancoragem temporária de uma identidade que se começa a construir através da estética. Uma pátria trans-cendente, imortal, identificada com o território, que existe mais além da per-cepção que dela tenham os seus moradores, propõe-se como bem maior que deve ser adoptado pela comunidade, sob a autoridade do seu bardo, legitimada numa superioridade moral baseada na sua habilidade literária.

Algumas décadas depois, temos outro exemplo, de natureza bem dife-rente. Trata-se do texto de Ramón Cabanillas em Na noite estrelecida (1921), uma fantasia poética na qual a realidade geográfica galega é desmaterializada e interpretada desde o mito de Arturo-Encoberto. Assim, desprovidos da sua referencialidade, as ilhas das rias, os montes de Lugo, ou os campos do interior são interpretados desde o céu do roman da Bretanha como lugares nos quais uma história de tipo literário forma uma alegoria mobilizadora de uma cons-ciência diferente da pátria. Excalibur, o Grial, o barco que trará de regresso o Rei das Idades, são emblemas de uma temporalidade mítica que se propõe como reflexão dialéctica sobre o território nacional, que obtém desse modo uma profundidade e uma poética nova. Por isso, no seio da actividade política de Cabanillas, Na noite estrelecida vai funcionar como uma obra de ficção ao serviço do enriquecimento do capital cultural de um incipiente galeguismo

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republicanista e cidadão que começava a articular-se nesses anos. O desenvol-vimento de recursos proféticos e mitológicos cede ao serviço de um projecto nacional participativo e antiessencialista.

Entre espaços de mitos e de logos, as escrituras e reescrituras poéticas da nação balançam entre ortografias de tipo essencialista, onde a metáfora da pátria na sua última dimensão funciona como algo pelo qual merece a pena morrer, e aquelas outras de tipo historicista, onde a metáfora da nação é algo pelo qual merece a pena viver. A carga hermética, escura da profecia, como foi dito, favorece ainda mais as suas múltiplas acepções, debaixo (ou por cima) das quais é sempre pertinente perguntar-se que tipo de espaço nacional estava em jogo, que é que diz o símbolo ou que é que oculta.

4. A Nação como heterónimo

No fundo, a possibilidade de extrair um sentido público, uma pragmáti-ca do literário a estas poéticas penetra necessariamente no lugar da sua interpre-tação, num processo onde a exegese aferra-se tanto ao texto que acaba por for-mar com ele uma só entidade indissociável. O acto de dar sentido ao texto é na realidade o acto de criar o próprio texto, num processo historicamente dinâmico que produz uma serialidade de interpretações que, na prática, podem apagar ou anular o texto prévio. E isso é exactamente aquilo que propõe Agostinho da Silva em 1959, que a Mensagem de Pessoa não foi entendida, que é necessária a sua “re-leitura”, mas, como já foi indicado, sem arrogar-se o seu controle, a sua utilização, o seu domínio. Trata-se de arrebatar Pessoa de um espaço hermenêutico politi-camente não assumível para instalá-lo noutro, uma disputa pelas fontes textuais do discurso de poder, num processo cuja consequência evidente é o questiona-mento indirecto da noção de nação que se fazia suster no texto original.

Ao construir um outro Pessoa, está-se a escrever uma nação diferente. E Agostinho da Silva é muito consciente disso: assim, começa por estabelecer uma genealogia dos poemários fundacionais, das fontes escritas nas quais se baseia o discurso da nação em Portugal e por extensão nos países lusófonos. Nela, Men-sagem aparece “como de importância superior à dos Lusíadas” (16), afirmação fundamentada na descrição do conceito de história de Pessoa em diálogo com Camões, João de Castro e António Lopes Vieira. Este, como já foi dito, é de na-tureza poética, construído através de categorias como “sonho”, “vontade”, eter-nidade, santidade, “desejo”, “energia” (17-9), e em redor à “imagem dialéctica” (Benjamin, 1973) do Brasão: na enumeração de palácios em ruínas, túmulos e lugares destruídos (Silva, 1959: 17), o poeta obtém e transmite uma visão que

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serve como iluminação do futuro. Da mesma maneira funciona a narrativa fi-lológica de Agostinho da Silva, no seu divagar pelas metáforas antigas.

Podíamos afirmar que a exegese que se realiza ao longo do livro é de ti-po mistagógico. Agostinho da Silva, como estudioso e conhecedor da filologia bíblica (1945), serve-se dos usos narrativos deste método hermenêutico para propor uma interpretação sagrada das obras de Pessoa, onde os símbolos e as metáforas funcionam como índices referenciais de um texto segundo que fala da revelação do Quinto Império, a forma contemporânea com que Agostinho nomeia a nação global, o reinado do “Espírito Santo”, oposto à “Europa carte-siana” e capitalista (1959: 20).

Mas, como já advertimos, a forma do discurso de Agostinho da Silva é construída através de uma linguagem poética. Não opera com categorias conceptuais definidas nem com termos com referente material, ou seja, com uma linguagem de estética cartesiana. A sua escritura é a de um texto aberto, conceptista, que incorpora ritmos, que apela à produção de sentimentos, que não pretende ser rígido nem esgotar todos os seus sentidos. O que é conse-quente com o projecto de comunidade que imagina. A linguagem que utiliza é o reflexo verbal, ou melhor, a manifestação do seu conteúdo, da sua mensa-gem, numa estranha combinação de nominalismo e espiritualismo que define as estratégias discursivas deste filósofo.

Por um lado, existe uma proposta de tipo espiritual e uma confiança de tipo mítico, uma fé. Por outro lado, existe uma consciência de habitar um material linguístico contingente, fortuito, provisório e histórico. Suspeitamos que existe um uso estratégico da linguagem irracionalista, uma aposta de tipo pragmático em nome da sua rentabilidade comunicativa. E isto tem a ver com a leitura de Pessoa como poeta épico, que escreveu a grande epopéia dos hete-rónimos (34-35), da geração de novos indivíduos desde o interior do eu, pro-jecto que leva justamente a conceber a nação como um heterónimo (1986: 9).

Descreverei muito brevemente esse projecto. O que Agostinho da Silva propõe como nação tem que ler-se em termos subjectivos, nação no interior de cada homem, num projecto no qual a soma das representações do eu, exercidas segundo certos parâmetros concretos, produzirá a comunidade. A nação de Um Fernando Pessoa, assim como a que continua em Do Agostinho em torno do Pes-soa (1990), é uma nação que emerge de baixo para cima, não é uma nação que produz indivíduos, mas sim indivíduos produzindo espaços colectivos suscep-tíveis da sua representação (inter)nacional. Portugal é um lugar, um sentimento de ânimo, um espaço moral, um nome com o que representar-se, “um Portugal que se não importará com a definição de regimes políticos, de regimes económi-

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cos ou de instituições religiosas”, “ficando totalmente excluídas aquelas formas institucionais que vão, como o autoritarismo político, o liberalismo económico (...), contra o que há de estrutural no próprio homem”. Uma metáfora despro-vida do seu referente físico e territorial, preparada para conceber comunidades globais, uma vez que “a História passou, se ultrapassou” (1959: 30-1).

O seu conceito dialéctico de revelação joga também nesse mesmo es-quema. A revelação de tipo mental, espiritual, produz-se primeiro no interior do sujeito, através da contemplação dos símbolos que falam dessa mensagem e do seu cifrado correcto (“o mar bate nas costas do Império”, 23), e produz-se como alumbramento, como entendimento de uma série de princípios hori-zontais (igualdade, fraternidade, generosidade, não agressão...). O homem re-nascido através da manifestação no seu interior da poética do Quinto Império, o homem convencido, entusiasmado, que assume representar-se segundo essa linguagem literária, obterá uma nova maneira de relacionar-se com os outros. A política surge justamente nesse ponto intermédio, onde a construção do eu implica os outros, e onde existiria a oportunidade de propor novas formas so-ciais mais justas e harmónicas, integradas por homens guiados por uma ideia simultaneamente individual e colectiva de virtude.

Do que se trataria seria de convencer aos outros de juntar-se a esse pro-jecto comum. Essa possibilidade de entusiasmo, pensa Agostinho, só se pode realizar desde o sentimento de partilhar um mesmo código, uma forma de correcção ortográfica, uma maneira de fascinação colectiva desde a estética. Carol Blum (1989) explora esta dinâmica, provando como em determinados momentos históricos dá-se a possibilidade de que, através da assunção colec-tiva de linguagens literárias, se produzam efectivas transformações políticas e processos de fundação nacional. Na França revolucionária funcionam assim Les Confesions de Rousseau, que vão veicular uma mudança social através da sensibilidade, onde do que se trata não é estabelecer um lugar identitário de tipo territorial, mas sim moral: “uma república da virtude”. E nessa mesma chave devemos ler o projecto comunitário de Agostinho, desde a consciência de que, em determinadas coordenadas históricas, linguagens e projectos desse tipo servem para mobilizar positivamente indivíduos, constroem sujeitos, e noutros, talvez nosso caso, não consigam fazê-lo ou não no mesmo grau.

5. Um Agostinho da Silva

Sobre as razões do rendimento pragmático deste discurso não tenho a intenção de propor nenhuma hipótese, mas seria sim interessante ler a produ-

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ção de Agostinho em sincronia com outros projectos contemporâneos, assim, como mero exemplo, com a obra (e as repercussões) que tinha nesse momen-to Octávio Paz ou com os postulados das revoluções juvenis (Lindín), com-parações que nos serviriam para entender, numa malha de discursos muito diferentes, Agostinho da Silva, malha que implica claramente as filosofias e as revoluções internacionais dos anos de 1960, e que aqui não posso mais que in-sinuar. Isso exige, evidentemente, descentrá-lo, ainda que, nesta altura, preten-der pensar o filósofo português no seio de uma filosofia ibérica ou, ainda pior, nacional, no seu sentido mais limitado, é uma operação um tanto ingénua.

Esta afirmação leva-nos até ao último dos nossos pontos. Em nenhum momento a metáfora de um Quinto Império é adjectivada com um apelido particular, ou seja, não se trata de um Quinto Império Português, nem de um Quinto Império Ibérico. Existem sim abundantes referências ao português, ao ibero-americano, ao galaico, ao espanhol, mas como matrizes de história, como lugares que têm uma tradição de linguagens, de textos, de hábitos, como sítios, justamente, aos quais se recorrer na hora de se dotar de um novo discur-so. No império cultural dos espíritos, o português e o ibérico podem oferecer projectos, espaços de aliança, da mesma forma que o soviético serve para a anulação de fronteiras classistas ou da mesma maneira que da revolução ma-oísta se pretende tomar o sentido da humildade (1959).

A nação, ou, a estas alturas melhor, a comunidade de que Agostinho fa-la é de tipo internacionalista, ou dito por ele através de Pessoa: a de “um nacio-nalista místico, um sebastianista racional” (97). Justamente, através da soma destas revelações individuais aspira-se oferecer um espaço múltiplo, uma uto-pia em terra, liberta das tensões estruturais que caracterizam as nações mo-dernas na sua fase de desenvolvimento último. Noutro texto de hermenêutica poética, não menos interessante, como é o prólogo ao livro Regresso ao Paraí-so, de Teixeira de Pascoaes (1986), o filósofo insiste nessas afirmações, fala da necessidade de superar imperialismos, contradições norte-sul, pensa de uma forma global e reifica o indivíduo como sujeito depositário da política e da nação. Em último caso, nação é indivíduo, e o projecto estabelece claramente que a comunidade profetizada é da espécie, um império de seres humanos onde cada ser humano se considera um imperador de si próprio, libertados colectivamente das servidões materiais através da robótica e da técnica (10).

Com isso, conseguia-se tirar Pessoa de certo espaço de leitura e abri-lo a outras potencialidades, assinalando as aberturas e as fendas, o vazio onde cabem outras interpretações que se impõem não pela sua verdade, fidelidade em relação ao original, mas sim pela sua maior rentabilidade colectiva, por

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serem depositárias de maior possibilidade moral de bem comum. Evidente-mente, insistimos, a expressão de um projecto assim não deve ser lida como uma estratégia ingénua, mas deve sim ser entendida em chave poética: a nação funcionando como metáfora.

Seria possível abrir uma frente de questionamento do discurso agostinia-no no sentido da sua impossibilidade de negociar com causas estruturais, con-dições de possibilidade, perguntas pela organização material, pela maneira por meio da qual esse discurso pode ser veiculado de uma forma concreta, mas nova-mente devemos deslocar esse argumento para as instâncias de mediação (campo, esfera, aparelhos), porque a hermenêutica, como a vimos, é apresentada como acto individual de poética. Nessa linha, deve-se, pode-se ler a actividade humana, intelectual, associativa do filósofo, que tem sido destacada frequentemente como o componente mais interessante da sua personalidade. Dever-se-ia então pensar num estudo do efeito concreto, sobre outros sujeitos, do seu discurso, na trans-missão oral do seu projecto, no seio da sua vida profissional, pública ou, inclusive, privada, mas essa deriva não a vamos produzir nestas páginas.

Uma última questão devolve-nos à interrogação em que se apóia este texto, que não resolveremos, ou de que deixaremos simplesmente delineadas as margens do seu desenvolvimento actual, que é aquela que se fixa na possível ren-tabilidade da sua linguagem poética no seio de uma ideia global de comunidade. Simplesmente, expomos que, nos processos actuais de construção de identida-des colectivas, parece ter decaído o uso do poético, na sensação de que os textos de tipo épico, e as suas interpretações, carecem hodiernamente de vigor, à hora de implicar a cidadania em projectos colectivos de qualquer tipo, ou à hora de ser construída como comunidade. E, nesse sentido, cabe destacar o perigo ou a fragilidade que supõe pensar no filósofo português como um alegre inspirador de uma união cultural ibero-americana ou multinacional, quando os conceitos que usa, como já vimos, deslocam-se para outros lugares de acção e quando o seu próprio conceito de nação é de tipo estratégico, na tentativa de conseguir transformações biopolíticas. Reificar as suas noções identitárias numa perspec-tiva estritamente literária ou desligá-la de uma teoria da política do eu significa, na nossa opinião, subtrair amplitude e alcance ao seu discurso.

Para Margarita Méndez

Trad.: Fatima Bello & José Lino

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Poética da Nação em Agostinho da Silva... Germán Labrador Méndez

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ResumoO presente texto pretende analisar a noção de comunidade que Agostinho da Silva elabora

ao longo da sua obra, a partir da construção de uma “poética nacional”. Perante um pensa-

mento de tipo centrípeto, habitual em determinada crítica do filósofo, que tende a adjudi-

car-lhe um lugar no seio de uma filosofia nacional do Portugal contemporâneo, o que aqui

vamos propor é que o seu conceito de nação não pode ser entendido numa perspectiva

hegeliana, da existência de estados criadores de indivíduos e sustentados por uma história

com maiúsculas (Hegel, 1988: 42-3), da mesma maneira que os seus trabalhos sobre a lite-

ratura ou a cultura portuguesa não se podem ler numa perspectiva que não seja a interna-

cionalista, ou que o seu conceito de uma Ibéria transnacional não funciona num sentido

peninsular. A nossa tese é a de uma progressiva perda de referencialidade geográfica nos

conceitos históricos e identitários na obra de Agostinho em relação à sua tradição textual,

que repercute numa maior abstracção significativa na sua linguagem e uma conseqüente

extensão semântica dos seus termos. Neste processo, o trabalho de exegese e o diálogo

intertextual com outros “poetas da nação” marcarão a deslocação da filosofia agostiniana.

Por último, por trás da ampliação da base semântica da sua noção de identidade colectiva

o que se abre é a possibilidade da sua universalização. Assim, a partir da sua exegese de

Pessoa e de sua tradição interpretativa, Agostinho traça um projecto de imaginação de

uma comunidade cidadã globalizada, multicultural e não eurocêntrica.

Palavras-chave: Identidades Nacionais; Comunidades Discursivas; Ibero-Amé-

rica; Políticas Literárias.

AbstractThis text aims to analyze the notion of community that Agostinho da Silva develops in his

body of work, regarding the construction of a “national poetics”. Unlike a centripetal type

of thought, customary in a certain criticism that tends to place him in the nucleus of con-

temporary Portuguese national philosophy, what is here proposed is that his concept of

nation cannot be understood in a Hegelian perspective, i.e in a perspective of the existence

of states that create individuals and are sustained by a History in capital letters (HEGEL,

1988: 42-3), much in the same way that his works on Portuguese literature or culture can-

not be read in a non-international perspective, or that his idea of a transnational Iberia

does not work in a peninsular sense. Our thesis is about a progressive lost of geographical

reference in Agostinho da Silva’s historical and identitary concepts vis-a-vis the textual

tradition, which entails a bigger abstraction of meaning in his language and consequent

semantic extension of his terms. In this process, the work on exegesis and the intertextual

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dialogue with other “poets of the nation” will mark the shift in Augustinian philosophy.

Finally, out of the semantic amplification of his notion of collective identity, what opens

up is the possibility of its universalization. Therefore, from his exegesis of Pessoa and his

interpretative tradition, Agostinho da Silva charts a project of imagining a citizen commu-

nity that is globalized, multicultural and not Eurocentric.

Keywords: National Identities; Speech Communities; Ibero-America; Literary

Politics.

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Agostinho e a Literatura Portuguesa

Helena Maria Briosa e Mota*

A partir dos 17 anos, Agostinho da Silva colabora na imprensa com po-esia, contos e ensaios. Durante os tempos de estudante na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde preside a Associação de Estudantes (com 19 anos) e dirige o seu jornal, O Porto Académico (1926), imprime um carácter desassombrado e polemizante nos textos que assina, o que desde cedo consti-tuirá marca de autor em toda a sua produção.

Pensador livre, Agostinho participa na vida cultural da Cidade In-victa, não se inibindo de assumir posições que, na época, foram apenas toleradas por se tratar de irreverência própria de jovem universitário.1

A primeira fase da sua vida, digamos até 1930, fica marcada por claras influências neoclassicistas. Um ano após o terminus da licenciatura2 com 20 valores doutora-se na mesma Faculdade de Letras, com nota igual, defenden-do a tese Sentido Histórico das Civilizações Clássicas,3 onde refuta as opiniões de Oswald Spengler expressas em Der Untergang des Abendlandes – A Decadên-cia do Ocidente.4

Colaborador activo da Seara Nova desde 1932, reúne em Glossas5

a sua participação pautada pela discussão crítica sobre a sociedade, per-meada por reflexões sobre o cristianismo.6 Surge ainda nesse ano Con-versação com Diotima, um diálogo segundo o modelo platónico,7 em que O Estrangeiro (Agostinho) e Diotima conversam sobre a verdade, o bem, a felicidade, o sentido (ético) da vida, deixando perpassar, do discurso, as opini-ões defendidas e as posturas de coerência assumidas pelo autor que, aqui, já se desdobra em mais um heterónimo.8

* Helena Maria Briosa e Mota é professora e mestre em Educação. Dedica-se à investigação da obra pedagógica de Agostinho da Silva, objecto da sua tese de doutoramento, em curso. É responsável pela selecção, anotação e estudos introdutórios dos volumes Textos Pedagógicos I e II e Biografias I, II e III integrados nas Obras de Agostinho da Silva (Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 1999-2003). Colabora no levantamento de espólio de Agostinho da Silva, tendo a seu cargo o processo da PIDE/DGS. Tem estudos publicados em jornais e revistas. É co-autora de Uma introdução ao estudo do pensamento pedagógico do Professor Agostinho da Silva, Lisboa: Hugin, 1996.

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Por se recusar a assinar um atestado de compromisso ideológico (a «Lei Cabral»,9 na altura de assinatura obrigatória por todos os funcionários públicos) ou, nas palavras do próprio, por se “recusar a abdicar de direitos cívicos ante o governo ditatorial,”10 é demitido do ensino público em 1935.

Depois de ter sido bolseiro do Centro de Estudios Historicos em Madrid, onde desenvolve trabalhos sobre a mística espanhola durante o ano de 1936,11 Agostinho regressa ao país. Irradiado que está da função pública, empreende uma obra de divulgação cultural que se caracteriza pela verdadeira “democra-tização da cultura.”12 A par da docência em estabelecimentos de ensino parti-cular, da direcção do «Núcleo Pedagógico Antero de Quental»,13 da fundação e da coordenação de escolas experimentais, publica até 1944 cerca de 180 Ca-dernos intitulados «de Divulgação Cultural» e Biografias.

1. Os Cadernos e a divulgação cultural

Em Portugal vive-se, nessa época, a fase expansionista do Salazarismo. É a altura em que, após o 28 de maio de 1926, o Estado Novo é imposto, com a crescente restrição de liberdades pessoais e políticas, censura prévia instituída e uma polícia política já actuante.

Desde o advento da 1ª República, e agora com o início da ditadura, verificou-se a tentativa de sufocar muitas das referências doutrinárias ou ide-ários da intelectualidade mais progressista personificada em António Sérgio ou Jaime Cortesão, apenas para mencionar dois dos nomes que Agostinho identificou como tendo exercido influência capital no seu desenvolvimento como pessoa.

A escola como instância difusora do saber é de difícil acesso à maioria das famílias, o que tem claras repercussões nos índices de desenvolvimento do país, que se encerra nas muralhas das suas fronteiras, cego e surdo às influên-cias e ao progresso sóciocultural que se vivia no exterior. De instância liberta-dora que devia ser, a escola reduz-se ao molde, à forma de onde sairão, no fim do ciclo educativo, cidadãos resignados e conformados.

Um «Parecer» da Câmara Corporativa publicado na altura14 aponta claramente a necessidade de se investir na formação dos jovens. Os movimen-tos da Renascença Portuguesa15 e da Seara Nova16 já apostavam nessa área.

Impossibilitado de leccionar na Faculdade de Letras do Porto – onde, naturalmente, ingressaria como professor, não fosse o seu encerramento –, recém-licenciado e doutorado em prazo recorde, Agostinho da Silva ingressa na docência do ensino secundário. Depois de irradiado do ensino público e

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ao ser também proibido de leccionar no ensino privado, mas necessitando de trabalhar para viver e alimentar a família já constituída, recebe apoio do seu condiscípulo Eduardo Salgueiro, que lhe abre as portas da “Editorial Inqué-rito”. A partir daí, escreve febrilmente para jornais e revistas, toma partido, critica, desafia, envolve-se em polémicas na imprensa diária, suscita amores e ódios tanto na Academia,17 como no seio do poder político e até no religioso.

Inflamado pelo projecto de reconstrução nacional proposto pela Se-ara Nova, ao qual aderira, destaca-se no âmbito da divulgação cultural18 que empreende, ao publicar, na forma de edição de autor, uma obra enciclopédica de divulgação cultural destinada ao grande público. Esta obra, que ficou co-nhecida pelo nome de «Cadernos», foi por Agostinho da Silva desenvolvida em quatro “frentes” simultâneas: a edição dos Cadernos para “a mocidade” e “a juventude” intitulados À Volta do Mundo (1938-1943?); os Cadernos de In-formação Cultural Iniciação (entre 1940 e 1947); os Cadernos Antologia, Intro-dução aos Grandes Autores19 (1941-1947) e as Biografias20 (desenvolvidas entre 1938 e 1946).

Toda esta campanha de divulgação cultural foi acompanhada por ci-clos de palestras e conferências proferidas por todo o país desde 1939, ano em que Agostinho funda o Núcleo Pedagógico de Antero de Quental.21 Através dessas conferências e de cursos, e basicamente da edição de bibliografia barata e de fácil acesso, tenta Agostinho da Silva dar resposta às dificuldades de divul-gação e expansão cultural existentes.

1.1. Educação para a Cidadania

Em «Literatura Infantil»,22 texto publicado aos vinte e um anos, Agos-tinho declara, peremptório, que lhe parece fundamental substituir “o maravi-lhoso dos contos infantis” pelos “maravilhosos factos da vida”. Para que possa crescer como pessoa alicerçada em valores, é preciso que a criança aprenda, por si, “«a voar com as próprias asas», a não esperar auxílio de outrem que não de si, a não aguardar que a «sorte», ou o «destino» lhe venham coroar de êxito os seus projectos” (p. 169). Se, nos nossos dias, a teoria do desenvolvimento psicopedagógico da criança, de defesa da autonomia, é da maior actualidade, não o era, seguramente, na primeira metade do século passado.

Mais importante que encher a cabeça das crianças e jovens com prodí-gios realizados por fadas, bruxas ou outros seres sobrenaturais omnipotentes, propõe Agostinho, como educador, que as crianças sejam iniciadas na cultu-ra literária. Será, então, não só fundamental, como adequado, que contactem

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com exemplos de pessoas «boas». Contudo, avisa: não pessoas “passivamente” «boas»: porque, afirma-o, “ para ser útil a si e aos seus” é necessário ser forte, intrépido na luta, cheio da segura confiança em si próprio”; e, para tal, “subs-tituamos este maravilhoso [o do sobrenatural, das bruxas, fadas e papões] pelo das paisagens de terras distantes, dos animais estranhos que mais tarde há-de estudar nos seus compêndios de zoologia, das plantas de formas excêntricas. Através das leituras poderão os jovens descer ao fundo dos mares”, fazer “a escalada das montanhas”.

Tudo isto porque crê Agostinho num precoce projecto educativo que sirva de fundamento para a formação de “gente com vontade, com energia, com decisão, que não esteja sempre à espera que um Messias (transformação adulta da fada) lhe venha trazer já estabelecido, proclamado e suficientemente garantido o regime político por que anseia. E das crianças temos que fazê-la”(idem). Temos de criar essa «gente» para o Terceiro Milénio.

Este projecto é coerente com o que continuará a defender aquando da edição dos Cadernos intitulados «À Volta do Mundo»,23 dezassete anos depois do artigo mencionado.

Todos os cadernos que Agostinho escreve para os jovens têm como constante a presença do autor/narrador que, de forma sistemática, os vai in-terpelando e chamando a atenção para detalhes, que pedagógica e encadea-damente repete. Além do estilo coloquial, o vocabulário é simples e acessível, adequado à faixa etária a que se destina. A simpatia pelo ser humano é uma constante e, precocemente para a época, revela ser Agostinho da Silva um ecologista, que conduz, paulatinamente, os leitores na defesa das espécies, do meio ambiente, cultivando neles respeito pelo seu semelhante e por todo o ecossistema que rodeia o planeta.

De forma revolucionária e precursora, lançou Agostinho da Silva uma educação para a cidadania, tal como é hoje entendida em Portugal24 e por esse mundo afora.

“Para que haja, para os menos cultos, possibilidade de iniciação, có-moda e barata, num certo número de assuntos científicos, históricos, literá-rios, filosóficos etc.”, inicia Agostinho da Silva a publicação da colecção “Ca-dernos” Iniciação – Cadernos de Informação Cultural (1940-1947).25

No texto em que apresenta o projecto, torna Agostinho claro que, à publicação não preside “nenhuma espécie de interesse comercial”26 e que, “pagas as despesas, [se pretende] recolher receita suficiente para que se pos-sa realizar uma obra de educação nacional que todos desejaríamos o mais ampla possível”.27

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Pensados e escritos para um público cujo nível cultural fosse o de curso secundário, reconhece anos mais tarde, “segundo parece..., para outros ser-viram também e talvez tenham estado na origem remota do muito que no género se faz, e bem melhor, tanto no Brasil como em Portugal…”.28 Tendo como objectivo tratar “de tudo o que a vida possa conter de mais interessante em gente, planta, bicho ou coisa…”, almejava o autor, através da sua difusão, permitir uma sólida base cultural a qualquer pessoa. E os Cadernos foram, inegavelmente, responsáveis pela formação de muitos dos seus leitores.

1. 2. As Antologias

Considerando a dificuldade de acesso ao livro, por parte de grande maioria da população, Agostinho da Silva vai traduzindo29 e paulatinamente editando obras de autores que, segundo o seu critério, poderão contribuir para a elevação cultural dos leitores. Fá-lo na forma de edição de autor; sempre a preço acessível,30 passível de ser adquirido por qualquer bolsa. Igualmente, es-tando o esperanto em grande expansão na época, vê Agostinho em tradução um considerável número dos seus cadernos e biografias (33 volumes, no total).

O princípio subjacente à escolha dos textos seleccionados nos Cader-nos Antologia, Introdução aos grandes autores,31 refere Agostinho na contraca-pa, é o de apresentar a obra sem qualquer “exclusivismo literário, político ou religioso”. Igualmente, “não houve a preocupação de escolher os textos por um critério de beleza puramente literário ou de apresentar aqueles em que o autor foi mais brilhante”. O intuito do organizador foi o de se fixar, por um lado, nos que “melhor podem dar a ideia do espírito do escritor e das circuns-tâncias da sua época” e, por outro, “nos que poderão exercer maior acção de esclarecimento”.

Todas são precedidas, sem excepção, de um estudo introdutório onde, em regra, é apresentada a caracterização do autor, sua época e obra desenvol-vida. Os registos opinativos tornam-se prática usual. A linguagem, como nos outros cadernos de divulgação cultural é objectiva, simples, clara. Aos breves estudos introdutórios acrescenta sempre referências bibliográficas, visando à pesquisa autónoma do leitor.

2. O Caderno sobre Literatura Portuguesa

No produtivo ano de 1944 dá Agostinho da Silva à estampa a Parábola da Mulher de Loth, Pólicles e Apólogo de Pródico de Céos que abordam, tal como

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em Diário de Alcestes e em Sete Cartas a um Jovem Filósofo,32 as temáticas que lhe merecem lugar de eleição: a liberdade, o amor, a exigência ética de cada um para com cada qual.

É igualmente em 1944 que, no âmbito da sua acção de divulgação cul-tural, depois de ter escrito sobre a Literatura Russa e de projectar fazê-lo (sem êxito, devido à partida para a América Latina) sobre a Literatura Espanhola e a Literatura Grega, Agostinho da Silva publica o caderno Literatura Portuguesa.33 Como o título da colecção o indica – Iniciação –, este caderno não pretende ser mais do que uma introdução ao conhecimento da matéria proposta.

Mas já Agostinho anda com o pensamento noutros vôos. As publica-ções não granjeavam as repercussões e vendas sonhadas, os académicos man-têm-se impantes nas suas cátedras, atafulhados em erudição, esquecendo-se do “aspecto moral e cívico dos seus estudos”,34 o ambiente político constrange-o, e ele anda mais que decidido a sair daquele Portugal que o abafa.

O caderno Literatura Portuguesa reflecte bem o seu estado de alma. À excepção de meia dúzia de autores que distingue, arrola muitos outros que, se escrevem bem, não têm ideias e se têm ideias saem sem brilho, ou apenas pecam por incultos, com capacidades intelectuais limitadas, provincianas, fú-teis. Preocupa-o repetidamente a pouca craveira dos escritores e, em 1944, só vê dois que se elevam a “planos verdadeiramente internacionais”: Luís de Camões e talvez Antero. “Talvez”.

Agostinho está de partida. Zangado com ele e com os outros, farto de mediocridade, deixa nesse opúsculo a imagem de uma literatura portuguesa sem arcaboiço, pouca garra e, sobretudo, sem futuro à vista.

Com apregoados intuitos pedagógicos,35 Agostinho, partindo da ma-triz galaico-portuguesa, apresenta a evolução do que se poderá considerar a literatura portuguesa até aos seus dias.

Não se eximindo ao imperativo ético de dizer o que pensa, tece con-siderações por vezes muito críticas quanto ao que entende ter um maior ou menor peso no âmbito da cultura nacional.

Em relação a cada obra analisada coloca sempre a tónica na adequa-ção (ou não) “às necessidades e características da sociedade do tempo” (p. 4) e, das notas mais ou menos positivas que vai redigindo sobre cada autor, podemos precepcionar o quadro geral de valores que lhe é caro. E se existe um reduzido leque de autores positivamente referenciados, enorme é a lista daqueles que são criticados.

Dos autores que aparecem particularmente enaltecidos seleccioná-mos alguns:

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– Fernão Lopes (1380?-1445?), que reconhece como “um dos melhores escritores portugueses e com toda a possibilidade de sustentar com-paração com os grandes cronistas estrangeiros”. Nele sublinha carac-terísticas que, futuramente, veremos serem tónicas às quais confere particular relevo não só na apreciação da obra de outros escritores, mas sobretudo porque as coloca como base fundante da sua própria redacção e análise. Valorizado, o “ardente” patriotismo, que lhe não permite em qualquer caso deturpar a verdade, a simpatia pelo povo, o gosto pelo pitoresco, a capacidade de movimentar grandes massas, a nitidez e a finura dos retratos psicológicos, “a imparcialidade de que só os grandes artistas são capazes...” (p. 5).

– Luís de Camões (1524?-1580). Porque é capaz, pelo seu génio criador, na lírica, de fazer a síntese entre a medieval defesa da Fé, própria dos cavaleiros da cruzada, e a concepção do amor ideal platónico cantado pelos trovadores e poetas do Renascimento italiano. Coloca ao lado das grandes epopeias alguns trechos de Os Lusíadas como a Batalha de Aljubarrota, Os Doze de Inglaterra, parte do Episódio do Adamastor. Contudo, refere, é nos sonetos, nas oitavas, nas canções, na paráfrase do salmo Super Flumina (Sôbolos rios) que se percepciona a grandeza de Camões como pensador e poeta que, por ter vivido o lado trágico da vida, foi capaz de se alcandorar às alturas a que poucos ascendem. Na palavra de Agostinho, Camões é apresentado como expoente de “um dos grandes poetas do mundo e talvez com Antero o único dos escritores da língua portuguesa que se elevou a planos verdadeiramen-te universais” (pp. 10-11).

– Padre António Vieira (1608-1697), de quem enaltece o temperamento e a tendência para a política, em detrimento da teologia. Com ênfase, sublinha a “audácia extraordinária, quer no tratamento dos temas de fé, quer sobretudo nas críticas ao governo do Brasil”, o “interesse humano posto na defesa dos índios”, a “energia na luta” contra os exploradores das riquezas humanas e materiais, “a clareza e a justeza” de “algumas das suas ideias económicas e sociais”. E mostra-se rendido ao que designa de “estilo riquíssimo, vigoroso, exacto, perfeitamente modelado”. Parti-cularmente referenciada surge a capacidade de se manter acima dos de-feitos do seu tempo, a força da sua inteligência, bem como a amplitude no tratamento dos temas que elege como primaciais (p. 13).

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Sobre Vieira não se cansará Agostinho de escrever, enaltecendo a ca-pacidade de realização do homem, a humanidade do sacerdote, a visão diplo-mática do bandeirante. E adopta, reformulando-a à sua medida, a ideia quinto imperial vieirina, que consubstancia em Quinze Princípios Portugueses.36

– Almeida Garrett (1799-1854) é apresentado como “enamorado da variedade da vida, aberto à finura poética” e ao “humorismo”, contudo capaz também, qual Herculano, de “exaltada sensibilidade”. Senhor de um “espírito dúctil”, é “maravilhosamente expressivo, requintado na construção e na escolha dos vocábulos, embora com a aparência de uma perfeita naturalidade” (p. 17).

Seis anos antes prefaciara Agostinho Doutrinas de Estética Literária de Garrett.37 De Garrett aprecia o cidadão envolvido e interessado nos “negócios públicos” (p. 218), que pertence “à raça dos que não desanimam”, dos que en-tram na luta “movidos por um puro idealismo” (p. 221) e reclama “um regime que seja para todos os portugueses, e não só para um grupo, um governo de tolerância, de justiça e de progresso” (p. 222).

Para quem conhece a biografia de Agostinho, torna-se claro neste es-tudo da obra garrettiana quanto o autor se revê no biografado: “Defensor da soberania do povo, adversário de toda a espécie de tiranias, convicto de que a educação para a liberdade se faz pelo uso da liberdade” (p. 221). Porque “acre-ditava que uma nação pode encontrar em si mesma e só em si os elementos de uma ressurreição intelectual”. Não obstante enalteça os intuitos pedagógicos da sua literatura, critica que Garrett não tenha optado por “levantar” cultural-mente o povo, em vez de “baixar” a cultura ao povo (p. 228).

Vê em Viagens na minha terra a obra mais representativa de Garrett, “pela emoção delicada, pela graça ligeira, pela sensibilidade perante a paisa-gem, pelo supremo gosto do artista com que entrelaça a descrição de viagem e o romance, pelos relâmpagos de paixão política, pela naturalidade e polida elegância de estilo” (p. 222).

Pode reconhecer que Garrett é “inimitável no que é delicado, gracioso, feminino” (p. 228), mas Agostinho confessa que ele “não tem a força, a segu-rança, o largo passo dominador”; “as suas doutrinas e grande parte dos seus escritos são medularmente inconsistentes e inferiores como concepção e como realização”. O «neogarretismo» “anémico e pedante da geração de 90”, “despi-do da coragem cívica de Garrett”, é a consequência esperada.

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Na análise cronológica que vai fazendo da obra dos expoentes da lite-ratura no caderno em análise, Agostinho repudia, em concreto,

– a “imitação de modelos” aliada ao “carácter de artificialidade e de escola”;

– o tratamento de “futilidades” pelos poetas da corte a partir do sé-culo XV;

– o peso da erudição que alguns poetas exercem sobre as asas da cria-ção poética;

– a inaptidão para a “discussão de problemas essenciais” (p. 13);– a falta de “paixão”, de “pensamento profundamente sentido”, caracte-

rística, em regra, dos escritores do século XVIII, que se deixaram enredar pelo “classicismo estreito e artificial” (p. 14);

– a falta de “incitamento” “crítico”, “o gosto de análise” social, a “apres-sada cedência ao entusiasmo, ou lírico, ou sarcástico”, a “subordinação a um gosto público inferior” (p. 19), bem como

– a falta de “imaginação intelectual” e de “humildade ante a vida”, ou de “faculdades de análise e de síntese para lhes dar a base ideológica segura” (p. 21);

– a falta de consistente erudição em alguns autores que, se por um lado conseguem “fustigar” no seu estilo vigoroso e “sonoro” a sociedade portuguesa, não a compreendem, contudo, na sua totalidade (p. 22).

À frente de todo este enunciado de faltas, Agostinho dá particular re-levo à obra de Eça.

2.1. De impotente a génio

A Eça de Queiroz (1845-1900), segundo Agostinho escreve no cader-no sobre a Literatura Portuguesa, falta capacidade para destrinçar o essencial do secundário. Igualmente, faltam “inteligência” e uma “forte personalidade artística”. Tendo-se deixado “tentar” pelo romance de costumes (Prosas Bár-baras, parte de A Ilustre Casa de Ramires, O Mandarim, a Cidade e as Serras, Vidas dos Santos), bem como pelo romance de costumes e de crítica social (O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, A Relíquia, Os Maias), Eça é atacado por Agostinho por ter retratado apenas “uma camada muito superficial da so-ciedade portuguesa”. Esqueceu “o essencial”. Se lhe reconhece habilidade para “surpreender o ridículo”, considera-o “impotente” perante “o mais profundo e trágico”. E, não obstante se tenha revelado particularmente “cuidadoso”, “fino” e “delicado” no domínio do estilo, Eça mancha com “falso conceito de elegân-cia” grande parte da sua obra.

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Se neste caderno Agostinho não condescende, chamando a atenção pa-ra falhas que, quanto a si, se apresentam como inaceitáveis – a superficialidade, na categorização da «aparência», em detrimento à tão cara, para Agostinho, «essência» das coisas e da vida –, será sobretudo em Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa38 que, em 1957, Agostinho escalpeliza e fustiga, sem dó, os romances queirozianos.

Embora reconheça que a sua obra ultrapassa a de qualquer autor pe-la “feitiçaria do estilo, pela rapidez da visão caricatural, pela arte de narrar”, Agostinho não perdoa que tenha sido tão inábil para “entender Portugal”. Eça é assim visto como incapaz de perceber quanto Portugal sofria, enquanto nar-rava “os saraus literários, as burguesas preguiçosas, os seus campos de cava-los, os seus médicos desocupados num país de doentes, os seus ministros sem cultura, os seus burocratas... os seus padres que são funcionários públicos, a devoção estreita, hipócrita e incompreensiva de suas beatas”.

Pode aceitar que a literatura de Eça seja “admirável”, mas Agostinho não tolera que ele tenha visto Portugal apenas durante as suas “férias de cônsul”; que lhe tenha sido mais fácil “fazer graça que análise”, que se mostre incapaz de apreen-der a essência do povo, e que tenha sobreposto “a construção do seu estilo” à defesa dos princípios nacionais. Igualmente, para Agostinho, Eça “não entendeu Portu-gal na sua história”: se na Cidade ou na Ilustre Casa se encontram trechos “daquela História de Portugal que pode interessar a literatos”, apenas porque dá quadros ou apresenta relatos pitorescos, tal “não explica coisa alguma”: “Não há uma palavra do povo, não há uma palavra de concelhos, uma palavra de burgueses, não há uma palavra de economia, não há uma palavra de verdadeira política.”

Esta posição de Eça, esta relativização (ou anulação) do que é para Agos-tinho fundamental, parece tanto mais gravosa quanto é certo que se trata de “um homem de educação universitária”, que teve contacto com todas as hierarquias do poder. Competia-lhe ter contribuído para aquilo que é, segundo Agostinho, primacial: a elevação do seu irmão em humanidade. E porque, finalmente, tal como o não entendeu no seu passado ou no seu presente, “Eça não entendeu Portugal no seu futuro”. Por tudo isto, não merece Eça de Queiroz, segundo a óptica agostiniana, constar entre «os melhores» da literatura nacional.

Seis anos depois de tão contundentes afirmações, Agostinho da Silva dava o braço a torcer e a mão à palmatória, ao prefaciar um livro de Alberto Machado da Rosa sobre Eça.39 Justifica-se pela “nova aproximação da obra e da personali-dade de Eça” com o facto de as suas incursões anteriores na literatura terem sido “talvez pedagógicas”, “mais de acção do que de contemplação”, “mais de pregar que de compreender” (pp. 266-267).

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E aceita escrever o prefácio porque, conforme declara, “acha Machado da Rosa que Eça e eu, se nos tivéssemos conhecido, teríamos sido amigos” e o prefácio até seria uma oportunidade “de reparação”. Para “esclarecer e re-parar”, Agostinho, conduzido pela mão de Rosa, vê então no escritor poveiro um “franciscano que tem, por exemplo sobre a questão social, ideias que são verdadeiramente portuguesas e não importadas”. Eça “descobriu”, guiado por Dickens... “e pela poesia inglesa, em génio que nos é fraterno, que deu sonhos de Quinto Império de Vieira a partidários de Cromwell, que talvez um dia, pela charneira de Goa, [se] ligue[m] comunidades actuais ou em perspectiva numa confederação que poderia ser o ponto de arranque de uma autêntica civilização de terceiro mundo” (p. 269).

Mais adiante, confessa ainda Agostinho, “Eça ganhou a esse tempo di-mensão ibérica”, no papel complexo de explorar os “sonhos da cultura penin-sular ou, restringindo, da portuguesa” (p. 271).

Deixando-se de filosofias e passando àqueles “fundamentais pensa-mentos que são apenas sonho”, Agostinho concede que “talvez Eça nos esteja insinuando que o único jeito de nos libertarmos da tragédia em que a Penín-sula vive é o de (...) anularmos a própria vida pela superação de todas as anti-nomias (...) pela concepção de (...) um momento, já não de tempo, em que se equivalham a história do passado e a História do futuro” (p. 272).

Agostinho redimido, finalmente. E Eça pode prosseguir na vanguarda inquestionável dos escritores portugueses mais internacionais, porque cada vez mais o seu estilo é marca no presente e a sua obra estandarte para o futuro.

2.2. Os mortos esquecidos

Voltemos ao caderninho sobre Literatura Portuguesa. A partir da ge-ração de 1890, perfila Agostinho os nomes dos que considera expoentes, na literatura, de reacção às tendências internacionalistas e críticas da geração de Antero, fazendo sobressair a obra de Raul Brandão (1876-1930) e Teixeira Go-mes (1862-1942).

A terminar, Agostinho apenas refere que “modernamente” a literatura “não parece com tendência a fixar-se em correntes nítidas”. Cada artista pro-cura “acima de tudo exprimir-se”.

Da análise deste estudo conclui-se que o critério utilizado não abran-gia escritores ainda vivos na altura. Contudo, estranha-se que Agostinho te-nha evitado ilustres mortos da primeira metade do século como Sá-Carneiro (1890-1916), Eugénio de Castro (1864-1944), Florbela Espanca (1894-1930),

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Venceslau de Morais (1854-1925), Camilo Pessanha (1867-1926), António Pa-trício (1878-1930) e até o polemista Raul Proença (1884-1941) da «Seara No-va», autor do Guia de Portugal, com quem Agostinho até colaborou.

Ao encerrar o opúsculo dizendo que “a tendência é para a não-fixação de correntes nítidas”, Agostinho passa por cima do «modernismo», iniciado no pós-guerra 14/18 por jovens que carretaram experiências do estrangeiro: Fernando Pessoa, da África do Sul, Sá-Carneiro, Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor, de Paris.

Ao esquecer sobretudo Fernando Pessoa (1888-1935), que já tinha sido meio premiado pela Mensagem (1934) e já tinha o seu velho companheiro Luís de Montalvor a publicar-lhe as Obras Completas, parece-nos que Agostinho está a cometer um erro crasso. Será por desconhecimento da obra? Por res-sabiamento e para não ceder aos académicos? Pela pressa de fazer as malas e partir no seu auto-exílio? Apenas irá corrigir essa falta no Brasil, quinze anos mais tarde, quando a Biblioteca Luso-Brasileira do Rio e Maria Aliete Galhoz já preparavam a 1ª edição da Obra Poética.40 Mas de Fernando Pessoa falare-mos mais adiante, para não perder agora o fio à meada.

3. As Biografias

As Biografias41 de Agostinho são relatos de vida de modelos éticos, re-tratos de homens iguais a nós (o santo e o herói, o poeta, o escritor ou o artista, o cientista, o educador ou o político), que visam contribuir para a construção pessoal dos leitores e mostram que, através do esforço e dos sacrifícios ine-rentes à auto-superação, é possível triunfar sobre qualquer impedimento ou limitação. Por se tratar de “vidas” de “homens que se elevam acima da huma-nidade”, que “desprezam” tudo o que a gente vulgar tanto aprecia – a riqueza, o conforto, o poder, a vida –, ao surpreendermos facetas autobiográficas do autor, reparamos como, a final, ao optar-se pela contenda em nível espiritual, social ou moral, é possível ultrapassar todas as limitações.

Sendo a base pedagógica nítida, o intuito axiológico42 é explíci-to: através das histórias de vida dos retratados, Agostinho, ao promo-ver a cultura, divulga e induz experiências assentes em valores. Igual-mente, o intuito político aparece de forma clara: ele tem como objectivo, repete-o, “ [...] levantar os portugueses ao nível necessário para que a revolu-ção cultural e política se firmasse e pudesse avançar”.

Se através do seu trabalho de divulgação cultural, desenvolvido no âm-bito do Núcleo Pedagógico Antero de Quental, Agostinho da Silva se preo-

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cupou em promover o saber, a reflexão e, fundamentalmente, a cultura, com o projecto das Biografias, verifica-se estar preocupado com o processo de to-mada de consciência e de reflexão sobre os valores. Valores que impregnam a totalidade das suas obras.

3.1. Mundo Novo

Se alguma marca existe na obra literária de Agostinho da Silva, pode, sem dúvida, ser identificada com o desejo da construção de um Mundo Novo. Mundo que resulta do labor do homem novo que já ascendeu ao patamar dos que detêm “vontade que não verga, (...) amor que nada extingue”, que será ca-paz de conduzir qualquer “população miserável e triste a toda a beleza de uma vida verdadeiramente humana”.43

O Mundo Novo baseia-se no progresso económico. É um mundo on-de a doença foi debelada pelo progresso da ciência e “a cooperação garante a assistência”; onde o progresso da cultura reside nas “escolas em que aprender não é uma fonte de terrores”, “os mestres não são carrascos, mas companhei-ros” e as bibliotecas se abrem para que as pessoas a elas acedam, livremente, para “adquirir a instrução que lhes falta”, para lhes “elevar a mentalidade e os fazer sentir plenamente o júbilo da vida renovada”. A solidariedade reina, na-turalmente, entre os habitantes, e “a cooperação leva-os à tolerância e, mais do que à tolerância, ao amor do semelhante, à pronta cedência, às cautelas para que nada possa vir a faltar-lhes”.44

Solidamente fundado em alicerces de tolerância, de cooperação e soli-dariedade, com paredes erguidas sobre “o apagamento das humilhações e da miséria”, em que o amálgama utilizado na sua construção é o do Amor por cada um e pelo Outro, cada país assim fundado é retratado pela pena de Agos-tinho como o “país messiânico”. E podemos acreditar que, finalmente, desta forma, “... para sempre a paz estará assegurada sobre a Terra.”45

Eis descritas as bases daquele que, anos mais tarde, pessoanamente, Agos-tinho virá a denominar de Quinto Império. Afinal, a “utopia” ou “quimera utópi-ca” agostiniana não é mais do que um sonho imaginado e com paixão alimentado pelos seus biografados Zola, Pasteur, Lincoln ou Washington; um projecto levado a cabo por Washington, Robert Owen, Franklin, Lamenais ou Leopardi; o sonho desenhado de um mundo melhor magistralmente modelado por Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci e partilhado por Moisés e Francisco de Assis.

Sonho de um mundo melhor que Agostinho da Silva não se cansou de propagandear... se bem que nem sempre tenha sido nem bem ouvido, nem

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bem entendido. Sonho de um mundo em que cada um possa, em liberdade, simplesmente SER.46

4. Centros de cultura e universidades

Com as dificuldades inerentes a qualquer cidadão que se sentia se-guido e observado pela polícia política, impedido de desenvolver, em liber-dade, as tarefas da docência, Agostinho decide partir, voluntariamente, para a América Latina.

No Brasil, onde aporta em Maio de 1944 – depois de uma breve estada no Uruguai e Argentina –, transcorrerão 25 anos. E aí decorre um outro perí-odo (digamos que o terceiro, e mais produtivo) da sua vida.

Se na fase inicial, em Portugal, ganhou autonomia conceptual – ex-pressa tanto no percurso académico como na já significativa produção literá-ria –, na «era brasileira» a sua história é, segundo palavras de Pinharanda Go-mes,47 a de um «bandeirante» da cultura lusíada. De facto, mais do que fundar (ou ajudar a fundar) Universidades48 e Centros de Estudos e de Investigação,49 integrar comissões50 ou instituir centros de divulgação da língua e da cultura portuguesas,51 Agostinho, diz que se “funda a si próprio”, acreditando que

“... só há uma missão e um destino para Portugal: o de fazer da varie-dade de culturas que hoje existem, e sem a eliminar, uma universal cultura humana”.52

Acreditou e contagiou tantos com tal sonho que são cada vez mais os que estão certos de que o “Quinto Império está em embrião nos meninos de todo o mundo”. E que, “como base, [são necessários], sustento e liberdade”; “como meio, o mundo”; “como fim, um sonho que se torne real; se aqui não der certo, a outro ponto irei onde se fale português...”.53

5. Reforma nacional

Em Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa,54 obra apresentada no Brasil pelo próprio, em 1956, e editada no ano seguinte, e partindo da apre-sentação da história da cultura portuguesa (parte integrante da Península Ibé-rica), Agostinho da Silva redige um tratado de História da Cultura e das Ideias Ibéricas, onde traça as linhas redentoras para o crescente individualismo e materialismo.

Ao caracterizar o povo português como detentor “daquela noção de fraternidade sem a qual o cristianismo é mero vácuo”, retrata Portugal como

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“o missionário da largueza do Reino de Deus”– fundamento provável, por um lado, para o seu anticlericarismo e, por outro, para o seu gosto pela mestiça-gem –, tentando o seu povo, no périplo pelo mundo, “espalhar pelo universo um catolicismo tão católico que até o infiel nele coubesse” (p. 35). Desta forma assume o intuito ecuménico das navegações e da disseminação cultural lusa.

A literatura portuguesa, tal como a vida portuguesa, “abrem-se”, neste en-quadramento, “sob o signo do dever da acção e sob o signo da saudade” (p. 36). O «dever da acção» aparece subordinado ao «signo da saudade». Já todos sabemos que a História roda sobre si e que os ciclos se repetem. E se «acção», ao lado da «saudade», são apontadas como os motes orientadores vividos pelos portugueses, que outro remédio não tiveram senão o de “embarcar nas barcas que mandou lavrar el-rei” (p. 33), veremos como tornam a ser, séculos mais tarde, de novo, os mesmos dois pressupostos a presidir os dois movimentos culturais de reestruturação nacional que emergem no início do século XX, logo após a instauração da República. Tanto a Renascença Portuguesa como a Seara Nova – de que Agostinho fez parte e com os quais colabora – congregavam membros que “deram apoio de estrutura aos que verdadeiramente se interessavam, num esforço colectivo, pela resolução do caso português” (p. 78).

Com o impulso da Renascença, fundada e desenvolvida sob o signo da Saudade, aliada à força da Seara que tomou como mote e bandeira o desígnio da Acção, viu Portugal, ombro a ombro, trabalhar e batalhar a “melhor gente”, gente “com capacidade literária”, que se não eximiu à pesquisa das necessida-des do país, por forma a para ele traçarem um plano articulado de reforma.

Se a Renascença se debruçou sobre os aspectos poéticos, literários, his-tórico-intuitivos da Nação, vem a Seara a propor e desenvolver o necessário plano de reforma nacional, que Agostinho decide empreender por sua conta e risco, e não abandona, mesmo quando entra em ruptura e se distancia do movimento e a situação sociopolítica se lhe revela particularmente adversa.

Para a Seara, havia que fazer, de imediato, uma reforma de Portugal, reforma que se via assente em dois pilares: o da economia e o da educação. Se quanto ao primeiro existiam poucas dúvidas de que o país seria capaz de renascer,55 quanto ao segundo, o da educação, via-se como fundamental a preparação de novas gerações de portugueses para o entendimento científico, humano e filosófico dos problemas práticos, políticos e espirituais.56 Era, por conseguinte, imperioso proceder à “reeducação” do povo português.

Neste plano alargado de regeneração e investimento no futuro, cabia o envio de jovens universitários para o estrangeiro, por forma a que entrassem em contacto com “os grandes centros culturais” e, no regresso, desmultiplicas-

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sem o apre(e)ndido em nível dos ensinos primário e secundário, pudessem investir em escolas de “continuação” e contribuíssem para a disseminação da educação, com missões pedagógicas, universidades populares e publicações. E contribuiriam, desta forma, para “restituir ao país a mentalidade que há tanto tempo se conservava desprezada”.57

Todas as vias apontadas pelo movimento, sem excepção, foram por Agostinho percorridas. Faltaram, contudo, condições para que se consumas-sem os desígnios traçados, de instaurar, na terra (em Portugal e no mundo lusófono), os princípios medievais da católica e universal fraternidade (p. 58) em nível da ciência, da economia e da religião, através do comunitarismo agrário e da descentralização da autoridade.

No que parece estar na sequência das Glossas,58 inicialmente publicadas na Seara Nova, disserta Agostinho, em Considerações,59 basicamente sobre ques-tões éticas. Mais do que dialogar com o leitor, de novo se assume Agostinho como o mestre socrático que tenta levar o leitor /interlocutor à descoberta das questões candentes que o preocupam e nos preocupam, e poderão ser vistas como os pres-supostos agostinianos para uma sociedade assente em princípios e valores.

Com qualidade literária que se equipara à riqueza do seu pensamento, Agostinho da Silva reflecte, nas obras que redige, sobre as ligações entre as cul-turas portuguesa e brasileira. As temáticas abordadas são no âmbito da ética, da educação e sobretudo sobre o sentido da história.

6. Ser criança no Quinto Império

“Sobre Fernando Pessoadirei a coisa correctaquem é mesmo criadorcria poema e poeta.”60

É só em 1959, em plena maturidade e já no Brasil, que Agostinho es-creve Um Fernando Pessoa.61

De Fernando Pessoa (1888-1935), atrai-o a personalidade, o não ter renunciado a ser os vários que era, sujeitando-se a uma vida de sacrifícios para o provar. Fascina-o a coragem de gozar a liberdade de ser «outro» e de revelar a dimensão do Quinto Império. Ao usar os diferentes heterónimos atingiu a pluralidade, permanecendo ele próprio, Fernando Pessoa, imperscrutável.62

No retrato que traça de Pessoa63 sobressai alguém que, por ser “amado dos deuses”, em vez de ter a missão aplainada, enfrenta escolhos. Porque os

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deuses entendem que quem tem uma carreira “essencial aos destinos do mun-do” não pode ter caminhos fáceis. Embora em plena liberdade os percorram.

Porque a liberdade é (tão) essencial para Pessoa (como para Agostinho), escolhe (um e outro) nascer em Portugal, “porque tem a convicção de que Deus não poderá abandonar o seu outro povo eleito” e de que o dia, «a Hora», há-de surgir em que “Portugal virá, de novo, a construir o seu mundo de paz”. “(...) Paz que se realiza antes de tudo nas almas”, por forma a que o “Reino de Deus surja pela transformação interior do homem”(p. 91). O que mais fascina Agos-tinho, depois de se ter distanciado da escrita de Um Fernando Pessoa, é a cons-ciência de que, afinal, há ainda tudo para descobrir acerca daquela dimensão sobre a qual nada pode dizer:64 a dimensão de Pessoa, ele próprio.

Ao longo de cerca de duas dezenas de anos vai Pessoa escrevendo Men-sagem, que Agostinho coloca a par de grandeza com as crónicas de Fernão Lopes ou de D. João de Castro, com Os Lusíadas ou a História do Futuro.65 Se “a espantosa e eloquente vitalidade” de Camões é inultrapassável, conseguiu contudo, assim o defende Agostinho, pôr Pessoa mais claro do que Camões no episódio da Ilha dos Amores “a concepção de um verdadeiro Império Portu-guês ou Quinto Império”, na sua “previsão do Futuro”.66

Em «Mensagem Um» Agostinho introduz Pessoa no quadro sociopo-lítico literário português. Em «Mensagem Dois», quando interpreta a Mensa-gem – e depois de ter reflectido e analisado o carácter, a obra e os sonhos ex-pressos em vida por Pessoa e seus três heterónimos –, Agostinho apresenta, em súmula, e “por amor do Futuro”,67 os elementos constituintes do seu idealiza-do “Portugal-Ideia”.68 Surge claramente o seu Quinto Império pessoanamente inspirado, assente na crença de que a Humanidade se poderá regenerar, um dia, quando for possível deixar Ser a criança que existe em cada um de nós.

Agostinho acredita que a Mensagem pessoana não está apenas designa-da para Portugal e para os portugueses: é, mais que isso, uma mensagem para o mundo. Portugal, pela sua acção, nos bons e menos bons exemplos, poderá ser o modelo, para os outros, daquilo que ele próprio não conseguiu:

•Povo de força criativa que, no acto puro de criar, ganha consciência de que é possível ultrapassar as adversidades através da força da sua vontade de se cumprir, quaisquer que sejam as condições e os impe-dimentos ao cumprimento de um projecto (do seu projecto).

•Povo sempre disponível, caracterizado pelo gosto de agir e que na acção se diverte.

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O nosso mundo, que em agonia se parece arrastar, tem de ser salvo. Pode ainda ser salvo. Depende unicamente de cada um de nós. Através da reflexão e da mudança de mentalidades, será possível, pela acção construtiva, dizer «É a hora!».

“É a hora de se deixarem da tolice dos impérios, que não servem para nada”; “É a hora de estarem disponíveis para o mundo, que precisa de vocês.” De que forma? A solução, aponta-a Agostinho, sistematicamente, indo agora inspi-rar-se na Mensagem de Pessoa, para melhor explicar:69

• «É a hora!» de repensar a educação, transformando filosofias, para-digmas de escolas e mentalidades. Mais do que nunca necessita a Hu-manidade de desenvolver qualidades infantis que conferem caracte-rísticas distintivamente humanas: as escolas e a vida, reestruturadas, desenvolverão “a imaginação em vez do saber”, “o jogo em vez do trabalho”, “a totalidade em vez da separação”. Porque, queiramos ou não, assim nos narram as múltiplas culturas. São estas, precisamen-te, as características dos “grandes criadores de ciência”, dos “grandes artistas”, ou dos “grandes políticos”.70 Se o mundo é imprevisível, a criança terá de ser preparada, através do conhecimento das coisas e do desenvolvimento da sua criatividade e imaginação, para ser capaz de dar resposta aos imprevistos.

• «É a hora» de repensar a economia do mundo em moldes comuni-tários, disciplinando o processo de produção e de distribuição. «É a hora!» de repensar as formas de governo. A Humanidade necessita de governos que sirvam à res publica e não apenas à res propria. As pessoas e colectividades deverão voltar a ser ouvidas, nos seus sonhos e anseios e, quando a sociedade estiver organizada, de novo, segundo os bem-sucedidos preceitos medievais da fraternidade católica (ao nível da ciência, da economia e da religião), do comunitarismo agrá-rio71 e da descentralização de autoridade. A todos deve ser conferido o direito de ser.72 Teremos, então, chegado ao momento em que sere-mos capazes de constituir o desejado desígnio de “ser católico, isto é, fraternal e universal”.73

Ousemos, então, apostar no futuro, e apostar nas crianças. Não as de-formando pela pedagogia, antes as deixando crescer e aprender em função dos seus interesses e vocações. Crescendo num mundo organizado em torno de uma nova consciência, a de que “todo o governo que não for de amar será

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absurdo, toda a economia que não for de colher será absurda, toda a teologia que não for de contemplar será absurda”.74 Dito por outras palavras, cabe-nos a nós – a todos e a cada um – “oferecer ao mundo” um modelo de vida em que se entrelacem, em perfeita harmonia, os fundamentais impulsos da humani-dade: produzir beleza, amar os homens e louvar a Deus, ou seja, os impulsos de “criar, de servir, de rezar”.75

E tendo Portugal lutado pelo seu “direito de ser irmão dos outros po-vos do mundo” que com ele comungam da mesma língua e dos mesmos va-lores, levando às últimas consequências a constituição de uma Comunidade de Nações de Língua Portuguesa (p. 40) – proposta por Agostinho, que com o seu entusiasmo e veemência contagiou pessoas que foram a alavanca da hoje denominada CPLP –, poderemos, então, ter alguma possibilidade de conse-guir, para as nossas sociedades, uma reforma radical. Seremos então capazes de “varrer, de vez, da face do Universo, a miséria material da Humanidade”.76

7. Novelista e poeta “à solta”

Na senda do que defende enquanto ensaísta literário ou novelista, Agostinho persegue, coerentemente, os mesmos princípios nas obras de cariz filosófico, pedagógico ou especulativo. Reforça as mesmas crenças pela pena do narrador, pelas falas das personagens ou pela explanação do pensamento e das crenças de seus múltiplos e assumidos heterónimos.77

Nas novelas Herta, Teresinha e Joan,78 bem como em Macaco Prego,79 nas novelas Dona Rolinha e Ada Carlo,80 onde as marcas autobiográficas são explícitas e em que o autor se desnuda nas suas apetências, gostos, tendências, ideias, pressupostos, sonhos e desilusões, o elemento comum é, para além da narração de histórias de mulheres (de mulheres-tipo ou de tipos de mulheres), o claro intuito de apresentar em Portugal (de onde Mateus-Maria escreve a «Nota Prévia» de apresentação das Novelas) a variante escrita brasileira do por-tuguês aprendido enquanto menino. Tal é patente ao nível lexical e da sintaxe, bem como da estilística, com recurso à rica imagética brasileira, sendo inegável o recurso à coloquialidade onde se descobre, na fala de cada uma das persona-gens, o interlocutor das «Conversas Vadias»81 da televisão. De entre as múltiplas hipóteses de escolha, para citação, selecciono apenas alguns exemplos:

“o que o mundo afinal precisa é de um homem que seja, a um só tempo, a um só impulso e a uma só obra, artista, sábio e santo”;82 “no íntimo dos íntimos considero a Universidade como uma insti-

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tuição inteiramente ultrapassada”;83

“perfeito casamento: envelhecer juntos”.84

Se “Poesia” se define como “arte de compor ou escrever versos” ou “po-der criativo”, é sobretudo, para Agostinho, como aparece definido no Dicioná-rio Hoauiss,85 “o que desperta o sentimento do belo; aquilo que há de elevado ou comovente nas pessoas ou nas coisas”.

Em Quadras Inéditas86 Agostinho da Silva apresenta quadras ao gosto popular,87 de verso espontâneo, mas cheias de erudição e críticas à vida. Já em Uns poemas de Agostinho88 se lê, em síntese, o pensamento de explícito pendor filosófico. Essa obra trata das grandes questões de Deus, do Homem, das obri-gações éticas para com o mundo:

“O mundo é só poemaem que Deus se transformouEle existe e não existeTal a pessoa que sou”(Quadras Inéditas, p.81)ou

“Ser poema não poetaé que vejo como um alvose o não for para que vivomas se for me vivo e salvo”(Uns Poemas..., p. 79)ou ainda,

“Do que é certo desconfiado duvidar te enamoraé tão bom não saber de Deusquem de dentro a Deus adora”(Quadras Inéditas, p. 35)

ou, antes de finalizar, o desafio:

“nem verdade nem mentirauma coisa assim assime se queres saber maisnão mo perguntes a mim�(Uns Poemas..., p. 88)

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Será, contudo, na obra poética ainda inédita,89 que parece residir o seu pensamento mais íntimo. Aí, pode-se entever o Agostinho-homem, apaixo-nado, que reflecte e discute acerca do Amor; descobre-se o poetar repassado de considerações éticas, místicas e metafísicas, de cuidada elaboração, plena de antinomias e exortações, o que lhe confere, nas palavras de Paulo Borges, características de “poesia pensante e mística”.90 Do que pudemos analisar, par-tindo do espólio que recolhemos, fica-nos a certeza de que muito há ainda a explorar em Agostinho-poeta.

Cultivar a deusa da Razão nunca foi muito do gosto de Agostinho, que se assumiu contra o cartesianismo teórico preferindo a vida “à solta”, do quoti-diano, onde as teorias se levam, coerentemente, à prática. Entende que a revo-lução dos seus dias – a revolução de todos os dias – é a de levar a “poesia para todos”.91 Porque se a “poesia da criação” só apareceu no mundo depois daquela época em que o homem primitivo dela não tinha qualquer necessidade, por ser pouco mais que bicho, vivendo apenas para sobreviver, a partir do momento em que inventou a alavanca e a roda, surgiu dentro dele o movimento interno, de instinto, e intuição, mas também de poesia, que lhe conferiu estatuto de criatura, não só “da” criação, mas igualmente “capaz de criação”. Foi então que o Homem ganhou capacidade de ser “poeta à solta”.92

8. O mundo das essências

“Sou muito do comportamento africano, que integra o passado no presente e, porque o mito reina, o alarga a todo o futuro possível. E o facto de pensar africano me torna mais português, pois o ligo igualmente a Platão”.93

Porque continuou sempre a acreditar que seria possível operar uma reforma radical e contribuir para a reunificação dos povos de língua galaico-portuguesa, não desistiu Agostinho da Silva de concitar à sua volta todos os que, como ele, acreditam que ainda é possível “oferecer ao mundo um modelo de vida em que se entrelacem, em perfeita harmonia, os fundamentais impul-sos da humanidade de produzir beleza, de amar os homens e de louvar a Deus: de criar, de servir, de rezar”.94

Por isso nunca deixaria de – malgrado as óbvias oposições que sempre à sua volta foi capaz de congregar – instigar e exortar todas as comunidades, em particular as dos escritores, a quem chamou a atenção para dois factos que se nos apresentam como basilares:

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“A literatura mais representativa do que Portugal foi (...) é a litera-tura dos navegadores, dos pilotos e dos exploradores que marcaram a sua passagem por todos os mares e por todos os continentes do globo e que depois, sem querer saber das normas de retórica euro-peia, vieram trazer [com] a sua narrativa, (...) a sua contribuição para uma ciência que se não constituía sobre o sacrifício dos me-nos cultos, sobre uma segregação dos que mais sabiam, mas, pelo contrário, se fazia tomando por base essencial o grupo que saía à descoberta, sendo afinal o que escrevia como que apenas o relator, o narrador das experiências do grupo. Ciência de irmãos para irmãos, não ciência de senhores para escravos, nem ciência de superiores para inferiores”.95

Sendo o problema português um problema do mundo, os escritores que ainda têm a coragem de se debruçar sobre os problemas do povo, sobre as suas necessidades, aspirações ou fragilidades, sabendo, em consciência, que tal literatura pode correr o risco de vir a ser desvalorizada, “esses escritores”, diz Agostinho,

“esses escritores estão apenas ecoando (...) o grande lamento univer-sal dos pobres que ninguém liberta de sua pobreza, dos camponeses para quem a terra foi madrasta, dos operários que são apenas «mão-de-obra», das crianças que, quando escapam de morrer, vivem pa-ra penar, das mulheres que a prostituição espreita, dos velhos para quem o hospital é o paraíso”.96

E desafia os escritores actuais a quem atribui particulares responsa-bilidades para que, quais Camões, se não eximam a sonhar e a propalar “não o mundo das existências”, “mas o mundo das essências”, um mundo “sempre de futuro e nunca de passado”;97 ou, qual Vieira, sejam capazes de propalar “o Reino da irmandade, da compreensão, da cooperação” que, se estendido ao universo, seria a certeza de que, algum dia, poderíamos aceder “ao Reino de Deus”. Assim sendo, “Portugal estaria em qualquer parte do mundo em que estivesse um português pensando à maneira portuguesa”.98

Lisboa, Novembro de 2006

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Anexo ICadernos de Agostinho da Silva

À Volta do Mundo, Colecção de Textos para a Mocidade, Lisboa, Seara Nova.

– 1938 - A vida dos Esquimaus; Piccard na estratosfera; Os castores; Vida e morte de Sócrates.

– 1939-A última viagem de Scott; As aranhas.

À Volta do Mundo, Textos para a Juventude, Lisboa, s/d.– (1943?) 1ª Série - Vida das enguias; Como se faz um túnel; História dos

comboios; Aventuras com tubarões; O sábio Confúcio; Viagem à Lua.– (1943) 2ª Série - Os primeiros aviões.

Títulos anunciados, mas não publicados: da 2ª Série - Como se faz um jornal; Maravilhas das vespas; Um vôo sobre

o gelo; Os ninhos das aves; A Odisseia. 3ª Série - Os peles-vermelhas; D. Quixote; Como se faz uma ponte; Os

pinguins; Experiências de química; Os faróis. 4ª Série: História dos vapores; Os mamutes gelados; Como se faz uma

estrada; Barracas de campo; Histórias de cães; Hiawatha.

Iniciação, Cadernos de Informação Cultural, Edição do Autor, Lisboa. –1940.1ª Série – A primeira volta ao mundo;99 Breve história do linho;100

Edison;101 A vida e arte de Goya;102 Uma ascensão nos Himalaias;103 O pensamen-to de Epicuro.

2ª Série. O planeta Marte; A vida de Lesseps;104 Por três ovos de pin-guim;105 A arte pré-histórica;106 O budismo;107 História dos Estados Unidos108.

3ª Série. O petróleo;109 A vida e a arte de Van Gogh;110 O Sahará; A vida de Pierre Curie;111 As escolas de Winnetka;112 História da Holanda113. –1941. 4ª Série. A vida e a arte de Ticiano;114 O gás;115 As viagens de Co-lombo;116 O estoicismo;117 Mozart; O mundo dos micróbios.

5ª Série. A vida de Masaryk;118 O ferro; História do Egipto antigo; A es-cultura grega.

–1942. 5ª Série. As viagens de Stanley;119 A Reforma120.6ª Série. O transformismo; A vida de Florence Nightingale;121

O islamismo;122 As abelhas; A vida e a arte de Cellini; Literatura latina.

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7ª Série. A vida de Nansen; O plano Dalton; As cooperativas; O sol; Go-ethe;123 O cristianismo124.

8ª Série. Beethoven; Literatura Russa; Filosofia pré-socrática; Alexandre Herculano;125 A hulha; A vida e a arte de Courbet.

9ª Série. Alimentação humana.–1942. 9ª Série. Sócrates; A vida e a arte de Rembrandt; Apicultura; His-

tória do Japão.–1943. 9ª Série. As viagens de Livingstone126.10ªSérie A vida de Vivekananda; As estrelas; História do veleiro; O siste-

ma nervoso; –1944. 9ª Série. Literatura portuguesa;127 Os motores de explosão.11ªSérie.William Morris.–1946.11ª Série. Platão.–1947.11ª Série. Arte egípcia; Bach.

Antologia, Introdução aos grandes autores. Lisboa, Edição do Autor: Agostinho da Silva. 1941-1947:

– 1941.1ª Série. Voltaire, Diálogos filosóficos; Arriano, Manual de Epic-teto; Tolstoi, A terra de que precisa um homem; Santa Teresa, Fundação de S. José; Damião de Góis, Descobrimentos dos Portugueses; Cervantes, D. Quixote e Sancho.

2ª Série. Ruskin, Vós, os que julgais a terra; Ganivet, A arte espanhola;Tchekov, Um caso médico; Buffon, História natural; Fernão Lopes, A revolução de Lisboa; Dostoievsky, O grande inquisidor.

3ª Série. Erasmo, Colóquios; Lamarck, Filosofia zoológica; Mérimée, Mateo Falcone.

– 1942. Heródoto, Viagem ao Egipto; Flaubert, Cartago; Frei Luís de Sousa, Austeridade do Arcebispo.

4ª Série. Harvey, A circulação do sangue; Lichnowsky, Portugal em 1842; Guizot, A civilização feudal; Diogo do Couto, Negócios da Índia; Maupassant, O adereço Mateo Alemán, O pai de Guzmán.

5ª Série. Condorcet, Progressos do espírito humano; Lermontov, Taman; Marco Aurélio, Pensamentos; Faraday, Experiências de electricidade; Stendhal, Waterloo; Azurara, Empresas do Infante.

6ª Série. Fénelon, Diálogos dos mortos.– 1943. Bacon, Ensaios; Andreiev, Silêncio; Maomet, Suratas de Meca;

Walt Whitman, Fôlhas de erva; Petrónio, Banquete de Trimalcião.– (s/d). 7ª Série. Victor Hugo, Gauvain e Cimourdain ; Edgar Poe, Des-

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cida ao Maelstroem; Montaigne, Do arrependimento; Franklin, Autobiografia; Platão, Teoria do Amor; Dickens, Copperfield na escola.

– (s/d). 8ª Série. Joaquin Costa, Ideário espanhol; Swift, No país dos cavalos; Claude Bernard, Observação e experiência; Larra, Quadros e costumes; More, Utopia; Molière, Tartufo.

– 1946. 9ª Série. Rodó, Juventude.– 1947. Lucrécio, Da natureza; Emerson, Confiança.

Anexo IIBiografias de Agostinho da Silva

In Textos Pedagógicos I. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, selecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lis-boa, Âncora Editora, 2000; Lisboa, Círculo de Leitores, 2002:

– Miguel de Eyquem, Senhor de Montaigne, Coimbra, Imprensa da Uni-versidade, 1933.

– de João Henrique Pestalozzi em: A vida de Pestalozzi. Lisboa, Cader-nos Seara Nova, 1938.

– de Maria Montessori, in O Método Montessori, Lisboa, Inquérito, 1939.

– de Carleton Washburne in As Escolas de Winnetka. « ‘Iniciação’, Ca-dernos de Informação Cultural», Edição do Autor, Lisboa, 3ª Série, 1940.

– de Sanderson em: Sanderson e a escola de Oundle, Lisboa, Inquérito, 1941.

In Textos Pedagógicos II. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Bor-ges, selecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mo-ta, Lisboa, Âncora Editora, 2000; Lisboa, Círculo de Leitores, 2002:

– Baden-Powell, pedagogia e personalidade. «Bandeirantes», revista pa-ra Chefes, 6º número de 1961.

In Biografias I. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, selec-ção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2003:

– A Vida de Francisco de Assis. Lisboa, Seara Nova, 1938.– Vida de Zola. Ed. do Autor, 1942.

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– Vida de Pasteur. Famalicão, ed. do Autor, s/d.– Vida de Lincoln. Lisboa, Seara Nova, 1938.– Vida de Moisés. Lisboa, Seara Nova, 1938.

In Biografias II. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, selec-ção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2003:

– A Vida de Washington. Lisboa, Inquérito, s/d.– Vida de Robert Owen. Edição do Autor, 1941.– Vida de Franklin. Edição do Autor, 1942.– Vida de Miguel Ângelo. Edição do Autor, 1942.

In Biografias III. Coordenação de Paulo Alexandre Esteves Borges, se-lecção, organização e estudo introdutório de Helena Maria Briosa e Mota, Lis-boa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2003:

– Vida de Lamenais. Famalicão, Edição do Autor, 1943.– Vida de Leopardi. Edição do Autor, 1944.– Vida de Leonardo da Vinci. Edição do Autor, s/d.– Vida de William Penn. Edição do Autor, 1946.

In À Volta do Mundo, Colecção de Textos para a Mocidade, Lisboa, Seara Nova, 1938-1939:

– Piccard na estratosfera, 1938. – Vida e morte de Sócrates, 1938. – A última viagem de Scott, 1939.

In À Volta do Mundo, Textos para a Juventude, Edição de Autor, Lisboa, 1943?

– O sábio Confúcio, 1943 (?)

In Iniciação, Cadernos de Informação Cultural, Edição do Autor, Lisboa, 1940-1947

– Biografias de Edison, Goya, Epicuro, Lesseps, Van Gogh, Pierre Curie, Carleton Washburne, Ticiano, Mozart, Masaryk, Stanley, Florence Nightinga-le, Cellini, Nansen, Ellen Parkhurst, Goethe, Beethoven, Alexandre Herculano, Courbet, Sócrates, Rembrandt, Livingstone, Vivekananda, William Morris, Platão e Bach,

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Na imprensa:– Biografia de Miss Helen Parkhurst, in O Diabo, nº 250, 08-07-1939

sob o título “O Plano de Dalton”.

– Biografia de Grundtvig, intitulada “As Altas Escolas Populares da Di-namarca”, in: O Diabo, nº 268, 11-09-1939.

– Biografia de “Demóstenes”, in O Diabo, nº 270, 25-11-1939.– Biografia de Hermann Lietz, intitulada “As Escolas de Lietz”, in O

Diabo, nº 272, 09-12-1939.– Biografia de Ivan Illich, intitulada “Ivan Illich – Os Males” e “Ivan

Illich – Os Remédios”, in Vida Mundial, 19-05-1972 ; idem, 26-05-1972.– Biografia de Michael Duane em “A Escola de Risinghill – 1. Quem

propõe” e “A Escola de Risinghill – 2. Quem Supõe”, idem, ibidem, 07-07-1972 e 14-07-1972.

– Biografia de Comenius, em “Os precursores – Komensky”, idem, 04-08-1972.

– Biografia de Sérgio, em “Educadores portugueses – António Sérgio”, idem, 18-08-1972.

– Apontamento biográfico sobre Casais Monteiro, idem, 22-09-1972.

Notas1 Mencionemos apenas alguns títulos de artigos saídos à estampa na época de estudante da Faculdade de Letras e antes do fim da sua licenciatura, de teor polemizante e provocatório, contudo de irrepreensível qualidade, que chamaram a atenção pública: Acção Académica, 22 de Julho de 1926, p. 3; “A Política do Porto Académico”. Porto Académico, 15 de Março de 1927, pp.1-2; “O Pensamento Académico”. A Voz, 24 de Maio de 1927, p.3; “O Pensa-mento da Nova Geração”. Idéa Nacional, 25 de Maio de 1927. p.1; “Carta aos Velhos Latinistas”. Seara Nova, 18 de Outubro de 1928, pp. 246-247, a par de outros que espantam o mundo académico pela juventude do seu autor: “O Futurismo I - O Mal” e “O Futurismo II - O Remédio”. Acção Académica, nº? (1925/26(?); as famosas “Nota Filológica sobre o verbo “trabalhar” sobre a palavra “doido”, sobre a palavra “nojo”, respectivamente, A Águia, nos 49-54 e 55-57, Porto, 3ª série, 1927; “Satura”, Ibid., nos 60 (Porto, Out-Dez 1927), ou jul-out. para a “Satura II”; “Sobre algumas páginas de Spengler”, Diónysos, nos 1-2, 4ª Série, Porto, 1928.

2 Tese sobre Catulo, que mereceu a nota máxima. Cf. Catulo, Poesias. Texto estabelecido e traduzido por Agos-tinho da Silva. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933. Este trabalho dará origem a acérrima polémica com Alfredo Pimenta. Cf, sobre o assunto, a série de cartas com ele trocadas na Seara Nova, in: «Carta(s) ao Ex.mo Senhor Doutor Alfredo Pimenta», in: AGOSTINHO DA SILVA, Estudos sobre Cultura Clássica, Lisboa, Âncora Editora, e Círculo de Leitores, 2002, pp. 271-294. Critério de edição e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges. Cf., igualmente, a propósito, as suas memórias sobre esta questão em: Vida Conversável, Brasília, Universidade de Brasília, 1994, e Assírio & Alvim, 2ª edição, 1998, pp.22-23.

3 SILVA, Agostinho da, Estudos sobre Cultura Clássica, op. cit. pp. 45-110.

4 Contrapondo as teses de Spengler, que defende a ausência de consciência temporal e histórica nos gregos e romanos, em A Religião Grega (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1930, p. 130), defende Agostinho que “dos

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gregos veio tudo o que hoje faz belo o catolicismo”, deles provindo “a saudade de reencontrar essa Grécia divina onde se adoravam, sobre todos os deuses, a Beleza e a Vida”. Anos mais tarde, já no Brasil – onde traduz, por volta de 1946/47, as peças de Plauto e Terêncio Anfitrião, Os Cativos, Os Adelfos, Aululária, O Gorgulho, O Eunuco. (Clássicos de Ouro, Edições de Ouro, Brasil, s/d.) – demonstra, em «A Comédia Latina» (Estudos sobre Cultura Clássica, op. cit. pp.301-318), prefácio às traduções, que está já consciente dos limites das culturas das civilizações clássicas, interpretando a tradição mítica da Idade do Ouro e transpondo-a, ao longo da vida, para a sua teoria do culto do Espírito Santo.

5 «Glossas I, II e III», Lisboa, Seara Nova, 1934, publicada em edição aumentada em «Glossas», Famalicão, edição do Autor, 1945, constante de AGOSTINHO DA SILVA, Textos e Ensaios Filosóficos I, op. cit.

6 Esta obra terá continuidade em Considerações, datada de 1944, publicada já aquando da sua estada no Brasil.

7 Modelo igualmente seguido por Agostinho tanto nas aulas peripatéticas que deu, nos anos 40, e são relem-bradas por alunos como Mário Soares ou Lagoa Henriques, como nas Palestras Radiofónicas para jovens que profere na Rádio Hertz em 1939, integradas nas actividades do «Núcleo Antero de Quental», ou na Biografia de «Baden Powell, Pedagogia e personalidade» (Textos Pedagógicos II, Lisboa, Âncora Editora e Círculo de Leitores, 2000. Coordenação geral de Paulo Alexandre Esteves Borges. Selecção, estudo introdutório e organização de Helena Maria Briosa e Mota), entre tantos outros exemplos.

8 Quando digo “mais um heterónimo”, refiro-o em consciência, dado ser marcante, desde os seus jovens anos, o pessoano “ser tudo e de todas as maneiras”, assumido em sujeitos vários que, fora de uma única entidade, trans-cendem o sujeito e se manifestam, lúdica e gostosamente, em várias personalidades. E será também desta forma, conscientemente assumida, que Agostinho poderá ser «poeta à solta», nos múltiplos heterónimos que cria.

9 Dec. - Lei nº 1.901 de 1935.

10 Processo PVDE- PIDE/DGS SR 1161, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.

11 Estudos sobre Frei Luís de Leão, São João da Cruz e Santa Teresa. “...mais que todos, Santa Teresa.”. Entrevista do ICALP ao Prof. Agostinho da Silva. In: Dispersos, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. Organiza-ção e introdução de Paulo Alexandre Esteves Borges. 1ª edição, 1988, p. 84.

12 CORTESÃO, Luísa , in: Agostinho da Silva, um pensamento vivo, Documentário de João Rodrigo Mattos em formato DVD, Alfândega Filmes, Porto, 2006 e, no mesmo formato, editado pela RTP, O Público, Alfândega Filmes e Associação Agostinho da Silva. Edição Especial para o Jornal O Público, 2006.

13 Sobre os objectivos e o trabalho desenvolvido por Agostinho da Silva em Portugal, no âmbito da divulgação cultural em geral e do «Núcleo Pedagógico Antero de Quental», em concreto, cf. BRIOSA E MOTA, Helena Ma-ria, «Introdução» a Textos Pedagógicos I, Lisboa, Âncora Editora, 2000, pp. 13-36.

14 O último censo da população portuguesa realizado na década de 30 revela que, no seio dos 6.825.883 habi-tantes, existiam 4.627.988 analfabetos. Sobre esta realidade preocupante pronuncia-se a Câmara Corporativa, declarando que “o problema apresenta-se com carácter de acuidade e exige não apenas a acção urgente dos poderes públicos, mas o interesse de toda a Nação. Encontramo-nos em presença – segundo as estatísticas – de 750.000 crianças em idade escolar, de que só poucas mais de 200.000 sabem ler; de 480.000 crianças em condi-ções de pré-escolaridade, a que não podemos oferecer a necessária assistência educativa e infantil; de considerá-vel percentagem de iletrados adolescentes e adultos, que não só a deficiência da rede escolar, mas determinadas circunstâncias de ordem económica e social – mormente no que respeita às populações rurais – têm excluído dos benefícios da educação, e dos quais cerca de 800.000 ainda estão em idade de aprender”. Cf. «Parecer» da Câmara Corporativa publicado no jornal Sol Nascente, nº 39, 15 de Outubro de 1939, p. 4.

15 Nascido com o propósito de “dar conteúdo renovador e profundo à revolução republicana “ (Jaime Corte-são), a partir das reuniões de 1911 o Movimento da Renascença Portuguesa passa a ter como desígnio “promover a maior cultura do povo português por meio da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da escola, etc.” ou, no sentir de Pascoaes, um dos seus principais mentores, “revelar a alma lusitana, integrá-la nas suas

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qualidades essenciais e originárias” (carta a Unamumo). Tendo como porta-voz as revistas A Águia e Vida Portu-guesa, os seus mais brilhantes colaboradores (Pascoaes, Cortesão, Leonardo Coimbra, Raul Proença, Augusto Ca-simiro, Afonso Duarte, entre muitos) proferem lições na Universidade Popular, dinamizando a ideia de criar, no Porto, a Faculdade de Letras. A partir de 1912 começam as tensões e desacordos internos. Se Pessoa e Sá-Carneiro se afastam, em sinal de desacordo com a linha saudosista, decididos a actualizar a poesia e a colocá-la em conso-nância com o que se fazia além-fronteiras, no plano ideológico o racionalismo considerado “realista” de António Sérgio e Raul Proença entra em choque e conflito com o idealismo poético e tradicionalista de Pascoes. E em Ou-tubro de 1912, no nº 10 de A Águia, a reacção de Pascoaes surge, lamentando que “alguns novos, dotados das mais belas faculdades de inteligência e coração” discordem do Saudosismo, doutrina que, sublinha, “não é inimiga dos progressos realizados lá fora”. Entre 1913 e o ano seguinte, na mesma revista (nos 22-31) a polémica entre Sérgio e Pascoaes atinge o rubro com a defesa, por um (Pascoaes), da mitogenia, da exaltação da alma, da fé messiânica, do neo-romantismo, e por outro (Sérgio), bem mais aguerrido na forma e na argumentação, a defesa e valorização da mente prática, do económico, do progresso técnico, da europeização. A publicação de A Águia estende-se até 1932, sob o pontificado de Pascoaes e Leonardo Coimbra, tendo o ideário da Renascença continuidade na revista Portucale (1928). A partir de 1980 o ideário é retomado com o ressurgimento da «Nova Renascença». Cf. SANTOS, Alfredo Ribeiro, A Renascença Portuguesa. Um movimento cultural portuense. Porto, 1990.

16 A 15 de Outubro de 1921 a revista Seara Nova nasce como “revista de doutrina e crítica” pela mão de um considerável grupo de republicanos inconformados com a instabilidade político-social da I República (Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Câmara Reis, Faria de Vasconcelos, José de Azeredo Perdigão, Raul Brandão e Raul Proença). Democratas e liberais, os fundadores preconizavam o papel das elites no debate de ideias, condenando a falta de cidadania dos intelectuais, cegos aos problemas nacionais. Dissidentes da Renascença e colaboradores da Águia (Augusto Casimiro, Jaime Cortesão) juntam-se ao grupo redactorial, contribuindo para as notáveis páginas de polémica e de pedagogia política. A revista ultrapassa o limite temporal do 25 de Abril de 1974, altura em que é dominada pelo PCP (Partido Comunista Português). Passa depois a publicar irregularmente, até que se extingue. Cf. PIRES, Daniel, Dicionário da Imprensa Periódica Literária do séc. XX (1941-1974), vol. II, 2 t., Lisboa, 2000.

17 Como exemplo desta afirmação podemos citar as polémicas em que se envolveu com o Padre Raul Machado, Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; ou com a Academia, na pessoa de Alfredo Pimenta, ou a que travou acerca do folheto Cristianismo e do caderno «A Doutrina Cristã» (Jornais O Almonda, Sol Nas-cente, Acção), que culmina com um pedido expresso na imprensa, subscrito por alguns articulistas, de excomu-nhão.

18 Sobre o trabalho de divulgação cultural empreendido por Agostinho nesta época, cf. BRIOSA e MOTA, He-lena Maria, “Critério de Organização da Série «Textos Pedagógicos», in: Agostinho da Silva, Textos Pedagógicos I, Lisboa, Âncora Editora, 2000, pp. 7 a 12.

19 Cf. Anexo I.

20 Cf. Anexo II.

21 Sobre a fundação, a acção e os objectivos do Núcleo Pedagógico de Antero de Quental, cf. a “Introdução” a Textos Pedagógicos I, de Agostinho da Silva, Lisboa, Âncora Editora, pp. 13 a 22. Organização de Helena Maria Briosa e Mota.

22 «Literatura Infantil», Ideia nacional, 7 de Junho de 1927, in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura Luso-Brasileira, Lisboa, Âncora Editora, 2000, e Círculo de Leitores, 2002, pp. 167-169. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

23 Cf. Listagem no final do presente trabalho.

24 Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei nº 46/86 de 14 de Outubro, doravante designada de LBSE.

25 Considerando a extensão dos títulos e a tradução de muitos cadernos em esperanto, listá-los-emos no final deste trabalho.

26 Esta foi uma das épocas em que Agostinho da Silva mais precariamente viveu: irradiado da função pública

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e a seguir do ensino particular, vivendo de explicações, poderia ter retirado dessas edições algum fundo de sub-sistência. Analisando, contudo, não apenas a sua correspondência, bem como o processo da PIDE, vemos que grande parte do pouco dinheiro que lhe era pago pela venda dos Cadernos ia, em regra, parar aos bolsos dos agentes que lhe espionavam a correspondência.

27 Cf. texto de apresentação dos Cadernos.

28 Vitória para a Quinta Classe, 1970/71 (?), Dispersos, op. cit., p. 464.

29 Tradutor – mas também, e sobretudo, recriador – da poesia dos clássicos gregos e latinos como Catulo, Pla-tão, Aristófanes, Horácio, Virgílio, Lucrécio, Salústio (Obras Completas, 1974), Sófocles, Tácito (Obras Completas, 1974), ou Voltaire, Montaigne, Bacon, Rilke, Silesius e Cavafis, ou ainda Lao Tsé e Libai, entre tantos, Agostinho dedica-se, igualmente, à crítica literária (Stendhal e Mérimée).

30 1$00 é o preço avulso, 5$50 a série de seis Cadernos, incluindo portes e despesas de cobrança.

31 Considerando a extensão dos títulos e a tradução de muitos Cadernos em esperanto, listá-los-emos no final deste trabalho.

32 Todas estas obras estão compiladas em Textos e Ensaios Filosóficos I.

33 SILVA, Agostinho da, Literatura Portuguesa. «Iniciação, Cadernos de Informação Cultural», 10ª Série, 1944. Lisboa, Edição do Autor.

34 “...antes de tudo se é cidadão e só depois erudito professor” (p.192). “... os intelectuais devem fazer política, mas intelectualmente; eles devem constituir aquela força de crítica vigilante que todos os governos temem... (p.193); Intervir na política é defender a dignidade pessoal no que ela tem de mais sagrado e inatingível...é lavrar o protesto mais caloroso e mais veemente contra certos atropelos de liberdade de expressão, gritar bem alto a vontade de ser homem e não coisa que se maneja segundo o capricho dos que têm força” (p. 195). SILVA, Agostinho da, «Actividade política dos intelectuais portugueses», in Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa. Âncora Editora, 2000, e Círculo de Leitores, 2002, p. 192 Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

35 “A literatura moderna [tem] de esclarecer, de educar, de elevar esse mesmo povo a que [vai] buscar funda-mentos; dev[e] ser, numa palavra, uma literatura pedagógica, sobretudo pelo romance e pelo drama; [...] uma literatura para o povo, uma literatura forte, substancial, tonificante; situações, linguagem, tudo devia ser simples para o povo entender e para que o povo gostasse; por intermédio dele seria possível levantar os portugueses ao nível necessário para que a revolução cultural e política se firmasse e pudesse avançar.” in Prefácio de Agostinho da Silva a GARRETT, Almeida, Doutrinas de Estética Literária, Lisboa, Gráfica Lisbonense, 1938, p. 20.

36 «Quinze Princípios Portugueses» Espiral, nos 8-9, Inverso de 1965, in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cul-tura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa. Âncora Editora, 2000 e Círculo de Leitores, 2002, pp. 217-229. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

37 GARRETT, Almeida, Doutrinas de Estética Literária, Seara Nova, Lisboa, 1938. Prefácio de Agostinho da Silva. in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa. Âncora Editora, 2000, e Círculo de Leitores, 2002, pp. 217-229. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

38 SILVA, Agostinho da, «Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa». Brasil, Ministério da Educação e Cul-tura, 1957. in SILVA, Agostinho da, Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa. Âncora Editora, 2000 e Círculo de Leitores, 2002, pp. 75-77. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

39 SILVA, Agostinho da. Prefácio a «Eça, discípulo de Machado?», de Alberto Machado da Rosa, Brasil, Biblio-teca do Fundo Universal de Cultura, 1963; Lisboa, Editorial Presença, 1964; 1979. in Ensaios sobre Cultura e Literatura Luso-Brasileira, Lisboa, Âncora Editora, 2000 e Círculo de Leitores, 2002, pp. 265-273. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

40 PESSOA, Fernando, Obras Completas, Rio de Janeiro, Abril 1957-1960.

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41 Para além das Biografias publicadas nos Cadernos «Iniciação», cf. SILVA, A., Biografias I, II, III, Lisboa, Ânco-ra Editora e Círculo de Leitores, 2003. Coordenação geral de Paulo Alexandre Esteves Borges. Selecção, estudo introdutório e organização de Helena Maria Briosa e Mota. Haverá, para os interessados no seu estudo, que consultar a listagem no final do presente trabalho.

42 Utilizamos o termo “Axiologia” e seus derivados como sinónimo de “teoria ou filosofia pura do valor e das atitudes e posições valorativas”, assumindo para o efeito a concepção e a teorização de PATRÍCIO, M., expressa em Lições de Axiologia Educacional, Lisboa, Universidade Aberta, 1993, p. 19.

43 Agostinho da Silva, Vida de Zola, Lisboa, Seara Nova, 1939, p.107.

44 idem, p.108.

45 idem, p.112.

46 « O que aconselho à nossa juventude (...) é que queiram ser aquilo que são, sem dizer que coisa é que são e que até se o não souberem, que vão sendo, que vão fazendo (tendo?) as suas experiências, pois estas pelo menos lhes poderão mostrar aquilo que não são. E façam o favor de se não deixar ter pelos outros, e façam o favor de se não ter a si próprios! Três coisas com o verbo ter, que é o nosso grande inimigo!. Agostinho da Silva em entre-vista inédita a Francisco da Palma Dias, realizada na Primavera de 1987. in Agostinho, AAVV. Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes, São Paulo. Coordenação de Rodrigo Leal Rodrigues. Editora Green Forest do Brasil, 2000, p. 166.

47 GOMES, Pinharanda, Nótula referente a SILVA (Agostinho da). in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura.

Edição Século XXI. Editorial Verbo, Lisboa – São Paulo, 1999, pp. 1156-7.

48 Universidade Federal da Paraíba (1951/52); Universidade de Santa Catarina (1955); Universidade de Goiás e Universidade de Brasília (1961); (Silva, 1988, 1.ed. pp. 23-24).

49 Sociedade de Ciências Naturais da Paraíba (1953); Departamento de Pesquisas Históricas do Itamarati (1954); Sociedade de Cultura Francesa, Sociedade de Cultura Alemã, Instituto de Cultura Norte-Americana, Casa de Cul-tura, todos em Santa Catarina (1957); Centro de Pesquisa Oceanográfica de Santa Catarina (1958); Centro de Es-tudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia (1959); Núcleo de Pesquisas «Casa Reitor Edgard Santos» na região do Recôncavo Baiano (1966); Centro Internacional de Estudos Superiores de Rivera e Livramento (1966); Estudos Gerais Livres (1969), com o Professor Manuel Viegas Guerreiro, em Lisboa; Centro de Estudos da América Latina do Instituto de Relações Internacionais da Universidade Técnica de Lisboa; Gabinete de Apoio do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa do Ministério da Educação (1983).

50 Comissão de Estudos Ibéricos (Mato Grosso); Comissão de Estudos Europeus (Paraná); Comissão Nacional de Luta contra o Analfabetismo (Lisboa).

51 Centro de Estudos Filológicos da Universidade de Lisboa (1931), actualmente «Centro de Lingüística» da Universidade Clássica de Lisboa; Centro de Estudos Filológicos (Univ. de Santa Catarina) 1955; Núcleo de Estudos Portugueses (Univ. de Santa Catarina) 1955; Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade da Bahia (1959); Centro de Estudos Brasileiros do Lobito, Angola (1960); Centro de Estudos Brasileiros em Lourenço Marques, Mo-çambique (1960); Centro de Estudos Brasileiros em Tóquio, Japão (1960); Centro de Estudos Brasileiros da Uni-versidade Federal de Goiás (1961); Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade do Rio Grande do Sul (1961); Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília (1962); Comissão de Estudos Ibéricos da Universidade de Mato Grosso; Centro de Estudos Portugueses da Universidade do Paraná; Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Sophia, Tóquio, Japão (1963); Centro de Estudos Brasileiros em Adis-Abeba (1966) entre outras iniciativas (SILVA, Agostinho da, 1988, 1a.ed. pp. 23-24 e pesquisa biográfica empreendida pela autora do presente estudo).

52 SILVA, Agostinho da, “Desconhecidos, quase”. Vida Mundial, 12 de Novembro de 1971, p. 27.

53 SILVA, Agostinho da, “Barca D’Alva, Educação do Quinto Império”, ibidem, p. 484.

54 Op. cit. Cf. Nota 38.

143

55 A terra era produtiva, os caudais de água forneciam irrigação, energia e riqueza, a indústria floresceria desde que a economia o propiciasse e justiça social existisse. Faltava ainda, quanto a Agostinho, que se implementasse uma efectiva reforma agrária “para sanar os dois grandes males, o do minifúndio do Norte e o do latifúndio do Sul.” SILVA, Agostinho da, Reflexão..., p 80.

56 Idem, p. 79.

57 Idem, ibidem, p.80.

58 «Glossas», Famalicão, edição do Autor, 1945 (reedição aumentada de Glossas I, II e III, Lisboa, Seara Nova, 1934), in AGOSTINHO DA SILVA, Textos e Ensaios Filosóficos I, op. cit., pp. 31-66.

59 «Considerações», Famalicão, edição do Autor, 1944 constante de AGOSTINHO DA SILVA, Textos e Ensaios Filosóficos I, op. cit., pp.83-121.

60 SILVA, Agostinho da, Do Agostinho em Torno do Pessoa, 1990, Lisboa, Ulmeiro, p.7.

61 SILVA, Agostinho da, «Um Fernando Pessoa». Porto Alegre, Instituto Estadual do Livro, 1959, in Ensaios sobre Cultura e Literatura Luso-Brasileira, Lisboa, Âncora Editora, 2000, e Círculo de Leitores, 2002, pp. 89-117. Organização e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

62 Entrevista a Lurdes Féria, Diário de Lisboa, 19 de Abril de 1986. in Dispersos, op. cit., p. 113.

63 Este poderia facilmente ser entendido como mais um dos retratos de Agostinho, pela analogia que faz com o exemplo do “amado” que, para se auto-elevar, tem de ultrapassar todas as dificuldades que a vida lhe apresenta.

64 Porque se todos podemos dizer muito de cada um dos seus heterónimos (em concreto, sobre Ricardo Reis, Alberto Caeiro ou Álvaro de Campos, que Agostinho estuda em capítulo próprio), de Pessoa, ele-próprio, “nada posso dizer, nem sequer se se chamou Fernando António Nogueira Pessoa” (Dispersos, op. cit., p. 77). Daí que ache o seu livro incompleto, ao reconhecer que nele faltam, pelo menos, dois capítulos: um, acerca de Pessoa. Que, se o escrevesse, seria composto “só de páginas em branco”. E “outro, sobre o Fernando Pessoa metido num heterónimo de si mesmo” (Dispersos, idem, ibidem). Igualmente, sendo a etimologia de Pessoa o persona latino, que significa máscara, o poeta recebe um sobrenome que significa «máscara». Do que a máscara encerra, nada se sabe. Do seu exterior, sabe-se que este Fernando se chama também António. António, porque nasceu no dia do Santo, e Fernando, talvez porque o Santo, antes de ser Santo, era Fernando. No seu nome, à partida, existe logo uma duplicidade. O verdadeiro será o Fernando? O António? Ou o Pessoa? “Então poderemos dizer que o santo era Fernando na vida civil, a fonte de onde se tiraram as ideias era do Fernando, que podia ter sido arruaceiro em Lisboa e era um heterónimo do santo franciscano. E era o santo Antoninho com quem a pessoa se diverte bailando e contando histórias das moças com as bilhas quebradas...”. SILVA, Agostinho da, Vida Conversável, op. cit., p. 172. Espanta que Agostinho não tenha nesta conversa referenciado o facto de Pessoa ter ficado em 2º lugar no concurso literário “Prémio Antero de Quental - 1934”, colocado a seguir ao franciscano Vasco Reis (assinará mais tarde Reis Ventura), que ganha o galardão com A Romaria, peça teatral em verso, inspirada nas romarias de... Santo António. Cf. REIS, Vasco, A Romaria, Edição das «Missões Franciscanas», Braga, 1936, 2ª edição, com carta-prefácio de Alfredo Pimenta.

65 VIEIRA, Padre António, Livro anteprimeiro da História do Futuro. Edição crítica de José van den Besselaar, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983.

66 SILVA, Agostinho da, «Um Fernando Pessoa». op. cit., p. 91

67 Op. cit., p.117.

68 Idem, ibidem, pp.86-87.

69 SILVA, Agostinho da, Vida Conversável. Organização e prefácio de Henryk Siewierski. Lisboa, Assírio e Alvim, 1998, p. 167 e sgs.

70 SILVA, Agostinho da, Reflexão, p.115.

71 “Comunitarismo agrário que poderia ter sido não só a base real da economia portuguesa, de uma economia

Agostinho e a Literatura Portuguesa Helena Maria Briosa e Mota

144

Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007 ISSN 1414-0381

de exploração da terra em que planejamento e liberdade de pensamento se pudessem harmoniosamente unir.” in Reflexão..., pp. 69-70.

72 Ser o que na realidade cada um é, sem coacções, em liberdade de que o espírito necessita para se realizar – liberdade de cultura, liberdade de pensar e de livremente se expressar, em liberdade económica.

73 SILVA, Agostinho da, Reflexão..., op. cit., p.36.

74 Idem, p.116.

75 SILVA, Agostinho da, Reflexão..., op.cit., p.87,

76 Idem, p. 84

77 Alguns dos heterónimos de Agostinho da Silva: José Kertchy Navarro, o portuense mentor do jovem das Sete Cartas a um jovem Filósofo, que nos encanta pela “energia de imaginação”, pelo “faulhar de imagens” que pareciam inesgotáveis ; o tenente-coronel António Augusto Botelho Mourão, colega de Agostinho no Liceu Rodrigues de Freitas, colocado em Timor, tradutor de O Sonho de Cipião, de Cícero, e acérrimo crítico da obra agostiniana; o aviador inglês George Bryan de Mallard aguardando no Baleal regresso ao Reino Unido de submarino; J.J. Concei-ção da Rocha, estudante em Paris, como Agostinho, brasileiro, latinista de paixão, tradutor de Tácito; Caio Porfírio Martins Rodrigues, ou Caio M.R., nascido em Verdelosa, Bragança, tradutor da Balada de Amor e Morte do Alferes Cristóvão Rilke, a quem Agostinho marca a data de 3 de Abril como de seu nascimento, dia em que, curiosamente, o Mestre partirá físicamente do nosso convívio; Mateus-Maria Guadalupe, o poético tenente-aviador que gostava de insectos, traduzia e pesquisava medicina. Tem três defeitos �graves�: trabalha muito, é demasiado persistente e não admite que a existência possa ter várias metas, ou nenhuma; o Professor Arnold R. Middlebee, oficial austra-liano com raízes nos Açores, ligado à resistência timorense, que dá valor à acção portuguesa no mundo; Gerdes Urutu, o ensimesmado amante de tequilha, brasileiro de Corumbá; Jose Maria Carriedo, professor de espanhol em Kobe, no Japão onde, qual Venceslau de Morais, permanece durante quase toda a vida. Ou Jurandyr de tão curta vida, com quem o jovem Agostinho brincava no Porto, quem sabe o responsável por aquele desejar, um dia, co-nhecer o português de vogais “alongadas” falado no Brasil; João Cascudo de Morais, o filósofo farmacêutico “com os pés no chão” que em Figueira de Castelo Rodrigo, de onde é oriundo, “pensa o quotidiano” e “imagina o real” ao percorrer a estrada para Barca d’Alva, local mítico de eleição para Agostinho. Igualmente, Kurt Mueller, o tradutor do Lísis, de Platão; José Félix Damatta, tradutor de poesia japonesa e mestre na complexa arte dos haikai; Frei G.H., que na Vida Mundial reflecte sobre assuntos africanos e de Goa envia os «Cadernos Teológicos» aos Amigos. Sobre a questão da heteronímia e sobre os pseudónimos assumidos (entre tantos, o jovem poeta e novelista Victor Alberto, (ou GABS, as iniciais do autor) que publica «versos» e sonetos no jornal O Comércio do Porto; Marcus, que publica na Seara; a professora Palmira Santos que faz as recensões de livros na Vida Mundial («Pontes e Fontes para o Futuro», 1969-1970); o engenheiro Paulo Soares que lá escreve, usualmente, os «Apontamentos»; Carlos S. Bicalho (ou Ficalho), grande especialista das matemáticas;), cf. AGOSTINHO DA SILVA, Vida Conversável, op. cit., pp. 21-24; sobre a produção dos citados heterónimos, 77. «Folhas Soltas de São Bento e Outras» in: Textos Vários. Dispersos, Lisboa, 2003, Âncora Editora e Círculo de Leitores. Critério de edição e estudo introdutório de Paulo Alexandre Esteves Borges.

78 SILVA, Agostinho da. «Herta, Teresinha, Joan. Três novelas ou Memórias de Mateus-Maria Gua-dalupe». Lisboa, Portugália Editora, 1953. In Estudos e Obras Literárias. Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 73-153; Círculo de Leitores, 2003.

79 SILVA, Agostinho da. «Macaco-Prego». «Lembrança Sul-Americana de Mateus-Maria Guadalupe». Cadernos Sul, Santa Catarina, Brasil, 1956. In Estudos e Obras Literárias. Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 183-235; Círculo de Leitores, 2003.

80 SILVA, Agostinho. «Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe seguidas de Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias» in Estudos e Obras Literárias. Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 183-235; Círculo de Leitores, 2003.

81 Conversas Vadias. Série de treze entrevistas na RTP1. 1990. Reedição do Jornal O Público, 100 anos. A propósito de Agostinho da Silva. DVD.I a IV. RTP, Público, Alfândega Filmes, Associação Agostinho da Silva, Lisboa, 2006.

145

82 SILVA, Agostinho da. Herta., op.cit., p.88.

83 SILVA, Agostinho da. Dona Rolinha, op. cit., p. 185.

84 Idem, p.193.

85 Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Lisboa, Círculo de Leitores, 2003.

86 SILVA, Agostinho da, Quadras Inéditas. Lisboa, Ulmeiro, 1990.

87 Sobre o valor do saber popular, diz Agostinho, por exemplo: “Se alguém tivesse tido o cuidado de coligir os provérbios [acrescentaríamos, sem nos considerarmos abusivos ao espírito com que a reflexão surge: “e a poesia popular”] em que o povo tinha “jogado” todo o seu pensamento, tal saber teria ido engrossar Sumas ou estrutu-rar Discursos do Método”. Cf. Reflexão, op.cit., p. 54.

88 SILVA, Agostinho da, Uns poemas de Agostinho. Lisboa, Ulmeiro, 1990, 2ª edição.

89 Contam-se por muitas centenas as páginas dactilografas e manuscritas de poesia e recriação poética de Agostinho que se encontram ainda inéditas, em fase de transcrição, organização e estudo. «Projecto de recolha e estudo do espólio de Agostinho da Silva». Centro de Estudos da Associação Agostinho da Silva. Lisboa, com o apoio institucional da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

90 Borges, Paulo AE. «Do ‘Nada que é Tudo’. A poesia pensante e mística de Agostinho da Silva» in AAVV. Agostinho da Silva, um pensamento a descobrir. Torres Vedras, Cooperativa de Comunicação e Cultura, 2004, pp. 121-156.

91 SILVA, Agostinho da, Vida Conversável. Organização e prefácio de Henryk Siewierski. Lisboa, Assírio e Alvim, 1998, p. 181.

92 Idem, p.182.

93 SILVA, Agostinho da, «Pensamento à Solta», Textos e Ensaios Filosóficos II, Lisboa, Âncora Editora, 1999, p.149, e Círculo de Leitores, 2002.

94 SILVA, Agostinho da, Reflexão, op. cit., p.87.

95 Idem, p.60.

96 Idem, ibidem, p.54.

97 Ibidem, p.54.

98 Idem, p.65.

99 Unua vojag^o c^irkau( la mondo. Tradução em esperanto de J. J. Rodrigues. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.

100 Skiza historio pri la lino. Tradução em esperanto de Vergílio Mendes. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

101 Vivo de Edison. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1981.

102 Vivo kaj arto de Goya. Tradução em esperanto de Vergílio Mendes. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.

103 Surgrimpo en Himalajo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

104 Vivo de Lesseps. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

105 Pro tri pingvenqj ovoj. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1948.

106 La prahistoria arto. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.

107 La Budhismo. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.

108 Historio de Usono. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.

Agostinho e a Literatura Portuguesa Helena Maria Briosa e Mota

146

Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007 ISSN 1414-0381

109 La petrolo. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

110 Vivo kaj arto de Van Gogh. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

111 Vivo de Pierre Curie. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

112 La lernejoj de Winnetka. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

113 Historio de Nederlando. Tradução em esperanto de José de Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1948.

114 Vivo kaj arto de Ticiano. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

115 La lumgaso. Tradução em esperanto de José e Freitas Martins. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

116 La vojag^o de Kolumbo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

117 La stoikismo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

118 Masaryk. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1985.

119 La vojag^oj de Stanley. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.

120 La Reformacio. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1947.

121 Florence Nightingale. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1985.

122 La islamismo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1982.

123 Goetho. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1984.

124 La Kristianismo kaj Kristana Doktrino. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Ron-do. Porto: 1982.

125 Vivo de Alexandre Herculano. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Por-to: 1981.

126 La vojag^oj de Livingstone. Tradução em esperanto de Eduardo Padrão. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1983.

127 La Portugala literaturo. Tradução em esperanto de Manuel de Freitas. Portugala Eldona Rondo. Porto: 1948.

ResumoNeste ano de 2006, em que se comemoram cem anos sobre o nascimento de Agostinho da

Silva, propomo-nos reflectir sobre a produção literária do autor que, no século XX, ficou

conhecido em Portugal pela sua obra de democratização da cultura realizada através da

redacção das Biografias e dos Cadernos de divulgação cultural e, no Brasil, pela fundação

de Universidades e Centros de Estudos.

Partindo da análise de algumas obras de Agostinho faremos uma rápida abordagem ao

evoluir da Literatura Portuguesa, dando particular atenção a alguns dos autores por ele

estudados, a saber: Fernão Lopes, Camões, Padre António Vieira, Almeida Garrett e so-

147

bretudo Eça de Queiroz e Fernando Pessoa. Abordaremos ainda alguns dos seus ensaios

literários, textos de ficção e poesia.

Ao analisar o estilo e prosa de Agostinho veremos de que forma as suas propostas se en-

quadram na Literatura Portuguesa do século XX e se apresentam como contributo para a

compreensão do seu ideário.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Portugal; Brasil; Divulgação cultural; Litera-

tura Portuguesa; Eça de Queiroz; Fernando Pessoa; Heterónimos; Mundo Novo; Educação

para a Cidadania; Esperanto.

AbstractIn this year of 2006, when we celebrate a hundred years of Agostinho da Silva’s birth, we

propose a reflection about the literary production of an author who became known in

the twentieth century in Portugal for working towards cultural democratization achieved

through the writing the Biographies and the Booklets of cultural diffusion, and in Brazil

for founding Universities and Study Centers.

From the analysis of some of Agostinho da Silva’s works we will address briefly the

evolution of Portuguese Literature, with special attention to some authors he studied,

namely Fernão Lopes, Camões, Father António Vieira, Almeida Garrett, and mainly Eça

de Queiroz and Fernando Pessoa. We shall also approach some of his literary essays,

fiction texts and poetry.

In the analysis of Agostinho da Silva’s style and prose, we shall see how his proposi-

tions fit twentieth-century Portuguese Literature and contribute to the understanding

of his ideas.

Keywords: Agostinho da Silva; Portugal; Brazil; cultural divulgation; Portuguese

Literature; Eça de Queiroz; Fernando Pessoa; Heteronym; New World; Educational citi-

zenship; Esperanto.

Agostinho e a Literatura Portuguesa Helena Maria Briosa e Mota

148

Brasil, país do futuro: segundo Stefan Zweig e Agostinho da Silva1

Henryk Siewierski*

1.Há muito que o Brasil se encontra na rota dos que saem do Velho Mun-

do em busca do país do futuro. Viagem rumo ao sol nascente rejuvenesce, faz atrasar relógio, às vezes bastante, como foi no caso de Herman von Keyserling, que na América do Sul encontrou “a terra do terceiro dia da Criação”. Procu-rava e encontrava-se não só a terra virgem, mas também a terra em que tudo que é plantado dá, terra que guardava no seu bojo os enclaves afortunados do futuro... do passado: os Eldorados, as Atlântidas, os paraísos reencontrados ou reconquistados.

Não foram poucos os representantes das culturas diferentes, cuja pas-sagem pelo Brasil resultava em experiências que rendiam obras significativas, testemunhos singulares de conhecimento do Outro e de autoconhecimento, questionamentos dos alicerces da própria civilização, projetos para o futuro, utópicos ou não.

Do quadro dos grandes testemunhos dessa passagem pelo Brasil tam-bém fazem parte Stefan Zweig (1881-1942) e Agostinho da Silva (1906-1994), os quais de uma forma singular, cada um a seu modo, testemunhavam o pre-sente e vislumbravam o futuro desse país e nele a esperança de um futuro melhor para o mundo. São testemunhos de pesos diferentes em termos de tempo vivido no Brasil e de lugar que o Brasil ocupa na obra. O tempo de permanência de Stefan Zweig no Brasil não passa de um ano e meio, enquanto Agostinho da Silva vive no Brasil cerca de vinte e três anos. Na obra de Stefan Zweig, o Brasil ocupa um lugar episódico, embora de destaque, como o epi-

* Henryk Siewierski é professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB). Publicou, entre outros, Encontro das nações (Paris, 1984), Como ganhei o Brasil de presente (Cracóvia, 1998), História da literatura polonesa (Brasília, 2000), Um paraíso imperdível. Silva rerum amazônico (Cracóvia, 2006), organizou o livro Vida conversável de Agostinho da Silva (Brasília, Lisboa, 1994), com quem também traduziu Mensagem de Fernando Pessoa para o polonês (Varsóvia, 2006). Traduziu várias obras da literatura polonesa para o português.

149

sódio do final dramático da sua vida. Na obra de Agostinho da Silva, o Brasil é um tema privilegiado, além de ser uma experiência de vida intensamente inserida na história desse país.

2.

Brasil, país do futuro, de Stefan Zweig, publicado em 1941, um best-seller na época, hoje guardado apenas nos arquivos da memória brasileira, principal-mente como um testemunho de uma paixão pelo Brasil de um eminente escri-tor europeu, que, ao fugir da Europa em guerra, no Brasil encontrou a paz. Na Europa, até hoje o livro é vendido como uma obra clássica da literatura euro-péia sobre o Brasil. E no Brasil, o título do livro ainda é lembrado, porém nem sempre com o significado dado pelo autor. A expressão “Brasil, país do futuro” funciona hoje mais como uma expressão irônica, que, no fundo, expressa uma desconfiança quanto ao futuro do país, cujo presente deixa tanto a desejar.

Stefan Zweig veio ao Brasil pela primeira vez em agosto de 1936, para uma estada de dez dias a convite do governo brasileiro, depois que os seus livros foram queimados pelos nazistas em Berlim e ele ter sido obrigado a se mudar para Londres. Assim descreve a sua primeira impressão do país, o amor à primeira vista:

“Deu-se então a minha chegada ao Rio, que me causou uma das mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, comovido, pois me deparou não só uma das mais magníficas paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e mon-tanha, cidade e natureza tropical, mas também uma espécie intei-ramente nova de civilização (...). E com surpreendente velocidade desvaneceu-se a presunção européia que muito superfluamente trouxera como bagagem. Percebi que havia lançado um olhar para o futuro do mundo”.2

Foi apenas uma estada de dez dias a convite do governo brasileiro, no ca-minho a Buenos Aires, para participar do congresso do Pen-Club Internacional. Mas foi o suficiente para despertar o desejo de retorno. Numa carta do Rio a sua esposa Frederike, diz: “O Brasil é incrível, eu poderia chorar como uma criança por ter de ir embora.”3 E na outra: “Uma coisa é certa: esta não é a última vez que estou aqui. Um país ideal para mim.”4

Em janeiro de 1940, Stefan Zweig volta ao Rio com a finalidade de preparar o livro sobre o Brasil. Há quem afirme que, para conseguir o visto

Brasil, país do futuro... Henryk Siewierski

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Revista Convergência Lusíada, 23 – 2007 ISSN 1414-0381

permanente, ele tenha prometido escrever um “livro sobre o Brasil”.5 No final de 1940 viaja com a sua mulher de volta para os Estados Unidos, por conta do governo brasileiro. Este favor provoca desconfiança da parte dos adversários do regime ditatorial e prejudica a recepção do seu livro.

Pela terceira vez Stefan Zweig chega com a sua esposa ao Rio de Janeiro em agosto de 1941. Desta vez a recepção é bastante fria, uma vez que o seu livro não foi bem recebido pela crítica brasileira. No dia 23 de fevereiro do ano seguinte, o casal Zweig é encontrado morto na sua casa em Petrópolis. Na carta de despedida, escrita nas últimas horas da sua vida, Stefan Zweig diz:

“Antes de por livre vontade e em plena consciência despedir-me des-ta vida, sinto-me impelido a cumprir um último dever: o de agra-decer de todo coração a este maravilhoso país, o Brasil, que deu a mim e a meu trabalho tão boa e acolhedora tranqüilidade. A cada dia apreendi a amar mais intensamente este país, e em lugar algum eu teria preferido recomeçar a minha vida desde as bases, depois que o mundo de minha própria língua soçobrou para mim e minha pá-tria espiritual, a Europa, passou a autodestruir-se. O Brasil é incrível – um país para mim.”6

Paradoxalmente, o que poderia ter sido um prólogo de uma nova etapa da vida do escritor tornou-se o seu epílogo.

3.

Stefan Zweig conhece o Brasil depois de viver o trauma da Europa em guerra, depois de ficar abalada a sua fé na Europa unida, pacífica e fraterna, empenhada em progresso social e tecnológico e cultivo dos valores espirituais. Um euro-entusiasta transforma-se num euro-cético e o leitor do Brasil, país do futuro pode ter a impressão de que já não há justos no Velho Continente, todo condenado, em guerra fratricida e suicida “de todos contra todos”.7

O que, segundo Zweig, coloca o Brasil “numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral” é ter resol-vido de uma forma admirável uma questão de maior importância no mundo atual, ou seja, “como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes huma-nos pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas as diferenças de raças, classes, pigmentos, religiões e opiniões?”8 Chama a atenção a ênfase que Zweig dá à miscigenação das raças como a origem de uma nação homo-gênea, como se o apagamento das diferenças fosse a condição de uma convi-vência pacífica.

151

Brasil, país do futuro... Henryk Siewierski

“Ao passo que na Europa agora mais do que nunca domina a qui-mera de quererem criar seres humanos “puros”, quanto à raça, como cavalos de corrida ou cães de exposição, a nação brasileira há sécu-los assenta no princípio da mescla livre e sem estorvo, da completa equiparação de preto, branco, vermelho e amarelo”.9

Stefan Zweig, um europeu desesperado, encontra no Brasil uma alter-nativa para um mundo em processo de autodestruição e constrói a sua visão idealizada e utópica à custa do apagamento de verdades incômodas do seu passado e do seu presente. A idealização dos processos e dos resultados da mis-cigenação brasileira deve ser, em certo grau, o resultado de um trauma vivido na Europa assombrada pelo nazismo, mas também não deixa de resultar de uma autêntica opção pela mescla e homogeneidade.

Se o Brasil para Stefan Zweig é “um dos países mais modelares e, por isso, um dos mais dignos de estima”, é porque a sua classificação privilegia mais o “es-pírito pacífico e humanitário” e a felicidade do que “o valor industrial, financeiro e militar de um povo” ou a “organização” e o “conforto”.10 O que não quer dizer que a organização e disciplina sejam desprezadas por Zweig, que chega a fazer uma grande apologia da obra dos jesuítas no Brasil, justamente por serem “realistas e calculistas exatos e clarividentes”,11 em contraste com o modelo franciscano:

“Não são sonhadores vagos e confusos, e seu mestre Inácio de Loyola não é nenhum Francisco de Assis, que acredita numa suave fraterni-dade entre os homens. São realistas, e, graças a seus exercícios, sabem dia a dia refortalecer a sua energia, a fim de vencerem no mundo a imensa resistência das fraquezas humanas.”12

Ao plano jesuítico, é que o Brasil deve, segundo Zweig, a convivência pacífica de todas as raças ao longo dos séculos, a convivência que produziu um novo tipo de homem. É difícil de não observar que esta convivência pacífica é aqui condicionada pelos processos de uniformização:

“O que eles [jesuítas] fazem é um plano de campanha para o futu-ro, e o objetivo desse plano, que permanece fixo através dos séculos, é a constituição desta nova terra no sentido duma única religião, dum único idioma, duma única idéia.”13

A Europa, pátria espiritual de Stefan Zweig, tornou-se para ele inabi-tável. No Brasil ele encontra o clima humano e espiritual propícios, mas em

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vez de habitá-lo, inserir-se na vida brasileira com todos os seus encantos, mas também contradições, ele constrói uma visão ideal, utópica, de um país dis-tante porque do futuro, abdicando de exilar-se no seu presente.

4.O português exilado, o brasileiro por adoção, o europeu inconformado,

Agostinho da Silva não só se enquadra na história dos grandes testemunhos de passagem pelo Brasil, mas cria também um novo paradigma dessa passagem. Os anos que Agostinho da Silva passou no Brasil, entre 1944 e 1969, deixaram marcas profundas na memória cultural e intelectual do país.

O Brasil não era para Agostinho da Silva um país de exílio nem terra de criar raízes. Apesar de uma permanência de quase um quarto de século, era uma terra de passagem, ao longo da qual ele cumpria o destino e a vocação portugueses, demonstrando exemplarmente “a capacidade de andar ao biscate vendo o que podem fazer num sítio e, quando se esgotou, vão para outro lado fazer outra coisa”.14 São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, João Pessoa, Brasília, Florianópolis – eis os principais lugares por onde Agostinho da Silva passa no Brasil, deixando obras inconfundíveis. O que norteava este “andar ao biscate” tem a ver com outra capacidade portuguesa: a de mediação. Mediação como uma resposta ao apelo de transcender sempre os limites do conhecimento e da experiência, de superar as fronteiras que separam os homens, de dar o teste-munho de solidariedade.

A chegada ao Brasil vista anos depois parece a Agostinho da Silva uma reviravolta na percepção da própria identidade e uma mudança radical de ru-mo, mas não tão radical que não pudesse permanecer também no âmbito do destino português.

“Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim próprio (...). No Brasil tudo isso desa-pareceu completamente, entreguei-me à vida brasileira, muito mais ampla, muito mais livre e aos olhos europeus, aos olhos portugue-ses(...). Quer dizer, o que o Brasil fez comigo, logo que lá desembar-quei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no chão, para ir cair aí pelo século XV ou XVI.”15

A terra prometida está sob os pés e não pode ser tratada como terra

do exílio. O futuro desejado não é objeto de visão ou profecia, mas está incor-porado no presente, numa vida que procura ser plena e livre para conhecer o

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Brasil, país do futuro... Henryk Siewierski

mundo e ajudá-lo a cumprir o seu destino. Destino esse que corresponde aos mais profundos desejos do homem.

No Brasil, terra de encontro, mas também de confrontos, confrontos de raças e culturas, Agostinho da Silva procurava ajudar – com uma amplitude de atividades e ações extraordinárias, como criação de universidades e centros de estudo, ajuda aos flagelados pela seca do Nordeste, e assessoria ao presidente da República, entre outros – o país a cumprir o seu destino e sua vocação, investin-do no trabalho de aproximação a partir da valorização, investigação e documen-tação da sua herança multicultural, tanto no quadro nacional como internacio-nal, com atenção especial às culturas ligadas pelos laços da língua portuguesa.

5.

O “Ensaio para uma teoria do Brasil”, Agostinho da Silva inicia definindo a cultura “das populações que, pelo descobrimento, entraram em contacto com o indígena brasileiro” (269).16 O Portugal daquela época entre o fim da Idade Média e os primórdios do Renascimento “afastava-se das linhas mestras do de-senvolvimento cultural européu” (270), marcado pelo abandono do sagrado e opção preferencial pelo desenvolvimento econômico. Portugal, um fenômeno à parte, representava os valores e ambições espirituais e procurava projetá-los sobre o universo circundante.

“O português procura o mundo pela necessidade de adorar o abstra-to por intermédio do concreto, de cultuar Deus através da sua Na-tureza (...). Fé e Império lhe apareciam como impossíveis de separar (...). Deste modo, e continuando num mundo renascentista, a linha medieva, o português fazia de todo o mundo a catedral” (270-271).

O próprio da cultura que se recusa a optar apenas pelo abstrato ou pelo concreto é a busca de um paraíso onde seja possível superar os limites desta dicotomia. No Brasil os portugueses encontraram uma cultura indíge-na, migratória, que “aparece também como que procurando um paraíso em que a sua vida se possa desenvolver fora de todas as limitações do tempo e do espaço” (271).

Agostinho da Silva chega então a afirmar que do encontro dessas duas culturas poderia surgir uma civilização luso-tupi, semelhante e até superior à civilização moçárabe, em que se encontraram o elemento popular da Península e o árabe “também inquieto, também viajante, também buscador de paraísos em que de nenhum modo se abandonava o terrestre” (271). O retardamento

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de um Brasil paraíso ele explica partindo do pressuposto de que o fim supre-mo da humanidade, ou seja, o futuro Reino do Céu na Terra, todos os povos precisam alcançar ao mesmo tempo e nenhum grupo se possa adiantar. No momento do seu descobrimento o Brasil tinha tudo para construir a tal terra da promissão, mas ao mesmo tempo passou a fazer parte da economia mun-dial como um país colonial e “tinha de acompanhar o movimento comum e o acompanhou, compartilhando afinal do que era o sacrifício de todos” (272). Os ciclos econômicos do pau-brasil, do açúcar, e, principalmente, do ouro, são os ciclos de sacrifício, de desperdício de tão promissor hibridismo da cultura, que transformou o indígena em uma minoria, eliminada rapidamente: “a lei de Pombal, banindo o uso de Tupi, é o ponto culminante do drama brasileiro, que consiste essencialmente em ver-se arrastada pelas correntes de um mundo europeu, que lhe é estranho, a nação que estava ensaiando um teor de vida in-teiramente novo” (273). Também a importação dos escravos negros contribui para a tal famosa tristeza brasileira.

Mesmo assim, com as mãos roídas pela lepra de uma economia que repelia, mas a que se submetia “para futura remissão e glória da humanidade”, o Brasil deixou na arte barroca a marca do seu gênio: a capacidade de sonho e reprovação da civilização urbanística.

A civilização européia com o seu pragmatismo e disciplina, indispen-sáveis para o progresso e realização do paraíso futuro, foi, no entanto, imposta aos países do sul da Europa, a Portugal e, por seu intermediário, ao Brasil, e, como imposta, ela não podia funcionar bem. A imitação da cultura européia no Brasil é pobre em relação à original, o que não quer dizer que essa pobreza seja intrínseca, pois o que é intrínseco é a “possibilidade na invenção do futuro”, e o mau funcionamento sob os critérios europeus é um atestado de vitalidade da cultura brasileira. O Brasil, por ser adiantado em relação à civilização do futuro, precisa esperar, sacrificando-se e contribuindo para que a Europa evolua crian-do condições técnicas para alcançar o paraíso que será de toda a Humanidade.

Com o século XX a civilização técnica e científica da Europa “atingiu o ponto em que já não se pode avançar mais”, cumprindo o seu papel de asse-gurar o domínio pelo homem das condições físicas de uma vida em liberda-de – automatismo de fabricação, conquista de fontes de energia praticamente inesgotáveis – condições para praticar “o ócio sobre que se construíram as grandes culturas humanas” (275). A fase terminal da civilização européia é marcada não só pelos triunfos técnicos e científicos, mas também pela crise: o absurdo da economia de produzir para lucrar, o homem medido pela eficiên-cia prática, o desemprego.

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Brasil, país do futuro... Henryk Siewierski

A esperança do mundo não estaria então na Europa, mas “nos locais que até agora o europeu tratou (...) como colônias de exploração” (276). Pela eliminação, Agostinho da Silva chega à conclusão de que “é da América do Sul que a humanidade poderá esperar as indicações de novos horizontes” (277). Os países que dentro do universo sul-americano têm as condições de assumir “a missão de guia dos povos” são o Brasil e o México; o Brasil pelas suas “ca-pacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo reli-gioso, de calma aceitação do destino, de inteligência psicológica, de ironia, de apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo”(278). Da herança européia aproveitável, o essencial seria “a união harmônica de uma vida urba-nista e de uma vida rural” (278).

Ao desenhar o Brasil imaginado do futuro, Agostinho da Silva quer as-sentá-lo em bases econômicas sólidas para que “a fantasia pudesse tomar pé na realidade das coisas” (278). Considerando precária a posição do Brasil como exportador dos produtos valorizados nos mercados internacionais (“o produ-to que o Brasil poderia colocar virá de outros pontos mais barato e, porventu-ra, de melhor qualidade”, 279), ele propõe uma economia “primacialmente de trocas internas” (279), que iria propiciar o desenvolvimento e exploração de todo o extenso território nacional.

Diante da intensidade do desmatamento e erosão do solo, assim como do fato dos solos tropicais não serem propícios para a sustentação da civili-zação baseada sobre uma agricultura de cereais, Agostinho da Silva propõe a arboricultura como a base econômica do desenvolvimento do Brasil. Além disso, a economia de desenvolvimento auto-sustentável exigiria a adoção da estratégia de policultura em regime cooperativo e uma descentralização da produção industrial.

Organizadas dessa forma, as bases da economia do Brasil servirão à eclosão de uma cultura que até agora não teve condições de florescer plenamente.

Mesmo que no “Ensaio para uma teoria do Brasil” não haja referências ao culto popular do Espírito Santo, é importante salientar que a interpreta-ção desta festa popular, “difundida por todo o Brasil” pelos portugueses, cujos promotores eram os franciscanos, faz parte integral da visão do Brasil como o país do futuro de Agostinho da Silva, como uma confirmação da missão mes-siânica destinada a esse país, do qual “poderia partir” a “salvação da humani-dade” (286).17 “Ali, naquele miraculoso Brasil, teria apoio de sólida terra, não apenas pastoreio de nuvens, o sonho do Quinto Império, Império do Espírito Santo, profecia de Joaquim de Flora.”18

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6.Stefan Zweig e Agostinho da Silva convergem em considerar que o Bra-

sil representa um modelo alternativo da cultura e do desenvolvimento ao da Europa contemporânea, um modelo muito mais atraente por ser baseado nos valores de humanismo e universalismo cristão, que deixaram de ser o alicerce do Velho Continente. Existem, no entanto, significativas diferenças. Na visão do Brasil de Stefan Zweig são valorizados, enfatizados e idealizados os processos de homogeneização e unificação, enquanto Agostinho da Silva acentua mais a diversidade e a liberdade brasileiras. Stefan Zweig atribui aos jesuítas e sua disciplina de organização um papel fundamental na formação da identidade brasileira, enquanto para Agostinho da Silva o modelo franciscano, ecumênico e heterodoxo, define melhor a alma do povo brasileiro. Para Stefan Zweig o Brasil é um país do futuro pelo que ele representa hoje, como um contraponto às deviações da civilização européia. Agostinho da Silva vislumbra no presente e no passado apenas um potencial daquilo que o Brasil pode ser amanhã.

Stefan Zweig pensava no Brasil, país do futuro, principalmente como numa gigantesca arca de Noé, em que do segundo dilúvio se salvaria o melhor da espécie humana e do mundo natural. Para Agostinho da Silva o Brasil é bem mais do que isso: é uma terra para a qual os portugueses transportaram o seu sonho da terra sem mal, que encontrou aqui o sonho semelhante de outros povos. Agora cabe ao Brasil ir transformando o sonho em obra, que já não se limitará apenas ao seu território, mas que irá se expandindo pelo mundo afora. O que importa é a mundialização do futuro que o encontro das culturas no Brasil fez germinar.

Notas1 Comunicação apresentada no Congresso Internacional do Centenário do Nascimento de Agostinho da Silva, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, no dia 17 de Novembro de 2006.

2 ZWEIG, Stefan. Brasil, país do futuro. Trad. de Odilon Gallotti. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1941, pp. 11-12.

3 ZWEIG, Frederike. Stefan Zweig. Unrast der Liebe. Berna & München: Scherz Werlag, 1981, p. 242.

4 Ibid., p. 244.

5 SCHWAMBORN, Ingrid. “Um europeu no Brasil.” In Brasil, país do passado? Ligia Chiappini, Antonio Dimas e Berthold Zilly (org.). São Paulo: Boitempo Editorial, Edusp, 2000, p. 38.

6 Cit. por SCHWAMBORN, Ingrid, op. cit., pp. 35-36.

7 ZWEIG, Stefan. Op. cit., p. 12.

8 Ibid., pp. 14-15.

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9 Ibid., p. 16.

10 Ibid., pp. 19-20.

11 Ibid., p. 43

12 Ibid., p. 39.

13 Ibid., p. 43.

14 SOUSA, Antónia de. Diálogos com Agostinho da Silva. O Império acabou. E agora? Lisboa: Notícias Editorial, 2000, p. 42.

15 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Org. por Henryk Siewierski, Brasília: UnB, 1994, p. 42.

16 Aqui servimo-nos da edição do referido texto, in SILVA, Agostinho da. Dispersos. Introdução de Fernando Cristóvão. Apresentação e organização de Paulo Alexandre Esteves Borges. Lisboa: Instituto de Cultura e Lín-gua Portuguesa, 1988. Os números entre parêntesis no texto referem-se à paginação desta edição.

17 Cf., BORGES, Paulo. “Portugal e Brasil na senda do Pentecostes”. In: SILVA, Agostinho da. Ensaios sobre Cul-tura e Literatura Portuguesa e Brasileira I. Lisboa: Âncora, 2000; PINHO, Romana Valente, “A vivência de Brasil ou Do catolicismo humanista e ecuménico de Agostinho da Silva: os contatos com Jaime Cortesão e Gilberto Freyre. In Agostinho da Silva e o pensamento Luso-Brasileiro. Lisboa: Âncora Editora, 2006.

18 SILVA, Agostinho da. “Fantasia portuguesa para orquestra de história e de futuro”, in SILVA, Agostinho da. Dispersos, op. cit., p. 702.

ResumoStefan Zweig e Agostinho da Silva, cada a seu modo, testemunhavam o presente e vis-

lumbravam o futuro do Brasil e nele a esperança de um futuro melhor para o mundo. Na

obra de Stefan Zweig, o Brasil ocupa um lugar episódico, embora de destaque, como um

episódio do final dramático da sua vida. Na obra de Agostinho da Silva o Brasil é um tema

privilegiado, além de ser uma experiência de vida intensamente inserida na história desse

país. Stefan Zweig e Agostinho da Silva convergem em considerar que o Brasil representa

um modelo alternativo da cultura e do desenvolvimento ao da Europa contemporânea,

um modelo muito mais atraente por ser baseado nos valores de humanismo e universa-

lismo cristão, que deixaram de ser o alicerce do Velho Continente. Existem, no entanto,

significativas diferenças. Por exemplo, na visão do Brasil de Stefan Zweig, são enfatizados

e idealizados os processos de homogeneização e unificação, enquanto Agostinho da Silva

acentua mais a diversidade e a liberdade brasileiras.

Palavras-chave: Stefan Zweig; Agostinho da Silva; História do Brasil; Identidade

Brasileira; Visões do Brasil.

AbstractStefan Zweig and Agostinho da Silva, each in his own way, witnessed the present and

looked towards the future of Brazil wherein they saw a possibility of a better future for

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the whole world. In Stefan Zweig’s oeuvre Brazil holds an episodic, albeit distinct, position

as the tragic conclusion of his life. In Agostinho da Silva’s work Brazil is a privileged sub-

ject as well as the experience of a biography closely intertwined with the history of that

country. Stefan Zweig’s and Agostinho da Silva’s views converged in regarding Brazil as an

alternative cultural and developmental model in relation to the contemporary Europe, a

model which they considered superior in that it was based on humanistic and universally

Christian values which had no longer served as the basis for the Old World. There are, ho-

wever, significant differences. For example, in Stefan Zweig’s vision of Brazil the processes

of homogenization and unification are highlighted and idealized, whereas Agostinho da

Silva emphasizes Brazil’s diversity and liberty.

Keywords: Stefan Zweig; Agostinho da Silva; Brazilian History; Brazilian Identity;

Visions of Brazil.

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Teologia e mitopoiética da história em Agostinho da Silva

Isaque Pereira de Carvalho*

Da fundamental concepção teológica agostiniana, é possível descortinar toda uma reflexão que passa pelos campos da filosofia da história, da poética, da ética, do pensamento acerca da civilização de língua portuguesa, entre tantos ou-tros. Com efeito, é a centralidade da teologia que enformará todo o pensamento de Agostinho da Silva. É concebendo Deus como a harmonização e superação de toda a dualidade tensional (absoluto/relativo, eternidade/tempo, subjetividade/objetividade, essência/aparência, inconsciente/consciente, sentimental/racional, invisível/visível, divino/humano, mito/história, interno/externo) que Agostinho desenvolve um sugestivo percurso de transcensão desses mesmos dualismos. Neste sentido, temos a intenção de, a partir da teodicéia expressa por Agostinho, proceder a uma reflexão sobre as suas concepções de Deus, de homem e das suas íntimas e recíprocas comutações, buscando captar a percepção agostiniana sobre o movimento histórico em sua dinâmica com a revelação/inspiração do Espírito (Deus-homem, homem-Deus) atentando para uma sutil e tácita intui-ção de uma filosofia da história que, pretendendo promover a fusão dos opos-tos-complementares e superar inclusive a separação entre sujeito e objeto, abri-ria uma via de encontro entre mito e história, ou entre o sagrado e o profano, culminando com a conjectura de uma apoteótica realização de Deus no homem histórico e também o inverso, ou seja, do homem na divindade. Na consecução desse intuito, chamaremos à discussão, à maneira dialógica, alguns aspectos do pensamento do mitólogo Eudoro de Sousa acerca de mito e história.

No pensamento de Agostinho da Silva, embora o silêncio seja mais digno ou apropriado para as questões referentes a Deus ou ao Absoluto, pois que qualquer especulação ou teorização lógico-discursiva só se atribui àquilo que é relativo e que pode ser predicável, não sendo por isso admissível à eterni-

* Isaque de Carvalho é licenciado pela Universidade de Brasília na área de História e mestre em Filosofia em Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a tese Divino-Humana Semelhança: A Idéia de Liberdade em Agostinho da Silva.

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dade, à infinitude e à perfeição ilimitada de Deus, pode-se detectar, simultane-amente, a não existência de Deus1 (entendida a Sua plenitude como Princípio ou Origem) e a Sua existência (entendida como a Sua manifestação), sem que haja nisso qualquer contradição essencial, antes pressentindo nessa paradoxia indícios da mais excelsa Liberdade.2 Para expressar a sua concepção de Deus, Agostinho toma por parâmetro uma idéia da física cosmológica pela qual um átomo inicial explode em mundo logo que toma conhecimento de si mesmo. Assim como na deflagração do átomo primordial, (...) no momento em que o mundo explode de Deus, ou Deus explode em mundo, deixe[a] Ele de existir como Absoluto e, portanto, como Deus; é já a Trindade (...)3 e passa a existir no Espíri-to Santo, mistério que conjuga a identidade e a diferenciação de Deus Absoluto em suas manifestações fenomênicas.4

Contudo, Agostinho afirma que a “explosão de Deus em mundo” não se deu de uma vez para sempre, estando antes a se processar a cada momento, o que teria por conseqüência tanto a coincidência entre Deus e Trindade, co-mo entre a eternidade e o tempo, abrindo desta maneira uma larga via para a especulação acerca da simultaneidade de expansão e contração do Universo, ou seja, de manifestação divina na criação dos entes (passagem do Absoluto para o relativo), bem como a sua oposta e complementar retração (passagem do rela-tivo para o Absoluto) por uma metanóia em que o homem (posto que criado à sua imagem e semelhança e por isso ocupando uma essencial responsabilidade nesse processo), pela estrada insuspeita de Damasco, se aniquila, deixando sur-gir em si outro diferente ou até mesmo contrário, como afirma Agostinho:

“Creio que esse explodir do Nada em Tudo não se deu de uma vez para sempre no mundo, mas se está dando a cada momento, sendo pura ilusão nossa a ideia de sua continuidade: cada ocultação do determinismo detectada pela ciência, cujo progresso não vejo como ilimitado, como não vejo o da Humanidade – o passo final será o salto do determinismo para a liberdade –, significa a passagem de um mundo a outro (a paleontologia estratigráfica pode não ser o fruto de uma evolução, mas o testemunho dos saltos de um mundo a outro).”

E ainda:

“Cada mundo criado tem leis fixas, e destinos humanos; cada inter-valo significa a liberdade de aparecer outro mundo com diferentes relacionamentos legais”.5

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Com efeito, a essência de todo o pensamento de Agostinho provém da intuição de Deus como esse O Nada que é Tudo, expresso em termos de explo-são e retração.6 Enquanto plenitude absoluta, Deus só o é na medida em que integra o Nada, essa sua instância consubstantiva, que o permite exceder toda a determinação do mundo contingente.7 Não obstante esse paradoxal elemen-to ontológico da divindade, e talvez mesmo por isso, Agostinho entende que Deus também é expressão de Liberdade absoluta, pois mesmo o Nada consti-tutivo não O constrange a continuar indeterminado, podendo Deus tanto per-manecer na ausência de modos e propriedades como autodeterminar-se, ou explodir em mundo, por vezes intermináveis.8 Sendo Deus Nada, Ele é Tudo, todo ser, quer como quietude, quer como manifestação na diferença e na novi-dade. Daí que Deus devenha autopoeticamente mundo, revelando-se sempre na contingência histórica.

Nesse sentido, o mundo, bem como o homem e a própria experiência histórica do homem seriam a consubstancial transformação de Deus, a sua íntima, una e simples infinitude, perfeição e totalidade transmudada ou reve-lada em unitotalidade complexa, múltipla e morfológica. De maneira que, ao contrário de serem concebidos como uma entidade separada do divino por teocriptia ou diminuição ontológica, como um grupo de autores portugue-ses o postula, afiguram-se antes como um mesmo-outro de Deus, inerente à autocriação do incriado. Mundo e homem não são nem poderiam ser sim-ples efeitos de uma causa, mas o próprio causar-se de uma causa incausada, o que é patente na concepção agostiniana de expansão e contracção do Universo. Assim, Agostinho também pensa o mundo com todos os seus atributos natu-rais, sociais, históricos, em termos de revelação ou manifestação-ocultamento, sempre renovada, de Deus no mundo ou, dito de outra forma, mundo e Deus como sendo o mesmo, uno e eternamente idênticos e diferentes.

Sendo Deus simultaneamente transcendente e imanente, essencial e existencial, eterno e revelando-se na história – ou antes, é mesmo o funda-mento ontológico da história –, Agostinho entende que é a própria história um cenário de simbiose entre o sagrado e o profano, ou antes, local privilegia-do da simultaneidade entre o divino e o humano, o eterno e o temporal, nu-ma grande aventura que congrega os deuses do néctar e os marujos do vinho,9 revelando assim a sua natureza simbólica. Procedendo à análise da cultura e da história portuguesas,10 Agostinho assim o confirma: concebe que a história desenvolve-se em pelo menos duas dimensões simultâneas, ou seja, o seu lado noturno (o oceano nos homens) e o seu lado diurno (os homens no oceano), sempre na fronteira entre a eternidade e o tempo, o divino e o humano, a

Teologia e mitopoiética da história em Agostinho da Silva Isaque Pereira de Carvalho

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Liberdade e a necessidade, o invisível e o visível. Daí a Ilha dos Amores repre-sentar a pluralidade divina oculta de cada ser, sendo ela um mítico11 lugar da união das duas faces humanas ou o topos (ou u-topos) onde se dá o reconhe-cimento da divindade do homem e da humanidade de Deus, experiência de transcensão que capacita para a visão do Todo ou do Absoluto. Neste sentido, essa divina epopsia revela-se na própria experiência temporal, entendendo as-sim a história não como simplesmente a experiência angustiada do homem exilado no mundo.

Assim o entende Eudoro de Sousa a propósito de mito e história. Eu-doro parte da idéia do homem como a própria negação do Absoluto divino e primordial que, instituindo a partir de si (o centro) o regime de cisão ob-jetivante e hominizante, determina não só o seu presente coisificado como projeta esse seu mesmo presente tanto para o passado quanto para o futuro (o seu horizonte circundante). É o que Eudoro chama de presença do presente.12 Decorrente dessa ou simultaneamente a essa onipotência do homem exclusi-vamente humano, desvinculado dos seus aspectos natural e divino, teria sur-gido a história como o saber próprio do homem desligado e por isso carente de religião e mitologia, entendendo por mito um pensamento/vivência sim-bólico que consiste, fundamentalmente, num discurso a respeito dos deuses ou das Origens não originadas. O mito teria sido originado da religião como ato ritual, pura vivência do sagrado. Sendo religiosa a primeira atitude do ho-mem perante o mundo (na obscura caverna primordial do excesso incontido do entre-ser, onde tudo estava ligado), o mito aparece como um dizer poético, uma resposta ao sentimento da presença do divino, portanto, oposto à discur-sividade histórica.

Com efeito, é na ideia de um presente plenificado que Agostinho con-cebe a consubstancialidade de eternidade e tempo,13 motivo essencial que es-trutura toda a sua teologia e mitopoiética da história. Em “Teologia Humana”,14 Agostinho exprime a sua concepção acerca da conexão entre centro e periferia ou, o que podemos entender conforme a crítica do mitólogo Eudoro de Sousa à história, como uma das possíveis correlações entre projetor, projeção e pro-jetado, tendo como termos dessas correlações ora Deus, homem e Natureza, ora presente do homem e seus respectivos passado e futuro. Em Agostinho também encontramos a crítica à história e mesmo a necessidade de livrarmo-nos da história15 como sinal de Liberdade, embora num sentido não totalmente coincidente com o postulado de Eudoro em História e Mito.16 Dizemos “não totalmente” não tanto pelos fins alcançados ou almejados por cada um desses pensadores (que entendemos ser de grande similitude ou senão de identidade

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Teologia e mitopoiética da história em Agostinho da Silva Isaque Pereira de Carvalho

mesmo), quanto pelos caminhos adotados. Diferente de Eudoro, Agostinho parte da idéia de que o homem é uma criatura de Deus, criado à sua imagem e semelhança.17 Considerando-se por esse ângulo, pode-se assinalar pelo menos duas importantes implicações contidas nessa afirmação, ou seja, nem o homem é uma diminuição ou negação de Deus, já que é criado à sua imagem e seme-lhança, nem tampouco Deus pode ser uma projeção objetivante do homem como centro irradiador de sentidos e de onticidade, o que Agostinho deixa cla-ro ao afirmar que o significado daquela semelhança não é a antropologização de Deus, mas antes a própria deificação do homem, isto é, o homem é um Deus ainda não realizado e em acto, mas um Deus sempre em potência e que está num perpétuo encaminhar-se para o formular de uma lei que só tivesse uma intenção e um artigo; o de que é a sua única obrigação a de se não regular por mais norma nenhuma que não seja a da mais absoluta liberdade.18 Nessa Liberdade Absoluta consistiria a divina semelhança entre criador e criatura.

Consoante esta idéia de Liberdade Absoluta como o princípio de iden-tidade entre Deus e o homem, Agostinho também se mostra atento à sua ma-nifestação, ou antes, está convicto de que é a sua própria manifestação o que mais importa para o cumprimento do texto que considera fundamental, qual seja, de que foi o homem criado por Deus à sua imagem e semelhança.19 Daí advém a sua crítica à história e a sua aproximação ao pensamento de Eudoro. Salvaguardada a diferença entre ambos, referente à concepção de Deus e do homem, efetivamente a crítica agostiniana revela-se como um paralelo – com tendências tangenciais – às idéias sobre o tempo em Eudoro. Assim como o terror da história é expresso pelo mitólogo como o domínio e a projeção da presença do presente, que cumpriria negar (negação da negação primordial) para o advento da reintegração do Absoluto, Agostinho entende que a negação da história para o advento da Liberdade passaria simultânea e precisamente por uma transcensão do e regresso ao presente. Estamos, portanto, diante de pelo menos duas modalidades de presente no pensamento de Agostinho. Num primeiro momento, o da necessidade de transcensão, Agostinho refere-se a um presente que, imerso em seus aparentes problemas e desejos, por um lado inventa passados fantasiosos (no sentido de ilusórios), à maneira de refúgio das suas atuais frustrações egóticas, estando o seu ego tão afastado do natural como do sobrenatural; por outro, projeta futuros que repelem um presente que é sinônimo de Vida e que já representa uma outra dimensão do presente a que importa regressar.

De maneira que é um presente plenificado (o presente da Vida criativa ou um tempo consubstancial ao eterno, em que Deuses e marujos navegam o

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grande oceano do espírito, excitados tanto pelo néctar quanto pelo vinho), dia-metralmente distinto da onipresença da presença do presente em Eudoro, o que Agostinho invoca a propósito da história, para o cumprimento da Liberdade a que tanto Deus como o homem, por virtude da sua semelhança substanti-va, estão fadados. Para Agostinho, esse presente radicalmente imanente, sem deixar de ser da ordem transcendente, constitui o próprio tempo das crianças, em que a vida se passa na realidade do irreal20 (por que ao vivê-lo, elas o sus-pendem), e por isso caracteriza o próprio tempo investido de eternidade em que se dá toda a criação. Assim, entendemos que a manifestação do princípio de Liberdade em Agostinho está intimamente ligada à idéia de uma reorgani-zação dos parâmetros ou dos termos da correlação entre projetor, projeção e projetado, não sendo a contestação da história reclamada por Agostinho senão a negação à repetição da derrocada do presente (ou desse presente derrocado) tanto no passado quanto no futuro e, sobretudo, a afirmação da criação eter-na, sempre renovada no presente, como manifestação ou mesmo revelação. Daí estarmos falando de poiésis na história.

É possível que tal perspectiva nos conduza a uma compreensão segundo a qual, tendo a vivência religiosa dos homens, ou a sua experiência divina, o seu núcleo no eterno, a dimensão temporal ou histórica seria desprezada como aquilo de que o homem necessita livrar-se para alcançar a sua elevação final. Entretanto, para Agostinho, o eterno parece ser menos o imutável fora do tem-po do que o próprio tempo plenificado. Importante ter em consideração que o pensamento de Agostinho, embora de uma forma nada convencional, insere-se na perspectiva criacionista do cristianismo, em cujo cerne temos que Deus além de criar os entes celestes, os homens e a natureza, criou também o tempo e, com ele, a história. Deste ponto de vista, o tempo é irreversível e dividido em passado e futuro, onde esse último permanentemente se presentifica e essa “aparição” do presente mergulha continuamente no passado, numa integração plenificadora de passado, presente e futuro.21 Na dinâmica dessa correlação trans-ontológica do(s) tempo(s), há uma constante e orientada mudança em algo que permane-ce, possibilitando a emergência de um presente sempre renovado, tangenciando a eternidade que no tempo supostamente se teria perdido. É pelo presente – po-tencializado por abarcar passado e futuro e, por isso, pleno – que tempo/histó-ria e eternidade são num único ser ou numa única realidade.22

Assim, transcender o tempo, ou antes, alcançar um presente pleno (a eternidade) num instante da história, parece ser, em Agostinho, a suprema pos-sibilidade do homem, bem como a experiência da unidade, do verdadeiro Amor. Não se trata de abdicar da história em nome de uma dimensão exclusivamente

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extramundana, mas de complementá-la com a plenitude de uma experiência di-vina. Na exclusividade do lado diurno da história, o homem encontra-se divor-ciado, exilado de si mesmo, posto que afastado de Deus. Com a abertura da his-tória ao seu lado noturno, númeno e fenômeno iluminam-se reciprocamente.23

Segundo Agostinho, estando a própria história da economia e do poder de mandar disponível ao aceno da religião ou daquilo que verdadeiramente é religioso na religião, isto é, o Espírito, teríamos que eternidade e tempo não estariam de todo em regime de incompatibilidade e exclusão. Antes o contrá-rio. É pela religião manifestada que “sonho” e “realidade” se confundem e que sagrado e profano em simultâneo favorecem a revelação histórica do eterno e, por conseguinte, a emergência de uma trans-historicidade na própria histó-ria. Assim também o entende com relação à arte24 e à ciência investidas pelo e para o Espírito. Agostinho não nega radicalmente o mundo e a civilização que critica. Não seria pela anulação da objetividade e da racionalidade em nome de uma transcendência radical que a plenitude se daria, mas na sua própria realidade transformada. Assim também o entendemos a propósito do mito. Como a religião, o mito também é uma narrativa, o que supõe uma sucessão cronológica, portanto, no tempo. Simultaneamente, é narrativa/expressão do eterno concebido como Origem que integra passado, presente e futuro e os transcende em divina trans-temporalidade, o que para Agostinho representa-ria o Paraíso como eterno presente. Destarte, tanto o tempo quanto a própria história, para Agostinho, têm e são Outros, ou ainda são qualquer coisa so-mente na medida em que se revelam em sua diversa alteridade. É nesse sentido que Agostinho afirma que o Reino do Espírito é já agora, nesse eterno presente em que, “outrando-se” a história (ou seja, sendo religiosa, assumindo/assimi-lando a presença do Espírito ou do mistério da Origem de que cantam os mi-tos), tempo e eternidade cumprem o seu destino inequívoco: plenificação do Absoluto na história, como fica expresso em suas reflexões sobre o Império do Espírito Santo, a Ilha dos Amores e o sebastianismo.

O Espírito, portanto, é o elo que integra o que foi separado, o traço comum de sujeito e objeto, por onde se estabelece todo o diálogo. Identifica-do com Deus (Nada que é Tudo), o Espírito é a indefinível e inesgotável fonte que confere à Vida e à própria história a dádiva de poder fluir sob quaisquer formas, inclusivamente sob forma nenhuma, num eterno processo de auto-poiésis ou fantasia criadora25 da deidade, de cuja essência o homem participa, constituindo isso a base de todo o verdadeiro artista e de toda a arte, entendida como a revelação, fragmentada por homens, tempos e países, do Artista supremo que Deus é.26 Assim entendemos o “outramento” do homem e da história, a

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sua abertura para o regime mitopoiético ou noturno e a própria teologia da história em Agostinho. Para o pensador, as religiões históricas e a própria ex-periência fenomênica iluminada por laivos divinos são evidências da compar-ticipação do Absoluto e do histórico... por virtude do Espírito.

Notas1 Cf. Agostinho da Silva. “Sobre Ideia de Deus”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II. Lisboa, Âncora, 1999, p. 296. Se eu digo que Deus existe, segundo os nossos pobres, ignorantes ou pelo menos limitados critérios, lá se vai a ideia de que Deus não existe, também segundo os mesmos limitados, ignorantes e pobres critérios.

2 Cf. Agostinho da Silva. “Do Previsível e do Imprevisível.” Idem, p. 380. Comentando Fernando Pessoa, e os seus heterônimos, como alguém que a seu modo era um asceta num exercício de vôo para Deus, de seu próprio vôo, não do vôo dos outros (...), Agostinho afirma: Ao essencial sabia ele [o poeta] que nenhuma atribuição é legítima e a isso ligava, invento eu, o não haver prova alguma racional da existência de Deus ou da sua inexistência. Deus não se afirma nem se nega: Deus É, mesmo quando não é, numa plena manifestação de sua suprema liberdade.

3 Agostinho da Silva. “Sobre Ideia de Deus”. Idem, p. 297.

4 Idem, ibidem, p. 296. (...) ao tomar Deus conhecimento de si próprio, se vê, ou é, sujeito e objecto, Pai e Filho, com um intervalo imediato de tempo e de espaço, como me sucede a mim quando me vejo ao espelho, ou me penso espe-lhado; mas, como acontece a mim e à minha imagem, a semelhança os liga, a identidade os une; e isto, que só existe quando Deus existe e porque é Pai e Filho, sujeito e objecto, chamarei eu de Espírito Santo. O mistério da conjugação também é apreciado por Agostinho quando o pensador diz que existe um Deus que é o conjunto de tudo quanto apercebemos no Universo. Tudo o que existe contém Deus, Deus contém tudo o que existe. Pode-se, sem blasfêmia, considerar o aspecto imanente ou o aspecto transcendente de Deus; pode-se, sem blasfêmia, falar não de Deus mas apenas do Universo, com Espírito e Matéria, formando um todo indissolúvel. Cf. Agostinho da Silva. “Doutrina Cristã”. In: Textos e Ensaios Filosóficos. Vol. 1. Lisboa, Âncora, 1999, p. 81.

5 Cf. Agostinho da Silva. “Até Ao Primeiro Quartel...”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II. p. 306. Ainda na mesma página Agostinho afirma: Portanto, para que surja um mundo diferente do actual, basta que eu mude, que me insira naquele momento em que o alguma coisa se recolhe ao nada, o que só pode ser preparado e propiciado por um comportamento dentro do mundo que existe, mas o mais diferente possível dos comportamentos normais, o que é o conceito fonte das várias asceses de tantas culturas e o conceito fonte daquilo que nos Evangelhos cristãos vem designado por metanónia ou, calculo, o samadhi de Oriente.

6 Nota-se nesta concepção uma tendência ao paradoxo lógico-ontológico que Agostino herdou (e com o qual Agostino dialogou com uma leitura bastante original) de outros pensadores portugueses, como Antero de Quen-tal, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, José Marinho e Eudoro de Sousa, o que o faz entender Deus como (...) ausência de determinação ôntico-ontológica, um não um, uma não entidade, um não algo, um vazio enquanto desprovido de qualquer qualificação delimitadora, positiva ou negativa, e, por isso mesmo, ´tudo´, uma plenitude que se pode entender quer como um todo, simples, indiferenciado e indeterminado, quer como um tudo propriamente dito, que contém em acto todas as determinações e antinomias possíveis, porém sem que nelas se determine. Cf. Paulo Borges. “‘Do Nada que é Tudo’. A Poesia Pensante e Mística de Agostinho da Silva”. In: Vários. Agostinho da Silva. Um Pensamento a Descobrir. Torres Vedras, Cooperativa de Comunicação e Cultura, 2004, p. 122.

7 Nesse sentido, o Nada é aquilo que consuma e confirma a totalidade à qual nada falta, nem mesmo o seu ou-tro, contrário, mas não contraditório, isto é, complementar, como afirma Agostinho ao refutar a tese que se apóia no argumento da existência do mal para negar a existência de Deus: Que Deus absoluto seria esse, que totalidade seria essa, se não pudesse aí haver aquilo a que chamamos mal e aquilo a que chamamos bem (...). Cf. Agostinho da Silva. “Sobre Ideia de Deus”, p. 298.

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8 Esse divino Nada afigura-se como um vazio ontológico que é (...) possibilidade e potência do seu autopreen-chimento infinito, dando-se tantas determinações quantas irrestritamente queira. Cf. Paulo A. E. Borges. “‘Do Nada que é Tudo’. A Poesia Pensante e Mística de Agostinho da Silva”, p. 122.

9 Cf. Agostinho da Silva. “Pensamento à Solta”. In: Textos e Ensaios Filosóficos. Vol. II, pp. 176 e 177: O culto nacional de Camões é uma ficção palaciana, um emprego de eruditos e um pretexto de escultores. Mas o Povo, que nunca o leu, sente e pensa, o que não implica consciência, o que o Poeta porventura pensou e sentiu, talvez também inconsciente, já que o vocabulário empregado tinha, em seu tempo, um restrito sentido. A Fé do Povo é menos, por exemplo, a cristã do que a de, apesar das aparências, ser justificada a Vida e ser desejável o futuro; quanto a Império vê com indiferença como os do mundo se desmancham, mas por aquele anseia em que se não distingam céu e terra; sabe que Inês é importante porque nela foi o Amor batido pelo Estado e dessa falta se tem Portugal que remir, por-ventura morrendo; aplaude o Magriço porque todo o humilhado tem que ser defendido; está bem preso o Adamastor porque ofendeu o divino, amou o que lhe era incongruente e odiou o porvir; aplaude a paciência dos nautas e o bom humor do Veloso; anseia que no fim da viagem de comércio e de guerra haja o repouso de um momento sem tempo e de um lugar sem espaço; e sabe, lembrado, sem memória (pois que todos os homens o mesmo sabem, embora por interesse ou medo o ignorem), de um Platão ou de um Joaquim de Flora, que toda a fixa aventura a que se chama História se passa simultaneamente na eternidade e no tempo: entre os deuses do néctar e os marujos do vinho.

10 Esse mistério de ser um e ser outro, de ser banal e exceder a banalidade, enfim, de ser humano e ser divino, simultaneamente, desvelando portanto o Absoluto ou o Nada que é Tudo, pode ser compreendido mediante o simbolismo da Viagem como arquétipo de transcensão das antinomias. Trata-se, segundo Agostinho e a despeito de comumente haver uma insistência na predominância do regime racional sobre a dimensão onírica, de uma tendência arquetípica da história e da cultura portuguesas, presente desde a androginia erótica das Cantigas de Amigo, a Ilha dos Amores, as Festas do Espírito Santo, o anseio sebástico da realização do impossível, chegando à celebração do Amor e visão do Absoluto no pensamento português contemporâneo. Representa uma experi-ência interior ontológica em que o ser demanda mais ser e que, do ponto de vista antropo-teológico, permite a transcensão do homem sem que esse o deixe de ser, ou seja, uma Viagem que vai do mesmo de si para o outro de si mesmo. Cf. Agostinho da Silva. “De Como Os Portugueses Retomaram A Ilha dos Amores”. In: Dispersos. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989.

11 Efetivamente, Agostinho desenvolveu, em plano teórico místico-mítico, uma original teoria da história em que se podem detectar, pelo menos, dois substratos essenciais: do seu mestre Jaime Cortesão, Agostinho fixou a importância do culto do Espírito Santo, da heresia dos “espirituais” e de um franciscanismo afeiçoado à dou-trina das “três idades” de Joaquim de Fiori, na Idade Média, e no período dos descobrimentos em Portugal; da Seara Nova e de António Sérgio, a consciência de só recorrer ao passado se este servir de material de construção para um futuro não forjado unicamente por uma elite aristocrático-intelectual, mas também pela exigência social, democrática e coletiva de todo um povo. É que Agostinho, orientado por uma perspectiva escatológico-social, tinha por fundamentos sociológicos as instituições democráticas portuguesas da Idade Média, a adesão popular ao culto do Espírito Santo e também a experiência brasileira da revolta de Canudos. Essa fundamenta-ção foi potencializada com a redescoberta do substrato mítico do povo português, quando o próprio Agostinho empreendeu uma peculiar reinterpretação da literatura e da arte portuguesas – Quinto Império, sebastianismo, escatologia de Joaquim de Fiori, profecias de Bandarra, teses de D. João de Castro, António Vieira e Fernando Pessoa – que foram abordados sob um ângulo escatológico e simultaneamente social e paraclético. Para o tema de uma teoria da história em Agostinho da Silva, cf. António Quadros. “Mitologia e Filosofia do Movimento Histórico na Cultura Portuguesa”. In: Introdução À Filosofia da História. Lisboa, Editorial Verbo, 1982.

12 Segundo Eudoro de Sousa, em cada época histórica, homem e mundo estáticos julgam saber quais são a sua origem e o seu destino. Partem da observação de uma presença do “mim”, que julgam ter, em detrimento do “eu” que é, sempre foi e jamais deixará de ser. Assim os historiadores pensam a epocalidade, onde para um presente (o seu actual e que julga ser o único) configuram-se um passado e um futuro como pólos contrários da presença deste seu presente. É neste sentido que, em História, cada atualidade tem a sua antigüidade. Investigando por este método, o que o homem descobre não é o passado ou o futuro, senão o seu próprio presente excludente e separado. Este presente nega o que está para além do horizonte do antigo (o limite do seu pensamento racional e

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o limiar do “mais ser”). Por esta ótica, o homem está condenado a ser sempre o mesmo, perdendo (ou reduzin-do) a sua capacidade de se desdobrar em sua pluridimensionalidade. Ao denunciar a autocondenação humana, Eudoro alerta para o perigo de completa bancarrota da condição humana, carente de religião e de Liberdade, se a história concebida como presença do presente que se projeta no passado e no futuro, continuar a reivindicar para si a verdade absoluta e exclusiva de uma só imagem do antigo. Cf. Eudoro de Sousa. História e Mito. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1981.

13 Cf. Agostinho da Silva. “Pensamento à Solta”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 163: Imortais somos porque o tempo é consubstancial do eterno.

14 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II.

15 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 232.

16 Cf. Eudoro de Sousa. História e Mito. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1981.

17 Cf. Agostinho da Silva. “Pensamento à Solta”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 174: E porquanto é à minha imagem darei ao homem por destino a liberdade. O texto original traz aspas como se tratasse do próprio discurso direto de Deus, referindo-se ao homem.

18 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”, p. 231.

19 Idem, ibidem, p. 231.

20 Cf. Agostinho da Silva. “Teologia Humana”, p. 232.

21 Para a idéia de tempo plenificado, cf. Agostinho da Silva. “Introdução a Regresso ao Paraíso, de Teixeira de Pascoaes”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 370: (...) talvez não venha a haver nenhuma distinção entre passado e futuro e presente, talvez que mortos nos sonhemos vivos/ talvez que vivos nos saibamos mortos. Talvez que sobre nós pese apenas uma fatalidade, aquela de que não sabemos ou não podemos soltar a nossa própria concepção de Deus: a fatalidade de ser livre.

22 De maneira que a eternidade já não é concebida como regresso ou acesso a um estado incompatível com a nossa historicidade essencial, mas como uma progressiva ampliação e enriquecimento ontológico dos presentes a viver, atra-vés da série infindável das suas renovações. Cf. Eduardo Abranches Soveral. “Agostinho da Silva: Um Homem de Deus”. In: Calafate, Pedro (Dir.). História do Pensamento Filosófico Português. Vol. V. O Século XX. Tomo I. Lisboa, Editorial Caminho, 2000, p. 278

23 Daí Agostinho atribuir um sentido íntimo e universal a Os Lusíadas. Para tal, repensa o mito da Ilha Para-disíaca, criando uma ficção na qual um estucador ébrio de vislumbres recebe o próprio Camões (figurando a secular e mística experiência portuguesa da vida), que retorna para exortar a todos a humildade que leva ao des-tino máximo, ou seja, ao homem pleno, ao vivo Deus, à união dos opostos/complementares, à ascensão aos céus após ter abraçado toda a Terra. Nesse sentido, o Espírito português representado pelo vate não teria regressado para tratar da viagem do Gama, ou da busca de uma Índia geográfica, senão para lembrar ao homem o desejo, e mesmo a sua vocação, de atravessar o Oceano de tempo e espaço ou o Oceano da alma em demanda de um além da objetividade, uma dimensão na qual tudo seria em simultâneo e para além da oposição aparências-aparições, eternidade-temporal, sagrado-profano, onde Deus e homem constituíssem a mesma realidade. Cf. Agostinho da Silva. “De Como os Portugueses Retomaram A Ilha dos Amores”. In: Dispersos. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989.

24 Se, por um lado, a reflexão sobre a manifestação do princípio de Liberdade conduz Agostinho a uma crítica à história, a ponto do pensador sugerir a abertura do seu regime exclusivamente diurno às profundezas abissais de sua realidade noturna, para que só assim então pudesse emergir como a mais excelsa aventura do Espírito pleno e plenificador, por outro, o mesmo problema o faz especular sobre a essência da criação e da arte, o que nos leva a crer que história e arte constituem dois aspectos de um mesmo problema fundamental em Agostinho.

25 Cf. Agostinho da Silva. “As Aproximações”. In: Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 37.

26 Idem, ibidem, p. 37.

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Teologia e mitopoiética da história em Agostinho da Silva Isaque Pereira de Carvalho

ResumoÉ intenção deste artigo proceder a uma reflexão sobre as concepções de Agostinho da Silva

acerca de Deus, homem e das suas íntimas e recíprocas comutações, buscando captar a

percepção do pensador luso-brasileiro a respeito do movimento histórico em sua dinâmi-

ca com a revelação/inspiração do Espírito, atentando para uma sutil e tácita intuição de

uma filosofia da história que, pretendendo promover a fusão dos opostos-complementa-

res e superar a separação entre sujeito e objeto, abriria uma via de encontro entre mito e

história ou entre o sagrado e o profano, culminando com a conjectura de uma apoteótica

realização de Deus no homem histórico e também o inverso, ou seja, do homem na di-

vindade.

Palavras-chave: Deus; Homem; Espírito; História; Mito; Presente Plenificado.

AbstractThis article aims to reflect on Agostinho da Silva’s conceptions of God, men and their

intimate and mutual commutations, trying to capture Agostinho da Silva’s perception

regarding historical movement in its dynamics with revelation/inspiration of the Spirit.

It also underscores a subtle tacit intuition of a philosophy of history which, intending to

promote the synthesis of opposite-complements and to overcome subject-object segre-

gation, would further the encounter between myth and history or between the sacred

and the profane, culminating with an apotheotic realization of God in man and also the

opposite, i.e., man in divinity.

Keywords: God; Man; Spirit; History; Myth; Plenty Present.

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O pensamento filosófico de Agostinho da Silva

João Ferreira*

O estudo do pensamento filosófico do notável luso-brasileiro George Agostinho da Silva (1906-1994) pressupõe o estabelecimento prévio de um corpus textual que dê ao elaborador do texto a matéria-prima necessária. Para dispormos de mais facilidade na prática da leitura, demos preferência aos textos apresentados pela edição da Âncora que, por ser uma coleta se-lecionada por profissionais da filosofia, ganha, de entrada, certa vantagem. Essa edição consta basicamente de dois volumes de textos e ensaios, onde estão reunidos os escritos mais significativos sobre o pensamento filosófico de Agostinho.1

Agostinho da Silva utilizou uma enorme variedade de gêneros de trans-missão e comunicação: cartas, aproximações, considerações, conversações, convergências, divergências, paradoxos, pensamentos à solta (com puzzle im-plícito), ajustamentos, conversas vadias, fragmentos, folhetos, folhas, glossas, ensaios, notas, parábolas, apólogos, projetos, artigos e um número sem-fim de originais criações, incluindo pensamento em farmácia de província, aliás, bem interessante. Assinados pelo ortônimo Agostinho da Silva e por variados hete-rônimos, os textos apresentam reflexões, axiomas, princípios, doutrinas, con-ceitos, mensagens. De uma forma geral, podemos dizer que não está no estilo de Agostinho da Silva escrever tratados ou exposições sistemáticos, nem fazer demonstrações silogísticas, como acontece com várias exposições dos filósofos clássicos apresentados pela história da filosofia. Agostinho caracteriza-se cir-

* João Ferreira nasceu em Agunchos, Cerva, Portugal. Veio para o Brasil em 1968 para assumir a docência no Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Brasília, por intermediação de Agostinho da Silva, nessa altura Coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses da UnB. Possui doutorado em Filosofia e Pós-dou-torado em Literatura Portuguesa. É atualmente Professor Titular aposentado da Universidade de Brasília. Prin-cipais obras publicadas: Presença do augustinismo avicenizante na teoria dos intelectos de Pedro Hispano. Braga: 1959; Existência e fundamentação geral da Filosofia Portuguesa. Braga: 1965; Uaná. Narrativa Africana. São Paulo: Global Editora, 1987; A Questão do Pré-Modernismo na Literatura Portuguesa. Brasília: 1996; A alma das Coisas (Poemas). Rio de Janeiro: Papel Virtual, 2004. Na área de tradução, foi coordenador de tradução, revisor e um dos tradutores do Dicionário de Política de Norberto Bobbio, Brasília: Ed. da UnB, 1986.

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cunstancialmente tanto pela exposição temática quanto pelas manifestações espontâneas de pensamento. E é desta forma que se torna acessível elaborar um mapa de conteúdos de natureza filosófica que representam sua visão de mundo e ideologia.

Agostinho era um entendedor profundo da filosofia clássica da Gré-cia e da Roma antigas. Lia, comentava, expunha, traduzia. Desde Pitágoras, Parmênides e Heráclito até Sócrates. Desde Platão e Aristóteles, íntimos de sua leitura, até aos doutrinadores do estoicismo e do epicurismo. Da Filosofia romana, conhecia em profundidade Cícero e Sêneca, traduziu o De rerum na-tura, de Lucrécio. Conhecia os filósofos humanistas. Nutria admiração espe-cial por Baruch Spinoza, judeu português, natural, segundo alguns biógrafos, de Castelo de Vide, emigrado para Amsterdão, na Holanda. Spinoza é autor de Ética, onde defende um sistema de visão panteísta do mundo, que agrada a Agostinho. É oportuno dizer, entretanto, que suas leituras são mais um con-tato, uma forma de diálogo. No fundo, Agostinho permanecerá sempre como um livre-pensador. Livre, porque postula para seu espírito a prioridade da inquietação, da reflexão e da meditação, independentemente dos sistemas e teorias presentes na história da filosofia.

Como cigano do mundo, Agostinho interpreta o pensar histórico hu-mano como parte de uma interrogação fundamental e universal, que é a in-terrogação sobre o mistério do universo. É por isso que a reflexão em seu iti-nerário filosófico não tem a condicionante do sistema desta ou daquela escola, deste ou daquele autor. Não é por conseguinte nem cartesiana, nem kantiana, nem husserliana, nem hegeliana. A tônica estrutural do seu pensamento é a tônica do espírito. Uma tônica itinerante, ontológica, religiosa, mística, que busca a essencial relação com Deus e com o sentido do mundo. Como seu homônimo Agostinho de Hipona, um pensador cristão de pendor platônico e intimista, Agostinho da Silva achará dentro de si e na peregrinação pelo mun-do as coordenadas de uma itinerância filosófica própria.

Quando falamos de itinerância filosófica própria, referimo-nos a coor-denadas próprias, fundantes: abertas, soltas, para que o espírito sempre ficasse livre para pensar, sentir, sondar, farejar, refletir, captar, formular, duvidar, in-dagar, interrogar, intuir, dizer, expor, propor, ouvir, dialogar. Agostinho não é um simples comentador e tem pouca inclinação a ser discípulo. Mas tem muita vocação e jeito para ser mestre. No fundo, é um postulador. Um propo-sitor. Cria doutrinas, teses e reflexões sobre o mundo. Por força presencial ou pela palavra falada e escrita, atrai ouvintes e leitores, faz discípulos, passando adiante sua doutrina. Tem luz e coloca-a no caminho dos caminhantes da filo-

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sofia. De uma maneira adequada utiliza a filosofia como reflexão e dá-lhe, em casos necessários, o estatuto de teorização. No fundo, não esconde que o exer-cício dialético em si e a cultura balofa e erudita de arquivo o aborrece. Atra-em-no por outro lado, o pensamento vivo e a sua função vital. De preferência, caminha na direção de uma filosofia antropológica e itinerante que nas trilhas dos modelos de origem se caracterizará pela busca de um sentido identitário binário, onde haverá, de um lado, um rosto voltado para o indivíduo que tenta encontrar seu lugar no mundo, e, de outro lado, um segundo rosto apontado para a identidade dentro do grupo cultural a que pertence.

Nesse sentido, a filosofia de Agostinho move-se funcionalmente como se fosse um instrumento ancilar. Função que é em sua essência uma função de serviço. Dito por outras palavras, a filosofia tem a função de ser um ins-trumento de sustentação dialética de atos culturais. Essa noção é utilizada por Agostinho para muitas tarefas.

Em termos de linguagem filosófica, sabemos que uma parte da expo-sição agostiniana é reflexiva, como se depreende de As Aproximações, de Só Ajustamentos e Considerações. Sempre uma reflexão típica, por vezes puxando para o anárquico, para o improvisado e até para o aleatório, mas onde o modus dialético se mostra irredutível a modelos alheios ao seu pensar. Em Sete cartas a um jovem filósofo, a base do diálogo de José Navarro com o amigo Luís – não obstante a presença doutrinária pagã e primitiva, carregada de espontaneísmo e naturalismo, à moda de Alberto Caeiro, que aflora aqui e ali –, é a de tentar estruturar a mente do discípulo, mostrando ao jovem que é pelo aprendizado da reflexão que se adquire uma experiência contra as ciladas da mente e se constrói um forte “núcleo interior” do qual emanam todas as reflexões fun-dantes da vida. O excerto a seguir ilustra bem o lugar que Agostinho dava à filosofia como reflexão: “Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não seus. Se o Criador o tivesse querido juntar muito a mim, não teríamos talvez dois corpos distintos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence”.2 A par da filosofia como reflexão, encontramos nele, também, a filosofia sonha-dora, utópica, subjetiva e idealista, que representa a parte mais central de seu espírito itinerante. Faz parte da filosofia utópica e sonhadora de Agostinho a conhecida doutrina do Quinto Império, que se manifesta nos arroubos mes-

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O pensamento filosófico de Agostinho da Silva João Ferreira

siânicos do sapateiro de Trancoso, em António Vieira e Fernando Pessoa e se esculpe abertamente em Agostinho da Silva.

Por outro lado, é indisfarçável a presença da brilhante parte retórica na teorização, nos discursos que levam à formulação de axiomas, aos princípios doutrinais e às justificativas ontológicas e existenciais. A teoria tem por fim a elaboração de princípios. E os princípios são de natureza fundante. Não temos dúvida de que também para Agostinho da Silva a teorização representou o lado básico de sua filosofia. Isto quer dizer que sem teorização não teria como expor seus argumentos nem como convencer seus leitores. Através da exposi-ção e da justificação teórica de argumentos, Agostinho conseguiu estabelecer os pontos de partida, as bases e os caminhos da própria doutrina e da própria ideologia.

Um aspecto muito importante que surge no conjunto dos textos filo-sóficos de Agostinho é o claro apelo do autor à prestação de serviços pela filo-sofia. Ou seja, Agostinho apela para o serviço ancilar que a filosofia deve pres-tar como sustentação dialética e argumentativa em circunstâncias especiais. É algo especial, parecido com aquilo que acontecia na Filosofia Escolástica da Idade Média. A filosofia era nesse tempo convidada a emprestar seus serviços instrumentais a favor da teologia. Era chamada por isso ancilla Theologiae, serva, de serviços alugados para a Teologia, a fim de que desse sua ajuda ins-trumental na elaboração dialética e apresentação racional da teologia.

No pensamento de Agostinho da Silva, a filosofia é aproveitada tam-bém como instrumentação de várias formas, como justificativa de ideal, como fundação pedagógica, e como instrumento de defesa de identidade individual e coletiva.

Em termos de cultura portuguesa, a filosofia aparece em Agostinho como ato fundante da identidade cultural portuguesa.

Agostinho mostra esta função instrumental da filosofia, ao exprimir a sua esperança de ver um Portugal renascido a partir de uma teoria portuguesa fundante, ou de uma verdadeira filosofia portuguesa: “No fundo”, diz Agos-tinho, “continuo a acalentar o sonho de ver a verdadeira filosofia portuguesa a comandar tudo isto e a partir daí ver Portugal a desempenhar um novo e importante papel no mundo.”3

Pela citação vêem-se a defesa e o aproveitamento da filosofia como ins-trumento dialético de equacionamento de princípios e de valores nacionais, ao qual se dá uma finalidade visível na cultura portuguesa.

Existe nas dimensões da filosofia como consciência do ser, como teoria e como busca de valores uma margem ampla para sabermos que na mente de

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Agostinho há também uma função pedagógica na filosofia, que é a de escla-recer, orientar, servir e doutrinar no que se refere à missão de Portugal. No contexto, a filosofia aparece como instrumento de recriação, de recuperação e de retorno aos arquétipos de origem.

São exemplos vivos desta defesa da filosofia como ato fundante da identidade portuguesa, a defesa do movimento em favor da exemplaridade da criança, lembrada como símbolo exemplar por ocasião de suas exposições so-bre as festas do Espírito Santo, próprias da antiga cultura portuguesa. A crian-ça seria o símbolo do caminho promissor de um reencontro com a autêntica identidade portuguesa, hoje fortemente degradada. Ir na direção da redesco-berta da identidade portuguesa é dizer um não à alteridade ou recusar-se a ser simplesmente o outro. Esta filosofia cultural retoma na sua genuinidade as teses centrais propostas pelo neogarretismo e por Teixeira de Pascoaes n’A Águia e na Renascença Portuguesa.

Ao colocar a filosofia como um instrumento hermenêutico da histó-ria, da cultura e do destino de Portugal, na tentativa de mostrar os caminhos da identidade portuguesa, Agostinho lança mão da fecunda idéia criacionista. Esta idéia é um não rotundo ao conservadorismo e um convite à reconstrução portuguesa no plano dos indivíduos e da nação. Na entrevista com Henryk Siewierski lança as bases deste criacionismo. Ao defender que “o mundo é algo que se esculpe”,4 Mestre Agostinho está trazendo para o debate um princípio renovador que passará a constituir uma linha de pensamento muito caracte-rística. Dentro dessa linha de pensamento, o homem passará, de igual forma, a ser entendido como algo que se esculpe, que se cria, que se faz. Sempre atento e renovador, Agostinho evita o tom pessimista do existencialismo de Sartre para quem “o homem é uma paixão inútil”. Para Agostinho, a vida é um ato de construção. Bem à maneira do mestre Leonardo Coimbra, que dizia que “o homem é um ser que se faz”, Agostinho defende o projeto de uma construção evolutiva do homem.

Esta idéia, na verdade, havia sido posta a circular em Portugal, mui-to antes, no tempo da Renascença Portuguesa, no período de 1912 a 1915. Seu mais destacado teórico havia sido Leonardo Coimbra, que a explanou, em 1912, em seu livro O Criacionismo. Mas foi partilhada por outros portugueses do tempo, especialmente por Teixeira de Pascoaes, líder da Renascença Portu-guesa, que deu a seus poemas Marânus e Regresso ao Paraíso um tom inteira-mente criacionista. Agostinho retoma a idéia e estende-a à hermenêutica da história portuguesa, tornando-a uma referência essencial em seu pensamento. O reencontro com a teoria dinâmica do criacionismo vem colocá-lo entre os

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O pensamento filosófico de Agostinho da Silva João Ferreira

pensadores vitalistas que se opuseram à dominação positivista, racionalista e intelectualista que havia caracterizado o fim do século XIX. Nessa altura, Niet-zsche havia tentado desmontar a polaridade do binômio bem-mal, e avança-do com a valorização do lado dionisíaco da filosofia da cultura, chamando a atenção para o aspecto da sensibilidade e da emoção. Com isso teve o mérito de mostrar que há, para além da razão, o mundo importante da sensibilidade e da emoção. Sua obra Assim falou Zaratustra passou a significar a defesa da expressão livre e leiga da filosofia. Todo o processo nietzschiano terá o rótulo de operação desconstrutiva de profundo alcance no Ocidente. A filosofia dá após Nietzsche uma virada antiintelectualista de 90 graus. Portugal está pre-sente também nessa virada. Graças também a Henri Bergson, que Leonardo descobre e divulga em Portugal. É a voz da filosofia vitalista ganhando terreno. Uma filosofia cujo fundo estará presente em Prolegômenos para uma filosofia não-aristotélica, de Álvaro de Campos. Estes conceitos vitalistas casam-se com as tendências portuguesas que buscam a renovação. Nesse espírito se encai-xam o neogarretismo, já em campo, o movimento literário do Porto e demais movimentos literários nacionalistas acompanhados de perto pelo genial mo-dernismo de Fernando Pessoa.

É importante dizer que este comportamento da filosofia portuguesa bem representada por Leonardo Coimbra e pela Renascença Portuguesa pas-sava a simbolizar as preocupações culturais do país. A doutrina criacionista de que “o homem é um ser que se faz” é uma tese revolucionária que se antecipa ao pensamento existencial europeu de Gabriel Marcel e Martin Heidegger e que irá repercutir. Assimilando este facho doutrinal do criacionismo leonar-dino, Agostinho, vai dizer em seu livro Só Ajustamentos, publicado em 1962, que “ao lado dos que acham o mundo inteiramente feito”, existem aqueles aos quais parece que o dito mundo se encontra em plena evolução.”5 “O mundo é algo que se esculpe”, acrescentará depois – como vimos –, em entrevista a Henrik Siewierski.6 Este princípio irá reforçar o preceito de que ao filósofo ca-be descobrir, guardar para si e para os outros “aquela íntima e última verdade que nas coisas anda”. Em sua principal linha, o discurso imaginativo, reflexivo e expositivo de Agostinho se manterá nesta rota criacionista, para defender e mostrar que o homem é uma construção de si mesmo.

Ao princípio criacionista convém juntar um outro princípio de pro-funda significação no universo filosófico de Mestre Agostinho da Silva. Esse princípio é o da concepção de vida como modo e como arte de viver e traduz-se na fórmula da philosophia ut ars vivendi.

A opção criacionista chamada para reformular todo um conceito de

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vida, passa a ser vista, desde agora, como um princípio fundante. Ou seja, o teor criacionista, como visão de mundo, passará a formar toda a base da filo-sofia de Agostinho, e a filosofia será vista, especificamente, como uma ratio vitae, como uma “razão de vida”. A propósito, não há melhor texto do que este, extraído do livro Considerações:

“Não seria mau que se tornassem a mostrar as almas e que a filo-sofia deixasse de ser apenas uma disciplina ensinável para voltar a constituir um engrandecimento e uma razão de vida; correria talvez melhor o mundo se escolas de existência filosófica agissem como um fermento, fossem a guarda da pura idéia, dessem um exemplo de ascetismo, de tenacidade na calma recusa da boa posição, de ale-gria na pobreza, de sempre desperta atividade no ataque de todas as atitudes e doutrinas que significassem diminuição do espírito, ao mesmo tempo se recusando a exercer todo o domínio que não vies-se da adesão. Velas incapazes de se deixarem arrastar por ventos de acaso, seguiriam sempre, indicariam aos outros o rumo ascensio-nal da vida, não deixando que jamais se quebrasse o tênue fio que através de todos os labirintos a Humanidade tem seguido na sua marcha para Deus. Seriam poucos, sofreriam ataques dos próprios que simpatizassem com a atitude tomada, quase só encontrariam no caminho incompreensão e maldade; mas deles seria a vitória final; já hoje mesmo provocariam o respeito.”7

Fica bem claro que, para Agostinho, a filosofia se justifica não como um exercício retórico ou como uma montagem dialética que teoriza abstrata-mente sobre o cosmos, mas passa a ser uma arte de fundação e de ajustamento de rotas para o homem em sua existência peregrina. Ela tende a encontrar um caminho de luz e de orientação existencial para o homem, a tornar-se consci-ência de um Dasein in der Welt.

A partir deste horizonte, a filosofia será considerada como uma ars vivendi, como uma forma de vida. Aliás, uma concepção que tem suas raízes na filosofia antiga. Vem desde Platão, passa pelos estóicos, por Filão de Alexan-dria, por Santo Agostinho e Boécio. É retomada por São Boaventura no século XIII, e depois por Pascal no século XVIII, por Maurice Blondel no século XIX e chega a Henri Bergson, no início do século XX. Como ars vivendi, a filosofia se transforma na busca adequada de uma justificação de um estilo de vida, e de uma sustentação para uma forma de viver. É, assim, um instrumento teórico-pragmático que o filósofo utiliza para construir sua própria vida.

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Em Sete cartas a um jovem filósofo, Agostinho apresenta algumas coor-denadas que mostram como ele entende a filosofia e o pensamento filosófico. Ao contrário dos “grandes criadores de sistemas de filosofia”, que considera “intolerantes e fechados”, Agostinho não coloca como prioridade importante conhecer os sistemas ou as doutrinas alheias, nem sequer mesmo construir uma filosofia com doutrinas próprias. Mais do que construir uma filosofia com doutrinas próprias, é importante construir uma vida com uma filosofia própria, como fizeram certos gregos e alguns hindus. Aproveitando esta maneira de encarar a filosofia, coloca uma interrogação ao jovem filósofo Luís, seu in-terlocutor das Sete Cartas: “Para que lhe servirá a você, diz, construir um sistema filosófico que não amadureceu dentro de si, e não fez corpo consigo, que você não tem de dar ao mundo, por uma obrigação que o excede (...). A glória pode esperar, podem esperar as recompensas, pode esperar o gosto de viver (...). Tudo pode esperar. Aguardemos pacientemente que em nós brote aquilo a que viemos.”8

Para Agostinho da Silva, aquilo a que viemos é certamente a tarefa de tentar sondar a natureza de nosso destino. Para esse esclarecimento, não dei-xam de ser importantes os esforços dos pensadores e filósofos antigos e mo-dernos, assim como as definições tradicionais sobre o que seja filosofia. Mas mais importante parece ser a atitude de Mestre Agostinho, ao questionar as fronteiras conceptuais do termo, desabilitando a radicalidade com que por ve-zes se reduz o campo da reflexão filosófica a conceitos de sistemas ou de rigor dialético e abrindo-o para horizontes vitais e existenciais com que o homem lida diretamente. Só pelo fato de ele ter buscado a filosofia como reflexão e como atitude de vida, já se nos apresenta como um filósofo de raiz.

Mas o que especificamente o caracteriza é seu discurso autônomo, sua postura dialética e questionadora sobre o sentido da vida e do mundo, sua de-fesa da liberdade de ser e de criar, uma utopia renovadora, sua fé inabalável no homem e no futuro da civilização lusíada, representada pelos povos de língua portuguesa.

Notas1 SILVA, Agostinho da. Textos e Ensaios Filosóficos I e II. Lisboa: Âncora Editora, 1999. Organização de Paulo Alexandre Esteves Borges.

2 SILVA, Agostinho da. Sete Cartas a um Jovem Filósofo. In: Textos e Ensaios Filosóficos I . Lisboa: Âncora Editora, 1999, p. 248.

3 SILVA, Agostinho da. A última conversa [entrevista a Luís Machado]. Lisboa: Editorial Notícias, 1995, p. 49.

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4 SILVA, Agostinho da. Vida conversável. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organi-zação e prefácio de Henryk Siewierski, p. 103.

5 SILVA, Agostinho da. Só Ajustamentos. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1962, p. 51.

6 SILVA, Agostinho da. Vida conversável, p. 103.

7 SILVA, Agostinho da. Considerações: Da Vida Filosófica. In: ____. Textos e Ensaios Filosóficos I, p. 94.

8 SILVA, Agostinho da. Sete Cartas a um Jovem Filósofo, p. 255.

ResumoExpõe-se neste texto o teor e a qualidade do pensamento filosófico de Agostinho da Silva.

Mostra-se que a tônica espiritual de Agostinho é itinerante, ontológica, religiosa e mística,

sempre carregada da relação contextual da cultura lusíada. Agostinho cria doutrinas, teses

e reflexões sobre o homem e o mundo. Mostra luz própria e coloca suas reflexões no ca-

minho dos caminhantes da filosofia. De maneira adequada, usa a filosofia como reflexão.

O grande destaque da natureza desta reflexão é a opção que Agostinho faz pela filosofia

como pensamento vivo, dando à filosofia a função de ser uma teorização para a arte de bem

viver. A filosofia de Agostinho caracteriza-se também como um instrumento ancilar, ou

seja, a filosofia é prestadora de serviços. Entre esses serviços, vemo-la como ato teorizante e

fundante da descoberta e exercício da identidade portuguesa e também como instrumento

pedagógico para orientação e doutrinação da missão de Portugal no mundo. Ao lado disso,

há textos que a colocam a serviço da hermenêutica da história e da cultura e do destino

de Portugal. Na tentativa de mostrar os caminhos da identidade portuguesa, Agostinho

recorre à idéia criacionista, mostrando que é o próprio homem que tem de abrir horizontes

para a construção de seus caminhos. Essa idéia criacionista era uma idéia preferencial que

seu mestre Leonardo Coimbra defendia desde a publicação de seu livro O Criacionismo

em 1912 e que mais tarde levou para a Faculdade de Letras do Porto. No decurso de suas

explanações opta pela filosofia como ato vital. A filosofia será por isso, no fundo, conforme

expõe claramente em Sete cartas a um jovem filósofo, acima de tudo, uma teorização básica

sobre a arte de viver – o que termina por ser uma adesão à tese da philosophia ut ars vivendi,

na seqüência de grandes outros mestres numa linha que vem desde Platão, seguindo adian-

te através de Santo Agostinho, São Boaventura, Pascal e Henri Bergson.

Palavras-chave: Pensamento filosófico; Filosofia como reflexão; Filosofia como

ars vivendi; Coordenadas fundantes da filosofia; Filosofia criacionista.

RésuméLa ligne thématique de cette étude c’est celle de présenter la pensée philosophique du

luso-brésilien George Agostinho da Silva (1906-1994). La recherche a eté basé première-

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O pensamento filosófico de Agostinho da Silva João Ferreira

ment sur les principes de la philosophie en générale, et puis sur la philosophie classique,

moderne et contemporaine, montrant surtout la pensée originale du propre auteur. On a

l’intention de montrer en quelle mesure la philosophie de Agostinho c’est une philosophie

de liberté, de théorie et d’action créatrice. D’une côté lui-même réivindique la philosophie

comme un acte de réflexion et de théorisation, et, de l’autre côté, comme un acte fondante

de la culture portugaise, une philosophie vitaliste et dernièrement comme une conception

de vie, comme une ars vivendi.

Mots-clé: Pensée philosophique; Philosophie comme réflexion; Philosophie comme

ars vivendi; Coordonnées fondantes de la philosophie; Philosophie créationiste.

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Subsídios para um perfil filosófico

João Maria de Freitas Branco*

Anteposta a interrogativa quem é ou foi Agostinho da Silva sempre tem havido a tendência de lhe corresponder recorrendo a um qualificati-vo, quando não único pelo menos capital: o de filósofo. E o que se aplicou ao homem desde logo se estendeu à obra. Bastará o elementar exercício de consulta das nossas enciclopédias ou dicionários temáticos para verificar o persistente uso desse qualificativo. A mero título de exemplo retenha-se o que nos é dito numa das mais recentes e insuspeitas publicações do género: o último volume do Dicionário de História de Portugal. Aí encontramos no artigo dedicado a George Agostinho Baptista da Silva (tal era o seu nome completo) a informação de ter sido ele “filólogo, filósofo e professor univer-sitário”.1 A reafirmação da qualidade de filósofo, uma vez mais, e em volume ainda fresco e de indiscutível exigência científica, é bem claro sintoma de uma consensualidade firmada. Essa caracterização unânime dos enciclope-distas, historiadores, jornalistas ou investigadores em geral tem sido larga-mente corroborada pela vox populi; nem outra coisa seria de esperar. Daí que por todos os cantos se oiça falar do filósofo Agostinho da Silva (sem George nem Baptista, como ele preferia) e de “filosofia agostiniana” – neste caso não a do santo teólogo de Tagaste, senão que a do bem nosso da Silva.

* João Maria de Freitas Branco é professor universitário, investigador científico do Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL), responsável pelo projecto Social Comunication of Science. Presidente do Ginásio Ópera e membro da Direcção da Sociedade dos Amigos da Razão, de que foi um dos fundadores. Foi membro da direcção da Sociedade Portuguesa de Filosofia. Trabalhou como investigador na Humboldt Universität de Berlim. Foi co-fundador e membro da Comissão Instaladora da Universidade Atlântica, integrando posteriormente o seu Conselho Científico. Pertenceu ao Conselho Científico do IPAM. Conferencista no âmbito português e internacional, produziu espectáculos e eventos artísticos. Nos últimos anos tem sido o dinamizador cultural do Espaço dos Sentidos, em Oeiras, onde coordena os ciclos de “Cinema Clássico” e “Ópera com Chá”. Tem dezenas de artigos publicados em revistas e jornais portugueses e estrangeiros. É também autor de programas de rádio e colaborador permanente da RDP Antena 2. Alguns dos títulos de que é autor: A problemática da materialidade na filosofia de Ravaisson, Editorial Inquérito, 1988; Dialéctica, ciência e natureza, Editorial Caminho, 1990; Pensar a democracia, Editorial Inquérito, 1994; O músi-co-filósofo, Juventude Musical Portuguesa, Lisboa, 2005; Agostinho da Silva: um perfil filosófico – Do sergismo ao pensamento à solta, Zéfiro, Lisboa, 2006.

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Perante tão generalizada e consensual opinião, solidamente impressa em livros conceituados, haverá algum motivo para dela duvidarmos? Creio bem que sim. E ao tratar-se do autor de Considerações talvez não nos deva surpreender ter a objecção a aparência de paradoxo: é que, quando ao próprio se antepunha a interrogativa que aqui nos serviu de ponto de partida, a res-posta de autocaracterização sempre divergiu do designativo consensual. Não me recordo de alguma vez ter lido um escrito de Agostinho da Silva em que ele se apresentasse ao leitor como filósofo; assim como no convívio directo que, por sua generosidade, tive o privilégio de manter ao longo de anos jamais o vi aceitar o rótulo de filósofo. Já o mesmo não posso afirmar da reacção oposta: em várias circunstâncias o vi denegar tal estatuto com firmeza suficiente para afastar a hipótese de mero pudoroso gesto de modéstia.

Não querendo evocar declarações proferidas no âmbito do convívio privado, recorro à citação de um texto público cuja relevância me parece con-tinuar a ser inversamente proporcional à atenção que lhe tem sido dispensada. Refiro-me à entrevista concedida em 1985 à revista Filosofia, publicação peri-ódica da Sociedade Portuguesa de Filosofia e que, do ponto de vista filosófico, talvez seja a mais importante de todas as que Agostinho concedeu (e a cuja concretização tive o gosto de não ter sido alheio, por efeito da minha então qualidade de membro da Direcção da S.P.F.).

Lê-se aí o seguinte: «Continuo interessado no grego, não pela filosofia, mas pela filologia. [...] sou um filologante, não um filosofante.» 2

Esta declaração é tanto mais significativa se considerarmos que emer-ge no contexto de um diálogo com filósofos e endereçado a profissionais da filosofia, membros da respeitável Sociedade representativa daquilo a que se poderá considerar o nosso meio filosófico.

E como na época estava ele a trabalhar numa obra de Nietzsche, tem ain-da o à-vontade de acrescentar, perante os olhos incrédulos dos senhores filósofos entrevistadores, o seguinte: «[Estou] muito mais interessado no extraordinário alemão do Nietzsche do que no seu pensamento.»

Neste contexto, parece-me interessante reler-se o parágrafo final de um dos mais lúcidos textos dedicados à forma como por cá se tem olhado a filo-sofia; trata-se de um dos escritos incluído em Considerações e tendo por título “Da chamada filosofia”:

«[...] existe, para quem se não sente com preparação e força para a filosofia, [...] um género humilde, de simples comentário, de nota à margem, um género despreocupado e de parca exigência em matéria de saber e de pensar: o considerativo, aqui presente.» 3

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Do que escreveu e disse pode estão concluir-se que o autor das Sete cartas a um jovem filósofo não se considerava filósofo. Vem assim, ele próprio, beliscar a serena consensualidade reinante em torno da caracterização do seu perfil intelectual ou profissional.

Esta constatação da existência de opiniões contrastantes entre o que autor pensa de si e o juízo de outros sobre ele não constitui prova de erro na utilização do qualificativo pelos enciclopedistas, historiadores e demais opi-nantes. A ideia de que a auto-observação sempre gera conclusões mais acerta-das é, como há muito sabemos, destituída de qualquer fundamento. Disso nos dá conta a história das realizações humanas nas vezes sem conta em que foi o olhar de fora que melhor perscrutou os contornos, a dimensão, a relevância, as implicações do trabalho do espírito e das obras.

O contraste de opiniões ou, se preferirmos, a paradoxal concepção da figura e obra de Agostinho da Silva que pretendi pôr em relevo não é questão menor. O seu capital interesse consiste em abrir caminho a um espaço de problematização e dúvida que talvez não por acaso tem permanecido virgem. Onde está – se é que existe – o filósofo Agostinho da Silva que o próprio dizia não ser? Quem tem razão? E se admitirmos que a razão está do seu lado, onde se gerou tão vasta ilusão dessa presença?

Quando é que se torna acertada ou recomendável o uso da designação de filósofo?

Numa primeira aproximação, afigura-se legítimo aplicá-la a todo aquele que realizou, em grau elevado, uma formação no domínio do clássico espaço disciplinar do saber filosófico, do mesmo modo que se rotula de mate-mático quem aprofundadamente estudou a ciência de Pitágoras ou de biólogo quem o fez no domínio da ciência da vida, ou literato ao que em substância se dedicou ao estudo da literatura e a «cultiva distintamente», como dizia Cân-dido de Figueiredo.

Analisado por este ângulo, difícil se apresenta a fundamentação do perfil de um Agostinho filósofo. A sua passagem pelas aulas de Leonardo Coimbra e Matos Romão foi pouco menos do que desastrosa. Do completo naufrágio apenas foi salvo pelo benévolo dez mínimo concedido, por especial favor, pelos Senhores docentes. E quem, como eu, o ouviu falar desses tempos de Faculdade sabe com que contundência, com que mordaz ironia e imenso humor citava o seu total desinteresse pela filosofia que lhe queriam impingir. Na entrevista dada à revista da Sociedade de Filosofia, para cuja importância agora tento chamar a atenção, é bem exuberante o grau de desmotivação no estudo das filosofias escolares:

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«[...] tive o Leonardo Coimbra como professor. Ensinava psi-cologia escolar, ou qualquer coisa de parecido, que me não interessou absolutamente nada, nem aquilo, nem a filosofia, ou outras matérias dessa natureza. Empenhava-me, sim, em estudar literatura e as minhas filologias. [...] § Reencontrei-o no 3º ano, ensinando história da filosofia medieval. [...] não consegui perceber nada daquilo e, como eu, os colegas com quem mais trabalhava no estudo das outras cadeiras. A certa altura, creio que quando se chegou aos universais, decidimos mesmo, irrevogavelmente, não entender e desinteressámo-nos de todo do que ia acontecendo nas aulas.» 4

Mas não nos iludamos: fora do espaço das enfadonhas aulas não dei-xou ele de frequentar os escritos dos grandes pensadores gregos, mesmo que sob a prioritária motivação filológica.

Com enfática ironia e com um humor sibilino temperado de pampli-nesca contenção facial – que bem lhe conheci – dizia ter concluído na Facul-dade de Letras do Porto a «formatura em liberdade». Foi de facto em outra “universidade” que Agostinho da Silva realizou a sua mais sólida formação filosófica, a saber: na “universidade” da travessa do Moinho de Vento, ou seja, em casa de António Sérgio. Nisso não foi o único. Da boca de vários outros ouvi repetidas vezes dizer ter sido essa a sua autêntica – por vezes única – uni-versidade. Mas também aí encontrou importantíssimo complemento forma-tivo em matéria de Liberdade. É facto que a convivência mais próxima com o filósofo-ensaísta já se tinha iniciado antes, em solo parisiense, numa altura em que este trabalhava para a Paramount e vivia na companhia de outros exilados portugueses num complexo de apartamentos mobilados na capital francesa. A aproximação dá-se, mais precisamente, quando o jovem Agostinho tam-bém decidiu ir viver para um desses apartamentos, passando à condição de vizinho de Sérgio. Porém, mais do que a proximidade geográfica resultante da situação de directa vizinhança o que desde logo reúne os dois é um conjunto de interesses comuns. São eles, fundamentalmente, a política – note-se bem – e a ciência.5 Mas o estabelecer de uma relação sólida, profunda e continuada com António Sérgio só vem a ocorrer mais tarde, depois do regresso de am-bos a Portugal, quando se dá a explosão do litígio administrativo no seio da Seara Nova, colocando em frontal oposição o grupo do Câmara Reys e o do Sérgio. Essa questiúncula administrativa acaba por provocar a saída de Sérgio da revista, de cuja direcção fazia parte desde 1923. Agostinho acompanha-o. É então que se passam a organizar reuniões semanais em casa do autor dos

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Ensaios. Encontros esses que vão funcionar como uma espécie muito peculiar de seminário universitário regido por um singular anfitrião.

Os estupendos Sábados sergianos, em ambiente reconfortado pelo chazinho que a Senhora D. Luísa nunca se esquecia de ofertar, eram de al-gum modo a materialização de uma tolerância intelectual, bem como de um ecletismo que, a meu ver, profundamente marcaram o seu intelecto. Ali, nesse espaço familiar, conviviam, orbitando em torno da poderosa mente de Sérgio, pessoas muito diferentes e até aparentemente incompatíveis; naturezas huma-nas muito diversas, que aí encontravam lugar para escutar pensamentos pro-fundos ou para poderem, de forma libérrima, opinar e confrontar seus pontos de vista com a “inteligência portentosa” do filósofo-ensaísta. No mesmo local e à mesma hora, num país empestado de mediocridade salazarenta, cruzavam-se seres tão contrastantes como o sempre contestatário literato Castelo Branco Chaves, o dostoievskiano, anarquista e ateu Pedro Nascimento, o então muito jovem crítico literário Álvaro Salema, o filantropo Fernando Rau, o próprio Agostinho com a sua privativa religiosidade e o seu “místico” mistério, e, natu-ralmente, essa massa central geradora do heterodoxo sistema gravitacional de espiritualidades. Isto para já não referir, independentemente deste grupo mais fechado, os católicos e ateus, os comunistas e socialistas, os poetas e cientistas, os escritores de variado perfil, os visionários, e sei lá quem mais que por ali, com maior ou menor regularidade, passava sob a humana forma de Piteira Santos, de Natália Correia, de Santana Dionísio, de Viana da Mota, de Maga-lhães Vilhena, de Mourão Ferreira, de Joel Serrão etc. 6

Em minha opinião foi aí que amadureceu em Agostinho o ecletismo, assim como a tolerância ideológica – traços marcantes, mas pouco referidos da sua postura intelectual que ele associava ao portuguesismo. Mas depara-mos aqui com um ponto central para a caracterização do perfil filosófico, bem como para a determinação dos limites do seu filosofar. Ser filósofo não é só possuir formação filosófica. É ser-se capaz de largar amarras e partir numa audaz aventura de espírito através da qual se arquitecta original edifício de pensamento. Estribado no saber pensar, bem como na atitude crítico-dubi-tativa, o filósofo autêntico é aquele que partindo quase sempre de uma única intuição central, a que Bergson chamava intuition originelle – «quelque chose de simple, d’infiniment simple, de si extraordinairement simple que le philo-sophe n’a jamais réussi à le dire», se bem que sobre ela disserte durante toda a sua existência7 –, é aquele que partindo dessa intuição abre novas alamedas de problematização e constrói de forma racional – metodologicamente clarifica-da, lógica, rigorosa, fundamentada – um corpus philosophicum, espécie de teia

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de inter-relacionações que concorre para a clarificação, para um goethiano fazer entrar luz. A autêntica filosofia é sempre gesto dissipador de neblinas, em que a essencial postura dubitativa é factor de dilucidação e não de seme-adura de mistérios insondáveis. Ora, o que acontece na obra de Agostinho da Silva é que o desenvolvimento do seu pensamento nunca chega a fazer emergir um genuíno corpus filosófico, um ideário filosófico autónomo. Há um pas-so essencial, no sentido da ascensão a um novo patamar, que nunca chega a efectivar-se. Há labor de sage, há ideação, mas não chega a haver Filósofo. Há condições essenciais que ficam por satisfazer. E se todo o verdadeiro filósofo é um sage, nem todo o sage se eleva ao nível do filósofo.

Ao defender aqui que o autor de As Aproximações nunca chega a ad-quirir a dimensão de autêntico filósofo não estou a denegar a existência de dimensão filosófica nos seus escritos. Claro que ela existe. O problema é que não basta a presença de ingredientes filosóficos, sejam eles temáticos, metodo-lógicos ou ideativos, para haver Filósofo. Existe filosofia na poesia camoniana, bem como na prosa e na poesia de Pessoa, nos romances de Virgílio Ferreira, na escrita de Herculano, Oliveira Martins ou Teixeira Gomes; mas não existe o Filósofo Camões, nem o Filósofo Pessoa, nem o Filósofo Alexandre Herculano etc. Porque em nenhum deles chega a haver um corpo consistente e original de pensamento filosófico autónomo, nem mesmo a obrigatória abordagem das chamadas questões filosóficas essenciais – de natureza gnosiológica e on-tológica. Mas estas ausências são facto que em nada diminui a grandeza de ne-nhum dos citados criadores literários. Desde logo porque a finalidade última do seu esforço era claramente de outra natureza.

Considere-se o núcleo do pensamento agostiniano, consubstanciado em noções como a de “paradoxo” e de “absoluto”. Escreve ele:

«Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só expri-me metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.» 8

«Nada se entende se não se entende que o todo e o nada são o mes-mo. O que é ter transcendido o entender.» 9

«[...] nada, para Deus, é isto ou aquilo, embora o possa ser para a trindade; tudo, para Deus, só é, se isto nem aquilo; [...] o Absoluto [...] dele se não pode falar.» 10

«De Deus nunca disse nada pela razão muito simples de nada poder dizer. Se em relação a Deus usar um qualquer tipo de linguagem, estou certamente a ofender o essencial.» 11

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Estamos perante uma forte actividade de pensamento denunciadora da pobreza das visões dicotómicas, da insuficiência de toda e qualquer doutrina, das limitações de toda e qualquer dogmática, e do apelo à consideração do to-tal Absoluto, alogus e metafilosófico – posto fora do alcance das filosofias. Mas onde fica a fundamentação de estar o total contido no paradoxal? Onde está a rigorosa caracterização do que se entende por paradoxo ou por paradoxia? Será que as dicotomias (ou conceitos dicotómicos) do intelecto são todas do mesmo tipo? Terão os pólos dicotómicos funções, valores ou pesos específicos equivalentes/iguais? Será a relação de opostos uma relação simples, estática e sempre do mesmo género ou terá ela múltiplas variantes autocomplexificado-ras em que se revelam distintos modos de oposição, de inter-relação, de cone-xão? Ao falar-se de dicotomia ou de oposição, estamos a considerar um proces-so ou uma relação de estática justaposição? Estamos perante uma justaposição mecânica de natureza a-histórica ou estamos, pelo contrário, a considerar a historicidade dos opostos, a sua dimensão temporal? Onde mora o esforço de sistemática teorização das asserções antes citadas? Onde está a fundamentação do alogus do Absoluto; do indizível, do impensável? Como se justifica a colo-cação da Verdade num plano metaracional, trans-racional, e, portanto, fora do alcance do esforço do filosofar? Note-se que esta tese ofende algo de essen-cial: um pressuposto do trabalho filosófico, uma disposição comum às grandes correntes do pensamento filosófico e, neste caso, também às do pensamento científico: o optimismo. Isto é, a convicção embrionária de que há algo a dizer e de que se pode dizer algo sobre as coisas; ou dito de outro modo, a admis-são da possibilidade de dilucidar e a negação da absoluta ininteligibilidade do Universo. Quando Agostinho da Silva introduz a sua noção de silêncio, fere esta essencial inclinação filosófica. Nem mesmo o radical silêncio kantiano em face do “em si” (ao númeno) é expressão de derrotismo cognitivo. O ser limitado não implica o ser limitativo. Ora, a apologia agostiniana do silêncio, fundada na convicção de que «é no silêncio que se aloja a sabedoria», passa a intervir como factor limitativo, entrando assim em conflito, talvez involuntariamente, com o carácter generoso de todo o esforço fundador do grande filosofar.

É a ausência de respostas satisfatórias para as exigências racionais e conceptuais consubstanciadas nas interrogativas acima enunciadas que tende a anular a presença do Filósofo. E neste sentido Agostinho tinha razão na sua constante recusa do designativo. É uma atitude de coerência e não um aceno de modéstia; modéstia, e essa excessiva, é sim ter pretendido arrumar a sua obra na prateleira do humilde género do considerativo – como acima se viu.

Quer então dizer que se lá na citada “universidade” da Travessa do

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Moinho de Vento Mestre Sérgio tivesse lançado nota e afixado pauta, se calhar lá voltaria a aparecer o aborrecido dez mínimo... Agostinho sempre disse que Sérgio não o considerava talhado para as filosofias. Via nele, antes, um espírito prático, virado para a acção – sendo provável que a inépcia do Mestre para as mais elementares tarefas do quotidiano o fizessem olhar com redobrada admiração as qualidades do jovem Agostinho nesse plano do agir concreto. A prová-lo parece estar esse gesto de, a dado momento, quando ambos estavam em Espanha, lhe ter confiado a missão de trazer para Lisboa os planos de uma revolução libertadora do seu Portugal. Uma das muitas revoluções concebidas por Sérgio e invariavelmente abortadas – também por razões a que não seria estranha a tal inépcia nem a ingenuidade de ter querido que o dito plano fosse trazido em papel bem legível, através da então pidesca fronteira separadora das duas pátrias peninsulares, na bagagem do pobre Agostinho e em tempo em que sobre este caía já forte suspeição política.

No contexto da questão aqui levantada o juízo de Sérgio é muito elu-cidativo. Penso que Mestre Sérgio compreendeu claramente que as preocupa-ções centrais do seu “discípulo” não eram de pura natureza filosófica, mas sim de diferente índole. Procurando sintetizar este aspecto da sua relação com o Mestre da “universidade” do Moinho de Vento, o visado disse com muita graça, na entrevista que tenho vindo a citar, o seguinte: «Em suma: Sérgio achava que eu, coisas práticas era capaz de as fazer, se a ocasião fosse a adequada; quanto às coisas teóricas, ele pensava por mim, e tínhamos o caso arrumado.»12

Mas no meio do fresco sentido de humor destas palavras corre-se o risco de deixar passar algo de essencial. Ninguém pode duvidar do alto apreço que o filósofo-ensaísta nutria pela singular capacidade do autor de Considera-ções para se ocupar das “coisas teóricas”. O próprio bom acolhimento sempre dado em círculo tão selectivo e tão densamente teorético como o do “grupo dos Sábados” constitui, só por si, prova dessa sincera consideração.13 A ques-tão, a meu ver, é que o anfitrião dos Sábados compreendeu que o pensamento teórico de Agostinho estava orientado para a acção organizativa e transforma-dora e não para a vida contemplativa. Se tenho razão neste meu interpretar, então sinto-me inclinado a acreditar que se António Sérgio estivesse entre nós e fosse levado a pronunciar-se sobre a existência do filósofo português Agos-tinho da Silva seria ele meu aliado na denegação de tal designativo. Em torno desta problemática não seria desinteressante fazer recair a interrogativa sobre a própria obra de Sérgio e procurar averiguar qual teria sido a resposta de Agostinho. Será que este reconhecia no autor dos Ensaios a figura do autêntico filósofo? A interrogativa levar-nos-ia a exceder o escopo do presente estudo;

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mas ainda assim não quero deixar de salientar uma opinião polémica que, mais para o fim da vida, Agostinho expressava sobre o seu Mestre da “universi-dade” da Travessa do Moinho de Vento, sem, no entanto, a fundamentar cabal-mente. Em seu entender, o pensamento filosófico de Sérgio contorna aquilo a que chamava “as questões de dúvida”, evitando assim o confronto directo com o mais essencialmente filosófico. Embora sempre se tenha referido ao nosso ensaísta como exemplo de pensador filosófico, esta opinião, mais tardiamente expressa, abre a porta a alguma reflexão de inegável pertinência. Penso, porém, que a forma de exposição ensaística adaptada, acrescida da grande variedade de temas de natureza não puramente filosófica tem alimentado ilusões. É que o discurso sergiano, situe-se ele no domínio da política, da análise social, da pedagogia ou da história, é todo fundado na filosofia e na pessoal resposta do ensaísta a algumas das questões filosóficas mais profundas. Ao não ter com-preendido isso, Agostinho revela-se contagiado por uma ilusão comum, que em outros momentos tenho procurado dissipar, e à qual por certo não é estra-nha a acentuada fragmentação dos escritos sergianos, bem como a diversidade temática de aparência extrafilosófica.

Mas voltemos a colocar a questão no espaço do pensamento agos-tiniano.

É claro que por trás da questão da justiça da aplicação de um designati-vo perfila-se uma dificuldade tão clássica quanto capital: o problema de frontei-ra. Esse a que Wilhelm Dilthey chamou das Wesen der Philosophie (a essência da filosofia). Se termos como filosófico, filosofia, filósofo tiveram significados distintos conforme a época e o local, como se pode classificar uma obra ou um pensamento dizendo que é ou não é filosófico? «Onde está o nexo interno [das innere Band] – a essência unitária da filosofia [das einheitliche Wesen der Philosophie] – que abarca formas tão díspares e acepções tão variadas do con-ceito da filosofia?» — interrogava-se Dilthey14 que, como é sabido, foi um dos pensadores que ao problema dedicou especial atenção. É essa indeterminação de fronteira que causa dificuldade. Mas no meio da complexa diversidade de definições e de procedimentos acabamos por ser capazes de, por via indutiva, determinar o que vai havendo de comum – o tal “nexo interno”. Não havendo aqui espaço para tão complexo e amplo debate, importa, no entanto, reter parte da conclusiva desse mesmo Dilthey:

«Na essência da filosofia mostrou-se uma mobilidade [Bewegli-chkeit] extraordinária [...]. Mas sempre víamos nela a mesma ten-dência para a universalidade [Tendenz zur Universalität], para a

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fundamentação, a mesma direcção do espírito para actuar sobre a totalidade do mundo dado. E sempre luta nela o traço metafísico de penetrar no núcleo deste todo com a exigência positiva da validade universal do seu saber. Estes são os dois aspectos que correspondem à sua essência e que a distinguem dos domínios vizinhos da cultura. Diferentemente das ciências particulares ela mesma procura a solu-ção [Auflösung] do enigma do mundo e da vida [Lebensrätsels].»15

Resta saber se a não-existência de um Agostinho Filósofo é sinal de in-capacidade intelectual, de menoridade espiritual, de deficiência metodológica, de imperfeição no exercício do pensamento e da reflexão, ou se se trata, pelo contrário, de opção voluntária desde sempre assumida. Tudo me parece sugerir a validade desta última hipótese. Agostinho simplesmente não quis ser filósofo de corpo inteiro. Por quê? Antes de mais, porque na sua óptica a edificação de um ideário filosófico – do tal corpus coerente – levá-lo-ia a ser do ortodoxo, impedindo-o de sintonizar com a essência do ser luso na proclamação de um singular preceito:

«Espero que Portugal venha a ser mais do que um país de filó-sofos. Que venha a ser uma pátria que tenha todas as filosofias como heteronímicas. Desejaria que cada português excedesse Camões na sua capacidade de ser platónico e aristotélico ao mesmo tempo.»16

E em outro passo deste mesmo discurso dialogante afirma o seguinte que bem revela a sua orientação e o seu peculiar ecletismo:

«[...] apoio-me muito nele [em Camões] para pôr a interrogação so-bre se essa não será a vocação filosófica do português: conhecer bem várias filosofias, várias maneiras de pensar e depois ir utilizando ca-da uma conforme as circunstâncias da vida. Com a versatilidade de comerciante e de conversante que me parece ser uma das caracterís-ticas do português.»17

Coisa que, como bem sabemos, ele próprio era...Mas qual é afinal a opção voluntária a que antes aludíamos? Qual é, ao

cabo de contas, o interesse capital, o problema central, base de toda a acção agostiniana – tanto no plano teórico como prático? Se lermos com atenção, verificaremos que toda a entrevista de 1985 à revista Filosofia se estrutura no

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sentido de afirmar perante os entrevistadores filósofos o seguinte: eu não per-tenço à vossa família; o meu terreno não é o da metafísica, mas sim outro. Qual outro? O da cultura. Agostinho da Silva foi fundamentalmente um pensador da cultura na rigorosa acepção por si próprio conferida a este conceito de com-plexa significação, isto é, o processo de melhorar a vida dos seres humanos.

«É esta a minha noção de cultura: tornar melhor a vida das pes-soas. Começar pela alimentação, pelo vestuário, pela saúde, pelo ensino.».18

A questão central a que Agostinho dedica todo o seu labor é então a de pensar bem as formas de organizar as sociedades de modo a garantir na prática, no plano da existência material e real, a efectiva melhoria da vida da pessoa huma-na. Esta orientação do interesse tem como suposto um estrutural optimismo de perfil estóico que trespassa toda a sua obra e em que a cada passo se sente esse viril, animante e contagiante Amor pelo universo – sempre advogado: «[...] estar no mundo, não basta e parece essencial que haja amor pelo universo.»19

Ora, pensar as formas de organização dos homens é o objecto de uma conhecida disciplina: a política – mas não na acepção superficial dos jogos partidários de poder ou de influência, que pouco ou nada lhe interessavam. Só que no vocabulário agostiniano política e cultura são termos irmanados. Daí que, de uma forma que aos olhos de muito boa gente parecerá exagera-damente exótica e que na óptica do reinante pragmatismo oportunista e da vacuidade ético-intelectual da classe política hodierna se apresenta como algo de simplesmente aberrante, o autor de Considerações tenha insistido em decla-rar que todo e qualquer governo, cá como em qualquer outro lugar do globo, deve ser dirigido pelo Ministério da Cultura. «Uma das desgraças de Portugal é que foi sempre governado pelo vedor da Fazenda, quando este deveria ser o simples caixa de uma empresa a dirigir pelo Ministério da Cultura.»20

Julgo poder-se então concluir que a obra de Agostinho é, no essencial, um continuado esforço de pensar a organização do mundo numa perspectiva genuinamente cultural (na acepção antes referida). É o próprio quem enfati-camente declara:

«[...] se algum interesse existe em mim, é o do político, o da organi-zação do mundo.»21

E não é impossível supor que se estivesse a referir a si próprio ao escrever nu-ma das suas considerações, intitulada “Sanderson of Oundle”,22 as seguintes

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palavras alentadoras, tão ao estilo de um espírito estóico e optimista como era o seu:

«Tudo vence uma vontade obstinada, todos os obstáculos abate o homem que integrou na sua vida o fim a atingir e que está disposto a todos os sacrifícios para cumprir a missão que a si próprio se impôs. Atento ao mundo exterior, para que não falte nenhuma oportunida-de de pôr em prática o pensamento que o anima, não deixa que ele o distraia da tensão interna que lhe há-de dar a vitória; tem os dotes do político e os dotes do artista, quer modelar o mundo segundo o esquema que ideou.»23

Eis o núcleo do afã agostiniano que, por via do contágio, se pretende ver derra-mado pelas gentes: desenvolver os dotes políticos e artísticos de modo a mol-dar o mundo, «colaborando [todos] no que podem e no que sabem para que a vida melhore», dando ajuda aos «que estão procurando libertar a condição humana do que nela há de primitivo».24

Em vez de se persistir em estudar um inexistente, de buscar um trata-mento agostiniano, denso e sistematizado, das questões filosóficas mais pro-fundas, parece-me dever-se realizar um estudo alargado e aprofundado que tenha por título algo como: “o pensamento político de...”, “a realização agosti-niana da cultura”; ou tão-só: “a política agostiniana”.

Aqueles que se oponham à minha declaração de inexistência do Filóso-fo Agostinho da Silva é provável sentirem-se tentados a esgrimir o argumento da forma. Ou seja, neste particular, da forma do discurso agostiniano que pela sua legítima fuga ao estilo de exposição sistematizada acabaria por gerar a ilusão de uma ausência, quando na realidade e ao cabo de contas o dito corpus philosophicum está lá – sempre esteve –, mas expresso sob a forma aforística, alegórica, recorrendo, quando apetecível, à imagem poética ou à fantasia e ilu-dindo assim a rigidez da sistematização conceptual dos racionalismos duros. Bastaria o caso do insuspeito pai do racionalismo para sabermos ser possível e até legítima a escolha de formas expositivas diversificadas para comunicar admiráveis e densos conteúdos constitutivos dos mais preclaros ou sublimes monumentos de pensamento filosófico: não é esse grandíssimo Platão quem nos momentos cruciais do seu filosofar interrompe o discurso de sistematiza-ção racional para contar um mito – servindo-se do não-racional como factor de edificação do sistema racional? É indesmentível que desde seu caraman-chão, em recuados tempos ditos pré-socráticos, não necessitou a filosofia de

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revestir a rígida forma de sistema para poder ser filosofia de excelência. Ilus-tríssima prova disso encontramos nos fragmentos de Heráclito, no Poema de Parménides ou, em tempos menos remotos, na virilidade sanguínea da prosa de Nietzsche. Mas o que importa percepcionar é que em todos eles, diferente-mente do que ocorre na obra do nosso Agostinho, os aforismos, as alegorias, o recurso à imagem poética, o jogo das emoções ou das paixões jamais amortece a presença da rigorosa fundamentação racional, da cuidada e aprofundada problematização das grandes questões, a geometria da ideação, a harmonia ou ordem da concatenação das ideias, a consistência lógica do discurso, a precisão conceptual (aparelhagem conceptual), o élan de concretização do juízo objec-tivo por intermédio do metódico olhar dubitativo, crítico, perscrutador, des-mistificante, não preconceituoso, tudo isso em sintonia com um permanente esforço de dilucidamento.

É como em certas construções de ousada arquitectura vanguardista onde num primeiro olhar nos é deixada a impressão de total inexistência de estrutura sustentadora, qual arquitectura monumental expurgada de enge-nharia. Só que de facto esta está lá, porventura ainda mais estruturalmente betonada do que em outras construções de mais geométrica ou compacta apa-rência. Até mesmo o obscuro de Éfeso, Heráclito, só o é na aparência resultante dos primeiros olhares descomprometidos. Pois todo aquele que se lançar ao esforçado estudo dos fragmentos constatará a presença, em lugar da aprego-ada obscuridade, do mais cristalino pensamento, onde a cada novo passo a penumbra cede lugar à forte claridade.

Há um equívoco gerado em torno dos escritos de Agostinho da Silva que urge desfazer: refiro-me ao que emerge entre a forma do discurso – o estilo do dizer – e o conteúdo ideado. O autor de Conversação com Diotima serve-se constantemente de elementos presentes no seu meio ambiente histórico-cul-tural. Em vez de conceitos rígidos, lexicalmente bem definidos, prefere ele re-correr ao símbolo, à imagem poética, ao mito; coisas que vai colher nos jardins da sua paisagem cultural: sejam elas os mitos bíblicos, elementos cabalísticos, lendas populares ou fantasias poético-literárias. Quando alude a episódios da história pátria, não o faz com espírito de historiador, mas sim com a vontade de enriquecer o discurso, tornando-o mais sugestivo, mais contagiante. Daí que seja descabido comentar tais escritos numa perspectiva rigidamente histo-riográfica, denunciando eventuais imprecisões. Proceder desse modo (atitude que em demasia se tem visto ser assumida por alguns estudiosos) é estar a criticar uma coisa, tomando-a por aquilo que ela de facto não é. O mesmo acontece com a vertente literária: quando Agostinho refere conteúdos poéticos

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ou literários, em geral, não o faz vestindo a capa de historiador da literatura, nem de crítico literário, fá-lo como pescador de imagens sugestivas, de histó-rias várias, mais ou menos fantásticas, que de alguma maneira tornem o dizer mais atraente e, desse modo, mais capaz de servir os objectivos a que se propôs que não são os de fazer história, crítica literária ou algo afim. A intenção é pôr em marcha a força sugestiva de certos episódios que são pertença de uma memória colectiva. Se tivesse sido chinês, indiano ou árabe, ter-se-ia socorrido de outros elementos para tratar o mesmíssimo problema em que centrava o essencial da sua atenção: o da organização do mundo. Este tipo de equívoco, patenteado em alguma prosa supostamente dedicada ao estudo da obra agos-tiniana, gera-se na base de uma acentuada incompreensão da natureza essen-cialmente política (politológica) do discurso visado. Do desconhecimento da natureza da sua acção como intelectual e cidadão.

Mas isso que aqui designei de actividade de pescador de imagens (re-ligiosas, mitológicas, simbólicas, históricas, esotéricas etc.) não implica irra-cionalismo, esoterismo, misticismo. Algo semelhante fez o insuspeito Platão, a quem ninguém se lembrará de acusar de falta de racionalidade. E, ao voltarmos a evocar a figura do grande ateniense, será útil não deixar de notar que no seu filosofar a preocupação política é tão intensa como no discurso do nosso Agos-tinho. Talvez tivesse sido a apercepção dessa característica que o levava a confes-sar ser a dimensão de dramaturgo o que mais o fazia enamorar-se de Platão.

O discurso agostiniano não nos projecta para um plano meta-munda-no. Bem pelo contrário, a convocação de elementos religiosos, míticos, lendá-rios é convite explícito a um agir mundano, a uma acção prática. E como de homens se trata, sabemos da lição aristotélica ser esse agir, em última instân-cia, algo que comporta em si uma necessária dimensão política.

Se alguma razão me assiste no ajuizar da inexistência do Filósofo de corpo inteiro, em que medida se poderá falar de influência sergiana? Pôde alguma vez existir entre o autor de Pensamento à solta e o autor das Cartas de problemática uma relação discípulo/Mestre, no plano filosófico que aqui nos ocupa? Poder-se-á afirmar ter sido Agostinho discípulo de Sérgio?

No sentido em que Aristóteles o foi de Platão, certamente que sim; ou, mais a propósito, no exacto significado sergiano de discípulo, esse que tão bem o ensaísta definiu em uma excelente página de virilidade filosófica antidog-mática que os seus distraídos conterrâneos teimam em ignorar e que serve de abertura à 1ª edição do Tomo II dos Ensaios; é ela directamente endereçada aos jovens, e se vivêssemos em país com outro nível de cultura seria certamente, e desde há muito, texto obrigatório nas nossas escolas.

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«[Não] te requeiro adesão a qualquer teoria, a qualquer partido, a qualquer fé. Só busco excitar o teu pensamento: porque pensar, como sabes, não é crer; crer, na maioria dos casos, é até a melhor maneira de não pensar. Por isso mesmo considerarás o livro uma es-

pécie de instrumento de libertação [...]; se és um espírito –, mete-te à vaga corajosamente, e deita o meu tomo pela borda fora logo que te sintas entre mar e céu.»25

Por seu turno, e na mesma linha de pensamento de Sérgio, mas de forma ainda mais enfática e, quase diria, provocatória, Agostinho dizia: «São meus discípu-los os que estão contra mim.» Afirmação que na sua radicalidade prática não deixa de conter algum perfume aristotélico.

O papel do Mestre não é converter o discípulo a um ideário nem en-cerrá-lo numa hoste qualquer; a irmandade, a escola ou o partido em que se serve é coisa secundária – isto na visão de António Sérgio que depois Agosti-nho irá radicalizar, como a seu tempo veremos. Importa sim ser-se apurado, ser-se elevado (intelectual e moralmente). Uma posição, esta, que está longe de ser incontroversa. Escondem-se aqui duas questões: a de saber até que ponto Sérgio foi fiel a este seu afirmar; e outra, mais complexa, que consiste em in-dagar até que ponto é tão indiferente, como Sérgio afirma, a hoste em que se serve. Será que todas as irmandades (para utilizar termo anteriano) têm igual mérito? Não dispomos nós de meios capazes de avaliar, com alguma objectivi-dade, da menor ou maior correcção de uma hipótese ou de uma tese? Por mais culto e elevado que se seja, parece-me empobrecedor servir em hoste menos excelente. E no fundo talvez a elevação não possa andar assim tão desirmanada do partido (em sentido amplo) em que se escolheu estar. Ao que se me anto-lha, há hostes em que difícil se torna imaginar poder desenvolver-se alguma elevação. Mas isto é tema para outro ensaio.

No escrupuloso respeito da orientação do Mestre, e coerente com o seu próprio eu-essencial, Agostinho nunca foi nem poderia ter sido um prosélito do sergismo, nem um mero continuador passivo do seu ensaísmo filosófico. No entanto, a verdade é que o magistério sergiano se faz sentir em muitíssimos passos da sua obra. São de nítido recorte sérgico passagens como estas recolhi-das de forma aleatória no vol. II dos Textos e ensaios filosóficos:

«Como se fazem encantamentos rituais para desassombrar casas, a História devia servir para isso mesmo, para, estudando-a, nos desas-sombrarmos do passado naquilo que ele já teve de superado».26

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«[...] um esforço não só para a clareza, a plenitude de visão, a intui-ção das ideias, mas, ainda mais, para as integrar no próprio teor da vida. Quem supõe que os que pensam, que os que procuram diluci-dar um universo que se lhes apresenta confuso são como se costuma dizer frios, puramente objectivos, académicos no mau sentido, com-pletamente se engana: quem pensa como se deve é tão ardente, tão apaixonado, tão vivamente entregue a um impulso como um mouro em razia».27

«Só existe governo exterior a nós porque temos preguiça de nos go-vernarmos a nós mesmos.»28

«[...] tenho para mim que a confusão é um dos pecados mais graves».29

Outro essencial ponto de convergência radica na comum convicção – tão con-trária ao tradicional sentir dos nossos intelectuais – de que não se pode construir filosofia sem educação científica profunda e sem sólida informação sobre os re-sultados do trabalho de pesquisa científica.30

A conclusão de inexistência do Filósofo Agostinho da Silva de modo algum acarreta a negação de um legado filosófico agostiniano, nem mesmo a inexistência de substancial dimensão filosófica no conjunto da sua obra. Falta, porém, caracterizar o verdadeiro perfil filosófico da sua intervenção escrita e oral.

Como espero ter mostrado, esse perfil não deriva de um stock de pen-samentos solidarizados num corpo filosófico, com cabal travejamento das concepções – como Sérgio estimava dizer; nem resulta da subsistência de um trabalho de aprofundada teorização em torno das grandes questões de índole filosófica – ontológicas, gnosiológicas, lógicas, metafísicas, estéticas, éticas ou axiológicas –, com a indeclinável tendência para a universalidade, para o «actuar sobre a totalidade do mundo dado» e para a penetração no núcleo do todo em que Dilthey reconhecia a essência da filosofia. Não há, repito, autêntico ideário filosófico, um corpus philosophicum minimamente estruturado.

Do meu ponto de vista, o verdadeiro legado filosófico de Agostinho da Silva, valiosíssimo legado, consiste na apologia de uma atitude de espírito, de um modo de pensamento: o pensamento à solta.

Mas em que consiste essa atitude de soltar o pensamento? Significa legitimar todas as possibilidades, todas as hipóteses, todos os esforços de re-flexão, independentemente da orientação, independentemente de quaisquer

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imagináveis pontos de chegada. Importante é o caminharmos incontáveis ca-minhos possíveis. Fundamentalíssimo é tão-somente a permanente abertura ao possível. A todas as possibilidades: «O mundo tem tantas possibilidades que até o impossível é possível».31

Na base da noção de pensamento à solta está uma indeclinável crença no valor supremo da liberdade do pensamento que nenhuma ameaça de he-resia deverá limitar.

«[...] nenhum impedimento deve ser posto ao livre curso do pensa-mento nem à sua expressão, para que se evite acima de tudo o perigo da ditadura.»32

Agostinho sabe que travar o passo ao pensador, limitar, por pouco que seja, a sua liberdade de movimentação, conduz inexoravelmente à doutrina, isto é, ao óbito do pensar (no sentido forte do termo, do ser espiritualmente criativo), à perda da sua «vocação provocadora» — criativa, inovadora. Aí ger-mina a insuportável rotina.

Aqui se estriba a sua visceral antipatia pela Escola. «Sou contra a peda-gogia», dizia. Por quê? Por ela reduzir as possibilidades do caminhar: se abre caminhos, fá-lo à custa do encerramento de outros, proclamando impossibi-lidades, erigindo impedimentos ao livre curso do pensar. E sem pensamento solto não há possibilidade de cada um ser aquilo que autenticamente é. Era este mesmo desagrado em face da Escola real que o fazia estar mais perto de Espinosa do que de um certo Platão – o que inaugura escola.

«O grande gesto de Espinosa consistiu, a meu ver, em, quando con-vidado a ensinar filosofia, recusar. Teria percebido que a filosofia, quando se torna em educação, perde a vocação provocadora para se converter em doutrina.».33

A inexistência de pensamento à solta é causa do que chamava “pecado con-tra o Espírito Santo”. É a anulação do imprevisível na alma de cada ser hu-mano. Eis o ponto nodal da convergência com Pessoa. O Poeta era o modelo do homem incapaz de cometer o pecado contra o Espírito Santo. Era o im-previsível, ou seja, o que jamais anula em si uma possibilidade de ser. É neste contexto de problematização que melhor descortinamos a função da ideia de Deus ou do divino (como por vezes preferia dizer) no seio do discurso de alguém que deve ter sido, em absoluto, o não crente que mais vezes usou os

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termos “deus”, “divino”, “divindade”. A análise atenta e aprofundada conduz-nos a um pensamento cristalino mascarado, como em Heráclito, de uma obscuridade aparente.

«É o Espírito o que une Pai e filho, dos quais vêm tudo o resto, como criação da redenção; é o Espírito o traço comum de sujeito e objecto por onde se estabelece todo o diálogo; é o Espírito a fonte indefinível donde a vida pode fluir sob quaisquer formas.»34

A aproximação de Deus é fuga ao pecado do Espírito Santo. Porque Deus é o Espírito Santo; mas expurgado de toda a religiosidade tradicio-nal e institucionalizada, de todo o misticismo comum. Ele é tão- somente o símbolo profano da possibilidade do fenómeno Pessoa. O indivíduo que logra alcançar a diversidade/pluralidade de que Pessoa é modelo torna-se naquele capaz de ser, com máxima autenticidade, tudo o que é (realiza-ção completa do eu-essencial); adquire então as condições para passar a ser factor de transformação, agente de uma nova reorganização munda-na dadora de cultura. É o verdadeiro instrumento da utopia política de Agostinho.

A não-submissão do Absoluto – o tudo do todo – ao verbo em nada obstaculiza o projecto político e o optimismo (de acção e já não de contem-plação gnosiológica) que o inspira. A metamorfose do homem em poeta à solta é condição necessária (mas talvez não suficiente) para a concretização de um projecto político: «Procurem qual é a economia, qual é a política, qual é a metafísica que lhes permitirá ser vários e ser, sobretudo, gente».35

Sendo justa a interpretação agora avançada, não se poderá deixar de estranhar que certos amantes da conservação, políticos de profissão ou não, tanto se tenham enamorado deste Agostinho fazendo-lhe demorada-mente a corte.

«Não afastes, pois, o meio que te pode conduzir à liberdade plena [...]; que nada haja por fim fora de ti senão como sonho que pode-rás sonhar quando quiseres, como um jogo que elevas ou derrubas à vontade; aprisiona o teu Senhor e o conselheiro que em mim te surge na fina tarde com a lei que tiveres inventado e sê tu livre; sub-juga depois a própria lei, concebe-a como figura do sonho ou como pedra do jogo; e então, ó Eva, te largarás a todos os espaços e, batidos os deuses, serás Deus.».36

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Numa época como esta nossa, actual, em que tudo parece investir-se para fazer com que as pessoas não pensem e em que triunfa na ribalta social o pres-tidigitador de ideias, o “intelectual” fingidor, exímio simulador de pensamentos nunca pensados, de ideias nunca construídas, de raciocínios ocos, de teorias vir-tuais, de words without thoughts,37 neste curioso tempo coetâneo em que se enal-tece o valor da aparência do que se é em detrimento da afirmação audaz daquilo que se é de facto, do tal eu essencial; e em que, para maior despautério, se incute no cidadão a ideia das deliciosas vantagens de se desistir do esforço, sem se en-tender, tragicamente, que «a grande diferença entre o inteligente e o estúpido [...] é que o primeiro se esforça»;38 neste perigoso tempo de exuberante decadência moral e intelectual (mau grado o progresso científico-tecnológico), afigura-se-me difícil deixar de reconhecer a importância da mensagem agostiniana; a sua actualidade e valor na acção contrariadora do triunfante vazio lipovetzquyano. Urge sufocar a mediocridade à solta, antepondo-lhe pensamento à solta.

Na férrea determinação de evitar o pecado contra o Espírito Santo, bem como na correlativa atitude de estóica defesa das condições que garantam não haver impedimentos ao livre curso do pensamento, nem à sua expressão, Agos-tinho da Silva assumia uma atitude prática radical, de tipo nunca por mim vivenciado junto de qualquer outro pensador meu conhecido. Testemunhei al-gumas vezes a confrangedora situação em que alguém, seu interlocutor do mo-mento, largava monumental dislate. Em vez de se agitar ou de lançar enfurecida réplica ao estilo de António Sérgio, Agostinho limitava-se a largar, sem percep-tível alteração de tom de voz, um lacónico – mas por vezes delicioso – “pois é...” E logo prosseguia o discurso. Outras vezes, perante sugestões de aberrante apa-rência dizia: «É uma hipótese..., talvez seja divertido explorá-la para sabermos o que dará.» Para si, o importante era nunca encurtar o leque dos possíveis. E assim convivia com grémios rivais sem que isso significasse confusão de valores ou amorfismo ideológico, e, menos ainda, cobardia intelectual. A sua relação ideológica com o chamado “grupo da filosofia portuguesa” deve, na minha óp-tica, ser analisada tendo em consideração esta forma de proceder, sob pena de não se chegar a entender nada sobre essa coabitação que algumas vezes pare-ce ser contranatura. Mas o essencial desta forma de estar clarificou o próprio, oralmente, a encerrar a tal conversa com os Senhores da Sociedade Portuguesa de Filosofia;39 e fê-lo desta bela forma cheia de encanto e poesia:

«Medo tenho eu do ortodoxo e do heterodoxo, que me coibiriam de fazer algo que muito me agrada: poder conversar com pessoas de vários pensamentos, várias atitudes, com a capacidade de as

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entender em si mesmas, sobretudo quando alguma me aparece com sinal inteiramente contrário ao meu. Quem sabe se precisa-mente esse, que alguém diria ser enviado do diabo, não é um dos disfarces do divino?»40

Evitava integrar barricadas, não por falta de convicções, senão que por envolver isso a destruição de outras barricadas opostas, minguando o espaço para a livre manifestação do possível.

Ora, importa assinalar que este procedimento intelectual contém ris-cos graves a que a obra e o homem não têm escapado incólumes.

O risco consiste em vermos ser subvertido em praça pública o signifi-cado da noção agostiniana de pensamento à solta. Coisa que de imediato de-teriora o seu perfil de pensador, retirando-lhe, ao mesmo tempo, aquilo que sempre considerei ser o seu maior legado de natureza filosófica. É que tal como Liberdade não se pode confundir com libertinagem, também o soltar do pen-samento não significa libertinagem intelectual, nem arbitrariedade ideológica. Não é desorganização mental, não é confusão, não é abertura ao palavreado balofo, à pseudofilosofia de líteras – eternos tementes à “frialdade” ciência que para eles não chega a ser cultura, precisamente por teimarem em considerá-la fria, seca, pobre, destituída de beleza e da riqueza das emoções humanizantes.

Soltar o pensamento não é, nem pode ser, sinónimo de confusão ou anarquia mental de valores. As ideias, os pensamentos, as teorias filosóficas, os ideários não valem por igual. Há bons e maus, medíocres e sublimes. A apologia da Liberdade, o dar livre curso ao pensamento, é sim instrumento de clarificação racional, esforço desmistificador, anti-preconceituoso, factor de dilucidação através da polémica leal e do diálogo franco e libérrimo; é um meio de cultivo do rigor analítico, do sério aprofundamento crítico das ques-tões. Resumindo: o que a atitude filosófica agostiniana não é, de modo algum, é aquilo a que Georg Lukács chamou die Zerstörung der Vernunft (a destrui-ção da Razão) expressão com a qual titulou um dos seus mais notabilizados livros. Constitui, portanto, uma violação do seu carácter essencial, e por isso mesmo algo que se deve considerar inaceitável, a tão comum tentação fanta-sista – espécie de voga filosofante – de fazer de Agostinho da Silva um apósto-lo do nevoeiro nacional, romeiro do irracionalismo saudosista de sabor mais ou menos sebástico, defensor do irracionalismo retrógrado e militante do apostolado dos mitos lusitanos. Por isso, também o fazer do nosso Agostinho uma referência da filosofia pátria – ou, pior ainda, um partidista ou espécie de prelado disso que uns tantos baptizaram de “filosofia portuguesa” – ofende

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gravemente o carácter da atitude que aqui evidenciei como sendo o traço es-sencial do seu perfil filosófico de autor e de homem. Embora arriscando gesto de alguma deselegância, se bem que honestamente motivado por exclusiva in-tenção de dilucidamento, cito aqui um pouco conhecido e detectável texto de Agostinho da Silva generosamente dedicado a obra de minha autoria, na qual critico a ideia de existência de uma «profunda e sublime filosofia» portuguesa (como anunciava Álvaro Ribeiro); texto esse em que volta a afirmar-se o seu apreço por Espinosa (inclinação que compartilhava com António Sérgio),41 ao mesmo tempo que inequivocamente se revela a sua posição em face da referida “filosofia portuguesa”. Note-se na preocupação de separar a qualidade humana dos mentores da “filosofia portuguesa” do efectivo valor do produto intelectual do seu esforço. Aí se lê o seguinte:

«[...] não importando nada [que] os golpes críticos do texto42 vão atingir a chamada “filosofia portuguesa”, elaborada por tantos e tão excelentes portugueses, mas de tão fraca tecitura filosófica43. Esqueci-dos nós todos de que filosofia portuguesa só houve verdadeiramente a de Spinoza,44 quer na navegação para a verdade, com a observação exacta de todas as latitudes e longitudes, quer no desembarque na vida, em que às vezes, como bom português, foi o filósofo incoerente com o que pensava.»45

Para que não restem quaisquer dúvidas quanto ao genuíno carácter da atitude intelectual de Agostinho da Silva o que se deve fazer é sempre o mesmo: ler com cuidada atenção o que ele de facto disse. E o que disse foram coisas como esta contida numa das Considerações bem significativamente inti-tulada “Da chamada filosofia”:

«Há ideias mais lusas do que outras; [...] das mais ricas em lusismo a de certas construções filosóficas que vão andando cada vez mais em moda. Tomou-se a filosofia como um entretenimento literário, co-mo uma divagação [...]. De modo que a união destas duas correntes, a que mana de si próprias e supõe a filosofia um ramo de literatu-ra de magazine e a que provém dos leitores e olha a filosofia como uma actividade em que são permitidas todas as fantasias e combina-ções obscuras, tem levado alguns moços com vocação de pensador a abandonar os únicos caminhos seguros, a desprezar toda a espécie de preparação séria, a lançarem-se, com plena confiança na ignorân-cia sua e alheia, numa retórica dia a dia mais oca e desonesta.»46

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Seria possível e porventura até pertinente averiguar da objectiva res-ponsabilidade dos criadores de filosofias que não revestem a forma de sistema na proliferação da actividade em que todas as fantasias e combinações obs-curas são toleradas. Caso de extrema exuberância é o da relação de Nietzsche com os nietzschianos. Parece-me a mim haver algo de semelhante no caso ver-tente, sendo que talvez não fosse desinteressante promover um estudo com-parativo. Seja como for, mesmo sem resultados dessa eventual indagação, não parece difícil adivinhar que uma filosofia de figurino não sistemático (ou seja, que não se perfila como sistema teórico mais ou menos fechado) esteja mais exposta à acção dos sedutores galãs da filosofia de magazine, sempre ávidos de entretenimento galante e prontos para o divertido jogo das filosofices em torno de apetecíveis formas – formas, neste caso, mais espirituais do que carnais.

Mas ainda com o mesmo propósito de não deixar dúvidas, leia-se ain-da mais este naco de prosa agostiniana retirado do Diário de Alcestes (publi-cado em 1945):

«É frequente levantarem as almas sensíveis as suas acusações contra a ciência e apresentarem como prova de vida em mais altos planos a sua repugnância por uma actividade que denominam fria e por um resultado que lhes despe o universo de toda a variedade, de toda a riqueza, de toda a beleza; o claro mundo inteligível aterra-os como um não-ser; a geometria ou a física (no que não tem de pitoresco) só podem interessar os espíritos secos e fechados; em outros climas devem viver os palpitantes, os generosos. [...] o amor da ciência, a compreensão do que ela encerra de mais sublime que todas as estátuas e todos os poemas só podem vir do seu conhecimento; e esse exige um esforço, uma aplicação, uma persis-tência do trabalho, uma abundância de informações, um poder de raciocínio que de nenhum modo se pedem na apreciação do ritmo das linhas; para o vulgo a oficina do artista há-de ser por muito tem-po superior ao laboratório ou aos cálculos do sábio.»47

No seio de uma Pátria ofendida e humilhada por gerações de persis-tentes cultores de neblinas, sebásticas ou outras (tanto faz); num torrão ator-mentado por agentes da confusão, por múltiplas expressões de acefalia barro-ca, por misticismos e mistificadores; numa terra exausta de ver o monótono espectáculo da filosofia de magazine,48 Agostinho Baptista da Silva foi tenaz missionário de uma atitude de esforço dilucidatório próprio da essência de todo o autêntico trabalho filosófico. Teve ele, neste mal tratado solo lusitano,

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a persistência de nunca deixar de reafirmar ser a confusão «um dos pecados mais graves». Cabe agora a cada um de nós possuir suficiente engenho para soltar o pensamento evitando o grave pecado.

Notas1 Dicionário de história de Portugal, coordenado por António Barreto e M.F.Mónica, Figueirinhas, Porto, 2000, vol. IX, p.427.

2 “Entrevista com Agostinho da Silva” em Filosofia, nº2, Dezembro de 1985, p.162 (doravante Entrevista...).

3 Agostinho da Silva, Considerações, em Textos e ensaios filosóficos, vol.I, Âncora Editora, Lisboa, 1999, p.96. (Doravante Textos...)

4 “Entrevista...”, ibidem, p.152

5 Recorde-se que nessa época Sérgio mantinha em Paris uma relação de estreita amizade com o grande físico Paul Langevin e reflectia ainda mais profundamente sobre as implicações filosóficas das novas teorias físicas.

6 É de notar, também, a grande diferença de idades entre os frequentadores desse privilegiado espaço cultural; o que significa ter sido, além de tudo o mais, um espaço de cruzamento de gerações de intelectuais.

7 Bergson, La pensée et le mouvant, em Oeuvres, PUF, Paris, 1970, p.1347.

8 Pensamento à solta, em Textos..., vol. II, p.145.

9 Ibidem.

10 “Sobre ideia de Deus”, em Textos..., vol. II, p.298.

11 Entrevista... p.179.

12 Ibidem, p.161.

13 Recorde-se que Sérgio nunca mostrou grande embaraço no indicar a porta de saída, civilizadamente, a quem achava menos capaz de participar nos seus Sábados. Um procedimento que nem sempre foi isento de injustiça e motivou que algumas boas cabeças não tivessem integrado o grupo valorizando as célebres reuniões semanais.

14 «Wo ist das innere Band, das so verschiedenartige Fassungen des Begriffs der Philosophie, so mannigfache Gestalten derselben miteinander verknüpft – das einheitliche Wesen der Philosophie?»

Wilhelm Dilthey, Gesammelte Schriften, vol. V, p.340. Trad. port.: Essência da filosofia, Editorial Presença, Lisboa, s.d., pp.8 e 9.

15 «Immer aber sahen wir in ihr dieselbe Tendenz zur Universalität, zur Begründung, dieselbe Richtung des Geistes auf das Ganze der gegebenen Welt wirken. Und stets ringt in ihr der metaphysische Zug, in den Kern die-ses Ganzen einzudringen, mit der positivistischen Forderung der Allgemeingültigkeit ihres Wissens. Das sind die beiden Seiten , die ihrem Wesen eignen und sie auch vor den nächstverwandten Gebieten der Kultur suszeichnen.

Im Unterschied von den Einzelwissenschaften sucht sie die Auflösung des Welt – und Lebensr+atsels selbst.»

– Ibidem, p.365 (da ed. alemã); ed. portuguesa: pp.57 e 58.

16 Entrevista..., p.181.

17 Ibidem, p.162.

18 Entrevista..., p.166.

19 “Estilo e conteúdo”, em Dispersos, p.563.

20 Ibidem.

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21 Ibidem, p.162.

22 Evocando o importante trabalho de reorganização da escola de Oundle realizado por Frederick William San-derson (1857-1922) a partir da última década do séc.XIX e que teve considerável influência nos conteúdos lecti-vos e nos métodos de ensino em nível das escolas do ensino secundário em Inglaterra. É provável que Agostinho tivesse lido The Story of a Great Schoolmaster, da autoria de H.G.Wells, obra publicada em 1924 e inteiramente dedicada à vida e à nobre acção pedagógica de Sanderson que tinha falecido dois anos antes.

23 Considerações, em Textos..., vol.I, p.105.

24 Ibidem, p.106.

25 António Sérgio, Ensaios II, em Obras completas, Sá da Costa, 1972, pp.19 e 20.

26 Textos..., vol. II, p.28.

27 Ibidem, p.68.

28 Ibidem, p.147.

29 Ibidem, p.18.

30 Veja-se a este propósito o que escreveu em Considerações, p. 95 da edição citada.

31 Entrevista..., p.166.

32 As aproximações, em Textos ..., vol. II, p. 70.

33 Entrevista..., p.182.

34 “Ecúmena”, em Dispersos, p. 229 (reedição do texto originalmente publicado em Espiral, Ano I, nº1, 1964).

35 Ir à Índia sem abandonar Portugal, Assírio & Alvim, Lisboa, 1994, p.35.

36 “Discurso da serpente”, em Considerações, Textos..., pp. 87-88.

37 “My words fly up, my thoughts remain below: words without thoughts never to heaven go” – Hamlet, acto III, cena III.

38 Pensamento à solta, em Textos..., vol. II, p.163.

39 Instituição que, note-se bem, nada tinha a ver com o citado grupo da filosofia portuguesa.

40 Entrevista..., p.183. O estar à conversa com alguém nunca significou necessária concordância com os conte-údos do discurso alheio, nem validação dos mesmos. Às vezes é tão-só um sinal de boa educação. Mas em meios acanhados há tendência para se desenvolverem outras interpretações.

41 Se bem que uma das coisas por ele mais admiradas na postura de Espinosa não fosse reconhecida por Sérgio como particular qualidade: refiro-me à atitude de se recusar a montar escola à maneira de um Platão. Agostinho, ao invés de Sérgio, via nessa lúcida recusa de metamorfosear a filosofia em educação o “grande gesto de Espi-nosa”. De modo bem platónico Sérgio considerava que a grande filosofia tinha que ser simultaneamente uma filosofia da educação no sentido do autor de A República.

42 Refere-se ao meu livro A problemática da materialidade na filosofia de Ravaisson, Editorial Inquérito, Lisboa, 1988.

43 No texto impresso no jornal está escrito “fraca tacitura”, uma gralha tipográfica talvez devida à quase inde-cifrável caligrafia do Autor. O termo tecitura (de tecer – não confundir com tessitura) não é geralmente acolhido nos dicionários mais recentes da Língua Portuguesa.

44 Spinoza em lugar de Espinosa: porque Agostinho não utilizava ainda a ortografia hoje consignada na lexico-grafia de referência.

45 Agostinho da Silva, “Uma lição de civismo”, semanário Litoral, 4 de Janeiro de 1991 (XXXVII-

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nº 1638), p.2. Só muito recentemente tive conhecimento da existência deste artigo dedicado ao meu livro, mercê da gentileza de um investigador brasileiro da obra agostiniana, o Dr.Amon Pinho, a quem aproveito para agra-decer o ter-me ofertado fotocópia do texto.

Sobre a questão da “filosofia portuguesa”, veja-se também “De como os portugueses retomaram a Ilha dos Amo-res”, em Considerações e outros textos, Assírio & Alvim, Lisboa, 1988, p.81.

46 Considerações, em Textos..., p.95.

47 Diário de Alcestes, em Textos..., pp.209 e 210.

48 O compositor Luís de Freitas Branco nas páginas do seu ainda inédito Diário de ideias escreveu o seguinte no dia 28 de Junho de 1933: «Um dos grandes males de Portugal é ter entre os seus escritores modernos uma

esmagadora maioria de impressionistas, de sensitivos, de místicos.» – citado a partir do original manuscrito.

ResumoLivre pensador que se autodefinia como não sendo nem do ortodoxo nem do heterodoxo,

senão que do paradoxo, Agostinho da Silva (1906-1994), que integrou o grupo do filósofo

António Sérgio, cedo se viu asfixiado pela atmosfera salazarenta reinante no Portugal de

então. Fez do Brasil uma segunda pátria. Autor de vasta prosa de reflexão sobre a condição

humana e o protagonismo da nação lusa, Agostinho tem sido considerado um expoente

da chamada “filosofia portuguesa”. Em oposição crítica a essa opinião corrente, analisa-se

a forma como Agostinho concebe e se relaciona com a filosofia, tentando pôr em evidên-

cia o importante legado filosófico de um pensamento que nunca foi o de um filósofo, mas

sim o de um político. Concepção antimística da obra de Agostinho.

Palavras-chave: Filosofia Portuguesa; Paradoxo/Padoxia; Absoluto; Pecado;

Confusão; Cultura/Política.

RésuméAgostinho da Silva (1906-1994) fut un libre-penseur qui ne se présentait comme partisant

ni de l’orthodoxe ni de l’hétérodoxe, mais plutôt du paradoxe. Ayant intégré le groupe du

philosophe António Sérgio, il se trouva bientôt etouffé par le salazarisme reignant au Portu-

gal. Le Brésil a été sa deuxième patrie. Auteur d’une large prose de réflexion sur la condition

humaine et sur le rôle de la nation lusitaine dans le monde, Agostinho fut toujours estimé

comme un important penseur de ce qu’on appelle la “philosophie portugaise”. En opposition

critique à cette vision habituelle, on analyse la façon dont il conçoit la philosophie en mettant

en évidence l’important héritage philosophique d’une pensée qui n’a jamais été celle d’un

philosophe, mais celle d’ un politicien. Concepcion anti-mistique de l’oeuvre de Agostinho.

Mots-clé: Philosophie portugaise; Paradoxe; Absolu; Péché; Confusion; Culture/Po-

litique.

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Ser ou não ser filósofo

Joaquim Domingues*

É bom ser filósofo, mas é mau parecê-lo.La Bruyère

O aforismo, citado por Álvaro Ribeiro, veio-me à mente quando se me pôs o problema de saber se Agostinho da Silva é ou não filósofo, deve ou não ter-se como tal. A uma primeira apreciação o seu caso contraria o juízo do cé-lebre moralista francês, tão certo é que, depois do atributo de professor, creio ser o de filósofo aquele que mais comumente se lhe aplica, sem que daí lhe tenha advindo, ao que sei, qualquer prejuízo de maior. Em contrapartida, ele mesmo nega ser filósofo e até manifesta por vezes algum desdém e distancia-mento perante a filosofia, um saber demasiado desligado da vida para quem toda a consagrou à acção, mesmo quando se trata de actividade pensante ou de carácter espiritual, como científica ou religiosa.

A questão tem, portanto, uma dupla vertente: a de apurar quais os motivos por que lhe foi atribuído um título por ele rejeitado e, para mais, raramente reconhecido entre nós a quem quer que seja; e a de tentar com-preender as razões que levam Agostinho da Silva a tomar tal atitude perante a filosofia. O problema é tanto mais digno de atenção quanto é certo ter-se tratado de uma posição assumida de modo coerente ao longo da vida, não obstante as relações mantidas com filósofos como Leonardo Coimbra, Antó-nio Sérgio e Vicente Ferreira da Silva, por exemplo. Acresce a estranha tese, repetidamente afirmada, de que Bento Espinosa teria sido o único filósofo português digno desse nome.

*

* Natural do Porto, em cuja Faculdade de Letras licenciou-se em Filosofia. Autor de Filosofia Portuguesa para a Educação Nacional: Introdução à obra de Álvaro Ribeiro; O essencial sobre Sampaio (Bruno); e De Ourique ao Quinto Império: Para uma filosofia da cultura portuguesa. Como da preparação do Plano de um Livro a Fazer: Os Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão, de Sampaio (Bruno) e da Teoria Nova da Antiguidade, do mesmo; dos três volumes dos Dispersos e Inéditos, de Álvaro Ribeiro, bem como das suas Cartas para Delfim Santos. Co-ordenou a edição dos volumes O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes e O Pensamento e a Obra de Afonso Botelho. Publicou doze fascículos da revista Teoremas de Filosofia.

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Tenho para mim que o autor da Reflexão à margem da literatura por-tuguesa constitui um caso à parte no conjunto dos intelectuais portugueses e brasileiros, pois se não integra em qualquer uma das tipologias que a propó-sito se podem definir, desde a do lente universitário à do poeta popular. Nem sequer se pode dizer que tenha realizado a síntese desses tipos, antes representa um caso singularíssimo, de que muito poucas personalidades se aproximam. A par de um saber imenso, de que nunca faz gala, antes considera património comum, ao alcance de todos os interessados, Agostinho da Silva apresenta-se como o arauto da tradição esquecida do seu povo, que procura actualizar – pôr em acto ou em acção – com o fito na futuridade.

A sua valorização da Idade Média, com efeito, deve entender-se como a do tempo do anúncio, simbólico e ritual, da Terceira Idade ou do Quinto Império, por definição algo a demandar ainda. No ínterim, houve a experiên-cia da modernidade, protagonizada pela Europa do Centro e do Norte, cujo esgotamento salta aos olhos, precisamente quando parece dominar vitoriosa por toda a parte. Sem negar os seus méritos, Agostinho propõe que aproveite-mos dela os elementos prestáveis, designadamente os da técnica, susceptíveis de útil reconversão em prol da sociedade fraterna e criativa, cujo cetro estará nas mãos de uma criança.

Por estranho que pareça, esta mensagem foi bem acolhida pelos ho-mens do povo, de sua natureza reticentes às fantasias, gente prática, acossada tantas vezes pelas carências mais primárias, mas em cujo íntimo brilha ainda aquele luar de sonho que move a humanidade. Compreende-se por isso que o crismassem de ‘professor’, como quem sabe muito bem que professar, mais do que anunciar o futuro, significa dizer em voz alta o que de mais secreto sabe-mos e em geral calamos. Ou de ‘filósofo’ que, sobre ser título a que não corres-ponde um emprego remunerado, remete para a noção de uma excentricidade sábia, de um desprendimento activo, de uma liberdade comprometida.

Significativo é que, embora tenha passado por muitas instituições, o ‘filósofo’ se não identifique com nenhuma e, a bem ver, nenhuma o arvore em sua figura representativa, a não ser naquelas evocações vagamente afectivas em que é costume dourar a crueza das lutas pelo poder e pelo proveito com o inconsequente elogio dos que passam à margem delas. Inclassificável, indomá-vel, irredutível a um modelo, o seu percurso desenha-se em dissonância e por vezes em ruptura com as práticas e as normas dominantes, motivo pelo qual, aliás, nunca se demora muito tempo seja onde for, como quem faz da errância um método e uma norma, segundo o prolóquio tradicional de que ‘errar é hu-mano’. Assim, se entendermos por filósofo o homem superior que, à margem

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das teias da normatividade social, pelo seu pensamento e pela sua acção nos abre a formas mais elevadas de humanidade, então havemos de admitir que acertaram e acertam os que lhe dão título tão honroso, aproximando-o daque-les sábios que ilustraram a auroral filosofia grega.

*

Julgo não forçar a nota se disser que a espontânea aproximação a esse modelo ressalta de alguns textos em que, como tantas vezes acontece, o autor se entusiasma e como que se identifica ou revê no retratado. Pelo seu carácter paradigmático vale a pena reler, por exemplo, o opúsculo dedicado a Sócrates, em 1943, nos Cadernos de Informação Cultural ‘Iniciação’. Ao sintetizar o per-fil traçado nos diálogos platónicos, observa ser o de

«um modelo de comportamento humano, pela clareza de inteli-gência, a serena tolerância, a correspondência de doutrina e acto, o esforço contínuo, sincero, mais importante do que tudo, para a descoberta da verdade, por um lado, por outro lado, para que a verdade, uma vez aparecida, não sirva apenas para tema de con-versa ou discursos, mas para modelar a vida, pela sua identificação com a verdadeira vida» (p. 4).

Bem diferente do representado pelos ‘filósofos’ que pairam nas nuvens, distraídos deste mundo pela ficção metafísica, que Aristófanes ridiculariza. Com efeito, acrescenta, «a ideia de uma missão divina foi fundamental em Sócrates e há neste homem eminentemente racionalista e crítico um fundo místico tão forte como o dos que mais ardentemente buscaram Deus e com ele pretenderam unir-se» (pp. 8-9). Empenhamento na acção, na busca da verdade e do sagrado que exige uma heroicidade incompatível à prudente mediania:

«Sócrates sabia que nada de grande sai da vida absolutamente regra-da e segura, que a verdadeira vida é a perigosa, a do contínuo risco, a que jamais se sente amparada pelo que faz a segurança, mesmo assim bastante precária, da existência dos outros homens; parece es-sência da vida o ser incerta, aventurosa, e é natural que o seja muito mais a que muito mais se afirma» (p. 10).

Não terá sido este o modelo prezado entre os contemporâneos e con-sagrado na literatura académica, na fase da sua formação, onde dominava o

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conceito de filosofia como construção sistemática, de carácter racional, suscep-tível de compreender e explicar a totalidade do real. Concepção presente em António Sérgio e vigente no ensino universitário, onde se destacavam homens como Joaquim de Carvalho e Vieira de Almeida. E para a qual era de regra to-mar a ciência como paradigma do saber, quer se privilegiasse a matemática ou a física, o que ajuda a compreender a simpatia com que eram acolhidas entre nós correntes como as da filosofia analítica, do materialismo dialéctico ou da fenomenologia.

Para mais a investigação historiográfica, pautada por aquele concei-to, parecia confirmar o escasso valor e significado da literatura filosófica na-cional, que raro se teria elevado acima da glosa dos textos importados e dos limites impostos pela ortodoxia religiosa. Por isso se compreende que, não reconhecendo uma tradição filosófica própria, Agostinho da Silva partilhe o cepticismo comum acerca da capacidade especulativa dos portugueses, a que se eximira o judeu emigrado Bento de Espinosa, exemplo de racionalidade, que tivera o ensejo de viver num meio apesar de tudo compatível à liberdade de pensar. O que, aliado ao lugar central reservado para Deus no sistema e ao ascetismo da vida do filósofo, explicará a simpatia que lhe tributa.

*

Tendo-se a si mesmo como um homem de acção e um homem religio-so, antes de mais, tudo estaria talvez explicado no atinente à relação de Agosti-nho da Silva com a filosofia, não fora o facto de ele ter sido aluno da Faculdade de Letras do Porto e, por isso, ter recebido as lições de Leonardo Coimbra. Ao criar aquela escola superior de filosofia, em 1919, o autor de A Alegria, a Dor e a Graça, cuja formação académica se fizera no domínio das matemáticas, apre-sentava-se como o autor de um sistema original cujo primeiro esboço dera a lume em 1912 sob o título O Criacionismo. E se é unânime o testemunho de alunos e discípulos quanto ao facto de nunca ter imposto, fosse a quem fosse, as suas ideias, o certo é que a sua concepção do homem como ser dotado de virtualidades criadoras e aumentativas da realidade – «o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro dum mundo a fazer», dizia ele – não poderia deixar de estar presente na actividade docente e convivente do filósofo.

Seria muito esclarecedor apurar as razões da antipatia manifes-tada por Agostinho da Silva para com Leonardo Coimbra, sem embar-go do respeito e apreço por quem fora capaz de criar um clima de li-

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berdade espiritual que distinguia a Faculdade de Letras do Porto das suas congéneres. A exuberância da personalidade do filósofo portuense, cuja coragem física, moral e intelectual o impôs à admiração de muitos, gerava resistências e animadversões de que há testemunhos diversos, mormente na relação com António Sérgio. E o modo como assumia o republicanismo, com um pendor democratista a que não era alheia a passagem pelo anarquismo, também não podia concitar a simpatia do jovem Agostinho, que se declarava monárquico num ambiente fortemente adverso a tal opção.

Em contrapartida, o saber e a bonomia de José Teixeira Rego conquista-ram-no, pelo que, em todo o caso, não passou incólume ao influxo da tradição espiritual que, desabrochada na Renascença Portuguesa, animava os melhores professores da Faculdade de Letras do Porto. A qual veio a reencontrar no Brasil, na pessoa de Jaime Cortesão, um dos fundadores e dos principais ani-madores daquele movimento. O facto de ter sido na sequência deste encontro que dá a lume, a partir de 1957, as obras capitais da sua bibliografia deve ser entendido, a meu ver, como a subida à plena consciência do processo interior que de há muito – desde que Agostinho era Agostinho – nele se desenvolvia.

*

Julgo, pois, que a sua relação com a filosofia deve ser vista à luz des-ta dupla perspectiva: por um lado, a da aceitação do conceito dominante no meio intelectual, de um saber de cariz essencialmente abstracto e especulativo, cujo valor reconhece, mas que o não motiva pessoalmente; por outro, a da descoberta da tradição espiritual lusíada, que une a Idade Média portugue-sa à actualidade brasileira e na qual vê inscrita a orientação que nos cumpre tornar efectiva, a bem da humanidade e de toda a criação. Porque considera esta tradição não como um saber de intelectuais, mas de homens práticos e até místicos, cujo fito é o aperfeiçoamento pessoal pela acção em prol do comum, a sua atitude é perfeitamente coerente; se bem que afectada por uma obstina-ção que o não deixa ver o evidente: a essencial afinidade da sua acção e do seu pensamento com a chamada escola portuense ou da filosofia portuguesa, por sinal também incompreendida e hostilizada pelos meios académicos.

O que caracteriza e distingue este movimento é o tomar como ponto de partida e garantia primeira de todo o pensar a presença de um dado que a própria língua materna já diz, transporta e revela. Não só é absurdo pretender pensar a partir de nada ou de nenhures, como representa uma atitude de ce-gueira ou de inveja tentar ignorar ou desqualificar o património herdado, por

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pobre e limitado que pareça. O humanismo, o subjectivismo e o voluntarismo abstractos têm permitido erguer construções metafísicas mais ou menos im-ponentes, mas que se revelam sempre realidades separadas e ameaçadoras da vida, do mundo e do homem real.

A noção de tradição tem, ao invés, um acento dinâmico, futurante, criacionista, pois, como ensina a etimologia, define-se por ser aquilo que se transmite, o que se diz de boca a ouvido, como o segredo a desvendar, a pro-messa a demandar, o fito a prosseguir na sequência das gerações. Cabe a cada um de nós, que a recebemos envolta nas formas culturais herdadas, interpretá-la e actualizá-la, pelo que nada tem de rigidez dogmática ou de feição retornis-ta. Sem ela esvai-se a noção de identidade social e até pessoal, numa amnésia que transfere as razões da autonomia do povo, do país e da pessoa para facto-res externos ou circunstanciais cuja precariedade a ninguém ilude.

A afinidade entre Agostinho da Silva e os seus companheiros da Facul-dade de Letras do Porto é, neste plano, tão notória que só podemos estranhar que não tenha sido mais regular, íntima e intensa a colaboração mútua, embora as diferenças do percurso e da caracterologia possam ajudar a explicar o facto. Como ajudam a compreender também a recusa em aceitar o epíteto de filósofo por quem o é na verdade, mesmo sem ser licenciado em Filosofia nem ser reco-nhecido como tal pelas corporações universitárias. Tal qual, aliás, o não foram Álvaro Ribeiro e José Marinho, até do ensino secundário oficial afastados.

Tenho para mim ter sido o mais vivo amor da sabedoria a animar Agostinho da Silva ao longo de uma vida em que a muitos foi despertando pa-ra idêntico amor, tal como Sócrates, e cuja voz interior, embora marcada por outros acentos, não é menos universal no âmbito a que aponta ou nas razões que a movem. Por isso julgo que acertam quantos o reconhecem como filó-sofo, não do tipo escolar ou escolástico, mas mais próximo daquela sabedoria cujo cadinho é o da vida e cujo auditório é o povo (não o vulgo ou a plebe), o povo qualificado, vertebrado por uma cultura própria, cioso da sua liberdade e da sua missão universalista. Ainda que não pareça filósofo aos que têm o poder de impor títulos e graus, é-o com tal autenticidade que continua a desafiar os que, de boa mente, ouvem as suas razões.

ResumoApesar da recusa de Agostinho da Silva em aceitar o qualificativo de filósofo, por o seu ca-

minho se afastar da direcção dominante na intelectualidade contemporânea, entendo que

a vox populi acerta ao reconhecê-lo como tal. Devemos-lhe o inestimável serviço de nos

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ter despertado para as virtualidades actuais e futurantes da tradição espiritual que une os

povos de cultura lusíada. Ao dar-lhe expressão discursiva racional, consistência histórica

e formulação programática assumiu o modelo do sábio que aponta o rumo a uma socie-

dade em crise e apela a uma superior consciência da dignidade humana, ao mesmo tempo

que, numa desconcertante humildade, se apresenta como simples porta-voz dum saber

comum, embora esquecido.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Tradição; Filosofia

RésuméAgostinho da Silva a refusé le titre de philosophe qu’on lui attribuait, parce qu’il ne pouvait

s’identifier avec une conception du savoir comme construction intellectuelle abstraite, dé-

gagée de la vie. À mon avis, néanmoins, il s’est engagé dans le plus authentique amour de

la sagesse, qu’il croyait implicite dans quelques traditions populaires, où il voyait l’annonce

symbolique de quelque chose qu’il nous faut parvenir à réaliser. La quête du beau, du vrai

et du bien l’a conduit à la découverte, au Moyen Âge portugais aussi bien qu’au Brésil du

XX.ème siècle, de la préfiguration d’un nouveau âge de fraternité universelle qu’il s’est

éfforcé pour mettre en oeuvre dans son action et dans ses ecrits, comme un vrais sage.

Mots-clé: Agostinho da Silva; Tradition; Philosophie.

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A genealogia do pensamento utopista de Agostinho da Silva

José Eduardo Reis*

O filósofo israelita Martin Buber publicou em 1946 em hebraico uma obra de teor político filosófico, traduzida três anos mais tarde para inglês com o título Paths in Utopia. Nela, Buber identifica a propensão para a utopia com o anelo da realização da ideia geral de justiça, ideia que, segundo ele, se manifesta segundo duas modalidades, a religiosa, projectada como imagem escatológica e messiânica de um tempo perfeito, e a filosófica, projectada co-mo imagem ideal do espaço perfeito. A primeira concepção envolve questões do tipo cósmico, ontológico e metafísico, enquanto que a segunda confina-se ao plano imanente do funcionamento estrutural das sociedades e da conduta ética do homem. Segundo Buber, a escatologia ou visão perfeita do tempo distingue-se da utopia ou visão perfeita do espaço, pelo facto de aquela de-correr da crença num acto transcendental, proveniente de uma vontade su-perior e exterior ao homem, independentemente de este poder vir ou não a desempenhar um papel activo na preparação do Reino futuro. Com a utopia é a vontade decidida e consciente do homem, liberta de qualquer vínculo à transcendência, que soberanamente intervém na modulação do espaço social perfeito. No entanto, esclarece Buber, desde o século das luzes, que a visão es-catológica da instauração de um Reino harmonioso na terra por um acto pro-videncial da vontade divina perdeu a sua força apelativa, dando lugar à ideia

* José Eduardo Reis é Professor Associado na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde tem lec-cionado Literatura Comparada, Literatura Inglesa, Cultura Inglesa, História das Ideias. É investigador do Insti-tuto de Literatura Comparada da Faculdade de Letras do Porto como membro do projecto “Utopias literárias e pensamento utópico: a cultura portuguesa e a tradição intelectual do ocidente”. É mestre em Estudos Literários Comparados pela Universidade Nova de Lisboa, com uma dissertação sobre a influência do pensamento de Schopenhauer na obra literária de Jorge Luis Borges, e doutor em Literatura Comparada pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, com uma tese sobre o espírito da utopia nas culturas literárias portuguesa e ingle-sa. É autor de vários artigos na área da literatura comparada, em particular sobre a temática da utopia na obra literária de autores portugueses e ingleses, autor de recensões críticas da revista académica americana Journal of Utopian Studies, membro do corpo editorial da revista electrónica E-topia e editor de uma das raras utopias literárias portuguesas, Irmânia de Ângelo Jorge.

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moderna de progresso. Convocámos Martin Buber para precisar que a ideia de progresso, tal como foi formulada pelos livres-pensadores do século XVIII e sistematizada pelos seus continuadores do século XIX, assenta em cinco pontos fundamentais, a saber: (i) a proclamação de uma discernível continui-dade, não isenta de turbulências, de hesitações e de movimentos retrocessi-vos, da evolução da história social e espiritual do homem, a qual é passível de ser segmentada em fases ou estádios que, pela sua sequência, são reveladores de um desígnio imanente de maturação e perfeição ôntica e material; (ii) que essa continuidade é governada por leis históricas racionalmente induzidas a partir da análise dos eventos gerados pelo homem e não deduzidas da crença em um esquema providencial de ordenação divina; (iii) que por meio do co-nhecimento dessas leis se pode prever a qualidade do avanço inelutável de um determinado estádio de desenvolvimento para o estádio que lhe sucede; (iv) que esse avanço requer a intervenção da vontade e do esforço dos homens para ser realizável; (v) finalmente, que este esquema de pensamento é uma versão laicizada, como afirma Buber, duma visão escatológica da história as-sente na ideia do milénio.

E chegámos ao milénio. Não ao limiar do segundo lapso de mil anos d. C., mas à nomeação de um conceito que, para a história das ideias, crenças e concepções teleológicas desempenha uma função dominante e orientadora na mentalidade do ocidente judaico-cristão; de um termo, cujo conteúdo desig-na, por efeito de sinonímia, a esperança, o princípio de que se nutre, como o demonstrou Ernst Bloch, o espírito da utopia orientado para o futuro, os dias a vir, a idade de ouro recuperada, a entrada nas graças da Sétima Idade, a Parú-sia prometida aos crentes, o Reino terrestre do Messias, a sociedade da justiça, o estado final do processo cósmico que definitivamente sublimará as insufi-ciências, as calamidades, as faltas acumuladas pelo homem ao longo da sua mesma e necessária história, esperança consubstanciada nos quarto, quinto e sexto versículos do vigésimo capítulo da revelação profética do Apocalipse de João: “Voltaram à vida [os mártires cristãos] e reinaram com Cristo durante mil anos [...]. A segunda morte não tem poder sobre eles; serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com Ele durante mil anos.” (Apoc. 20-4; 20-6).

Embora a formalização significante do conceito de milénio (e de to-dos os seus termos cognatos) tenha uma nítida filiação doutrinal cristã, visto que deriva explicitamente do conteúdo de um texto canónico novitestamen-tário, há, todavia, que esclarecer que ele passou a designar, quer para a história (tanto social como das ideias ou das mentalidades), quer para a antropologia, qualquer modalidade de pensamento escatológico de tipo redentor e universal

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– comprovável noutras sociedades e culturas não-cristãs – e que se manifesta, em geral, através de movimentos e comportamentos religiosos que visam al-cançar uma salvação completa (física e espiritual) do ser. Para Norman Cohn, autor de In the Pursuit of the Millenium (Na Senda do Milénio), esta noção de salvação caracteriza-se por ser de tipo colectivo – na medida em que é extensí-vel a um grupo de fiéis –, terreal – pela promessa de ser efectivada neste mun-do –, iminente –, pois deverá ocorrer em breve e de súbito –, total – ,quanto ao grau de perfectibilidade alcançado – e será concretizada por efeito de uma intervenção exterior, sobrenatural.

Mas limitemo-nos ao sucedido na civilização ocidental. Dos adeptos do Livre-Espírito, na Idade Média, às Testemunhas de Jeová, no século XX, passando por variadíssimos movimentos religiosos sectários gerados em di-ferentes épocas, regista-se a espantosa sobrevivência de uma mesma fórmula ideológica de inspiração apocalíptica sobre o devir do mundo, a contínua re-produção da crença no valor de verdade literal da profecia escatológica anun-ciada no último livro canónico da Bíblia. No seu diferenciado modo de inter-pretar o texto sagrado e de agir – seja pacífica seja violentamente – a partir dessa interpretação, os milenaristas manifestam, grosso modo, a sua vontade salvífica segundo duas posições, a saber, a de esperarem convictamente a vin-da ou a de se prepararem activamente para a consumação do Reino prome-tido de justiça, paz e abundância, que deverá preceder um estádio ulterior, esse sim, final da história do mundo terreno, correspondente, na visão de João, à descida dos céus da Nova Jerusalém (Apoc. 21). Em rigor, há, portan-to, que definir o milénio como um estádio histórico-temporal intermédio e transitório, de relativa perfeição ontológica (relativa, por ser apenas extensí-vel aos crentes eleitos – os santos – e por não ser ainda totalmente espiritua- lizado, apesar de ser governado directamente por Cristo). No entanto, o con-ceito de milénio, apesar da sua simples derivação etimológica e originária determinação semântica, reveste-se de subtilezas e complexidades acrescidas que derivam: (i) quer das divergentes interpretações dos textos profético-apo-calípticos que estão na origem daquelas duas atitudes sectárias, (ii) quer dos próprios contributos teóricos de pensadores e autores alinhados por uma vi-são teleológica-transcendente da história, (iii) quer ainda das propostas de interpretação dos estudiosos e exegetas do fenómeno milenarista.

A irresistível atracção pelo tempo futuro é, portanto, uma modalidade do pensar e do agir que, na tradição ocidental, adquiriu uma forte coloração es-catológica por via da influência duma crença original – de entre as várias crenças religiosas dos povos da antiguidade – do povo judaico: a de se ter autoconstituí-

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do e autoproclamado como o agente humano da realização de um plano neces-sariamente benigno e salvífico do Criador do Mundo, tido pelo único e verda-deiro Deus. Daí que, talvez, a concepção providencial, segmentada e apocalíptica da história, assente na ideia de tempo linear, progressivo, apoteótico-finalista, e que conheceu larga fortuna no Ocidente, tenha por original ilustração mítica a crença semita numa aliança, que é narrada no capítulo 17 do Génesis, firmada entre Deus e um descendente de Noé, Abrão, depois rebaptizado Abraão, o pai dos povos, a quem foi prometida a posse futura de uma terra de segurança e abundância. Esse pacto, além de pretender traduzir a consagração de uma gra-ça divina a favor de uma nação particular, investindo-a na responsabilidade de iluminar outras nações no conhecimento do verdadeiro Deus, deu princípio à esperança de, num tempo futuro, um povo sem terra própria, mas que se crê o verdadeiro e sublime representante da humanidade, vir a viver na melhor de todas as terras, espécie de simulacro do Reino dos céus.

Esta propensão do povo hebraico em tomar o fim dos tempos ou o fu-turo como instância temporal libertadora foi sobretudo acalentada após a expe-riência traumática da invasão assíria, da perseguição e da deportação colectiva para a Babilónia (597-86 a. C). É então que a figura do Messias – mashiah, o ungido, o eleito –, adquire uma função eminentemente soteriológica – como salvador que vem resgatar a sorte adversa e justiçar os inimigos do seu povo –, não obstante o facto de os textos que se lhe referem divergirem quanto à nature-za da sua identidade – se enviado, se filho de Deus, se o próprio Jeová – e varia-rem quanto à determinação do atributo humano que assumiria – se sacerdote, se monarca, se monarca-sacerdote. Tanto nos textos veterotestamentários como nos da literatura judaica apocalíptica, o Messias não aparece, pois, caracterizado de forma unívoca e estável, a não ser no traço comum de salvador e dispensador de graças que inaugurará uma época de justiça, paz e inefável felicidade.

São os profetas da época da invasão síria e depois do exílio, Isaías, Jeremias e Ezequiel, que dão ênfase e promovem esta forte mitificação da vinda do Messias-Salvador. Cerca de seis séculos depois de Isaías, por volta do ano 165 a. C., outro profeta, Daniel, comporá aquele que é considerado o mais antigo e completo apocalipse canónico do antigo testamento, revelando – porque a revelação lhe foi dada também em sonhos – ao rei que oprimia então o seu povo, Nabucodonosor, o sentido dos dois sonhos que este tivera e que o deixara tão intrigado. Esses sonhos reais, envolvendo, respectivamente (caps. 2 e 7), quatro animais e uma estátua polimórfica, simbolizariam, na interpretação do profeta, a queda dos quatro grandes impérios terrestres que se sucederam no Próximo Oriente (e que a exegese bíblica identifica com o

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Assírio; o Persa; o Helénico, de Alexandre Magno; o Romano), e que deviam preceder a iminente fundação do quinto, o último, de inspiração divina.

O já referido estudo de Norman Cohn, circunscrito a movimentos mi-lenaristas que despontaram no norte da Europa ao longo da Idade Média, é por demais esclarecedor quanto às potencialidades revolucionárias da inter-pretação literal da profecia atribuída a São João. De 431 em diante, isto é, após o Concílio de Éfeso, a crença no milénio inspirará, sobretudo, sentimentos religiosos populares e será devidamente explorada e utilizada por autoprocla-mados profetas iluminados e guias messiânicos como eficaz expediente ideo-lógico para animar práticas religiosas heterodoxas, ergo heréticas, e conduzir revoltas sociais protagonizadas pelas famintas e crédulas legiões de pobres a quem fora prometido, pelo Cristo-Redentor, o Reino dos Céus. Não é de estra-nhar, portanto, que a teologia escolástica medieval, com S. Tomás de Aquino (1224/25-1274) à cabeça, tenha reiteradamente reprovado qualquer veleidade de explicar o curso da história humana com base em interpretações proféticas, incentivando, antes, a autovigilância ideológica contra qualquer insidiosa ir-rupção mental utópica-quiliástica.

Mas o espírito da utopia não é aprisionável e sopra quando e don-de menos se espera. No fim do século XII, o monge cisterciense Joa- quim – abade do mosteiro de Curazzo, na Calábria, onde nascera em 1135, e fundador, em Fiore, de um mosteiro e de uma ordem monástica que perdurou até 1570 – formulou, a partir do intenso estudo das Escrituras, e com o benefí-cio de várias iluminações espirituais, uma leitura salvífica e profético-utópica da história da humanidade. E fê-lo sob o estímulo e com o próprio beneplá-cito do Papa Lucius III, dentro do corpo institucional e doutrinal da Ecclesia Romana, de que era devoto insuspeito, sem nunca ter sofrido, ao longo de toda a sua vida, a reprovação e o estigma da prática de heresia.

À sua maneira, Joaquim de Fiore foi uma espécie de filósofo da história empenhado em subministrar um sentido lógico e uma explicação coerente do curso temporal do mundo. Para tal, fundou toda a sua teoria acerca do signifi-cado do devir histórico num princípio de razão elementar, capaz de discernir o propósito da ordem passada, presente e futura das coisas humanas. Claro que no século XII europeu esse princípio de razão não podia ser suficiente nem imanente, mas necessariamente transcendente, induzido da teologia cris-tã e do conteúdo narrativo da Bíblia, do livro matriz que enformava toda a verdade essencial acerca da história do mundo, dos desígnios de Deus e da sua progressiva revelação. Para Joaquim de Fiore, condicionado que estava pelos “ídolos” do seu tempo, a Bíblia canónica, a que foi sendo fixada pelos diferentes

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concílios, era o livro em que Deus fizera escrever a sua vontade e feito comu-nicar a sua una e triádica natureza de Pai, Filho e Espírito Santo, mas também o livro em que cripticamente anunciara um plano de progressiva iluminação ecuménica que requeria ser decifrado. Nele se continha a súmula da história do passado espiritual do género humano e, simultaneamente, a chave da sua história futura, a qual, em última análise, só podia ser coerentemente compre-endida e interpretada à luz daquela vontade e daquela natureza divinas.

Dedicando toda a sua energia intelectual à leitura e à exegese em pro-fundidade do Livro sagrado, Joaquim inferiu analogias e estabeleceu corres-pondências entre números, eventos e personagens do Antigo e do Novo Tes-tamento (precisamente uma das obras que lhe foram autenticadas tem por título Liber concordie : Novi ac Veteris Testamenti (A concordância do Antigo e do Novo Testamento), construindo assim uma intricada rede de significa-dos simbólicos que coerentemente e sucessivamente demonstravam, segundo ele, a acção em diferentes fases da história do mundo dos distintos atributos das pessoas da Santíssima Trindade. A um Deus uno e trino, que progressiva-mente se fazia revelar no plano imanente, deveria corresponder um curso da evolução temporal, também ele uno, mas triadicamente segmentável em fases discretas, caracterizadas pela sucessiva predominância dos atributos próprios de cada uma das distintas pessoas divinas. Por outras palavras, o próprio devir do tempo e da história humanas estariam intrinsecamente relacionados com a trindade do Deus-cristão que progressivamente se fazia revelar na sua pa-radoxal unidade e heteronomia: se o Filho procedia do Pai e o Espírito Santo procedia de ambos, então a história, entendida como processo em que a livre acção humana estava subsumida e determinada pela vontade de Deus, mais não seria do que um reflexo desse triplo avatar divino. A história estaria as-sim dividida em três fases ou três estados (status): o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo. Cada um destes três estados dividir-se-ia em sete períodos (e o número sete, que já havia sido utilizado por S. Agostinho para estabelecer a sua própria cronologia do mundo, tem o seu fundamento bíblico por analogia com os sete dias da Criação), os aetates, cada um deles designado pelo nome de uma personagem célebre da história sagrada.

Entendendo a duração temporal humana como se fosse um desdobra-mento de diferentes atributos divinos, como um progresso espiritual, Joaquim descreveu esse élan em termos biológicos de germinação e frutificação, de con-cepção e nascimento. Deste modo, o estado do Pai fora concebido ou germi-nara com Adão, começara a frutificar com Abraão e terminara com Zacarias, pai de S. João Baptista. Foi um estado que se caracterizou pela prescrição da lei

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divina, pela ordenação de mandamentos que visaram disciplinar e infundir o temor no homem. Foi, digamos assim, um estado caracterizado pelo primado coercivo da lei. O estado do Filho germinara com Osias (o rei de Judá do sé-culo VII a.C.), começara a frutificar com Jesus e deveria terminar, segundo os cálculos do abade calabrês, por volta de 1260. O seu atributo dominante seria o da humildade de Deus, que encarnara para redimir a criação. Os homens nesta idade mais civilizada/espiritualizada responderam não já com temerosa obediência, mas com confiante solicitude à vontade de Deus; no entanto, a Sua lei permanecera exterior e não coincidira totalmente com a vontade humana. O estado do Espírito Santo, que germinara com S. Bento (c.480-547), deveria começar a frutificar por volta de 1260 e terminaria to Consummatio Seculi, no fim dos tempos. É um estado em que, fruto da iluminação geral da humani-dade pela acção directa do Paráclito, reinariam a liberdade espiritual e o amor compassivo, nele coincidindo a vontade humana com a vontade divina. É as-sim que Marjorie Reeves nos descreve esta sequência:

Num impulso lírico já na parte final do Liber Concordie, ele [Joa-quim] lança mão a sequências imaginativas para exprimir este mo-vimento supremo da história: o primeiro status estava subordinado à lei, o segundo status sob a graça, o terceiro status, aguardado para breve, sob uma ainda maior graça; ao primeiro coube a scientia, ao segundo a sapientia, o terceiro será o da plenitudo intellectus; o primeiro foi vivido na servidão dos escravos, o segundo na servidão dos filhos, mas o terceiro será em liberdade; o primeiro foi o tempo dos castigos, o segundo da acção, mas o terceiro será o tempo da contemplação; o primeiro foi vivido com temor, o segundo na fé, o terceiro será no amor; o primeiro foi o status dos escravos, o se-gundo dos filhos, mas o terceiro será o dos amigos; o primeiro foi dos anciãos, o segundo foi dos jovens, o terceiro será das crianças; o primeiro foi vivido sob a luz das estrelas, o segundo com a aurora, o terceiro será em pleno dia; o primeiro no Inverno, o segundo nos começos da Primavera, o terceiro no Verão; o primeiro é o das urti-gas, o segundo das rosas, o terceiro dos lírios; no primeiro há erva, no segundo centeio, no terceiro trigo; ao primeiro pertence a água, ao segundo o vinho, ao terceiro o azeite.1

O pensamento de Joaquim foi naturalmente tributário de uma tradi-ção exegética, topológica, alegórica e numerológica sobre o estádio final da história do mundo. A sua doutrina sobre a representação do tempo como uma progressiva revelação da Trindade teve, aliás, no primeiro e no segundo quar-

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tel do século XII, dois precursores, respectivamente, Rupert de Deutz e Ansel-mo de Havelberg. Mas a originalidade e a genialidade da reflexão joaquimita residem precisamente em ter superado tanto a interpretação literal como a alegórica dos textos profético-apocalípticos, nomeadamente o de São João, e ter proposto a sua própria profecia a partir de uma intricada rede de corres-pondências de sentido entre dissemelhantes textos bíblicos. Uma profecia que se apresentava como uma superação do antigo e do novo testamento e que va-ticinava para breve a espiritualização da humanidade, o advento de um discre-to estádio, mais perfeito que os anteriores, em que a igreja de Pedro daria lugar a uma nova ordem religiosa de essência monacal, inaugurada por uma espécie de figura messiânica, o Dux, e tutelada pelo misticismo da mensagem de João. Por outro lado, a visão crístico-apocalíptica da história, com os seus mil anos de governo exercidos directamente por Cristo a uma comunidade aristocrá-tica constituída pelos santos mártires ressuscitados, e que deveria preceder o Juízo Final de Deus, dá lugar, na exegese profética de Joaquim, a um indefinido – quanto à sua duração – estado escatológico de amor, dispensado pela acção directa do Espírito Santo e democraticamente extensível a toda a humanida-de, que passaria a viver, já na terra, as primícias da eterna bem-aventurança celestial. À discordante e impura vida activa estaria, portanto, para suceder a concordante e pura vida contemplativa praticada pelo novo homem espiritu-al, um ser de sabedoria e paz, sintonizado com a recta lei de Deus e liberto da servidão das más inclinações. É peremptória a convicção de Joaquim acerca do futuro estado do homem, quando afirma: “Nós não seremos o que fomos, mas principiaremos a ser outros.”

É afinal uma convicção fideísta no compassado e benigno devir da his-tória, na ascensão faseada da humanidade em direcção ao bem e à felicidade teleológicas, que, à margem da doutrina oficial da Igreja Romana – de raiz agostiniana e de essência tomista –, despertou e legitimou as expectativas de mudança e as movimentações sociais dos deserdados ao longo da Idade Mé-dia. Mas é também uma convicção que viria ulteriormente a secularizar-se em teorias de emancipação social e em filosofias do progresso, anunciadoras de um tempo último e perfeito da duração da história, e que, entre muitas outras concepções postuladas pelos livres-pensadores do século XVIII e XIX, vão desde a representação do estado da religião positivista de August Comte à comunidade fraternal de Robert Owen, à sociedade comunista esboçada por Karl Marx, passando pelo projectado Estado Prussiano de Hegel – a consuma-ção acabada da Ideia absoluta (Ideia, que é o princípio hegeliano de explicação da objectivação do mundo).

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No Portugal de seiscentos, a tese profético-utópica da quinta monar-quia, inspirada em fontes bíblicas, teve, como se sabe, na pessoa do padre je-suíta António Vieira (1608-1697) um dos seus mais estrénuos defensores. Mas não foi o único. No século XVII, a conjuntura ideológica, política e social do nosso país foi particularmente propícia a sondagens visionárias sobre o devir da pátria e do mundo. As posições profético-milenaristas de teor luso-cêntrico que se divulgaram e propagaram em Portugal, sobretudo nos decénios que decorreram entre 1630 e 1670, isto é, durante o período que mediou entre o crescendo da expectativa popular da restauração e a fase da reconsolidação da soberania nacional, caracterizaram-se pela irrupção mais ou menos generali-zada duma eufórica esperança messiânico-nacionalista e por aquela voltagem ideológica revolucionária indutora de utopismo – já registada, por exemplo, na Crónica de D. João I de Fernão Lopes.

Sendo o milenarismo do jesuíta português de tipo hermenêutico, es-sencialmente derivado da leitura da Bíblia, no que concerne às condições do advento ou instauração do Reino de mil anos dos santos (portugueses), ele aguardava por uma resolução final da história que nitidamente pressupunha uma intervenção transcendente, providencial – na qual o Papa, o monarca e o povo portugueses desempenhariam um papel instrumental decisivo – e que daria início à idade de mil anos profetizada no Apocalipse.

Como fervoroso católico que era, Vieira procurou conformar o seu milenarismo utópico aos dogmas da Igreja, conformidade difícil de ser dia-lectizada e sustentada num século fortemente marcado pela intolerância entre diferentes credos religiosos e particularmente feroz na perseguição movida aos judeus. Porém, no milenarismo utópico de Vieira todos os homens teriam de ser salvos, o que na sua opinião passava pela conversão universal de gentios e judeus ao cristianismo. Para esse fim, considerava o padre jesuíta que a futu-ra igreja triunfante devia fazer concessões aos ritos praticados pelos hebreus. Dado o facto de estes estarem profundamente afeitos às suas tradições rituais, muitas delas, aliás, praticadas pelos primeiros cristãos, não havia motivo, a seu ver, e desde que se conformassem à teologia cristã, para serem estigmatizadas e consideradas heréticas. Do ponto de vista eminentemente religioso, Vieira pa-rece, portanto, conceber o Quinto Império como sendo doutrinalmente uno, unidade não imposta, voluntariamente reconhecida pela revelação universal da suprema verdade na pessoa de Cristo, mas permeável à diversidade de culto. Do ponto de vista existencial seria um estado caracterizado pela prelibação das glórias futuras, governado pelas leis físicas da vida temporal, uma espé-cie de condição ontológica refundida, digamos assim, um prelúdio terrestre

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da eterna bem-aventurança, no qual os homens, conhecendo finalmente uma paz perpétua de mil anos, viveriam saudáveis e dotados de uma longevidade excepcional: entregues às suas actividades normais, praticá-las-iam de modo fraterno e santificado. Num apontamento que Vieira deixou incompleto e que foi recentemente editado, em apêndice, na Apologia das Coisas Profetizadas, pode ler-se: “A 1ª felicidade temporal deste bem-aventurado Reino será aquela sem a qual nenhuma outra se pode chamar verdadeira felicidade, e a qual em si mesma abraça todas ou quase todas as que se podem gozar nesta vida, que é a paz. Haverá Paz Universal em todo o mundo, cessarão as guerras e armas em todas as nações e então se cumprirão inteiramente as profecias tão multiplica-das em todos os profetas tão variamente explicadas pelos expositores, e nunca bastantemente entendidas” (Vieira 1994: 287). Essa paz promoveria uma tal revolução de hábitos, seria acompanhada por uma tal mudança no espírito da vida, que na terra se veria cumprida finalmente a profecia de Isaías que refere a convivência do lobo com o cordeiro.

No contexto da cultura literária portuguesa do século XX, Fernan-do Pessoa (1888-1935) retomou com impressionante vigor e com conscien-te deliberação a utopia-profético-milenarista (ou, nas suas palavras, o mito) do Quinto Império, requalificando o seu conteúdo, alijando-o das suas mais imediatas implicações bíblico-teológicas e procurando fundamentá-lo não como mera possibilidade formal, mas como possibilidade objectivamente re-al. À semelhança de Vieira, também Pessoa recorda para demonstrar, reprova para desmistificar, lamenta para sublimar, exorta para estimular, prediz para utopizar. Procuremos, pois, perceber o conteúdo da sua ideia de Quinto Im-pério. Pessoa, na linha do pensamento de Padre António Vieira, – e é esse o sentido da segunda parte da sua obra poética Mensagem –, recorda então para demonstrar aquilo que poderíamos designar a função utópica do conheci-mento do “mar português”, entendido este mar não tanto como uma expres-são adjectiva da grandeza nacional, mas antes como uma dupla alegoria repre-sentativa (i) das possibilidades reais, das possibilidades possíveis – digamos com ênfase pleonástico –, as que conduzem à efectiva descoberta do novo, mas também (ii) das possibilidades simbólicas de transcendência do mundo dado, do mundo histórico, o dos (quatro) impérios materiais. Ora, de entre os cinco nacionais símbolos, enunciados por Pessoa, que configuram o sonho (utó-pico) português, o segundo tem por título “O Quinto Império”. Porém, mais do que procurar definir ou determinar a sua possível natureza, este império é-nos apresentado como uma imprescindível figuração do descontentamento anímico, como uma necessidade lógica ou causa final da indagação huma-

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na, como uma realidade possibilitada pela idealização activa, anticonformista, obreira do desejo profundo ou da visão da alma.

São cinco as estrofes que dão corpo a este poema, as três primeiras de reprovação ou censura por aqueles seres apáticos, conformados ao estado morno da vida, imunes à dúvida investigadora, vegetando na sua acrítica su-bordinação à lógica das coisas instituídas e à aparência das ideias confortantes, mas alienantes da ideologia, por aqueles seres que não sonham senão com o seu pequenino bem-estar e que necessariamente reproduzem, no domínio imperial da sua vida, as leis fatais dos impérios que se sucederam na história, “Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para onde vai toda a idade” (Pessoa s.d: 83). O Quinto Império surge então na Mensagem como “Símbolo” de novas e insondáveis possibilidades tanto relativas ao ser como ao conhecer: a sua ontologia é-nos representada como uma condição vital ou-tra que arranca do descontentamento em viver-se apenas o contentamento da duração animal da vida e que se constrói a partir de uma vontade que rompe com as leis cíclicas da biologia e da história – “Triste de quem é feliz / Vive por-que a vida dura. / Nada na alma lhe diz / Mais que a lição da raiz / Ter por vida a sepultura” (82); quanto às condições que possibilitam o seu conhecimento (a sua gnosiologia), elas são obviamente de tipo ideal-visionário, configuram a actividade da “alma” do sonhador que, de tanto sonhar, transforma-se na coisa sonhada, e de tanto esperar vê cumprida a cessação e a transcendência das leis monótonas do tempo histórico – “Eras sobre eras se somem / No tempo que em eras vem. / Ser descontente é ser homem. / Que as forças cegas se domem / Pela visão que a alma tem” (82-83). Em síntese: a tese pessoana é de que o Quinto Império não virá do céu, mas surgirá da terra, da visão sonhadora dos que per-cebem o mundo como o único palco para o conhecimento da eternidade sem tempo – “E assim passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra será teatro / Do dia claro, que no antro / Da erma noite começou.”(83)

No contexto da cultura portuguesa da segunda metade do século XX, Agostinho da Silva é quem recebe e quem magnifica o testemunho da esperan-ça milenarista, é quem prolonga o olhar de um Vieira e de um Pessoa num in-defectível futuro de júbilo e de apaziguamento existencial trazidos ao mundo pelo concurso, pelo exemplo ou pelo “sacrifício” da nação portuguesa. Melhor dizendo, da nação ideal portuguesa. Daquela que, nas suas grandezas reais/simbólicas, mas também nas suas faltas simbólicas/reais, Agostinho historiou/mitificou até à exaustão em escritos vários, sempre com o assumido propósito de apresentá-la como peça instrumental ou cifra de um processo cósmico que, necessariamente e com o concurso da liberdade humana, há-de finalizar com

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a esperada redenção do mundo. Na pura tradição, de raiz hebraica, profético-messiânica da cultura ocidental, a nação portuguesa, pelo que fez e deve fazer, pelo que cumpriu e deve continuar a cumprir, vale, também, para Agostinho da Silva, enquanto símbolo de uma esperança ou de um desejo íntimo de teor escatológico: a história, mas também a ciência, a filosofia, a literatura, a cultu-ra, todas as criações do espírito humano interessaram-no enquanto fórmulas de demonstração ou auxiliares de conhecimento e de entendimento para a consumação desse processo, em que as melhores das idiossincrasias nacionais ou os mais positivos e significativos eventos da história de Portugal – dos quais o navegar à bolina pelo mar ignoto e sem-fim sob o benefício e orientação dos astros, o descobrir novas linhas do horizonte, o ligar e religar continentes separados, o unir e casar gentes e culturas distantes e desconhecidas entre si – configuram, pelo seu valor de revelação e de reconstituição planetária da ideia-utópica-limite-da-unidade-essencial-do-ser, o acontecimento simbólico supremo. É este Portugal de vocação messiânica e milenarista, o Portugal do mito e o da utopia, ou talvez, em expressão mais ousada, o do mito utópico, e não o Portugal da ideologia e da história política, é este Portugal inspirado pela força do mistério e pelo jogo da descoberta, e não o Portugal agitado pela ambição do domínio e pelo jogo do poder imperial, é este Portugal do ser e não o Portugal do ter, este Portugal de esperança, de visão, de irmandade, de sacrifício voluntário e silencioso, representado por figuras-modelo como o rei poeta D. Dinis e a Rainha santa Dona Isabel – (acolhendo no Reino os francis-canos espirituais, discípulos de Joaquim de Fiore e propagadores do culto do Espírito Santo) -, mas também representado pelo Infante Santo – (expiando e redimindo, com o seu martírio, o maquiavelismo palaciano que trocou o amor fraterno pela razão de Estado, i.e., que trocou a fidelidade à infinita liberdade do império do espírito pela preservação das fronteiras contingentes e limitadoras do império material) –, representado por Luís de Camões – (escrevendo sobre a Ilha dos Amores, e tomando-a não tanto como prémio da viagem à Índia, mas antes como amostra de uma condição nostálgico-oracular, a do paraíso a reaver) –, representada por Fernão Mendes Pinto – (o peregrino da aventura e da efabulação, de polimorfa identidade circunstancial, vivendo segundo a ‘metafísica do imprevisível’ em permanente estado de espanto e de superação da adversidade), é este Portugal, o do Vieira e o do Pessoa, profetas do Quinto Império (transcendendo a “apagada, austera e vil tristeza”, como diz o verso camoniano, dos tempos de medíocre desvitalização e asfixiante repressão em que viveram, e apontando, por diferentes vias hermenêuticas, outras possibi-lidades de ser), mas também o Portugal dos municípios, dos baldios, da boda

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comunitária, das festas do Pentecostes, das cortes consultivas, da governação democrática e popular, da partilha pelos homens-bons da administração das coisas públicas, das descobertas geográficas, da fruição positiva, aventurosa e contemplativa da vida, é este Portugal ideal, disseminando-se pelos diferentes continentes ao longo dos séculos, sobrevivendo mais como língua sem frontei-ras do que pátria ou pátrias confinadas à geografia do seu território, é tudo isto que, no essencial, constitui o núcleo da identidade nacional prefigurador da ideia do Quinto império de Agostinho da Silva. A história de Portugal, melhor dizendo, uma certa história de Portugal, mais assumidamente mítica do que real, opera como uma espécie de mónada prospectiva ou esboço da utopia do Quinto Império no pensamento de Agostinho, o qual confere, à semelhança de Pessoa, maior valor de conhecimento à lógica do mito – tomado como súmula de uma verdade perene e desejada – do que à metodologia da história – entendida como especioso e, em última análise, subjectivo processo de re-constituição de uma irreconstituível objectividade dos factos pretéritos.

O seu texto Considerando o Quinto Império (1960) é uma es-pécie de guia ou manual de instruções para os adeptos desse projec-to, escrito no espírito mais espiritualmente empenhado do seu autor e onde se pode ler, como o eco de uma regra monástica, uma sistemática de princípios gerais de organização social e de acção potencializadora da vocação de perfectibilidade e de transcendência do ser humano. Aí escreve Agostinho. É com ele que queremos terminar: “Se o primeiro passo dos Impérios está sempre no espírito dos homens [...] muito mais estará para este Quinto Impé-rio de que falamos, o Império do Espírito Santo, a que iam os portugueses do século XV e a que podem, quando quiserem, ir os portugueses de hoje, o que significa os que hoje falam e sentem português.

Mas toda a revolução individual, e só por uma revolução individual ele se poderá iniciar, tem como seu reflexo uma organização colectiva. Os homens que por uma nova metanóia tiverem passado a ser crianças terão fatalmente de se organizar, e o tipo de organização terá de ser o de ordem religiosa, não de uma só religião, mas de qualquer religião, e considerando já como uma religião o próprio estabelecer-se criança. Uma só ordem de todas as religiões, uma or-dem fundada nas três liberdades tradicionais e essenciais de não possuir coisas, de não possuir pessoas e de não se possuir a si próprio. Os três votos como diríamos. [...]

Teremos como ideal de governo o não haver governo, como o não ha-via no Paraíso, e a toda a História veremos como a lenta e segura preparação, não pela sabedoria do homem, mas pela paciência e a tenacidade de Deus,

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para que, passando por cima de todas as teocracias, e de todas as aristocracias e de todas as democracias, cheguemos àquela também solução da antinomia governante-governado.

Teremos como ideal de economia o não haver economia, como não a havia no Paraíso, sendo apenas dever de cada um o florir como pode e direito de cada um o encontrar o que precisa: destruamos também aqui a antinomia de produtor e consumidor, de liberdade e segurança.

Teremos como ideal de gente aqueles em que também se tiver destruí-do a antinomia de criança e de adulto, de ignorante e de sábio, de homem e de mulher; esperemos que no Quinto Império não haja nem escolas nem livros nem casamentos: como no Céu.

Teremos como ideal de vida o não distinguir entre o que hoje chama-mos vida e o que hoje chamamos morte; teremos como ideal de verdade o não separar o que hoje chamamos verdadeiro do que hoje chamamos falso: teremos como ideal das geometrias de todas as dimensões o vê-las fundidas, aniquiladas, numa geometria de dimensão alguma.

E teremos, finalmente, como ideal de pensar, donde tudo arranca, a fusão plena de sujeito e objecto num não-pensar. Para o pôr em termos mais ou menos teológicos, queremos ver, do Pai e do Filho, o laço do Espí-rito que os une: ou de, na realidade, nos absorvermos na inconsciência dele. O que novamente traria a terreiro, desta vez sem heresia, o velho Joaquim de Flora, e seu Reino do Espírito Santo e seu Império da Flor-de-Lis” (SIL-VA, 1989: 197-200).

BibliografiaBÍBLIA SAGRADA – 8ª ed., Lisboa: Difusora Bíblica (Missionários Capuchi-

nhos), 1978.

BUBER, Martin – Paths in Utopia. London: Routledge & Kegan Paul, 1949.

COHN, Norman – Na Senda do Milénio: Milenaristas, Revolucionários e Anar-quistas Místicos da Idade Média. Lisboa: Ed. Presença, 1981

MANUEL, Frank; MANUEL, Fritzie – Utopian Thought in the Western World. Cambridge; Massachussets: Harvard University Press, 1979.

PESSOA, Fernando – Mensagem. Lisboa: Ática, s.d.

REEVES, Marjorie – Joachim of Fiore and the Prophetic Future. London: SPCK, 1976.

A genealogia do pensamento utopista de Agostinho da Silva José Eduardo Reis

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SHEPPERSON, George – “The Comparative Study of Millenial Dreams”, Mil-lenial Dreams in Action. Ed. Sylvia L. Thrupp. New York: Schoken Books, 1970.

SILVA, Agostinho da – “Considerando o Quinto Império”, Dipersos. Lisboa: ICALP, 1989.

VIEIRA, Padre António – Apologia das Coisas Profetizadas. Org. e fix. de texto de Adma Faduk Muhana. Lisboa: Livros Cotovia, 1993.

Notas1 REEVES, Marjorie. Joachim of Fiore and the Prophetic Future. London: SPCK, 1976, pp. 14-15. (Tradução nossa)

ResumoAgostinho da Silva costumava dizer que a melhor maneira de se ser moderno e revolucio-

nário no século XX era ser-se conservador do século XIII. O paradoxo – de que se nutriu,

aliás, com estimulante produtividade heurística o seu discurso poético-filosófico – deste

seu enunciado combinam categorias antinómicas (revolucionário e conservador) e tempos

históricos descontínuos e inconvertíveis (século XIII e século XX), não com a finalidade de

formular uma irónica aporia, mas tão-somente de apontar uma possibilidade axiológica

transtemporal. O século XIII a que Agostinho se refere é o século da introdução em Portu-

gal, no reinado de D. Dinis, do culto do Espírito Santo e da difusão da teologia da história

joaquimita (de Joaquim de Fiore). Como se sabe, o sentido teleológico da visão do curso

da história joaquimita apontava para a eminente e necessária instauração de uma era de

plena e amorável realização do ser humano sob a directa inspiração da imprevisível graça

da terceira pessoa da Santíssima Trindade. Na nossa comunicação, mais do que insistir na

congenialidade dos traços dominantes do pensamento de Agostinho da Silva com as rami-

ficações da teologia joaquimita no espiritualismo franciscano, procuraremos reflectir sobre

a sua inserção num veio do pensamento europeu que podemos designar de milenarista-

utópico, o qual teve também como eminente cultor um certo Fernando Pessoa.

Palavras-chave: Utopia; Milenarismo; Literatura Portuguesa.

AbstractAgostinho da Silva used to say that the best way to be modern and revolutionary in the

twentieth century was to be a thirteenth-century conservative. The paradox – with which

he nourished his poetic-philosophical discourse with stimulating heuristic productivity

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– of such a statement combines antinomous categories (revolutionary and conservati-

ve) and discontinuous and unconvertible historical time periods (thirteenth century and

twentieth century). Actually, this paradox is not meant to present an ironical aporia but

simply to point to a trans-temporal axiological possibility. The thirteenth century to which

Agostinho da Silva refers is when, during Denis I’s reign, the Holy Spirit cult was introdu-

ced in Portugal and Joachim of Fiore’s theology was diffused. As it is known, this popular

and heterodox cult is associated with Joachim of Fiore’s theological conception of history,

which predicted an imminent era of spiritual and physical fulfillment for mankind under

the free inspiration of the third person of the Holy Trinity. In this article, rather than em-

phasizing the common traits between Agostinho da Silva’s thinking and the ramifications

of Joachim of Fiore’s theology on Saint Francis of Assissi’s spiritualism, we shall carefully

consider its introduction in a European trend of thought that we might call millenarian-

utopian, which had an eminent follower named Fernando Pessoa.

Keywords: Utopia; Millenarianism; Portuguese Literature.

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Deus e liberdade em Agostinho da Silva

José Santiago Naud*

Face ao fatal, e aceite minha inépcia filosófica, devo socorrer-me do lirismo e vou fixar-me numa trova de Agostinho da Silva, mais de uma vez ou-vida nos anos 60, quando juntos palmilhávamos o campus da UnB, a univer-sidade recém-fundada em Brasília. E o faço ainda com a mesma perplexidade tida à leitura de Francisco Sanches, na adolescência, quando o seu Quod nihil scitur balançava minhas certitudes aristotélicas e a passagem do Renascimento ao Barroco, na falência dos dogmas medievais, arrancavam-me as muletas só-lidas da fé. Mas, com Agostinho, o pensamento ganha de novo o sopro primi-gênio e a dúvida, sob o influxo amoroso que “move o Sol e os outros astros”, dá lugar àquela reordenação cósmica de um universo misteriosamente decaído. Vamos, então, à quadrinha:

“Mais que a teu Deussê fiel ao que tu sejas de Fétalvez o Deus que te criasoculte o Deus que Deus é”

Temos nela, fundamentalmente, o princípio essencial do invisível di-vino e a liberdade que, no ativo exercício pedagógico do pensador, é condição inalienável da plenitude pessoal. Qualquer noção do Absoluto não pode ficar circunscrita às nossas limitações, mas reside profundamente na individuali-

* Natural da região missioneira do Rio Grande do Sul, graduou-se em Clássicas na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal, Porto Alegre. Professor no Colégio Estadual Júlio de Castilhos e pri-meiro diretor do Instituto Estadual do Livro, teve em 1958 o primeiro encontro com Agostinho da Silva, de quem publicou a primeira edição de Um Fernando Pessoa, nos Cadernos do Rio Grande. Professor pioneiro de Brasília em 1960, integrou o corpo docente fundador da UnB, reencontrando em 1962 o mestre, com quem trabalhou no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses (CBEP). A partir de 1966, lecionou em Yale, UCLA e outras uni-versidades norte-americanas ou européias. Então foi contratado pelo Itamaraty para dirigir o CEB/Centro de Estudos Brasileiros, na América Latina (sucessivamente, Bolívia, Argentina, Panamá e México). Poeta e ensaísta, tem dezenas de títulos publicados. Aposentado pela UnB, em 1992, reside em Brasília.

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dade que somos. E a criação dos mitos ou postulação dos dogmas nunca há de furtar-nos por ocultação à verdade transcendente. Tal dialética, menos de Hegel que de Platão, traz à baila Deus e a Liberdade, no implícito desvela-mento da própria semântica. De um lado, o Ser, absoluto; do outro, o ofício livre e criador do homem, muito embora contingente. Assim dinamiza Agos-tinho, buscador infatigável do saber aureolado em beleza, o fecundo exercí-cio da dúvida que, na demanda dimensional de tempo e espaço, esconde a verdade anterior a nós. Com isso, entre preexistente e existente, não furta ao mistério a sua fatia nem cega o fio da razão. Alcança o ponto de equilíbrio em que os contrários se completam; corpo e alma, mente e coração. Perfaz-se a totalidade em tamanho planetário, superior aos interesses globais ou a qualquer totalitarismo.

Já estamos então em condições de compreender o ponto fulcral da idéia de Deus para Agostinho da Silva. Em 1974, ele escreveu:

“Diz-me Frei G. H. que posso tranqüilamente continuar a pensar que Deus, simultaneamente, existe e não existe. Veria, então, Deus muito de acordo com uma idéia da física cosmológica de nossos dias, e não me serve para nada um Deus que não resista à ciência (...): ao tomar Deus conhecimento de si próprio, se vê, ou é, sujeito e objeto, Pai e Filho, com um intervalo imediato de tempo e de espaço, como me sucede a mim quando me vejo ao espelho (...); e isto, que só existe quando Deus existe e porque é Pai e Filho, sujeito e objeto, chamarei eu de Espírito Santo.”

Com a menção da Trindade, cristã no caso, que, para um ser ecumênico como ele, não exclui a Trimurti hindu nem o número presente no esoterismo ou religiões primitivas, fé e ciência se harmonizam. Conseqüente-mente, o homem logra alcançar a unidade na diversidade e toca de universal o nacional. Nesta altura põe-se a questão da liberdade, não apenas transparente na sua teoria, quanto exercida plenamente ao longo de sua vida fecunda, com devoção e destemor. Entendo que, literalmente, o enlace esclareça o oximoro contido no verso pessoano: “O mito é o nada que é tudo”, tanto quanto sua atenção prestada à etnografia, com realce para as Festas do Espírito Santo, culto do Divino. O paradoxo magistral de Agostinho nos ilumina em textos onde ele versa a mensagem universal e labiríntica do Pessoa e a tradição nacional e sal-vífica da História portuguesa, aberta à mutação. Isso fica evidente nas menções feitas ao movimento da filosofia portuguesa, quando lembra o Caeiro do “há metafísica bastante em não pensar em nada” ou do VIII Poema d’O Guardador

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de Rebanhos, e distingue o Espinosa que por não poder nascer na sua pátria foi falar noutras paragens o latim, espanhol ou neerlandês.

Quanto à tradição popular, desde Ourique aos 25 de Abril, na crista do Quinto Império seu pensamento e agir são libertários. Segundo se me afigura, norteou-lhe sempre o proceder a identidade e a coerência jamais truncadas. O indivíduo reflexo do povo, e o povo sustentação do individual. Neste sen-tido, noto que um valor pentagramático constela a sua personalidade e cifra substancialmente estas referências: 1 - Cister e a aceitação da mudança; 2 - os cavaleiros-monges e sua ação templária na demanda do Graal; 3 - o Espírito Santo e seu apelo ecumênico; 4 – a fraternidade e a pobreza franciscana; 5 - o Quinto Império e o Encoberto, com a reconstrução do mundo degradado ou concerto do anti-sistema em vigência. E será o professor Joaquim Domingues, desde a Braga milenarmente sagrada, quem melhor poderia comprovar-me, com seu livro publicado há quatro anos, o nexo feliz entre Agostinho da Silva, Deus e a Liberdade:

“Convicto de que tudo começa e se decide na liberdade e na respon-sabilidade de cada pessoa singular, por mais de uma vez lembra as virtudes conventuais e militares, ao pensar numa organização de ho-mens livres, cujo melhor modelo terá sido o das ordens de cavalaria, em que a disciplina consentida na ação se articula à comunhão vivida na fé e à pobreza partilhada e sublimada na castidade. A solução está, pois, no aperfeiçoamento individual, segundo um modelo que con-templa a integralidade da pessoa, mas que atinge o máximo grau de eficácia quando integrado em livres formas de associação fraterna.”

Para concluir, eu que tive a graça de freqüentá-lo na contemplação ju-bilosa do convívio, posso avaliar a luz que ele sempre irradiou, como gente ou intelectual. E o evoco sem saudades porque, segundo as “sagezas” de João Guimarães Rosa, Agostinho foi, era e é da estirpe daqueles que não morrem. Só ficam encantados. Não padeci nunca a sua falta. E o evoco pedagogo; na raiz, “o que conduz a criança”. Pois, transitou à vontade, de Sanderson a Sum-mer Hill, passando por Sérgio (de Verney ou Seara Nova), Montessori e Piaget. Porém, mais do que a escola formal, luzia-lhe o fogo do divino, com o Espírito Santo. Foi, de feito e de fato, Senhor da Utopia. Nem se lhe aponha na fronte a marca do anarquismo ou se busque na obra o vôo abissal de místicos, cilícios de ascese. Bom navegante a exemplo dos ancestrais, sorteava os parcéis das constituições ou dos atos institucionais e não ficou jamais em cima do muro. Ao invés, trilhava o Caminho da Serpente. Melhor português, poeta à solta,

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sua “escolástica platônica”, com todo o respeito a Ignácio de Loyola. Teresa de Ávila ou São João da Cruz, achou sempre o jeito de orar em sua orada. De certo, mais que ao Crucificado, ao Menino Jesus.

Por tanto, valha pedir vênia para adentrar o seu mundo com o espírito do futuro, a fim de que se edifique como ele quis “o reinado da criança e a sa-cralização dos animais e de tudo o resto”.

ResumoRelativamente a Deus, o pensamento de Agostinho da Silva não se circunscreve ao dogma

nem ao niilismo racionalista, mas centra-se no sopro cósmico e no criativo imaginário

humano. Eis uma noção do absoluto consubstancial à divindade. Assim, a relação exis-

tente/não-existente ou visível/invisível não furta ao mistério a sua fatia nem cega o fio da

razão. Essa dialética, menos hegeliana que platônica, põe a questão de Deus e Liberdade

desvelando a semântica. A generosa complexidade de suas noções informa o exercício da

pedagogia fecunda que distingue o autor entre os melhores pensadores da filosofia por-

tuguesa, repleta de inteligência criativa e comportamento ético. Será a conjunção perfeita

entre a cosmologia e as intuições da fé, que na força do Amor, segundo Dante, “move o

Sol e as outras estrelas”; confirma-o sua própria visão do futuro, “o reinado da criança e a

sacralização dos animais e de todo o resto”.

Palavras-chave: Dogma; Cosmos; Dialética; Criança; Pedagogia.

AbstractIn regard to God, Agostinho’s thought is not confined to dogmas or to nihilistic rationa-

lism, but rather inhabits the cosmic blast and man’s creative imagination. It is a notion

of the absolute consubstantial to divinity. Therefore, the relation existing/non-existing or

visible/invisible does not avoid mystery nor does it blind the edge of reason. This dialectic,

more Platonic than Hegelian, poses the question of God and Liberty unveiling semantics.

The generous complexity of his concepts informs the exercise of fecund pedagogy that

distinguishes the author among the best thinkers of Portuguese philosophy, full of creative

intelligence and ethical behavior. It will be the perfect conjunction between cosmology

and the intuitions of faith, which, powered by Love, according to Dante, “moves the sun

and the other stars”. This is confirmed by his own vision of the future: “the children’s reign

and the sacralization of the beasts and all things”.

Keywords: Dogma; Cosmos; Dialectic; Childhood; Pedagogy.

Deus e liberdade em Agostinho da Silva José Santiago Naud

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Como “cada momento do mundo é mais rico e complexo do que o anterior”:1 Agostinho da Silva e Henri Bergson2

Magda Costa Carvalho*

Se imaginássemos um debate acerca do sentido e da finalidade última do mundo e escolhêssemos como participantes Agostinho da Silva e Henri Ber-gson, assistiríamos ao diálogo entre dois pensadores fascinantes e ao confronto entre duas perspectivas totalmente distintas de conceber a realidade. Contudo, julgamos que esta divergência de pontos de vista não condenaria, de imediato, uma tentativa de aproximação entre as suas mundividências. Pelo contrário, pa-rece-nos que o encontro entre os dois descobriria igualmente laços de afinidade e de compatibilidade.

Na tentativa de concretizar esse diálogo, a nossa reflexão começará por abordar o que distancia Agostinho da Silva e Henri Bergson, no que respeita à leitura científica de cada um sobre o universo natural, para, posteriormente, apontarmos algumas das possíveis ligações filosóficas entre os dois. Procurare-mos, então, sublinhar possíveis influências que a filosofia bergsoniana exerceu na obra de Agostinho da Silva, evidenciando o que nos parecem ser vestígios da presença de Bergson no ideário do pensador português.

Tendo em conta o modo como os dois filósofos entendem o sentido último da existência – orientada, sobretudo, para a assunção humana de um

* Magda Costa Carvalho licenciou-se em Filosofia (Ramo de Formação Educacional) na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2000. No ano seguinte, começou a leccionar na Universidade dos Açores, tendo apresentado a esta Instituição, em 2003, provas académicas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, com uma tese sobre “O conceito de natureza em Antero de Quental” e uma lição subordinada ao tema “As noções de Verdade e de Justiça no pensamento positivista de Manuel de Arriaga”. Nos últimos anos, tem vindo a ocupar-se das disciplinas de Filosofia Moderna e de Filosofia em Portugal e encontra-se presentemente a preparar o douto-ramento acerca do conceito de “natureza” no evolucionismo de Henri Bergson. Para além de artigos em diversas revistas, publicou em 2006 a obra A natureza em Antero de Quental: o projecto de uma «metafísica positiva», uma edição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

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projecto espiritual fundante e em permanente concretização – consideramos que este Congresso é a ocasião adequada para reflectirmos sobre Agostinho da Silva e Henri Bergson, uma vez que, como iremos evidenciar, as suas obras se assumem, inequivocamente, enquanto pensamentos de um mundo a haver.

1. Dois modelos de leitura do real

A 13 de Fevereiro de 1906, nascia George Agostinho da Silva. Por essa ocasião, Henri Bergson contava já com 46 anos de idade e com um sólido e reconhecido estatuto que ultrapassava os limites geográficos e linguísticos franceses e projectava o seu pensamento na cena filosófica internacional. O pensamento de Bergson herdara uma ambiência especulativa que vibrava diante das orientações propostas pelas novas ciências naturais e, nesse sentido, comprometia-se profundamente com a recém-chegada biologia. Já Agostinho da Silva encontrava um mundo totalmente diferente, rendido às propostas de outras perspectivas científicas, em especial à revolucionária física quântica.

Bergson erigiu a sua filosofia segundo o modelo de inteligibilidade que as ciências biológicas propunham, procurando salvaguardar o fluir contínuo que, na sua perspectiva, caracterizava interiormente o real. Agostinho da Silva, por seu lado, advogava uma leitura do universo através de um movimento expansivo descontínuo e seguia de perto as doutrinas vinculadas pela física quântica. Enquanto que Bergson sublinhava, sobretudo, o impulso gerador que percorre toda a realidade e que dá origem ao seu carácter dinâmico e evo-lutivo – a que chama “élan vital” –, Agostinho da Silva considerava importante reter que a física do século XX vinha anunciar o fim da validade científica da ideia de “evolução” e que, consequentemente, já não fazia sentido falar-se nu-ma continuidade evolutiva intrínseca a tudo o que existe. Atentemos em dois pequenos excertos onde os autores apresentam e justificam essas opções e em que as suas perspectivas se colocam em pólos diametralmente opostos.

Diz-nos Bergson:

“Reportemo-nos então à experiência: diremos – e mais do que um biologista o reconhece – que a ciência está mais longe do que nunca de uma explicação físico-química da vida. É o que constatávamos inicialmente quando falávamos de um élan vital.”3

Ouçamos, por outro lado, Agostinho da Silva:

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“Desde que se admitiu a teoria quântica de grãos de energia separa-dos pelo que é fisicamente nada, toda a ideia biológica de evolução ficou destruída, quer como aparece em Lamarck, quer como a fixou Darwin. O que se pode dizer é que cada momento do mundo é mais rico e complexo do que o anterior. Nada de caracteres adquiridos, nada de modificações seja porque luta for e porque selecção se fixe. Há caracteres acrescentados – e nada mais.”4

A filosofia que Bergson expunha em obras como L’Évolution Créatrice – publicada em 1907, cerca de um ano após o nascimento de Agostinho da Sil-va – defendia uma concepção ontológica dinâmica, alicerçada na noção de ser como duração. Segundo o filósofo francês, a realidade constituía-se por uma continuidade indivisível de mudança e movimento,5 ou seja, o ser é essencial e interiormente “devir”. Dessa feita, Bergson considerava que a melhor forma de dar conta da duração enquanto estofo da realidade,6 de apreender o cresci-mento e a evolução intrínsecos à existência, seria adoptar filosoficamente os ensinamentos de ciências como a embriologia,7 seguindo de perto as orienta-ções da biologia evolucionista.

Agostinho da Silva, por seu lado, deixou-se seduzir pelas novidades científicas da física quântica. Em 1900, Max Planck, físico alemão, havia for-mulado a teoria dos quanta que serviria de base ao renascimento da física sobre a ideia de que o universo é essencialmente constituído por energia existente em determinadas quantidades (os designados “grãos de energia”, de que falava Agostinho da Silva). Ainda que a teoria quântica tenha surpreendido a Euro-pa no início do século XX, seriam precisas mais de duas décadas para que as universidades portuguesas a assimilassem. Portanto, quando em 1924 Agosti-nho da Silva ingressa na Faculdade de Letras do Porto, a elite cultural do país despertava para os avanços da ciência física. Ainda que tenha cursado Filologia e se tenha posteriormente dedicado a um pensamento de matriz filosófica e pedagógica, Agostinho da Silva não negligenciava os avanços do conhecimento científico e haveria de cultivar uma simpatia especulativa pela física quântica até ao final da sua vida. No seu entender, diante das novidades científicas trazi-das pela nova centúria, a biologia poder-se-ia facilmente reduzir a explicações de ordem física e química, nada justificando a especificidade da sua constitui-ção enquanto disciplina autónoma e diferenciada.8

Henri Bergson, como homem do seu tempo, também não ficou indi-ferente aos progressos da física, nem tampouco aos novos modelos de pensa-mento que ela propunha.9 Porém, segundo o filósofo, a física interpretava a

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duração do universo de uma forma truncada, isolando no fluir contínuo do real variáveis e unidades de medida abstractas e justapostas. À semelhança de um cinematógrafo, a física representava a mobilidade através de uma série de visões fotográficas que captavam perspectivas parciais, instantâneas e imóveis do real.10 Bergson considerava, portanto, que a interpretação física não servia aos fenómenos da vida, constituídos por um fluir único e contínuo.11

Encontramo-nos, assim, diante de um cenário dissidente em que Ber-gson se assume como adepto de uma continuidade evolutiva biológica e Agos-tinho da Silva afirma uma maior proximidade à leitura descontínua da física quântica. Contudo, parece-nos possível investir numa plataforma comum de entendimento entre os ideários filosóficos que cada um representa. As afini-dades começam desde já se atendermos às suas motivações últimas. Os dois encontravam-se diante da mesma questão: como é que caminha o mundo? Um e outro se interrogavam em face da profusão ôntica que nos rodeia e de como é que nós, seres que se destacam pela racionalidade e pela consciência, fazemos parte dessa aventura cósmica. Mais do que isso, estavam ambos certos de que reside no homem a resposta final a todos os enigmas, e procuravam deslindar de que forma é que a humanidade concretiza, ou pode vir a concretizar, o des-fecho da grandiosa marcha universal.

“Mas não será esta uma atitude que caracteriza um grande número de filósofos?”, poder-se-ia objectar. “Certamente”, respondemos. Porém, há um as-pecto que particulariza e aproxima os projectos dos nossos autores: o de que tanto Henri Bergson como Agostinho da Silva pensam o mundo como um to-do em permanente desenvolvimento ou expansão, seja ao nível físico-biológi-co, seja ao nível metafísico-espiritual. Os dois filósofos concebem o universo como um processo em aberto: que se traduz num crescimento contínuo, para Bergson,12 e onde cada momento é mais rico e complexo do que o anterior, segun-do Agostinho da Silva.

Por isso, não temem a noção de “imprevisível”, acolhendo-a enquanto núcleo por excelência da manifestação do ser: Agostinho afirma que o divino que o homem alberga no seu seio se manifestará sempre de uma forma im-prevista (permanecendo até imprevisível se, e quando, se manifesta) e concebe precisamente o Espírito Santo – conceito maior do seu pensamento – como a imprevisibilidade por excelência;13 Bergson, por seu turno, define toda a natu-reza como uma imensa eflorescência de imprevisível novidade,14 considerando inauditas e inesperadas as formas biológicas que a vida cria no seu movimento evolutivo15 e apresentando a consciência – motor de toda a evolução biológi-co-metafísica – como o domínio da indeterminação e da imprevisibilidade.16

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Uma vez aceite esta primeira sintonia entre os dois pensadores, prossi-gamos a aproximação entre as suas filosofias.

2. A presença de Bergson no ideário de Agostinho da Silva.

2.1. Bergson em Portugal: breves notas.

A análise das influências bergsonianas no ideário de Agostinho da Sil-va deve começar por atender, de um modo geral, à presença de Bergson no pensamento filosófico português contemporâneo. Está ainda por fazer, na sua total dimensão e amplitude, o estudo dessa presença. Contudo, o âmbito pre-visto pela nossa reflexão autoriza-nos apenas a sublinhar algumas breves notas sobre esta questão.17

Desde muito cedo que filósofos e homens de ciência portugueses se debruçaram sobre a obra do pensador francês, datando das primeiras décadas do século XX a transposição de determinados passos da obra bergsoniana para a língua portuguesa. Foi o que aconteceu em 1919, na sequência de um estudo intitulado Dinâmica do pensamento, que constituiu uma dissertação de final de curso da Faculdade de Medicina de Lisboa.18 Nessa obra, Bergson é am-plamente citado a propósito de temáticas do domínio psicológico e, segundo o autor António Aleixo de Sant’Anna Rodrigues – numa carta que enviou a Bergson nesse mesmo ano, a acompanhar um exemplar dessa sua tese –, nunca antes se haviam encontrado trechos da filosofia bergsonista traduzidos para o nosso idioma.19

Mas, cerca de 10 anos antes, no final da primeira década do século XX, já Leonardo Coimbra publicava algumas reflexões que denunciavam cla-ramente um acompanhamento sério e comprometido do bergsonismo.20 Este pensador haveria de se tornar responsável por uma divulgação em larga escala da filosofia de Bergson em Portugal, em especial no que respeita ao combate bergsoniano em prol da reabilitação da metafísica diante dos excessos do po-sitivismo oitocentista. Em 1919, Leonardo Coimbra funda a Faculdade de Le-tras do Porto, instituição onde, durante vários anos, formou um leque diversi-ficado de discípulos. Ainda que seja necessário salvaguardar a originalidade do seu pensamento diante da filosofia de Bergson, é inegável que o magistério de L. Coimbra transmitiu à elite filosófica portuguesa uma visão comprometida e crítica acerca dos conteúdos da filosofia bergsoniana. Uma vez que Agostinho Silva se contava entre essa elite formada pelo magistério leonardino, foram certamente precoces os seus contactos com o universo filosófico de Bergson.

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A acção impulsionadora leonardina é testemunhada por dois docu-mentos que nos parecem fundamentais, da autoria de dois dos mais conhe-cidos discípulos de Leonardo Coimbra e colegas geracionais de Agostinho da Silva. Em primeiro lugar, referimo-nos a uma carta de Delfim Santos ao pró-prio Bergson, de 1935, onde o pensador português dá conta quer do entusias-mo que na altura grassava entre o núcleo dos discípulos de Coimbra em torno do bergsonismo,21 quer do grande interesse com que alguns professores por-tugueses acompanhavam e divulgavam a obra de Bergson e como o considera-vam o mais profundo pensador contemporâneo. O modo como Delfim Santos se dirige ao filósofo francês, tratando-o por “Mestre”, é por si só elucidativo. O encontro entre os dois pensadores concretizou-se uns dias depois e veio a re-velar-se decisivo na aproximação de uma determinada facção do pensamento português da época à filosofia de Bergson. O teor desta conversa foi divulgado por Delfim Santos quer numa carta que endereçou de imediato a José Mari-nho – e que terá amplamente circulado entre outros pensadores portugueses da mesma geração –, quer num artigo intitulado “Una visita a Henri Bergson”, publicado em 1938 no periódico mexicano Luminar.22

Em segundo lugar, referimo-nos a um artigo de Álvaro Ribeiro inti-tulado “Bergson au Portugal”, publicado em 1956 nos Études bergsoniennes. Escrito já após a morte de Leonardo Coimbra (1936), e também de Bergson (1941), este curto artigo vincula como ideia-chave a tese de que fora do grupo de discípulos de L. Coimbra a influência de Bergson não foi nem suficiente-mente evidente, nem autêntica.23

Ao fazer parte desta geração pós-leonardina, Agostinho da Silva teve, portanto, ao seu alcance uma ambiência especulativa em profunda sintonia com os conteúdos do pensamento de Bergson. Para além disso, não esqueça-mos que, entre os anos de 1931 e 1933, Agostinho foi estudar para Paris, tendo frequentado, para além da Sorbonne, o Collège de France, instituição onde os cursos de Bergson tinham ficado célebres alguns anos antes. Em 1932, du-rante essa estadia de Agostinho da Silva em Paris, Bergson publicou a última das suas grandes obras originais, Les deux sources de la morale et de la religion, escrito que foi preparado ao longo de mais de duas décadas e que era já muito aguardado. A sua recepção no seio da filosofia francesa causou grande polé-mica e fez despoletar inúmeros debates. Estando em Paris, Agostinho da Silva não ficou certamente indiferente a estes eventos.

Algumas décadas mais tarde, em 1960, já no Brasil, Agostinho proferiu uma conferência sobre Bergson, na Universidade Federal de Santa Catarina.24 Ainda que, infelizmente, se desconheçam os conteúdos dessa palestra, o facto

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de ela ter ocorrido dá-nos mais um argumento para conferirmos legitimidade à procura por ecos bergsonianos na obra do filósofo português.

Desta feita, num momento ou noutro do seu percurso, A. da Silva de-frontou-se com o pensamento de H. Bergson. Como filósofo que era, não dei-xou, com certeza, de retirar da filosofia bergsoniana alguns ensinamentos, até porque, como ele próprio advertia, aprender ideias não tem valor senão quando nos serve para formar ideias.25 Foquemos, então, alguns conceitos e linhas de leitura onde se torna mais visível a aproximação entre Agostinho da Silva e o bergsonismo.

2.2. Agostinho da Silva e o bergsonismo: aproximações conceptuais.

Apesar de ser consensual que o magistério de Leonardo Coimbra não foi tão decisivo no percurso de Agostinho da Silva como aconteceu com al-guns dos seus condiscípulos, em certos aspectos do pensamento agostiniano ressoam determinadas orientações filosóficas vinculadas pela Renascença Por-tuguesa. O reconhecimento de um princípio produtor espiritual, actividade dinâmica e criadora, como origem e fundo da realidade, é visível na obra de Agostinho da Silva. Para além da influência dessa disposição espiritualista e criacionista, a leitura agostiniana do “homem” como a pedra-de-toque na marcha perfectibilizadora do mundo bebe directamente do ensinamento leo-nardino – e, em primeira instância, bergsoniano –, segundo o qual o homem não existe passivamente numa realidade já feita, mas é o sublime obreiro de um mundo a fazer. Analisemos mais de perto a trama que perpassa os conceitos de “espírito” ou “divino”, de “criação” e de “homem”, enquanto pontos de contac-to entre Agostinho da Silva e de Henri Bergson.

a) “espírito” ou “divino”A noção de “espírito”, como princípio e força que atravessa todo o uni-

verso e nele se faz presente, atrai os dois pensadores, assumindo um papel de extrema relevância na forma como concebem a existência. Num e noutro caso, o espírito é, algumas vezes, referido como “Deus” ou “divino” e quer Agosti-nho, quer Bergson exibem uma grande cautela no tratamento filosófico que conferem à noção.

Em relação a Bergson, o conceito de “Deus” é provavelmente um dos maiores enigmas da sua obra. Tratado de forma muito breve em L’Évolution Créatrice, de 1907, é apenas nas Deux sources, de 1932, que é filosoficamente

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desenvolvido. De um relato para o outro, contrastam duas posições distintas, senão mesmo contrapolares. Na primeira, encontramos uma concepção ima-nente de Deus como o centro evolutivo de onde jorram as coisas e os seres, entendido não como uma coisa ou entidade, mas enquanto processo de vida incessante, que o homem experimenta em si mesmo quando age livremente.26 Na obra de 1932, por outro lado, Bergson está já mais perto de um Deus con-cebido de feição transcendente, ao modo da religião e da mística, e ainda o entende enquanto energia criadora.27

No que respeita à leitura agostiniana, apesar da centralidade da noção de “Deus”, são inúmeras as reticências e as cautelas na sua referência, uma vez que o pensador insiste na restrição delimitadora da divindade causada pelas diversas tentativas de a definir e provar.28 Porém, Agostinho refere-se-lhe en-quanto espírito criador por excelência29 cuja natureza se cumpre na intimidade ontológica do homem. Entendida como energia ou espírito criador – à seme-lhança da interpretação bergsoniana –, a divindade é concebida por Agostinho da Silva também entre a transcendência e a imanência,30 ou seja, entre um acto criador omnipotente doador de ser ao mundo e uma auto-realização omni-presente cumprindo-se na liberdade humana. O percurso do universo é, afinal, o percurso que Deus faz e se faz, a “aventura” – como lhe chama Agostinho –, simples e interminável de ser plenamente o que se é.31

b) “criação”Quanto ao conceito de “criação”, a sua leitura tradicional, herdada do

cristianismo, enquanto acto pontual de doação de ser de uma entidade divina separada do mundo criado, sofre aqui profundas alterações. Bergson concebe a criação como movimento perpétuo de surgimento do absolutamente novo e alerta para a necessidade de nos desvincularmos do pré-conceito, segundo o qual existe uma entidade que cria outras entidades.32 Enquanto duração, o mundo é uma imensa actividade criadora, concretizando-se permanentemen-te. Agostinho da Silva, por seu turno, interpreta a vida como um eterno esforço criador,33 responsável pela condução dos destinos de um universo dinâmico,34 e antevê a “criação” e o “criado” como contínuos.35 Também aqui, o movi-mento criador que subjaz a tudo aquilo que existe não se dá de uma vez por todas, mas cumpre-se a cada momento. E, tal como acontece em Bergson, essa concretização dá-se na acção humana.

Criado à semelhança de Deus, o ser humano reafirma a sua filiação divina assumindo-se como instrumento da própria criação. Assim sendo, ambos colocam na capacidade criativa de fazer surgir o novo e o inesperado

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a mais alta vocação e sentido da existência humana. Diz-nos Bergson que a criação é a empresa onde Deus cria, à sua imagem, criaturas criadoras,36 e on-de aguarda que elas queiram cumprir esse destino, única forma de perpetuar o seu élan. Já Agostinho afirma que, mesmo que todos os homens sejam filhos de Deus, é necessário correr o risco de provar e justificar a parecença divina. Ora, essa prova só é possível se o homem, seguindo os passos do divino, se assumir como criador.37

c) “homem”Ainda que a todos os indivíduos seja feito o desafio de superarem os

limites da estrita humanidade, poucos são os que verdadeiramente transfor-mam a sua vida em movimento criativo. Fazê-lo não implica levar a cabo grandes façanhas artísticas ou inventar o mais estranho e singular engenho. Para A. da Silva, consiste simplesmente em assumir a unicidade do projec-to que constitui cada ser humano, a cada momento e em todas as ocasiões, comprometer-se diante da ideia de que a cada homem cabe deixar feito o que nenhum outro fez.38 Para Bergson, essa escolha significa reproduzir pela acção e por um testemunho constantes a generosidade e o amor que subjazem à ac-tividade divina,39 recusar os limites da individualidade e intensificar, junto de cada homem, focos de generosidade.40

Os homens que acedem a essa missão permitem que a sua interiorida-de seja palco para a final revelação do universo, dando voz à centelha divina que os habita e constitui. Bergson desenvolve este projecto através da noção de “santo” ou “herói” e concebe a redenção integral da criação como a assunção desse destino superior. Agostinho da Silva propõe uma revisão das mentalida-des através da acção criadora do espírito, antevendo uma sociedade nova onde a ocupação humana deixará de limitar e esgotar o indivíduo e o encaminhará para a plenitude divina.

Assim sendo, ainda que assumam modelos distintos de leitura do uni-verso, Agostinho e Bergson comungam de uma mesma inspiração espiritual. Ambos investem numa concepção que encara a realidade quer como mani-festação físico-biológica de uma energia espiritual potenciadora, quer como incitamento metafísico-moral à acção autenticamente libertadora. Ambos in-vestem numa concepção do mundo que caminha na direcção de um futuro aberto, perpassado por uma actividade divina de doação plena e permanente, e onde cada momento é mais rico e complexo do que o anterior.

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Notas1 A. da Silva, “Pensamento à solta”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, Âncora Editora, Lisboa, 1999, p. 148. O presente estudo foi efectuado ao abrigo de uma bolsa de doutoramento atribuída pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

2 Comunicação apresentada no Congresso Internacional “Agostinho, pensador do mundo a haver”, ocorrido nas cidades de Lisboa e do Porto em Novembro de 2006, e integrada nas respectivas actas, recentemente publi-cadas em Portugal.

3 H. Bergson, Les deux sources de la morale et de la religion, em Œuvres, Presses Universitaires de France, Paris, 2001, p. 1.070.

4 A. da Silva, “Pensamento à solta”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, p. 148.

5 Cf. La perception du changement, em Œuvres, p. 1.384.

6 Cf. L’Évolution Créatrice, em ibidem, p. 800.

7 Cf. ibidem, p. 802.

8 Cf. “FPH”, em Dispersos, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, s./d., p. 416.

9 Bergson conhecia bem a obra de Einstein: questionou-o directamente, em 1922, numa sessão da Société Française de Philosophie e publicou, nesse mesmo ano, a obra Durée et Simultanéité, acerca da noção de “tempo” na teoria da relatividade.

10 Cf. L’Évolution Créatrice, em Œuvres, p. 753.

11 Ibidem, p. 585.

12 Cf. Ibidem, p. 785.

13 Cf. “Do previsível e do imprevisível”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, pp. 379-381.

14 Cf. La conscience et la vie, em Œuvres, p. 833.

15 Cf. Les deux sources de la morale et de la religion, em ibidem, p. 1.072.

16 Cf. La conscience et la vie, em ibidem, p. 824.

17 Existem variados estudos e referências dispersas que procuram relacionar alguns nomes da filosofia portu-guesa contemporânea com a obra bergsoniana, contudo, na sua grande maioria, versam apenas sobre o pensa-mento de Leonardo Coimbra. Para além disso, em 1986, Pinharanda Gomes publicou um breve estudo intitula-do “Bergson e a filosofia portuguesa”, onde apresenta um panorama geral sobre a influência do filósofo francês no pensamento filosófico nacional. Contudo, uma análise comparativa sistemática que desenvolva e justifique as indicações fornecidas por Pinharanda Gomes não foi ainda concretizada.

18 A. A. de Sant’Anna Rodrigues, A dinâmica do pensamento, Tipografia do Anuario Commercial, 1919.

19 Carta inédita, pertencente ao Fonds Bergson de la Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet, em Paris, de-tentora do espólio do filósofo, com o registo BGN-2207 V-BGN-3. Bergson respondeu a Sant’Anna Rodrigues afirmando que, apesar de ter lido apenas superficialmente a obra do investigador português, reconhecia a apro-ximação do seu trabalho às conclusões da obra Matière et Mémoire (cf. H. Bergson, Correspondances, Presses Universitaires de France, Paris, 2002, p. 892).

20 Cf. M. Ferreira Patrício, “Prefácio” a L. Coimbra, A filosofia de Henri Bergson, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1994, p. 15.

21 Esta carta e outra datada de um mês mais tarde estão ainda inéditas e pertencem também à Bibliothèque Littéraire Jacques Doucet, com a referência BGN-22093/II-BGN-VI.

Atente-se, ainda, no facto de que, cerca de um mês mais tarde, foi Delfim Santos o responsável por fazer chegar

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às mãos de Bergson um exemplar do livro A filosofia de Henri Bergson, obra que Leonardo Coimbra havia pu-blicado três anos antes.

22 Cf. D. Santos, Obras Completas, vol. I, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1998, pp. 197-201; vol. IV, pp. 91-103.

23 Cf. “Bergson au Portugal”, em Les études bergsoniennes, vol. IV, Éditions Albin Michel, Paris, 1956, pp. 227-229. Será interessante referenciarmos a publicação, em 1937, do Ensaio de interpretação bergsonista, volume I, dissertação de licenciatura que Guilherme de Castilho apresentou em Coimbra e que, ao lado da obra leonardina A filosofia de Henri Bergson, constituem os únicos volumes do pensamento português da época que analisam de forma exclusiva e sistemática a filosofia bergsonista.

24 Informação obtida junto do Dr. Amon Pinho Davi e da Dr.ª Romana Valente Pinho, investigadores do espó-lio e do pensamento de Agostinho da Silva no Brasil.

25 “Glossas”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. I, p. 49.

26 Cf. L’Évolution Créatrice, em Œuvres, p. 706.

27 Cf. Les deux sources de la morale et de la religion, em ibidem, p. 1.191.

28 Cf. “Pensamento à solta” e “Ecúmena”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, pp. 166; 197.

29 Cf. “As aproximações”, ibidem, p. 36.

30 Cf. R. Valente Pinho, Religião e metafísica no pensar de Agostinho da Silva, Imprensa Nacional – Casa da Mo-eda, Lisboa, 2006, p. 58.

31 Cf. “As aproximações”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, p. 35.

32 Cf. L’Évolution Créatrice, em Œuvres, p. 705.

33 Cf. “Considerações”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. I, p. 105.

34 Cf. “Sobre a ideia de Deus”, em ibidem, vol. II, pp. 297-298.

35 Cf. “Pensamento à solta”, em ibidem, p. 162.

36 Cf. Deux Sources de la morale et de la religion, em Œuvres, p. 1.192.

37 Cf. “Pensamento à solta”, em Textos e ensaios filosóficos, vol. II, pp. 158-153.

38 Cf. “Macau”, em ibidem, p. 384.

39 Cf. Deux Sources de la morale et de la religion, em Œuvres, p. 1.194.

40 Cf. La conscience et la vie, em ibidem, p. 834.

ResumoO artigo pretende relacionar o pensamento de Agostinho da Silva com a filosofia de Henri

Bergson, tendo em conta que a obra do autor francês consistiu numa das mais lidas por

Leonardo Coimbra e pela geração dos seus discípulos. Agostinho da Silva não foi pro-

priamente um discípulo do ideário leonardino e, consequentemente, é certo que as suas

reflexões não foram tão permeáveis às teses bergsonianas como aconteceu com outros

nomes da filosofia portuguesa contemporânea. Porém, tendo estudado em Paris no início

dos anos 30, Agostinho teve com certeza um contacto directo com a grande repercussão

filosófica da obra do pensador francês. Ainda que defenda um modelo essencialmente

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físico de leitura do real – ao contrário da orientação biológica de Bergson –, é possível en-

contrar algumas afinidades entre os dois, nomeadamente no desenvolvimento de alguns

dos principais conceitos que orientam as suas obras.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Henri Bergson; Física; Biologia; Espírito;

Criação; Homem.

AbstractThis article intends to establish a relationship between Agostinho da Silva’s thought and

Henri Bergson’s philosophy, bearing in mind that the French author’s books were among

the most read by Leonardo Coimbra and his disciples’ generation. Agostinho da Silva was

not quite a disciple of Leonardo’s philosophy, and thus it is certain that his ideas have not

been as pervious to Bergson’s arguments as other authors from the Portuguese contem-

porary philosophy. However, having studied in Paris at the beginning of the 1930s, Agos-

tinho certainly had the opportunity of direct contact with all repercussions of this French

philosopher’s work. Even though he defends an essentially physical model regarding the

interpretation of reality – opposite to Bergson’s biological orientation –, it is possible to

find some similarities between the two, namely concerning the development of some of

the main concepts which guide their works.

Keywords: Agostinho da Silva; Henri Bergson; Physics; Biology; Spirit; Crea-

tion; Man.

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O Fingimento – Permanência de um tema pessoano em Agostinho da Silva

Manuel Cândido Pimentel*

«Mas, Diotima, eu não sou um filósofo. […] Não, Diotima, sou um poeta: mais imagino a vida que a explico…» (Agostinho da Silva, Conversação com Diotima)

O mundo da criação literária e filosófica não se explica pelos condicio-nalismos socioculturais ou com a psicologia particular do autor. Embora não sejam estas dimensões desprezáveis, são redutoras as exegeses que exclusiva-mente as cultivam. O mundo do texto é um universo de sentido e é o senti-do que primacialmente convoca a tarefa do interpretar. O verdadeiro criador é-o na medida em que, interpretando-se, interpreta o real – o que por isso geralmente se entende, o que nisso ele investe e o que ele com isso significa; inventando-se, reinventa o mundo e cria mundos, pelo movimento criador superando por transformação as orientações dominantes da época e os condi-cionamentos da sua própria caracterologia. E se estes e aquelas afloram ou se ocultam no texto, só o texto emerge como o lugar de todas as articulações de sentido, de permanência e alquimia de sentidos. Só ele convida à travessia para o universo situado além das palavras, universo de que sempre afinal se faz a descoberta de não ser mais do que o universo nunca gratuitamente dado, antes aflorado, ainda e sempre, por mediação ou via das palavras.

* Manuel Cândido Pimentel é Professor da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portu-guesa (Lisboa) e Director do Departamento de Filosofia e Director do CEFi – Centro de Estudos de Filosofia, na mesma instituição. Membro da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, sócio-fundador e membro da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com obra dispersa por revistas em Portugal e no estrangeiro. Alguns títulos de sua obra: Antero de Quental: Uma Filosofia do Paradoxo (1993), Filosofia Criacio-nista da Morte: Meditação sobre o Problema da Morte no Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra (1994), Odis-seias do Espírito: Estudos de Filosofia Luso-Brasileira (1996) e A Ontologia Integral de Leonardo Coimbra: Ensaio sobre a Intuição do Ser e a Visão Enigmática (2003). Além da crítica e do ensaísmo, cultiva a poesia. De entre as suas obras, que tem assinado com o nome literário Manuel Cândido, destaca-se A Nudez do Tempo (1995).

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Perguntamo-nos pelo autor e pela problemática oculta do autor. A problemática não a dá o texto nem nada a pode dar. O que no texto é susceptí-vel de atingir-se é, quando muito, o resíduo ontológico que dessa problemática nele restou, tal como a identidade do autor é toda a sua obra de subjectivação no texto que criou e veio a nós: a sua visão de si, dos outros e do mundo, o que pensou e o que sentiu, tudo em comum com o que construiu e inventou.

Estas palavras iniciais, se respeitam, ainda que superficialmente, ao que penso da interpretação do texto literário e filosófico e do que entendo pela complexidade do acto de criação,1 adequam-se, em particular, a este persona-gem fascinante da nossa cultura, misto de poeta e filósofo, de sábio, profeta, místico e pedagogo: George Agostinho Baptista da Silva.

Mais do que prender-se a um ou a outro sistema filosófico, àquela cor-rente ou tendência literária, a este ou demais culto de género e de forma, culti-vou a sapiência no grau maior, a sapiência que não se acha no plano do saber disperso e fragmentário, antes no plano do Verbo pelo qual todas as coisas e saberes se fazem um. Entre nós, soube traduzir, no pensar e no agir, a tão antiga como nova verdade do fragmento de Heráclito: «A sapiência consiste apenas nisto: ser familiar do pensamento que governa o todo por meio do todo.»2

Porque Agostinho da Silva apreendeu o núcleo da verdade heraclítica e nele se colocou, frustre se torna a tentativa de encaixá-lo na circunscrição de um nome – poeta, filósofo, místico, pedagogo…, identidades que, outrossim, recusou, embora nelas e nas expressões delas se tenha afligido e encoberto e, para nós, viva oculto, paradoxalmente sendo, a um tempo, todas elas. O que ele não disse e não quis dizer foi que uma valia mais do que outra ou que numa mais estaria do que noutra em particular. Não o poderia ter dito quem, olhan-do-se a si, de si escreveu: «Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.»3

Melhor do que a tentação do juízo e o querer a definição, aceite-se a obra de Agostinho da Silva como o poema de uma vida. Aceitar isso é reco-lhermo-nos na visão do paradoxo, a que tudo inclui, tanto quanto exclui as definições do todo pela composição da parte. O processo da seiva vital que gera a rosa não serve para definir a rosa nem a rosa para definir a seiva. Se a parte é na geração do todo, o todo cria a parte. Está aí a filosofia de Agostinho: uma ânsia de ser todas as possibilidades, uma existência que não renunciou a querer saber o que é a existência – ainda que muda fosse a resposta –, uma cruzada pelo uno, a unidade e o infinito – ainda que confusa fosse a navegação, incerta a demanda. São os rasgos constantes, perceptíveis nos seus textos; desprendem-se do marulhar das suas palavras de embate ao nada e à possibilidade do nada,

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de encontro à contradição e em convívio com a contradição: o ser e o não ser, o agir e o não agir, a quietude e a inquietude, a esperança e a desesperança…

Nas contradições que sentiu e exprimiu, o poema da vida – a sua poesia e a sua filosofia, numa palavra, a obra: a reflexiva, a ficcional e a poética – tem o entusiasmo bastante do marinheiro que afronta as vagas na alegria hercúlea de saber que o desconhecido é símbolo de mistério, que o pode afundar no imo do oceano; talvez para o devolver às praias que, um dia, sonhou, que não conhecia, mas estremecia, como para aquela camoniana Ilha dos Amores, a que encanta o imaginário de Agostinho, se encaminham as contradições de nós para reciprocamente se anularem no chão fértil de sua unidade.

O que requinta a sentida senda do marinheiro, a que subitamente podem faltar sextante e leme – e o marinheiro é, para Agostinho, uma imagem existen-cial dele próprio, de nós portugueses e, universalmente, da condição humana –, no risco de perder-se, é o confiar-se à verticalidade do futuro, cantando:

Nunca voltemos atrástudo passou se passoulivres amemos o tempoque ainda não começou.4

Há nesta quadra a mesma incrível força de destinação que gerou Pes-soa para a palavra do «homem do leme», que, não obstante o medo, «tremeu, e disse,/ ‘El-Rei D. João Segundo!’»5 Precisamente nessa força está para Agos-tinho o ser de Portugal e dos portugueses. O que disso pensou? Multiplamen-te o expressa na obra. Consciente ou inconscientemente, da amplitude dos oceanos que, no antanho, navegámos, contraiu Agostinho da Silva a imagem peregrinante do Portugal que somos e nunca, apesar dos desmentidos do me-nos real, deixámos de ser e continuaremos a ser na alma dos Agostinhos que filosofaram e poetaram neste chão do Santo Espírito, as terras de Camões, de Vieira e de Pessoa, génios heterónimos de Portugal, como o marinheiro de Mensagem, todos eles convocando-nos a tornar «coerentes os contrários», «em toda a tessitura de pensar e viver», para nos fundarmos «em ser o irracional tão de razão como o seu inverso».6

É sobretudo nas páginas da longa entrevista a Antónia de Sousa – O Império acabou. E agora?7 – que se torna sensível a dilatação da ficcionalida-de heteronímica, em desdobramento de motivos pela obra literária e reflexiva do pensador, à imagem de um Portugal que sonha futuros na alma das suas heteropessoas, expressão do próprio, que a engendrou para melhor correlato

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da palavra heterónimo, a propósito da complexa «personalidade pluriforme» de Vieira.8 Penso que Agostinho deixou intencionalmente passar a ideia, na entrevista, de uma deslocação do processo heteronímico do plano individual do criador, em que o mesmo processo ordinariamente se coloca e o aplicou Pessoa, para o plano colectivo de um eu-nós de plurais faces, adivinhando em cada eu-um desse nós o viver substancial da força futurante que é destino de Nação, saudade do Quinto Império e cumprimento da Hora.9

É provável que nas contradições de Portugal revisse Agostinho as con-tradições que em si, de si e para si concebeu, como possivelmente de géne-se colectiva inconsciente foram as contradições em Pessoa, e visse no forjar ficcional, que no nível dos processos do fingimento literário encontramos, a natural consequência, nele, do modo português de inventar-se, que no outrora efectivamente se inventou Portugal, que no futuro a invenção continuaria a ser. A invenção, senda existencial de nós próprios, tem uma exigência. Há que ousar querer a Ilha dos Amores. Ousadia a que se resumem Os Lusíadas de Ca-mões, a História do Futuro de Vieira e a Mensagem de Pessoa, os relatos vivos do profetismo de Portugal. Extensivamente, poderíamos à obra desta tríade aplicar o que Agostinho disse de Os Lusíadas, como o seu título verdadeiro: «[…] a Viagem do Nada que nós somos, por Tudo sermos, ao Tudo que são todos sendo Nada.»10

À parte a abrangência do colectivo pela teoria heteronímica ou da he-teropessoa, que significa o processo de criar ou gerar outras pessoas, na relação com o criador, mas já no fruto de ser um outro passemos ao plano ficcional do fingimento heteronímico, observando que o que aqui me interessa não é o tema psicológico do fingimento nem a atitude moral que suscite.

Atendo ao processo ficcional que o fingimento, em literatura, implica e, no registo filosófico, especialmente metafísico e ontológico, à ficcionalida-de do fingir coordenada aos actos de criação de mundo. A prosa ficcional e filosófica, bem como a poesia de Agostinho da Silva mergulham no húmus imaginante do fingimento; e desse húmus brota a coerência da visão do real que ostenta nas orientações para uma busca impenitente e incansável da unidade. Ganhe-se ou perca-se a unidade no encontro com o outro de mim mesmo, sempre será a unidade o objecto da demanda. É até por isso que a obra de Agostinho se apresenta como uma jornada que renasce a cada instante das rotas que aventura. A geografia é a da descoberta. Não a do repouso, mas a geografia incessante do imprevisível.

Pelo maravilhoso do imprevisível do que finge em outros, o poe- ta apresenta-se:

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Nesta confusão navegoneste tumulto me entendonão me importa o que sou eumas o que os outros vão sendo.11

As Quadras Inéditas de Agostinho são um formoso repositório do fin-gimento literário, assinalado logo na primeira quadra introdutória em que o autor pretende o juízo dos leitores sobre a qualidade de seus versos, negando-se, como autor, o apresentar-se poeta, que, se aquela qualidade for real, por certo que o reconhecimento será para um outro o verdadeiro poeta que as quadras a ele deram:

Se estas quadrinhas não prestamcom certeza as compus eumas se boas foi poetaalém de mim que mas deu.12

A subjectividade desdobrada em outro que os versos iniciais convocam transfigura a tessitura poemática de Quadras Inéditas ao dá-la à operosidade au-toral dos múltiplos, sobre cuja coerência se funda toda a verdade de ser e sentir, «coerência inventada/ por um saber que imagina/ que sabe e não sabe nada».13 Um saber que imagina não é sujeito, mas transformação de aqui e agora, circuns-tância que, por vezes, é e, outras, não é; só o movimento incessante me traduz o que vou sendo, pelo que é do que vou sendo que o sujeito emerge, sem mais razão de nascer do que de morrer, sujeito cujo ser, se algo for, ou é nada, ou, para não sê-lo, tem de fingir o que é, espreitando-se nos interstícios do que está fazendo:

O que faço só importase traduz o que vou sendose assim não for tudo é nadasó finjo que estou fazendo.14

Talvez chegues tu a verque só o nada é reale que a partir de não serte construirás total.15

O sujeito carece de importância para esta poética da alterização contí-nua, que só nela entra verdadeiramente real para as cisões que nele se operam,

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para a criação e a recriação de sujeitos. Agostinho eleva-se à inefabilidade de um pensar que cria sem ser sujeito, porque, na origem, o pensar do pensamen-to carece da identidade que o permitiria anunciar-se o sujeito que habitual-mente convimos para o quem de quem pensa:

Primeiro há um pensamentoque pensa sem pensadore logo pensa quem pensaque pensa tudo ao redor.16

A temática da dessubjectivação do pensar criador não aflora somente na poética de Agostinho. Estigmatiza, indelével, a prosa reflexiva, como, por exemplo, na aforística de «Pensamento à Solta»: «Penso, como ser pensante, que nada existe senão o pensamento, o qual me pensa como ser pensante.»17 O polimorfismo do pensamento funda o ser possível de todo o heterónimo e dá densidade metafísica e essencial verdade aos eus nos quais o eu se finge. Há ainda uma dramática altura na dessubjectivação, a que, no grau ontocosmoló-gico, vem da dúvida, a qual só o agir no risco superaria:

[…] pendo a crer, […] não há no mundo mais nada além de pensa-mento que talvez a nós nos pense como seres pensantes, tudo ainda por cima sem pensador supremo, admiremos, amigos, a tapeçaria, sejamos nela gostoso ou maltratado fio, que outra coisa não podería-mos ter sido sendo tudo como é no resto.18

Foi Pascoaes, se não estou em erro, que classificou o poeta como um ressoador universal. Agostinho assume a realidade ontológica desta metáfora cuja tradução clássica está na inspiração das musas; em versão simbolista, é o eu sofrido, aquele que sofre a mágoa de todas as coisas, o canal por onde fluem vozes e personagens, como na poesia intimista de Roberto de Mesquita. O caso é evidente na quadra introdutória a Quadras Inéditas, que citamos: o autor assume o papel de veículo de um dizer que não é o dele.

O mesmo se passa com a quadra, no mesmo livro, que reza que

Por aqui passou Camõese o vário que nele haviao que fora ainda o sendopronto a ser o que seria.19

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— pressurosamente anotada: «Quadra que nos comunicou a casa quinhentis-ta do Largo do Menino de Deus em Lisboa, 1100.»20

Em Carta Vária, o poema, incluído também em Do Agostinho em torno do Pessoa, e diferentemente titulado (naquela: «Um Poema de Ofélia a Conselho de Alberto Caeiro»; nesta: «Poema de Caeiro a Fingir-se de Ofélia»21), está datado de 5 de maio de 1987, informando-se o leitor de que foi «transmitido a Agostinho da Silva».22 Isto nos faz pensar numa curiosa associação dos motivos clássicos da inspiração com as comunicações metapsíquicas, outros tantos processos ficcio-nais do fingimento, dispostos a alcançar um outro visto ou dado em espírito em Agostinho ou que tornam Agostinho um heterónimo de outros que fazem nele a casa do ser. Para a ciência desta heteronomização se deve contar também a

«Exortação à Portuguesa Língua que o Doutor Luís António do Vale de Aboim compôs na sua Casa de Amarante em tempo de Filipes e agora novamente dada à estampa nas festas de junho por seu hete-rónimo Agostinho e por ele enviada aos Amigos».23

Como acontecia em Fernando Pessoa, e foi o caso Pessoa uma obsessão permanente para Agostinho, a subjectividade é vária porque vem de nasci-mento múltipla: «[…] nascemos múltiplos e são as circunstâncias da vida que nos impedem a multiplicidade», dizia a Antónia de Sousa.24 Agostinho não renunciou a ser o que a não-identidade de origem encerra: o múltiplo de ser para ser sendo em vários.

Viu nessa não-identidade o lume transubstanciador que presidiu ao forjamento das personalidades em que se desvendou: o ficcionista, memoria-lista ou, talvez, autobiógrafo, que concebeu em Mateus-Maria Guadalupe, o escritor de Herta. Teresinha. Joan e de «Macaco-Prego». Lembrança Sul-Ame-ricana,25 o pensador de Sete Cartas a um Jovem Filósofo, José Kertchy Navarro, cuja biografia, inserta na parte final da obra, é uma peça de jogo ficcional, uma autobiografia fictiva em parte composta com verdades da vida de Agostinho da Silva,26 e, finalmente, o Estrangeiro da Conversação com Diotima, do qual, para ilustração de heteronímia, colhemos, na última fala:

Todo o poeta é um actor e nem eu próprio sei realmente se o que ouviste é de mim ou de uma das minhas personagens. Existo eu próprio fora delas, nitidamente separado de cada uma das minhas criações? Nelas existo, disso estou certo, nem poderiam viver, se ca-da uma não fosse eu mesmo; mas não te posso afirmar, Diotima, que seja sincero ou falso no que digo.27

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Pessoa forjou as ficções de si no interlúdio dos seus heterónimos, ele um heterónimo talvez de Caeiro ou só de Caeiro, seu mestre, como o classi-fica numa carta a Adolfo Casais Monteiro.28 Agostinho viveu o pasmo que as primeiras leituras de Pessoa lhe causaram e não mais, desde aí, deixou de o meditar, dos heterónimos realçando o Alberto Caeiro, «o de maior interes-se»,29 reverberando na escrita reflexiva e na criação literária o drama fictivo pessoano. E os outros nomes do Pessoa, além do Caeiro, o Ricardo Reis, o Ál-varo de Campos, o Bernardo Soares, transferem-se do domínio da crítica e da interpretação para o plano já ficcional, não os outros de Pessoa, mas os outros de Agostinho, com os quais convive e que, não existindo embora, com ele vão sendo, o que é um outro desígnio de existir. O mais singular desta transferên-cia encontra-se em Carta Vária:

E, já agora, a identidade: sou o Bernardo Soares, o que deixou aí os manuscritos, bastante desordenados, a que se deu nome de Livro do Desassossego e que nunca arrumei porque afinal a ordem era interna e se cumpria conforme lhe apetecia a ela ou a tal levavam as cir-cunstâncias, e, por conseguinte, vai aparecendo conforme se afigura melhor a seus diligentes editores. Quanto a Agostinho, de que faço eu meu secretário, vamos dizer tele-secretário, […] mais gostaria eu de lhe chamar George, que é o seu nome de baptismo e por ele o co-nheci eu […]; pois por George conheci eu o Agostinho quando mo apresentou sua avó algarvia, a excelente Maria da Cruz, já viúva de seu pescador, e isso pelo ano de 14, quando pela primeira vez visitou ele Lisboa e nos encontramos todos num daqueles restaurantes sos-segados, baratos e bem servidos […].30

Soares apresenta Agostinho, seu secretário ou tele-secretário, a quem chama pelo nome George, o de baptismo. E George, na sequência do texto, é descrito como amigo de tertúlia com os outros, entre eles o Fernando, o autor de «É a Hora», vindo mesmo a colher sobre ele próprio, George ou Agosti-nho, o seguinte juízo de Soares – este dito já distinto do Fernando e dos dois distinto se forma o George, cuja produção literária com as de aqueles não se confunde, o que é modo de ao leitor dizer que o que lê não lê como sendo de George, mas de Soares, podendo, no entanto, ser de George:

Se o George não der sinal no que é autor, o que é muito dele, tão metido a modesto, o que também pode ser um método ou uma inte-ligente manha, vocês o distinguirão pela qualidade ou pelo tom.31

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À Carta Vária assiste um modelo de cruzamentos de falas de persona-gens que Agostinho inventa ou que reinventam o Agostinho que escreve, como se comprova:

Pois isto agora vai ser assim: irá escrevendo cada um de nós o que for acudindo ou o que forem pensando e dizendo George ou a Maria ou qualquer Amigo dos dois, mesmo os Amigos que lhes apeteça inven-tar, ou conversas que uns quaisquer tiverem com quaisquer outros ou o que lembre a outra gente e nós formos registando […].32

Estas passagens transmitem-nos o quão bem fundo caiu em Agostinho da Silva o fingimento heteronímico de Pessoa, que persistentemente perseguiu e distinguiu por pensamento próprio, que originalmente não se encontra em Pessoa. A teoria heteronímica de Agostinho recolhe as possibilidades filosófi-cas e mesmo teológicas da heteronímica pessoana. Creio que Agostinho, me-lhor do que ninguém, soube compreender o que os heterónimos autorais de Pessoa ocultavam muito além dos mecanismos da despersonalização, sobre os quais a expressão pessoana melhor insistiu para, por eles, destacar o finjo do fingimento até ao impossível de fingir o jogo ficcional do fingimento, de que é particular exemplo a tão citada «Autopsicografia», na parte do verso em que «o poeta fingidor» «Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente».33

Agostinho da Silva orientou-se da poética da despersonalização de Pessoa para uma metafísica da criação heteronímica e para uma teologia dos heterónimos, que, de facto, não se reduzem a Pessoa, embora eu pense que nelas se contêm bons motivos hermenêuticos para a compreensão da teoria heteronímica pessoana nos processos não já psicológicos, mas ultimamente metafísicos.

A reorientação da ficcionalidade literária do fingimento pessoano para uma metafísica da criação tem o seu mote sintético na seguinte quadra:

Sobre Fernando Pessoadirei a coisa correctaquem é mesmo criadorcria poema e poeta.34

A poesia de Agostinho da Silva, tanto quanto a sua filosofia, é forte-mente interiorista, subjectivamente metafísica. A contemplação das paisa-gens íntimas da subjectividade, apesar da contracorrente da dessubjectiva-

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ção do pensamento, não deixa de emergir um eu cuja unidade se pressente nas contínuas e multímodas formas das dilacerações em que se exprime ou que para si representa, como na fala há pouco citada do Estrangeiro, ende-reçando-se a Diotima.

O Estrangeiro contempla uma unidade procurada e possível na descen-tração do mesmo, não sendo os outros mais do que um eu como o eu mesmo, mas, admitindo a imprevisibilidade da verdade no interior da contradição, sugere serem eles o que há de essencialmente diferente do mesmo que neles se revê. Daí a conclusão abrupta, logo após retorquir que não pode afirmar ser sobre isso sincero ou falso: «Não tens que me considerar a mim mas ao estrangeiro que falou: com ele conversaste, não comigo.»35

É o reenvio para o texto do diálogo, feito memória em Diotima, o úni-co lugar das criações e recriações de sentido. O eu do estrangeiro desvanece-se: «Não tens que me considerar a mim…» É a assunção vívida da máscara. A recolocação do fingimento.

Não pode deixar de preocupar-nos nesta altura a pergunta pela verdade. Se com ela não se preocupa o poeta, com ela se preocupa o filósofo. E o Agos-tinho, filósofo que foi, ou poeta à solta como se disse, afrontou com coragem o problema, ainda que perseverando na lógica da contradição: «Contradizer-me me dá segurança de que atingi a verdade possível.»36

Para quem vê no fingimento o oposto da verdade é porque não enten-deu o que há de paradoxo na verdade e de como é paradoxal a vida e o existir. O filósofo que fingisse múltiplos sistemas não estaria menos na verdade do pensamento do que o outro de um só sistema. Só que aquele seria mais rico e vário e, admitamos que por isso, mais próximo da verdade. A contradição, ou o desdobramento em outro que contradita o mesmo, é face da verdade, por-que, na contradição, o mesmo e o outro se revelam como mesmo e outro.

Se, como diz Agostinho em «Pensamento à Solta», tudo é «pensável pe-lo pensamento», então a contradição, o antagonismo, a antinomia e o paradoxo são pensáveis, mas, para o serem, isto é, pensáveis, necessário se torna tudo incluir «numa ideia de criação contínua».37 A criação contínua excede a me-tafísica da criação heteronímica, afunda-a e mergulha-nos no coração do ser, leva-nos à porta sagrada que nos abre a Deus.

Uma tal direcção não é imprevista. Agostinho da Silva, pelo pensa-mento propenso para os assuntos difíceis do sagrado, tinha de necessaria-mente orientar criador e criação para o que insuperavelmente os sobrepuja. Mas ainda aqui a lógica que se ordena a pensar Deus é raciocínio na con-tradição, por isso não denega a dúvida, afirma-a como um acto de fé em

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Deus. Só na absurdidade se pensa o que não pode ser superado pelo pensar. Ora, pensar o princípio é um trabalho de lógica e de ilógica: «Sempre que há princípio, diria São João, há lógico e, portanto, ilógico […].», escreve em «Pensamento à Solta».38

Na recusa dos antropomorfismos e na consciência de que os nossos conceitos são pobres e redutores, inaplicáveis a Deus, como o conceito de exis-tência, Agostinho da Silva chama «Deus ao Pensamento», o nome que dá ao inominável,39 um Deus que está nos contrários e no traço inefável de coinci-dência entre eles, tal como, para o coração, a coincidência da sístole e a diás-tole.40

Este Deus não é solitário. A concepção que dele tem Agostinho suscita-me a imagem de um suspiro criador de Deus querendo ser muitos. Na pureza infinita de si, Deus não é em solidão. O mundo exige-o, assim como o prin-cipiado exige o princípio, como o compreendente o compreendido e como o amante o amado. O que os une? O terceiro termo. A criação e o amor:

[…] para que haja o que concebemos por mundo é preciso que haja alguma coisa compreensível e para que essa coisa seja compreensível é necessário que haja outra coisa, ou ela própria que a compreenda; isso mesmo: o mais simples é que de princípio exista o que seja com-preendente e compreendido, ao mesmo tempo; ora, entre o compre-endente e o compreendido, sejam os dois o mesmo ou não, alguma coisa há de comum, porque senão não havia compreensão alguma; esse comum é o primeiro e o segundo e, simultaneamente, outro. Eu cá acho que deve ser o mesmo quando duas pessoas se amam: há o amador e o amado e o terceiro, o mais importante talvez, o funda-mental, é o comum amado amor que a si próprio neles se ama. […] Pois bem, aqui têm os senhores o que os cristãos chamam Trindade ou Deus Trino e Uno.41

O avizinhamento dos processos da criação ficcional e poemática, en-quanto por eles advém o verbo ao mundo, da processualidade do amor e da processão do Uno-Trino, é um traço dos mais típicos de Agostinho da Silva. Na comunhão explícita do criar ficcional e poético com o criar amoroso do Criador, numa linha de tangências do acto criador ficcional com a raiz parac-lética da sua filosofia, encontramos o pensamento secreto de Agostinho: o he-teropessoalismo da divindade é uma teologia da heteronímia. Deus, não como origem segundo o tempo, mas a origem segundo o ser e o nada, é fundamento último de toda a heteronímia como criação no tempo.

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O segredo da heteronímia perde-se no sagrado das origens, projecta-nos além do tempo, para a triunidade divina, e, por descenso ao tempo, reen-via-nos para o que, em nós, sonha Deus e age como Deus: “Só criando a partir do nada serás à imagem e semelhança de Deus”.42

Dizê-lo é também pensar Deus o heterónimo do homem, tanto quan-to o homem, pela imagem e semelhança, se concebe o heterónimo de Deus: “Criou Deus o homem e logo este, por lhe ser à imagem e semelhança, criou a Deus.”43

E eis o analogismo do criar divino e do criar humano:

A certa altura, e sempre, Deus entrou em êxtase e, simultaneamente, apareceram a sua transcendência e o mundo; quando o homem, à sua imagem e semelhança, em êxtase entra, pela criação, simultanea-mente surgem a imanência e o nada.44

Por tudo isso mantenho ter sido Agostinho da Silva quem tirou as con-sequências teológicas da teoria heteronímica de Pessoa. E se faltasse compro-vação, eis que do próprio nos chega o seguinte passo:

Diríamos […] que não somos muito diferentes do que Pessoa foi, descontando o nível, e que só pela pressão das circunstâncias am-bientes ou por comodidade nossa nos não distendemos aos vários que somos, exactamente como ele o fez. Contra o que somos ou fomos ou formos, como fenómeno ou heterónimo – e uma teologia mais ousada a tudo poderia dar como heterónimo de Deus, e dele só de heterónimos sabemos e sobre eles escrevemos a nossa física ou a nossa psicologia […].45

Viemos da experiência poética e ficcional do fingimento heteronímico e de uma visão metafísica do que de mais essencial há no criar do pensamento até uma teologia dos heterónimos ou, na melhor expressão de Agostinho, a uma teologia das heteropessoas, uma original visão paraclética das possibili-dades teândricas e teocosmológicas do ser e do ser do homem, ambos revelan-do-se na multivária expressão do pensar e do agir multiplicados em criação.

Agostinho olhou o mundo no simbolismo expressivo do Espírito. O cosmos foi para ele o símbolo transmutado, uma imensa rede de significa-ções, as pegadas que Deus deixou no deserto e pelas quais o animou de oásis, ilhas de vida, lugares «onde as antinomias terminam e onde os paralelismos se fundem».46

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O pensamento ortónimo de Agostinho é o pensamento dos seus hete-rónimos ou do que pensou como o diferente de si. Eles são as figurações do que finge como o que não é para atingir-se como o que é, embora haja por aí o risco de a barca de Caronte naufragar no rio e no silêncio do que não mais é memória, quem sabe se o esquecimento para gozo de maior memória.

Forjamo-nos a nós e este forjar é já criar heteronímico algo que não sabemos quem seja, mas que percebemos ser o irredutível de nós ao número do bilhete de identidade. Como posso saber-me no que crio como a minha identidade que não esteja nas pessoas em que me crio? Há um momento em que a biografia dos outros é a minha autobiografia, mas a tal ponto que a fic-cionalidade do fingir-me fingindo-me outro representa, pelos mesmos traços da biografia fictiva, a autobiografia que colhi na história dos meus próprios passos, por entre as circunstâncias, decisões, indecisões, do agir e do não agir, do aceitar e recusar.

A biografia ficcional de personagens e a autobiografia do personagem que me sei ou julgo saber estão bem expressas nesse personagem trágico, misto de filósofo, pedagogo e poeta (o próprio Agostinho?), que foi José Kertchy Navarro, como também presente no George, subsecretário de Soa-res, personagem ficcional de Agostinho e personagem ficcional de Bernardo Soares, já ficção do outro que foi Pessoa e Fernando ou do outro que Agos-tinho pensa ser Pessoa.

A pergunta Quem foi Agostinho? é a pergunta que cada um de seu nome próprio coloca a si próprio. Onde me reconheço? Em que nome? Em todos os que são os meus, em parte deles, no primeiro ou no último? O drama de Agostinho é o drama de George? Ou é Agostinho a personagem ficcionada por George?

Não há cogito, só o drama em sê-lo.

Notas1 Para maior desenvolvimento, veja-se o meu texto «Elementos para uma Fenomenologia Literária do Texto Filosófico», in Philosophica, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lis-boa, n.º 9 (1997), pp. 7-31.

2 Heráclito, frg. 41.

3 Agostinho da Silva, «Pensamento à Solta», in Textos e Ensaios Filosóficos, coordenação geral e organização de Paulo Borges, vol. II, Lisboa, Âncora Editora, 1999, p. 145.

4 Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, Lisboa, Ulmeiro, 1997, p. 77.

5 Fernando Pessoa, «Mensagem», in Obras de Fernando Pessoa, introdução, organização, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa, vol. I, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p. 1.156.

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6 Agostinho da Silva, «De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores», in Carta Vária, Lisboa, Reló-gio-d’Água Editores Lda., 1990, p. 137.

7 Idem, O Império Acabou. E agora?, Lisboa, Editorial Notícias, 2000.

8 Idem, ibidem, p. 97.

9 «Ó Portugal, hoje és nevoeiro…// É a Hora!» (Fernando Pessoa, «Mensagem», op. cit., p. 1.168.)

10 Agostinho da Silva, «De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores», op. cit., p. 137.

11 Idem, Quadras Inéditas, op. cit., p. 74.

12 Idem, ibidem, p. 7.

13 Ibidem, p. 85.

14 Ibidem, p. 86.

15 Ibidem, p. 132.

16 Ibidem, p. 102.

17 Idem, «Pensamento à solta», op. cit., p. 146.

18 Idem, «De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores», op. cit., p. 137.

19 Idem, Quadras Inéditas, op. cit., p. 94.

20 Idem, ibidem.

21 Cf. idem, Do Agostinho em torno do Pessoa, Lisboa, Ulmeiro, 1990, p. 21.

22 Idem, Carta Vária, op. cit., p. 40.

23 Idem, ibidem, p. 139.

24 Idem, O Império Acabou. E agora?, op. cit., p. 191.

25 As obras estão reeditadas in Estudos e Obras Literárias, coordenação geral e organização de Paulo Borges, Lisboa, Âncora Editora, 2002, pp. 73-182. Vejam-se também as Lembranças Sul-Americanas de Mateus-Maria Guadalupe seguidas de Tumulto Seis e Clara Sombra a das Faias, ibidem, pp. 183-287.

26 Cf. Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. I, pp. 231-285. Em especial, o «Esquema Biográfico», assinado pelas iniciais P.M. (pp. 273-278), e a «Nota Final», subscrita (heteronimicamente?) por José Muriel (pp. 278-285).

27 Idem, «Conversação com Diotima», in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. I, p. 170.

28 Cf. Fernando Pessoa, a carta de 13 de Janeiro de 1935, in Obras de Fernando Pessoa, op. cit., vol. II, p. 341.

29 Agostinho da Silva, «Do Previsível e do Imprevisível», in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. II, p. 379.

30 Idem, Carta Vária, op. cit., p. 64.

31 Idem, ibidem, p. 65.

32 Ibidem, pp. 67-68.

33 Fernando Pessoa, «Autopsicografia», in Obras de Fernando Pessoa, op. cit., vol. I, p. 314.

34 Agostinho da Silva, Do Agostinho em torno do Pessoa, op. cit., p. 7.

35 Idem, «Conversação com Diotima», op. cit., p. 170.

36 Idem, «Pensamento à solta», op. cit., p. 145.

37 Idem, ibidem, p. 148.

38 Ibidem, p. 155.

O Fingimento... Manuel Cândido Pimentel

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39 Ibidem, p. 145

40 Cf. ibidem, p. 161.

41 Idem, Carta Vária, op. cit., pp. 71-72.

42 Idem, «Pensamento à Solta», op. cit., p. 153.

43 Idem, ibidem, p. 155.

44 Ibidem, p. 160.

45 Idem, «Do Previsível e do Imprevisível», op. cit., p. 381.

46 Idem, «Ecúmena», in Textos e Ensaios Filosóficos, op. cit., vol. II, p. 206.

ResumoO tema do fingimento constitui um legado de Fernando Pessoa em Agostinho da Silva,

o poeta que este mais admirou e amou. Pessoa está na origem do fascínio de Agostinho

pelos jogos ficcionais da despersonalização e da heteronímia, bem presentes na sua obra

poética, ficcional e teórica. O tema pessoano do fingimento está, em Agostinho, intima-

mente ligado ao processo criador do sentir poético e do pensar, capazes da heteronímia

ou do despertar do ser múltiplo ou vário no ser que sente, que conhece e que pensa. Nos

seus aspectos mais profundos, o tema do fingimento encaminha-nos para uma metafísica

da criação heteronímica e para uma teologia dos heterónimos.

Palavras-chave: Cogito; Fingimento; Heterónimos; Fernando Pessoa.

AbstractThe simulation theme constitutes Fernando Pessoa’s legacy in Agostinho da Silva’s work,

being Pessoa the poet who Agostinho most admired and loved. Pessoa is the source of

Agostinho da Silva’s fascination for the ficcional games of depersonalization and hete-

ronyms, present in his poetic, ficcional and theoretical work. Pessoa’s simulation theme is

deeply connected to Agostinho da Silva’s creative process of poetic feeling and of thinking,

capable of heteronyms or of the awakening of a multiple or varied being in the being that

feels, that knows and that think. On its most profound aspects, the simulation theme leads

us to the metaphysics of heteronymic creation and to a heteronym theology.

Keywords: Cogitate; Simulation; Heteronym; Fernando Pessoa.

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Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge

Maria Leonor L. O. Xavier*

Uma iniciativa de Agostinho da Silva, que deu testemunho da sua pre-ocupação social e pedagógica com o estado de cultura do povo português, foi a publicação, nos anos 40 do séc. XX, dos Cadernos de Informação Cultural. Entre estes, propomo-nos, hoje, revisitar dois, O Cristianismo e O Islamismo, ambos publicados em Lisboa, em 1942.

Motivam-nos, nesta revisitação, as interrogações do tempo que urge, sobre as relações entre o Ocidente e o Islão; entre um Ocidente, que já não se identifica com a Cristandade, mas que guarda a memória do cristianismo, co-mo herança religiosa dominante, e um Oriente próximo, cuja identidade cul-tural é indissociável do islamismo, quer se trate de um Islão moderado, quer se trate de um Islão fundamentalista, em versões múltiplas e crescentes.

Os dois Cadernos de Agostinho da Silva, sobre o cristianismo e sobre o islamismo são de carácter informativo, de acordo com o propósito da colecção que ambos integram, mas nem por isso os dois Cadernos são ideologicamente neutros. Não obstante o zelo de objectividade e de imparcialidade que os nor-teia, os dois Cadernos são textos de autor, e, como tais, revelam, se não posições doutrinárias, pelo menos orientações de fundo do pensamento do autor sobre as religiões em foco. Prova disso foi a incompreensiva recepção do Caderno O Cristianismo, que tornou suficientemente desconfortável a vida de Agosti-nho da Silva no Portugal de então, para lançá-lo em viagem para o Brasil.

* Maria Leonor L. O. Xavier é professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde realizou a Licenciatura em Filosofia (1981), o Mestrado (1986) e o Doutoramento (1994), na área de História da Filosofia Medieval, e onde tem leccionado, entre outras, a disciplina de Filosofia Medieval, bem como seminários do Mestrado de Filosofia em Portugal; é membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL) e da Sociedade Internacional para o Estudo da Filosofia Medieval (SIEPM); tem escrito múltiplos estudos no âmbito da confluência da filosofia e do cristianismo na história do pensamento ocidental, entre os quais, Razão e Ser. Três Questões de Ontologia em Santo Anselmo (FCG – FCT, 1999), Questões de Filosofia na Idade Média (Colibri, no prelo), «O Cristianismo e a Filosofia Ocidental: caminhos cruzados» (2001), e «Uma profilaxia antidogmáti-ca. A Teoria da Crença, de Joaquim Braga» (no prelo).

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Em Portugal, nos anos 40 do século XX, um texto, como O Cristianismo, de Agostinho da Silva, era passível de censura, como efectivamente o foi. Desses anos para os dias de hoje, o texto tornou-se inócuo para a dignidade da religião, e até de certo modo inocente na interpretação que dá do cristianismo. Em pouco mais de meio século, muita coisa mudou em Portugal e no mundo, que tornou possível tão ampla alteração de atitude relativamente ao Caderno de Agostinho. A essa alteração, não terão sido indiferentes, quer a mudança de regime político em Portugal, em 1974, promotora de maior separação entre o Estado e a Igreja cató-lica, quer a evolução do próprio catolicismo, que se tornou mais tolerante com as suas heterodoxias internas, na sequência das reformas do Concílio Vaticano II. Na esteira de tudo isso, a heterodoxia de Agostinho da Silva deixou de ser dramática.

Mas, ao deixar de ser controverso, o Caderno de Agostinho corre o ris-co de tornar-se apenas um lembrete de ultrapassadas controvérsias, o que seria pena, uma vez que o texto de O Cristianismo não deixou de ser uma expressão de cultura e de liberdade de espírito, capaz de valer para além do seu autor. Revisitemos, pois, o texto, como uma leitura ainda possível do cristianismo.

Cabe, antes de mais, notar que Agostinho da Silva introduz o tema do cristianismo, não partindo do ponto de vista dos seus seguidores, dos autores cristãos, mas partindo do ponto de vista dos outros, dos autores pagãos, como escritores latinos do século I, nomeadamente, Plínio, o Moço, Tácito, Suetó-nio e Flávio Josefo, um historiador de confissão judaica. Na convocação de antigos historiadores romanos, Agostinho acusa, por um lado, a sua formação de classicista, e, por outro lado, o zelo de objectividade, dando conta do novo movimento religioso, não a partir do seu interior, mas por via daqueles que, do lado de fora, deram primeiro notícia dele. Com base nessas primeiras no-tícias, Agostinho formula uma questão prévia sobre o cristianismo: a questão da existência histórica de Jesus Cristo.

Esta é uma questão prévia, mas, mais do que isso, é uma questão cen-tral para Agostinho da Silva. Com efeito, a sua interpretação do cristianismo centra-se no Jesus Cristo histórico, não no Jesus Cristo teológico.

Impõe-se, por isso, uma posição fundamentada na questão da exis-tência histórica de Jesus Cristo. Por um lado, os textos antigos, referidos por Agostinho, ou por falta de autenticidade ou por noticiarem apenas a exis-tência de cristãos, não dão prova suficiente da existência histórica de Jesus Cristo. Um historiador positivo, sem qualquer tentação especulativa, não encontraria base histórica suficiente para defender a existência histórica de Jesus. Com o mesmo espírito positivo de historiador, Agostinho avalia a po-sição dos que negam a existência histórica de Cristo:

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«As interpretações fantasistas a que os mitólogos sujeitam os textos, as aproximações audaciosas, as explicações absurdas para o que en-contram de inexplicável dentro da sua maneira de ver são em núme-ro demasiado para que se lhes possa dar grande crédito; o não admi-tirem a existência histórica de Jesus leva-os sempre, apesar de toda a possível habilidade dialéctica, ao ponto fundamental de admitirem um pensador inicial, já que seria excessivo romantismo o de acredi-tarem num movimento colectivo como autor do Evangelho».1

Deste modo, Agostinho manifesta rejeitar a origem do cristianismo num pu-ro colectivo, sem uma cabeça principal. Aqueles que recusam identificar essa cabeça com Jesus Cristo, reduzindo este a uma ficção criada pelo movimento, têm muito que especular sobre quem seria o verdadeiro pioneiro do movimen-to. Eles não oferecem, por isso, garantia alguma da posição que defendem.

Agostinho da Silva decide-se a favor da existência histórica de Jesus, não como um crente, mas como uma posição de bom senso, dentro do mesmo espírito positivo de historiador:

«Há um cristianismo, uma doutrina e um movimento cujo surgir se tem de explicar; o mais simples, o mais de acordo com os testemu-nhos, o que levanta menos problemas de interpretação, e está, ponto importante mesmo em história, mais de acordo com o bom senso, é aceitar a existência histórica de Jesus, embora com o afastamento dos textos que, muito importantes para o crente, não o são tanto para o historiador».2

A que textos a afastar se refere aqui Agostinho? Aos textos cris-tãos que antes considerara estarem na origem do Jesus Cristo teológi-co, entre os quais se encontram o Evangelho segundo S. João e, sobretu-do, as Epístolas de S. Paulo. Agostinho chega mesmo a considerar que fora S. Paulo o fundador da nova religião:

«O que interessava a S. Paulo, verdadeiro fundador da nova religião, não era o Jesus que nascera na Galiléia, pregara entre os judeus e viera acabar a Jerusalém; o que o prende é o Cristo que morre para salvar o género humano e que ressurge para voltar à plena glória; é o princípio da substituição do Jesus terrestre pelo Cristo teológico e místico que só pode interessar à história de S. Paulo ou dos doutri-nários que se seguiram».3

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Há, assim, um cristianismo, que Agostinho rejeita, e esse é o cristianis-mo paulino, responsável, em grande medida, pela ideia de um Cristo divino, que se submeteu à morte para a salvação da humanidade. A divindade de Cris-to é a tese crucial do cristianismo paulino e joanino, que Agostinho da Silva não regista sem recusar. Daí que, no início da relação dos elementos biográfi-cos sobre Jesus Cristo, Agostinho diga: «Era filho de Maria e de José».4

A objectividade da abordagem agostiniana não significa indiferença ou neutralidade ideológica, dado que recusa expressamente toda a teologia elaborada em torno da pessoa de Jesus Cristo. Agostinho começa, à maneira de historiador, por recensear o cristianismo como um acontecimento, e não resiste a impugná-lo nas suas versões mais especulativas, o que mostra que o autor de O Cristianismo era muito mais um espírito positivo e livre do que um crente em artigos de fé. Não é, por isso, de estranhar que o opúsculo tenha incomodado a disciplina de pensamento das instituições vigentes no Portugal de então. No entanto, a negação da divindade de Jesus Cristo não era uma heterodoxia nova, nem na história do cristianismo, atendendo ao arianismo antigo, nem na história do pensamento português contemporâneo, atendendo por exemplo ao antecedente de Pedro Amorim Viana. Resgatar a humanidade de Jesus Cristo, tornando-o mais terreno e próximo dos homens, é, aliás, uma tendência que se faz notar de forma muito abrangente e intensa na cultura ocidental do século XX. Não conseguimos deixar de entrever Agostinho da Silva no seio dessa tendência. Talvez por isso, o seu Caderno, hoje, já não soa muito a transgressão.

Resta saber qual é, segundo Agostinho, o cristianismo mais autêntico, aquele que mais se aproxima do Jesus Cristo histórico. Podemos dizer que é um projecto social de distribuição eqüitativa dos recursos materiais em vista da realização de um paraíso terreal, a realização do que seja mais propriamen-te humano na humanidade:

«O que prendeu os discípulos e o povo da Galiléia, o que fez tomar como um guia dos homens foi a sua personalidade, a um tempo cheia de amor e de audácia, foi o calmo, sincero heroísmo que o fez ir em defesa dos pobres, dos humildes, contra uma organização social que os oprimia, foi o entusiasmo, a piedade que o levaram a trazer aos homens a esperança de um magnífico futuro, foi a sua crença de que há um fundo bom na humanidade e de que é possível construir na terra um paraíso»;5

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«Nem uma única vez ele põe a dificuldade e toda a sua força espi-ritual parece empregar-se no sentido de que se organize a terra de modo que a vida material aos homens não pese sobre eles e as almas possam dedicar-se ao que é verdadeiramente humano».6

O cristianismo prezado por Agostinho da Silva é, assim, uma forma de huma-nismo, e o seu Jesus Cristo histórico é descrito como uma personalidade de ac-ção e um herói filantropo. Desse modo, Agostinho contrapõe à sua recusa do cristianismo paulino e joanino, a sua apologia de um cristianismo socialmente empenhado, e à sua rejeição do Jesus Cristo teológico, a sua aproximação do seu Jesus Cristo histórico, como caso exemplar do seu ideal de vida filantró-pico. É claro que, em face destas escolhas de Agostinho, estamos já longe da objectividade e da positividade de um historiador, para nos confrontarmos com orientações profundas de um pensador, que, porventura, não dependem apenas da fundamentação que os textos cristãos lhes permitem dar.

No entanto, a apologia de certo cristianismo não obsta a algum tem-pero crítico na descrição agostiniana da pessoa de Jesus Cristo. Dão disso tes-temunho as considerações de Agostinho da Silva sobre o pensamento e a reli-giosidade de Jesus.

Por um lado, não é pelo pensamento que Jesus interpela Agostinho: «O facto mais importante em Cristo não é ele aparecer com um pensamento bem nítido, bem coerente, fruto de uma meditação regular e demorada»;7

«De resto havia mais em Jesus uma emoção, um sentir directo pe-rante os sofrimentos e as esperanças do povo, um contacto imediato com a essência da sua vida, do que um forte poder de raciocínio, uma clareza excepcional de inteligência».8

Agostinho encontra mesmo em Jesus um pensador contraditório: «O pensamento de Cristo apresenta-se-nos contraditório, ou porque o foi na realidade, ou porque há no Mestre e nos seus discípulos duas fontes de ser que se contrariam».9 Uma das contradições que afectam o pensamento de Jesus é a dupla afirmação da imanência e da transcendência de Deus:

«Em Jesus ele [Deus] aparece continuamente e tão presente em tudo, nos céus, na terra, nas plantas e nos meninos, que quase poderíamos falar num panteísmo, se, por outro lado, Jesus não mantivesse firme a ideia de um mundo absolutamente distinto de Deus».10

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Pelo modo como dá conta da contradição, Agostinho não consegue es-conder a sua preferência pela tendência panteísta do pensamento teológico de Jesus. No juízo sobre esse pensamento, é o próprio Agostinho, como pensador, que indissociavelmente se acusa.

Por outro lado, não é também pela religiosidade que Jesus impressio-na Agostinho:

«Se se considerar religioso o que falar em Deus ou mostrar veneração por um lugar de ritos, certamente que Jesus tem de ser contado entre os religiosos; se, porém, se tomar como atitude religiosa, a de uma forte consciência moral em face de todos os problemas universais, a de quem procura uma solução do problema essencial da existência, isto é, do problema do bem e do mal, com todas as suas implicações, procurando ir até aos limites da questão e não recuando perante o que aparece como resultado, o que fez, por exemplo, um Buda, então Cristo não pode apontar-se como um grande mestre religioso».11

Agostinho da Silva distingue aqui duas acepções de religiosidade: uma cono-tada com a referência a Deus e a locais de culto; outra conotada com uma profunda consciência moral. A primeira acepção de religiosidade, que é a mais corrente, não a mais profunda, aplica-se a Jesus Cristo, segundo Agostinho. Já na segunda, a acepção moral de religiosidade, Jesus Cristo fica atrás de Buda, no parecer do filósofo. Todavia, esta desvantagem de Jesus Cristo relativamen-te a Buda não torna Agostinho da Silva mais budista do que cristão.

A preferência de Agostinho por Jesus Cristo é iniludível. Por quê? Por causa do valor da acção e da filantropia como um fim em si mesmo. Ao contrário do Jesus Cristo, que Agostinho preza como homem de acção,

«Buda fala dos problemas que existiriam, mesmo para o homem que tivesse toda a parte material da sua existência perfeitamente resolvi-da: ele próprio é um príncipe que tem tudo quanto quer e que tudo abandona porque sente o trágico da vida, de uma vida que é trágica exactamente porque é vida; a acção, por consequência, aparece co-mo um mal para o Buda»12.

O desprezo budista da acção não atrai Agostinho. Além disso, a filantropia não é um fim em si mesmo para o Buda, mas uma conseqüência da consciência do sofrimento de toda a existência: «A piedade, o amor do próximo são em Buda uma conseqüência da vanidade e da dor de viver: deve-se ser bom para

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tudo o que existe, porque tudo sofre de existir»;13 «mas Buda, ao abandonar a riqueza, não o faz por amor aos outros: sendo pobre, sofre menos, porque vive com menos intensidade».14 Parece assim que o budismo enferma de uma inibição face à vida, propondo uma fuga à intensidade da vida por incapaci-dade de suportar a dor que ela implica. A filantropia é um dever decorrente e compensatório dessa incapacidade, não se justifica por si mesma. Esta filan-tropia motivada e condicionada pelo sofrimento afasta Agostinho do budismo e aproxima-o do cristianismo, tal como ele o pensa. Com efeito, a filantropia de Jesus é descrita em termos bem diferentes:

«A piedade de Jesus, o amor que ele reclama são uma força revolu-cionária, neste sentido de que hão-de apressar a vinda do mundo divinizado: se o rico amasse o seu irmão, pensa Jesus, as riquezas igualmente distribuídas dariam para todos e o mundo seria feliz».15

Deste modo, a filantropia de Jesus não é um dever de compensação, é pura generosidade em prol da felicidade humana universal, que supõe eqüidade na distribuição da riqueza. De novo, viemos ao encontro do cristianismo social que Agostinho preconiza.

Esta ponderação do budismo e do cristianismo nas preferências de Agostinho, só com base no Caderno O Cristianismo, revela que o filósofo por-tuguês não consegue não ser um pensador ocidental. Na realidade, o antropo-centrismo é uma tendência profunda e característica do pensamento ocidental, que se faz notar salientemente na interpretação agostiniana do cristianismo. Se o cristianismo teológico pode tornar-se teocêntrico, o cristianismo social de Agostinho, campeão da filantropia, é extremamente antropocêntrico e so-lidário com uma visão antropocêntrica do mundo. Esta é uma característica que identifica Agostinho da Silva como um pensador ocidental.

Entretanto, aos ocidentais volta hoje a colocar-se com muita acuidade a questão da relação com o Islão. No ano do centenário de Agostinho da Silva, 2006, vários incidentes têm acusado a tensão existente entre o Ocidente e o Islão. Na Dinamarca, um jornal promoveu um concurso de caricaturas sobre Maomé e, quando o conhecimento dos desenhos a concurso chegou ao mundo árabe, o resultado foi uma onda de veementes protestos por ofensa à fé muçulmana, incluindo manifestações de rua diariamente repetidas em diversos países de lar-ga maioria muçulmana. Resultado similar obteve um discurso do Papa Bento XVI, proferido por ocasião da sua visita à Alemanha, que visava condenar toda a violência perpetrada em nome da religião, mas que citava um texto do século

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XIV, do imperador bizantino Manuel Paleólogos II, segundo o qual Maomé nada de bom tinha trazido ao mundo, apenas violência.16 Multiplicaram-se, então, as declarações apaziguadoras, negando qualquer intenção ofensiva e lamentando as reacções, por vezes, desproporcionadamente agressivas nos países de maio-ria muçulmana. Contudo, nenhum dos líderes ocidentais aceitou pedir descul-pas, quer pela publicação das caricaturas, quer pela citação do discurso do Papa, em nome de um valor caro à civilização ocidental: a liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, na opinião pública ocidental, engrossava o caudal daqueles que consideram no mínimo infelizes aquelas iniciativas, na medida em que eram sus-ceptíveis de ferir a sensibilidade dos crentes de fé islâmica. Também os políticos ocidentais primaram pela contenção, evitando desvios ao politicamente correcto. Entretanto, cancelaram-se iniciativas culturais, como a encenação original, em Berlim, da ópera de Mozart, Idomeneu, que incluía a exibição da cabeça decepada de Maomé, entre outras; ou como a representação teatral incluída nos festejos populares de uma cidade do sul de Espanha, comemorando a conquista da cida-de aos mouros. Estes cancelamentos revelam mais do que o zelo do politicamente correcto; revelam o medo de ameaças e represálias. O Ocidente teme o Islão.

No mesmo ano de 1942, em que saiu O Cristianismo, Agostinho da Silva publicou um outro Caderno de Informação Cultural, sob o título de O Islamismo. Sabemos que foi o Caderno sobre o cristianismo, não o Caderno sobre o islamismo, que causou a Agostinho o incómodo de viver no Portugal de então. Se fosse publicado hoje, o Caderno sobre o cristianismo não teria já repercussão para além do debate de ideias. Mas, se fosse publicado hoje, o Ca-derno sobre o islamismo, seria pacífica a sua recepção? E se Agostinho vivesse hoje, teria escrito exactamente do mesmo modo o seu opúsculo O Islamismo? Do que é conhecido da sua personalidade, Agostinho da Silva não era homem de se deixar dominar pelo medo, nem de se apegar ao politicamente correcto. E também não era sua intenção ofender os crentes de qualquer religião.

No mesmo tom objectivo e positivo de historiador, que advertíramos a propósito de O Cristianismo, Agostinho da Silva começa o seu Caderno O Islamismo, descrevendo panoramicamente a situação económica, religiosa e política da Arábia do século VI. Tal como acontece para o caso de Jesus Cristo, em O Cristianismo, também em O Islamismo, Agostinho dá relevo à vida de Maomé. Mas também, tal como acontece a respeito de Jesus Cristo, Agostinho não se coíbe de intercalar nas suas descrições da vida de Maomé, indicações da sua posição como pensador. De um modo geral, as considerações agostinianas sobre Maomé são de grande simpatia, embora sejam tecidas por alguém cujo pensamento não renuncia a ser crítico a respeito da religião.

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Em matéria de religião, Agostinho até parece valorizar alguns aspectos da postura de Maomé relativamente a Jesus Cristo. Por um lado, Maomé re-cusa fazer milagres:

«Frequentemente lhe pediam que fizesse milagres; replicava que não os podia fazer e que acreditar-se num milagre é marca de espíri-to inferior; o mundo inteiro era um milagre: olhassem, se queriam extasiar-se com milagres, para a terra e para o céu, para o mais hu-milde, para o mais apagado dos homens».17

É difícil não entrever aqui a comunhão de Agostinho da Silva com Maomé na recusa dos milagres. Por outro lado, Maomé apresenta-se como profeta:

«Não se apresentou como Deus, nem como filho de Deus, mas ape-nas como um profeta, como um homem, como um simples mor-tal que entendeu o pensamento divino e o vem propor aos outros homens; as revelações são-lhe feitas pelo espírito, umas vezes com absoluta calma, outras em transes que, se de certo modo se asseme-lham a crises epilépticas, estão também muito perto dos transes de outros místicos do Oriente e do Ocidente».18

Apresentando-se como profeta, Maomé não corre o risco de transformar-se numa entidade teológica, como era o caso, segundo Agostinho, do Jesus Cristo teológico do cristianismo paulino e joanino. É, assim, inegável a simpatia de Agostinho por um Maomé assumidamente humano. No entanto, os seguidores de Maomé talvez não apreciem aqui a comparação dos transes do profeta com crises epilépticas, mesmo que a par de outros místicos orientais e ocidentais.

Agostinho sublinha também elogiosamente a frugalidade dos hábitos de vida de Maomé, mesmo depois de estabelecido o seu poder em Medina e em Meca:

«Maomé continuava sendo um homem de vida simples e de carácter lhano: dormia numa simples esteira e tinha por travesseiro um odre cheio de ervas; comia pouco, pão de centeio, leite e mel, mas ordina-riamente passava os seus dias a água e tâmaras; não o fazia, porém, para mortificar a carne e provava-o bem pelo seu gosto dos perfumes e das mulheres; estabelecera que nenhum muçulmano podia ter mais de quatro mulheres, mas recebera, e na altura oportuna, autorização dos céus para se casar com mais: os textos variam entre 15 e 50; é certo

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que muitas delas, já velhas, as tinha o Profeta recolhido por caridade; mas o que se passou com Ayesha e Maria prova que o Anjo Gabriel estava por vezes de perfeito acordo com os desejos de Maomé. Não tinha criados: ele próprio acendia o seu lume, limpava o seu quarto, mungia as vacas, remendava o vestuário e consertava o calçado; falava a todos com a mesma cortesia, a mesma franqueza de maneiras, senão de palavras, não dava mostras do mínimo orgulho, da mínima osten-tação, da mínima crença de que era um grande homem. De incontes-tável generosidade, protegia todos os escravos, libertando-os sempre que o podia fazer, e procurou que fizesse parte da mentalidade dos seus adeptos o desejo de defesa das mulheres e das crianças».19

São por demais evidentes as qualidades que Agostinho da Silva reconhece em Maomé: a humildade de executar trabalhos servis; a generosidade para com os mais fracos e desprotegidos; não fazia acepção de pessoas, não era afectado pela vanglória, e não defendia a mortificação da carne. Não era contra a carne, nem a alimentação frugal nem o jejum: «Como sempre, Maomé não estabe-lece o jejum para castigo da carne mas elevação e afinação do espírito».20 É difícil não entrever aqui, autorizada por Maomé, a espiritualidade que Agos-tinho preconiza, segundo a qual o espírito não luta contra a carne, embora se deixe apurar através de alguns rigores sentidos na carne. A prova de que a espiritualidade de Maomé não é inimiga da carne era, segundo Agostinho, o gosto do profeta pelas mulheres. O gosto em si não é por certo de censurar. Mas Agostinho, com alguma ironia, insinua que Maomé teria ajeitado à medi-da dos seus desejos a revelação do Anjo Gabriel, que o autorizava a casar com quantas mulheres quisesse. Os crentes nas revelações de Maomé é que podem não achar graça a tal insinuação, e até levá-la a mal.

Cabe, por fim, sublinhar que não é só como homem religioso que Agostinho descreve Maomé, mas também como político e chefe militar. Quan-to à guerra e à paz, Agostinho destaca a doutrina estabelecida por Maomé: «O bem supremo é a paz: mas quando se trata duma injustiça, de um ataque não provocado, a defesa é legítima e deve fazer-se por todos os meios que o agredido tiver ao dispor».21 A doutrina exalta a paz, só justificando a violência por legítima defesa. Mas uma coisa é a doutrina e outra são os usos e os abusos que por ela se justificam. Ora Agostinho não se coíbe de denunciar os abusos cometidos por Maomé e pelos seus seguidores em nome da legítima defesa: «É baseado nesta doutrina da legitimidade de defesa pela força que os chefes futuros do Islão conquistarão um império que se há-de estender dos confins da China às costas de Portugal»;22

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«Para ser o chefe incontestado de Medina era preciso vencer tam-bém o inimigo interno; os judeus eram uma força temível e Maomé decidiu esmagá-los; dentro ainda do critério da legítima defesa, exe-cutou pela espada e pelo fogo os 300 varões que existiam na comu-nidade, fez escravas as mulheres e as crianças, confiscou-lhes os bens que vieram reforçar o tesouro da nova religião»;23

após a conquista de Meca,

«Maomé concedeu uma amnistia geral, só não perdoando a 10 pessoas, entre as quais, como convinha a um grande chefe, uma can-tadeira de poesias satíricas; destruiu os ídolos, mas, com segura visão das realidades, conservou a pedra negra de Kaaba e incorporou no Islão os ritos antigos».24

Nessa última alusão à decisão de integrar elementos da cultura vencida, Agosti-nho reconhece o talento de Maomé como político. Mas regressemos aos abusos da guerra. É claro que não se justificam por legítima defesa, nem a conquista de um império, nem a execução de 300 judeus, nem a escravização de mulheres e crianças, nem o roubo de bens materiais, nem a execução de uma cantadeira de poesias satíricas. Não obstante a admiração expressa pela personalidade de Maomé, Agostinho da Silva não se contém na denúncia dos abusos cometi-dos pelo profeta, enquanto homem de poder. Cabe, por isso, perguntar: se o Caderno de Agostinho da Silva, O Islamismo, fosse publicado no Portugal de hoje, integrando já uma significativa comunidade muçulmana, a recepção seria pacífica?

Talvez Agostinho da Silva, no Portugal de hoje, não sentisse a mesma necessidade de escrever e publicar os seus Cadernos de Informação Cultural. Mas se o filósofo escrevesse hoje um texto sobre o islamismo – e não deixaria de encontrar na actualidade motivações para tal –, escrevê-lo-ia da mesma maneira como escreveu o Caderno O Islamismo? Conformar-se-ia ao politica-mente correcto? Ou arriscaria a zanga dos muçulmanos em nome da liberdade de expressão?

E se Maomé pudesse decidir hoje do destino dos caricaturistas dinamar-queses, que fizeram sátira da sua imagem: mandá-los-ia executar, como o fez com a antiga cantadeira satírica de Meca? Nesse caso, cometeria mais um abuso into-lerável da sua doutrina de justificação da violência em nome da legítima defesa. Agostinho da Silva, segundo cremos, não se calaria.

Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge Maria Leonor L. O. Xavier

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Notas1 O Cristianismo (Iniciação. Cadernos de Informação Cultural, 7ª série), Lisboa, 1942, p. 7.

2 O Crist., pp. 7-8.

3 O Crist., p. 5.

4 O Crist., p. 8.

5 O Crist., pp. 11-12.

6 O Crist., p. 14.

7 O Crist., p. 11.

8 O Crist., p. 12.

9 O Crist., p. 13.

10 O Crist., pp. 14-15.

11 O Crist., pp. 13-14.

12 O Crist., p. 14.

13 Ibid.

14 Ibid.

15 Ibid.

16 A citação divulgada pela imprensa: «Ao olharmos para o que Maomé trouxe de novo, veremos apenas coisas malévolas e inumanas, tais como as suas ordens de propagação da fé através da espada.»

17 O Islamismo (Iniciação. Cadernos de Informação Cultural, 6ª série), Lisboa, 1942, p. 7.

18 O Islam., p. 6.

19 O Islam., pp. 12-13.

20 O Islam., p. 16.

21 O Islam., p. 10.

22 Ibid.

23 O Islam., p. 11.

24 O Islam., p. 12.

ResumoAgostinho da Silva escreveu várias séries de Cadernos de Informação Cultural, com in-

tenção pedagógica, em Portugal, antes de 1950. Este nosso estudo incide em dois desses

cadernos, ambos publicados em 1942: O Cristianismo e O Islamismo. Em ambos os cader-

nos, o autor começa como historiador, mas continua e termina como pensador, expondo

as suas ideias filosóficas sobre as duas religiões. No tempo em que foi publicado, o caderno

sobre o cristianismo trouxe ao seu autor dissabor bastante para o fazer deixar Portugal

e partir para o Brasil. Hoje, a heterodoxia de Agostinho acerca do cristianismo parece

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inofensiva. Todavia, perguntamo-nos se o caderno sobre o islamismo não teria hoje uma

repercussão expressiva, que não teve na época em que foi publicado, atendendo às dificul-

dades da relação entre o Islão e o Ocidente, nos nossos dias. Este estudo revisita os dois

cadernos de Agostinho da Silva, com as inquietações do mundo actual.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Cristianismo; Islamismo; Religião; Ocidente.

AbstractAgostinho da Silva wrote several series of Booklets of Cultural Information before 1950

in Portugal with a pedagogic goal. This paper focuses on two of those booklets published

in 1942: O Cristianismo (Christianity) and O Islamismo (Islamism). In both booklets the

author begins as a historian, but continues and finishes as a thinker, exposing his philo-

sophical ideas on those two religions. At the time that it was published, the booklet on

Christianity brought the author enough troubles to make him leave Portugal and set off

for Brazil. Nowadays, Agostinho da Silva’s heterodoxy about Christianity seems harmless.

However, we wonder if the booklet on Islamism would not have today a significant reper-

cussion, which it did not have at the time it was published, attending to today’s difficult

relationship between Islam and the West. This paper analyzes two of Agostinho da Silva’s

booklets, bearing in mind the issues of the contemporary world.

Keywords: Agostinho da Silva; Christianity; Islamism; Religion; Western World.

Agostinho da Silva e as interrogações do tempo que urge Maria Leonor L. O. Xavier

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Agostinho da Silva, personificação do intelectual português

Miguel Real*

1. Introdução: o intelectual português

Não deixa de causar admiração a popularização da figura e do pen-samento de Agostinho da Silva no universo cultural luso-brasileiro. Mais do que Fidelino de Figueiredo, Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro, Eudoro de Sousa, Eduardo Lourenço, Rodrigues Lapa, Miguel Urbano Rodrigues, Victor de Almeida Ramos e Fernando Lemos, que viveram e ensinaram no Brasil, a imagem culturalmente peregrinante e solidariamente empenhada de Agos-tinho da Silva personificou, para grandes sectores da comunidade pensan-te luso-brasileira, o arquétipo do intelectual português, incorporando nesta imagem cultural a dupla face jânica do mestre e sábio tradicional, despojado e austero, erudito e académico, mas também a do professor e companhei-ro, do amigo e parceiro empenhado, ambas as faces sintetizadas numa visão profética e providencialista, mentora do caminho do espírito, crente tanto nas virtudes do povo do sertão, ao modo de António Conselheiro, embora de acção pacífica e individual, quanto no inesperado do caminho da cultura, convertida em força social.

Com efeito, o paradoxo de um pensador tão deslocado do seu tempo concreto, materialista, empirista e historicista ter ganhado uma espantosa po-pularização, captando simultaneamente figuras intelectuais e simples popula-res, releva-nos para a superação desta aparente contradição entre o homem e o tempo conjuntural, indiciando-nos que tanto a sua obra como a sua figura austera e desprendida, como sobretudo a sua vida, se prendem mais ao tempo

* Miguel Real é escritor, ensaísta e ficcionista. Publicou os ensaios: Narração, Maravilhoso, Trágico e Sagrado em Memorial do Convento, de José Saramago (1995); Introdução à Filosofia da Saudade no Século XX (1998); Ser e Representação (1998); Padre António Vieira e o Ano de 1666 (1999); A Geração de 90 – Sociedade e Romance no Portugal Contemporâneo (2001); Eduardo Lourenço – Os Anos de Formação: 1945-1958 (2003); O Essencial sobre Eduardo Lourenço (2003). Obras de ficção: A Verdadeira Apologia de Sócrates (1998); A Visão de Túndalo por Eça de Queirós (2000); Memórias de Branca Dias (2003). E peças de teatro (sempre em co-autoria com Filomena Oliveira): Memorial do Convento; Os Patriotas; O Umbigo de Régio;e Liberdade, Liberdade!

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longo da cultura portuguesa e menos aos condicionalismos circunstanciais do presente. Neste sentido, a figura de Agostinho parece ter encarnado de um modo paradigmático, por antonomásia, a relação intemporal (ou de tempo longo) entre o intelectual português e o seu país. Nesta relação, o intelectual, afastado das instituições que regem política e socialmente o todo de Portugal e em explícita oposição a estas, por elas perseguido ou delas voluntariamente ausente e distante, sofre na sua vida individual o drama existencial da pátria, dividida entre um corpo coeso de políticos e funcionários, reitor do destino conjuntural da nação, dominando os rituais do poder e dos costumes, e um grupo culturalmente minoritário que exige para Portugal um modelo social outro que, posteriormente, passado o tempo de uma, duas gerações, se revela como salvador. Cumprindo a sua função, o intelectual, de actividade social marcante na história de Portugal, não tem sido o erudito, o estudioso, o aca-démico, ao modo de Descartes ou de Kant, construtores de novos sistemas teóricos do mundo, que posteriormente influenciam todas as esferas da acti-vidade humana, revolucionando a sociedade, mas aquele que no seu destino individual, no seu sofrimento existencial e na sua obra, habitualmente criada em condições pungentes ou dramáticas, se oferece como sentido de uma alter-nativa pátria, exprimindo uma alternativa social e cultural que posteriormen-te se revela mais acertada. Agostinho da Silva, a sua obra, a sua vida errante, as suas palavras futurísticas, aproximaram-se deste modelo existencial que cobre a quase totalidade dos intelectuais portugueses, cuja vida, em síntese, se pode resumir em três momentos paradigmáticos:

1. Uma fase de aproximação, de empenhamento e de voluntária ade-quação ou de tentativa de transformação do destino geral de Portugal;

2. Por motivos circunstanciais, que muito diferem de autor para au-tor, vinculando-o ao seu tempo, o intelectual português sofre, em certo momento, um profundo desencantamento com o estado conjuntural do país, cuja consciencialização o força ou a desistir de transformar Portugal, interiorizando-se, ou exilando-se no estran-geiro, abandonando o seu antigo empenhamento, concentrando-se na sua obra estética ou filosófica individual; ou a reiterar o seu compromisso de transformar Portugal, criando uma obra alterna-tiva à visão social e política dominante;

3. No final da vida ou após a morte, a obra do intelectual português é recuperada pelas instituições dominantes do Estado, da Univer-

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sidade ou da Igreja, que a estatui como um dos mais salientes vec-tores da cultura portuguesa, passando então a ser tão santificada pelas novas gerações escolares quanto antes fora abominada e des-prezada pelas anteriores.

Este triplo momento, possuidor de uma configuração universali-zante, mas também adequada à existência concreta de cada intelectual por-tuguês, tem constituído, de certo modo, devido à contínua repetição das condições sociais e políticas gerais conjunturais desde os finais do século XVI, uma recorrente invariável da cultura portuguesa. Em síntese, têm estas condições políticas e sociais gerais obedecido a um modelo cultural e civili-zacional de manifesta fidelidade a princípios políticos e religiosos reinantes na Europa do Sul desde o final dos Descobrimentos – e desde este período a intelectualidade portuguesa tem provocado rupturas com esta visão geral do mundo, buscando alternativas que tanto se têm identificado com o racio-nalismo presente na Europa Central e do Norte quanto, por vezes, são com este divergente, como no caso de Agostinho da Silva, buscando alternativas genuinamente portuguesas.

2. Sá de Miranda como arquétipo do intelectual português interiorizante

O alheamento, e mesmo a contraditoriedade, entre a visão teórica pes-soal criada pelo intelectual português e a mentalidade portuguesa dominan-te encontra a sua génese e o seu princípio modelar em Sá de Miranda. Com efeito, este terá freqüentado os Estudos Gerais, onde se doutorou, e onde terá exercido funções docentes, integrando-se posteriormente no ambiente social do Paço de Lisboa, praticando as formas poéticas dominantes na corte. Nu-ma longa viagem pela Espanha e pela Itália, Sá de Miranda conviveu com ní-veis superiores de requinte civilizacional, nomeadamente no Norte de Itália. No regresso, estanciando junto de D. João III em Coimbra, ter-se-á surpreen-dido pelo baixo nível de maneiras civilizacionais e pelo alto nível de interesse financeiro e patrimonial dos fidalgos cortesãos portugueses, exteriorizando uma real inadaptação ao ambiente reinante na corte, isto é, Sá de Miranda entra em conflito com a mentalidade dominante nas instituições portugue-sas e com o próprio ambiente político. Isola-se, busca o exílio interior – in-terior no duplo sentido tanto de isolamento no “interior” do país quanto no de isolamento no “interior” de si próprio. Esta atitude de Sá de Miranda, radicalmente diferente da de Agostinho da Silva, que busca realização no

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exterior do país, constituir-se-á, doravante, como uma das vertentes do pa-radigma existencial português: o afastamento voluntário dos centros oficiais de decisão política e cultural, a desistência expressa de nestes intervir, o iso-lamento interno, buscando num local rotineiro e pacífico a regeneração es-piritual por que vai construindo a sua obra, num ensimesmamento próprio que se estatui como exílio no interior de si mesmo, gozando, tanto quanto lhe permitem as possibilidades políticas conjunturais do país, uma aurea mediocritas que toma para si como forma estrutural e existencial de vida. Com efeito, um ano após o regresso da Itália culta e renascentista, vanguarda europeia da arte, da técnica e da ciência, resultado do duplo legado greco-romano e da cúria medieval papal, incompatibiliza-se com a elite dirigente de Portugal, os modos destes, a sua visão do mundo, o seu calculismo, o seu privilégio concedido ao interesse material, e abandona a Corte, refugiando-se na região de Cabeceiras de Basto, Entre-Douro-e-Minho, onde viveu cerca de trinta anos (1528–1558), carteando-se com e respeitando a família real, mas afastando-se decididamente dos cortesãos e da nova orientação política do Reino de resfriamento do Humanismo europeu por via do bloqueamento da reforma da Universidade de Coimbra, do manifesto desejo de transfor-mação do Império em empório comercial e do afunilamento da consciência religiosa por via da recente instauração da Santa Inquisição em Portugal. Centro de uma pequena corte de aldeia, o exílio interior de Sá de Miranda evidencia-se como uma atitude funda e recorrente do comportamento reac-tivo do intelectual português: um exílio interno e interior, que o protege dos sinais políticos decadentistas, repressores e isolacionistas de Portugal face à Europa culta do Centro e do Norte, vivendo na solidão e no silêncio político uma espécie de autoculpabilização ou expiação do que Portugal poderia ser ou ter sido (tendo todas as condições para isso), mas não é ou não foi devido à brutalidade de rapinagem económica e especulativa das classes economi-camente intermédias e da funda ignorância histórica e cultural das elites políticas portuguesas.

Assim, esta vertente do paradigma mental, existencial e cultural do intelectual português evidencia-nos: primeiro, um momento social de par-ticipante empenhamento cultural, político, filosófico, estético, científico; se-gundo, um momento de fundo conflito entre os ideais pessoais regeneradores do país e as ideias cristalizadas nas instituições culturais e políticas, criadoras e reitoras da mentalidade conjuntural e popular de Portugal; terceiro, como reacção, um momento de abandono, de desistência de intentar reformar esté-tica, religiosa, social, culturalmente o país, evidenciando um cruzar de braços

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e um sentimento individual de impotência face ao carreiro maioritário, ao desenho previsível das coisas, a um futuro colectivo que lhe parece inelutável e onde, sobretudo, domina o gosto comum da população, não raro dissemi-nado pelas elites e por estas defendido. Este terceiro momento paradigmáti-co é não raro vivencialmente sofrido pelo intelectual português segundo um cunho penitencial, no sentido de, sabendo-se de gosto e visão diferentes das da maioria da população, uma autocondenação ou autoculpabilização por não conseguir esclarecer e rectificar o gosto comum do país, amargurando-se e penalizando-se interiormente, transformando o seu afastamento dos cen-tros decisórios em um verdadeiro degredo ou exílio.

Sá de Miranda abandonou Lisboa e Coimbra, a corte e a nobreza se-nhorial, assumindo conscientemente que só assim, exterior aos centros cor-ruptos e corruptores do pensamento, poderia construir a sua obra poética. Como referimos, esta atitude individual de Sá de Miranda – o primeiro inte-lectual português a viver existencialmente os três momentos referidos – com-porta uma dimensão universalizante no seio da cultura portuguesa, já que, em outros tempos, outras conjunturas históricas e por via de outros condiciona-lismos sociais e individuais, a sua atitude evidencia-se paradigmática, reper-cutindo-se na existência de inúmeros outros intelectuais portugueses: Matias Aires, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Manuel Laranjeira, Teixeira de Pascoaes, Sampaio Bruno, José Régio, Almada Negreiros, António Sérgio, Sílvio Lima, de certo modo Joaquim de Carvalho, José Marinho, Miguel Tor-ga…, e sobretudo Fernando Pessoa, que, na sua última dezena e meia de anos de vida, transfigurou Lisboa, principalmente o quarteirão da “Baixa”, em terra de exílio interno e interior. A vida de Fernando Pessoa, pós-escândalo de Or-pheu (1915), figura-se como máximo exemplo desta vertente existencial do intelectual português.

Deste modo, um dos mais importantes núcleos de autores verda-deiramente criador de inúmeras obras de maior relevância na cultura por-tuguesa viveu e sobreviveu contra e paralelamente às formas institucionais e conjunturais dominantes da cultura portuguesa. De Matias Aires, refugia-do nos últimos anos de vida na sua quinta da Agualva (Cacém), a Alexandre Herculano, refugiado em Vale de Lobos, a Manuel Laranjeiro, vivendo uma existência céptica e pessimista em Espinho, escrevendo uma obra amargurada que rápido o conduziu ao suicídio, a Teixeira de Pascoaes após o abandono da direcção de A Águia, acolhido em Gatão, e a José Régio e Miguel Torga, recolhidos em Portalegre e Coimbra. Entre todos, distinguem-se Antero de Quental e Fernando Pessoa, o primeiro revolucionando poética (“Questão do

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Bom Senso e do Bom Gosto”), cultural (as “Conferências do Casino”) e poli-ticamente (ligação portuguesa à Internacional dos Trabalhadores e fundação do Partido Socialista) Portugal, concluindo pela existência de um bloquea- mento institucional que feria de morte todos os que ousavam afrontar as insti-tuições portuguesas dominantes, isolando-se, peregrinando por várias terras, terminando por suicidar-se um ano após a derradeira tentativa de reformu-lação de Portugal através da criação da Liga Patriótica do Norte; o segundo, após o fracasso total dos dois números publicados de Orpheu, não se suicida fisicamente, como o seu íntimo Mário de Sá-Carneiro, mas “suicida-se” social-mente, vagueando por quinze quartos alugados em vinte anos de existência solitária, embebedando-se dia a dia de aguardente e poesia, morrendo pouco depois de ter dado à estampa uma nova visão da história de Portugal através dos versos de Mensagem (1934). Antero interiorizou a decadência de Portugal, que sabiamente tinha analisado em 1871 em Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, forçando a sua decadência pessoal, maravilhosamente registada no volume dos Sonetos, e Pessoa, do mesmo modo a sentindo desde o seu re-gresso da África do Sul aos dezassete anos, incorporou-a num arrastamento de intelectual solitário, abdicando de vida pública, vivendo como se para tudo não existisse excepto para a sua obra. Constituem, Antero e Pessoa, os dois maiores exemplos da primeira vertente existencial do intelectual português.

3. Agostinho da Silva como o arquétipo do intelectual português exteriorizante

A vida de Agostinho da Silva obedece a uma outra vertente – a da op-ção pelo exílio externo após o conflito registado entre a visão pessoal do autor e a visão colectiva gravada com o selo do poder institucional. Sendo o pa-radigma o mesmo, existe igualmente um primeiro compromisso activo com Portugal, uma vontade de conversão das instituições e das pessoas no sentido perspectivado pelo intelectual português, habitualmente expressa na primeira fase da sua obra, como aproximação ou contestação (ou as duas) das institui-ções dominantes; rápido, a insatisfação cultural ou política (ou as duas) vai crescendo galopantemente, emerge o choque, circunstancial ou premeditada-mente acontecido, o intelectual sofre amargamente os efeitos deste choque, é afastado ou afasta-se (ou as duas hipóteses), silencia-se ou é silenciado, as por-tas fecham-se-lhe, quer publicar, não lho consentem, quer ensinar, proíbem-no, é marginalizado ou é preso e deportado, é exilado ou exila-se voluntaria-mente. De qualquer que seja a forma, quaisquer que sejam as circunstâncias

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individuais, o exílio torna-se o seu destino pessoal, sofrendo duplamente a amargura de uma pátria a seus olhos torta e incorrigível (como os intelectuais da primeira vertente) e a amargura da ausência desta, duplo húmus donde frutificará a sua obra posterior, cruzando e unindo o lirismo melancólico mo-tivado pela ausência da pátria ao revolucionarismo cultural das suas ideias de endireitamento da história de Portugal. Ao exílio (externo) acresce, não raro, um exílio interior, psicológico, elevando as múltiplas carências económicas sofridas e a consciência da insatisfação pessoal à figura de um calvário resig-nado como resgate do estado decadentista de Portugal.

O exílio externo (na Europa ou peregrinando nos longes do Império) tem sido, desde o século XVI, a marca mais pertinente do intelectual por-tuguês. Uns, não deixando de se preocupar com Portugal, desinteressam-se do destino político deste, buscando no estrangeiro ou na solidão do Impé-rio a realização da sua obra numa atmosfera social mais propiciatória: Garcia d’Orta, Francisco Sanches, Camões, o padre jesuíta Inácio Monteiro e Manuel Teixeira-Gomes, mas também Damião de Góis, Adolfo Casais Monteiro, Ma-nuel Valadares, Fidelino de Figueiredo, Manuel Rodrigues Lapa, Fernando Gil, bem como inúmeros pintores portugueses do século XX exilados em Paris e Londres (Vieira da Silva, Paula Rego, Lourdes de Castro, Costa Pinheiro, René Bertholo, Jorge Martins, Dacosta…).

Outros, representados pelos casos modelares de Cavaleiro de Oliveira, Bocage, Eça de Queirós, Jorge de Sena, José-Augusto França e Eduardo Louren-ço, intentam, segundo o seu múnus estético, descrever com realismo o “Reino cadaveroso” e a “vil e apagada tristeza” dominante em Portugal. Constitui este grupo o exemplo do mais impiedoso intelectual português, cuja obra analisa, ao bisturi do realismo da sua época, o conjunto de malformações políticas e cultu-rais que concorrera para enfermar Portugal de um secular atraso relativamente aos países da Europa Central. Entre todos, a obra de Eça de Queirós constitui-se como a mais relevante desta vertente do paradigma do intelectual português.

Finalmente, ainda no campo do exílio externo, emerge o intelectual que exprime na sua obra, não o Portugal do presente, o Portugal por si vivido, mas o Portugal desejado, reflexo de um passado glorioso, agora actualizado e projec-tado num Portugal futuro, pelo qual o intelectual luta, dedicando-lhe a sua exis-tência. António Ribeiro Sanches, Jacob de Castro Sarmento, D. Luís da Cunha, Luís António Verney, Teodoro de Almeida, no campo do racionalismo e do mo-dernismo europeus, e Padre António Vieira e Agostinho da Silva, no campo do espiritualismo e do providencialismo genuinamente portugueses, constituem-se como as mais importantes figuras deste tipo de intelectual. Ainda que de pro-

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veniências filosóficas e culturais diferentes e, até, contraditórias, todos comun-gam de um desejo de redenção futura da pátria, de crítica e de subversão das instituições dominantes, substituindo o Portugal real pela projecção histórica de momentos exaltantes do Portugal passado, fundindo o conteúdo destas duas dimensões do tempo na realização futura de um novo e glorioso Portugal. Se, no campo do racionalismo, Luís António Verney se evidencia como a personifi-cação deste tipo de intelectual português, padre António Vieira e Agostinho da Silva, no campo da tradição providencialista, assumem ambos idêntica personi-ficação, o primeiro por via do majestoso e imperial uso da Língua Portuguesa, o segundo por via da criação, em plena época de dominância do materialismo e de omnipotência do dinheiro, de uma alternativa espiritualista para Portugal, am-bos sendo, simultaneamente, pensadores do Império, o primeiro de um Império territorial, militar e religioso, o segundo de um Império cultural e espiritual.

Fundado nas obras de Camões, Padre António Vieira e Fernando Pes-soa, entroncado na visão milenarista europeia e na visão nacional sebastianista, a obra filosófica e cultural de Agostinho da Silva constituiu-se como uma das mais fundas e permanentes alternativas especulativas ao domínio institucional do racionalismo, do cientifismo e do positivismo europeus, que têm maiorita-riamente influenciado a cultura portuguesa desde os finais do séculos XVIII, e corresponde, decerto, a uma especificidade cultural portuguesa desde a lenda da aparição de Cristo a D. Afonso Henriques na batalha de S. Mamede e, sobretudo, desde a criação de as Trovas de Bandarra e da derrota nacional em Alcácer-Qui-bir, em 1578. Subtraído deste circunstancialismo histórico e elevado a esquema mental universalizante, o providencialismo português, de que Agostinho da Sil-va foi máximo representante na segunda metade do século XX, alimenta e per-sonifica-se nas obras dos três maiores escritores de língua portuguesa (Camões, António Vieira e Fernando Pessoa), gozando igualmente de amplo privilégio nas obras de D. João de Castro neto, frei Bernardo de Brito, frei Sebastião de Paiva, Teixeira de Pascoaes, Sampaio Bruno, Augusto Ferreira Gomes, António Qua-dros, António Telmo, Dalila Pereira da Costa, Manuel Joaquim Gandra, e, de certo modo, Paulo Borges, mas também, numa vertente laica e vanguardista, do último António José Saraiva. O providencialismo não é, em Portugal, exclusiva e intrinsecamente religioso; pelo contrário, as diversas revoluções que, de cin-quenta em cinquenta anos, o país tem sofrido desde 1820 comportam sempre – e exultantemente –, uma vertente sagrada e escatológica, de fundo providen-cialista e milenarista, pela qual os seus dirigentes e participantes sonham ser a “hora!” ou o momento mítico refundador ou recriador do mundo, como se de novo se instaurasse o momento colectivamente pulsional das Descobertas ou se

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definitivamente se instaurasse o Portugal que nunca houve. Nesta vertente da cultura portuguesa, Agostinho da Silva estabelece a ponte, por um lado, entre o providencialismo clássico de Camões e padre António Vieira, o primeiro funda-do em parâmetros medievais e renascentistas e o segundo em parâmetros bíbli-cos e missionários, ambos postulando um quinto-imperialismo das armas e das consciências, o providencialismo poético de Fernando Pessoa e Augusto Ferreira Gomes da primeira metade do século XX, fundado já num quinto-imperialismo da língua e da cultura, e, por outro lado, a nova geração do grupo da “Filosofia Portuguesa”, reunida em torno das revistas 57 e Espiral, a que posteriormente se ligará o estro individual de Dalila Pereira da Costa.

Fontanelas, Sintra, 15 de Outubro de 2006

ResumoA vida e a obra de Agostinho da Silva sintetizam, na segunda metade do século XX, uma das

correntes mais profundas da cultura portuguesa. Nascidos na oposição ao poder político, os

intelectuais portugueses dividiram-se em dois grupos: 1- a auto-interiorização, o isolamento

dos intelectuais portugueses no interior do país, vivendo em solidão, desfrutando de uma

aurea mediocritas, este grupo específico criou um grande trabalho, que será recuperado pelas

futuras gerações; 2 – os intelectuais mais ativos, vivendo no exílio, sofrendo a decadência da

terra-mãe, projetaram para o futuro a salvação da pátria, por meio da retificação dos gran-

des momentos históricos do passado, tal qual Agostinho da Silva o faz.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Cultura Portuguesa; intelectuais.

AbstractAgostinho da Silva’s life and work synthesize, in the second part of the twentieth cen-

tury, one of the two deepest streams of Portuguese culture. Born in political opposition,

Portuguese intellectuals were divided in two groups: 1 – the self interiorization group,

of intellectuals living in isolation in the countryside, enjoying an aurea mediocritas, who

have created a great work to be recovered by future generations; 2 – the most active intel-

lectuals, living in exile, suffering because of their motherland’s decadence, who designed

a future salvation for their nation through the revival of great historical moments, as did

Agostinho da Silva.

Keywords: Agostinho da Silva; Portuguese Culture; Intellectuals.

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A escola como Memória do Futuro1

Olga Pombo*

Antes de alinhar algumas palavras sobre Agostinho da Silva, quero de-clarar, com total sinceridade e autêntica modéstia, não pretender mais do que aludir a dois ou três aspectos que mais vivamente me impressionam na sua obra, referir duas ou três questões que mais profundamente me interpelam, recordar duas ou três páginas que mais irremediavelmente me fascinam. Pá-ginas de um português brilhante e puro, carregado de sabedorias antigas e adoçado pelo aroma de paisagens distantes, de um português que comove pe-lo reencontro que produz com aquilo que, porventura, mais profundamente constitui a nova pátria – a língua portuguesa.

Disso apenas aqui se tratará! Destacar algumas das suas teses. Teses for-tes, ousadas, sempre sugestivas, frequentemente inovadoras, por vezes escanda-losas. Propostas todas com tal liberdade que o leitor se sente igualmente livre para discutir, rejeitar ou aceitar, discordar totalmente. Na obra de Agostinho da Silva, o acordo fica tacitamente estabelecido dadas as primeiras linhas. Se o au-tor se dá a si mesmo a liberdade de escrever o que pensa e, mais ainda, de pensar o que escreve – o leitor –, esse fica obrigado a uma equivalente liberdade.

* * *A questão educativa encontra-se atravessada (hoje porventura cada

vez mais) por inúmeras antinomias facilmente reconhecíveis no diálogo de surdos das pedagogias. Educar pelo constrangimento ou pela liberdade? Pela

* Olga Pombo é licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Mestre em Filo-sofia Moderna pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e doutorada em História e Filosofia da Educação pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. É actualmente Professora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenadora do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa (CFCUL). Entre outros títulos, publicou: Quatro Textos Excêntricos: Filosofia da Educação (Hannah Arendt, Eric Weil, Bertrand Russell e Ortega Y Gasset, selecção, tra-dução e prefácio). Lisboa: Relógio d’Água, 2000, 105 p.; A Escola, a Recta e o Círculo. Lisboa: Relógio d’Água, 2002, 316 p.; Interdisciplinaridade: Ambições e Limites. Lisboa: Relógio d’Água, 2004, 203 p.; Unidade da Ciência: Programas, Figuras e Metáforas. Lisboa: Editora Duarte Reis, 2006, 324 p.; “Agostinho da Silva. Um Arquétipo Vivo do Professor”. In: Renato Epifânio, Romana Valente Pinho e Amon Pinho Davi (orgs.). In Memoriam de Agostinho da Silva: 100 Anos, 150 Nomes. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006, pp. 354-359.

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disciplina ou pelo apoio à criatividade? Ir ao encontro de prazer do educado, dos seus interesses, dos seus desejos ou defender que só o esforço é verdadei-ramente educativo? Educar a sensibilidade ou a inteligência? Investir no fazer ou no conhecer? Partir do vivido, do imediatamente experienciado ou do já construído, do já logicamente consistente? Apostar na informação aditiva ou na estruturação cognitiva? Promover o reconhecimento (compreensivo) do passado ou preparar (tecnicamente) para o futuro? Apontar para a vida activa (formação profissional) ou preparar para o ócio, para o tempo livre,2 o de-semprego, o não-trabalho de que falava Agostinho da Silva3 e que porventura espreita o destino dos jovens de hoje?

Cada uma destas antinomias (e não pretendemos de modo algum es-gotar a lista do que seria a sua enumeração completa) está suportada por di-ferentes concepções do que é o homem, traduz-se na consideração de diferentes finalidades educativas e implica um conjunto de opções decisivas quanto ao tipo de acção que se defende dever o educador exercer sobre o educado.

Assim, por exemplo, se se pensa que o homem é uma tábua rasa onde nada está escrito (Aristóteles) e onde a educação se inscreve como segunda natureza, um campo por cultivar (Erasmo) no qual podem nascer diversos frutos consoante as sementes que a educação aí lançar, a cera mole (Come-nius) onde a educação imprime as suas marcas, a argila húmida e sem forma (Montaigne) que a educação permite moldar ou modelar, o riacho sem leito e sem destino (Locke) que só a educação orienta e guia, então a educação é um processo determinante da construção do humano. Sem ela o homem não seria homem. Com ela o homem é aquilo em que se torna. A educação tem então como finalidade promover na criança ou no jovem a aquisição disciplinada de um conjunto de comportamentos e competências julgadas convenientes (necessárias) pelo corpo social a que a criança ou o jovem se devam adaptar.

Pelo contrário, se se pensa que o homem é um ser dotado de consistên-cia interna, de potencialidades e qualidades (pré-)determinadas, um ser que contém em si o princípio do seu próprio desenvolvimento, então a educação é um processo que se deve desencadear em função de leis próprias ao educado, leis já fixadas desde sempre ou que, progressivamente, se vão revelando no tempo. A educação terá então a forma socrática da descoberta, da actualização de possibilidades, da rememoração.

Que fazer face a estas antinomias? São várias as soluções possíveis.A primeira solução – a mais fácil, a menos interessante – consiste na

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tomada de partido relativamente aos termos educativos em oposição no in-terior das antinomias, isto é, no esquecimento (ou desistência) do esforço de pensar a antinomia nas suas implicações antropológicas e na apressada constituição de opções doutrinárias do sinal contrário. Cada uma dessas po-sições doutrinárias toma a forma de uma pedagogia, uma orientação nor-mativa da acção educativa com a sua lógica interna, os seus valores mais ou menos explícitos, os seus pontos de partida quase sempre insuficientemente explicitados. Ficam assim criadas as condições para o já aludido “diálogo de surdos das pedagogias”, cada qual defendendo os seus próprios princípios e criticando, a partir deles, a perspectiva contrária (infelizmente, é a isso que, muitas vezes, se chama “crítica”). Far-se-á, por exemplo, a crítica da peda-gogia não-directiva a partir de uma perspectiva directivista ou, vice-versa, a crítica do directivismo pedagógico a partir de um posicionamento doutriná-rio não-directivista.

Agostinho da Silva recusa com veemência esta solução. Assim se com-preende, creio eu, o seu tão repetido grito: “sou contra a pedagogia”,4 ou “exce-lente será declarar eu logo que não acredito demais no valor de tal preparação pedagógica, e que bons pedantes se fabricam com tais matérias” (Ed. Port., p. 62). Como Agostinho da Silva diz, não temos senão que nos rir desse inces-sante martelar” de que é feita a pedagogia, das “receitazinhas didácticas de que vivem os pedagogos profissionais” (Aproximações, p. 119). Não temos senão que sorrir de todos aqueles que, em vez de procurarem moldar-se a si pró-prios, se dedicam à “escultura sobre os outros” (Aproximações, p. 84).

A segunda solução consiste também em tentar fugir à lógica da anti-nomia, em procurar escapar à sua aporeticidade procurando determinar, de forma “científica”, os elementos constitutivos do que se seria um acto educa-tivo (digamos) bem-sucedido. É a lógica descritiva e aparentemente neutra das chamadas “ciências da educação”, vítimas (elas também) dos mecanismos de decomposição analítica que elas próprias preconizam. Solução laboriosa, é certo, mas míope e ingénua. Solução que, propondo-se ultrapassar a lógica antinómica, na verdade o que faz é escamotear as dificuldades que nela estão envolvidas.

Também não é esta a solução para que aponta Agostinho da Silva. Co-mo ele diz, com indisfarçável enfado, logo na primeira página de Educação de Portugal, “já existem muitos trabalhos que descrevem o estado actual da educa-ção com todos os pormenores da estatística e, na medida do possível, com todas as considerações pertinentes sobre as circunstâncias de economia, de objectivos

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cívicos e programáticos e de possibilidade de execução que permitem, facilitam ou proíbem que se eduque” (op. cit., p. 7). E, entendamo-nos, “Já existem”, quer dizer, já bastam!

No entanto, quer-nos parecer, é possível ainda uma terceira solução. Ela passa pela recusa, quer da adesão expedita a uma opção pedagógica mais ou menos convicta e intransigente, quer da solução “cientista” de fuga à inquie-tação antinómica. A terceira solução é a mais filosófica. Ela implica o respeito pela antinomia enquanto destino da própria razão que, como mostrou Kant, se constrói justamente nesse esforço de pensar para lá dos seus limites. Ela im-plica a coragem de enfrentar essas antinomias naquela que é a sua formulação mais geral e abstracta (mas também mais grave e profunda), aquela que orga-niza toda as outras, a saber: reconhecer que, subjacente a todas as antinomias educativas, se joga uma opção fundamental pelo humano do homem.

Educar é cultivar no indivíduo o seu ser total ou confirmar a pertença do homem à comunidade dos homens? Educar é apoiar, ajudar, estimular, apenas proteger o livre desenvolvimento das potencialidades individuais ou promover, orientar, provocar, impor mesmo a adaptação do educado aos valores e sabe-res da comunidade social em que está inserido? De um lado, sussurra ao nosso ouvido a palavra de Rousseau, o programa radical de uma educação negativa: o homem nasce bom, a sociedade é que o perverte e corrompe. Assim sendo, o que é que o educado deve fazer? “Muito sem dúvida! Impedir que alguma coisa se faça”5. Do outro lado, ouvimos (por exemplo) a voz de Watson:

“Dai-me doze crianças, sãs e bem constituídas, e deixai-me escolher o meio em que as hei-de educar. Garanto-vos que levarei cada uma a tornar-se o tipo de especialista que eu quiser – médico, advogado, comerciante, chefe, criado, mesmo pedinte e ladrão, e isto indepen-dentemente dos seus talentos, tendências, habilidades, vocações e raça dos seus antepassados.”6

A terceira solução supõe ainda a decisão comprometida por um dos pólos desta antinomia central na qual (a nosso ver) a questão educativa se encontra irremediavelmente clivada.

É esta justamente a solução adaptada por Agostinho da Silva:

“É útil que fique bem claro o que penso sobre educação em dois ou três pontos essenciais: creio, primeiro, que o mundo em nada nos melhora, que nascemos estrela de ímpar brilho, o que quer dizer, por

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um lado, que nada na vida vale o homem que somos, por outro lado, que homem algum pode substituir a outro homem, (…) que todo o homem é diferente de mim e único no universo; que não sou eu, por conseguinte, quem tem de reflectir por ele, quem sabe o que é melhor para ele, não sou eu quem tem de lhe traçar o caminho, com ele só tenho o direito, que é ao mesmo tempo um dever: o de o ajudar a ser ele próprio” (Ed. Port., p. 8).

Agostinho da Silva determina claramente os dois pólos da antinomia: “Educar não é levar ninguém a ser isto ou aquilo, não é tentar influir de qual-quer modo em sua orientação futura, mas dar meios de expressão à sua capaci-dade criativa” (Ed. Port., p. 39). Agostinho da Silva reconhece de forma explícita a sua herança rousseauista: “A ideia do homem selvagem (…) tem que se pôr de novo como um conceito positivo” (Ed. Port., p. 9). Ou então: “É a criança que temos de considerar o bom selvagem, estragando-a, deformando-a, inutilizan-do-a o menos que nos seja possível, defendendo o seu tesouro de sonho, jogo e criação, a sua espontaneidade e a sua malícia sem maldade, o seu entendimento (...) e o seu amor do mundo” (ibid). Agostinho da Silva retira de imediato as conseqüências educativas da sua opção antropológica: “Acreditando, pois, que o homem nasce bom (…) a educação não poderá ser mais do que fornecer a ca-da um tudo o que solicite para que a sua pessoa se possa desenvolver e afirmar” (Ed. Port., pp. 10-12). A educação não é “fazer que alguém se modele segundo o que pareceu mais desejável a quem já tinha o poder de modelar” (Ed. Port., p. 17). E, numa formulação lapidar, muito próxima do conceito de educação negativa em Rousseau escreve: “A educação não terá nenhuma outra tarefa se-não a de deixar que a bondade inicial esplenda e seja” (Ed. Port., p. 12).7

Todos sabemos como Agostinho da Silva se empenhou coerente e per-sistentemente no desenvolvimento desta opção!

Mas esta opção rousseauista arrasta como consequência a condenação da Escola, desses “risíveis estabelecimentos a que chamamos colégios”, como dizia Rousseau no Émile.8

E, na verdade, encontramos em Agostinho da Silva, não apenas uma crí-tica à escola que há – “pelos tempos fora, temos querido que a escola, escola chinesa ou escola alemã, escola chamada progressista ou escola retrógrada, seja fundamentalmente uma fábrica de fortes” (Ed. Port., p. 10), “a missão principal da Escola tem sido a de criar profissionais de valor médio e não os inovadores” (Aproximações, p. 113) – mas também uma condenação da própria ideia da Es-cola. Toda a escola está fundada sobre os princípios da posse e da rivalidade. É por isso que “cada aluno procura aprender por si e para si, (…) com o pensa-

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mento de que é necessário aparecer na vida bem armado, pronto à conquista do bom lugar e à defesa entre os possíveis assaltantes” (Sanderson, p. 42). É por isso que, na escola, o aluno procura “ultrapassar os camaradas” e sente-se “sobretudo satisfeito quando foi o primeiro da classe” (Sanderson, p. 43). É por isso que a comunicação do saber é feita pelo aluno ao mestre como “uma prova puramente pessoal” e as classificações são dadas pelos professores “para ordenar e hierarqui-zar os alunos e tornar bem nítidas as suas diferenças (ibid).

É por isso também que quando, ao abrir a porta, D. Rolinha perguntou:

– “Sem aula hoje?”Agostinho da Silva respondeu:

– “Sem aula, Dona Rolinha. É a única coisa boa que as escolas têm.

– Na Europa também?

– Na Europa mais, Dona Rolinha. Porque ali a mania é que os alunos têm de aprender o que se lhes ensina.

– E no Brasil não é isso mesmo?

– Não, Dona Rolinha. O Brasil já está com o futuro; infelizmente ainda é obrigatório ir à escola, mas já não é obrigatório aprender.

– E os meninos, quando forem grandes [perguntou D. Rolinha] E Agostinho da Silva responde:

– “Pelo menos não terão desaprendido de ser gente, que é o que acontece com quem estuda!”

(Lembranças Sul-Americanas, p. 31)9

Condenação também da Universidade. “Apesar das suas origens frater-

nas, [a Universidade tem sido] uma instituição separada do grande público e vivendo como que sobranceira a ele (…), grande parte das suas funções [têm consistido em] soltar diplomados que fazem do seu diploma uma carta de al-forria” (Aproximações, p. 61). Ela tem servido “apenas para criar um falso escol e os que se comportaram de outro modo o conseguiram apesar da Universida-de, não por ela” (Ed. Port., p. 43). Como Agostinho da Silva confessa nas suas Lembranças Sul-Americanas, “no íntimo dos íntimos considero a Universidade como uma instituição inteiramente ultrapassada” (op. cit., p. 17).

Como conciliar estas teses com o seu entusiasmo de bandeirante funda-dor de Universidades? De incansável e polimorfo professor das Humanidades à Entomologia?

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E como conciliar estas teses com outras, igualmente fortes e lapidares, em que Agostinho da Silva faz o elogio da Escola, se dedica pacientemente a desenhar os contornos de uma “escola que reforme o Mundo” (Ed. Port., p. 70), “escola para estudar e para meditar” (ibid), “escola que deixe de ser a prisão em que habitualmente corrigimos a delinqüência de se ser criança” (Ed. Port., p. 63) e que, pelo contrário, “responda ao apelo que vem do íntimo das crianças para que as deixem trabalhar com amor e criar com liberdade” (Sanderson, p. 44), “eixo fundamental da preparação do homem, ou melhor, da libertação do homem para as tarefas de entender o Mundo” (Ed. Port., p. 63), “pequenas escolas, bem espalhadas por todo o país” (Ed. Port., p. 54). Escola que “a ninguém recusará a entrada”, que atenderá “a quantos se apresentem” (Ed. Port., p. 51), sem castigos nem prémios (cf. Sanderson, p. 46), sem obe-decer ao “ideal supremo de fazer passar a todos pelos mesmos moldes”, mas, pelo contrário, procurando “satisfazer os gostos de cada um dos alunos (…), de modo a que na escola houvesse a variedade de tendências e de ocupações que constitui uma das belezas do mundo” (Sanderson, p. 48).

Escola universitária também em que “não haverá doutrina que se im-ponha, mas simplesmente amor que se liberte, em que não haverá mestres que ensinem, haverá simplesmente mestres que estudam” (Aproximações, p. 62). Universidade de que se “sairá não com o espírito de mandar, mas com o espírito de servir” (ibid).

Como explicar esta contradição?Estaremos perante um desses paradoxos que Agostinho da Silva gosta-

va de utilizar como definição da sua identidade: “Como vejo sempre no hete-rodoxo o ortodoxo do outro lado, creio que aquilo que nos pode unir é o pa-radoxo.”10 E mais adiante, “Considerando-me paradoxal, dirigiu-me o melhor elogio que eu poderia esperar” (ibid).

Pensamos que não! Por duas razões fundamentais. Primeira razão: porque o rousseauismo de Agostinho da Silva convive

de mãos dadas com o seu optimismo fundamental: “Apenas o que se sabe de seguro é que todo o passado se resolve numa lenta, incerta caminhada para um futuro de cada vez maior conhecimento do homem em si próprio e da humanidade que o cerca; de mais seguro domínio das forças físicas (…); de maior entendimento de nossas possibilidades de criação (…); de mais fundo desejo de que deixemos para trás bem depressa os tempos em que a força pode valer mais do que a inteligência e a sensibilidade” (Ed. Port., pp. 37-38).

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Quer isto dizer que Agostinho da Silva é um Rousseau que acredita no progresso! Ora, um tal progresso não teria sido possível sem a Escola!

Assim tem sido, apesar de tudo! “Mal sabendo que teria por seu infiel descendente tanto catedrático”, a escola “conseguiu, apesar de tudo, cumprir o seu dever, tanto quanto as circunstâncias gerais lho permitiram; apesar de todas as pressões de Economias, Estados e Igrejas, sempre houve dentro delas quem defendesse acima de tudo o direito à pesquisa”, quem levasse “por diante o trabalho de construção científica” (Ed. Port., p. 48, sublinhados nossos).

Assim é de facto. Invenção recente, tão recente como a ciência dos ho-mens, desde os gregos que a escola tem por missão fazer participar cada vaga de recém-chegados ao mundo (da natureza) nas belezas do mundo da cultura (científica, artística, filosófica), construída pelas gerações anteriores. O seu ob-jectivo é permitir não apenas salvar (conservar) esse legado cultural – isso já a narrativa mítica o permitia – mas também continuá-lo, prolongá-lo!

Como diz Agostinho da Silva, ao aluno devem ser dados a ver os “últimos progressos da ciência” e a “entrever os mistérios que ainda há a esclarecer”, “o alu-no tem de saber, sob pena de se lhe falsear toda a perspectiva da vida, que a ciência é um trabalho de gerações” (Sanderson, p. 53).

Se não somos como as abelhas, eternamente repetindo os mesmos ges-tos e palavras, é porque a Escola constitui o homem como sucessor. Como aquele que herda do passado, que vai atrás, à raiz, à fonte e que, por isso – jus-tamente por isso – adquire condições para continuar, para construir o futuro. Cito outra vez Agostinho da Silva: na escola – “templo da humanidade” – se medita “sobre o esforço das gerações passadas, encontrando no que foi a gran-de força impulsora para que se conquiste o futuro” (Sanderson, p. 65).

Segunda razão: porque o optimismo rousseauista de Agostinho da Sil-va está contaminado por um Socratismo secreto, por um Platonismo militante que faz da criança o paradigma do homem e que pensa o professor sob a for-ma de reminiscência.

O que importa então é “salvar a criança no homem”, “proteger o mais possível o que da criança sobrou no adulto” (Ed. Port., p. 13), “multiplicar aquelas escolas em que a criança aparece como criador” (Aproximações, p. 44)

Por quê? Porque, se na criança já está o homem (como diria Rousseau), a escola é o lugar de uma criação que tem a forma da reminiscência (como diria Platão). Porque, se tudo está dado à partida na criança, a escola não pode ser senão o lugar onde aprender é recordar. Lugar onde a criança, à medida que vai crescendo, se vai recordando do que ela é. Lugar onde a criança recor-da aquilo que um dia será, aquilo que um dia saberá.11 Ou, como reconhece

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Agostinho da Silva, “foram injustos os educadores quando defenderam que as crianças podem entender o mesmo que os adultos, porque na realidade po-dem entender mais” (Aproximações, p. 49).

Não admira, pois, que a criança tenha em Agostinho da Silva o estatuto de profeta, aquele que, ao contrário do visionário, vê o futuro como memória e não como antecipação ou utopia.12

Marcada cada ano pela sucessão de vagas de novos estudantes, renas-cendo cada ano pela chegada de novos alunos, despedindo-se também cada ano de antigos alunos e velhos professores, a Escola é um lugar de esplendor, de resistência, de luta contra o esquecimento, contra a irreversibilidade do tempo, contra a irrevogabilidade da morte.

Memória do Futuro, ela inscreve – no caminho sempre para diante de condição humana – o retorno, o regresso aos tesouros acumulados do passado e – assim – dá continuidade ao elo da criação.

Não é, pois, de estranhar que o Professor Agostinho da Silva possa ter definido o seu trabalho como professor do seguinte modo:

“Nas duas ou três vezes em que me tem acontecido ensinar, nunca pude ter nenhuma espécie de gosto em transmitir aquilo que já sabia, em dar aulas brilhantes, como se costuma dizer; creio que isso é verda-deiramente uma função dos assistentes, isto é, daqueles meninos pro-missores, que já sabem o bastante para ensinar, mas estão ainda muito novos para darem mais importância ao gosto infinitamente superior de estudar e aprender; por mim, sempre preferi levar uma turma a iniciar-se comigo num assunto que eu não sabia: faz-se aqui uma es-pécie de camaradagem de guerra, de todas a melhor, porque se forjou no perigo, no avanço pelo desconhecido, na aventura” (Lembranças Sul-Americanas, pp. 17-18).

Não é de estranhar que Agostinho da Silva seja o Professor de quem não nos queremos despedir!

BibliografiaAgostinho da Silva, As Aproximações, Lisboa: Guimarães, 1960.

____. Educação de Portugal, Lisboa: Ulmeiro, 1989.

____. Lembranças Sul-Americanas, Lisboa: Cotovia, 1989.

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Agostinho da Silva, Sanderson e a escola de Oundle, Lisboa: Ulmeiro, 1990.

____. “Entrevista com Agostinho da Silva” dirigida por J. Serrão, J. Lo-pes Alves, Nuno Nabais, A. Braz Teixeira e J. Pedro Serra, Filosofia, n.º 2 (1985), pp. 49-183.

Jean-Jacques Rousseau (1762), Émile ou de l’éducation, Paris: Flammarion, 1966.

John B. Watson (1930), Behaviorism, New York: Norton, 1967.

Notas1 Texto de uma conferência apresentada no Colóquio Homenagem a Agostinho da Silva, realizado nos dias 14 e 15 de Fevereiro de 2001, Sala do Arquivo, Paços do Concelho, Lisboa, a convite da Associação Agostinho da Silva.

2 Como Agostinho da Silva escreve, “os avanços tecnológicos estão ao nosso dispor e para o único fim em que serão úteis, para nos darem tempo livre”, Cf. Educação de Portugal, p. 50 (sublinhados nossos). Também em As Aproximações, o tema do elogio do ócio, recorrente na obra de Agostinho da Silva, aparece ligado à conside-ração optimista dos efeitos futuros do progresso técnico (cf., op. cit., p. 93).

3 Recordo ainda vivamente as palavras que uma tarde, em casa de Agostinho da Silva, o ouvi declarar: o que importa não é tanto lamentar o desemprego mas, compreender o progressivo desaparecimento do trabalho e prepa-rarmo-nos para essa libertação!

4 “Entrevista com Agostinho da Silva”, p. 162.

5 Como Rousseau escreve no Émile: «Pour former cet homme rare, qu’avons nous à faire? Beaucoup, sans doute: c’est d’empecher que rien ne soit fait» (op. cit., p. 41).

6 John B. Watson, Behaviorism, p. 104.

7 Na “Entrevista com Agostinho da Silva” publicada pela revista Filosofia, Agostinho da Silva dizia: “O que importa não é educar, mas, evitar que os homens se deseduquem” (op.cit., p. 162).

8 “Je n’envisage pas comme une instituition publique ces risibles établissements qu’on appelle colèges”, Émile, p. 40 (sublinhados nossos).

9 Como, de forma também risonha, Agostinho da Silva escreve em As Aproximações, “Creio que uma grande e cómica surpresa aguarda em outra vida os que nesta foram suficientes e sábios [quando descobrirem] que terem enviado seus filhos à escola apenas os atrasou em verdadeira cultura” (op. cit., pp. 48-49).

10 “Entrevista com Agostinho da Silva”, p. 182.

11 O platonismo militante de Agostinho da Silva é muito claro, por exemplo, na seguinte passagem: “Cada pes-soa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à sua volta. Porque cada um de nós é um ente extraordinário, com lugar no céu das ideias e, se nos soubermos lavar da lama que se nos pegou quando aparecemos na terra, seremos capazes de nos desenvolver, de reencontrar o que em nós é extraordinário, e transformaremos o mundo” (“Entrevista com Agostinho da Silva”, p. 162). Toda esta passagem é eloquente acerca da equivalência estabelecida por Agostinho da Silva entre “desenvolvimento” e “reencontro de si”.

12 “O que se torna inteiramente necessário (...) é multiplicar aquelas escolas em que a criança aparece como criador, na literatura, na música e nas artes plásticas (...); e de novo se poderá dizer que, quando cada um dos adultos for como aqueles pequeninos, o mundo estará salvo; de novo terão sido as crianças os mensageiros de Deus” (Aproximações, p. 44, sublinhados nossos).

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ResumoPartindo do reconhecimento do carácter antinómico que atravessa a questão educativa,

procuraremos ver de que modo Agostinho da Silva faz confluir na ideia da Escola o seu

rousseauismo optimista e o seu platonismo militante. Aparentemente paradoxal, a figura

da Escola surge então em todo o seu esplendor. Não como dispositivo de modelação, lugar

de recuperação do adquirido ou de (mera) reinvenção do passado mas como Memória

do Futuro, comunidade de estudo onde o professor ensina aquilo que não sabe ainda e o

aluno recorda aquilo que um dia saberá. Templo laico onde se espera “que em nós brote

aquilo a que viemos” (Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo, p. 53).

Palavras-chave: Filosofia da Educação; Antinomias; Escola; Profeta; Memória.

AbstractFrom the recognition of the antinomous character which pervades the question of edu-

cation, we will seek the way Agostinho da Silva links his optimistic Rousseauism to his

militant Platonism in his idea of School. Apparently paradoxical, the School then rises in

all its splendour. Rather than as a molding mechanism, as a place for recovering the pre-

acquired or for (mere) reinvention of the past, the School is seen as Memory of the Future,

a study community where the teacher teaches what he does not know yet and the student

remembers what one day she/he will know. It is a laical temple where one expects to see

“that for which we came blossom” (Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo,

p. 53).

Keywords: Philosophy of Education; Antinomies; School; Prophet; Memory.

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Do “nada que é tudo”. A poesia pensante e mística de Agostinho da Silva.

Paulo Borges*

“Crente é pouco sê-te Deuse para o nada que é tudo

inventa caminhos teus”(Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho)

Uma das faces menos estudadas do multiforme Agostinho da Silva é, a nosso ver, a de poeta. Poeta que, na linha de uma das tendências mais singu-lares de algum do mais original pensamento português, como se verifica em Antero de Quental, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, nos surpreende pela densidade pensante, metafísica e mística, conciliando o rigor da forma e da ideia, o simples e o elaborado, a clareza apolínea da palavra e a dionisíaca ambiguidade do sentido, tudo fluindo numa toada inspirada, cantante e dan-çarina que seduz e arrebata o entendimento para a iluminativa coincidência e transcensão dos contrários e antinomias meramente conceptuais em que habitualmente enredamos a nossa vida mental.

Referimo-nos particularmente a Quadras Inéditas, ao gosto popular, e

* Professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, membro e in-vestigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Entre muitos outros títulos, são de sua autoria: a) poesia: Trespasse (Lisboa, Edições do Reyno, 1985); Ronda da Folia Adamantina (Lisboa, Átrio, 1992); b) ensaio filosófico: A Plenificação da História em Padre António Vieira. Estudo sobre a ideia de Quinto Império na “Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício” (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1995); Agostinho da Silva. Uma Antologia (Lisboa, Âncora Editora, 2006); Tempos de Ser Deus. A espiritualidade ecuménica de Agostinho da Silva (Lisboa, Âncora Editora, 2006); c) romance: Línguas de Fogo. Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva (Lisboa, Ésquilo, 2006); d) tradução: Dalai-Lama, Estágios da Meditação, Lisboa, Âncora Editora, 2001, 200 p. (Stages of Meditation, Ithaca, Snow Lion Publications, 2001); Tsangyang Gyatso, VI Dalai-Lama, Cantos de Amor, Lisboa, Mundos Paralelos, 2005; Padmasambhava, Livro Tibetano dos Mortos, Lisboa, Ésquilo, 2006; Coordenou a edição das Obras de Agostinho da Silva, na Editora Âncora e no Círculo de Leitores, e coordena o projecto de levantamento, transcrição e estudo do espólio de Agostinho da Silva, no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. É actualmente Presidente da União Budista Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva, bem como Vice-Presidente da Casa da Cultura do Tibete. Dirige o Centro de Estudos Agostinho da Silva e preside à Comissão das Comemorações do Centenário do Nascimento de Agostinho da Silva.

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a Uns Poemas de Agostinho, que nos oferecem uma magnífica síntese de alguns dos pontos mais profundos e difíceis do pensamento de Agostinho da Silva, sobretudo no que respeita aos seus e universais grandes temas e questões, co-mo Deus, a criação/manifestação, o homem e o mundo, constituindo-se como um complemento fundamental das suas obras filosóficas. Na linha de muitos dos aforismos de Pensamento à Solta,1 nestas duas obras apreendemos, como se indicará, e sem prejuízo da originalidade, um implícito diálogo com algu-mas intuições maiores da sabedoria oriental e, no que respeita ao Ocidente, uma também implícita relação com as grandes linhas da teologia negativa e da experiência mística.2 Por esse mesmo motivo, o pensamento de Agostinho está na continuidade de alguns dos mais originais vislumbres do pensamento português contemporâneo, o qual, naquela vertente que se nos afigura mais singular e típica, de Antero e Bruno a Pascoaes, Leonardo Coimbra e Pessoa e a José Marinho e Eudoro de Sousa, se constitui no mesmo intercâmbio com a poesia, o saber oriental e a tradição neoplatónica, onde a metafísica se abre para uma experiência interior e directa do absoluto, que podemos designar, pela sua inefabilidade última, de mística. Verdadeira ponte, de duplo sentido, entre Ocidente e Oriente, num porventura tardio, mas mais autêntico cum-primento da nossa vocação marítima,3 a vertente do pensamento português de que Agostinho da Silva é notável expoente afigura-se, hoje, no crítico dealbar do terceiro milénio, como um precioso contributo para o tão premente diálo-go inter e trans-cultural, inter e trans-religioso, e para o desenvolvimento de uma consciência planetária e cósmica, iluminada pelo sentido do Infinito e da totalidade.4 Para o desenvolvimento ou desvelamento, se quisermos, dessa trans-antinómica plenitude e harmonia última do mundo e da consciência que o pensador, de acordo com as metáforas tradicionais do nosso pensamen-to profético-messiânico, designou de Quinto Império, Império do Espírito San-to ou Ilha dos Amores .5

Cremos que o âmago do pensamento de Agostinho da Silva reside numa particular experiência/visão de Deus, de onde derivam as suas restantes concepções fundamentais.6 E o que aí predomina, como nestas duas obras po-éticas plenamente se confirma, é a intuição de Deus como “nada que é tudo”,7 o que desde logo destina o seu saber/sabor ao paradoxo não só da expressão lógica, mas também, mais fundo, da experiência ontológica.8 Aqui Deus é au-sência de determinações ôntico-ontológicas, um não um, uma não entidade, um não algo,9 um vazio enquanto desprovido de qualquer qualificação delimi-tadora, positiva ou negativa,10 e, por isso mesmo, “tudo”, uma plenitude que se pode entender quer como um todo, simples, homogéneo, indiferenciado e

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indeterminado, quer como um tudo propriamente dito, que contém em acto todas as determinações e antinomias possíveis, porém sem que nelas se de-termine. Questão fundamental que Agostinho, todavia, aborda de múltiplas formas. Note-se o alcance do seguinte teorema: “Se a Deus lhe faltasse o nada / seria menos que Deus”.11 O “nada” é instância constitutiva de Deus, enquanto plenitude absoluta. Sem o “nada”, Deus não o seria, faltando-lhe num sentido ser algo, mas noutro, mais profundo, o não ser algo, que é mais do que todo o ser algo, para esse Tudo que é. Isso mesmo se explicita noutra quadra: “Se Ele é tudo o que dizes / Ele o Nada pode ser / e se é Nada livre está / para ser o que quiser.”12 Sendo Deus pensado como totalidade em acto do possível, ela deve, segundo a lógica particular do autor, incluir aquele “Nada” que, sendo num sentido a sua negação, é num outro sentido aquilo mesmo que a vem consu-mar e confirmar como totalidade, à qual nada falta, nem sequer o seu outro, contrário, mas não contraditório. O mais importante, todavia, é o elemento e implicação novos que aqui emergem. Deus, enquanto “Nada”, excede toda a determinação, o que, no entanto, não o constrange a permanecer indetermi-nado, pois essa liberdade que é ausência de modos e propriedades é também potência de autodeterminação. Diríamos: um vazio de ser que é possibilidade e potência do seu autopreenchimento infinito, dando-se tantas determinações quantas irrestritamente queira.13 O que, num sentido, se deve pensar como eternamente realizado, pois Deus, sendo nada, ou também nada, sendo “puro não ser”, já é, como vimos, tudo, “todo ser”, enquanto, num outro sentido, esse ser nada, nada ser, ou “não ser”, lhe possibilita o tornar-se tudo, o desvendar-se na plenitude do ser,14 o que só parece possível na perspectiva de um relativo surgimento de diferença e novidade, ou seja, de manifestação, pela qual seja em relação a Deus, como em relação a um princípio, o que é em Deus, ou seja, o que Deus é, totalidade em acto do possível e seu excesso: tudo-nada.15

Num quadro onde são notórias afinidades com as metafísicas místicas orientais e ocidentais que reconhecem a ab-solvição do ab-soluto de todas as categorias – da primeira hipótese sobre o Uno, no Parménides platónico, a Plo-tino, Proclo e Damáscio, do Pseudo-Dionísio, o Areopagita, a Escoto Eriúgena, Pedro Hispano, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa e Angelus Silesius, de Lao-Tsu a Shankara e à visão búdica da vacuidade, em Nagarjuna e Longchenpa – , é o que se confirma numa quadra de notável profundidade e riqueza, onde Agostinho condensa o mais subtil do seu pensamento e de toda uma gama de intuições da tradição planetária e também portuguesa, mostrando as conse-quências fundamentais da sua ideia de Deus nos planos cosmológico e antro-pológico: “O mundo é só o poema / em que Deus se transformou / Ele existe

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e não existe / tal a pessoa que sou.”16 O Deus que é tudo em si, incluindo o nada, e que, por esse nada ser, pode tornar-se tudo, devém (auto)poeticamente mundo, o qual não é senão a consubstancial trans-formação de Deus, a sua íntima, una e simples infinitude e totalidade a devir unitotalidade complexa e múltipla. Apesar de se usar aqui o passado como tempo verbal, e se pen-sarmos noutros textos,17 faz mais sentido pensar o mundo como a eterna e instante auto-poiésis, ou autocriação, de Deus. Na primeira metade desta qua-dra se consideraria assim temporalmente, e de algum modo ad extra, mais na perspectiva do mundo, aquilo que antes se considera eternamente e ad intra, mediando entre ambas a perspectiva da sempiterna possibilidade e poder do eterno advir temporalmente, de Deus advir como o mesmo-outro de si cha-mado mundo. Possibilidade e poder que, sendo-o, não são necessidade, antes uma liberdade para algo, que se pode não exercer. A eternidade da autocriação de Deus como mundo, contradizendo a diferença substancial e ontológica en-tre ambos e subvertendo na mesma noção de autocriação as noções comuns de “criador” e “criatura”, não contradiz aqui, em absoluto, a liberdade dessa autocriação. Se Deus não pode, sob pena de não ser Deus, não ser tudo, e logo o nada, já poderia, eventualmente, não (se) transformar isso num haver mundo. Mas aqui o pensamento do nosso autor aponta em direcções diversas, como quando enfatiza a inerência do “mundo” à autocriação do incriado, não o vendo como efeito de uma causa, mas como o causar-se de uma causa incau-sada,18 ou quando explicitamente relativiza a natureza dicotómica da mente e da linguagem humanas a ideia de Deus ser criador do mundo, seja parecendo preferir a ideia de (re-)velação ou manifestação-ocultamento, sempre renova-da, de Deus no mundo, seja afirmando “mundo e Deus” como o “mesmo”, um “uno” em relação ao qual, enquanto determinações ou aspectos seus, eterna-mente seriam idênticos e diferentes.19

É exactamente sobre esta questão que incide a segunda metade da última quadra: “Ele existe e não existe / tal a pessoa que sou.” Embora o facto de o autor nunca começar com maiúscula senão o primeiro verso nos levar a pensar que “Ele” se refere a Deus, note-se a ambiguidade pela qual se pode-ria também referir ao mundo. Entendendo o existir como ex-istir, do latino ex-sistere, cujos componentes indicam um colocar, estabelecer, construir ou apresentar-se (entre outras ideias) de dentro para fora, ou a partir de, origi-nando os significados de sair de, nascer de e surgir, aparecer, apresentar-se, mostrar-se, compreende-se que Deus ex-ista e não ex-ista: ex-iste na medida em que devém mundo; não ex-iste enquanto, sendo em si e a partir de si mes-mo que procede, nunca conhece, mesmo como mundo, nenhuma exteriori-

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dade ou dualidade que o tornem realmente outro ou que o façam ter uma alteridade. O mesmo se diria do mundo: ex-iste se considerado como adve-niente a partir de Deus, como o seu “poema”; não ex-iste se visto na unidade e eternidade da autocriação divina, em que o “poema” é inseparável da auto-poiésis do seu autor. O mesmo, mas agora explicitamente, diz-nos Agostinho da “pessoa” que é e que somos, da pessoa humana, que assim talvez seja a mais fiel evidência do existir e não existir divino: ex-iste na medida em que se a considera advindo também como “mundo” e “poema”, como ente originado ou manifestado; não ex-iste se a vislumbramos na intimidade e plenitude da (auto)poética vida divina, no acto eterno da sua livre autocriação, ou, mais ainda, como veremos, na sua transantinómica unidade entre nada e tudo ser ou no seu equivalente “ser-não-ser.”20

Mas um outro entendimento pode ainda haver deste admirável texto. Se o que dissemos vale seguindo a linha de interpretação do existir como ex-istir, já um outro horizonte se divisa se o considerarmos no sentido de ser. Nesta perspectiva, Deus existe/é plenamente como imanifestado e não existe/é como mundo, em cuja re-velação, a sua própria re-velação, adquire as determinações que, manifestando e afirmando o “tudo” que é, o ocultam e negam enquanto “nada”, indicativo da sua verdadeira e plena (trans-)es-sência, excedente de toda e qualquer determinação. E também do mundo e da pessoa, nesta perspectiva, se pode dizer que mais plenamente existem/são no imanifestado divino do que na sua manifestação-ocultamento, na sua re-velação e de-terminação, como elas mesmas, pessoa e mundo; ou seja, que mais são, não sendo, em Deus, ou no “nada”, enquanto inefável infinito, do que em si próprias.21

Seja como for, note-se neste tão curto como fecundo texto o excesso do movimento, do processo e do devir criador, entendido como metamorfo-se, sobre as comuns noções de criador e criatura, sobretudo se pensadas à luz do dualismo substancialista que frequentemente informa os criacionismos, mormente no seu entendimento vulgar. Não sendo mundo e homem senão a poético-poemática metamorfose de um Deus onde tudo e nada coincidem, toda a questão se ilumina no terceiro verso, que indica a simultaneidade do existir e não existir – quer no sentido do in-ex-istir (etimologicamente, o ser em e o ser a partir de), quer no sentido do ser e não ser – como a anfibológica condição primordial que, a partir de Deus, abrange o mundo e o homem. Nada sendo absoluta e substancialmente em si, por si e para si, e tudo sendo noutro, por outro e como outro – mesmo Deus, senão já enquanto “nada que é tudo”, ao menos enquanto se faz mundo – , o tudo existir e não existir, ser

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e não ser, é afinal um nada existir nem não existir, nada ser nem não ser, que – equidistante do substancialismo eternalista e do niilismo – furta Deus, ho-mem e mundo, na sua íntima correlação, a toda a predicação e categorização possível, ou seja, a toda a divinização, humanização e cosmicização.22

Na verdade, a aparição e a percepção, como “Deus” ou “mundo”, desse impredicável, parece depender da perspectiva assumida pelo sujeito humano, ou, de modo mais radical, de haver perspectiva, isto é, de haver sujeito. Privi-legiando-se a simples e una infinitude ou a totalidade complexa e múltipla, “ora é Deus ora é o mundo”, e, havendo ou não sujeito, ou seja, ex-istindo ou não este, isto é, centrando-se ou não a visão numa perspectiva finita e ob-jec-tivante, há ou não Deus, pensado enquanto princípio da constituição e ma-nutenção do sujeito nessa ex-istência, na verdade a “prisão própria” da qual, não estando o “sujeito” sujeito a sê-lo, se pode libertar,23 anulando, com ela, a imagem do mundo e do divino colhida através das grades de uma finitude afinal insubstancial e autoconstruída, tal esse pessoano “claustro de ser eu”, reconhecido afinal como meramente mental,24 se bem que, por isso mesmo, em Pessoa, de mais difícil e problemática libertação.25 Mas, em Agostinho, é es-ta responsabilidade do sujeito pela sua autoconstituição na ex-istência, o que supõe a possibilidade de o não fazer e de disso se libertar, que refere quando, confessando a sua experiência do “agir por não agir”, colhida dos seus “mestres chineses”, se diz ver-se assim “consolado” de se “ter obrigado a existir”. Nesta significativa referência ao pensamento oriental – provavelmente ao taoísmo,26 mas possivelmente também ao budismo Chan,27 alguns dos contornos dos horizontes agostinianos – , é pelo agir não agindo que o sujeito se resgata da dualidade e cisão ex-istencial, ligando-se e prendendo-se ao Deus que é e não é, ao Deus-absoluto, que não é em si um Deus criador, apenas surgindo como tal na medida em que assim é criado pela sua suposta criatura.28 Escrevendo “ao que a mim me criou porque eu o crio”, a visão agostiniana, transgredindo a comum ideia da unilateral e extrínseca relação entre um Deus criador e as criaturas, abre duas possibilidades de interpretação, não de todo exclusivas: ou o Deus criador é uma mera representação do Deus absoluto, do Deus-“nada que é tudo”, por um sujeito que deste se cinde e, ignorando ou esquecendo essa cisão, o perspectiva de fora, julgando-o como causa dessa sua condição, na verdade apenas por si construída; ou há, de algum modo, uma interacção entre a cisão do sujeito e a determinação de um Deus que se torna seu criador na mesma medida em que por ele é criado, desempenhando simultânea e re-ciprocamente o divino e o humano as funções de criador e criatura, no fundo sem fundo do absoluto onde se identificam.

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Aprofundaremos este entendimento da questão, notando agora que Agostinho ensaia outras possibilidades de compreender a criação, como adian-te se verificará e desde já se pode assinalar no complexo poema onde fala de um Deus que o crie, não sendo o sujeito mais do que os pensamentos divinos, os quais, por si reenviados ao divino pensador, o recriam “num eterno de mo-mentos”, porém “que O não são / nem O foram nem serão.”29 Aqui, como nou-tras passagens,30 se salvaguarda mais a transcendência e anterioridade da cria-ção divina, se bem que, numa afinidade com a tese anterior, se considere que o Deus perspectivado pelo sujeito é apenas a recriação/representação ilusória do Deus real, re-fractando a sua eternidade simples na descontinuidade (de actos, de predicados?) própria do pensamento discursivo. Antecipando teses que abordaremos adiante, o sujeito não existe fora de Deus, ou, melhor, não ex-iste, não sendo mais que divino pensamento. Não obstante, numa formula-ção logicamente contraditória, parece admitir-se que esse divino pensamento, no qual consiste o sujeito, encontra fora de si o sujeito já constituído, de tal modo que, nele “batendo”, a si voltasse numa (auto-)reflexão ilusória, como luz criadora de um espelho que lhe devolvesse uma imagem imprópria ou desfocada de si mesma. A difícil questão, geradora da dificuldade de expressão, é a de conciliar a única realidade autêntica do divino ser/pensar criador com a emergência de uma alteridade que, não o sendo verdadeiramente, assume a eficácia de o parecer ser, manifestando-se como se o fosse e velando o que realmente é. Essa é a ilusória alteridade, em termos ontológicos, do próprio sujeito, a qual, não reconhecida como tal, oculta isso mesmo que manifesta, o divino, no próprio acto de o manifestar.31 A ilusória alteridade do próprio Agostinho da Silva, cujo vivido reconhecimento se traduz no subtil duvidar da existência própria: “Se é que sou.”32 Dúvida bem mais funda que as tão vul-gares certezas de Santo Agostinho e Descartes, fundadas na suposta auto-evi-dência do cogito,33 verdadeiros expoentes, mesmo nas suas leituras mais subtis, desse senso comum arraigado no pensamento, sobretudo ocidental, enquanto crença e juízo ingénuos de que a existência de pensamento e actividade impli-ca a de um pensador e agente, humano ou divino, ou de que ser seja ex-istir e ser sujeito, pela qual se perde no suposto livre-arbítrio a liberdade primordial que Agostinho intui e busca...

Note-se aqui alguma proximidade com o budismo, uma das suas fontes, na vertente Chan/Zen ou mesmo tibetana,34 quer neste duvidar da existência própria, quer no afirmar o pensamento de haver um pensador, um sujeito do pensar objectivante, como algo de meramente adventício num primordial pen-samento impessoal: “Primeiro há um pensamento/que pensa sem pensador/e

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logo pensa quem pensa/que pensa tudo ao redor.”35 Poderá manter-se, todavia, alguma diferença em relação à visão búdica, se interpretarmos o “quem pensa” como alguém de relativamente real, que todavia se ilude na medida em que julga ser ele quem efectivamente pensa o mundo. Mais budista seria a sim-ples afirmação: pensa quem pensa que pensa. É que Agostinho, identificando o “Pensamento” primordial com “Deus”,36 e aqui mais fiel a Aristóteles do que a Plotino,37 tende nesta linha a manter-se numa posição criacionista, embora li-mite e singular. Daí que diga, a respeito do budismo Zen: “Talvez budismo Zen vá à frente de tudo; não, porém, tão longe que se pense pensado e não somen-te pensando.”38 Todo o pensar humano remeteria assim para um mais radical pensar divino e criador. O que, diga-se, não nos parece colher como objecção ao budismo, que procede exactamente da experiência não só de um não haver pensador, mas ainda de um não pensar, mesmo no seio de todo o pensamento... Há, todavia, uma tensão, no pensamento de Agostinho da Silva, entre esta tese da redução de todo o pensar humano a um originário pensar divino e criador, e uma outra em que é a própria mente humana, consubstancial ao divino ou, melhor, conatural à sua insubstancialidade, que assume a responsabilidade pela criação do mundo, refractando o incondicionado: “A nossa mente olha o Eter-no e o faz Tempo”; “A nossa mente olha o Vazio e o faz Espaço.”39

Relacionado ainda com esta operatividade da mente, e nesta explora-ção dos múltiplos diálogos implícitos na obra agostiniana, note-se que, mor-mente na primeira das teses atrás assinaladas, a da criação do Deus criador pela sua suposta criatura, Agostinho da Silva, depois de Teixeira de Pascoaes40 e de Fernando Pessoa,41 converge com uma das posições mais notáveis, pela sua radicalidade e ousadia, na tradição ocidental, na exacta medida em que subverte as leituras comuns do criacionismo, estabelecendo mais uma ponte para o Oriente não-dualista que é simultaneamente uma fonte de diálogo inter-religioso.42 Referimo-nos a Mestre Eckhart, que sustenta ser a relativa autocriação daquilo que, de acordo com as categorias da época, designa como “ser criado” ou “criatura”, que determina que o absoluto e eterno adquira a característica de ser “Deus”. Com efeito, é apenas quando, pelo exercício da sua “livre vontade”, o sujeito se actualiza, saindo da plenitude primordial e constituindo-se como criatura, que passa a ter um Deus. Antes da ex-istên-cia, ou da ex-istenciação, das criaturas, ou seja, antes da autoconstituição dos entes como tais, como seres determinados, «Deus não era ‘Deus’»,43 isto é, a plenitude primordial, indeterminada, embora contendo a potencialidade de todas as determinações, ainda não era objecto nem sujeito para nenhuma consciência, como uma entidade conceptualizada e diferenciada por predica-

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dos, atributos e características, à imagem e semelhança dos predicados, atri-butos e características que essa mesma consciência, a humana, em si supõe, supondo-os em “Deus” excelentes.44 Antes da auto-actualização do poder ser dos entes, Deus não era “Deus”, mas simplesmente “era o que era”. É pelo sur-gimento dos entes que isso que se vem a chamar “Deus” deixa de o ser em si mesmo, sendo-o “nas criaturas”.45 Se bem que Eckhart, pelos naturais limites da linguagem, continue a chamar Deus, em si mesmo, à primordial plenitude indeterminada, é bem claro que, numa notável inversão da equação comum dos criacionismos, o que está aqui em causa é a criação de Deus pela auto-criação das criaturas, enquanto divinização e teologização do indiferenciado primordial,46 ou, em termos eckhartianos, a geração de Gott, o Deus que o é para a consciência e o homem, na e a partir da Gottheit, a Divindade, abismo ou fundo sem fundo primordial, enquanto sua objectivação pela actualização das potências de ser e de consciência nela pré-contidas.47

A criação, no sentido de fenomenalização, de “Deus” pelas criaturas, acompanha-se aliás, como o autor afirma no final do sermão, da mesma cria-ção, ou fenomenalização, de “todas as coisas”, do mundo. Deparamo-nos assim com o aparente paradoxo de um ente, um sujeito, uma “criatura” que assume a responsabilidade de, no seu estado incriado, “não nascido” (ungeboren), nas-cer eternamente como “causa” de si mesma, de “Deus” e de “todas as coisas”, acrescentando mesmo que, se o não tivesse querido, ela não seria e, assim, não seriam nem as coisas nem “Deus”. É aqui que o pregador, falando na primei-ra pessoa, se apercebe do possível excesso ou irrelevância desta verdade para o seu auditório, porventura pouco capaz de acompanhar a subtileza da sua visão, e procura atenuá-lo, afirmando a sua dispensabilidade: “Que Deus seja ‘Deus’, eu sou uma causa; se eu não fosse, Deus não seria ‘Deus’. Não é neces-sário saber isso.”48

Mas Eckhart, apesar de tudo, insiste na necessidade deste saber liber-tador. Como se confirma noutros textos, o Deus pessoal e a criação surgem como a configuração que a primordial unicidade assume na medida em que o eu se di-verte do seu seio. Sendo a ex-cisão do eu que fenomenaliza e pluraliza o indiferenciado nos aspectos ideo-reais de Deus e do mundo – “Não foi senão quando me derramei que todas as criaturas anunciaram Deus”; “Quando eu fluía de Deus, todas as coisas disseram: Deus é (...)” – , é o seu superior regres-so a ele que os dissipa – “(...) Deus também devém e desaparece” – , reabsor-vendo-os na plenitude jamais anulada e sempre actual.49 A processão geradora do Deus com atributos a partir do fundo sem fundo da Divindade (Deitas, Gottheit), ou do Nada absolutamente transcendente de todas as categorias, é

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na verdade a autocriadora processão do espírito que faz surgir ante a e como correlato da sua própria diferenciação o espectáculo das determinações on-toteocosmológicas para o reabsorver na sua mesma reabsorção na plenitude a-determinada, criando-se como criador de tudo para se decriar e a tudo no seu regenerar-se como absoluto.50

Regressando a Agostinho da Silva, e a tudo o que dissemos a propósito da notável quadra “O mundo é só o poema / em que Deus se transformou / Ele existe e não existe / tal a pessoa que sou”,51 compreende-se que as aparências de existir e não existir, ser e não ser, abrangentes de todas as determinações e modalidades que assume a manifestação de um fundo sem fundo primordial ultimamente inapreensível segundo tais categorias ontológicas, levem o autor à “suspeita / de que a Verdade” lhe minta”.52 Contrariamente à visão ociden-tal que rejeita, com Platão, um Deus “feiticeiro”, metamórfico, pluriforme e poeta,53 ou enganador, em Descartes,54 e afim a um possível entendimento da Maya oriental, enquanto potência de cosmogónica e mágica autodissimulação do absoluto,55 à anteriana e pessoana “ilusão” como potência estruturadora da criação/manifestação56 e, talvez acima de tudo, à pascoaesiana visão, quer da “Ilusão” como jogo criador – i-lusão – , quer da mentira criadora do ab-soluto/Nada, pela qual algo é,57 surge em Agostinho a hipótese de uma Ver-dade mentirosa. O que não é necessariamente contraditório ou negativo, se pensarmos que o verbo latino mentiri, além de significar “mentir, não dizer a verdade”, também designa o “imitar”, o “ter a aparência de”, podendo enten-der-se a mentira, em termos extra-morais, como um livre jogo das faculdades miméticas e lúdicas do ser, como um fazer de conta que, uma ficção criadora, bem afim à actividade infantil e poética,58 que implica uma consciência privi-legiada e constante da verdade, do que é, mas também, sem cisão, da verdade/realidade da própria ficção, da ironia, no sentido etimológico de “simulação”, do fazer como se, do fingimento, “para além da ruptura metafísica entre o imaginário e o real.”59 Por outro lado, pensando na relação etimológica entre o mesmo mentiri e mens – designativo da “mente” e das suas actividades, como o “pensamento”, o “projecto”, o “plano”, o “juízo” e a “razão” – , por sua vez derivado de memini, redobro da raiz men- (pensar), que significa “ter presente no espírito, recordar-se”, podemos extrair as ideias de que, num sentido, como vimos, a mentira supõe a verdade e a sua posse, e de que, noutro, a mentira pode não ser senão a condição de toda a determinação mental da verdade, a condição de toda a determinação do que não tem medida nos domínios da mensura discursiva, projectiva, planificante, judicativa e, enfim, racional (cf. o sentido de “conta, cálculo, cômputo” do ratio, onis latino).60

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O que avulta, todavia, é a metáfora da poesia, por vezes associada à do sonho, para designar a criação, em termos metafísicos e ontológicos. Deus é reiteradamente visto como “eterno (...) poeta / cuja essência é nos sonhar”, tendo imediatamente o nosso autor a subtileza de acrescentar: “Supondo que há um poeta / e não apenas poema / de que tudo é expressão / e de que o nada é o tema.”61 Não é apenas o sujeito humano que, como vimos, ganha o perder a sua limitadora entidade própria, mas é primeiro que tudo o próprio sujeito divino que o não é, que é livre de ser sujeito, e, sendo alheio, para usar a lin-guagem escolástica, a toda a substância, essência e quididade, se pode indicar como omnipresente “poema” que “tudo” expressa “nada” expressando, ou ex-pressando o “nada”, não sendo afinal todos os supostos entes senão a jamais reificada fenomenalização de um absoluto sugerível mais na linguagem do desconhecimento, da insignificância,62 do esvaziamento, da kénosis, do que na da ontoteológica plenitude. Tão ilusória quanto a de um sujeito humano que seja algo fora do continuum de uma actividade mental, oral e física inseparável do mundo, a ideia de um Deus-poeta separado do seu poema, de um criador separado da sua criação, dissolve-se num poema-mundo visto como infinita e heteronímica variação do “nada”.

Ainda nesta linha, e confirmando a anterior sugestão de afinidade en-tre o mentir da “Verdade” e uma actividade lúdica, surge uma quadra bem explícita: “Se só o uno é que existe / serão pura fantasia / as colecções de uni-dades / em que a vida se varia.”63 Utilizando agora existir no sentido de ser, a metafísica agostiniana apresenta-se aqui como um monismo henológico, no qual os conjuntos de unidades individuais – os géneros e espécies ? – em que a vida se diversifica não são mais do que “fantasia”. De quem ? Da unicidade que exclusivamente é em toda a diversidade aparente dos seres, ou da percepção não iluminada da mesma que se prende nos aspectos superficiais do múltiplo e não capta a sua essência una ? Embora elementos haja na obra agostiniana que podem levar-nos a subscrever a segunda hipótese, inclinamo-nos aqui, salientando que as duas não nos parecem excluir-se, para a maior plausibi-lidade da primeira, uma vez que é às variações da vida e não da consciência que se atribui a “fantasia”. Reforçando os nexos com algum sentido de Maya, e agora sobretudo de Lîla, o jogo divino,64 no pensamento oriental, e bem assim com alguma teosofia ocidental,65 algum pensamento contemporâneo66 e o sentido da I-lusão e da mesma Fantasia em Teixeira de Pascoaes67, encon-tramos no nosso autor uma visão do mundo e da vida que abre para duas possibilidades de entendimento, também não absolutamente contraditórias: ou mundo e vida são mera irrealidade, em termos absolutos, pois apenas apa-

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rentam ser quando em rigor não existem, não sendo senão a fantasmagórica aparência de um “uno” unicamente real; ou são a criativa, lúdica e, ao modo de Pascoaes, carnavalesca auto-realização do uno, disfarçando-se realmente nos aspectos de todas as coisas. Tudo dependendo do modo como se entende “fan-tasia”, ou no sentido de uma irracional aparência irreal daquilo que unicamen-te é, o uno, ou no de uma sua positiva projecção e travestimento criadores, di-zemos as duas possibilidades de entendimento compatíveis na medida em que a irracional irrealidade da sua aparência proceda menos do próprio “uno” do que da visão que não apreende o múltiplo como o seu autodisfarce e masca-ramento, não logrando discernir o seu omnipresente rosto na mesma medida em que toma por absolutamente reais as formas individuais da sua “fantasia” que constituem os seres, a vida e o mundo. É um pouco como em Antero de Quental, em que o absoluto, dando-se em especular espectáculo a si próprio, desenrola-se no universo fenomenal da multiplicidade, o qual, experienciado como real pelos seres cuja consciência não acede à compreensão de todo o processo, se dissolve finalmente como “fantasmagoria” na visão sábia e santa que assim igualmente dilui o ser individuado na unicidade absoluta.68

É neste sentido que parece ir outra quadra notável: “Eu nada sou é tudo quanto digo/um sonho apenas do senhor do mundo/me perco mesmo quan-do me consigo/e só me salvo se em não ser me afundo.”69 Escrita na primeira pessoa, fala-nos da mesma articulação entre Deus, os seres e o mundo, mas agora na perspectiva da experiência humana e individual, nos seus extremos limites/limiares. O sujeito reconhece o seu nada ser, em termos substanciais e últimos, se referido a esse Deus que é o próprio absoluto, trans-antinómica unicidade onde confluem ser e nada. O seu estatuto não é outro senão o de ser “um sonho”, ou seja, um momento da vida desse Deus que afinal unicamente é e vive em todos os seres aparentemente autónomos.70 E este “sonho” po-de ser entendido quer como actividade inconsciente, vital e a-racional de um Deus que cria oniricamente, sem saber nem ter de saber o que faz, conforme algumas visões orientais,71 uma leitura perfeitamente viável do Génesis bíblico, em que Deus primeiro cria e só depois vê que o que criou é bom, ou ainda, exceptuado o pessimismo, a visão de Domingos Tarroso,72 quer, em flagrante afinidade com o segundo sentido da anterior “fantasia”, como a livre e lúdica projecção e auto-realização da potência divina e das suas potencialidades cria-doras, porventura com uma espontaneidade ante-racional, tal como em Tei-xeira de Pascoaes,73 como o fazer-se tudo do seu nada, ou o fazer-se mundo do seu tudo inclusivo do nada. Todavia, a resposta do “sonho” que é o indivíduo humano ao seu sonhador divino é, reconhecendo-se como “sonho”, abdicar de

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toda a suposta e vulgarmente desejada realização de si, denunciada como per-dição enquanto manutenção e incremento da finitude ou, mais, da irrealidade ontológica, e, sobretudo, da pretensão de ser, para se a-fundar nessa verdade do “não ser” próprio mas também divino que é a sua mesma salvação/saúde, enquanto re-conhecimento da não dualidade com a trans-determinação do absoluto e do infinito.74 Atente-se aqui ao implícito diálogo com as palavras de Cristo, glosando a equação evangélica entre o perder-se e o salvar-se: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará” (Lucas, 9, 24; cf. também Lucas, 17, 33; Mar-cos, 8, 35; Mateus, 10, 39; 16, 25; João, 12, 25). Na extrema e paradoxal exigência mística, toda a forma de ser para si, todo o amor à sua finitude, erroneamente entendida como própria, é afinal um perder as supremas possibilidades de realização, enquanto a oblação do que existe nas aras do que é, o sacrifício da “sua vida” no altar da Vida, é a sua integração transfigurada e gloriosa no abismo divino. O a-fundamento é afinal metáfora da positiva iniciação ao sem fundo do infinito mé-ontológico, “não ser” enquanto transcendente de toda a limitação não só do ser algo, do ente, mas ainda do próprio ser,75 sobretudo se pensado como sede, referência, residência e assento estável dos entes,76 que assim fundaria e sancionaria na sua de-terminação e finitude. Na pulsão mís-tica do pensar poético de Agostinho, ao contrário, o princípio primeiro e fim último, coincidentes, dos entes, é esse “nada” que é afinal o que unicamente é, oculto em tudo o que aparece e nos parece real: “Oculto no que aparece/e nos semelha real/vive o que é nada e só é / fonte nossa e fim total.”77

Contudo – e o haver sempre um “contudo”, quando poderíamos ser tentados a crer haver formulado de uma vez por todas a visão do autor, é sinal da sua riqueza inesgotável – , Agostinho explora outras possibilidades, conver-gentes, de conviver com esse sonho divino, ou com esse sonhar-se do nada/ab-soluto que, sendo também, como veremos, uma livre dança, mostra mais uma curiosa afinidade com a visão pascoaesiana da “criação” como “um bailado de máscaras... cósmico entrudo tenebroso !... [...] assente sobre o Nada e o Sonho..."78 Veja-se a afirmação de que, uma vez que “tudo pode vir do nada”, a “vida em que vivemos” é apenas uma possibilidade, por nós sonhada no “que pensamos real”, entre inúmeras outras possíveis. Sendo o tempo “tempo imaginado / em que se imagina espaço”, abre-se a possibilidade de “ir além” dessa forma comum de construir o que se tem por real.79 Esta visão explicita-se na referência a uma “mente” primordial “que se sonha” sonhando os entes, ou os homens, mas que por sua vez é por estes sempre sonhada, resultando daí a percepção da realidade nas coordenadas do tempo e do espaço huma-

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nos. Reencontramos aqui a interacção entre criação divina e criação humana, parecendo esta ser responsável por uma particular reificação das possibilida-des da primeira. Assim o confirma a continuidade do poema, que indica ser possível libertarmo-nos de sonhar o sonho divino sob a forma do tempo e do espaço, humano ou outro. O que seria aceder a “outro sonho”: “o de não haver real / em que ao sonho limitemos”.80 Ou seja, diríamos, sacrificando as formas limitadas de sonhar humanamente o sonho divino, limitadas na medida em que sempre o realizam, deste ou daquele modo, reduzindo e cristalizando o infinito das suas possibilidades, nada assim lhe acrescentar, coincidindo com esse puro ser e vir a ser tudo do nada/absoluto, na insubstancialidade de uma manifestação onde nunca realmente emerge uma qualquer realidade particu-lar. O que é ainda uma forma de salvificamente se afundar em “não ser”, porém agora não apenas o não ser do Abismo divino, mas o do seu inerente devir criador, do seu “ser poema não poeta”,81 onde, como num “sonho puro”,82 nada se reifica e enquista nas formas do ser. Como diz Agostinho, falando agora do mundo como gratificante “dança etérea”: “Mais do que eu porém se deve / o de eterno divertir / vendo como nada vai / num suposto jogo de ir.”83 Reencontra-mos o tema, tão caro ao Oriente, a Heráclito, ao barroco e a Pascoaes, do mun-do como lúdico/i-lusória dis-simulação divina, em que na aparente novidade fenomenal das coisas, dos seres e dos eventos nada advém senão um absoluto que eternamente aparenta determinações sem que realmente as possua.

Que a manifestação do absoluto é uma instância lúdico/i-lusória, afim à poesia, à ficção criadora, à fantasia e ao sonho, confirma-o exactamente esta nova metáfora, também de procedência científica, a da “dança”, ou do “baila-do”,84 conforme outra fecundíssima quadra que igualmente reforça o paradoxal sentido místico dessa experiência do sujeito não o ser, de não ser sujeito, de toda a acção que aparenta ou se presume ser sua não ser afinal nem sua nem de ninguém, pois a “vida” é dançarina e livre emergência que flutua ou paira à tona do “nada”, ou seja, de uma impessoalidade onde, faça o que fizer, o suposto sujeito repousa no não ser-agir: “Tudo o que faço no mundo/sem eu o fazer é feito/baila a vida em liberdade/sobre o nada em que me deito.”85 Magistral sín-tese, enriquecida pela singularidade, das mais fundas e elevadas experiências da espiritualidade e da mística ocidental e oriental, o autor fala-nos aqui da liber-tação da condição de ser sujeito, da (auto)desapropriação última do indivíduo86 que, sem perder a vigilância e a actividade, e na mesma medida em que flui e dança na própria dança da “vida”, espontânea, livre, sem obstáculos, repousa no “nada” da divina trans-pessoalidade donde ela emerge. Repousa, deita-se mesmo, mas não adormece, ou não adormece senão conscientemente,87 como

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veremos, ao contrário da anteriana aspiração no celebrado soneto “Na Mão de Deus”: “Dorme o teu sono, coração liberto,/Dorme na mão de Deus eter-namente !”88 O “nada” é assim o sumamente real em Deus, no mundo e no homem,89 a verdade comum onde Deus, mundo e homem se identificam.

Na verdade, e isto aumenta em complexidade e riqueza a experiência e o pensamento agostinianos, o “nada”, sendo o único que “é real”, não é jamais apenas ponto de partida cosmogónico e ou ponto de chegada escatológico, mas sempre uma coisa e outra, sendo nele, dele e para ele que se manifestam e realizam todas as possibilidades da existência, que na verdade, como vimos, é uma in-ex-istência: “Talvez chegues tu a ver/que só o nada é real/e que a partir de não ser/te construirás total.”90 Só no contínuo recurso para e integração nesse primordial e sempre presente abismo de infinitude, liberdade e possi-bilidades criadoras, só firmando-se no sem fundo do seu mesmo “não ser”, é possível ao sujeito autoconstruir-se numa totalidade microcosmicamente afim ao próprio mundo, ou seja, à manifestação plena do Deus-nada que é e devém tudo. É, afinal, porque o sujeito, em simultâneo, é e não é, age e não age, que, nunca cessando de não ser nada, se pode tornar tudo.91 Como no lapidar dizer de Bernardo Soares: “Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma cousa, não poderia imaginar.”92 A condição de possibilidade da continuidade e renovação da imaginação autopoiética é o seu agente nunca se tornar efectivamente algo em tudo o que vai sendo, nunca cristalizar num ser a torrente do seu devir autocriador, expressão em si do divino poetar(-se), fingir(-se), fantasiar(-se), sonhar, dançar(-se).93

É isso mesmo que se confirma num poema onde todas as particulari-dades do existir, todo o ser algo, se denunciam como “ilusões”, de cujo despren-dimento resulta nos sujeitos, simultaneamente, o esvaziamento ontológico e o emergir no seu íntimo do esplendor divino: “De tudo se desprendendo/de ilusões se libertavam/e por já não serem nada/dentro deles Deus brilhava.”94 E no mesmo sentido aponta uma outra quadra: “O mais simples alicerce/traz logo a casa traçada/se eu quiser chegar a Deus/começarei por ser nada.”95 “Ser nada” é aqui não só a infinita receptividade e possibilidade de preenchimento própria de um vazio ontológico, que pode em si acolher tudo, mas já, se assim podemos dizer, a semente que em si pré-contém a divina totalidade, ela mes-ma, como vimos, segundo várias possibilidades, idêntica ao, inclusiva do, ou constituída pelo “nada”. O “ser nada” do sujeito, o seu zero, implica já assim em si o tudo/nada divino, sendo interessante esta dupla ideia de um “alicerce” onde se projecta e constitui desde logo toda a “casa” e do “ser nada” como esse mesmo alicerce, do nada como fundamento constitutivo e sustentador da ple-

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nitude trans-ontológica, que afinal é e radica menos numa qualquer entidade substancial do que numa sua ausência ou vacuidade.

Transitando para a questão da relação do conhecimento e da lingua-gem com essa mesma plenitude, encontramos outra quadra notável pela pro-fundidade do conteúdo e pelos ecos de toda uma multiforme tradição: “Oxalá por saber tanto/me apeteça ficar mudo/só então vendo sem ver/aquele nada que é tudo.”96 Parece-nos claro, por tudo quanto fica dito, que Agostinho nos fala daquilo que, na tradição ocidental, é a visão de Deus, ou a visão beatífica, e, no Oriente, a visão iluminativa.97 É visão, mas “sem ver”, pois que nela se transcende toda a separação sujeito-objecto, toda a suposta distinção entre aquele que vê, o acto de ver e o que é visto. Assim tem de ser uma visão do “nada que é tudo”, a qual não pode vê-lo, quer porque ele não é um objecto, entre outros, nem é objectivável, quer porque um “nada que é tudo” não pode senão integrar em si a sua própria visão, não lhe possibilitando qualquer espaço para uma diferença e distância que o objectivem. Na verdade, um Deus/“nada que é tudo” só pode ver-se sem se ver, na inefável experiência unitiva, sem qualquer subjectivação-objectivação, enquanto pretender vê-lo, como objecto, é na realidade não o ver, no sentido de ignorá-lo, trocando-o idolatricamente por uma sua representação, teológica ou filosófica,98 unicamente forjada pelo homem.99 É por isso que esta experiência, na sua plenitude, é num sentido um saber máximo, absoluto – não em termos de conhecimento objectivo, mas de uma sabedoria não-dual, fruitiva, que é também, consoante a sua etimologia, um sabor100 – , que não pode ou não solicita, sob risco de se atraiçoar, ser ver-balizado. Como expressar, senão diminuindo-a, uma experiência de não-dua-lidade, infinito e totalidade através de conceitos-palavras forjados para dizer a experiência do oposto, do finito e do parcial, a experiência daquilo que se apreende e define sempre por diferença e contraposição relativamente a algo de outro?101 Diminuindo-a em verdade mas também em fulgor afectivo, pois o apetecer “ficar mudo”, além de expressar, pela renúncia à própria expressão, um Deus que é fundamentalmente silêncio,102 traduzirá também o excesso do arrebatamento extático ou enstático – o estar fora, não necessariamente de si, mas da dualidade própria do “eu”, ou o estar dentro, na intimidade não dual de todas as coisas, conforme a perspectiva – , naturalmente acompanhado de ma-ravilhamento contemplativo, sobre toda a frieza própria do regime de consci-ência conceptual e discursivo.

É que este ver “sem ver/aquele nada que é tudo”103 é, na verdade, um fruir a autoconsciência divina, próprio do viver em Deus, “com não saber e ciência”.104 Apropriado a “um nada” de si ciente,105 o sujeito frui o deixar de o

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ser, integrado no infinito da consciência trans-ôntico-ontológica, num infini-to que, sabendo-se, sabe não ser isto ou aquilo, ou sabe mesmo não ser, jamais se objectivando ou de-terminando deste ou daquele modo. O ver “sem ver”, o viver “com não saber e ciência”, parecem assim, antes de mais, expressar a natureza de Deus, ou da visão de Deus – entendida como a visão que Deus tem de si, não apenas a visão que tem da criatura, pela qual esta é e o vê, como na mística especulativa mais ortodoxa106 – , na qual se ingressa transcendendo intuitivamente todo o entendimento e linguagem. Regressando ao “eterno”, donde, sem separação, emergem107 – como na tradição oriental e neoplató-nica, em que, à luz da causalidade exemplar, o efeito pré-existe e persiste na causa da qual procede e à qual regressa108 – , os entes não se vêem (como en-tes) na exacta medida em que (se) vêem (como) Deus (se vê).109 É assim que o próprio Agostinho, anunciando na primeira pessoa a iminência do fim da sua condição finita, a iminência de ser “um nada” e “um tudo”, declara que sua então “será toda a ciência/e o não saber o sono em que” se “embale/consciente de” sua “inconsciência”.110 Sua será toda a consciência de ser nada/tudo do nada/tudo divino, a qual é necessariamente um não se saber isto ou aquilo em particular, um desconhecer-se enquanto sujeito que a si mesmo se reflecte e objectiva deste ou daquele modo, ou pelo menos de um modo finito. É neste sentido que “ciência” absoluta e “não saber” (nada de particular e objectivo) se conciliam e articulam como o verso e o reverso de um mesmo estado. Daí que a “ciência” seja também um saber/sabor desse “não saber”, sendo deste modo que interpretamos o estar consciente da própria inconsciência, ou seja, o sa-ber que saber(-se)/saborear(-se)/ser(-se) tudo é nada (se) saber/saborear/ser de particular e finito. A suprema vigília é assim o estar consciente do próprio “sono”, isto é, da in-consciência ou da não consciência finita.

É isso que, com um elemento novo, que patenteia toda a riqueza do pensamento agostiniano, nos vem confirmar uma outra quadra: “Do que é certo desconfia/do duvidar te enamora/é bom não saber de Deus/quem de dentro a Deus adora.”111 Fala-se aqui, ainda, dessa experiência íntima de Deus, “de dentro”, agora no seu aspecto de adoração, num discurso que, por ser mais religioso, não menos aponta no sentido de uma não dualidade112. É o que nos sugere esse “não saber de Deus” que naturalmente acompanha tal adorá-lo “de dentro”. “Dentro” está aqui no sentido de uma intimidade ou união tal que, co-mo no ver “sem ver” da quadra anterior, não permite nenhuma distância onde se constitua uma visão exterior e extrínseca. Aquilo que, nos versos anterio-res, se referia como a plenitude de um saber/sabor não-dual, em união, diz-se aqui, noutra perspectiva da mesma experiência, como um “não saber”, ou seja,

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um “não saber” sob a forma do conhecimento conceptual inerente à relação sujeito-objecto, equivalente ao não ver anterior. Estamos aqui, radicalizando toda uma tradição oriental e ocidental, perante uma douta ignorância que, mais do que reconhecimento do não saber que seja desconstrução das falsas pretensões ao conhecimento e, eventualmente, propedêutica da inquirição, ao modo socrático,113 é antes e já um saber/sabor próprio do conhecimento ex-periencial, intuitivo e, aqui, adorativo, daquilo que há acima de tudo para ser conhecido – Deus – , na trans-dualidade unitiva ou que é a própria união,114 É por isso que este “não saber de Deus”, por excesso de intimidade ou coin-cidência com ele, não deixando espaço para qualquer distância, pela qual se veja Deus como “Deus”, um absoluto ou transcendente objectivado e separado de si115 – e que pode assumir até a aparência ou ser a inassumida verdade do ateísmo, como quando a brincar seriamente se diz: “sou ateu graças a Deus”116 – , será o melhor correctivo daquele saber de Deus por defeito da mesma inti-midade, ou seja, daquelas pretensões ao saber dogmático que, hipostasiando a letra de algumas re-velações ou de alguns conceitos acerca de Deus, os pre-tendem substituir à experiência viva e directa da própria Divindade, na sua intimidade abissal, como acontece em toda a teologia que de positiva se não faça negativa e ambas não transcendam em união e fruição mística.117 Contra-riamente a muitas expectativas, o homem mais íntimo a Deus, o homem mais divino, pode ser assim o menos aderente a qualquer ortodoxia ou heterodoxia, o mais desconfiado, duvidoso e crítico dos homens a respeito de todo o modo supostamente definitivo de formular a verdade e o caminho para ela, embora também deva naturalmente ser o mais desconfiado, duvidoso e crítico dos ho-mens a respeito da própria desconfiança, dúvida e crítica, sobretudo quando assumidas como um valor ou fim em si.

É também nesse sentido que aponta um lapidar poema-exortação em três versos: “Crente é pouco sê-te Deus/e para o nada que é tudo/inventa cami-nhos teus.”118 Exortação não só a não se conformar com a condição de “crente”, enquanto a daquele que adere exteriormente a uma doutrina religiosa, mas fundamentalmente a não se conformar com a condição de mero homem, com qualquer dualidade e separação relativamente a Deus, instando à sua superação na deificação.119 Deificação que aqui, em contraste com o espírito de múlti-plas passagens acima comentadas, não se processa tanto por uma unilateral anulação do sujeito no infinito divino, mas por uma sua positiva assunção, de signo heróico-apolíneo, onde o indivíduo humano se afirma no próprio acto de identificação à divindade, uma identificação activa onde, como a forma re-flexiva do verbo indica, recaindo a acção sobre o sujeito da proposição, este

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curiosamente afirma a sua singularidade no próprio acto de transcender a sua humanidade, ou a sua mera particularidade, no tornar-se divino. É o que se reforça nos segundo e terceiro versos, onde se exorta a que para o infinito e a totalidade, “para o nada que é tudo”, se encontrem vias próprias, diferentes das por outros trilhadas. Considerando outra composição onde se destaca a conciliação entre o ser-se apropriado por Deus – um Deus cósmico, um “Outro todos os outros” – e o não se perder de si,120 estes poemas, aparentando contra-dizer outros textos onde vimos sublinhada a anulação do sujeito, todavia talvez o não façam em absoluto, se verificarmos que mesmo essa anulação, o deixar de ser, ou o ser nada, são sempre apresentados como o termo último de uma iniciativa e de um processo individuais, que, se bem que impliquem, no seu culminar, a reintegração do sujeito no que é, no absoluto, enquanto infinito e totalidade, reconhecendo a sua jamais alienada identidade com ele, não menos exigem a sua livre e assumida orientação nesse sentido, como se, tal como bem o expressou Antero de Quental, a suprema e última realização do eu fosse a sua própria anulação na realização do (não-)ser, sem qualquer contradição.121 Persistirá, não obstante, alguma diferença entre o não ser e o ser-se Deus, a qual, contudo, pode reduzir-se se pensarmos a questão à luz da ontológica anfibolia, ou da paradoxia, patentes no poema atrás comentado: “O mundo é só o poe-ma/em que Deus se transformou/Ele existe e não existe/tal a pessoa que sou.”122 Tal como Deus e o mundo e, como vimos, consoante a perspectiva em que nos colocamos, avulta a existência ou não da “pessoa”. Neste caso, o aspecto activo e auto-afirmativo do seu ser Deus ou o passivo e mais negativo do seu não ser na-da de particular. Na verdade sem qualquer contradição, se recordarmos que, na lógica não aristotélica de Agostinho, não ser nada é ser tudo. Ou, como de outro modo indica: “A união com Deus consiste em ser plenamente o que se é.”123

É que o homem íntimo do Infinito, tão íntimo que nele se funde, sem que o deixe de fazer por vias próprias, será sempre aquilo que Agostinho toda a vida foi: o homem “do paradoxo”,124 aqui risonha, alegre e sabiamente con-vivente com isso mesmo que Antero entreviu, mais dramaticamente, como o “paradoxo universal das coisas”, o “divino paradoxo”.125

Paradoxo ou, como diz Agostinho e diremos nós, para concluir sem terminar:

“nem verdade nem mentira uma coisa assim assim e se queres saber mais não mo perguntes a mim”.126

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Notas1 Obras de Agostinho da Silva. Textos e Ensaios Filosóficos II, organização e estudo introdutório de Paulo A. E. Bor-ges, Lisboa, Âncora, 1999, pp.145-179.

2 Para algumas das mais recentes contribuições sistemáticas para a definição e a abordagem comparativa da experiência mística, cf. Juan Martín Velasco, El fenómeno místico. Estudio comparado, Madrid, Editorial Trotta, 2003; AAVV, La Experiencia Mística. Estudio interdisciplinar, edição de Juan Martín Velasco, Madrid/Ayunta-miento de Ávila, Editorial Trotta / Centro Internacional de Estudios Místicos, 2004; AAVV, Expérience Philo-sophique et Expérience Mystique, edição de Philippe Capelle, Paris, Cerf, 2005; Michel de Certeau, Le lieu de l’autre. Histoire religieuse et mystique, édition établie par Luce Giard, Paris, Seuil/Gallimard, 2005; Raimon Pannikar, De la Mística. Experiência Plena de la Vida, Barcelona, Herder, 2005.

3 Conforme isso que Fernando Pessoa, n’A Nova Poesia Portuguesa, em 1912, formulou como o partir “em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço”, ou das “Índias Espirituais”, ante o qual tudo o mais não é senão “obscuro e carnal antearremedo” - A Nova Poesia Portuguesa, in Obras, II, organização, introdução e notas de António Quadros, Porto, Lello & Irmão - Editores, 1986, pp. 1.194-1.195. Tal como noutros autores, a pessoana denúncia dos Descobrimentos como “obscuro e carnal antearremedo” não procede senão da própria e extremada exigência de Descobrir: “Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!” - Álvaro de Campos, Ultimatum (1917), in Ibid., p. 1.109. Cf. também a metaforização dos descobrimentos marítimos no sentido de uma outra viagem, “da alma”, em demanda de uma outra Índia: “Esta é a primeira nau que parte para as Índias Espirituais, buscando-lhes o Caminho Marítimo através dos nevoeiros da alma, que os desvios, erros, e atrasos da actual civilização lhe ergueram !” - As Índias Espirituais, in Ibid., III, p.684. Esta visão tem paralelos na de autores como Pascoaes e Leonardo Coimbra. Diz-nos o primeiro que “o messianismo é o génio de aventura alando-se para as estrelas”, ou dirigindo “as asas para o céu, o Atlântico etéreo além do qual existe uma outra Índia...” - O Génio Português na sua expressão filosófica, poética e religiosa, Porto, Renascença Portuguesa, 1913, p.11. Define o segundo a saudade como “movimento pendular do coração lusíada entre a pátria e todas as Índias que se atingem e aquela Índia de miragem, que não é nenhuma destas e sempre se procura e deseja, quando estas se nos deparam” (“Sobre a Saudade”, A Águia, nos 11-12, 2ª série (Porto, 1923), p.147), para, numa perspectiva já universal, contrastar “la evolución descendente de los mundos, deshaciéndose, con la evolución ascendente del hombre conquistando las Índias de la Memoria” (“Sobre la Moderna Poesía Portuguesa”, Dispersos. I - Poesia Portuguesa, compilação, fixação de texto e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Verbo, 1984, p.52).

4 Cf. Constança Marcondes César, que bem aponta como o projecto de Agostinho, de que Portugal e Brasil seriam privilegiados mediadores, visa um “diálogo que unifica Oriente e Ocidente, abrindo o caminho para uma nova época” – “Entre o Oriente e o Ocidente: Agostinho da Silva”, O Grupo de São Paulo, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2000, pp.199-211, p.211. Embora menos sistemático, o pensamento de Agostinho da Silva é neste sentido muito convergente com o de Raimon Pannikar – cf., por exemplo, Intuição Cosmoteândrica. A Religião do Terceiro Milénio, tradução de Maria Filomena Couto Soares, Lisboa, Editorial Notícias, 2003.

5 Cf. Romana Isabel Brázio Valente, “Agostinho da Silva na tradição 5º imperial”, AAVV, Agostinho, São Paulo, Green Forest do Brasil Editora, 2000, pp.304-343; Renato Epifânio, “Entre Portugal e o Quinto Império – A Mensagem de Fernando Pessoa à luz da visão/viagem de Agostinho da Silva”, AAVV, Agostinho da Silva. Um pen-samento a descobrir, Torres Vedras, Cooperativa de Comunicação e Cultura, 2004, pp. 95-103.

6 Cf. António Braz Teixeira, “O pensamento teodiceico de Agostinho da Silva”, Ética, Filosofia e Religião. Es-tudos sobre o pensamento português, galego e brasileiro, Évora, Pendor, 1997, pp.195-200; Eduardo Abranches de Soveral, “Agostinho da Silva: um homem de Deus”, AA.VV:, História do Pensamento Filosófico Português, volume V, O Século XX, Tomo 1, direcção de Pedro Calafate, Lisboa, Caminho, 2000, pp.273-295; Maria Teresa Rua do Nascimento Castro, Agostinho da Silva – naturalidade e transcendência no acesso a Deus, Guimarães, Editora Ci-dade Berço, 2005; Romana Valente Pinho, Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006.

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7 “Crente é pouco sê-te Deus/e para o nada que é tudo/inventa caminhos teus” – Agostinho da Silva, Uns poe-mas de Agostinho, s.l., Ulmeiro, 1990, 2ª edição, p.22; “Do que é o Espírito Santo/só diga quem fique mudo/que palavra há que me leve/àquele nada que é tudo” – Quadras Inéditas, s. l., Ulmeiro, 1990, p.36; “Oxalá por saber tanto / me apeteça ficar mudo/só então vendo sem ver/aquele nada que é tudo” – Ibid., p.88. Cf. também: “A isto de nada e de tudo/seu Deus os homens chamaram” – Uns poemas de Agostinho, p.64; Ibid., p.123; Quadras Inéditas, p. 88. A identidade Deus-nada é também sugerida na seguinte quadra: “Se Deus quisesse ocupar / lugar a si mesmo igual/preenchia todo o nada / e o deixava tal e qual” – Ibid., p.113.

8 Cf. Carlos Henrique do Carmo Silva, “De como metade é igual ao seu dobro... ou da sabedoria paradoxal de Agostinho da Silva”, in AA.VV., Agostinho, ed. cit., pp. 63-103; Paulo A. E. Borges, “Agostinho da Silva ou a Divina Paradoxia”, in Pensamento Atlântico. Estudos e Ensaios de Pensamento Luso-Brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, pp. 377-383.

9 Cf. o sentido do ουδ-εν grego, do nihil latino, do né-ant francês, do no-thing inglês, do ni-ente italiano, do n-ichts alemão e do nada português e castelhano, proveniente da expressão latina “nulla res nata”, nenhuma coisa nascida, o que sugere quer a não onticidade, quer o incriado e/ou imanifestado.

10 “Pois que não é do divino/o ser isto ou ser aquilo” – Agostinho da Silva, Id., Uns poemas de Agostinho, p. 71.

11 Cf. Id., Quadras Inéditas, p. 97.

12 Ibid., p.115.

13 Neste sentido o “nada” é sempre excedente do “tudo” e mais conveniente para designar o inefável absoluto: “(...) nada que pode sempre ser/e é bem mais poderoso do que um tudo/que já sendo não pode renascer” – Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.132. Veja-se a afinidade desta proposição com a de Bernardo Soares, com a diferença de a limitação do ser se referir aqui ao “alguma coisa” e não ao “tudo”: “Posso imagi-nar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar” – Bernardo Soares, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p.185.

14 “Esse puro não ser que é todo ser” – Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.52; “Pois sendo só o não ser/em pleno ser se desvenda” – Ibid., p. 62.

15 Num abundante elenco de passagens que identificam Deus como “nada”, ou “nada que é tudo”, apenas uma poderia parecer apontar num sentido diferente, distinguindo “Deus” e “nada”, como na leitura ortodoxa da cria-ção ex nihilo: “O que se deu no princípio/antes de haver alvorada/foi aquele casamento/de Deus fecundando o nada” – Uns poemas de Agostinho, p. 78. Todavia, se verificarmos bem, o “nada” não designa aqui a mera ausência de uma matéria primordial, remetendo antes para a ideia de uma potencialidade de geração que é primordial-mente actualizada por Deus. Perguntamo-nos assim se, em coerência com o restante pensamento de Agostinho da Silva, não estaremos aqui perante a visão de um Deus que se autofecunda, actualizando em manifestação/criação todas as potencialidades em si latentes como imanifestado, como “nada”. A visão agostiniana seria aqui convergente com a de Escoto Eriúgena , que aponta o “nada por excelência” do Deus que, ex nihilo, ou seja, “de si para si mesmo”, autoprocede “ex nihilo in aliquid, ex inessentialitate in essentialitatem”: “Dum ergo incom-prehensibilis intelligitur per excellentiam nihilum non immerito vocitatur, at vero in suis theophaniis incipiens apparere veluti ex nihilo in aliquid dicitur procedere, [...]”; “Divina igitur bonitas quae propterea nihilum dicitur quoniam ultra omnia quae sunt et quae non sunt in nulla essentia invenitur ex negatione omnium essentia-rum in affirmationem totius universitatis essentiae a se ipsa in se ipsam descendit veluti ex nihilo in aliquid, ex inessentialite in essentialitatem, ex informitate in formas innumerabiles et species” - João Escoto Eriúgena, Periphyseon (De Divisione Naturae), Liber Tertius, editado por I. P. Sheldon-Williams com a colaboração de Ludwig Bieler (edição bilíngüe), Dublin, The Dublin Institute for Advanced Studies, 1981, pp. 166 e 168. Como diz Mafalda Blanc: “A passagem de ‘nihil’ a ‘esse’ não envolve uma causalidade ‘ad extra’, pois ocorre no interior do próprio Deus [...]” - “A Divina Natureza segundo Escoto Eriúgena”, revista Portuguesa de Filosofia, 52 (Braga, 1996), pp.97-109. No outro lado do planeta, também o místico e filósofo tibetano Longchenpa escreve, acerca da natureza da mente, inerente ao “espaço fundamental [dbying]”: “Por esta não ser absolutamente nada e surgir todavia como absolutamente tudo […]” - Longchen Rabjam [1308-1363], The Precious Treasury of the Basic

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Space of Phenomena, edição bilíngue tibetano-inglês, traduzido sob a direcção de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoché por Richard Barron (Lama Chökyi Nyima), editado por membros da Comissão de Tradução Padma: Susanne Fairclough, Jeff Miller, Mary Racine e Robert Racine, Junction City, Padma Publishing, 2001, p. 5.

16 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p. 81. Sobre o mundo e a vida como “poema eterno e de hora/de felicidade e dor”, cf. Id., Uns poemas de Agostinho, p. 74.

17 Sobre a “criação” como “eterna” e “contínua”, cf., De como os portugueses retomaram a Ilha dos Amores, in Dispersos, introdução de Fernando Cristóvão, apresentação e organização de Paulo A. E. Borges, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989, 2 ª edição, p. 738.

18 “O mundo é todo uma causa/com suas conseqüências/ /uma causa não causada/que a si própria vai cau-sando/e de causa a causa rola/viva causa se engendrando” – Id, Uns poemas de Agostinho, p.113.

19 “Ter Deus criado este mundo/um dia é nossa linguagem/Deus nele se revelou/e ele dele é a imagem//Ele o cria ele o recria/quanta vez é necessária/oculta a face aparente/sempre igual e sempre vária” – Ibid., p.131; “Tudo é uno e divino/só nossa mente ao mundo/ainda/dele faz um e outro/ (...)/e até fez Deus criar o mundo/quando aquele mundo e Deus/o mesmo são/eternamente o sendo e não o sendo” – , Quadras Inéditas, p.126.

20 “E o Deus que tanto procuro / em que atingido me afundo / é aquele ser-não-ser / do que acontece no mun-do” – , Uns poemas de Agostinho, p.12. Cf. também: “Mas de verdade o que eu amo/é o do nada do mundo/que até duvido que exista/tanto se acolhe ao profundo” – Ibid., p.129. Cf. ainda as definições de Deus como o “que talvez não seja embora sendo”, o “que é não ser” e o “que é e que não é” - Ibid., pp.42 e 130-131.

21 Como já referimos, Agostinho adere plenamente, por várias vias, àquela pulsão mística do pensar que é entre nós bem exemplificada por Antero de Quental: “Não-ser, que és o Ser único absoluto” – “Elogio da Morte”, VI, in Sonetos, organização, introdução e notas de Nuno Júdice, Lisboa, Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1994, p.146. Cf. também a “união da alma com Deus” interpretada como “transição do ser para o não-ser, que equivale, quanto cabe, na realidade, à plenitude e perfeição do ser” – , Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, in Filosofia, organização, introdução e notas de Joel Serrão, Lisboa, Editorial Comunicação/Uni-versidade dos Açores, 1989, p.165.

22 Nesta linha de interpretação, bem como noutros aspectos, o pensamento de Agostinho, embora por outras vias, converge com uma das teses fundamentais do seu interlocutor Eudoro de Sousa, que evoca na experiência ritual arcaica a simbólica indiferenciação, ou já simultaneidade, do natural, do humano e do divino, aquilo que a nascente filosofia logificará na abstracta distinção, separação e sucessividade. O mundo mítico seria o do “ser uma coisa só”, em que o natural, o humano e o divino ainda não surgem como entidades distintas e só como tal relacionáveis, pois nesse mundo, mundo de símbolos e não de coisas, mundo ainda sem dentro e fora, uno e múltiplo articulam-se perfeitamente na translúcida fluidez de potências que, mais do que existirem ou mesmo serem, entre-são. E mesmo que, como reconhece Eudoro, “o ‘não ser Homem’, o ‘não ser Deus’, e o ‘não ser Na-tureza’” já aponte, “de certo modo, para o ser que esses não-seres são”, esse ser é o de homens, deuses e naturezas, respectivamente não tão “humanos” como o Homem, não tão “divinos” como Deus, não tão “naturais” como a Natureza, enquanto anteriores e alheios à lógica abstracção dos conceitos gerais e universais de Homem, Deus e Natureza, de humana e apenas humana radicação. Isto porque esse crepúsculo que é vespertino para o mundo do drama ritual e ainda do mito, o mundo do “uma coisa só”, é auroral para o Homem que, desintegrado da unidade e daquilo a que Eudoro chama, em Mitologia, “o triângulo da complementaridade e do simbólico”, se inventa e desoculta como género autónomo e autárquico na mesma medida em que, em si ocultando os homens, aos deuses oculta em Deus e às naturezas na Natureza, que assim efectivamente reduz a “projectos” seus. Este pro-cesso, que o pensador apreende em simultâneo como o da filosofia e o da história universal, que bem descrevem o que realmente praticam, é o da “desdivinização e dessacralização do mundo” – entenda-se, do mundo em que logicamente não ex-istem Deus, Homem e Natureza, porque ritual e mito-simbolicamente entre-são deuses-ho-mens-naturezas – , que resulta na “humanização do Homem”, na “naturalização da Natureza” e na “divinização de Deus” – Cf. Eudoro de Sousa, “Deus, Homem, Natureza. Para uma teoria do paganismo...”, Correio Braziliense, Brasília, 2 de Fevereiro de 1969; “Prolegómenos a uma filosofia da religião pré-helénica”, in Anais do Congresso Internacional de Filosofia (São Paulo, 1954), São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1956, pp.297-307, p. 303;

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“...Sempre o mesmo acerca do mesmo”, Editora Universidade de Brasília, 1978, pp.27 e 29; reeditado Horizonte e Complementaridade. Sempre o Mesmo acerca do Mesmo, prefácio de Fernando Bastos, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002. Cf. Paulo A. E. Borges, “Eudoro de Sousa ou o helenista saudoso da ante e trans-heleni-dade”, introdução a Eudoro de Sousa, Origem da Poesia e da Mitologia e outros ensaios dispersos, organização de Joaquim Domingues, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, pp. 9-11.

23 “Ora é Deus ora é o mundo/segundo damos a volta/ou quando qualquer de nós/da prisão própria se solta//ora há ora não há/segundo somos ou não/mão alguma se não somos/se somos eterna mão” – Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.64. Cremos que a “mão” simboliza aqui um Deus pensado como criador e providen-te, um protector transcendente do sujeito cuja ex-istência o lança naturalmente na cisão e na angústia. Cf. a bem conhecida imagem de Antero de Quental, no soneto “Na Mão de Deus” – Sonetos, p.159.

24 “Aqui neste profundo apartamento/Em que, não por lugar, mas mente estou,/No claustro de ser eu [...]” – Fernando Pessoa, Obras, I, introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa ( só no vol. I ), Porto, Lello & Irmão – Editores, 1986, p.231.

25 Cf., ainda em Pessoa, a aspiração a algo de cuja possibilidade angustiadamente se duvida, como por exemplo nestes versos: “Não poderei, Senhor, alguma vez/Desalgemar de mim as minhas mãos?” – Ibid, p.216.

26 Cf. a conhecida ideia do “não-agir” (wuwei) do sábio como aquele que reduz progressivamente a intencio-nalidade e finalidade do agir, ou seja, o seu direccionamento parcelarizante e limitativo, enquanto actualizador de uma possibilidade em detrimento de todas as outras, até chegar ao paradoxo de uma não-acção (particular) coincidente com uma acção total, sem limites: “[...] he who devotes himself to the Tao (seeks) from day to day to diminish (his doing).//2. He diminishes it and again diminishes it, till he arrives at doing nothing (on purpose). Having arrived at this point of non-action, there is nothing which he does not do.” – Lao Tzu, Tao Te King, 48; cf. também 43 – The Sacred Books of the East, edição de Max Müller, vol. XXXIX, The Texts of Taoism. The Tao Te Ching of Lao Tzu. The Writings of Chuang Tzu, I, tradução de James Legge, New York, Dover Publications, 1962, pp.90 e 87. Cf. Anne Cheng, Histoire de la Pensée Chinoise, Seuil, 1997, pp.188-211. Agostinho da Silva deixou uma tradução/versão, ainda inédita, do Tao Te King ou, melhor, Daodejing.

27 Sendo comum ao budismo em geral, é bem acentuado no budismo chinês o sentido de que a mente desperta ou estado de Buda, omnipresente e omnisciente, se desvela na extinção dos conceitos de sujeito, objecto e acção ou relação entre eles, meras construções mentais sem adequação à realidade última das coisas – cf. El Sutra de Hui Neng. Comentarios de Hui Neng al Sutra del Diamante, versão de Thomas Cleary, Madrid, EDAF, 1999, p. 202, entre outras.

28 “Experimento agir por não agir/com meus mestres chineses fascinado/tanto mais que me vejo consolado/de me ter obrigado a existir//(...) que por aí me ligo e firme prendo/ao mais alto poder e enfim me alio/ao que talvez não seja embora sendo//ao que o mundo contempla não o vendo/ao que a mim criou porque eu o crio/ao que à vida conduz não a vivendo”- Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.42.

29 “Que a mim me crie sem que eu seja/mais do que seus pensamentos/que em mim batendo o recriem/num eterno de momentos//de momentos que O não são/nem O foram nem serão” – Ibid., p.34.

30 Como naquela em que, falando do “alguém” divino, diz: “Como à vida me deu sem eu querer” – Ibid., p.132.

31 “Sê espectador de ti próprio/ou dele por ti velado/e também por ti expresso” – , p.74.

32 “Me fiz gente se é que sou/em Barca d’Alva do Douro” – Ibid., p.65.

33 Cf. Santo Agostinho, De libero arbitrio, II, III, 7; De civitate Dei, XI, 26; De Trinitate, X, 10, 14; Descartes, Discours de la Méthode, VI, 32; Principia philosophiae, VII, 17; Meditationes de prima philosophia, II, 3.

34 Num texto ainda inédito, Agostinho interpreta preferencialmente a Substância de Espinosa como “o Nada que Tudo seja”, dando como razão: “já que sou meio tibetano, pelo menos meio” – Caderno Três sem Revisão, [pesquisa e recolha de espólio por Amon Pinho, Helena Briosa e Romana Valente Pinho; transcrição de Rui Lopo e Sandra Pereira; revisão final de Renato Epifânio, Ricardo Ventura e Rui Lopo].

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35 Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.102. Cf. a afirmação de Buddhaghosa: “Só o sofrimento existe, mas não se encontra nenhum sofredor; / Os actos são, mas não se encontra actor” – Visuddhimagga, Londres, Pali Text Society, p.513. Cf. também: “Não há motor imóvel por detrás do movimento. (...) Não há pensador por detrás do pensamento. O pensamento é ele próprio o pensador. Não podemos deixar aqui de notar como esta ideia budista se opõe diametralmente ao ‘cogito ergo sum’ cartesiano: ‘Eu penso, logo existo’” – Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens, estudo seguido de uma escolha de textos, prefácio de P. Demiéville, Paris, Éditions du Seuil, 1978, pp.46-47. A ideia de “eu”, tal como a sua correlata, de “não eu”, é assim uma “noção falsa”, à qual nada corresponde de real, apenas uma das cinqüenta e duas formações mentais possíveis e próprias do quarto agregado, ou skandha, dos cinco que originam a experiência meramente psicofi-siológica e ultimamente ilusória de haver um “ser” – Ibid., cf., p.46. Cf. Paulo A. E. Borges, “Budismo e identidade pessoal”, Identidade Pessoal: Caminhos e Perspectivas, organização de Francisco Teixeira, Quarteto, 2004.

36 “Chamando Deus ao Pensamento, nome que dou ao inominável (...)” – Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, Textos e Ensaios Filosóficos II, p.145.

37 Cf. infra, nota 42.

38 Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p.161.

39 Ibid., p.154.

40 Cf. uma das teses que sustentamos em Paulo A. E. Borges, Metafísica e Teologia da Origem em Teixeira de Pascoaes, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (no prelo).

41 Cf. Fernando Pessoa, “O Desconhecido”, in Textos Filosóficos, estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho, I, Lisboa, Ática, 1993, pp.44-45.

42 Hans Urs von Balthasar, um dos teólogos cristãos que mais acerbamente criticou o entusiasmo pelas vias orientais, declara que “é exclusivamente referindo-se ao pensador cristão Eckhart que o diálogo (cristão) com as vias de libertação asiáticas será possível” – Herrlichkeit, Eine theologische Aesthetik, III/1: “Im Raum der Metaphy-sik”, Einsiedeln, 1965, p.410.

43 “Lorsque j’étais dans ma cause première, je n’avais pas de Dieu et j’étais cause de moi-même; alors je ne voulais rien, je ne désirais rien, car j’étais un être libre, je me connaissais moi-même, jouissant de la vérité. Je me voulais moi-même et ne voulais rien d’autre; ce que je voulais, je l’étais et ce que j’étais, je le voulais et là j’étais dépris de Dieu et de toutes choses, mais lorsque, par ma libre volonté, je sortis et reçus mon être créé, j’eus un Dieu, car avant que fussent les créatures, Dieu n’était pas ‘Dieu’, mais il était ce qu’il était. Mais lorsque furent les créatures et qu’elles reçurent leur être créé, Dieu n’était pas ‘Dieu’ en lui-même, il était ‘Dieu’ dans les créatures” – Cf. Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum, Sermons, II, apresentação e tradução de Jeanne Ancelet-Hustache, Paris, Éditions du Seuil, 1978, p.146. Esta visão reitera-se e aprofunda-se no final do sermão – cf. ibid., pp.148-149.

44 Neste sentido, a teologia catafática, ou positiva, pensando Deus antropocentricamente, dará sempre razão a Feuerbach, que todavia poderá incorrer noutro preconceito, o de presumir que uma essência e consciência infinita pode ainda ter uma determinação, neste caso humana, como antes divina. Os preconceitos teológico e antropológico acompanham-se...

45 Cf. Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum, in Sermons, II, p.146.

46 A questão do absoluto, Uno, Bem ou Deus, não o ser em si nem para si, ou não se pensar como tal, remonta pelo menos, na tradição ocidental, à primeira hipótese de Platão, no Parménides, pela qual o Uno não seria “uno” nem “ser”, transcendendo todo o conhecimento (141 e – 142 a), e mais explicitamente a Plotino, na sua crítica à concepção aristotélica de Deus. Demarcando-se do Deus –“Inteligência suprema” que se pensa a si mesma eternamente, do Deus – “Pensamento” que “é pensamento de pensamento” (cf. Aristóteles, Metafísica, Λ, 7, 1.072 b; 9, 1.074 b; 9, 1.075 a), Plotino sustenta que o Bem/Uno não se pensa, vendo-se apenas como algo que é nessa primeira instância de cisão e multiplicidade que é a Inteligência, a sua primeira hipóstase processiva – Cf. Enéa-das, V, 1, 7 e 9; VI, 7, 37-38. Cf. Paulo Borges, “O desejo e a experiência do Uno em Plotino”, Philosophica, nº 26

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(Lisboa, Novembro de 2005), pp.175-214. Também no Pseudo-Dionísio, o Areopagita, a “Causa” transcendente e absoluta de todas as coisas excede todas as categorias da sua inteligibilidade, incluindo as de “uno”, “deidade” ou “bem” – Teologia Mística, V, 1.048 a.

47 Rudolf Otto assinalou aqui a profunda convergência de Eckhart com Shankara, mestre do Vedanta não du-alista. A Divindade impessoal, tal como o Brahman neutro, transcendem Deus ou Ishvara, o “Senhor pessoal” que emerge do absoluto com a emergência da alma ou atman – cf. Mystique d’Orient et d’Occident. Distinction et Unité, tradução e prefácio de Jean Gouillard, Paris, Payot, 1951, pp.26-28. Cf. a diferença, em Shankara, entre “Deus manifestado” e “Absoluto imanifestado” (Saguna-Brahman e Nirguna Brahman) – Brahma-Sutras, con los comentarios advaita de Sankara, 1, 1, 11; 3, 3, 31, edição de Consuelo Martín, Madrid, Editorial Trotta, 2000, pp.76 e 537. Cf. também B. Barzel, Mystique de l’Ineffable dans l’Hindouisme et le Christianisme. Çankara et Eckhart, prefácio de Michel Hukin, Paris, Les Éditions du Cerf, 1982, pp. 101-108. Explorando sobretudo afinidades, mas também diferenças, com o budismo zen, cf. Alois M. Haas, “Correspondances entre la pensée eckhartienne et les religions orientales” (tradução do alemão de Emilie Zum Brunn), in AA.VV., Voici Maître Eckhart, textos e estudos reunidos por Emilie Zum Brunn, Paris, Jérôme Millon, 1998, pp.373-383. Poderíamos fazer remontar a questão, na tradição ocidental, à declaração de Heráclito: “O Um, o Sábio, não quer e quer ser apenas chamado pelo nome de Zeus” – fragm. 32 (Diels-Kranz). E também, na tradição oriental, à distinção de Lao Tzu entre o Tao nomeado e inomeado, existente e não-existente ou manifestado e imanifestado – cf. Tao Te King, 1, 2 e 40, 2, pp.47 e 84.

48 Cf. Mestre Eckhart, Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum, in Sermons, II, p.149. Cf. também p.148.

A continuidade, ainda mais radical, destas posições encontra-se condenada por Ruysbroeck no Livro das Begui-nas: “Chacun de ces hommes maudits ose dire: Alors que je résidais en mon être d’origine, en mon essence éternelle, il n’y avait pas de Dieu pour moi, mais ce que j’étais je le voulais et ce que je voulais être je l’étais: c’est par libre volonté que je suis sorti et suis devenu ce que je suis. Si j’avais voulu, je ne serais rien devenu, et je ne serais pas une créature. Car Dieu ne connaît, ne veut ni ne peut rien sans moi; avec Dieu je me suis créé moi-même et ai créé toutes choses, et c’est ma main qui supporte le ciel et la terre et toutes les créatures; aussi toute gloire qu’on rend à Dieu, c’est à moi qu’on la rend car dans mon être je suis Dieu par nature” – cf. Oeuvres, tradução dos Beneditinos de S. Paul de Wisques, 1938, t. VI, p.53, in Stanislas Breton, Philosophie et Mystique. Existence et surexistence, Grenoble, Jérôme Millon, 1996, pp.54-55.

Veja-se também o aforismo de Angelus Silesius: “Sans moi Dieu ne peut vivre, fût-ce une seconde, je le sais,//Si je retourne au néant, de dénuement Il doit rendre l’esprit” – Le Pèlerin Chérubinique, tradução de Camille Jordens, Paris, Éditions du Cerf/Éditions Albin Michel, 1994. Agostinho da Silva deixou uma tradução inédita desta obra.

49 – Cf. Maître Eckhart, “De la sortie de l’esprit et de son retour chez lui”, Oeuvres de Maître Eckhart. Sermons-Traités, traduzido do alemão por Paul Petit, Paris, Gallimard, 1987, p.118. Para a distinção entre a ociosidade da Divindade e o Deus criador, cf. “Du Royaume de Dieu”, Ibid., p.301.

50 – É nos dois sentidos desta geração, ad extra e ad intra, que entendemos as palavras admiravelmente concisas de Eckhart: “Un maître dit: l’âme s’enfante elle-même en elle-même et s’enfante à partir d’elle-même et s’enfante de retour en soi. [...] L’âme enfante à partir d’elle-même Dieu à partir de Dieu en Dieu” – “Adolescens, tibi dico: surge”, in Sermons, II, p.85. Sobre estas questões em Eckhart, cf. Paulo A. E. Borges, “Ser ateu graças a Deus ou de como ser pobre é não haver menos que o Infinito. A-teísmo, a-teologia e an-arquia mística no sermão “Beati pauperes spiritu...”, de Mestre Eckhart”, in Philosophica, 15 (Lisboa, 2000), pp.61-77.

51 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.81.

52 Cf. Ibid., p.82.

53 Cf. Platão, República, 380 d – 383 a.

54 Cf. Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, introdução, tradução e notas pelo Prof. Gustavo de Fraga, Coimbra, Almedina, 1976, IV, 2, 17, V, 15, VI, 11, pp. 166, 178-179, 194, 210.

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55 Cf. Heinrich Zimmer, Maya ou le Rêve Cosmique dans la mythologie hindoue, prefácio de Madeleine Biarde-au, traduzido do alemão por Michele Hulin, Fayard, 1987; The King and the Corpse. Tales of the Soul’s Conquest of Evil (em particular “Four Episodes from the Romance of the Goddess”), Princeton University Press, 1993, 10ª edição. A leitura de Maya no sentido de uma ilusão ou prestidigitação mágica, dominante em Zimmer, foi contudo fundamente problematizada pelo rigor filológico de Jan Gonda, que propõe, como denomina-dor comum de todos os empregos do termo nos textos vedânticos ou não, simplesmente o seguinte sentido: “Incomprehensible wisdom and power enabling its possessor, or being able itself, to create, devise, contrive, effect, or do something” “ – “Maya”, Change and Continuity in Indian Religion, Nova Deli, Munshiram Mano-harlat Publishers Pvt. Ltd., 1985, pp.164-197, p.166. Cf. também, para uma análise e discussão mais extensa, com abundantíssima informação bibliográfica, Id., “The ‘original’ sense and the etymology of skt. maya”, Four Studies in the Language of the Veda, ‘s-Gravenhage, 1959, pp.119-194 ; “Maya”, in Tijdschrift voor Philosophie, 14 (1952, Lovaina), pp.3-62. Cf. também as perspectivas de H. Grassmann, Worterbuch zum Rig-Veda, 1872, 1.034 f. e J. Pokorny, Indogerm. Etymol. Worterbuch, Berna, 1954, p.693. Vejam-se ainda, entre muitos outros estudos: Louis Renou, “Les origines de la notion de Mâyâ dans la spéculation indienne”, L’Inde Fondamentale, estudos de indianismo reunidos e apresentados por Charles Malamoud, Paris, Hermann, 1978, pp.133-140; Olivier Lacombe, Indianité. Études historiques et comparatives sur la pensée indienne, “L’illusion cosmique et les thèmes apparentés dans la philosophie indienne”, Paris, Les Belles Lettres, 1979, pp.85-100; Shri Aurobindo, Brahman et Maya dans les Upanishads, traduzido por Jean Herbert, Paris, Dervy-Livres, 1980.

De realçar que no budismo o reconhecimento da universalidade da ilusão implica o reconhecê-la, ela mesma, como ilusória, na autolibertação universal do espírito:

“Kyé ho ! Amis ! Samsâra et nirvâna ne sont rien d’autre que cela !

Tous les phénomènes sont le déploiement de l’espace et de la nature de l’esprit.

Libre la base ! Libre la voie ! Libre depuis toujours le fruit !

Tout s’autolibère et dans un jeu illusoire

Émergent des perceptions sans desseins ni postulats particuliers.

Tout est ainsi, laissez tomber votre attachement tenace à un but.

Ultimement il n’y a ni illusion ni illusionniste [...]” – Longchenpa, La liberté naturelle de l’esprit, apresentado e traduzido do tibetano por Philippe Cornu, Paris, Éditions du Seuil, 1994, p.277.

56 Cf. Fernando Pessoa, Textos Filosóficos, I, pp.42-46. Cf. Paulo Borges, “Nada, Abismo, Não-Ser, Noite, Vácuo e Ilusão – um Deus de si insciente e enganador ? (Contributo para a relação de Antero com o pensamento orien-tal)”, Anto, nº5 (Amarante, Primavera de 1999), pp.156-168.

57 São imensas as passagens de Pascoaes que poderíamos aqui citar. Salientem-se apenas: “A Ilusão é a Força das forças, o Sol dos sóis de que falam os hinos védicos” – “O Paroxismo”, A Águia, 2ª série, nº30 (Junho de 1914), pp.166-168; in A Saudade e o Saudosismo (dispersos e opúsculos), compilação, introdução, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes, Lisboa, Assírio&Alvim, 1988, p.177; “Deus é o supremo Disfarçado... Entre ele e a nossa alma turbilhona um mar infinito de aparências, de mentiras e de ilusões” – “Portugal e a Guerra e a orientação das novas gerações”, A Águia, 2ª série, nº 36 (Porto, Dezembro de 1914), pp.161-168, p.164; “a Criação é feita de mentiras”; “A verdade é mentirosa...por fatalidade da sua força criadora, isto é, para não se repetir” – Santo Agostinho, Porto, Livraria Civilização, 1945, p.294.

Sobre a questão, cf. Paulo A E. Borges, “Um Deus Enganador, imperfeito criador do mundo possível. Anticar-tesianismo, antileibnizianismo e ilusionismo em Teixeira de Pascoaes”, in AA.VV., Descartes, Leibniz e a Moder-nidade (Actas do Colóquio), coordenação de Leonel Ribeiro dos Santos, Pedro M. S. Alves e Adelino Cardoso, Lisboa, Edições Colibri/Centro e Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1997, pp.465-485; “Nada, I-lusão e metamorfose: da imperfeição do Deus criador à criação/revelação de um novo/eterno Deus. Teogonia, teurgia e ateoteísmo em Teixeira de Pascoaes”, Nova Renascença, vol.XVII, nos 64-66 (Porto, Inverno/Verão de 1997), pp.439-469.

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58 Cf. Sigmund Freud, Escritores Criativos e Devaneio, in Gradiva, de Jensen. Escritores Criativos e Devaneio, Pequena Colecção das Obras de Freud, 30, tradução de Maria Aparecida Moraes Rego, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976, pp.101-110. Recordemos a exortação de Leonardo Coimbra: “Deixai mentir as crianças, as desin-teressadas mentiras da sua imaginação, oh pedagogos de tantíssimos óculos, pós e sabedorias !” – A Alegria, a Dor e a Graça, in Obras, I, selecção, coordenação e revisão pelo Professor Sant’Anna Dionísio, Porto, Lello&Irmão – Editores, 1983, p. 408.

59 Como propõe Richard Kearney, em Poétique du Possible. Phénoménologie Herméneutique de la Figuration, Beauchesne, 1984 (trad. portuguesa de João Carlos Silva: Lisboa, Instituto Piaget, 1997).

60 É José Enes quem entre nós denuncia o carácter fundamentalmente funcional, funcionalizante e opera-tório da razão – cf. Linguagem e Ser, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983, pp. 30-34.

61 Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.107.

62 Cf. Stanislas Breton, Rien ou Quelque Chose. Roman de métaphysique, Flammarion, 1987, pp. 7-32, que nos adverte que na “evanescência semântica” de palavras como “nada”, “ninguém” e “pode ser” é possível acedermos à aprendizagem, em vida, da nossa própria morte (pp. 7 e 31-32).

63 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.120.

64 Cf. Bettina Bäumer, Schöpfung als Spiel: Der Begriff lila im Hinduismus, seine philosophische und theolo-gische Bedeutung, Munique, Ludwig-Maximilians-Universitat, 1969 (dissertação de Doutoramento); AA.VV., The Gods at Play. Lila in South Asia, editado por William S. Sax, Oxford University Press, 1995.

65 É sobretudo em Jacob Böehme que essa “Sabedoria” que biblicamente folga na presença de Deus, se recreia na terra e compraz “nos filhos do homem” (Provérbios, 8, 30-31), é vista como uma “imaginação” ou “fantasia” lúdica que mágico-oniricamente gera em si “o modelo pré-existente da criação” – cf., por exemplo, De Testam. Christi S. Baptism., I, 1, 6; Mysterium Magnum, X, 39; cf. Alexandre Koyré, La Philosophie de Jacob Boehme, Paris, J. Vrin, 1971, pp. 214-215, 263, 346-351 e 376. A ideia também reaparece em Schelling, articulando Sabedoria/Magia, como na introdução às Conferências de Erlangen – Sämtliche Werke, edição de K. F. A. Schelling, Stuttgart/Augsburg, Cotta, 1856-1861, IX, 222-223, 223b, 224a e 225a.

66 Entre as múltiplas filosofias contemporâneas do jogo, na esteira de Heráclito e Nietzsche, como as de Eugen Fink e Kostas Axelos, destacamos a de Stanislas Breton, com esse jogo da superabundância que vê como a “pura passagem” do inefável “princípio-nada”/”nada-imaginário” às suas diferentes meta-morfoses, passagem que, não por ser “irracional”, mas por dar-se “aquém de toda a ‘explicação’” (inclusive a de irracionalidade), diz recusar “toda a razão” - cf. Être, Monde, Imaginaire, Paris, Les Éditions du Seuil, 1976, pp. 170-172.

67 Cf. Paulo A. E. Borges, “Nada, I-lusão e metamorfose: da imperfeição do Deus criador à criação/revelação de um novo/eterno Deus. Teogonia, teurgia e ateoteísmo em Teixeira de Pascoaes”, Nova Renascença, vol.XVII, nos 64-66 (Porto, Inverno/Verão de 1997), pp.439-469. “Um Deus Enganador, imperfeito criador do mundo possível. Anticartesianismo, antileibnizianismo e ilusionismo em Teixeira de Pascoaes”, Descartes, Leibniz e a Modernidade (Actas do Colóquio), pp.465-485.

68 Cf. Antero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, Filosofia, organiza-ção, introdução e notas de Joel Serrão, Lisboa, Universidade dos Açores/Editorial Comunicação, 1989, pp.125, 160 e 165-166.

69 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.45. Cf. a referência ao “nada ser que venero”, em Ibid., p. 75.

70 Recordando essa transfiguração do sujeito experienciada por São Paulo – “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gálatas, 2, 20) – , é o que Agostinho parece ainda expressar noutra quadra: “Fugazes talvez no tempo/nos seja eterna a essência/embora não existindo/nos existe a existência” – Quadras Inéditas, p. 50.

71 Cf. Heinrich Zimmer, Maya ou le Rêve Cosmique dans la mythologie hindoue, pp. 72-73.

72 Cf. Domingos Tarrozo, Philosophia da Existencia. Esboço synthetico d’uma philosophia nova, s. l., Bibliotheca do Norte – Editora, 1881, pp. 59 e 63.

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73 Em Teixeira de Pascoaes a divina espontaneidade do acto criador prima sempre sobre a consciência de si e dos seus efeitos, que só sobrevém depois, predominantemente, embora nem sempre, como uma consciência infeliz, pela qual o Deus criador, reconhecendo a cisão que assim instaura em si e na criação, dela se arrepende e se converte no seu oposto, o Deus redentor. Nesta distinção e oposição, embora mais dialéctica, e integrada numa unidade superior, entre Jeová e Cristo, o Pai e o Filho, Pascoaes retoma de modo muito original um paradigma fundamental do pensamento gnóstico.

74 Se o sujeito, enquanto se encaminha para essa experiência, ainda se esforça por ela, constituindo-o uma von-tade de auto-anulação do seu ser finito e separado – “(...) é o querer não ser/o ser eu o ser que sou” (Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.41) – , a paz profunda só advém da entrega total e confiante ao que se é no sonho divino, nessa vida que por ser sonhada não escapa ao trans-antinómico cuidado e vigília do divino sonhador: “Como durmo sossegado/sabendo que por mim vela/uma coisa que sonhando/vivo me tem dentro dela” – Ibid., p.19.

75 “Quanto a ser o melhor é o não ser” – Ibid., p.107. Conforme já acima indicámos, são notáveis, e estão ainda por estudar, entre outras, as afinidades da visão/experiência de Agostinho da Silva com a chamada mística rena-na. Sendo Mestre Eckhart o seu expoente mais conhecido, e explicitamente referido pelo autor português (“foi o Espírito quem me deu Eckhart e quem me deu a geometria analítica” – “Ecúmena”, in Obras de Agostinho da Sil-va. Textos e Ensaios Filosóficos II, p.193), sabe-se hoje que a doutrina eckhartiana estava prefigurada no movimen-to místico renano-flamengo das beguinas, donde emergem nomes como Hadewijch d’Anvers, Hadewijch II e Marguerite Porete, ou ainda em Beatriz de Nazareth. Vejam-se num poema anónimo emergente do mesmo clima espiritual, na segunda metade do século XIII, admiráveis convergências com a poesia mística de Agostinho: “Isso é – mas ninguém sabe o que é./(...) É de tal modo que/Não é nem isto, nem aquilo./(...) É um lugar calmo/Que se derrama sem quididade./(...)/O alguma coisa que tu és/Deve tornar-se nada;/Toda a coisa, todo o nada/Deve ser ultrapassado,/(...) Vai sem caminho/Sobre a estreita subida:/Assim tu atinges os rastos do deserto./Ó minha alma,/Sai – entra em Deus,/Dissipa tudo o que é meu/No nada de Deus,/Abisma-te nas águas sem fundo !/(...) Se eu me perco/Eu TE encontro,/Ó Bem supra-essencial !” – Dreifaltigkeitslied (Cântico da Trindade), ed. K. Bartsch, 1858, in Emilie Zum Brunn, “Introdução” a Marguerite Porete, Le Miroir des simples âmes anéanties, traduzido do francês antigo por Claude Louis-Combet, apresentado e anotado por Emilie Zum Brunn, Grenoble, Jérôme Millon, 2001, nota 8, pp. 21-22.

76 Se recordarmos que as formas do verbo ser derivam, no castelhano e no português, da fusão dos latinos esse, essere (ser, existir, haver; estar) e sedere (estar sentado; ter assento; estacionar, morar, residir; ficar tranqüilo; fixar-se; pousar; afundar-se etc...), com o sentido da experiência do ser do ente como o que é assente num fundo ou numa sede que é a sua re-sidência estável – Cf. José Joaquim Nunes, Cantigas de Amigo dos Trovadores Galego-Portugueses, edição crítica de José Joaquim Nunes, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973, vol.III (comentário, variantes e glossário), pp. 681-683; Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário das Palavras, Termos e Frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram [...], edição crítica de Mário Fiúza, vol.II, Porto/Lisboa, Civilização, 1966, pp.553-554; José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, vol.III, Lisboa, Editorial Confluência/Livros Horizonte, 1967, p.2.095; J. Corominos e J. A. Pascual, Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, IV, Madrid, Gredos, 1981, p. 213.

77 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p. 79.

78 Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Verbo Escuro/A Beira (Num Relâmpago), Obras Completas (edição do autor), vol. VII, Lisboa, Aillaud&Bertrand, s.d., pp. 44-45.

79 Cf. Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p. 125.

80 Cf. Ibid., p.25.

81 “Ser poema não poeta/é que vejo como um alvo/se o não for para que vivo/mas se for me vivo e salvo” – Ibid., p.79. Cf. ainda, falando da reintegração em Deus: “nunca mais fomos poetas/que era coisa de sofrer/agora somos poemas/como Ele é de sempre ser” – Ibid., p. 142.

82 “Porque tudo é sonho puro/ /só não é sonho ele ser/tanto que é e que não é” – Ibid., p. 131.

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83 Ibid., p.122.

84 “Matéria sendo bailado/que faz o Espírito Santo/com o espírito que é nosso/e que santo não é tanto//da dança brota primeiro/o que se chama energia/naquele saber de agora/em que física se fia” – Ibid., p.64.

85 Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.141.

86 Um dos tópicos maiores e mais subtis do pensamento sapiencial e ético de Agostinho é a extensão do não possuir ao não se possuir: “A única revolução definitiva é a de despojar-se cada um das propriedades que o limi-tam e acabarão por o destruir, propriedade de coisas, propriedade de gente, propriedade de si próprio” – Pensa-mento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p.148; “[...] mas o defeito que tiveres não vem da natureza, pois que do céu desceste; vem do trato do mundo, que te criou a ideia de teres corpo autónomo e de seres dono de tua alma” – , p.149. Veja-se a proximidade com o pensamento de Erich Fromm e com algumas das suas referências fundamentais, como o budismo, Mestre Eckhart e o próprio Marx, segundo o entendimento radical da noção marxista de “expropriação” enquanto desconstrução da “estrutura de propriedade interna do indivíduo”, ou da “estrutura proprietária das pessoas”, num autor como Dietmar Mieth (Die Einheit von Vita Activa und Vita Contemplativa, Regensburg, Friedrich Pustet, 1969) – Erich Fromm, Ter ou Ser?, tradução de Isabel Fraga, Lisboa, Presença, 2002, 2ª edição, p.68. Quanto ao budismo, veja-se como a experiência da “existência” (bhava) é imedia-tamente precedida da “apropriação” (upadana), na enumeração dos doze factores da produção interdependente que estruturam o samsara, o ciclo da existência condicionada. Como diz Nagarjuna: “Havendo apropriação, o curso da existência põe-se em movimento para o apropriador. Pois, se ele fosse livre de apropriação, tornar-se-ia livre com efeito. A existência não teria lugar” – Stances du Milieu para Excellence (Madhyamaka-Karikas), 26, 7, traduzido do original sânscrito, apresentado e anotado por Guy Bougault, Gallimard, 2002, pp.343-344. Con-trariamente ao entendimento comum desta afirmação, condicionado pela linguagem e pelos hábitos mentais, não há “apropriador” fora da “apropriação”, que a preceda. Como diz Guy Bougault, “não há ser sem ter”, des-crevendo-se aqui “o advento do eu-proprietário, o advento da estrutura eu/meu” (ibid., p.344), numa visão que radicaliza e desmonta a dicotomia de Fromm entre “ser” e “ter”. O primeiro da cadeia dos doze factores da cons-tituição dos seres é naturalmente a “ignorância” (avidya), enquanto não reconhecimento da verdadeira natureza das coisas. Também numa perspectiva não budista, como a dos Yoga-Sutras, de Patanjali, as duas primeiras das cinco fundamentais causas de “aflição” (klesha) são a “ignorância” (avidya) e “o sentimento de existência pessoal” (asmita) (II, 3), “literalmente o facto de dizer “eu sou” e de se identificar com isso”. Daí que, “na perspectiva do yoga clássico, o individualismo, com o seu cortejo de reivindicações”, seja “considerado como uma doença” – Cf. Guy Bougault, L’Inde pense-t-elle ?, Paris, PUF, 1994, pp.58 e 60. Cf. B. K. S. Iyengar, Light on the Yoga Sutras of Patanjali, prefácio de Yehudi Menuhin, London, Thorsons 1996, p.105.

87 Cf. Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p. 133.

88 Cf. Antero de Quental, Sonetos, p.159.

89 Cf. a quadra que agora transcrevemos na sua totalidade: “Por muito que te possuas/Não gabes os feitos teus/se a Deus lhe faltasse o nada/seria menos que Deus” – Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.97.

90 Ibid., p.132.

91 Cf. também, falando daquilo a que aspira: “Um nada que a nada impede/e que inteiro a tudo almeja” – Agos-tinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho, p.24. Cf. ainda: “Que serei eu um nada dentro em nada/e um tudo simultâneo a ser do tudo” – Ibid., p.132.

92 Cf. “Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar” – Bernardo Soares, Livro do Desassossego, edição de Richard Zenith, Lisboa, Assírio&Alvim, 1998, p.185. Cf. Paulo A. E. Bor-ges, ‘“Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada.” Vacuidade e autocriação do sujeito em Fernando Pessoa”, in AA.VV., Poiética do Mundo, Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Edições Colibri / Departamento de Filosofia e Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2001, pp.353-364; republicado in Pensamento Atlânti-co, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, pp.319-332.

93 Veja-se a global coerência do pensamento agostiniano, que assim articula “não ser nada”, inspiração poética

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e sonho divino: “Acordo e sai um poema/alguém mo sonhou de noite/só preciso não ser nada/para que a musa se afoite” - Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.9.

94 Id., Uns Poemas de Agostinho, p.26.

95 Cf. Quadras Inéditas, p.80.

96 Ibid., p.88. Cf. também pp.36 e 99.

97 Sem prejuízo das diferenças, sobretudo de forma e expressão, uma ponte poderia estabelecer-se entre a ex-periência Zen do wu-nien (“não-pensamento” ou “não-consciência”), como a própria natureza da Iluminação ou do Buda – tan-chien-wu, “ver dentro do nada – é essa a verdadeira visão e a visão eterna” (cf. D. T. Suzuki, A Doutrina Zen da Não-Mente. O significado do Sutra de Hui-Neng (Wei-lang), organização de Christmas Hum-phreys, tradução de Elza Bebianno, São Paulo, Editora Pensamento, 1993, pp.26-27, entre outras) - , e a doutrina eckhartiana da remoção do intelecto para o “Fundo da alma”, onde só “cego” se vê o “Nada” divino (cf. Mestre Eckhart, Sermons, III, introdução, apresentação e notas de Jeanne Ancelet-Hustache, Paris, Éditions du Seuil, 1979, 71, pp.78-80; Alain de Libera, La mystique rhénane. D’Albert le Grand à Maître Eckhart, Paris, Éditions du Seuil, 1994, pp.268-269). Cf. ainda Eudoro de Sousa: “(...) se a conseqüência fatal de um encontro com a divinda-de, é a morte ou a cegueira, porque não há-de ser a mesma morte ou cegueira, livremente consentida, a condição necessária da vida eterna e da visão plena ?” - “Quem vê Deus morre... (o mito de Psique)”, separata de Atlântico, 5 (1947), pp.3-17, p.13.

No âmbito do cristianismo, a questão remonta ao Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que indica como condição de penetrar na divina “Treva” trans-inteligível a “cessação total da palavra e do pensamento”: “no termo último da ascensão estaremos totalmente mudos e plenamente unidos ao Inefável” – A Teologia Mística, III, 1.033 c. Con-forme a interpretação da experiência de Moisés, a visão de Deus na “treva” consiste em “ver que ele é invisível” e incompreensível. Assim se concilia o “Ninguém jamais viu a Deus” (João, 1, 18) com o progresso de Moisés na gnose, pelo qual “conhece que a divindade é essencialmente o que transcende toda a gnose e escapa à apreensão do espírito” – São Gregório de Nissa, Vie de Moïse, II, 163-164, edição e tradução de Jean Daniélou, Paris, Édi-tions du Cerf, 1955, pp.81-82.

Uma diferença, todavia, entre a mística grega e cristã e a iluminação búdica pode residir em que, se nas pri-meiras há uma intuição em que sujeito e objecto coincidem, ou uma douta ignorância enquanto experiência trans-intelectual do Inefável, a última consiste numa “intuição em que o sujeito e o objecto estão ausentes”, desde sempre, não sendo a sabedoria ou conhecimento transcendente, prajñaparamita, senão um reconhecimento da sua vacuidade (do sujeito, do objecto, da sabedoria e da própria vacuidade) – cf. Guy Bougault, La notion de “prajña” ou de sapience selon les perspectives du “Mahayana”. Part de la connaissance et de l’inconnaissance dans l’anagogie bouddhique, Paris, Éditions E. de Boccard, 1968, p.228. A gnose búdica seria assim uma gnose agnós-tica, na medida em que o conhecimento transcendente, esvaziando sujeito e objecto, se esvazia a si mesmo e ao próprio esvaziamento.

98 “E venha filosofia/teologia que farte/o que se pense de Deus/é só de Deus uma parte” – Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.47.

99 Cf. a quadra: “Mais que a teu Deus sê fiel/ao que tu sejas de Fé/talvez o Deus que te crias/oculte o Deus que Deus é” – Ibid., p.58. Cf. Nicolau de Cusa, que afirma que, sem ser purificada pela “teologia da negação”, a da “afirmação” conduz a não adorar Deus “como Deus infinito, mas antes como criatura”, acrescentando que “este culto é uma idolatria atribuindo à imagem o que não convém senão à verdade” – De la Docte Ignorance, I, 26, introdução de Abel Rey, prefácio de Bernard Dubant, Paris, Guy Trédaniel, 1979, p. 98.

100 Cf. Friedrich Nietzsche, La naissance de la philosophie à l’époque de la tragédie grecque, traduzido do alemão por Geneviève Bianquis, Gallimard, 1974, p. 38.

101 “Nenhum cerco de adjectivo/ao que é substancial/nada de fonte do bem/nada de poço do mal/ /não limites infinito/não regules o divino/e que vivo não entendes/por teu pouco ou nenhum tino” – Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho, p.74.

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102 “Acho que Deus não escreve/e também que Deus não fala/e que nos sustenta vivos/a vida que nele cala” –Id., Quadras Inéditas, p.8. Cf. o Deus “que é alogos, não logos”, em “Aqui falta saber, engenho e arte”, Textos e Ensaios Filosóficos II, p. 212.

103 Id., Quadras Inéditas, p. 88.

104 “Em que só Deus consciente/a todos dá consciência/de que em Deus estão vivendo/com não saber e ciên-cia” – Id., Uns Poemas de Agostinho, p. 88. Cf. também p. 133.

105 “talvez para ser de um nada / que contudo de si saiba” – Ibid., p. 49.

106 “Que outra coisa é, Senhor, o teu ver, quando me olhas com olhos de piedade, senão o ser visto por mim? Vendo-me, tu, que és o Deus escondido, concedes que sejas visto por mim. Ninguém pode ver-te senão na me-dida em que concedes que sejas visto.

E o teu ser visto não é senão o teu ver aquele que te vê” - Nicolau de Cusa, A Visão de Deus, tradução e introdução de João Maria André, prefácio de Miguel Baptista Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p.146.

107 “Tudo porém vem de Deus/e de Deus não se desprende” – Agostinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho, p.130.

108 Numa mesma matriz neoplatónica temos, por um lado, em termos gregos, a simultaneidade da manência de tudo no Uno, da sua processão e da sua conversão: moné, proodos, epistrophé – cf., por exemplo, Proclo, The Elements of Theology, texto revisto com tradução, introdução e comentário por E. R. Dodds, Oxford, Clarendon Press, 1992, 35, p.39. Por outro, em termos cristãos, o serem Deus em Deus todas as coisas, sustentado por um teólogo insuspeito de heterodoxia ou panteísmo como São Tomás de Aquino: “Segue-se que as coisas, tais quais são em Deus, são a própria essência divina” – Suma Teológica, q. 18, a. 4.

109 “Há que voltar ao eterno/donde viemos um dia/para de lá nem nos vendo/vermos nós o que vivia” – Agos-tinho da Silva, Uns Poemas de Agostinho, p.48.

110 Cf. , ibid., pp.132-133.

111 Id., Quadras Inéditas, p.35.

112 Conhecido o joanismo e paracletismo agostiniano, é provável que este adorar também evoque a exortação de Cristo a que Deus, sendo “espírito”, seja verdadeiramente adorado “em espírito e verdade” (cf. João, 4, 20-24).

113 Cf. Platão, Apologia de Sócrates, 20 e – 23 b.

114 Vejam-se as afinidades com Nicolau de Cusa, em que a “douta ignorância”, mais do que compreensão da impossibilidade de compreender Deus, e de apenas se ser compreendido por ele (cf. Nicolau de Cusa, De la Docte Ignorance, I, 26, pp.98 e 100), é também, pela “ausência de visão”, pela “visão mental pela vacuidade”, acesso, na “vacuidade” e no “silêncio”, ao “que é realmente Deus” e à sua visão – cf. Nicolau de Cusa, Apologie de la docte ignorance, in Trois traités sur la docte ignorance et la coïncidence des opposés, introdução, tradução, notas e comen-tários por Francis Bertin, Paris, Les Éditions du Cerf, 1991, pp.35-36. Desnecessário será apontar as flagrantes e interessantíssimas afinidades com a experiência búdica, ou seja, iluminativa, da vacuidade.

115 Cf. a possibilidade que o pensador assim descreve: “Para um observador de fora, um homem intrinseca-mente religioso, em perpétuo êxtase religioso, poderia dar a impressão de não estar prestando nenhum culto a nenhum Deus e, na vida prática, esse homem comportar-se-ia com a alegria, a espontaneidade, o desprendimen-to do selvagem, sem que também fosse necessário, fatal, o aparecimento de qualquer espécie de rito; esse homem teria reconhecido Deus em si e nos outros e viveria, naturalmente, sem tu e sem eu, de igual para igual, num universo inteiramente divino”– Agostinho da Silva, “A comédia latina”, in Estudos sobre Cultura Clássica, Lisboa, Âncora Editora, 2002, p.305.

116 Cf. o nosso já referido “Ser ateu graças a Deus ou de como ser pobre é não haver menos que o Infinito. A-teísmo, a-teologia e an-arquia mística no sermão “Beati pauperes spiritu...”, de Mestre Eckhart”, in Philosophi-

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ca, 15 (Lisboa, 2000), pp.61-77. As teses da a-teidade divina, quer no sentido de que Deus não o é para si, quer no de que se nega gerando o poder haver ser universal, num mundo onde tudo é a carnavalesca e saudosa dissimu-lação de uma verdade presente e ausente, patente e oculta, são fundamentais no pensamento português contem-porâneo. É Teixeira de Pascoaes quem afima Deus como o “único ateu perfeito”, na fórmula mais explícita do que designará como ateoteísmo: “O homem que nega o seu próprio ser, imita Deus, o único ateu perfeito; e tornou-se, por isso, Criador. A Criação tem a assinatura de Lucrécio” – Santo Agostinho (comentários), Porto, Livraria Ci-vilização, 1945, pp.275-276. José Marinho desenvolverá esta intuição, considerando que “talvez a mais profunda descoberta do Poeta fosse a verdade funda de que Deus é o único autêntico ateu e de que o ateísmo sempre im-possível mas maravilhoso é o centro da visão unívoca” – “Pascoaes, poeta da visão unívoca”, Diário de Notícias, 24 de Janeiro de 1963. Noutro passo, escrevendo que “o unívoco de Deus está no seio do ateísmo”, acrescenta: “Assim, saber e imparcialmente reconhecer que Deus é o único autêntico ateu, adiantaria caminho desde a teologia à política.

Saber que o autêntico ateísmo equivale à teologia mística dos últimos cumes libertar-nos-ia de vários as-pectos da falsa fé ou da descrença presunçosa (...).

Aquele que sabe como Deus reservou para si o autêntico ateísmo, torna-se, e por isso mesmo, infinitamente reservado mas muito atento perante os ateus e perante toda a forma de descrença” – Obras, I, Aforismos sobre o que mais importa, edição de Jorge Croce Rivera, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, pp.341-342. “O homem que se libertou de Deus e vive por si e para si, é uma crença boa para fim de uma perigosa aventura. O homem será capaz disso quando for o próprio Deus, mas então não será o homem que é por si e para si” – , Ibid. p.155.

Cf. também, explicitando o fundamento metafísico da tese: “Tudo é a unidade, tudo é a unidade que se busca e reencontra; tudo é a unidade que parece perturbada e é impassível, que parece irreal e fantástica e é, só ela, possível. Pois enquanto visto desde nós e em nós tudo pode parecer diverso, tudo pode parecer olhar incessantemente o fugitivo e alheio, tudo na unidade se vê tornando-se ela mesma, ou nada vê. Por isso a velha e sempre nova sabedoria diz ser ou nada, e por isso também o ateu, que o não visse, veria melhor a Deus. Mas esse ateu é apenas e será sempre no homem virtualidade inatingida. Só Deus é ateu. E assim o que nega, nega afinal os passageiros deuses, e antecipa o único verdadeiro” – Ibid., p.355.

José Marinho assumirá no seu pensamento de maturidade a tese da divina ateidade, feito o ateísmo meta-humano e “iniciático” do espírito na “assunção do Nada”, ou do Deus-Uno-Absoluto que, pela plena coinci-dência de ser e verdade, o não é e nada é para si, transcendendo a “cisão divina”, “pela qual é Deus”, a “criação” e a implícita “relação entre criador e criatura”. Como se pode constatar, não deixa de aqui reverberar uma das vertentes da visão de Mestre Eckhart: “Subitamente, um dia, apercebe-se de que se o ser é a verdade e se Deus é o ser da verdade, então a verdade não é para si”; “Pois o que é, enquanto é o pleno ser de tudo, se põe a si mesmo como uno, eterno e absoluto, o sem falha nem fissura, o todo sem parte, o que se diz sem verbo, e se pensa sem pensar, sem misto algum, por mais subtil. E assim, sendo ele o único ser de todo o ser que não é, no qual tudo é como o que não é, anulando-se nos iguais instante e tempo sem-fim, não pode mais que ser sem se saber. E no que é verdade para o que no homem a vê e contempla, a viu e contemplou, não há então saber da verdade. A verdade então não é para o mesmo ser da verdade. Ora, como vê então aquele que diz ver e contemplar e saber plenamente o ser da verdade como se um e o mesmo fossem ser da verdade e irrecusável verdade do ser?” Id., , Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961, p.23. E ainda:

“Que é a cisão divina ?

No mais extrínseco sentido cabe entendê-la como a cisão em Deus. Por ela, o divino é para nós numa multi-plicidade, ou em divinos avatares, ou divinas pessoas. Noutro sentido, porém, e o mais fundo, a cisão divina é aquela cisão primeira e absoluta que tem por contrapolar a sensível cisão extrema, e é a primeira e mais funda e absoluta cisão pela qual é Deus e sem a qual Deus persiste como o ser opaco e indeterminado ou na opacidade da crença ou da descrença sem digna ciência que o exprima.

Pela cisão divina, ou cisão absoluta, toda a origem se explicita e o princípio se alcança do autêntico pensa-mento. E do mesmo passo que criação e relação entre criador e criatura emergem não como a primeira e a última

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verdade, mas como grau de iniciação na que é primeira e última verdade, assim também o profundo significado da descrença se apreende e o profundo sentido e transcendente alcance de todo o autêntico ateísmo iniciático” - Ibid., p.92. Cf. também pp. 93-97.

117 É o percurso proposto, nas suas origens, e a toda a teologia cristã, de superação da teo-logia na deificação, pelo Pseudo-Dionísio,o Areopagita. No pensamento português, o crítico mais radical, decerto por vezes precipi-tado e injusto, das pretensões teológicas, à luz da sua própria experiência de pendor místico-visionário, é Teixeira de Pascoaes:

“Vi Cristo na imensidade ou em si mesmo, na solidão absoluta, fora da História que é de César, e da Teologia que não é de Deus. A raiz e a terminação desta palavra são perfeitamente incompatíveis.

A Suma Teológica de Tomás! Que montanha vã! A historicidade de Jesus! Que ridículo! A Teo- logia admite-se num deus de templo, tradicional ou descendente dos Fetiches. A História admite-se num Carlos Magno. Mas também é ridícula tratando-se de Homero” – Duplo Passeio, A Beira (num relâmpago) / Duplo Pas-seio, Obras Completas, X, introdução e aparato crítico por Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Livraria Bertrand, 1975, p.164.

Cf. também: “Pobre de Deus se dependesse de qualquer raciocínio ! Independente de tudo, da própria existên-cia, como há-de depender dum simples jogo de palavras ? Deus não precisa da tua teologia, ó S. Tomás ! Basta-lhe um gesto de criança, um grito do nosso coração” – Ibid., p. 174.

Para além da atitude gnóstica no que respeita à irrelação de Deus com a história humana, note-se como Pascoaes rivaliza, no que respeita à desconsideração da teologia, com a radicalidade iconoclas-ta de um Cioran: “La théologie est la négation de Dieu. L’idée saugrenue d’aller chercher des argu-ments pour prouver son existence ! Tous ces Traités ne valent pas une exclamation de Sainte Thérèse. Depuis que la théologie existe aucune conscience n’y a gagné une certitude de plus, car la théologie n’est que la version athée de la foi. Le dernier bredouillage mystique est plus proche de Dieu que la Somme théo- logique. Tout ce qui est institution et théorie cesse d’être vivant. L’Église et la théologie ont assuré à Dieu une agonie durable. Seule la mystique l’a réanimé de temps en temps” – Des Larmes et des Saints, in Oeuvres, Galli-mard, 1995, p.311.

Poder-se-ia certamente recordar a Pascoaes e a Cioran que o tão alvejado São Tomás de Aquino terá porventura compreendido melhor que eles, e de forma bem mais coerente, o excesso de Deus relativamente a todo o dis-curso conceptual quando, após uma determinada experiência, terá resolvido deixar inacabada a Suma Teológica, declarando que tudo isso não era senão “palha” !... Enquanto o santo se retira para a experiência do absoluto, os escritores não desistem de falar e escrever sobre ela, ou sobre outra coisa, até à morte...

118 Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.22.

119 Cf. a noção de theôsis que, fundamental no cristianismo grego e oriental (cf. Gregório Palamas, De la déifi-cation de l’être humain, L’Âge d’Homme, 1990), teve um acolhimento muito mais reservado na deificatio latina. Agostinho parece ir além das suas versões mais ortodoxas, nas passagens em que indica que o homem pode não ser apenas por graça o que Deus é por natureza, ou que o homem pode ser ou tornar-se não apenas o “que Deus é”, mas, pura e simplesmente, “Deus”. Referimo-nos à doutrina de um dos teólogos e místicos ocidentais que mais colheu da tradição cristã oriental: “(...) de modo inefável, impossível de imaginar, o homem de Deus merece transformar-se não em Deus, certamente, porém sim no que Deus é. O homem é por graça o que Deus é por natureza” – Guilherme de St. Thierry, Carta aos irmãos de Monte Dei, III, 263, in Carta a Los Hermanos de Monte Dei y Otros Escritos, edição preparada e apresentada por Teodoro H. Martin-Lunas, Salamanca, Ediciones Sigueme, 1995, p.115. Cf. também W. R. Inge, “The Doctrine of Deification”, Apêndice C, in Christian Mysticism, Londres, 1899, pp.356-372.

120 “Se eu chegar a ser dum Outro/mas de mim não me perdendo/e esse Outro todos os outros/que comigo estão vivendo//não só homens mas também/os animais e as plantas/e os minerais ou os ares/e as estrelas tais e tantas//terei decerto cumprido/meu destino e com que sorte/para gozar de uma vida/já ressurrecta da morte” – Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.106.

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121 “O eu limitado, refluindo, se assim se pode dizer, para o seu centro verdadeiro, dissolve-se nalguma coisa de absoluto, já não individualizado mas ainda ligado ao indivíduo: transição do ser para o não-ser, que equivale, quanto cabe na realidade, à plenitude e perfeição do ser” – Antero de Quental, Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, in Filosofia, p.165.

122 Cf. Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, p.81.

123 Cf. Caderno Três sem Revisão [inédito; pesquisa e recolha de espólio por Amon Pinho, Helena Briosa e Romana Valente Pinho; transcrição de Rui Lopo e Sandra Pereira; revisão final de Renato Epifânio, Ricardo Ven-tura e Rui Lopo]. Cf. Rui Lopo, “A liberdade: o infindo desígnio de ser o que se é”, in AAVV, Agostinho da Silva e o Pensamento Luso-Brasileiro, pp.319-329, pp.328-329.

124 “Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total” – Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, p.145; “a quadrada Raiz do Negativo/que por ser paradoxo/me defende dos riscos de ortodoxo” – Id., Uns Poemas de Agostinho, p.33.

125 Cf. Antero de Quental, carta a Oliveira Martins, de 30 de maio de 1887, in Cartas II, 1881-1891, organiza-ção, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins, Lisboa, Universidade dos Açores / Editorial Comunica-ção, 1989, p.842.

126 Agostinho da Silva, Uns poemas de Agostinho, p.88.

ResumoTentamos mostrar o sentido místico e filosófico da poesia de Agostinho da Silva, onde

avulta uma particular experiência/visão de Deus como “nada que é tudo”, num assumido

paradoxo lógico e ontológico. Sendo Deus ausência de quaisquer determinações, positivas

ou negativas, contém em acto todas as possibilidades de manifestação sem que nelas se

esgote. Deus designa aqui também o fundo sem fundo do próprio homem, que assim é

convocado a realizar-se simultaneamente na união mística e no amor criador. O modo

como o pensador português trata o tema é uma ponte entre Ocidente e Oriente.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Nada; Tudo; Poesia; Filosofia; Mística.

AbstractWe try to present the mystical and philosophical meaning of Agostinho da Silva’s poe-

try, mainly around his experience/vision of God as “nothing which is everything”, in an

admitted logic and ontological paradox. Being God the absence of all determinations, ei-

ther positive or negative, He contains in acts all the possibilities of manifestation without

being exhausted in them. Here God also designates the bottomless ground for man, who is

then called to self-realization both in mystical union and in creative love. The Portuguese

thinker’s way of approaching the theme is a bridge between West and East.

Keywords: Agostinho da Silva; Nothing; Everything; Poetry; Philosophy; Mystic.

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Tito Lucrécio Caro segundo Agostinho da Silva

Pinharanda Gomes*

O destino de Tito Lucrécio Caro na literatura portuguesa tem sido irregular. O elenco de bibliografia clássica elaborado por Fidelino de Figuei-redo1 inventariou a mais antiga tradução, a de um Anónimo (por Fidelino identificado como sendo o latinista Manuel de Pina Cabral), intitulada Lu-gares Selectos de Tito Lucrécio Caro, traduzidos em Portuguez (Lx.ª, Of. de José da Silva Nazaré, 1785). A tradução integral da principal obra de Lucrécio, a partir do original latino, apareceu em verso, com o título A Natureza das Coisas. Poema de Tito Lucrécio Caro, por José Duarte Machado Ferraz (Lx.ª, Imprensa Nacional, 1850). Quase sobre esta edição surgiu outra, com tra-dução em verso, em dois volumes (Lx.ª, 1.º, Tip. de Jorge Ferreira de Matos, 1851; 2.º Id., Tip. de J.F. Lopes, 1853), da autoria de António José de Lima Leitão. Deu-se o caso de José Duarte Machado Ferraz (magistrado, por ve-zes confundido com seu sobrinho, José Joaquim Machado Ferraz, Conde de Santa Luzia) ter ficado agastado com o aparecimento da tradução de Li-ma Leitão, pelo que, oculto no pseudónimo Um Transtagano, tirou vindicta num opúsculo de 33 críticas páginas: Observações Crítico-Analíticas sobre duas Traduções do Poema de Lucrécio ‘Da Natureza das Cousas’ (Lx.ª, Tip. de José Baptista Morando, 1852).

A derradeira tradução oitocentista julgamos ser a devida a Agostinho de Mendonça Falcão, Livros de […] Poeta Romano sobre a Natureza. Vertidos em verso solto. O poema foi inserido nos volumes 31.º e 34.º (1884-1887) da revista coimbrã O Instituto, tendo sido feita uma edição autónoma (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1890). Todas estas edições existem na Biblioteca Nacional, de cujo catálogo só volta a constar uma outra tradução (antológica e

* Pensador e escritor português (n. 1939), amigo pessoal de Agostinho da Silva e seu conviva no grupo da «Filosofia Portuguesa», desde 1970. Membro da Academia Portuguesa da História, da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, e do Instituto Luso-Brasileiro de Filosofia. É autor de vastíssima obra, dentre a qual His-tória da Filosofia Portuguesa, 3 vols. (Lisboa, Guimarães Editores); Entre Filosofia e Teologia (Lisboa, Fundação Lusíada); Dicionário de Filosofia Portuguesa (Lisboa, D. Quixote) e A Escola Portuense (Porto, Caixotim).

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parcial). Da Natureza. Antologia (Vila Nova de Famalicão, Tip. Minerva, 1947, opúsculo de 19 p.), da evidente autoria de Agostinho da Silva.

Nesta época, depois de ter iniciado uma intensa e periódica actividade editorial, no escritório da Editorial Inquérito, do seu amigo Eduardo Salguei-ro, que o alojou provisória e gratuitamente, enquanto não criava melhores condições, Agostinho da Silva já arranjara casa, na Rua Dr. António Martins, 24-2.º, numa zona fronteiriça ao actual Instituto Português de Oncologia, transversal à Rua Basílio Teles.

Agostinho trabalhava a tempo inteiro, ainda hoje causando a admira-ção de quem aborda as suas múltiplas edições. Até ao ano em que emigrou para o Brasil, manteve ele, com espantosa regularidade, duas grandes colecções: Ca-dernos de Informação Cultural, opúsculos também impressos em Vila Nova de Famalicão, e nos quais deu asas a um saber enciclopédico, divulgando os mais variados problemas e temas, das abelhas aos caminhos de ferro, da zoologia, da geografia, da botânica, da mecânica…; e a série quinzenal intitulada Antologia. Introdução aos Grandes Autores. Tal Antologia terá atingido no mínimo dez sé-ries publicadas, não nos sendo agora possível confirmar se chegou a publicar a já anunciada 10.ª série. Cada série integra seis títulos, contemplando textos fi-losóficos, poéticos, romanescos, geográficos, históricos etc. Em cada opúsculo, Agostinho apresenta uma antologia de textos do escritor escolhido, antologia essa apresentada por um breve prólogo biobibliográfico, com tópicos de leitura. Só para citar filósofos, nesta Antologia se leram trechos de Voltaire, Teresa de Ávi-la, Ganivet, Erasmo, Guinot, Condorcet, Marco Aurélio, Bacon, Platão, Tomás More… A causa de todos estes trabalhos estar atribuído ao grande pensador, é o facto de, na contracapa de cada caderno, se informar que se tratava de uma edição do Organizador, Agostinho da Silva (com o endereço), sendo distribuí- da pela Agência Editorial Organizações (Largo Trindade Coelho, 9-2.º, Lis-boa), propriedade da família Homem Christo.

A série 9.ª, destinada a textos de Rodó, Shakespeare, Tolentino, Emerson e Machado de Assis, integrou por fim uma Antologia do poe- ma Da Natureza, de Lucrécio (Tip. Minerva, V. N. Famalicão, 1947), opúsculo de 19 pp., as três primeiras contendo o prólogo de apresentação e, as restantes, parte do Livro Primeiro do poema de Lucrécio. Convém ter em mente que Agostinho da Silva visava a um público vasto e heterogéneo, talvez mesmo pouco culto, – estes Cadernos vinham a constituir como que uma Campanha de Educação Popular – todavia, não deixava de fora as rubricas analíticas que lhe pareciam úteis. Numa delas, afirma: «Não é pelas suas ideias que Lucrécio é um grande poeta: um grande poeta apesar das suas ideias; grande poeta como

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autor, pelas qualidades de imaginação, de arquitectura e linguagem, e grande poeta como homem, porque flamejam dentro dele os fogos da verdade, da justiça e do amor» (loc. cit., pp. 4-5).

Obra maior e sem dúvida modelar veio mais tarde, já no Brasil, e que julgamos pouco terá corrido em Portugal, onde era distribuída pela casa Livros do Brasil (Calçada dos Caetanos, Lisboa). Há mais de quarenta anos que, num alfarrabista, adquirimos um exemplar, como novo: Biblioteca dos Séculos/Tito Lucrécio Caro/Da Natureza/Prefácio, Tradução e Notas de/Agostinho da Silva/Estudos Introdutórios de/E. Joyau e G. Ribbeck/vinheta/Editora Globo/Rio de Janeiro-Porto Alegre-São Paulo. No verso: Título do Original latino: De Natura Rerum / 1962.

Trata-se de um volume de 220x155 mm, de XXIV+237 p., contendo: o Prefácio de Agostinho da Silva (pp. IX-XXIV), uma Introdução a Epicuro, com respectiva Antologia segundo E. Joyau (pp. 3-33), um ensaio nobre so-bre Lucrécio por G. Ribbeck (pp. 35-48), uma Bibliografia (p. 51), o texto do poema de Lucrécio (pp. 55-207), na versão de Agostinho da Silva que, no final, apresenta as Notas ao texto (pp. 211-231), riquíssimas de subtileza exegética e de grande erudição filológica e filosófica, e, por fim (pp. 235-238), um Glossá-rio de Nomes Próprios.

Teve o cuidado de informar quais as edições de que se servia – a de A. Ernont, e as de Lachmann e de H. A. J. Munro –, muito conhecidas dos es-pecialistas em Estudos Clássicos, como o Padre Manuel Antunes, S. J., que, não obstante, na entrada «Lucrécio Caro» (Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo, vol. 12, cols. 633-636), omitiu qualquer referência à tradução erudita e prestigiada de Agostinho da Silva, decerto porque dela não houve conheci-mento. O mesmo acontece no artigo que Pedro Silva Pereira assinou na Enci-clopédia Logos (vol. 3, col. 508). Foi objectivo do tradutor a fidelidade ao texto latino, pelo que optou pela versão em prosa, ou, como diz, mantendo o jeito mais filosófico do que poético do texto latino.

A primitiva tradução de 1947 era parcial, não mais extensa do que cerca de metade do Livro I. Embora esta tradução integral e definitiva só aparecesse em 1962, Agostinho da Silva data o Prefácio de junho de 1944, o que nos permite conjecturar que, ainda antes de emigrar, ele previa editar a obra na íntegra. Aliás, com ligeiras variantes, para aperfeiçoar o estilo, e para melhor conceptualização (o termo corpo material é substituído, nesta edição brasileira, por corpo visível), o texto da versão do Livro I é quase, palavra a palavra, o da edição analógica. O prefácio à edição é de muito boa qualidade, equilibrado, sensível do ponto de vista estético, ordenado a uma interpreta-

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ção ontocosmológica e a uma reposição da ética epicurista. Aliás, Agostinho divulgara o pensamento epicurista no ensaio O Pensamento de Epicuro (1940, 2.ª ed., 1943) e, neste prólogo, faz um exercício de reflexão da ética epicurista dentro dela mesma, para a explicar como uma filosofia construída para que, por meio dela, se possa alcançar a felicidade. Agostinho rejeita o epicurismo vulgar e mesmo dissoluto, produto de vistas superficiais e de real covardia moral. E diz: «O epicurismo é uma ascese, que pretende deixar o espírito o mais livre, o mais despojado, o mais puro possível para a apreensão dos prazeres que são os únicos que vale a pena buscar: o prazer da leitura, da con-templação da ordem do mundo […] o sentimento da fraternidade que une os homens livres» (p. XVII). Este ideal de pensamento vestindo a vida é o escopo do poema de Lucrécio, um poema sobre a Natureza visível, que supõe a invi-sível, quer dizer, o mundo acessível ao conhecimento estesíaco, sem recusa do que para além dele flua. O prazer da contemplação do mundo, uma perifísica esculpida por um altíssimo poeta, procurador da diligência contra a preguiça, e da vida meditada contra a vida dissoluta e recriada em belo português por um notável escritor.

Nota1 F. de Figueiredo, Estudos de Literatura. Quarta Série (1921-1922), Lx.ª, Portugália, 1924, pp. 233-245.

ResumoRealizando, inicialmente, um breve, não obstante completo, histórico das traduções por-

tuguesas da obra De Natura Rerum, de Tito Lucrécio Caro, este artigo é um comentário à

erudita e prestigiada translação que Agostinho da Silva fez da mesma obra e que chegou

aos leitores por meio de duas publicações. A primeira, estampada em 1947, em Portugal, na

Coleção Antologia: Introdução aos grandes autores; a segunda, vinda a lume em 1962, quando

o autor, depois do período argentino e uruguaio, já se encontrava radicado no Brasil.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Tito Lucrécio Caro; De Natura Rerum; Epi-

curismo; Cadernos de divulgação cultural.

AbstractAfter a brief yet complete historic report of the Portuguese translations of De Natura

Rerum (On The Nature Of Things), by Titus Lucretius Carus, this article comments on

the erudite and prestigious translation of that work by Agostinho da Silva to which rea-

Tito Lucrécio Caro segundo Agostinho da Silva Pinharanda Gomes

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ders had access via two publications. The first one was printed in 1947 in Portugal in the

series Antologia: Introdução aos grandes autores (Anthology: Introduction to the great

authors); the second one was published in 1962, when the author, after being shortly in

Argentina and Uruguay, was already radicated in Brazil.

Keywords: Agostinho da Silva; Titus Lucretius Carus; De Natura Rerum; Epicu-

rism; Cadernos de divulgação cultural (Booklets of Cultural Diffusion).

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A Visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da europa

Renato Epifânio*

A visão agostiniana da Galiza emerge no âmbito da sua reflexão sobre Portugal, sobre o seu sentido histórico. Desenvolveu Agostinho da Silva essa refle-xão em diversas obras, desde logo, na sua Reflexão à Margem da Literatura Portu-guesa, uma obra que Agostinho escreveu e publicou já no Brasil, em 1957, como se só no Brasil, face ao espelho atlântico, tivesse Agostinho descoberto Portugal.

Nessa obra, logo no primeiro capítulo, Portugal e Galiza aparecem a par, “como dois noivos que a vida separou”. Separação que Agostinho lamenta, por Portugal sobretudo, dado que, como nos diz, se ela não tivesse ocorrido, “talvez o ouro da Índia e Brasil tivesse dado maior proveito e se não tivesse, em plena época de afluxo de riquezas, de fazer aportar ao Tejo frotas de cereal e pão”.1 Separado da Galiza, Portugal perdeu, à luz desta visão, as suas raízes mais pro-fundas, o seu Norte. Daí os seus subsequentes desmandos – não só económicos, como sobretudo éticos...

Eis, dir-se-ia, o “pecado original” da formação de Portugal e das futu-ras Descobertas – como escreveu o próprio Agostinho, num texto de 1960:

“Nunca se devia ter abandonado a Galiza; se havia que morrer, havia que morrer junto com ela (...). [Depois, porque “quem abandonara a noiva abandonou o irmão”] Nunca se devia ter conservado Ceuta, nunca se devia ter feito mártir o Infante (...). Chamar-se ao Infante o Santo é protestar contra o desvio que levou do império dos mares, os mares sobre que flutua o Espírito, para o império das terras. Que levou de ser a ter.”2

* Membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e da Direcção da Associação Agostinho da Silva; secretário-executivo da Comissão das Comemorações do seu Centenário; investigador na área da “Filosofia em Portugal”, com diversos estudos publicados; Licenciatura e Mestrado em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; doutorou-se, na mesma Faculdade, no dia 14 de Dezembro de 2004, com a dissertação Fundamentos e Firmamentos do pensamento português contemporâneo: uma perspectiva a partir da visão de José Marinho (no prelo); autor do Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa (no prelo), já em parte publicado na Philosophica, revista do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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Nesta visão da História, não é, contudo, essa separação, essa cisão, um horizonte inultrapassável. Eis o que o próprio Agostinho da Silva, de resto, nos havia já antecipado no seguimento da passagem da sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa que há pouco transcrevemos, essa em que lamentava a nossa separação, a nossa cisão, com a Galiza – como aí escreveu:

“Mas tempo vem atrás de tempo; se há ‘talvez’ para o passado da His-tória, há ‘talvez’ igualmente para o futuro da História; pode ser que um dia a reintegração da Península em si mesma, na sua liberdade essencial, se faça através da reunião de Portugal e da Galiza. Dos dois noivos que a vida separou.”3

Talvez que, contudo, sob uma perspectiva outra, essa cisão tenha sido necessária. Eis o que, pelo menos, Agostinho da Silva sugere na sua obra Um Fernando Pessoa, em particular quando aí desenvolve uma visão triádica de Portugal, à luz da qual

“o primeiro Portugal foi – nas suas palavras – o Portugal da velha unidade galaico-portuguesa, o Portugal lírico e guerreiro das canti-gas de amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular; nele estive-ram – como acrescenta ainda – as raízes mais profundas da naciona-lidade e nele sempre residiram as inabaláveis bases daquele religioso amor da liberdade que caracteriza Portugal como grei política”.4

Para que Portugal pudesse barcar, talvez que, contudo, tivesse que se cindir da sua arca... Eis, com efeito, o que, no seguimento desta passagem, Agos-tinho da Silva implícita senão mesmo expressamente defende ao afirmar que esse “Portugal da velha unidade galaico-portuguesa” era “demasiado rígido para as aventuras da miscigenação, da tessitura económica e do nomadismo que não reconheceria limites”.5 A ser assim, essa cisão foi pois genesíaca – dado que dela resultou toda a demanda das Descobertas! Poderia, como expressamente sal-vaguarda o próprio Agostinho, no segundo capítulo da sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, não ter sido assim – nas suas palavras: “O Português podia ter resistido ao apelo do longe, Portugal podia ter-se recusado à acção.”6

Contudo, como se questiona ainda o próprio Agostinho da Silva: “…se Portugal não tivesse embarcado, quem teria embarcado?” Eis a resposta que logo de seguida nos dá:

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“Se a alguém competia fazer-se ao mar (…), esse alguém era evi-dentemente o Português./ Tinha a resolução de ataque, a energia de combate e a resistência sob o tempo adverso que faltavam à doce, lí-rica, feminina Galiza. Tinha, como nenhum outro povo da Espanha, aquela noção de fraternidade sem a qual todo o cristianismo é mero vácuo (…).O Português lembrava-se, e da única forma perfeita em que o lembrar existe, que é vivendo-o, o Português lembrava-se da irmandade antiga de mouros, de cristãos e judeus”.7

Paradoxalmente, como sempre, considera pois Agostinho da Silva que essa “irmandade”, essa união, que Portugal procurou concitar entre todos os povos do mundo foi originalmente potenciada pela própria desunião ou cisão com os outros povos peninsulares, desde logo com a Galiza.8 Como, contudo, o mesmo Agostinho expressamente nos assegura, foi esse o preço necessário para que a união futura entre todos os povos do mundo, inclusivamente entre os povos peninsulares, por inteiro se cumpra… Daí que, à luz desta visão, a nossa demanda só se cumpra, enfim, no seu regresso ao princípio... Daí, de resto, a expressa prefiguração do regresso de Portugal à Galiza: ainda à luz desta visão, só realmente no fim da demanda se consumará enfim a principial união! Visão demasiado idílica? Eis o que veremos em outros textos agostinianos.

* * *

Esta visão agostiniana da Galiza reaparece depois em diversos textos publicados nos anos 70, desde logo, em 1972. Refiram-se, a título de exem-plo, os textos “Aurora” – primeira publicado na Vida Mundial, a 21 de Abril; depois republicado, sob o título “Aurora da Galiza”, em O Sesimbrense, a 21 de maio9 –, “As duas vozes da Galiza” – publicado no suplemento Artes e Letras do Diário de Notícias, a 21 de Setembro10 – ou ainda a pequena mas sugestiva “Ficha de Leitura: História da Galiza” – publicada na Vida Mun-dial, a 29 de Setembro.

Aparece ainda, mais fortemente, essa visão agostiniana da Galiza, nu-ma série de 10 cartas, as “Cartas chamadas Santiago”11 – apesar de só a pri-meira ter sido supostamente escrita em Santiago de Compostela –, todas elas começando com a seguinte quadra: “Santiago de Galiza,/ espello de Portugal,/ axudainos a vencer/esta batalla real.” Nelas, mesmo quando não fala expressa-mente na Galiza, é a partir dela, ou desse Portugal principial, desse “Portugal da velha unidade galaico-portuguesa”, que Agostinho da Silva nos fala...

A visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa Renato Epifânio

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Aparece enfim, na sua plenitude, essa visão agostiniana da Galiza, nu-ma série de 3 cartas publicadas em Encrucillada, uma revista galega, em 1978.12 Logo na primeira delas, diz-nos, Agostinho da Silva, o seguinte: “Continuo a ver a Galiza como a ‘chave’ da abóboda peninsular, a feição capaz de levar Por-tugal a participar como uma das unidades autónomas da nova Ibéria, não só esta aqui, dos Pirenéus para baixo, mas a que anda também por África, Ásia e América do Sul.” Eis, em suma, a visão agostiniana da Galiza: raiz principial de Portugal; “‘chave’ da abóboda de toda a Península Ibérica.” Em que medida, eis o que veremos ao debruçarmo-nos sobre “a visão agostiniana da Ibéria”.

* * *

Ainda na sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, considera Agos-tinho da Silva que, historicamente, “a grande façanha de Portugal” foi a de “ter resistido a Castela” – nas suas palavras: “O que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o descobrimento, nem a conquista, nem a formação de nações ul-tramarinas: foi o ter resistido a Castela. O ter mantido, através de sangue e fogo, o princípio de independência dos territórios periféricos.”13 À luz desta tese, dir-se-á pois que Agostinho da Silva foi tudo menos um iberista. Eis, pelo menos, o que certamente dirão aqueles para quem o iberismo consiste na subjugação – mais ou menos voluntária… – a Castela. No entanto, essa não é a única definição possível de iberismo. Certamente, não é a de Agostinho da Silva. Daí que, num certo sen-tido, mas apenas nesse, possamos até dizer que Agostinho foi um iberista…

Por isso, aliás, defendeu Agostinho da Silva que a guerra pela indepen-dência, a guerra contra Castela, não foi uma guerra contra a Ibéria, mas, ao invés, uma guerra pela verdadeira “cultura peninsular”, pelo “verdadeiro estilo de vida da Península” – nas suas palavras:

“…ele [Nun’Álvares Pereira] não estava batendo-se por uma nação portuguesa contra uma nação espanhola. Em primeiro lugar por-que não havia uma nação espanhola (…); em segundo lugar porque mesmo muito tempo depois de terminada a guerra, nunca os portu-gueses negaram que fossem espanhóis no sentido de pertencerem à Península: espanhóis sim, mas espanhóis de Portugal, não espanhóis de Castela; espanhóis, mas espanhóis que defendiam, contra um es-tilo de vida de opressão e de fanatismo e de pura cobiça, um estilo de vida de liberdade, de compreensão e de cooperação que deveria ter sido, por suas razões históricas e por suas tradições, o verdadeiro estilo de vida da Península (…).”14

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E que Península era essa por que Portugal se bateu ao ter-se batido contra Castela?… Ouçamos, uma vez mais, Agostinho da Silva:

“Uma Península livre e una, com regiões culturalmente autóno-mas e com descentralização administrativa; uma Península a que se tivesse estendido o sistema de governo peculiar da Idade Média portuguesa, isto é, o de, numa prefiguração da Commonwealth, ha-ver uma companhia de repúblicas unificadas por uma coroa; uma Península que tivesse conservado aquele gosto de conversação, de ‘vida conversável’, como diria mais tarde um navegador, para cris-tãos, judeus e árabes, essa Península, para lá de todas as contingên-cias económicas, teria dado modelo ao mundo. Teria, como numa renda de bilros, dado o ‘pique’ ao mundo. E o dito mundo, Europa inclusive, se podia depois ter dado à tarefa de ir plantando alfinete e lançando ponto.”15

Ainda nas palavras de Agostinho da Silva, foi essa guerra o preço ne-cessário para a futura paz:

“Se, porém, está marcado nos destinos que se seja ao mesmo tempo fraterno e universal, o que muitas vezes sucede é que se tenha de começar por pôr de lado aquilo que é apenas uma falsa fraternidade e repousa no desejo que têm os outros de exercer suas escravaturas, tanto mais perigosas e difíceis de evitar quanto, na maior parte das vezes, se acobertam com os pretextos de uma irmandade que é ne-cessário não quebrar. E Portugal teve, quase logo de início, de tomar a sua definida atitude em face de uma Castela que se não resignava a deixar que cumprisse seu particular destino uma daquelas regiões periféricas sem as quais a vida material lhe seria extraordinariamente difícil. Portugal teve que resistir a Castela para manter o seu direito de ser; teve, por obediência ao pai que o concitava com o seu chama-mento, de ser aquela espada de que fala o Evangelho e começar por actos de guerra a missão que era, afinal, essencialmente de paz; teve, para poder unir mais tarde, de separar primeiro.”16

* * * Para a devida compreensão da posição de Agostinho da Silva face ao

iberismo, há ainda que atentar numa série de outros textos seus, sobretudo, na primeira de duas cartas dirigidas a António Quadros, por este coligidas na

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sua obra A arte de continuar português, numa secção do apêndice dessa obra, precisamente intitulado “troca de cartas com Agostinho da Silva, a propósito da União Ibérica e do destino de Portugal no mundo de amanhã”.17

Nessa primeira carta, datada de 12 de janeiro de 1976, equaciona Agostinho da Silva, sem qualquer temor, a integração activa de Portugal numa “Península regionalizada” – dado que, como se questiona:

“Além de tudo, numa Península regionalizada, a faixa atlântica é por tudo a mais importante e, se Portugal tem, como Quadros e eu cre-mos (e queremos…) uma mensagem universal (a que faltou, histo-ricamente, a qualidade galega), e a Espanha a não tem (a diferença de heróis exportáveis está entre o Gama e o Quixote, só para citar os dois livros máximos), que medo pode ou tem de haver?”

Nessa medida, essa integração não nos deveria causar qualquer temor – menos ainda aos outros povos peninsulares, dado que, como de seguida acrescenta Agostinho:

“Creio ainda que neste momento os espanhóis ‘periféricos’ que pensam, sentem que a entrada de Portugal numa reformulação ibérica é a garantia de sua própria liberdade.” Eis, aliás, o que Agos-tinho havia já defendido na sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, ao ter aí escrito que “é só em Portugal que as outras na-ções da Península podem ver uma esperança e um ponto de apoio para uma futura liberdade.”18

Resta, como questão fantasmática, a questão da capital da Ibéria. Tam-bém aí, porém, é a posição de Agostinho da Silva, nesta carta, inteiramente desdramatizante – nas suas palavras:

“Creio ainda que com os conceitos jurídicos e as técnicas modernas não é fatal ter de se pensar numa ‘capital’ da Península: Portugal não funcionou muito tempo, e o melhor, com uma ‘côrte errante’, o que não implicava que não fossem sedentárias as administrações conce-lhias? E tinham sede em São Bento as Côrtes? Tem, em tudo – remata assim Agostinho da Silva esta sua consideração –, de se pensar novo, Quadros, como quando, da outra vez, uns loucos achavam que a África tinha fim ao Sul.”

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Em última instância, contudo, para Agostinho da Silva, nesta carta, o argumento decisivo para essa integração activa, e sem qualquer medo, de Portugal numa “Península regionalizada” é o económico – de novo nas suas palavras, com as quais remata a carta:

“Mas o ponto fundamental ainda é o de cima: provem que Portugal pode sustentar, ao nível de vida de que ninguém desiste, os seus nove milhões de habitantes (e o mais que nascer) e eu me calo logo com a história da Ibéria, porque haverá então todo o tempo de esperar que o Brasil cumpra a sua missão em África e se reforme o tal espaço económico de língua portuguesa. Até agora, Amigo Quadros, não o vi demonstrado em lugar algum.”

Tudo isso porque, como havia escrito Agostinho da Silva nesta mes-ma carta:

“Não creio que a situação económica de Portugal melhore, por maior que seja a ‘política de austeridade’, a rede de imposto (não é nenhuma inovação sobre 28 e seguintes), os empréstimos estran-geiros que só comprometem o país com um mundo rico e podre; Portugal nunca se aguentou por si próprio, embora talvez tenha atingido com Dom Dinis um certo equilíbrio na pobreza, o que hoje ninguém quer (…).”

Daí, enfim, em suma, nesta carta, a razão para essa integração activa, e sem qualquer medo, de Portugal numa “Península regionalizada”. Trava-se, tão-só, de viabilizar economicamente a existência física dos portugueses para que Portugal pudesse cumprir a sua missão metafísica… Que melhor argu-mento, ainda hoje, para defender a nossa integração na Europa?…

* * *

Agostinho da Silva não foi, de todo, o que em geral se designa como um “europeísta” – ou seja, alguém que tenha defendido positivamente a cultura europeia e, nessa medida, defendido que Portugal deve nela parti-cipar o mais possível. Desde logo, para Agostinho, não há uma cultura eu-ropeia. Há várias. Pelo menos, duas: a da Europa do Norte e a da Europa do Sul. É, aliás, a partir dessa fronteira, mais precisamente, a partir da fronteira dos Pirenéus, que Agostinho desenvolve a sua visão da Europa. Eis, nomea-

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damente, o que acontece no primeiro capítulo da sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa. Aí, começando por “tomar como um todo a cultura peninsular”, enuncia o designa como um “dilema”: “Hispanizar o mundo (…), eis um dos termos do dilema; europeizar a Espanha; eis outro dos termos do dilema.”19

Obviamente, a resolução do dilema depende, sobretudo, da visão de cada um, nomeadamente da sua visão da Europa. Agostinho da Silva expõe, logo de seguida, a sua – ouçamo-lo:

“Não creio que a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade e o verdadeiro futuro estejam para lá dos Pirinéus; não creio que aquilo a que se deveria chamar a Europa, excluindo cuidadosa-mente não só a nossa Península Ibérica, mas igualmente o Sul de Itália, daquilo a que hoje se chama Europa, não creio que a Europa de gente loira, ordenadora e filosófica seja muito mais do que is-so, ordenadora e filosófica, e possa ver-se livre, a não ser por uma transformação que lhe atingiria o próprio cerne, daquele feitio uti-litário, prático e mecânico, que a América do Norte, sua herdeira, levou às últimas consequências.”20

Face a esta visão da Europa – que o próprio Agostinho da Silva re-conhece como “simplista, mas que tem a vantagem de ser firme” –, fácil é de antever a forma como ele resolve o dilema previamente enunciado, desde logo relativamente a Portugal. Trata-se, no caso de Portugal, de ser o menos euro-peu possível, de nos voltarmos o mais possível para o mar, para o Atlântico, trata-se, em suma, de nos ligarmos o mais possível aos países transatlânticos, em particular ao Brasil. Para Agostinho, aliás, historicamente, só essa ligação poderia ter “definitivamente livrado Portugal das daninhas influências euro-peias que não o deixaram ter nem regime cultural nem acção nem política verdadeiramente adequadas à sua mentalidade”,21 antes procuraram “fazer de Portugal uma Dinamarca latina”.22

Nessa medida, denunciou aqueles que, na sua perspectiva, pugnaram por esse modelo – nomeadamente, Antero de Quental, por ter defendido o “quebrar resolutamente com o passado” para “entrarmos outra vez na comu-nhão da Europa culta”,23 e, mais ainda, Eça de Queiroz, “escritor que viu Por-tugal nas suas férias de cônsul; que se divertia com a caricatura dos homens da sua roda e inclusive dele mesmo; para o qual era muito mais fácil fazer graça do que análise”,24 assim criando “um ambiente de desprezo pela pátria”.25 Eis,

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de resto, a acusação que Agostinho imputou a toda a “Geração de 70”, à excep-ção de Francisco Manuel de Melo Breyner, conde de Ficalho, que, ao contrário dos outros, “não teve pessimismos, não considerou a nação falida, não troçou de ninguém”26.

* * *

Tal como Agostinho da Silva, permitimo-nos aqui defender que o futu-ro de Portugal passa, desde logo, pela reafirmação da nossa tradição cultural. Isto, de resto, para benefício da própria Europa, que igualmente só terá futuro se se afirmar nas suas diversas tradições culturais, inclusive, na tradição cultu-ral portuguesa.

Não porque a tradição cultural portuguesa seja a via de salvação da Europa e do próprio Mundo como, por vezes, em algumas passagens mais arrebatadas, Agostinho parece defender – a título de exemplo:

“…quando a técnica tiver esgotado todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se verificar plenamente anti-huma-na, quando a centralização estatal se revelar estéril, Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser o seu sacrifício (…)”.27

Na perspectiva de Agostinho da Silva, eis, aliás, a “missão” – ou, mais exactamente, a “acção”, dado que, como ressalvou: “Não sei se [Portugal] teve uma missão, porque isso já teria que meter Metafísica, para saber quem é que entrega a missão e quem é que toma a missão. Mas que teve uma acção, teve seguramente.”28 – pela qual se cumpririam, enfim, as “Descobertas”.

Ainda que a nossa perspectiva seja aqui mais comedida – dado que não cremos, de todo, que seja Portugal que, por si só, irá salvar o Mundo ou, sequer, a Europa – nem por isso deixamos de acompanhar Agostinho na sua defesa da tradição cultural portuguesa. Por uma simples razão: só no seu seio poderão, os portugueses, verdadeiramente ser… Não fosse a Cultura, ainda e sempre, a incontornável mediação na via da realização integral de todo o ser humano. Só na assunção plena daquela, ele, cada um de nós, ver-dadeiramente será…

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Notas1 In Ensaios sobre Cultura e Literatura Portuguesa e Brasileira, org. de Paulo A.E. Borges, Lisboa, Âncora, 2000 (doravante: ECLPB), vol. I, p. 31.

2 In “Considerando o Quinto Império”, in ECLPB, vol. I, p. 250.

3 Ibid., p. 31.

4 Ibid., pp. 95-96.

5 Ibid., p. 96.

6 Ibid., p. 34.

7 Ibid., p. 35.

8 Nessa medida, equaciona ainda Agostinho, essa cisão originária prefigura toda a “restante tragédia univer-sal”: “…pode ser que aqui tivessem os destinos do mundo tomado Portugal e Galiza como um perfeito espelho e um resumo de toda a restante tragédia universal” [cf. ibid., p. 32].

9 Ibid., vol. II, pp. 316-317.

10 Ibid., pp. 357-359.

11 “Carta chamada Santiago (1ª)”, Santiago de Compostela, 25/7/1973, in Correio de S. Félix, Bahia, 15 de Setem-bro de 1973; in Dispersos, ed. cit, p. 585/601 (2ª).; “Carta chamada Santiago (2ª)”, Lisboa, 1/5/1974, in Parábola – página cultural do Diário do Minho, Braga, 8 de Junho de 1974, p. 3; in Dispersos, ed. cit, p. 586/602 (2ª); “Carta chamada Santiago (3ª)”, Lisboa, 21/5/1974, in Parábola – página cultural do Diário do Minho, Braga, 8 de Junho de 1974, p. 3; in Dispersos, ed. cit, pp. 586-587/602-603 (2ª); “Carta chamada Santiago (4ª)”, Lisboa, 17/6/1974, in Dispersos, ed. cit, pp. 587-588/603-604 (2ª); “Carta chamada Santiago (5ª)”, Lisboa, 1/7/1974, in Jornal do Oeste, Rio maior, 28 de Setembro de 1974, p. 8; in Dispersos, ed. cit, pp. 588-589/604-605 (2ª); “Carta chamada Santiago (6ª)”, Lisboa, 2/7/1974, in Dispersos, ed. cit, pp. 589-590/ 605-606 (2ª); “Carta chamada Santiago (7ª)”, Lisboa, 17/8/1974, in Dispersos, ed. cit, p. 590/ 606 (2ª); “Carta chamada Santiago (8ª)”, Lisboa, 18/8/1974, in Dispersos, ed. cit, p. 591/607 (2ª); “Carta chamada Santiago (9ª)”, Lisboa, 1/9/1974 (inédita); “Carta chamada Santiago (10ª)”, Lisboa, 3/9/1974, in Dispersos, ed. cit, p. 592/ 608 (2ª).

12 “[Cartas a Encrucillada]” (Sesimbra, 31 de Dezembro de 1976; 7 de Março de 1977; 26 de Maio de 1977), in Encrucillada, revista galega de pensamento cristián, Ferrol, n.° 6, Xaneiro-Febreiro de 1978, pp. 82-85 e 89.

13 ECLPB, vol. I, pp. 29-30.

14 Ibid., pp. 38-39.

15 Ibid., p. 30.

16 Ibid., pp. 36-37.

17 In António Quadros, A Arte de continuar português, Lisboa, Edições do Templo, 1978, pp. 189-203.

18 Cf. ECLPB, vol. I, p. 30.

19 Ibid., p. 27.

20 Ibid., p. 28.

21 Cf. ibid., p. 66.

22 Cf. “Desconhecidos, quase”, in Vida Mundial, Lisboa, 12/11/1971, p. 25.

23 Cf. Causas da decadência dos povos peninsulares, Lisboa, Ulmeiro, 1996 (7ª), p. 67.

24 Cf. ECLPB, vol. I, p. 75.

25 Cf. ibid., p. 144.

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26 Cf. “Desconhecidos, quase”, in Vida Mundial, Lisboa, 12/11/1971, p. 27.

27 ECLPB, vol. I, p. 91. Daí ainda, nesta esteira, estas suas incisivas palavras: “…a Europa foi o único lugar onde Portugal nunca desembarcou e que precisa que agora Portugal desembarque nela. Portugal com o Brasil. Portu-gal com a África. Portugal com a Ibéria. Para que a Europa possa ter futuro e um futuro decente.” [Cf. Francisco Palma Dias, “Agostinho da Silva, Bandeirante do Espírito”, in AA.VV., Agostinho [da Silva], São Paulo, Green Forest do Brasil Editora, 2000, p. 165].

28 Cf. Conversas com Agostinho da Silva, entrevista de Victor Mendanha, Lisboa, Pergaminho, 1994, p. 27.

ResumoNeste texto, o nosso propósito foi o de expressar a visão de Agostinho da Silva da Galiza

– vista como a “noiva de Portugal” –, da Ibéria – vista como o grande espaço da Europa

do Sul – e, finalmente, da Europa – mais propriamente, das duas Europas: a do Sul e a do

Norte.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; Portugal; Galiza; Ibéria; Europa.

AbstractIn this text, our purpose was to express Agostinho da Silva’s vision of Galiza, seen as

“Portugal’s bride”, his vision of Iberia, regarded as the great space in South Europe, and

finally his vision of Europe, more exactly of the two Europes: the South and the North

ones.

Keywords: Agostinho da Silva; Portugal; Galiza; Iberia; Europe.

A visão de Agostinho da Silva da Galiza, da Ibéria e da Europa Renato Epifânio

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O racionalismo-místico: a herança de António Sérgio no pensamento de Agostinho da Silva

Romana Valente Pinho*

“(...) deve-lhes dar o hábito e o amor do pensamento, desenvolver o que neles há de verdadeiramente humano; deve acostumá-los a chegarem sempre ao fim dos seus raciocínios, a não se cansarem e desistirem a meio; deve levá-los a que tenham as ideias como guias de vida; todo o homem que pensa e se obedece é caminheiro da es-trada da verdade, venha donde vier, venha por onde vier. (...) Pensar é viver: ao pensamento perfeito corresponde a perfeita vida.”(Agostinho da Silva, Pólicles)

George Agostinho Baptista da Silva (1906-†1994) cruza-se com Antó-nio Sérgio nos bastidores da Seara Nova, no entanto, é só em Paris (quando Agostinho aí se encontra com uma Bolsa de Estudos – 1931/1933) que estrei-tam relações. Uns anos depois, em Madrid1(1935/1936), encetam uma relação intelectual e amistosa que se revelará intensa para os dois autores.

De Agostinho poder-se-á dizer que é, ao mesmo tempo, um admirador e um crítico pertinente de António Sérgio. Um admirador porque foi por meio de Sérgio que se licenciou pela segunda vez2 (licenciatura em liberdade, em de-mocracia, em clareza e racionalismo), crítico porque, embora notando as quali-dades do ensaísta, não se abstém de apontar os aspectos que considera menores na sua postura intelectual e vivencial.3

De Sérgio dir-se-á, de igual modo, que é um admirador4 e um crítico de Agostinho da Silva. Admirador porque lhe reconhece o espírito sagaz, o

* Mestre e doutoranda em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro do Pro-jecto “Agostinho da Silva, Estudo do Espólio” (Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e Associação Agostinho da Silva). Sobre Agostinho da Silva, publicou os livros Essencial sobre Agostinho da Silva. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006, e Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006. Co-organizou com Amon Pinho Davi e Renato Epifânio o In Memoriam de Agostinho da Silva (2006) e fixou e transcreveu, juntamente com Amon Pinho Davi, a obra inédita de Agostinho da Silva Caderno de Lembranças (2006).

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sentido de iniciativa, o desejo de justiça e liberdade, o combate pela erradica-ção da desigualdade social e cultural; crítico porque lhe aponta as suas insufi-ciências intelectuais.

Ainda que Agostinho da Silva enfatize as qualidades de António Sérgio como racionalista, matemático,5 pedagogo6 e até como homem de grande ca-rácter, tinha plena consciência de que o seu mestre sofria de alguma inaptidão para colocar em prática as suas ideias políticas, sociais, económicas e educati-vas,7 que não ousava levar adiante as suas posições filosóficas (preferia manter-se na certeza8 ou, se preferirmos, na dúvida9 incessantemente metódica), que não habitava no mundo real10 e que não entendia Portugal tal como ele era. Sonhava com um Portugal helénico.11 Até na apologia da democracia, Sérgio não conseguia, segundo Agostinho, passar de uma democracia platonizante. Todavia, definia-o como um político que defendia o socialismo liberal, que havia conceptualizado uma das maiores doutrinas que podem orientar a Eco-nomia e a Escola de uma sociedade – Cooperativismo. No fundo, Agostinho da Silva sentia-se ao lado de Sérgio: “Iniciou-se aí uma relação extremamente interessante, activada pela extraordinária e sempre vivíssima lucidez da inte-ligência do Sérgio e ainda por alguma coincidência das nossas preocupações, como a situação política ou assuntos científicos (...)”.12

O nosso autor aprendera com Sérgio a dar valor ao pragmatismo, afinal, fora ele que o aconselhara a optar pela vertente prática da vida em detrimento da Filosofia.13 Agostinho da Silva, por mais que critique o autor de Ensaios re-lativamente à sua inaptidão para a praticidade e para o acento demasiadamen-te idealista que caracteriza a sua personalidade e a sua obra, reconhece que Sérgio apontou um caminho, ainda que ténue e disfarçado, para lá do puro racionalismo e do puro idealismo convencionais: por um lado através da con-ceitualização do sistema cooperativista14 que pode ser adoptado, sem prejuízo material e pragmático, por qualquer sociedade; por outro através da defesa de um racionalismo puro15 que supõe, no nosso ponto de vista, a existência de um meta-racionalismo16 – trata-se, afinal, da noção de Uno-Unificante que o autor expôs (por vezes, timidamente) nos seus textos e do conceito de racio-nalismo místico.17 Nesta perspectiva, António Sérgio desloca-se do idealismo para o pragmatismo e do racionalismo para a metafísica.

Ora admirando-o, ora criticando-o, Agostinho da Silva não nega a in-fluência que António Sérgio exerceu na sua formação intelectual e se, por ve-zes, somos tentados a afirmar que o autor luso-brasileiro se afastou demasiado dos pressupostos que escutou do seu mestre, entre as décadas de 30 e 40, em Paris, Madrid ou na Travessa do Moinho de Vento (Lisboa), por outro lado,

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estamos conscientes de que essa aprendizagem não abandonou Agostinho tão facilmente como se possa pensar, muito pelo contrário, acompanhou-o até ao final do seu percurso biográfico e intelectivo.

Um dos aspectos que Agostinho da Silva não compreende na proposta de António Sérgio é o utopismo18 em que se encerra, afinal, toda a sua dou-trina. Agostinho não entende como é possível adulterar o ser e o sentido de Portugal. António Sérgio antevê um país pensante, técnico, dono do seu pró-prio destino. Na perspectiva agostiniana, também ela utopista, é certo, Portu-gal dever-se-á guiar pelo ser e não pelo dever-ser. A meta de Portugal, na sua visão, constituir-se-á ontológica e metafísica. Contrariamente, no espírito de Sérgio, ela situar-se-á exclusivamente no âmbito do purismo racional e moral, embora esta linearidade sergiana seja contestável, na medida em que ele deixa em latência a possibilidade de uma outra proposta: a concepção de uma Razão Pura que se revela no Acto-Humano. Quando se eleva do mundo biológico e cousista,19 o Homem descobre a sua Razão Pura, ou seja, o seu Eu-Espiritual que unifica tudo quanto existe. Se usarmos a metáfora sergista da ascese hu-mana ou da evolução cognitiva (a ascensão do eu-biológico para o eu-espiri-tual), poder-se-á dizer que, de um ponto de vista socioeconómico, o esforço de Sérgio se prende com a transposição da mediocridade mental em que Portugal está mergulhado para um estádio mais elevado.

Na obra de Agostinho da Silva faz-se a apologia de um Portugal medie-val, pré-absolutista, pré-anti-reforma, mono-árquico,20 enamorado pelo Mar e de costas voltado para a Europa além-pirenáica; no pensamento de Sérgio idealiza-se um Portugal cartesiano e espinosista, aliado da França e da Ingla-terra e indiferente ao Atlântico. As utopias dos dois são semelhantes, porém, avistam-se de ângulos opostos. Afinal de contas, têm a mesma preocupação face ao destino21 ou futuro de Portugal: o desenvolvimento social, político, cultural, científico e pedagógico do país, logo, naturalmente espiritual. Sérgio preconiza um Portugal pensante, Agostinho um Portugal paraclético, livre, por-tanto, de quaisquer amarras.

George Agostinho da Silva, como a maior parte dos discípulos de An-tónio Sérgio, não poupa o ensaísta português do seu polemismo, do seu incon-formismo face ao modo de ser português (ansiava por um Portugal metodica-mente europeu), do seu olhar arrogante a todos quantos de si divergiam. Ainda assim, e parafraseando Eduardo Lourenço,22 temos consciência de que poucos terão compreendido seriamente António Sérgio, logo, poucos terão tido a ca-pacidade de o confrontar. Até o próprio Agostinho está ciente da sua pequenez intelectual face à erudição de Sérgio.23 Contudo, por mais que o nosso autor se

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tenha desviado dos propósitos sergianos, por mais que tenha ultrapassado as teorias sociais e pedagógicas propostas pelo mentor de Ensaios, por mais que tenha seguido os conselhos do seu mestre (preocupar-se com a acção), o que é certo é que há, em todo o percurso intelectual de Agostinho, uma dimensão teórico-prática que nunca deixou de se manifestar sergianamente.

As maiores afinidades que Agostinho da Silva sente em relação ao mes-tre António Sérgio prendem-se com as vertentes políticas, sociais e pedagógi-cas que defendia. Porém, o sistema filosófico do ensaísta também interessava ao jovem Agostinho. Recém-chegado de Madrid (ainda que lá também se en-contrasse, de vez em quando, com Sérgio), onde tinha estudado os místicos espanhóis, o contacto com o homem dos Ensaios insere-o num universo dife-rente, num plano diverso que contempla a Razão como fundamento da dou-trina filosófica, mais próximo daquilo que inicialmente expunha na sua obra, quando se dedicava ao estudo dos clássicos. A admiração que Agostinho da Silva sente por Espinosa24 talvez venha das tardes de sábado, em casa de Sérgio (este último um fervoroso espinosista). Se George Agostinho não é um racio-nalista no sentido mais puro, ele tenderá a rever-se num sistema filosófico que reúne a Razão e a Mística, chegando, por vezes, a afirmar até um primado da Razão: “Penso, como ser pensante, que nada existe senão o pensamento, o qual me pensa como ser pensante.”25 Se esta acepção resulta da sua leitura de Espi-nosa, resultará, com certeza primeiro, dos ensinamentos de António Sérgio.

Quando em Educação e Filosofia,26 escrito em 1920, António Sérgio su-gere o primado da Razão, está, de igual forma, a propor a indissociabilidade da Filosofia e da Educação:

“Em meu juízo, a ideia de que dissocio educação e filosofia só pode ocorrer aos indivíduos, ou pouco atentos, ou que consideram esta última sob um aspecto demasiado abstracto, não na sua parte mais humana, onde a actividade filosófica – da mais viva origem e do mais largo interesse – implica com as necessidades sociais e é uma teoria da educação.”27

Influenciado pela leitura dos textos platónicos, Sérgio concebe um sistema de educação muito próximo do exposto pelo filósofo grego, no qual a Filosofia deverá ser a norteadora de todo e qualquer processo pedagógico, ou seja, a Filosofia estará ao serviço da construção da cidadania, da ética, da sociedade, da educação, enfim, será a orientadora do Homem como ser universal. Nesta perspectiva, defender-se-á a existência de uma Sociedade Universal, de uma

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República, de uma Sociedade Racional, da qual todos os homens farão parte desde que se deixem guiar pelos desígnios da Razão. Afinal, existe um único pensamento (que é comum a todos os homens) e uma mesma inteligência (da qual todos também participam). Mas António Sérgio corrobora ainda mais o pensamento socrático-platónico quando afirma que a instauração desta So-ciedade depende do método filosófico utilizado pelos professores, no fundo, a renovação social estará a cargo do processo pedagógico implementado por moldes racionais. Compete aos docentes incentivarem os alunos à descoberta da sua própria racionalidade. Neste sentido, a Filosofia é uma maiêutica. A Sociedade formar-se-á através de alicerces filosóficos, logo pedagógicos. Visa-se, por meio da Filosofia e da Educação, formar uma sociedade consciente, racional e livre. A verdadeira comunidade será uma inter-relação racional.

No seu pensamento, Agostinho da Silva não menospreza a tendência racionalista de António Sérgio, quer ela se aplique à filosofia, quer à educação, aliás, esta dimensão grega estava já em flagrância no seu pensar, antes do con-tacto com o homem dos Ensaios:

“Todo o sentido dos mistérios órficos está na libertação dessa cente-lha divina que faz parte da nossa alma, que nos leva à compreensão da Beleza e que tão duramente contende com a natureza titânica que vem das forças brutas dominadas por Zeus. Se essa libertação depen-de do sentimento, depende muito também da inteligência: foi Palas, deusa da Abstracção, quem salvou o coração de Dioniso; os números pitagóricos serão expressão perfeita da libertação órfica.”28

Ao fim e ao cabo, Agostinho é um pensador que não descura a Razão, ainda que a ela não se prenda inteiramente. Se Sérgio se amarra ao mastro do navio racional com medo de ser tentado por outras pendências, Agostinho não tem receio do canto das sereias. Nesta perspectiva, o nosso autor tanto é um racio-nalista-místico (como se auto-intitula em Pensamento à solta), como é um adepto do racionalismo livre.

Se Agostinho da Silva, motivado por António Sérgio, regressa à apolo-gia de um racionalismo orientador da conduta humana, também se confronta com os apelos da democracia que, mais tarde, vão ser reforçados pelo con-tacto com Jaime Cortesão. Assim, em Paris, Madrid ou nos sábados à tarde, na Travessa do Moinho de Vento, Agostinho ouvia constantemente aludir a “(...) manda que soltemos o nosso rumo por uma definição da Democracia, a qual supomos poderá ser esta: o regime dos negócios públicos fiscalizados

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pela opinião pública, e que tende a criar, por isso mesmo, iguais condições de dignidade para todas as pessoas.”29 Princípios que, afinal, iam ao encontro daquilo que quase sempre defendeu quer na sua vida intelectual, quer nas ati-tudes de carácter mais práxico.

Por volta de 1933, no início da Ditadura Salazarista, António Sérgio condena muitos dos males que afectam as sociedades não-democráticas (o caso da censura,30 por exemplo), como já o havia feito também nos tempos da Di-tadura Militar, e apela para a instauração do sistema democrático o mais breve possível: “Portanto, [creio que] basta esse teu argumento para demonstrar a necessidade da democracia – a de todas as teses da democracia.”31 Criticando, ao mesmo tempo, a religião católica por não ter sido fiel, em grande parte por culpa do sistema político, à democratização cristã (é curioso como, em 1942 e 1943, através da publicação de O Cristianismo e de Doutrina Cristã e da corres-pondência pública que surge como fruto dessas edições, Agostinho defende o mesmo do que António Sérgio)32: “O verdadeiro religioso não pode ser senão democrata. Os corolários políticos do cristianismo estão logicamente na ala da esquerda; e se há católicos da direita, são-no por infidelidade ao Evangelho, por um imenso acto de jesuitismo... (...).”33 Sérgio relaciona a democracia com a re-ligião, chegando até a aludir a uma “mística democrática”: “(...) a Democracia, porém, tem o carácter de uma religião. A «mística democrática», como disseste já. E disseste bem. Se Deus é Espírito (como afirma o Cristo) é bem por Deus que combatemos nós.”34 No entanto, para António Sérgio, a democracia assu-me-se essencialmente como fundamento político da sociedade nova (baseada no cooperativismo), que é, ao jeito de Marx, uma sociedade sem classes:

“Que é a Democracia? – É, sob o ponto de vista político, o regime em que são fiscalizados os governos pelos representantes da opinião pública, e em que os representantes da opinião pública votam as ba-ses da legislação (sob um conjunto de garantias rigorosamente de-terminadas) buscando, por aqueles meios, a progressiva igualização de todos os membros da sociedade [, a aproximação da sociedade sem classes]”.35

Por mais que Agostinho da Silva concorde com António Sérgio no que respeita à renovação nacional por meio da Educação ou da Escola, por mais que apoie o seu sistema cooperativista, por mais que se reveja no município-escolar, o que é facto é que o que mais importa é a análise agostiniana do racio-nalismo sergista que não pode ser compreendido sem estas mediações. Se, para Agostinho, o racionalismo de Sérgio não poderia ser aplicado, pelo menos nos

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tempos de então (e o ensaísta tinha consciência disso), à vida portuguesa, de outro modo, o racionalismo é o condutor ideal da ciência, da educação e até da própria metafísica. No espírito do autor de Ensaios, há lugar para um raciona-lismo metafísico (ou místico)36 que explica o englobamento do homem como ser racional. O encantado e misterioso Uno-Unificante, sobre o qual tão pouco se sabe (talvez porque Sérgio, por vezes, tivesse receio de entrar nos meandros da metafísica),37 poderá ser associado à Razão primacial, fundante e final. Na nossa perspectiva, esse Uno-Unificante é o fundo,38 é o todo do qual as partes se formam e destacam, é a única coisa que, não se sabendo muito bem o que é, limita ou está acima da criação do intelecto.39 Ou seja, é aquilo que de natureza mais divina existe no ser humano, é o eu-primário, o eu-puro, o eu-absoluto40 que unifica e universaliza o que o eu-empírico/biológico apreende. Contudo, esse eu-originário é acção, é, porventura, o instante em que, no limiar entre o eu e o não-eu, acontece o auto e o hetero-reconhecimento. Nesse momento, através do Pensamento (que, na linguagem de Sérgio, é o próprio Absoluto), o homem universaliza-se, reconhece que é um ser em relação e também que é unidade. Nesse reconhecimento, o homem alcança o seu verdadeiro ser: “Tal uno-unificante é o verdadeiro ser.”41

A doutrina racionalista de Sérgio é, no nosso entender, uma aproxi-mação ontológica42 e metafísica. Afinal, a que se refere Sérgio quando trata a Razão e o Pensamento como Absoluto? Quando apresenta o Acto do supremo pensar (transcensão do eu-empírico para o eu-puro/espiritual) como conhe-cimento do Ser e da Verdade?43 Quando afirma que esse Acto é manifestação de Deus?44 Não estará o autor, ao fim e ao cabo, a insinuar argumentos de cariz ontológico? Por mais que Sérgio tenha evitado a metafísica e a ontologia, o que é facto é que não lhes conseguiu escapar totalmente, por mais eufemista e tímido que se tenha manifestado ao longo da sua obra. A prova é que a sua concepção racionalista é matizada por aspectos onto-metafísicos. A Razão Pu-ra é uma Razão Divina:

“Quem se desprende de si e sobe à altura do Espírito, isto é, ao pensar racional, não sensível, universal, objectivo, encarando-se a si, aos demais, ao Mundo, numa visão superior que a todos eles os irmana, (...): quando um homem consegue, vos ia eu explanado, re-

montar-se ao plano do verdadeiro Espírito, – quando logra fazê-lo, afinal, que acontece? Une-se então ao divino; vê-se aí coincidindo com os demais seres humanos que realizaram também a sua ascen-são ao Espírito”45.

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O Homem é um princípio de unidade, uma centelha divina. Já que Deus não passa de Forma Pura, de Puro Inteligível, da Ideia (princípios dos quais todos os homens participam). E, embora António Sérgio não explane directamente este assunto, por meio de algumas metáforas é-nos possível ver a abordagem que o autor faz destas matérias. Assim, e através da simbologia do Menino Jesus, por exemplo, é possível antever, no seu pensar, uma ideia de Deus que se exprime como Força imanente do ser humano, tornando-o num ser racional, bom, belo, caridoso. E, curiosamente, tal como pensa também Agostinho da Silva, é através da contemplação do Menino(-Deus) que se toma consciência de que o ser humano não é mais do que um sopro divino, uma presença do sagrado na face da Terra:

“Deus – e não um deus, mas Deus - vê-se hoje na figura de um meni-no pobre, deitado e risonho sobre a palha humilde. (...) É um sopro de vida sobre um berço humilde, onde o bem das almas se concentra e jaz. (...) e digamos agora que este mundo triste só terá uns longes de esplendor divino quando a última nuvem da superstição se dissipar no cariz do alvorecer das almas, e admirarmos somente o que é For-ma pura, amplíssima caridade, aspiração sem termo (...)”.46

Se a relevância dada à acção era um ponto de entendimento entre Agos-tinho da Silva e António Sérgio, talvez o Uno-Unificante o fosse ainda mais.47

Notas1 SÉRGIO, António. Carta de António Sérgio a Castelo Branco Chaves. Madrid, 13/01/1936. In: revista da Bi-blioteca Nacional, carta 13. S. 2, vol. 4, nº 2, Lisboa: Biblioteca Nacional, Jul.-Dez. 1989, p .64: “O Agostinho deve partir de aqui no dia 20” e idem. Carta de António Sérgio a Castelo Branco Chaves, Madrid [?], 31/01/1936. In: revista da Biblioteca Nacional, carta 14. p. 65: “Chegou bem o Agostinho? Tem conversado com ele?”

2 SILVA, Agostinho da. Entrevista com Agostinho da Silva. Filosofia, nº 2, Dez. 1985 [In: ______. Dispersos. Or-ganização de Paulo Borges, Lisboa: ICALP, 1989, p. 53]: “Por mim, posso dizer que a minha segunda Faculdade foram aquelas reuniões em casa do Sérgio.”

3 SILVA, Agostinho da. Conversas Inacabadas. Com Joaquim Furtado. In: Grande Reportagem, 7 a 13 de Dez. 1984; 14 a 20 Dez. 1984; 21 a 27 de Dez. 1984; 28 de Dez. a 3 Jan. 1985; 4 a 11 Jan. 1985. [In: ______. Dispersos, p. 37]: “O Sérgio nasceu em Damão. Pois encontrámo-nos centenas de vezes e olhe que nunca me falou da Índia! Não é que quisesse ocultar... não se lembrava! Tinha sido ajudante do pai enquanto governador-geral de Angola. Também nunca me falou de Angola! Esteve um tempo exilado ou alojado no Brasil. Pois só uma vez me falou do Brasil, dizendo que o calor daquela terra é insuportável!... Ora, talvez não seja a melhor maneira de definir o Bra-sil... (...) Significa que o Sérgio não tinha nenhuma vocação portuguesa e que em lugar de pensar uma História de Portugal adaptada ao português tal qual é, e não a um português ideal que ele achava que o português devia ser, lamentava que o português não fosse cartesiano, (...)”; “Não deixa de ser curioso que os melhores historia-

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dores de Portugal – um Herculano, um Oliveira Martins, um Sérgio – tenham sido inimigos do mar e esquecidos de grande parte do Mundo e que, num País cuja história é sobretudo externa, tenham dado a maior atenção ao que por aqui se passava, às aventuras do resíduo, não às empresas do corpo.”

4 SÉRGIO, António. Carta de António Sérgio a Castelo Branco Chaves. Madrid, 1936. In: revista da Biblioteca Nacional, carta 15, p. 66: “Aparte o nosso admirável Agostinho, tenho a impressão de que a Faculdade de Letras do Porto tendeu a ser um tanque de criação de alforrecas.”

5 SILVA, Agostinho da. Agostinho, Ensine-nos. Entrevista a Lurdes Féria. In: Diário de Lisboa, 19 de Abril de 1986. [In: ______. Dispersos, p. 116]: “Um homem de inteligência clara, fortemente racionalista, apaixonado pela matemática, para a qual tinha jeito. Não procurava exercer qualquer espécie de influência... era um homem de grande carácter. Unia-nos o gosto de olhar as ideias e de as discutir.”

6 Idem, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 55: “Mesmo como pedagogo, a sua atitude tendia a ser de grande arrogância intelectual.”

7 Ibidem, p. 54: “A incrível inabilidade de Sérgio para dar cunho prático às suas ideias políticas, sociais, peda-gógicas, (...).”

8 Ibidem, p. 55: “Enfim, penso que o Sérgio não ousou afrontar os problemas filosóficos mais profundos, as questões de dúvida. Preferia manter-se nas certezas.”

9 LOURENÇO, Eduardo. Sérgio como mito cultural. In: ______. O Labirinto da Saudade. 2ª ed. Lisboa: Gra-diva, 2001, pp. 160-161: “Não só Sérgio se dava pelo homem da dúvida, como incitava os outros a cultivá-la. (...) mas tão-só uma retórica da «dúvida» que deixa intacta a segura marcha do ensaísta. A dúvida de António Sérgio é a musa que o acompanha no passeio através do jardim alheio. A sua «dúvida» – de tradição cartesiana mas já recebida como «evidência», o que lhe retira o papel inquietante que tem no cartesianismo – cai fora do horizonte em que o seu discurso tem origem e lugar.”

10 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 54: “Parece que os lugares concretos da sua vida não existiam para ele. Que onde habitava era no espaço vácuo das suas ideias.”

11 SÉRGIO, António. O Caprichismo Romântico na Obra do Sr. Junqueiro. In: ______. Ensaios. Tomo I, 3ª ed. Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1980, p. 368: “E a mim me perguntava, ante esse céu lusitano, porque se não casam os nossos dons de espírito com a graça radiosa do ambiente pátrio, como com o ar cristalino dos mares da Jónia a subtileza sem par da mentalidade helénica (...).”

12 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 53.

13 Ibidem, p. 56: “Quer dizer: tenho a impressão de que o Sérgio percebeu que naquelas andanças da filosofia eu não valia absolutamente nada, não passava de ruminações elementares, mas que era capaz de fazer coisas práticas. (...) Sérgio achava que eu, coisas práticas era capaz de as fazer, se a ocasião fosse a adequada; quanto às coisas teóricas, ele pensava por mim, e tínhamos o caso arrumado.”

14 Idem, Barca D’Alva – Educação do Quinto Império, Fascículo 2, Fundação António Conselheiro, p. 491: “(...) não temos receita alguma para os regimes jurídicos, mas vamos tanto pelas cooperativas que esta nossa secção se chamará simplesmente «António Sérgio»: cremos que está aí o ponto máximo e válido de sua acção doutrinal; (...).”

15 SÉRGIO, António. Prefácio da Segunda Edição. In: Ensaios, Tomo I, p. 43: “(...) as ideias para mim não são reflexos das coisas: são livres criações do intelecto humano, intelecto que concebo como radicalmente dinâmico, [radicalmente espontâneo] tomando a iniciativa das perguntas, a iniciativa das respostas: para mim, a própria percepção é uma criação do espírito; e a filosofia implícita nos meus escritos foi sempre uma filosofia da activi-dade pura (...).”

16 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, pp. 54-55: “Porque uma vez, falando-se de metafísica e devendo eu ter dito quatro ou cinco asneiras no capítulo, recordo-me que ele me objectou: não é bem assim, olhe que é possível, para além do racionalismo, entrar-se numa metafísica que se baseie no racionalismo.”

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17 LOURENÇO, Eduardo, op.cit., p. 163: “É que o racionalismo de Sérgio que, com mais razão ainda do que supunha, ele intitulou de místico (...).”

18 Ibidem, p. 169: “De algum modo o seu Reino foi o do impossível que ele soube apresentar como o possível, por essa passagem quase fatal que liga o ser ao dever ser. Sérgio foi um utopista.”

19 Esta expressão leonardina aplica-se ao tratamento que Sérgio faz do mundo biológico. Este refere-se, literal-mente, àquele que Leonardo Coimbra intitula de mundo cousista. Contudo, aparte das analogias, não deixa de ser curioso como António Sérgio desconsidera a teoria do professor da Faculdade de Letras do Porto.

20 SILVA, Agostinho da; SOUSA, Antónia de. O Império acabou. E agora? – diálogos com Agostinho da Silva. 2ª ed. Lisboa: Editorial Notícias, 2000, p. 180: “É o regime em que um manda, mas há várias maneiras de mandar. Então a monarquia portuguesa na Idade Média, ao que me parece, era mono árquica, mas quem mandava pro-priamente não estava mandando, estava coordenando a vontade dos outros.”

21 LOURENÇO, Eduardo, op. cit., p. 168: “As raízes do pensamento sergista não são da ordem filosófica, mas política e social. A filosofia coroa e justifica uma opção e uma visão mais radical, alicerçadas ambas numa certa ideia do destino português e, em particular, da evolução espiritual lusíada”; vf. SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 53.

22 LOURENÇO, Eduardo, op. cit., p. 166: “Em suma, António Sérgio não teve verdadeiros contraditores ou, pelo menos, pensadores de paralela envergadura capazes de estruturar o seu propósito nos moldes aliciantes e convincentes de Ensaios.”

23 SILVA, Agostinho da, Entrevista com Agostinho da Silva, p. 53: “Ele estava sempre a abrir novas avenidas, fossem os seus projectos revolucionários, fossem os projectos pedagógicos, fosse algum trabalho que andasse a fazer, (...)”; LOURENÇO, Eduardo, op. cit., p.167: “Em si mesma, a filosofia de Sérgio nem é uma filosofia fácil, nem da facilidade.”

24 Pouco tempo depois, em 1940, no Caderno de Iniciação História da Holanda, Agostinho da Silva demonstra já ter tido contacto com a obra de Espinosa.

25 SILVA, Agostinho da. Pensamento à solta. In: ______. Textos e Ensaios Filosóficos II. Organização de Paulo Borges, Lisboa: Âncora Editora, 1999 p. 146.

26 SÉRGIO, António. Educação e Filosofia. In: ______. Ensaios, Tomo I.

27 Ibidem, p.133.

28 SILVA, Agostinho da. A Religião Grega. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1930 [In: ______. Estudos sobre Cultura Clássica. Organização de Paulo Borges, Lisboa: Âncora Editora, 2002, p. 186].

29 SÉRGIO, António. Da Opinião Pública e Da Competência em Democracia. In: Ensaios, Tomo I, p. 232.

30 Idem. Diálogos de Doutrina Democrática. In: Democracia – Diálogos de Doutrina Democrática, Alocução aos Socialistas, Cartas do Terceiro Homem. Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Go-dinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1974, p .5: “Concordo que a censura é uma instituição defeituosa, injusta, por vezes, sujeita ao livre-arbítrio dos cen-sores, às variantes do seu temperamento, às consequências do seu mau humor. (...) A censura também pode ser apaixonada, por ser humana, e significará sempre, para quem escreve, opressão e despotismo.”

31 Ibidem, p. 5.

32 SILVA, Agostinho da. Carta ao Exm.º Sr. do “Aléo”, 18/05/1943 (Arquivos da Associação Agostinho da Silva): “(...) para mim, os católicos não são adeptos de Cristo, são adeptos da Igreja; aquilo a que se chama cristianismo não é nada o cristianismo dos Evangelhos”; idem. Carta ao Exm.º Sr. de “As Novidades”, 22/04/1943 (Arquivos da Associação Agostinho da Silva): “(...) inegável deturpação que a Igreja Católica fez da doutrina de Cristo; (...)”; idem. Carta ao Exm.º Sr. Professor Padre Raul Machado, 2/05/1943 (Arquivos da Associação Agostinho da Silva): “(...) Igreja e Cristo contradizem-se, o catolicismo é um desvio completo de o cristianismo.”

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33 SÉRGIO, António, Diálogos de Doutrina Democrática, p. 19.

34 Ibidem, p. 75.

35 Idem. Democracia. In Democracia – Diálogos de Doutrina Democrática, Alocução aos Socialistas, Cartas do Terceiro Homem, p. 87.

36 SILVA, Agostinho da. Fontes e Pontes do Futuro. Tema: Educadores portugueses – António Sérgio. Vida Mundial. Lisboa, 18/08/1972, p. 50: “(...) a que António Sérgio chamava de misticismo racionalista, (...).”

37 SÉRGIO, António. Um problema Anteriano, Diálogo na Praia. In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Pro-blemática e outros textos filosóficos. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, p. 274: “Pergunto-me se não prolongas para regiões metafísicas o que foi simples análise de reflexão em mim. Mas estás acaso no direito de fazer como fazes. Não devo objectar.”

38 Ibidem, p. 272: “Só pela relacionação a percepção é possível, e um termo só existe pela relacionação com ou-tro, – ou, antes, com o resto de um todo de que se destaca o termo, e que constitui o seu «fundo», – no sentido da palavra com que o pintor a emprega. (...) Tudo quanto existe está em relação com um «fundo», – com o restante de um todo de que forma parte; (...).”

39 Ibidem, pp. 272-273: “(...) alguma coisa, apesar de tudo, existe, que limita a liberdade das criações do intelec-to: mas isso não faz parte da consciência nossa, como um dado absoluto que se nela insira.”

40 Ibidem, p. 275: “(...) Eu absoluto – ao princípio da unidade do nosso ser e do Mundo, da nossa pessoa e dos outros.”

41 Ibidem, p. 274.

42 Tendemos a concordar com os críticos que apontam neste sentido. Citamos, a título de exemplo, a defesa que António Pedro Mesquita faz acerca do ideário ontológico de Sérgio. Vf. MESQUITA, António Pedro. Aspectos do ideário sergiano em ontologia. In: SÉRGIO, António. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos, pp. 9-55.

43 SÉRGIO, António. Um problema Anteriano, Diálogo na Praia, p. 283: “(...) no interior de nós é que se aposenta a verdade, o Acto-Deus que é o seu foco (...).”

44 Ibidem, p. 283: “(...) por isso mesmo que a verdade é uma criação de quem pensa, graças à espontaneidade radical inventiva, ao dinamismo gerador que caracteriza o intelecto, e em que Deus está presente.”

45 Idem. Perante a inexistência de uma Civilização Cristã. In: ______. Notas sobre Antero, Cartas de Problemática e outros textos filosóficos, p. 293.

46 Idem. Sobre Cristianismo e Cristãos, Verdadeiros e Falsos – 8. Diante de um presépio. In: ______. Ensaios. Tomo VI, Edição crítica de Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; org. Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira, Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 212.

47 Não deixa de ser curioso o facto de Sérgio dedicar precisamente a Agostinho da Silva um dos textos em que mais desenvolve este tema (Um problema anteriano).

ResumoUm dos principais pontos do pensamento metafísico de Agostinho da Silva é o raciona-

lismo-místico. Na sua obra, tal categoria surge como herança do interesse pelos místicos

espanhóis (sobretudo por Santa Teresa de Ávila e por São João da Cruz) e pela filosofia

de António Sérgio. Contudo, é esta última que interpela Agostinho da Silva a postular um

princípio gnosiológico que se caracteriza, simultaneamente, por aspectos de racionalidade

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e de misticismo. Em último caso, é um ponto de extra-racionalidade e de extra-emotivida-

de que dialoga com o conceito de Uno-Unificante de António Sérgio.

Palavras-chave: Agostinho da Silva; António Sérgio; Gnosiologia/Epistemolo-

gia; Racionalismo-místico; Uno-Unificante.

AbstractOne of the main points of Agostinho da Silva’s metaphysics is mystic-rationalism. In his

work, this category is a legacy of the Spanish mystics (mainly Saint Teresa of Ávila and

Saint John of the Cross) and of António Sérgio’s philosophy. However, it is the latter that

prompts Agostinho da Silva to postulate a gnosiologic principle which is characterized,

at the same time, by rationality and mysticism. This topic is ultimately a type of extra-

rationality and extra-emotionality which dialogues with the concept of Uno-Unificante

by António Sérgio.

Keywords: Agostinho da Silva; António Sérgio; Gnosiology/Epistemology; Mystic-

Rationalism; Uno-Unificante.

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Agostinho da Silva, em sua mesa de trabalho, no Centro de Estudos Afro-Orientais. Salvador, Bahia, entre 1959 e 1961.

Foto, ao que tudo indica, tirada pelo artista plástico Lênio Braga, para que lhe servisse de modelo na realização do retrato a óleo de Agostinho da Silva que ainda hoje se encontra na sede do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade da Bahia, do qual Agostinho da Silva foi Fundador e primeiro Diretor.

DOCUMenTOS

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Antologia Comemorativa

nota prévia

Publicados entre os anos 1940 e 1980, em periódicos de Portugal e do Brasil, os textos selecionados para compor esta pequena mas representativa antologia comemorativa compartilham o fato de não terem sido republica-dos, a despeito da relevância que comportam na concrescência do poliédrico pensamento de George Agostinho Baptista da Silva (1906-1994). Igualmente a vários outros títulos de sua extensíssima obra, permaneceram sob as camadas de tempo com que o passar das horas lhes foi lentamente recobrindo; reco-brindo, por um lado, posto que, por outro, recobrando. Seu público leitor já não é mais o mesmo, quer porque já não vive, quer porque já não lembra, quer porque não fosse ainda nascido, física, intelectual ou sensivelmente, deles, hoje, pois, não tendo ou recordação ou conhecimento. Eis a novidade do an-tigo. Gradualmente recobertos pelo olvido, foram estes textos proporcional-mente recobrando a face do ineditismo.

Trata-se de alguns dentre os escritos que vieram sendo garimpados, nos últimos anos, no contexto de pesquisa realizada para o desenvolvimento dos nossos estudos sobre a vida e a obra do autor, e que, atualmente, integram o acervo da Associação Agostinho da Silva enquanto parte do Projeto Agosti-nho da Silva: Estudo do Espólio, abrigado por esta Associação e pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, como amparado pelo alto patrocínio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Com uma equipe formada pelos dou-tores Renato Epifânio, Ricardo Ventura, Romana Valente Pinho e Rui Lopo, além de nós, e coordenada pelo Professor Dr. Paulo Alexandre Esteves Borges, semelhante Projeto tem como escopo primeiro a classificação e transcrição do espólio de Agostinho da Silva, que se encontra em ambos os lados do Atlân-tico, em Lisboa e Salvador majoritariamente, embora também com muitos elementos dispersos por outras cidades de Portugal e do Brasil.

Sendo assim, constitui-se esta antologia numa amostra de alguns dentre tantos outros importantes textos deste pensador luso-brasilei-ro que vêm sendo inventariados e digitalizados no seio do referido Projeto, cujo escopo segundo é a publicação e cada vez maior divulgação de uma obra que tem sido objeto de crescente interesse em todo o mundo lusófono, mas não só, tal como os recentes colóquios, acerca desta obra, realizados nas Uni-

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versidades de Santiago de Compostela (em Outubro de 2006), Charles-de-Gaulle – Lille 3 (em Novembro) e Paris x Nanterre (em Fevereiro de 2007), vieram a demonstrar. Amostra que figura aqui à guisa de módico contributo às iniciativas que têm convergido no sentido de presentificar, com olhos postos no futuro, o considerável legado intelectual e ético-político de Agostinho da Silva, como os de outros intelectuais portugueses que, no século passado, tão significativamente contribuíram para o adensamento da nossa miscigenada cultura luso-afro-brasileira. Afinal, não conformaram eles, no dizer de Anto-nio Cândido, uma não planejada, tácita, virtual e livre “missão portuguesa”?

Originalmente publicados em espaços nacionais e em épocas diferentes, conforme inicialmente dito, os textos de Agostinho da Silva que se seguem apre-sentavam, naturalmente, variações ortográficas, que uniformizamos, atualizan-do-as consoante as normas vigentes no Brasil. Quanto à forma de ordenação, como se verá, resolveu-se adotar uma disposição cronológica, por ser a mais apropriada ao caráter da presente edição. Por fim, não posso deixar de registrar aqui, por um lado, uma palavra amiga de agradecimento a Roberto Pinho, pe-la notícia do artigo O problema das penínsulas mediterrâneas, e aos colegas da mencionada equipe de investigação, que generosamente colaboraram conosco na transcrição destes dez escritos do autor da Reflexão à margem da literatu-ra portuguesa: Renato Epifânio, Ricardo Ventura, Romana Valente Pinho e Rui Lopo. Por outro, uma palavra franca de congratulação e de reconhecimento ao Real Gabinete Português de Leitura, nas pessoas do seu Presidente, Dr. Antonio Gomes da Costa, e da Coordenadora-Geral do Pólo de Pesquisas sobre Relações Luso-Brasileiras, Professora Dra. Gilda Santos, pela honrosa iniciativa de publi-car, em comemoração ao centenário de nascimento do homem de idéias e de ação que foi Agostinho da Silva, este número especial da Convergência Lusíada: revista que, fazendo jus ao seu auspicioso nome, tanto tem contribuído para o aprofundamento e incremento do imprescindível diálogo cultural luso-brasi-leiro, para o qual, ele, Agostinho, dedicou empenhadamente parte substantiva e fundamental da própria vida.

Amon Pinho (seleção e organização)

Antologia Comemorativa nota prévia

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Filosofia nova

SILVA, Agostinho da. Filosofia Nova.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 16 Fev. 1947.

O primeiro grande trabalho filosófico realizado pelos gregos foi o de demonstrar que é impossível uma explicação materialista do universo; ape-sar do gênio de todos os pensadores que hoje se englobam sob a designação de pré-socráticos, não se pôde evitar a crise sofista do século V; uma con-cepção materialista pura, perfeitamente lógica, e os gregos eram demasia-do inteligentes para a não saberem construir, suprime todos os motivos de ação; e foi talvez a falência na ação, com todas as desordens conseqüentes no campo da moral e da política, que, apesar das aparências, levou Sócra-tes e os seus discípulos a reagir contra o espírito geral da filosofia anterior; de resto, mesmo no plano puramente filosófico, bastariam as aporias de Ze-não para que se tivesse de enveredar pelo caminho da explicação idealista. No entanto, os filósofos pré-socráticos conseguiram dar direito de cidade, estabelecendo-a com firmeza, a uma atividade não pragmática, pelo menos nos pontos de partida; por outro lado, puseram claramente que nenhuma concepção filosófica se pode aceitar se não é bastante ampla para compre-ender todo o fenômeno, bastante exata para que não haja a mínima incoe-rência lógica, bastante simples para que apareça como a expressão de uma realidade irredutível.

Toda a tarefa de Sócrates, de Platão, de Aristóteles mesmo, consistiu em refazer o trabalho filosófico anterior, mas no campo do espírito; a divindade misteriosa de Sócrates, o Supremo Bem de Platão, o Deus motor e imóvel de Aristóteles são, no plano da idéia, o que eram a água de Tales ou o fogo de Heráclito; apesar de todas as falhas, que vêm, porventura, menos do próprio pensamento dos autores do que da perda de certos textos e da incompreensão ou fantasia ou concepções próprias dos comentadores, o edifício da filosofia grega a que poderíamos chamar clássica ficou solidamente assente na idéia de que a inteligência humana é centelha da inteligência divina; o universo é inte-ligível e está dentro de nós a chave do perfeito entendimento; não é impossível que cheguemos, pela razão, à ciência sem obscuridade, tal como Deus a teria, e, pela ciência à virtude, e, pela virtude à paz interior, ao eudemonismo que foi sempre, sob as aparências otimistas da sua cultura, a principal preocupação

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dos gregos. Pelos meados do século IV, assegurara-se a vitória da inteligência: pareciam abertos todos os caminhos do futuro, afastados para sempre todos os terrores do espírito e da carne, as opressões teocráticas, a ciência destinada a puras técnicas das civilizações do Próximo Oriente.

Mas, embora poesia e misticismo nunca tivessem estado ausentes de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, sobretudo dos dois primeiros, e a inte-ligência de que falavam não fosse apenas uma máquina de raciocinar, mas uma perpétua criação, embora também se pudessem tirar das suas metafísicas todas as regras de moral prática, todas as fórmulas de relação de homem a ho-mem, é certo que o lado intelectual se acentuara com toda a preferência. Ora pareceu, a partir da época de Alexandre, que faltava, nas grandes construções anteriores, a fé que ampara nas crises do indivíduo e da história, o amor que impede o tornar-se cada um torre orgulhosamente solitária de inteligência e de saber, a simplicidade que permitiria, mesmo aos mais rudes, uma norma de vida. Estoicismo e epicurismo foram, de certo modo, uma tentativa de in-clusão, mas nem a razão construtiva nem a simpatia humana foram bastante poderosas para atingir o seu objetivo.

Plotino chegou mais longe e com ele os neoplatônicos: mas, todo o ceticismo à sua volta, toda a estéril discussão das escolas em que só o nome era grande, indicavam que a revolução tinha de ser mais profunda, e tão profun-da que pareceria se porem de parte o gosto e a necessidade de compreender, porque tudo pudesse surgir como um ímpeto de amor. É um tempo de crise, de incerteza, de desvario, de escritos efêmeros, de visões fragmentárias, e só aparece terra firme quando os padres da Igreja, passado já o período em que o cristianismo fora puro amor, começam elaborando uma teologia; uma divin-dade que até aí somente se sentira precisa agora de ser demonstrada; é a busca ansiosa das provas da existência de Deus, das possibilidades de harmonizar a ciência e a fé; todas as batalhas de ortodoxos e de hereges, em concílios, em sermões, em tratados, ou em intrigas de palácio ou em lutas campais, nada mais são do que o esforço doloroso de um acertamento que se considerava essencial: não podia ser abandonado o que o espírito humano ganhara com os gregos; Deus não é só amor mas também inteligência.

Toda a alta Idade Média é, por aí, um dos momentos mais dramáti-cos da história humana; por fim venceu-se, embora a vitória, alcançada tal-vez num prazo mais curto do que seria necessário, tivesse sacrificado Platão a Aristóteles e feito secar muitas das sementes de vida nova que o cristianismo tinha trazido consigo; mas não importa: com a Suma, Deus é demonstrável; só em palavras é agora a filosofia uma simples ancila da teologia: na realidade,

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vão estreitamente ligadas. A muralha de defesa era perfeita: juntavam-se para proteger os homens as Catedrais de que fora a primeira um outeiro dos arre-dores de Jerusalém e as Universidades, que tinham como origem remota um jardim dos subúrbios de Atenas.

Se, porém, havia a razão e a fé que se abrigam no íntimo do homem, faltava o mundo que o circunda; e o mundo chegou com os descobrimentos portugueses e espanhóis, um mundo como nunca o tinham sonhado os filó-sofos antigos e os teólogos medievais: eram só fatos o que traziam os navega-dores, e os fatos abriam brechas irreparáveis no edifício escolástico. É a segun-da grande crise do pensamento ocidental: novamente aparecem os céticos e os investigadores de minúcias e os que simplesmente descrevem, ou então os místicos em que a religiosidade é apenas uma forma de fugirem aos proble-mas que a vida levanta à sua volta: os medievalistas defendem as suas posições com o ardor com que se tinham batido outrora os pagãos do tempo de Celso; mas estes lutavam pela sobrevivência da razão, ao passo que os escolásticos batalham pela sobrevivência da fé; a razão não está em perigo sério: um pouco mais tarde fará bom pacto com a realidade por intermédio de Bacon e Descar-tes e assegurará inteiramente a sua posição com Leibniz e Kant: para a fé abre-se uma época de apagamento; apenas na Espanha a mística floresce, ausente, porém, da razão e do mundo físico, divorciada da crítica. Só um peninsular também, mas educado em pleno centro de reflexão intelectual, pôde unir to-dos os elementos que pareciam discordes por sua própria natureza: a filosofia de Spinoza vai para além do seu tempo e mesmo para nós, Spinoza é ainda um filósofo do futuro; para todos os outros, a tarefa foi plenamente a da época: organizaram a ciência e, pela ciência, organizaram a sociedade, como na Idade Média a tinham organizado pela fé religiosa.

Simplesmente, assim como o misticismo que irrompe nos últimos tem-pos do mundo antigo tem as suas raízes na Grécia clássica, assim como o inte-resse pelo mundo natural principia antes de ter largado para o mar o primeiro barco português, também a Europa dos séculos XVII e XVIII tem em si os ger-mes do que depois se afirmará como força de combate: as concepções religiosas, qualquer que seja a sua confissão, recusam-se a morrer e afirmam a existência de um mundo mais vasto que o da ciência experimental; a arte reclama, por exemplo com Brueghel, com Bosch, e até Rembrandt, domínios que a razão parece repelir; e, com maior ímpeto de batalha, as modificações econômicas trazidas pelos descobrimentos lançam ao assalto do poder uma nova classe e abalam toda a estrutura do absolutismo real; vai principiar uma revolução que ainda não terminou e que irá muito mais longe do que geralmente se supõe.

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É a terceira época de crise e é a nossa: a primeira marcou para os filóso-fos a obrigação de pensarem a fé; a segunda a de pensarem a ciência; a terceira vai obrigá-los, segundo parece, a um esforço mais vasto. Os trabalhos filosófi-cos que hoje se publicam revelam quase todos o medo que toma os pensadores de encararem de frente o que há a fazer: foge-se então, ou para questões sem importância, ou para sistemas que são cômodos porque permitem fingir que se pensa; uns são existencialistas, outros inclinam-se à fenomenologia; há os empiristas e há os lógicos; há os neo-escolásticos e há os que se entusiasmam pelo princípio de incerteza, introduzindo por aí na ciência um misticismo de, pelo menos, terceira ordem; há os espiritualistas, que aboliram para a grande massa o direito de comer, e os materialistas, que aboliram para todos o direito de pensar. Tribos inteiras, que se digladiam com furor, ou se prostram céticas, ou se refugiam numa fé que não têm.

E, no entanto, o espírito humano tem de vencer, como venceu com Santo Agostinho e S. Tomás, como venceu com o Novum Organum ou o Dis-curso do Método; tem de incluir, numa síntese mais vasta que todas as sínteses tentadas até hoje, a inteligência que venceu todas as provas, desde que a expe-rimentou o velho Tales, mas uma inteligência imaginativa, criadora, bem lon-ge da caricatura de Taine: o mundo religioso, que foi o de S. Francisco, o de S. João da Cruz, o de George Fox, o de Wesley, mas despido inteiramente de todo o limite confessional; o mundo de instintos ou de tendências fundamentais que a psicologia moderna trouxe a lume; o amor do corpo, como nem mesmo os gregos o tiveram, um amor tão grande que finalmente se respeite o corpo e se chegue à pureza dos santos sem as suas mutilações; uma ciência renovada por um conceito mais amplo de causalidade; uma sociedade economicamente livre, e livre também para as aventuras do espírito; uma arte a que estejam abertas todas as portas, e tão intimamente ligada à vida que só haja para o artista uma regra, a de ser um homem pleno; finalmente, uma metafísica que, sendo nos processos uma ciência, seja no espírito uma teologia, e, pelo que respeita às relações humanas, uma forma de vida.

Creio, por mim, que o fará; mas que o vai fazer na própria vida: não teremos desta vez páginas de livros, mas tipos humanos: o que vai dar uma oportunidade única a povos para os quais foi a vida sempre o mais importan-te: China, Índia, Península [ibérica], América do Sul.

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O Problema das Penínsulas Mediterrâneas

SILVA, Agostinho da. O Problema das Penínsulas

Mediterrâneas. Kriterion, revista da Faculdade de Filosofia da

Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, n.os 29 e 30,

julho a dezembro de 1954, pp. 235-248.

I

O livro de Carlo Levi, Cristo si è fermato a Eboli, ficará certamente co-mo um dos mais notáveis da moderna literatura italiana, se não tomarmos a expressão no seu sentido mais estrito. Efetivamente, analisada a obra sob o ponto de vista puramente estético, não lhe daremos nem grande pureza nem grande segurança. A forma, voluntariamente posta como um misto de ensaio, de memórias, de invenção poética e de dissertação social, prejudica um pouco a harmonia do conjunto; por outro lado, facilmente, mas não freqüentemente, se expõe Carlo Levi aos perigos de um lirismo demasiado convencional e visto.

E, se quiséssemos alongar a lista dos defeitos, ainda falaríamos da ex-cessiva contribuição do pintor, que também o é Levi, à sua obra de escritor; tal como há pinturas que o não são na realidade, mas sim desenho colorido ou escultura, assim há prosa que é verdadeiramente arte plástica: de vez em quan-do, na atenção aos traços fisionômicos das personagens ou às grandes massas do fundo paisagístico, o pintor trai o escritor.

É certo que o defeito se converte em muitos pontos numa real quali-dade: basta recordarmo-nos das caracterizações de Gagliano e de Matera e do carnaval de aldeia como das melhores páginas do livro. Ou, em mais sutil qua-lidade, do ponto brilhante que a mosca voando deixa, sob a grande claridade do “paese”, entre a infatigável e inesgotável turma de moscas. Aqui, porém, não está o maior mal que pode vir a um pintor e escritor: o mais grave é que as pinturas serão quase sempre, por seu turno, de caráter literário.

Seja como for, o livro de Carlo Levi, tomado no conjunto, representa, além do que veremos mais adiante, um súbito caminho de saída para a literatura chamada neo-realista que tomou, nos países de pauperismo, e perdendo em arte, todas as preocupações de reforma social, ou de piedade (raras vezes) ou de esta-

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tística, ou de panfleto (quando existe censura), que levam a confusões de gênero ainda mais graves que as de pintura e literatura. O desespero da condição huma-na, que é porventura o ponto central de toda a arte, não deve ser compreendido como o desespero ante as condições físicas ou jurídicas, que são remediáveis, e advêm não de estruturas do ser, mas dos acidentes da história, o que, no entanto, não quer dizer que se não inclua a história naquilo a que poderíamos chamar as fatalidades do ser. Neste último caso, como a história é essencialmente tempo e espaço, só o ato místico poderia, abolindo-os, dar solução a todo o problema, e então, por inclusa, como que extinguiria a arte.

Retornando, porém: o neo-realismo chegou a um altura de seu ca-minho em que a solução não é de caráter literário, mas político; feitas as reformas necessárias, qualquer que lhes seja circunstância e o nome, o mo-tivo central do romance neo-realista terá desaparecido; e com ele uma arte que tem sido quase sempre extremamente ruim. Ora, a primeira idéia que Levi nos deixa quanto ao assunto é que a forma de exposição tem sido mal escolhida: o que se justificaria como exposição de motivos, ou como estudo de sociologia, ou como trabalho de memorialista, tem sido, pela restrição de liberdades, nalguns pontos, noutros por moda, feito em jeito de história, de romance, que é tradicionalmente ação, movida no essencial por molas inter-nas ou análise de sentimentos.

Nem uma nem outra se encontram em geral no romance neo-realista. Carlo Levi deliberadamente se mete por outro rumo: o seu livro é, na estru-tura basilar, um relatório da estada de um desterrado político numa aldeia do “mezzogiorno” italiano. As personagens, que seriam irreais num romance – e é o que acontece quase sempre no livro neo-realista – são perfeitamente justas, vivas e firmes nos lineamentos da memória. Não vêm até nós representar o papel que o autor lhes distribui: elas se impõem como vida a quem as vive.

De certo modo, a literatura de Levi corresponde exatamente ao jeito realista do grande filme italiano: quando em Roma cidade aberta ou nos La-drões de bicicletas, ou no Arroz amargo joga, por aí assegurando a sua vitória sobre o cinema americano, com a gente real e não com os profissionais do estúdio. E até para épocas pretéritas: como quando, com o afastamento e certo cinismo que convêm a um bom realista, nos traz, com esforço maior, a vida de uma época e juntamente a idéia que essa época teve de sua vida: o que é o caso de filmes como Le due orfanelle ou La portatrice di pane.

É seguro, porém, que não veremos nesta primeira invenção o maior mérito de Levi; ele foi muito mais longe do que isso. Como dissemos, a im-pressão com que se fecha um romance neo-realista é a de que bastará uma

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reforma social para que tudo se resolva: a coletivização de fábricas, a supres-são da agricultura industrializada em mãos de latifundiários ou o tratamento técnico das zonas áridas tornariam sem sentido os problemas postos pelos autores. De um modo mais geral e naturalmente esquemático, poderíamos di-zer o seguinte: um socialismo quanto possível liberal, ou um liberalismo sem capitalismo, marcaria a inauguração de um paraíso na terra.

Em primeiro lugar, haveria que discutir a vasta questão de saber até que ponto são compatíveis, nos planos da pura existência neo-realista, a plani-ficação exigida pelo socialismo e a liberdade do indivíduo; em segundo lugar, se o socialismo, além de resolver problemas econômicos, faz qualquer outra coisa que não seja deixar a mente livre para tentar a resolução dos outros.

Quanto a este último assunto, conviria, cremos nós, fixar o espírito em dois fenômenos para os quais se não pôs ainda uma explicação plena: um é o da inquietação íntima em que vivem países que resolveram quase por comple-to as questões de organização econômica; nas terras escandinavas, por toda a parte apontadas como modelos, bebe-se mais do que em qualquer outro lugar do mundo, e mais se beberia se não houvesse as medidas restritivas do gover-no, o que é uma estranha forma de cultura e liberdade; joga-se desenfreada-mente; não há interesse real por coisa alguma; põem-se os preços nos objetos que se enviam de presente para que fique bem marcado o grau de estima; e a taxa de suicídio atinge um nível a que se está longe de chegar mesmo nos países em que existem as várias formas de escravidão e degradação humanas muito justamente denunciadas pelos neo-realistas. O outro ponto que parece importante é o seguinte: a literatura neo-realista atingiu o seu máximo de sig-nificação em regiões como a Itália, a Península Ibérica e a América do Sul.

Haveria que tratar aqui do problema tal como ele se põe para os Es-tados Unidos: efetivamente, não se nos afigura que se labore no mesmo caso. A literatura neo-realista dos Estados Unidos deve marcar acima de tudo o de-sespero do homem aprisionado nas suas próprias técnicas, devido ao sistema econômico que lhes subjaz e que é também afinal uma técnica de produção. O verdadeiro conflito em que se debate a América do Norte é o do choque entre uma energia criadora, das mais poderosas que têm surgido na terra, e as redes que, pelas origens protestantes, a comunidade americana lançou sobre si mesma; tão forte o vezo, que o próprio catolicismo nos Estados Unidos se está tornando protestante: porque a idéia de êxito e poder o está levando a pôr de lado a de caridade e fraternidade; ou, em resumo, a de justiça, como a entendia o próprio Cristo.

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II

Creio ter sido a Montessori quem pela primeira vez chamou a aten-ção sobre o fato de as crianças viverem num mundo que foi em todas as suas formas construído para adultos, o que lhes dá a elas uma contínua impressão de esmagamento ou pelo menos de prisão. Os fechos das nossas portas estão colocados à altura que serve para nós, e à nossa estatura estão acomodadas as cadeiras em que nos sentamos. E o grande mérito da educadora italiana, embora em muitos pontos tenha substituído um sistema artificial por outro sistema artificial, está exatamente em ter reclamado e conseguido que fossem colocadas as crianças num ambiente à sua medida verdadeira.

É evidente que foi este o caminho certo: mas poderia, no momento em que a questão se teve de decidir, ter surgido outra idéia: a de que a raiz do problema estava exatamente em aperfeiçoar o que já havia para os adultos; talvez tornar mais simples e mais seguros os fechos das portas, sempre na mes-ma altura, talvez introduzir com mais amplitude nos ambientes domésticos as invenções da técnica moderna, sempre, no entanto, para adultos. Mas hoje, quando a linha de vitória se inclinou para as idéias da pedagogia moderna, é fora de dúvida que uma tal proposta nos pareceria absurda e fora do próprio campo da questão.

Ora o problema das populações rurais da Itália e, por extensão, das pe-nínsulas mediterrâneas, se encontra, segundo as idéias de Levi, e é este o fulcro do livro, numa posição semelhante àquela em que se encontrava o problema da criança. Sem cair no exagero de supor para o camponês mentalidade dife-rente da do citadino, a exemplo do que, em certas escolas sociológicas, se fez para o primitivo, parece a Levi que os cuidados da agricultura ou do pastoreio levam o homem ao interesse pelo local, pelo que está dentro do seu horizonte, pelo pouco, ou muito, que poderá percorrer na sua jornada de marcha.

A linha de céu e terra é para o camponês um limite, fronteira de seu mundo e sua vida; para o homem que fez as cidades, à volta de portos de mar ou de pousos nas estradas de comércio, o horizonte constitui, pelo contrário, a perpétua atração do descoberto; é o que está para lá que lhe interessa. Para quem vive fixado à terra, o vasto mundo se povoa de fantasmas e perigos; quem está do outro lado da divisa é inimigo: pelo menos se olha com descon-fiança; e, se acaso se revelou bom, como no livro acontece, todo o desejo é de que jamais torne a pisar a linha fatal.

Ora o que sucede é que as alavancas da política, do progresso técnico e das reformas se encontram precisamente para além do horizonte; de um modo

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geral, tudo quanto vem das capitais é para o camponês, ruim, mesmo que esteja incluso no que lhe trazem um real melhoramento das condições de vida: a luta que nos países socialistas se dá continuamente entre o que poderíamos, sim-plificando, pôr como o operário de um lado e o camponês do outro, não tem nenhum significado senão esse.

A primeira reação é de batalha; e todos sabemos como o conflito tem deixado seu profundo sulco de amargura e de ressentimento; e como, por con-seqüência, certos regimes adotaram formas de violência que de nenhum mo-do, pelo menos teoricamente, o socialismo implica. Entre o mundo local do camponês e o largo mundo estatal o clima é de luta; a reforma gizada pelos políticos e aplicada a partir de um poder central choca-se com os costumes, os gostos e os jeitos da mentalidade das aldeias; e a verdadeira voz do camponês, o seu anseio mais profundo perde-se por completo, continua esmagado pelos séculos, surgindo como única solução a industrialização da agricultura, o que é econômica, biológica e humanamente errado, e o extermínio.

Este é, porém, no que se refere ao problema rural de países como a Itália ou Portugal ou Espanha, o vício fundamental de todos os partidos, de todas as reformas apregoadas ou propostas; quaisquer que sejam a forma e a situação do Estado, ele representará sempre para o camponês uma potência de ocupação, potência que, quaisquer que sejam os benefícios que possa trazer, se apresentará sempre como inimiga, tanto mais que as obras se acompanham do inevitável cortejo de funcionários, de exatores fiscais, de autoridades e polícia.

Do cortejo do domínio e de uma espécie de imperialismo nacional, mais antipático do que o outro porque se exerce, adentro das fronteiras, por homens que falam a mesma língua e se pretendem da mesma pátria. Quando o não são, de fato: porque para o Camponês a pátria não é a Itália, nem Portu-gal, nem a Espanha: a pátria é a sua aldeia e, às vezes com dificuldade, a aldeia vizinha. A poderosa pátria das árvores que viu crescer, de seus amigos, de suas festas, terras e cachorros; pátria das horas iguais que vigorosamente vão plas-mando sua personalidade e lhe dão a força e a paciência de suportar a si pró-prio e aos outros; pátria das cores do solo e não a pátria das cores do mapa.

Há uma reflexão que escapou a Carlo Levi e que seria interessante fazer-se: a de que os três povos ou grupos de povos de que tratamos foram grandes exatamente nas épocas em que se conseguiu encontrar um equilíbrio perfeito entre o particularismo rural e a autoridade central: é a Itália dos mu-nicípios e a Península dos forais; é mais o punhado de pequenas nações do que a nação inumana que destrói a particularidade, a iniciativa e a compartimen-tação do mundo à nossa medida; é a força do soldado romano que vem servir

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seu tempo com o exército e regressa depois à terra que possui; é as assembléias de Toledo e é as cortes portuguesas, de vigorosas e fiéis atitudes entre os fidal-gos e o Rei.

Mas o cesarismo romano, de caráter oriental, e o cesarismo peninsu-lar, que vem com o renascimento do direito romano e as lições de Maquia-vel, desfazem a delicada e ao mesmo tempo seguríssima trama de vida que se conseguira criar: e, para a Itália, desde os primeiros generais com exército permanente, para a Península, desde a invasão de uma Roma imperial renasci-da, o que houve foi a ocupação: ocupação de tropas estrangeiras, ocupação de chefes estrangeiros, ocupação de idéias estrangeiras.

No Cristo si è fermato a Eboli, e o título indica bem quanto popula-ções cristãs estão sofrendo um domínio pagão, levanta-se o problema, mas não se propõe remédio algum; mas há, e fortemente, a sugestão do que se teria de fazer.

Em primeiro lugar, descentralizar. Enquanto países de tipo mediterrâ-neo, e aqui incluo os da América do Sul, estiverem em regime de centralização, haverá na Terra, qualquer que seja o liberalismo das constituições, a capacida-de de crítica da imprensa e a segurança do indivíduo, um lugar em que existe a opressão do espírito real, que é a mais terrível de todas, porquanto significa a morte, não só do que informa o nosso tipo atual de civilização, mas a destrui-ção de tudo o que se poderia criar de não visto no mundo.

Talvez com um regime centralista se assegurasse a unidade de Roma, mas não se teriam lançado as bases de helenização do mundo mediterrâneo; talvez com um regime centralista se tivesse tornado a Península uma forte potência, mas não teriam surgido nem catalães nem portugueses. Descentrali-zação e autonomia devem estar na primeira linha de combate para homens do tipo dos de Levi; no fundo, e como o está demonstrando a notável experiência da Índia atual, o trabalho de verdadeira reforma tem de ser feito, não para os camponeses, mas pelos camponeses, com os camponeses.

E exatamente como não é um Estado Italiano quem faz o primeiro surto de Roma ou, séculos depois, o breve intervalo das Repúblicas, bem significativas, apesar de se basearem no comércio; como não é o Estado Ca-talão, mas os marinheiros catalães, que tomam a iniciativa de descobrir; co-mo, sobretudo, não é o Estado Português, mas a Ordem de Cristo, quem faz os descobrimentos fundamentais; também não são organizações de caráter estatal que poderão lançar as bases de uma vida nova.

Aqui, a associação particular, largamente subsidiada, terá um papel es-sencial; aqui, são voluntários, como os da Cruz Vermelha, como os dos Grupos

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de Trabalho da Unesco, ou os do Ponto 4 e do movimento a favor das comu-nidades aldeãs na Índia, que vão desempenhar, se a história os ajudar, a mais importante das tarefas.

Terá que haver, naturalmente, uma entidade central reduzida a um mí-nimo, embora exemplos como os da Ordem de S. Bento possam tornar legí-timo o pensamento contrário; mas o trabalho realmente importante esse terá que ser feito nos próprios núcleos de população rural e por quem lá resida, como se fez para certas aldeias do Nilo. E por quem leve os habitantes, com os recursos de fora, a realizar, eles próprios, o trabalho de pequena engenharia rural, de sanitarismo e de educação que acima de tudo lhes dará o que mais lhes falta: esperança e fé; vida.

III

Tendo levantado com agudeza o problema das relações entre o Estado e a população rural da Itália, não fala Levi no seu livro de outro ponto mais geral e porventura ainda mais importante que o primeiro. Não entrava o tra-tá-lo na economia do seu trabalho: e o que se vai seguir representa não uma crítica a defeitos de Levi, mas como que um passo para além da base que ele próprio alicerçou.

Efetivamente, desde que houve em qualquer das Penínsulas mediter-rânicas, incluindo a mais longínqua Grécia, um regime adequado ao tipo psi-cológico das populações e às suas condições de vida, foi logo positiva a sua contribuição ao patrimônio mais profundo da humanidade: a cidade-estado da Grécia dá a geometria e a filosofia, lança, para além das inevitáveis criações e modificações de outros espaços e outros tempos, cânones eternos para a arte e marca, pelo poderio de Apolo e Dionísio, os dois termos de uma antinomia que ainda se não resolveu por completo: oferece por um lado soluções, por outro lado, o que é ainda mais fecundo, formula problemas.

Na Itália, a par da construção de um direito e de uma administração que assentam primacialmente no esforço do camponês considerado como tal, vem pelo trabalho de igrejas cristãs não unidas ainda numa organização cen-tralizada a vitória da propaganda de uma religião inteiramente estranha aos hábitos mentais dos corpos dirigentes.

Na Península Ibérica, todo o surto de liberdade, de força criadora, de vigor primevo que levanta catedrais, escreve poemas, e, recuando mais, man-tém conviventes as três religiões, as três mentalidades e talvez as três raças de

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judeus, árabes e cristãos, se baseia na organização social que, tendo por base o município romano, a descentralização tribal dos germanos e a cabila moura, só é dominada por Fernando e Isabel e sofre o seu golpe de misericórdia com a derrota dos “comuneros”.

E em Portugal, que mais particularmente nos interessa, são os conce-lhos, os forais e as câmaras que estão na base de arranque de toda a originali-dade do ocidente da Península, do seu lirismo, do seu franciscanismo, da sua epopéia feita igualmente da Fé e do Império. A decadência e a morte virão com a política centralizadora e unificadora que culmina em D. João III.

Se repararmos bem, todos estes movimentos, o dos filósofos gregos, o dos juristas romanos, o do cristianismo, o do califado de Córdoba, o dos desco-brimentos portugueses, têm, apesar das diferenças que se lhes podem facilmen-te marcar e de todos os elementos, acidentais ou não, que se lhes juntaram, uma característica comum: a tendência para o universal e para o sincretismo.

Por uma parte, criam valores que o serão para todos os homens, mes-mo os de mais diversas raças, mesmo os de mais estranhas cores; por outra parte, com maior ou menor extensão, se forma um grupo que não é pura-mente nacional, que só é exatamente grupo de valor histórico na medida em que o constituem elementos que poderiam parecer heterogêneos: a invenção intelectual dos gregos junta, nos atenienses, um jônico asiático e um dórico que ainda guarda, na clareza do entendimento e na violência das atitudes, a origem indo-européia; latim, fala-o menos a gente do Lácio do que celtas da Gália e o futuro romeno e os talvez bérberes da Península; com o cordobês se reúnem celtas, visigodos, vândalos, restos de romanos, semitas da Palestina e semitas da Arábia; e nos descobrimentos portugueses, como justamente o pintou Nuno Gonçalves, entra o judeu como entra o mouro.

Quer isto dizer que, paradoxalmente, à medida que se reduz o grupo racial das penínsulas mediterrâneas, à medida que o Estado deixa de ser um longínquo e, por aí, mais aterrador fantasma, para se tornar uma instituição municipal e local, as forças íntimas do homem se desenvolvem e se soltam e a marca da sua própria liberdade representa uma conquista de liberdade para o mundo, liberdade nos domínios das relações em escala mundial.

Tudo se passa como se, liberto de prisões históricas que lhe são insu-portáveis, e refluindo à sua mais íntima natureza, logo, por um movimento de reação e se tendo animado ao contato das mais estruturais forças do ser, ganhasse um significado universal de plataforma em que se pode reunir e con-gregar o que há de mais diverso na infinita diversidade do homem.

Só que, e sempre condicionados pelos estádios econômicos do mun-

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do, estes períodos de plena vivência têm sido bastante limitados; o poderoso clarão dura um momento e morre; e na treva que se segue o que há de mais terrível não é o abandono em que ficam os outros povos, mas o desespero a que parece levá-los a presença quase exclusiva das forças materiais e brutais de conquista; o pior de tudo é o que vai lançando a sua escuridão sobre o brilho do mundo: é, na alma dos que são capazes de abraçar o universo e se vêem esmagados pela mesquinharia das burocracias estatais, o tudo amargar, envi-lecer e desesperar esse exílio do céu.

Dominados por imperialismos de momento, definham-se os homens feitos para os eternos impérios da fraternidade humana e do catolicismo não somente institucional, mas vital; são eles verdadeiramente aqueles para quem, como no soneto de Nerval, brilha um negro e frio sol de melancolia. E é de fato essa a dor mais funda, a de não ser, a que escapou a Carlo Levi.

Os povos, no seu conjunto, se comportam, afastadas as inevitáveis dife-renças, como se comportam indivíduos: há dentre nós os que foram marcados para a existência regrada e meticulosa, para governar suas casas, assinar seus pontos de repartição, criar seus filhos, manter a sociedade no horário regular dos pensamentos e dos trens, como há, dentre as nações, as que se chamam Suécia e Noruega e Nova Zelândia e Dinamarca.

Há outros, porém, cuja missão é a de inventar e manter aquelas vozes menores de estrelas celestes e de poemas e de ascensões fantasiosas que tornam a vida suportável para os outros, mesmo que o não sintam ou não saibam: esses, os que terão a derradeira palavra, depois que o conforto da vida, am-plamente conseguido para todos, significar muito menos do que atualmente significa, esses cuja missão é tornar o mundo uno e coeso, da unidade e coesão que vem de ser o homem inteligente, criador e santo, esses se chamam Itália e Grécia, e Espanha e Portugal; dentro em pouco, Brasil; e para este último ponto nos quisemos sobretudo voltar.

É realmente duvidoso que, dadas as circunstâncias gerais da civiliza-ção européia, as penínsulas mediterrâneas possam renascer, digamos, nos seus próprios locais; aí, ao que parece, o mais que podemos desejar é a liberdade de que fala Carlo Levi, a autonomia, a descentralização, o valor da aldeia como base do mundo.

Para realizarem a sua vocação mais alta, outra condição se lhes torna necessária: é preciso que haja, para uma Itália e para um Portugal, uma espé-cie de metempsicose à maneira indiana: que, purificadas dos pecados histó-ricos que tiverem cometido, e muitos foram, essas nações voltem à vida num corpo que signifique existência ainda superior e mais fecunda.

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O Problema das Penínsulas Mediterrâneas Agostinho da Silva

A transmigração quereria aqui dizer emigração: o novo Lácio e o novo Portucale de que poderão partir é o Brasil; só ele lhes fornecerá, pelo que já representa, o ponto de apoio espiritual e material para que, fundindo-se entre si e entrando no grande caldeamento que se processa entre nós, possam um dia ser elemento, e não dos menos relevantes, daquilo que o Brasil tem a dar ao mundo: o sistema de vida que reúna a verdadeira liberdade, a verdadeira ciência e a verdadeira fé num real catolicismo aberto a todos os homens de todas as linguagens, de todas as raças e de todos os credos.

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Duas Idades de Ouro

SILVA, Agostinho da. Duas Idades de Ouro.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 ago.1955.

Tratando da questão nos termos em que ela se poderia pôr se escrevês-semos de história natural, podemos afirmar que são errôneas à luz da ciência moderna todas as suposições de que a humanidade tivesse dado, desde o início da sua existência no mundo, provas de todos os defeitos que se lhe podem apontar. São, por exemplo, destituídas de todo o fundamento as afirmações de que a guer-ra é instintiva no homem ou que o pode definir, entre outros elementos, o afã de possuir. Os argumentos que se tiram para isso do estudo de populações chamadas primitivas são inteiramente sem valor, dado que os tais primitivos cujo exemplo se aponta são de fato povos, ou num estádio já adiantado de cultura que apenas se chama primitiva em comparação com a nossa, ou já com um contato de civiliza-do bastante longo para lhe terem adquirido as características que se observam.

De cada vez que nos é dado entrar em relações com uma população realmente primitiva, o que se torna naturalmente cada vez mais difícil, e a po-demos olhar sem os nossos preconceitos de civilizados, o que provavelmente é mais difícil ainda, verifica-se que estamos em presença de homens que, se têm as nossas qualidades humanas, aquelas que se revelam de cada vez que não está em jogo, contra uma concorrência, qualquer das circunstâncias que reputamos vitais, mostram uma ausência absoluta de todos os defeitos que acompanharam o desenvolvimento da civilização. O verdadeiro selvagem, e não o falso selva-gem em que Montaigne ou Rousseau pensavam, é realmente bom: desconhece a guerra, considera como iguais no grupo o homem e a mulher, não tem a noção de propriedade, não maltrata a criança no sentido de lhe violentar a natureza para que ela se amolde ao padrão ideado pelo educador como sendo o mais útil à sociedade. E de resto não tem sociedade.

Torna-se efetivamente necessário que se não confundam grupo hu-mano e sociedade. A sociedade é realmente um grupo estabelecido segundo uma certa estrutura legal e dirigido a um fim que se pode definir com toda a clareza: nesse sentido podemos falar de uma sociedade humana, ou no seu conjunto ou particularizada, como podemos falar de uma sociedade de for-migas. Mas o grupo humano verdadeiro só existe quando esses laços sociais se desatam e desaparecem: quando nada mais existe ligando os homens do que o

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gosto de estar juntos. Somos sociais quando trabalhamos na nossa repartição ou servimos no nosso regimento, fazemos parte de um grupo humano quan-do tomamos café com os nossos amigos ou olhamos juntos uma paisagem. Há sociedade de cada vez que a eficiência de um se multiplica pela eficiência de todos; e há grupo humano de cada vez que a contemplação de um se multipli-ca pela contemplação de todos.

Acontece, porém, que se se estudar um desses agrupamentos de povos primitivos pelo seu aspecto econômico, se tem de chegar à conclusão de que o seu modo de vida exige por um lado a manutenção do número de indivíduos num nível baixo e por outro lado que desfrute de uma extensão territorial bas-tante vasta: isto é, têm de ser poucos e de viver bem longe de outros grupos, dependendo naturalmente as áreas da sua produtividade. Todos esses povos vivem de fato de colher alimentos, não de os produzir; e só são verdadeira-mente primitivos aqueles cuja alimentação consiste em frutos e raízes, o que, diga-se de passagem, mostra o carnivorismo como um estádio de civilização, não como uma necessidade vital.

Ora, é impossível, em vida natural, limitar um aumento de população, embora os nossos costumes sexuais sejam também, ao contrário do que parece, um estádio de civilização. Um aumento de população traz como conseqüência imediata uma diminuição das áreas disponíveis e, por conseguinte, a carên-cia. Perante a carência, duas atitudes são evidentemente possíveis: a de a ela se resignar, morrendo, e é, por exemplo, o que acontece com animais de fácil reprodução abandonados a si próprios num espaço confinado; ou de se bater procurando meios de fabricação e de armazenamento. Foi esta última solução a que adotou o homem primitivo. Daí o sedentarismo; a propriedade coletiva ou particular, em que a primeira forma apenas atenua os males fatais que vêm de possuir e apenas permite formas mais amplas de técnica; todas as caracterís-ticas sociais de um legalismo estatal; dum poder absoluto, ou quase, do pai; e de cultos religiosos, de que é tipo o romano, em que se afirma a disciplina social.

Quem principia uma batalha deve levá-la até o fim. Nós, na realida-de, herdamos uma batalha, mas temos na mesma que a levar até o fim. Isto é, até podermos considerar que o grupo humano se libertou daquilo a que poderíamos chamar as suas limitações de área. Temos que levar as técnicas às suas últimas conseqüências, porquanto só as técnicas poderão assegurar a nossa sobrevivência criando os recursos que se não encontram na natureza. Quaisquer que sejam os riscos que possamos enfrentar, e que são os mesmos de uma guerra, temos de manter a disciplina social, e de aproveitar as ciências e as máquinas ao máximo que elas possam produzir. E é esta exatamente uma

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das razões por que o poder sobre a ciência e sobre as máquinas tem de sair das mãos de particulares que na maior parte dos casos delas se servem apenas para fins mais do que particulares: particularíssimos.

Não creio que o futuro nos deva inquietar grande coisa: porque, ou a humanidade se salva, ou se destrói completamente. Os poderes concentrados hoje nas mãos do homem só dão para isso mesmo: ou ganhar ou perder. Não para se ficar na miserável situação intermédia que tem havido depois de tanta epidemia e de tanta guerra. Como só à metafísica compete dizer-nos o que su-cederá se perdermos a partida, isto é, se desaparecermos da face da Terra, acho que devemos pensar na outra hipótese, a de ganharmos.

Não me parece, e aqui estou em desacordo com as escolas anarquistas, que seja possível abolir todo o vínculo social; acho, porém, que se atenuará a tal ponto que, praticamente, será como se não existisse. Teremos à nossa dis-posição todos os meios de subsistência que nos serão necessários. Não precisa-remos mais de manter a mulher na posição subalterna em que até hoje a temos mantido, e que constitui, embora o não pareça, a pior história de escravatura que tem decorrido no mundo. E não precisaremos sobretudo, o que me parece um dos pontos mais importantes, de enviar crianças à escola: a qual escola, de qualquer tipo que seja, tem sido, apesar de todos os seus benefícios sociais, a principal responsável da antítese entre a espontaneidade e o gênio da criança e a domesticação e a mediocridade dos adultos.

Teremos levado assim a cabo uma reconquista da vida natural. Poderemos entregar-nos, livres de disciplinas sociais e de mutilações educativas, a uma vida criadora, que até hoje, e com toda a limitação, tem existido apenas para raros. E é possível até que esta própria vida criadora, nas artes ou nas ciências, a vejamos um dia como característica da nossa fase de batalha e não como essência profun-da da natureza humana. Reentraremos na vida natural. O que é certo, porém, é que para isso talvez não tivessem sido necessários tanta luta, tanta opressão, tanto desastre. Talvez a resignação à morte tivesse sido um caminho mais curto.

Só que nesse caminho mais curto não teríamos encontrado um ele-mento essencial para o futuro e sobre o qual, por muito repetido e diverso, longamente meditamos: o do sofrimento. E o sofrimento, e aqui reside por-ventura uma das lições essenciais do Cristianismo, nos levou a valorizar o amor. Amor que, por ser provavelmente o fundamental da criação, pode fazer que a dispensemos e, passando para além da vida natural com que se conten-tavam os nossos antepassados, acedamos àquela vida sobrenatural de plena unidade, àquela existência sobrenatural que é realmente digna da partícula divina que em nós brilha.

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Reflexão sobre Dinheiro

SILVA, Agostinho da. Reflexão sobre Dinheiro.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 18 mar. 1956.

É sempre muito difícil e meio complicado falar do Renascimento, por-que não existe, na verdade, um só com características uniformes, mas vários renascimentos de várias espécies e por diferentes lugares e em diferentes épo-cas. Para o que neste momento nos interessa, poremos só a questão dos renas-cimentos tipicamente europeus, isto é, dos Pireneus para o norte, que foram o renascimento italiano e o renascimento alemão. E, destes dois, apenas trare-mos a maior luz que foram, um, o renascimento de Roma, e o outro a afirma-ção de que a humanidade só poderia avançar se quebrasse aquela fraternidade que, pelo menos teoricamente, fora seu apanágio durante a Idade Média.

Quanto ao renascimento de Roma, já sabemos de que maneira ele foi um reaparecimento e um dominar do direito romano, cesarista centralista e anticatólico, contra um direito medieval que penosamente se fora formando e que era o direito da unidade municipal, o direito do concelho, o direito dos fo-rais. O tal direito que torna Portugal da Idade Média como que, politicamente, a pré-figuração de um sistema de governo tão perfeito como aquele que hoje admiramos na Commonwealth, um grupo de repúblicas ligado pela figura ide-al de um Rei, e que tão facilmente lançamos como exclusiva criação do gênio político dos ingleses. Já sabemos também como ele veio trazer de volta, ou re-forçando-o, um platonismo que, depois de ter dominado na Igreja com Santo Agostinho, fora quase posto de lado pelo aristotelismo de S. Tomás; e sabemos igualmente tudo quanto se pode dizer a favor, científica e filosoficamente, deste novo não neoplatonismo; mas também não poderemos negar que, sob o ponto de vista da fraternidade de que falamos e do ideal de convivência, que não são inferiores ao de ciência e de filosofia, a doutrina de S. Tomás ia muito à frente de qualquer espécie de platonismo; e é este um dos pontos que explicam a sua recomendação pela Igreja.

O que se deseja pôr agora em relevo é o surto de retórica que veio sobre a Europa com o renascimento romano. Infelizmente, o que renasceu da antiguidade não foi a eloqüência inteligente e rápida e ágil de um Demóstenes, que levantava problemas diante de uma Assembléia capaz de compreendê-los, expunha os argumentos que militavam a favor de tal ou tal teses e em segui-

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da se retirava para que cada um, pelo menos teoricamente, pudesse refletir e resolver segundo ditames de razão. O que acompanhou o renascimento foi a retórica de tipo Cícero, em que parece pressuposto que os ouvintes, por um lado, não compreendem à primeira e é necessário, por conseguinte, repetir-lhes cem vezes ao longo de um discurso o que poderia ser dito apenas uma; por outro lado, que é muito provável que, entregues a si próprios, como que no pleno gozo de suas faculdades, não se decidam conforme os desejos do orador; então Cícero, cuidadosamente, hipnotiza-os; com toda a grandeza de Cícero, quem sai de um discurso do orador romano pode não estar dormindo: mas está decerto como o braço que ficou esquecido sob o corpo, dormente; e, dormente, delibera segundo Cícero.

Quanto ao Renascimento de tipo alemão, devemos-lhe a ciência de ti-po fáustico, isto é, a ciência feita por um homem isolado dos outros homens, que se refugia numa cela, para que a suposta incompreensão dos outros o não perturbe; a ciência para poder, para dominar o mundo, não ciência para ado-rar a Deus; e, finalmente, a ciência que, deixando sem amor, porque do amor não partiu, põe as almas diretamente em poder do Diabo, especialista, como se sabe, em não amar. É esta, em geral, a ciência que temos hoje, qualquer que seja a qualidade humana dos cientistas; possuímos saber, temos eficiência técnica, mas na realidade entregamos a alma ao demônio; e todo o problema da humanidade de hoje está em saber se ele nos vai ficar para sempre com a al-ma, ou se, por intervenção daqueles desprezados homens que passaram a vida orando, nos vai ser possível renovar o milagre que salvou ao Gil português: se a Virgem Maria, se Nossa Senhora, se o que há de cândido e puro na nossa alma, será capaz de roubar ao Diabo a sua presa. Mas talvez o mais grave presente que nos deram do lado germânico seja ainda o falarmos naturalmente do que não é natural; do que é contra a natureza humana: por exemplo, de dinheiro, de capitais e de juros.

A este ponto queríamos chegar. Diante de dinheiro, os homens se divi-dem em dois grupos: um, o mais numeroso, porque a maioria da gente, sendo realmente protestante, só nominalmente é católica, vai para o lado dos que consideram dinheiro que vai dar maiores juros e qual o mais aconselhável emprego de capital ou qual o trabalho que, independentemente de outras cir-cunstâncias, é o mais rendoso; são estes os que não reparam em que Cristo achou que dinheiro não era mesmo de Deus, mas de César; os que talvez não saibam que já o salmista condenou o juro e que, se o judeu emprestava di-nheiro na Idade Média, é porque, como noutras ocasiões, andava demasiado esquecido dos preceitos de sua religião; os que, sobretudo, esquecem que a

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economia moderna tem seu primeiro legislador num estreito, fanático e anti-pático ditador chamado Calvino.

Ao outro grupo, muito menos numeroso, apeteceu tratar do dinheiro com a tal retórica ciceroniana, falando de dinheiro como de sangue do pobre. Sem reparar em várias coisas: em que, até agora, até termos assegurado a pro-dução necessária a todo o consumo da humanidade, e o fazermos por meio de desenvolvimento da técnica, coisa que devemos ao renascimento de tipo ale-mão, não havia outra possibilidade senão a da existência do pobre, como, pas-sando do econômico ao hierárquico da guerra, se têm de distinguir no exército graus que desaparecem na vida civil; e, no campo da economia, só agora se começam a perceber as possibilidades de desmobilizar; em que o dinheiro não é mais do que a marca, o sinal, a ficha que me entrega a sociedade em troca de um trabalho reputado útil, em troca de ter eu colaborado num progresso do grupo humano, recebendo, sempre teoricamente, mais ou menos conforme o trabalho é classificado como mais ou menos importante ou como exigindo maior ou menor preparação, isto é, maior ou menor dispêndio do capital pre-viamente acumulado; e finalmente em que nas batalhas, já que se entrou em regime de guerra, o que conta é o objetivo, não o gasto sangue.

Como disse, porém, estamos em vésperas de desmobilizar; em véspe-ras de terminar de vez com a miséria do mundo; em vésperas de se acabar com a distinção entre o pobre e o rico; em vésperas de suprimir o trabalho obrigatório; em vésperas finalmente, de podermos cumprir pela primeira vez aquele conselho de olhar os lírios do campo e as avezinhas do céu sem que a conseqüência seja a de morrer de fome. Mas o dizermos que estamos em vésperas de tudo isto, em vésperas de reencontrarmos um paraíso natural que poderá ser, para todos, o ponto de partida para o paraíso que mais importa, o do sobrenatural, não significa de modo algum que ele seja fatal e que, por outro lado, o não possamos apressar ou retardar com nosso gesto.

Podemos retardá-lo, e muito, se continuarmos a ver economia com retórica ciceroniana, o que tanto acontece do lado dos chamados conserva-dores como da parte dos chamados revolucionários; se teimarmos em con-tinuar adotando sistemas de gerência econômica que não permitem, pela renovação contínua de material, ir a par do que o gênio humano vai crian-do nos domínios da invenção científica e técnica; se, absurdamente, numa época que já o tornou impensável, por um lado, e dispensável por outro, persistirmos em ver a produção e não o consumo, o capricho e não a neces-sidade, o lucro e não a despesa geral, como os fulcros de uma organização econômica do mundo.

Reflexão sobre Dinheiro Agostinho da Silva

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Mas podemos apressá-lo, e também muito, se, entre todas essas coi-sas, e pelo que tange à nossa pequena economia particular, virmos o dinheiro como trabalho nosso que podemos pôr à disposição dos outros, poupando o mais possível; não fazendo nenhuma despesa que não seja estritamente in-dispensável, o que, além de tudo, liquidaria a produção das superfluidades em que hoje se desbaratam tanto capital e tanta mão-de-obra; colocando esse dinheiro poupado e, portanto, esse trabalho cedido aos outros, em instituições de administração direta de coletividades públicas; e, finalmente, submetendo o nosso catolicismo à pequena prova prática de não retirarmos os juros conta-bilizados; porque juro sim: é mesmo sangue de pobre.

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Comunidade e Política

SILVA, Agostinho da. Comunidade e Política.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 08 Set. 1957.

Há povos fáceis, os quais para serem conduzidos não precisam senão de políticos para quem exista o entendimento técnico suficiente dos benefícios que podem prestar uma boa administração e aquele bom senso fundamental que distingue economia de esbanjamento e paz de guerra. Sem querer de mo-do algum pôr a idéia de que haja homens aos quais apenas coube promover como que o desenvolvimento físico da humanidade, é fora de dúvida que al-gumas das nações, por uma circunstância ou outra, vieram a especializar-se; e um grupo inteiro, o da chamada Europa, depois estendida, pela emigração, à América do Norte, e, pela revolução, aos povos russos, tomou sobre si o in-ventar da filosofia, da ciência e da técnica; atividades que têm raízes comuns em não serem atividades de massa, em não conduzirem a coisa alguma para além de si próprias e, ainda, em só terem sido possíveis na medida em que uma civilização greco-romana se impôs a partir de Maratona e, depois da Alta Ida-de Média, voltou com Platão e Aristóteles, marcou vitória no Renascimento e impôs o contraditório estado de coisas em que povos pretensamente cristãos na realidade desprezam a Judéia e a Europa do ocidente papal.

Espírito de professor, banqueiro ou engenheiro serve perfeitamente para levar esses povos pelo caminho que é o seu e em que lhes compete organizar tudo o que a humanidade vai necessitar de material. Eles querem ser felizes, não mais; o seu ideal, fazendo história, é, no fundo, o de não a terem; francês, aban-donado a si mesmo, teria um gosto perfeito se lhe fosse possível estabelecer um pé-de-meia na eternidade; daríamos à alma desencarnada do germano, como recompensa do seu trabalho no mundo, contemplar a idéia pura da eficiência; e ao americano, resumo de todos, daríamos como ideal ter todo o tempo ao seu dispor para não ter tempo. E o que os salva, o que os prende ainda ao resto da humanidade é que nem todos têm efetivamente sido felizes: tem havido pela his-tória fora o lamento dos pobres, mas esse acabará em breve; e, namorados, san-tos e artistas têm sido, neste seu mundo de tempo e espaço e de homem virado a homem, o sinal da Eternidade e de Deus. Sem pobres e sem aqueles que o Amor prendeu já há muito os teríamos deixado de reconhecer como pertencendo à es-pécie humana: porque talvez a Circe homérica não seja mais do que um símbolo

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dos perigos que iam correr os que principiavam sua história destruindo cidades cujo crime único era o de ter mais respeito pela beleza do que pela lei.

Se, porém, nos voltamos para povos como o português e o espanhol, e refiro-me aqui indistintamente a todos os povos de línguas portuguesa ou espanhola, já a questão se nos apresenta de uma forma inteiramente diversa. O administrador puro não nos interessa; a nossa idéia, no fundo, é a de que, para a mesma tarefa, poderíamos ter alugado um holandês ou um checo, e daí a nossa tantas vezes impensada confiança no técnico estrangeiro; não nos in-teressa o pensador de conceitos gerais e não teríamos como título máximo de glória para um político ter proferido, ante os mortos da guerra, o louvor dos que tombaram por Atenas; e muito menos nos interessa ainda o liberal meio cético que cria Impérios a partir de clubes e deles deixa, quando acabam, o que havia dantes, só com mais telefones e um pouco mais de pedantismo.

Queremos em primeiro lugar que os nossos políticos tenham fé no valor que representam os povos que vão governar. Não nos serve o enamoramento do estrangeiro, embora não nos repugne a sua utilização naquilo em que nós próprios temos de resolver os nossos problemas de caráter material, mas o que não admiti-mos nunca é que nos meçam atraso pelo que é para os outros adiantamento; não progredimos tanto como eles e no mesmo campo que eles; mas gostamos de que nos lembrem, quando nós próprios às vezes o esquecemos, que não nos deixamos corromper profundamente pelo que trouxe consigo o domínio da Europa sobre o mundo, e que, do lado português, guardamos a idéia de possibilidades de vida lírica na terra e, do lado espanhol, a convicção de que só precisamos de governos porque houve o pecado original. Não avançamos no material tanto como as outras nações; porém perdemos menos do que elas o que é mais essencial: lembrança e desejo de um Paraíso que, pelos erros, se perdeu e, pelos acertos delas, nunca mais se veria.

Se esta é a fé basilar que exigimos do político, fé no valor intrínseco da co-munidade, teremos como seu complementar o gosto de saber que o membro de governo tem aquela espécie de ascese que vem não de se negar, o que é de qualquer modo dar por si mesmo, mas de se não perceber como destacado do conjunto ou, por outras palavras, como destacado de Deus. O ideal de nossa gente vai à formação de um político que tenha os gostos comuns no que eles possuírem de melhor, e seja ao mesmo tempo o ponto cardeal a que prefeririam rumar; tem de ser um santo e tem de ser um santo popular: Santo António, neste sentido, foi político, exatamente como Santa Teresa; ou, para tomar o outro lado da questão, como foram santos, Afonso X ou Nuno Álvares ou Marti ou o Alferes de Minas. Mas detestamos os santos por orgulho, hipocrisia ou desdém. Ou os que desprezam os bens do mundo porque não os sabem tomar.

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Depois, a questão de, lendariamente ou não, bailar com o povo de Lis-boa e assistir, às vezes um pouco miudamente, a exames e concursos, faz parte do que exigimos do verdadeiro político. Do lado europeu, prova-se que se é comunitário quando, ao entrar-se na política, se principia por fazer parte da junta que governa o bairro, embora com a ambição de ser Presidente ou Par. Isso, porém, é demasiado mesquinho para quem verdadeiramente fala ou por-tuguês ou espanhol: o nosso ideal seria o de principiar governando o País in-teiro, mas, depois, com muito gosto, numa espécie de aposentadoria, daríamos nossas opiniões sobre o campanário da aldeia. O que marca entre nós o gosto do comum é que nos repugna o governar rebanhos de gente; queremos que o político esteja conosco, ao mesmo tempo que vai à nossa frente; queremos que seja humilde e grande. E queremos afinal que nos ame com aquele verdadei-ro Amor que consiste em amar o Amado tal como ele é e, simultaneamente, como virá a ser quando, por nosso Amor, tudo o que é surgir. É também, na realidade, como o amamos a ele: com seus acertos e seus erros, suas fraquezas e suas valentias; como é; e, ao mesmo tempo, como poderia ser se nós próprios, tantas vezes, lhe não impedíssemos o caminho.

Só com políticos deste tipo poderá o mundo ibérico vir a ser o que é de seu destino, mas o tempo retarda. E poderíamos pensar aqui que é então de nossa essência esperar que o chefe seja para que sejamos, o que poria o sebas-tianismo como essencial em nossa evolução histórica; certamente o é: só por essa fé, e por essa fé messiânica, poderíamos explicar que nas épocas áureas tivéssemos estado tão intrinsecamente unidos a muçulmanos e a judeus. Só que sebastianismo é apenas corrupção de messianismo: é o pessimismo que vem da corrupção do ótimo e nos faz depois aceitar como Messias todo o ambicioso e todo o aventureiro. Essa linha mestra não se mostra nítida depois de Alcácer-Quibir; onde ela esplende é no momento em que o povo de Lisboa, querendo um Messias, o fabrica; e a partir de barro tão frágil como o de D. João.

Diremos talvez que estamos demasiado longe de um ideal desta es-pécie. E sempre estaremos enquanto o julgarmos, enquanto todas as nos-sas forças de espírito se não empregarem totalmente na contemplação deste sonho de um realizador de todos os outros sonhos. Tão completamente o temos de fazer que haja para ele depois a mais bela e a mais difícil de todas as tarefas: a de se ver apenas como um servidor do comum. Não foi feita a nossa gente para ser, em conjunto, discípula de um Mestre: a sua Missão é a de mostrar como é possível haver mestres, e serão eles os melhores, que sejam discípulos dos discípulos; servos dos servos.

Comunidade e Política Agostinho da Silva

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Filosofia nacional

SILVA, Agostinho da. Filosofia Nacional.

O Estado de S. Paulo, São Paulo, 09 Mar. 1958.

De vez em quando se fica muito satisfeito quando se verifica estar-se cultivando qualquer ramo ou corrente de filosofia que de algum modo cor-responde a movimento surgido e desenvolvido no estrangeiro; quando nos atinge a última espuma de vaga surgida bem ao largo, já nos parece que temos, excelentemente, cumprido o nosso dever e o nosso gosto de filosofar; somos vítimas de moda ou somos inconscientes de dependência intelectual daqueles meios que supomos mais cultos do que o nosso: mas tudo se passa como se na-da mais houvesse a fazer; como se eternamente nos competisse ir a reboque de correntes estrangeiras. Aqui, como em muitos outros pontos, o mal tem sido o de ir atrás do que aparece vindo de fora, o que, de certo modo, procede de uma ignorância ou de uma desvalorização de tudo quanto a tradição nos legou.

É de facto curiosa a idéia com que se sai de um curso de filosofia, entre nós ou em Portugal, quanto ao que tem sido a atividade filosófica em língua por-tuguesa. Falam-nos de gregos e de franceses, de ingleses e de alemães e, quando muito, se citam os que em âmbito nacional seguiram ou divulgaram as corren-tes estrangeiras, na maior parte das vezes sem que se tome sequer o trabalho de pôr em relevo o que pode ter havido de original ou em certos pormenores de pensamento ou, mais importante, no ambiente geral em que a importação se desenvolveu; as cadeiras de história da filosofia são-nos quase, exclusivamente, de história da filosofia européia, pondo aqui a América do Norte como um de-senvolvimento da Europa; a pensadores nossos nem se alude; e nem, por outro lado, se levanta o problema da possibilidade filosófica de nossa gente.

Por aqui se deveria, creio eu, principiar. Um verdadeiro ensino de pro-pedêutica filosófica deveria pôr a questão de saber se gente de origem por-tuguesa, ou de uma forma mais geral de origem peninsular, tem ou não tem vocação filosófica; se essa vocação filosófica não existe, então todo o ensino da filosofia em nossas terras estará condenado, até o ponto em que podemos prever história, a ser a crônica do que se passa no estrangeiro, talvez de algum interesse informativo, mas de nenhum valor cultural, porque neste ponto só vale a pena aprender aquilo que vai ser matéria de que faremos depois traba-lho original; mas, se a vocação existe, então o primeiro dever do mestre é o de

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trazer a claro as linhas essenciais da nossa atitude filosófica, de modo a que seja possível apreender traços de conjunto e guiar esforços de novas criações.

A primeira atitude é a de que efetivamente não existiu nunca em língua portuguesa ou ambiente português linha alguma de pensamento filosófico; o que explicamos logo facilmente, dizendo que somos, por natureza, líricos e narrativos e que, por conseguinte, não temos ambiente para que se desenvolva um trabalho do pensamento cujas características são exatamente a linha cien-tífica e a teoria do que outros narrariam. Esta idéia vem fundamentalmente de vários conceitos errados: o primeiro é o de se julgar que a literatura é o ponto fundamental da cultura de um povo; é certo que temos sido, em literatura, fundamentalmente líricos e narrativos, mas não é verdade que o tenhamos sido nem em política, onde se inventou o município e se teve a voluntariosa continuidade dos descobrimentos e das bandeiras; nem em arte, onde o ponto máximo, o dos Painéis de Nuno Gonçalves, é original, entre toda a arte do mundo, porque não é lírico nem narrativo, mas constitui uma teoria teológica da história nacional; nem nas técnicas, onde, por exemplo, a caravela se reve-lou o perfeito instrumento para a tarefa bem pensada e bem definida; nem nos arranjos sociais, onde o comunitarismo agropastoril daria ainda lições a teóricos do cooperativismo e do socialismo.

Infelizmente, a literatura tomou conta de nós, e a tal ponto que, ain-da hoje, se confundem literatura e cultura, como herança daqueles séculos, o XVII e o XVIII, em que os absolutismos reais não permitiam qualquer outro gênero de manifestação intelectual nem forneciam ambiente para que fosse a literatura o que fora com um Fernão Lopes ou o que foi ainda com um Luís de Camões e só tornou a ser no século XIX, desde Herculano a Eça, em Portu-gal, ou a partir de Lima Barreto e Mário de Andrade, no Brasil. No desânimo geral que tomou o País, ninguém pensou nas possibilidades próprias e, no que respeita à filosofia, o ponto a que chegaram alguns dos melhores foi o de lamentar que não tivéssemos, em Portugal e no Brasil, condições que nos permitissem sermos cartesianistas ou kantistas: estes, os progressivos; os que rumavam contra se contentariam com tomismo.

É curioso, por exemplo, que ninguém se tenha impressionado com o entusiasmo peninsular, cristão, judaico e muçulmano, por Aristóteles, ou averiguado até que ponto viria esse entusiasmo de verem no grego menos o adversário de Platão do que o discípulo de Platão; curioso igualmente que nin-guém tenha dado atenção, apesar de tanta coincidência de história e de tempe-ramento, à filosofia dos empiristas ingleses e feito as necessárias ligações com um Duarte Pacheco ou um D. João de Castro, mas o mais curioso de tudo é

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que se tenha descido um tão grande silêncio sobre a filosofia de um D. Duarte, de um Camões, de um Vieira, nos seus escritos de teoria da história e daquilo a que tão comodamente se chama profecia, e se tenha menosprezado a capa-cidade de pensamento de um Bruno ou de um Leonardo Coimbra e se oculte, sob o poeta, o que havia de pensamento filosófico em Fernando Pessoa.

A tentativa desesperada, e sem imaginação, de integrar à força Portu-gal na Europa e, no Brasil, a tentativa igualmente desesperada de abafar, sob a pseudocultura de um litoral europeizado, as forças que irromperam em Ca-nudos fizeram que tratássemos com o maior desprezo o pouco de original que foi possível fazer-se e que, ao traçar os programas das Faculdades de Filosofia, do nosso lado, e das Faculdades de Letras, do lado de Portugal, não se tivesse dito nem palavra a respeito do desenvolvimento de uma filosofia nacional. Em nenhuma cadeira se tem de falar daqueles que tentaram dar consciência de si mesmo ao pensamento que nos é próprio; em nenhuma cadeira Ibéria existe, nem de uma costa nem de outra do Atlântico; em nenhuma cadeira se dá es-pecial atenção às filosofias estrangeiras cujo estudo nos poderia ser de maior utilidade; em nenhuma cadeira se abrem horizontes e esperanças de futuro. A todos os inconvenientes que a Universidade tem em si própria, como institui-ção ultrapassada que é, somam-se os inconvenientes de, neste ponto, ser ela ainda antinacional; forma filósofos que nada têm a ver com o nosso ambiente, com as nossas aspirações e que, consciente ou inconscientemente, se vão por-tar toda a vida como europeus que tivessem nascido em lugar errado. E, no fundo, são as saudades de Paris e de Konigsberg o que impede Mato Grosso e impede Moçambique.

Precisaríamos de fazer ver à gente moça, que, infelizmente, é sempre vítima dos velhos, que a nossa atividade filosófica se tem em primeiro lugar de alicerçar solidamente na experiência científica: ninguém devia poder tirar um curso de filosofia sem que tivesse trabalhado numa atividade científica, enten-dendo-se tudo o que há de diferente entre isto e o ter aprendido num manual, de cor, noções que são já, elas próprias, atrasadas e de segunda mão; era pre-ciso que o nosso aprendiz de filósofo tivesse andado, ativamente, por salas de cálculo, por laboratórios, por observatórios; em segundo lugar, não se soltaria ninguém sem uma experiência igualmente ativa das nossas realidades sociais: numa Faculdade de Filosofia nossa, as Atas de Santo André, verdadeiramente entendidas, são mais importantes do que o Discurso do Método, e o mutirão mais fundamental que a Sorbonne; não teríamos igualmente nenhum receio de meter o nosso jovem pelos caminhos da teologia e da mística: primeiro, porque não há sem elas filosofia autêntica, depois porque por esses caminhos

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andaram um S. João da Cruz ou um Sampaio Bruno; dos filósofos estrangeiros insistiríamos nos ingleses e, sobretudo, no problema que parece fundamental quanto a pensamento nosso: o das relações entre Aristóteles e Platão, que tão desgraçadamente tem dividido a filosofia católica. E acima de tudo, o que é exatamente o que menos se faz em ensino superior, deveríamos tirar da alma do aluno a sua nostalgia do estrangeiro e o absurdo namorar do que já está feito, quando temos pela frente a mais invejável das tarefas que jamais coube a um ser humano: a de formarmos com gente nova uma nação nova; e de dar, por ela, ao mundo um mundo novo.

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Perspectiva brasileira de uma Política Africana

SILVA, Agostinho da. Perspectiva brasileira de uma Política

Africana. Cadernos Germano-Brasileiros,

Juiz de Fora, ano VII, n.o 3, mar. 1968, pp. 1-17.

Edição bilíngüe: português e alemão.

Capitalismo – Socialismo – África

Uma colônia é uma região que recebe de outra, denominada metró-pole, as suas idéias, as suas manufaturas e as suas normas de comportamento no mundo. Dado isto, torna-se muito difícil que possa ter havido uma desco-lonização da África, a não ser pela tal mutação de constituições que em nada vem modificar o que respeita a formas de pensamento, economia ou política interior e exterior.

É fora de dúvida que não tem a Europa o menor interesse em que os países africanos deixem de ser os fornecedores de matérias-primas para as suas indústrias e os consumidores dos produtos de suas manufaturas; o ideal, para alguns políticos, seria que todas as nações européias se congregassem num Mercado Comum e que esse Mercado Comum, com uma África em desen-volvimento de produção e de consumo, lhes garantisse um nível de vida que aumentasse sempre sobre o atual, permitindo além de tudo, para os serviços considerados grosseiros ou de menor interesse na renda, continuar utilizando a mão-de-obra do Mediterrâneo que, embora não branca, é, digamos assim, menos negra do que a africana.

Se isto é o que se refere à economia, pouco teríamos que alterar o qua-dro pelo que respeita à intelectualidade. Os queridos da Europa hoje são os políticos ou pensadores africanos que, completamente desenraizados de suas culturas, falam Oxford ou falam Sorbonne, olham com bastante desprezo o considerado primitivismo das regiões africanas, lamentam o poliglotismo de seus países, consideram o sistema tribal como incompatível com a noção eu-ropéia, diríamos melhor, romana do Estado, e felizmente o é.

Passando à América do Norte, que definiríamos como o ponto máximo de concentração da Europa loura e alva, não parece, apesar de suas tradições

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de anticolonialismo e apesar de sua defesa da liberdade dos povos e da inicia-tiva do indivíduo, ver sem temores a descolonização da África. Sob o ponto de vista de segurança de suas fronteiras militares, de seu investimento de capitais e de seu mercado de consumo, e ainda tomando as áreas de produção africana como homólogas das regiões tropicais da América do Sul, é fora de dúvida que lhe convém que estejam presentes na África os países seus aliados, ou nela mandem as elites ainda sob a influência de seus missionários, ou ela própria venha e se estabeleça comandando uma industrialização, talvez sobretudo a agrícola, que lhe permita concorrer, quando, onde e como convenha, com o que puderem exportar seus vizinhos do sul.

Não poderemos também aceitar que os representantes máximos da economia socialista tenham vistas desinteressadas quanto à África. Tanto a Rússia como a China querem acima de tudo a vitória de suas ideologias, mas ainda antes dela pensam, como é natural, na sua sobrevivência como nações. Tentará a Rússia o mais possível dividir o mundo em esferas de influência, a exemplo do que sucedeu noutra guerra de ideologias, a de católicos e protes-tantes; as intervenções da China serão só tentativas de esgotar adversários em pontos difíceis, e nenhuma África oferece nada de comparável com a Coréia ou o Vietnã; o que fizer neste sentido fora da Ásia o fará só para fixar forças de polícia ou para tirar da Rússia a hegemonia dos partidos comunistas.

Não cremos que o consiga nos países desenvolvidos ou em desen-volvimento e pela mesma razão pela qual, dentro de alguns decênios, e a não haver da parte do complexo industrial e militar dos Estados Unidos um ataque antecipado e brusco, a própria China perderá sua agressividade, a não ser aquela dos gritos que se dão para assustar o adversário quando se es-grime. Atingido o ponto alto de fabricação de projéteis intercontinentais de carga termonuclear, ou do que ainda vier depois, com a bomba de nêutrons e os motores iônicos, é pouco provável que alguém tente uma guerra em lar-ga escala. As boas roupas, as boas casas, as geladeiras e as televisões tornarão os chineses tão pouco agressivos quanto o são hoje os russos. A África ficará entregue a si própria...

Se não houver guerra, continuará a África sendo um continente isola-do, já que a sua forma de ser é bem distante se não oposta do que poderíamos marcar como o laicismo, o racionalismo científico que apontamos, sejam eles os euro-americanos, os russos ou os chineses. A não haver um milagre, Cristo parece vencido no Ocidente, o materialismo de Marx parece ter batido o seu profetismo e destruído tudo o que era na Rússia esperançosamente dostoie-vskiano, Confúcio parece finalmente e solidamente triunfante sobre Lao Tse.

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Assim como é duvidoso se poderemos ter uma verdadeira Ecúmena antes de uma radical reformulação teológica que funda o teísmo cristão com o ateísmo budista, que permita admitir para um católico o profetismo de Maomé, que veja como linguagens de um igual fundo religioso o transe dos candomblés e as vagas cerimônias do Xintó, é também pouco de aceitar que a unidade política e econômica do mundo chegue até nós, e com ela uma África verdadeiramente irmã, sem que o automatismo da produção venha suprimir o assalariado, tornar ridícula a idéia de lucro, lançar para eras de ignorância as pautas protecionistas, e sobretudo tornar inteiramente livre o espírito do homem, para, no lazer que lhe virá, nos dar as criações das quais as até agora foram apenas um imperfeito, um tosco, um larvar esboço.

As fronteiras na África e seus novos Senhores

De ser para os poderosos este terreno de grandes jogos, guarda a África muitas marcas, a mais visível das quais é a que ficou nas fronteiras de suas nações. Ao passo que na Europa são elas fruto das guerras, ao passo que nas Américas vieram dos ímpetos pioneiros e bandeirantes, das negociações de Estados soberanos entre si, de condicionantes geográficas, das iniciativas de independência ou dos substratos de civilizações poderosas que os conquis-tadores, apesar das destruições, não puderam eliminar; ao passo que na Ásia, apesar da ação dos impérios ocidentais, há alguma lógica de povos ou religiões – as fronteiras de África foram traçadas por potências européias, em conferên-cias de cidades européias e consultando-se apenas os interesses europeus.

Tudo só tem significado e interesse se as considerarmos em relação à Europa e a seus interesses coloniais de busca de matérias-primas e expansão de mercados de consumo; para os africanos foram sempre um desastre e são hoje o obstáculo principal para que se estabeleça um planejamento da África realmente útil a seus habitantes e, por eles, ao geral do mundo.

Os dominadores que partiram deixaram nos mesmos domínios ou-tros dominadores, em geral tão bons representantes seus que ainda explo-ram e oprimem seus compatriotas mais do que o faziam os brancos. Para os antigos colonizadores, a descolonização consistiu em ter que repartir os lucros com os novos governos; para os novos colonizadores, consistiu ela em lhes não pôr limites nas ambições de mando ou de riqueza, em tratarem os adversários políticos com uma dureza e uma intolerância de que, fora de pe-ríodos de guerra, não tinha o europeu dado muitos exemplos, e ainda, pela

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existência de assembléias internacionais, em poderem, pelo princípio de a cada nação seu voto, emitir seu parecer nas mais difíceis, complexas questões de interesse geral.

No interesse de manter o sistema de neocolonialismo, de parte dos an-tigos dominadores; de fazer durar os seus regimes de partido único ou de per-feita ditadura de parte dos novos governantes; no interesse ainda de se manter, hipocritamente, a idéia de que existe, com real poder, um parlamento geral de países, poucas notícias se dão do que, sob o aspecto político, acontece nas regiões que atingiram a independência. Ignoram-se as tribos que as fronteiras separaram; ignoram-se as oposições encarceradas, exiladas ou assassinadas; ignoram-se as lutas de religiões e de tipos de vida; ignoram-se as farsas elei-torais. Dir-se-ia por vezes que as agências estão mais interessadas em noticiar os conflitos de brancos e pretos nas regiões ainda em regime colonial, e em insistir nos benefícios que a libertação lhes traria; benefícios no entanto mais seguros para os investidores de capitais e para os autocratas subordináveis do que para as grandes massas de população.

O papel importante das tribos

Foge-se ao fato inarredável de que o primeiro passo a dar em África seria o das autonomias tribais, reuníveis ou não em federações, que sempre de qualquer modo teriam seus limites não coincidentes com os das atuais “na-ções”. O que na realidade existe para o africano não é o indivíduo nem a nação, mas a tribo e, embora o complexo de cultura tribal tenha sido de há muito atacado e limitado pelo colonizador branco, a verdade é que ainda mantém na África um status, que faz que as instituições de origem e caráter europeus sejam um simples fenômeno de alienação superficial. Tudo o que se construir em África que não tome como base a tribo terá a duração que tiveram os regimes autoritários e ainda na medida em que estes se possam apoiar na economia e nas construções políticas dos brancos. Bastaria uma guerra em escala mundial que obrigasse a um abandono mesmo temporário da África para que desabasse num momento tudo o que, embora sobre os passos de portugueses a partir do século XVI, se construiu ou julgou construir sobretudo a partir do século XX.

Excluído de sua tribo por estruturas euro-européias [sic]1 que a não aceitam, não podendo, por outro lado, aceitar como boas estas últimas es-

1 Leia-se: euro-americanas. [Nota do Organizador]

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truturas; convencido a cada momento de que os seus valores culturais são inferiores e estão destinados a perecer, com exclusão talvez do que se refere à arte, esta mesma, no entanto, tão apreciada por artistas de origem cultural européia, incapazes do ato inicial e fundamental, que seria o de entender, en-tender sentindo, o significado religioso dessa arte, habituados como estão à arte de quem lhes paga, não à arte do a quem veneram – começa o africano a adotar como únicos valores aqueles que o têm sido na realidade para a maior parte dos euro-americanos, a riqueza, a fama e o poder, e a considerar como cultura o que na realidade é tao-somente engenharia.

É isto o que fazem as Universidades africanas que são, todas elas, Uni-versidades européias implantadas em África, com uma honrosa exceção para a do Cairo, interessante, no entanto, e apenas, para comunidades muçulma-nas. O que as outras levam ao africano é a medicina, ou a hidráulica, ou a agronomia, ou a farmácia, de cuja utilidade ninguém discutirá, mas que se desenvolveram na Europa sobre um substrato cultural, uma filosofia de vida e uma integração social que são em África completamente diversas. Quando se procura o que há de verdadeiramente cultural no ensino universitário africa-no que seja de África mesmo, nada existe que se mostre; ensinam-se filosofias européias, religiões européias, histórias européias, artes européias; é a velha idéia de civilizar o selvagem, quando tudo mostra, na crise de nossa própria cultura, que valeria a pena tentar a experiência inversa, a de asselvajar o ci-vilizado, dando-lhe a noção da solidariedade de grupo, do tempo que não é dinheiro, mas condição de vida, dum existir que é ser antes de ter.

A civilização africana

Uma verdadeira civilização africana só pode surgir do que a África é, não do que se quer que ela seja, ao agrado dos brancos, das potências e das denominações. Parar de catequese e servir seria um bom início de ação. Deixar de querer converter a cristianismos, ou islamismos, hoje muito mais agressi-vos, para ajudar os africanos a converterem-se ao melhor, ao mais profundo das suas próprias religiões; deixar de pregar as excelências do Estado cesarista, que já fez parar e desviar-se o que na Europa se ia verdadeiramente construir sobre as palavras de Cristo, para os ajudar a reorganizar a tribo, tanto como nós precisaríamos de quem nos ajudasse a reorganizar o municipalismo; dei-xar de proclamar o primado da tecnologia, para lhes dar a oportunidade que não tivemos nós de saber que essa tecnologia só é válida quando serve a uma filosofia; auxiliá-los a construir ou reconstruir em bases atuais uma economia

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tribal, afastando-se por um lado do estatismo socialista, por outro lado do capitalismo da concorrência e do lucro.

Quer que a ajudem a desembaraçar-se de suas gangas históricas, das fatalidades de seu meio, dos erros que tem havido em seu viver; quer que tam-bém aprendam com ela. Missionários, os dispensa; amigos e discípulos, os reclama.

A missão do Brasil

Por-se-ia, como hipótese, que o Brasil, apesar de todos os seus recur-sos, ainda se não deu a trabalho que o valesse, não por obstáculos internos ou externos, mas simplesmente porque o não concebeu suficientemente claro. E, se algum trabalho tem, é esse de ajudar a sair de suas indeterminações os povos do mundo que não encontram, nas grandes nações, guia algum que valha a pena seguir; primeiro, a África.

Tem os três pontos básicos de partida, a que se agrega, da parte de quem o receberia, o elemento essencial, que é o da confiança na absoluta isenção im-perialista do Brasil, no seu real desagrado por uma economia de exploração, no seu interno gosto por uma integração racial, que tende, não à convivência de raças, o que já seria muito, mas a uma sua fusão numa raça ecumênica.

O seu primeiro ponto de partida o tem o Brasil dentro de seu mes-mo território. Para todos os que participaram da experiência do Instituto de Estudos Afro-Orientais2 que a Universidade da Bahia realizou no reitorado de Edgard Santos, nenhuma dúvida ficou quanto à receptividade africana às propostas que partiam de Salvador, quer as de se abrirem cátedras de estudos brasileiros em Dacar, ou Ibadan, ou Acra, quer a de se manterem em Salva-dor ensinos de línguas africanas, quer a de se estabelecerem Institutos Cul-turais Brasileiros em S. João Batista ou Porto Novo, quer a de se trazerem estudantes africanos a estudar em nossas Universidades, o que sob o ponto de vista técnico, fora um ou outro caso, lhes não seria vantagem, quer a de abertura de novas representações diplomáticas, quer a do envio de exposi-ções brasileiras, quer a de um trabalho comum de nossas e suas estações de hidrobiologia para um estudo conjunto do Atlântico Sul, quer a do levanta-mento de documentos etíopes, quer a da montagem de escolas industriais tipo

2 Exatamente, Centro de Estudos Afro-Orientais. [N.O.]

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SENAI3, quer a de colaboração para o estabelecimento da história da África Oriental, quer as tantas outras que, por acidentes de política interna do Brasil, por timidez de dirigentes, por aculturação européia e vários outros fatores, não chegaram a aproximar-se de termos de realização.

Salvador, sob a latente inspiração de seu Recôncavo, é o penhor de uma África Ocidental virada ao Brasil e dele disposta a receber sua guia e conselho; por este aspecto, é ela a cidade mais importante de todo o País e a que poderia, numa política cultural convenientemente dirigida e executada, ser o ponto-chave de todo o Atlântico Sul; o outro meio círculo de Recôncavo vai do Máli às fronteiras de Angola.

O Brasil é Portugal

O outro fator vital é que o Brasil é Portugal, não irmão ou filho de Por-tugal, mas Portugal mesmo. Houve colônia, certamente, e o governo português não pôde, como era natural, fugir às determinantes de política e de economia da Europa, embora em grande parte das vezes tivesse tratado o Brasil, ou a parte de sua população que ao Brasil viera, com mais consideração por suas tradições e suas tendências do que tratava quem ficara em Portugal; houve colônia, mas à medida que se estudam os documentos se averiguam as grandes correntes culturais de Portugal, se aquilata melhor da qualidade do povo que emigrou, verifica-se que se dirigiram ao Brasil de preferência os portugueses que conti-nuavam na linha do município, de uma economia não-capitalista e da religião que punha o Espírito Santo como fundamental na Trindade e o punha reinan-do na perfeita fraternidade do Quinto Império. De modo que, se tivéssemos de determinar em qual dos territórios se conservou melhor a verdadeira linha cultural de Portugal, certamente a nossa resposta teria de se inclinar ao Brasil.

Mas Portugal, hoje, não é apenas a metrópole e poderia dizer-se sem grande receio de contradição que se a política africana de Portugal tem sido de desserviço ao próprio país, nos seus interesses imediatos, ela tem sido um dos maiores serviços que se poderia ter prestado ao Brasil, ao Brasil da futu-ra, necessária e inescapável missão. Portugal, conservando, o mais possível, os territórios ultramarinos, abre ao Brasil, com a Guiné, o ajudar a África a que, imprópria mas comodamente, poderíamos chamar sudanesa; com Angola, a África banto; com Moçambique, toda a Costa Oriental, a velha Contra-Cos-

3 Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial. [N.O.]

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ta; além de, por Macau, lhe oferecer, num perfeito regime de convivência, as comunidades chinesas; por Timor, as comunidades malaias; e quem sabe se a lembrança de Goa não poderia propiciar maior integração, por um Estado comum, entre os Estados Unidos do Brasil e a União Indiana. Portugal, baten-do-se, e quaisquer que sejam seus motivos conscientes, está-se batendo apenas por mais tempo para que se constitua a Confederação de Povos de Língua Portuguesa, já nitidamente definida em três sub-regiões: a do Atlântico Norte, de Portugal a Cabo Verde, com autonomia das Ilhas Adjacentes; a do Atlântico Sul, com os três pólos de Guiné, Angola, Brasil; a do Oriente, jogando a África, por Moçambique, ao encontro da Índia, da China, da Indonésia, mais afasta-damente, mas com não menor importância, das Filipinas e do Japão.

Um dos problemas mais importantes que se principia a pôr quanto a Portugal é o da sua posição na Península Ibérica, a qual depende fundamen-talmente da validade e persistência de seus laços ultramarinos. Uma involução na Ibéria pode ser uma conseqüência fatal da modificação de estatuto dos ter-ritórios africanos, mas tal se não daria se a Confederação viesse a constituir-se: é a única maneira de haver autodeterminação sem quebra do conjunto. Mais ainda: constituída a Confederação, com toda a sua importância, política, cul-tural e econômica, seriam as várias regiões espanholas que teriam interesse em integrar-se na nova comunidade pela sub-região Norte.

A integração peninsular, dominada e vitalizada não pela meseta, mas pelo mar, seria, além de fator de influência para o grande Magreb, o agente ca-talítico da integração da América Latina, talvez com os dois pólos, do México e do Brasil, integráveis em duas regiões distintas, e que daria à Confederação quase toda a costa ocidental do Pacífico. A mancha de língua portuguesa e espanhola, tendo como sua primeira tarefa comum o trabalho de África, a que tanto devemos, seria um dos mais poderosos fatores de paz, daquela que co-meça pelo desarmamento dos espíritos e pelo desejo de servir, pagando as dí-vidas que a humanidade, para se desenvolver, foi criando pelo mundo afora.

Só o Brasil poderá tomar uma tal iniciativa, porque só nele acreditarão e só à sua volta se poderão reunir povos. Creio que o primeiro passo seria o de se reunirem, e sempre tenho apontado Cabo Verde como o ponto ideal de encontro, intelectuais do Brasil e de Portugal, para lançarem os pontos básicos de trabalho, reunião essa a que se seguiriam as de economistas e juristas que apurassem as possibilidades e conveniências materiais e de direito, até que um dia, esperemos que não venha longe, governos e diplomatas estejam bastante convencidos para que a instituição possa surgir. Estamos no momento certo para que se principie; esperam-nos a África e, para além da África, o mundo.

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Fontes e Pontes do FuturoTema: educadores Portugueses – António Sérgio

SILVA, Agostinho da. Fontes e pontes do futuro. Tema:

Educadores portugueses – António Sérgio. Vida Mundial, o

mundo numa semana, Lisboa, ano XXXIV, n.o 1.732,

18 ago. 1972, pp. 49-51.

Como muitas vezes se confunde educador com professor, será bom principiar por esclarecer que Antônio Sérgio, em toda a sua vida e em todas as suas atividades, foi fundamentalmente educador, só episodicamente exerceu o ensino: andou, ao que eu saiba, pelo secundário num pequeno colégio, para os lados da Estrela, onde deu aulas de Filosofia a alunos que se preparavam para entrar na Universidade; quanto a ensino superior, incompatíveis por vá-rios motivos ele e as universidades, apenas, num regresso de exílio, ocupou em Santiago de Compostela, e por pouco tempo, uma cátedra de Literatura Portu-guesa. Claro que sempre entrara em Universidade, mas por outro caminho, o de autor no programa, segundo o giro de tanta Universidade por esse mundo fora que detesta a inteligência, enquanto viva, e monotonamente zumbe sobre ela depois de morta. No fundo, melhor foi para ele, porquanto se demonstrou mais sua tese favorita, a de uma urgente reforma da mentalidade, e escapou dos maus efeitos que o lugar sobre ele poderia ter tido. Mal que lhe veio por bem, como são muitos, embora na maior das vezes de tal nos esqueçamos e sejam as nossas reações não de paciência e espera mas de contra-ataque ou desânimo.

Não foi, pois, seu destino o de educar meninos, submetendo-se com eles a todas as imposições dos programas. Coube-lhe a tarefa, mais alta e livre, de educar o próprio homem, não no sentido, que é habitual, de lhe cominar tal doutrina ou tal fórmula de vida, mas de reclamar a sólida saúde e o claro inteligir que o leve a contemplar mundo, a escolher o que de melhor nele ou em seu espírito achar e, em seguida, a tentar que vá a vida pelos caminhos que se lhe afigurarem melhores.

Talvez seja bom, nesta altura do escrito, confessar eu que não vou mui-to pela idéia de que possa ser o educando inteiramente livre perante o edu-cador: só perante o que não existe somos nós livres: para o resto, logo vem a

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limitação daquilo que é, como é. Se o educador tem por ideal que seu aluno seja livre, é esse então o modelo pelo qual o quer, o que não deixa de ser mo-delo e nem se sabe se metafisicamente certo, porquanto há discussão sobre se o homem é livre ou sujeito a forças de que não pode escapar. O que acontece, porém, é que há modelos que são, para cada um, mais ou menos simpáticos, por os achar mais ou menos certos, mais ou menos de acordo com o que se lhe firmou como ideal. Para que não haja nenhuma espécie de confusão e não se veja, nesta minha dúvida quanto à liberdade de educandos e educado-res, alguma espécie de limitação a Sérgio, direi que o meu modelo seria, esse também, o do homem fisicamente saudável, embora saiba de Pascal e outros; informado do mundo com amplidão e segurança, mas sem a erudição que tantas vezes abafa a capacidade de imaginar e julgar e agir e de reserva sempre para as idéias novas que possam surgir. Homem impaciente de quem despreza o corpo por amor do espírito, e do contrário; furibundo e de dente e garra quando lhe querem pôr freios ou quando o querem convencer de que o cami-nho de progresso do homem está no obedecer a quem se dá ares de possuir a verdade; hostil aos que defendem o pouco talento de que Deus o dotou, se de algum, com cuidadas aparelhagens que aos outros impedem demonstrar que nem tudo que brilha é ouro e há muito pechisbeque à mira de contraste que o garanta do melhor quilate.

Ora parecia a Sérgio que, assim como, geograficamente, Portugal, o do Continente, que afinal quase só desse tratou, e aqui lhe teremos real limitação, como a Verney ou Herculano ou Antero, se divide em dois territórios bem dife-rentes um do outro, o Portugal do Norte, atlântico, plantador e, será que o pos-so dizer, gótico, e um Portugal do Sul, mediterrânico, itinerante e, vamos pôr o simétrico, mouro, há também na história dois países distintos, um até ao século XV, outro depois do século XV; é esta, de resto, e é bom notá-lo, uma fratura que Portugal partilha com a Espanha: é também nos inícios do século XVI que Carlos V, vencendo em Villalba os “comuneros”, abafa a verdadeira Espanha, a dos “fueros” e liberdades regionais, já muito enfraquecida, além de tudo, pela centralização leonesa e, principalmente, pelo reinado de Isabel e Fernando. Em Portugal, onde, apesar das aparências, a revolução popular do século XIV deixa de o ser com a subida ao trono de D. João I e a ascensão da nobreza nova, com impressionante ecoar pela história fora até ao fracasso do setembrismo e ao desvio da República, poder-se-iam pôr como datas-limite a proclamação de D. João II, admirado pela Católica,1 olhai aí, ou a partida da expedição para a Índia, paralela, quanto a efeitos, a terem os reis espanhóis cedido a Cristóvão Colombo, ou a matança dos judeus de Lisboa no tempo de D. Manuel.

Fontes e Pontes do Futuro. Tema... Agostinho da Silva

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Se quereis saber como era o primeiro Portugal ou, pelo menos, como o via Sérgio, embora não falasse aí das liberdades municipais, nem da econo-mia coletivista, nem dos sentimentos e criações religiosas, mas, basilarmen-te, de como funcionavam os espíritos e se tomavam resoluções, lede o ensaio sobre a conquista de Ceuta. Aparecida a idéia ou emitida a hipótese, para mais assimilarmos o caso ao que se passa em ciência, de que era desejável tomar Ceuta, ou porque a pirataria incomodava as costas e os navios portu-gueses, ou porque a sua posse manteria em respeito o Reino de Granada, se é que queríamos boas relações com o castelhano, ou seria ameaça para o caste-lhano mesmo, caso fosse remisso, ou porque ali ia o trigo que já principiava em falha de Inglaterra, feita, pois, a suposição de base, cientificamente se documentam os portugueses espionando o porto, onde os bons surgidouros, onde mais fortes as defesas, onde mais vulneráveis elas, nos pontos baixos de praia a que se lançará a hoste. Primeiro, hipótese, depois, mapa, como em estado-maior, mapa cartografado, como o foram daí por diante todos os de Portugal, por quem viu e ouviu, não de lendas e contos; depois haverá a enumeração dos recursos e a ida ao Porto do Infante, para os bons navios em que o burgo era rico, em seguida o disfarçado navegar, e, só no fim, na altura certa, o ímpeto a que nada resiste.

Quebrado Portugal com o mercantilismo das navegações da pimenta, como se quebrou a Espanha com o ouro de México e Peru, sem que, cá ou lá, se escutasse o “Velho do Restelo”, que preferia a tudo a ordenação doméstica e, quando muito, a integração do Magreb na Ibéria ou a unificação de Magreb e Ibéria; quebrado com o enfraquecimento da organização municipal pelo po-der absoluto do rei; quebrado com a introdução de instituições que de cristãs só tinham o nome, como só de cristãos tinham o nome seus adversários pro-testantes; só num ponto, o da construção do Brasil, fato que Sérgio não viu, mas o viu Cortesão, o País continuou a ser o que era, no resto nem sombras, como logo o testemunharam um Camões, um Diogo do Couto, um Mendes Pinto, talvez o mais duro de todos, os economistas que Sérgio antologiou e os iluministas e estrangeirados do século XVIII e tema em que insistiram os ime-diatos predecessores e seus mestres que foram Alexandre Herculano e Antero de Quental, talvez sem a merecida atenção ao que fez um Garrett.

Estrangeirados, digo eu, para seguir a nomenclatura vulgar; naciona-listas do primeiro Portugal, do Portugal de raiz, do Portugal autêntico, é que eles foram, como Sérgio o foi, e fiquem os estrangeirados do outro lado, com quem se tornou implacável defensor de uma economia de exploração do ho-mem pelo homem, que Portugal repele; com quem julga que governar e ditar

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são exatamente a mesma coisa e nada aprendeu na experiência das vereações e das Cortes, nem meditou a grande lição que é aquele conselho das vésperas de Ceuta, com o rei a discutir a grande empresa com seus pares e amigos, tão jovens uns como o Infante, tão “russos” outros como já o era D. João; estran-geirados ainda com quem não acaba por entender que Portugal é ecumênico mesmo, de pensamento, de alma e de fé, e precisa de saber, livre, de tudo o que se passa no mundo e de em tudo intervir com sua opinião e de, pela opinião de todos, à sua própria modelar.

A educação, portanto, que Sérgio reclama não é uma educação que nos aproxime da Europa, à maneira do que propunha Ribeiro Sanches e quis exe-cutar Pombal, que, por déspota, não era português, mas só um estrangeirado à Frederico; é uma educação que nos restitua a nós próprios. Do século XVI para cá, segundo Sérgio, temos estado num cativeiro da Babilônia onde, já não sentados, mas prostrados, choramos o Sião de que tão mal cuidamos, surdos aos alarmes e apelos de um Sá de Miranda ou de um Jerônimo Osório, e quem sabe se não é deste mesmo, quer ele o quisesse ou não, o sentido profundo do salmo em redondilhas de Luís de Camões: de então para cá só tivemos um ou outro relâmpago de beleza particular, entre eles Sérgio, digo eu, mas do que precisamos mesmo é da beleza geral de um povo-comunidade, comunidade econômica, comunidade política, comunidade educativa, comunidade meta-física, comunidade de vida e morte, com todos padecendo as mesmas dores, se as tiver de haver, e jubilando nas mesmas alegrias que decerto virão.

Quando António Sérgio prega o sistema cooperativo, ao mesmo tem-po que, em artigos meio esquecidos, fala nas técnicas novas que, trazendo a abundância, poderão ultrapassar qualquer sistema econômico, o que ele quer, e apoiando-se nas tendências coletivistas que sempre foram nacionais e que sobreviveram até hoje, apesar de romanos, visigodos, árabes, cavaleiros fran-cos e monges de Cister, é assegurar ao povo português.

Além de tudo, que é cultura para Sérgio? Não é saber; sabiam muito os sábios alemães, mas raros foram os que até não encontraram no saber mais motivos ainda para não intervir, e até para agravar o que se passava no seu país pelos anos 30 e 40; sabiam pouco os camponeses, operários e pescadores que, quando floresciam sábios em Roma, e Roma, apesar disso, decaía, seguiram outro operário também de pouco saber humano e mudaram o mundo. Cul-tura não é o que se aprende em livros, nem ser culto é tornar-se em armazém de noções, o que traz como conseqüência que sejam na realidade quase todas as escolas que existem pelas nações escolas de incultura e não de cultura; tudo a peso para o exame, nada do imponderável para o espírito. Cultura, põe-no

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claramente Antônio Sérgio, é o infatigável exercício do espírito crítico, o dom inato, e aqui entrava toda a sua metafísica de essência platônica, cartesiana e kantiana, nunca tendo descoberto a nossa mesmo, a dos ditados, quadras, cultos populares e dom inato de esclarecer idéias, de concatenar noções, de mostrar o universo como máquina coerente, embora porventura misteriosa e por aí solicitando nosso contínuo avanço. Cultura é o espírito laborando no espírito, embora lhe seja material o conjunto de fatos, que eram já, de resto, para Sérgio, produtos, eles próprios, de um pensamento pensando; cultura é o essencial no essencial se exercendo, o que já está bem perto daquilo a que An-tônio Sérgio chamava de misticismo racionalista, e cuja elaboração sistemática ou completa vivência a vida o impedia de atingir.

Política lhe foi sempre também meio de atingir cultura, nunca ad-mitindo que o cidadão não participasse da República e que fossem tomadas sem seu consentimento as resoluções que todo o presente e todo o futuro lhe comprometeriam. Mesmo quando por algum tempo as idéias de executivo forte e de ordem geral, muito distinta de ordem pública, estiveram um pou-co embaraçadas em seu espírito, mesmo aí, não concebia que uma resolução dessa natureza pudesse ser votada senão pelo povo, com fins determinados e por determinado tempo. Cultura e democracia lhe apareciam em união indispensável para que pudesse o povo um dia, no seu total, atingir o nível que por natureza e vocação tem de ser aristocrata, isto é, de se saber governar cada homem racionalmente a si mesmo, sem mais interferência de pessoa ou instituição alguma.

Para tudo isto, e voltemos aos professores e às escolas, se tem de refor-mar o sistema de ensino, fazendo que, desde a infantil à Universidade, desen-volvam aulas, laboratórios e ginásios, já que diretamente não desenvolve a vi-da, como devia se estivesse bem organizado, o corpo e o espírito, a capacidade de raciocinar e agir, os meios próprios de imaginar e criar de toda a criança, adolescente ou moço que se lhes confie, ao adulto se estendendo também na indispensável educação popular. Varrido o humanismo, que, simultaneamen-te, em Sérgio acaba no homem e ao homem transcende da sua ligação com as línguas e culturas clássicas, é preciso que ele esplenda, iluminando caminhos, nas línguas modernas e fundamentalmente nas ciências, que não devem ser ensinadas como feitas, mas como fazendo-se, pela observação dos fatos e a estranheza perante eles, pela invenção da hipótese pelo imaginar da experi-mentação, pelo colher dos dados, pela sua integração no já conhecido e pelo rasgar de novas avenidas. O essencial é que o ensino científico inculque nos espíritos a dúvida metódica, o alerta crítico, a noção de que todo o resultado

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da ciência é puramente conjectural, sempre no limiar de uma confirmação ou de um desmentido. Para o que é necessário ser confiante perante a inteligência e humilde perante o mundo. Quanto à filosofia, antes se não ensinasse ela do que se dê ao aluno a idéia de que chegaram os filósofos a qualquer espécie de certeza ou tenhamos dos sistemas que têm sido elaborados a idéia que tería-mos de Haydn ou Mozart, se mestres de música, em lugar de as fazerem tocar, nos assobiassem sinfonias. Filosofia é uma pilha de hipóteses; só, a mais do que isso, a certeza de que o espírito pensa: daí se irá ao resto.

Como conclusão de tudo se poderia repetir a frase que Sérgio gostava de citar como resumo do que queria com todo o seu pensamento e toda a sua ação: “Ser grego é conversar com os homens”, deixando para o bárbaro impor idéias, inculcar sistemas, excluir leituras, proibir que se diga isto ou aquilo, troçar do adverso, caricaturá-lo para o demolir, ou fechar-se num silêncio que se quereria superior, mas é a prova mais plena de inferioridade perfeita. Ora o que Sérgio poderia ter citado, ao mesmo fim, era a frase de um homem nosso, sobrevivente ainda do século XV, na esteira ainda da real cultura portuguesa, quando se funda no Brasil, em São Vicente, hoje no Estado de São Paulo, o primeiro município; é o homem Pêro Lopes de Sousa e diz ele, em seu “diário”, que se fizera o município para que fosse “a vida conversável”. Por esta “vi-da conversável” pensou, escreveu, falou, existiu Sérgio: por causa desta “vida conversável” o sacrificou o Portugal do seu tempo; julgando que a matava e o matava: os dois, porém, conosco estão, conosco estarão.2

Notas1 Refere-se Agostinho da Silva a há pouco mencionada rainha Isabel, cognominada “a Católica”. [N.O.]

2 Na série de colaborações que escreveu para a Vida Mundial, sob o título geral “Fontes e pon-tes do futuro”, Agostinho da Silva costumava publicar um texto principal e mais três colunas, intitula-das “Antologia”, “Apontamento” e “Ficha de Leitura”, com as quais completava o conjunto da seção de “Educação” daquela revista. Com este artigo sobre Antônio Sérgio, não foi diferente. Optamos, no entanto, por apresentar aqui “apenas” esta peça central sobre o autor dos Ensaios. [N.O.]

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Alguma nota sobre Casais*

SILVA, Agostinho da. Alguma nota sobre Casais. Cadernos de

Teoria e Crítica Literária, Araraquara, SP: Setor

de Teoria da Literatura da Faculdade de Filosofia, Ciências

e Letras de Araraquara, n.º 4, jul. 1974, pp. 15-26.

De vez em quando sucedem milagres, se Deus os consente e neles se empenham os homens. Num país de ensino rotineiro, com mais interesse pela nota e pela autoridade do catedrático do que respeito pela ciência e liberdade de discernimento pessoal, surgiu a Faculdade de Letras do Porto, que era toda ao contrário, inimiga da burocracia e fosse do que fosse que pudesse lembrar Coimbra e seus malefícios de séculos e incitadora de descoberta própria mais do que de aprendizagem servil, bem longe de ser a escola técnica de profissio-nais de ensino em que se transformaram as outras.

Em dois grandes grupos se dividia, liderado um por Teixeira Rego, que podia ter sido bom matemático e físico – ouvi-o propor a teoria da luz de Bro-glie antes de Broglie – e ensinava filologia, pois ainda se não tornara ciência ou moda ser pedante em lingüística, e o fazia com mais gosto para quem o acom-panhava na velha livraria Lello do que para quem, em obediência ao currículo, se matriculara na cadeira; o outro por Leonardo Coimbra, que podia também ter sido matemático e campeão remador, como Rego de tênis, e ensinava filo-sofia, ou antes, que isso era o certo, vivia filosofia, com muita agudeza e saber, como mestre, e muita angústia e caminhos torcidos, como homem, dando nota boa a quem se interessava e a quem se não interessava pela matéria – tive distinção na turma destes, pois que era o indo-europeu de Teixeira Rego meu pasto favorito –, tudo no Café Majestic, como o filólogo na Lello.

Casais, que entrara na Faculdade pelos anos 25 ou 26, quando eu, mais antigo no planeta, pelo menos no planeta escolar, me dava já ao luxo de ler Terêncio e Homero e rodava longe dos filósofos como Eugênio Aresta, José Marinho, Sant’Anna Dionísio ou Álvaro Ribeiro – Casais andava a um tempo pela metafísica e pela literatura, aquela mais livre ainda que a de Leonardo

* Impresso, posteriormente, em formato de folheto, “à parte para cem Amigos”, nas palavras do próprio Agos-tinho. Para a presente edição, adotamos o texto desta última impressão, na qual o autor, praticamente, não efetuou alterações. [N.O.]

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– o qual, por filósofo, fora reprovado em seu concurso de professor para a Faculdade de Letras de Lisboa – esta, a literatura, quase tão erudita como a de Salgado Júnior, o grande comentador de Camões ou Verney ou Antero, também reprovado, claro está, pela Faculdade de Letras de Lisboa noutro con-curso para professor.

Nunca vi ninguém estudar tanto e tão seriamente como Casais naquela Biblioteca Municipal do Porto, que conservava no acervo e na atitude a lem-brança de um Herculano, de um Rocha Peixoto, de um Martins Sarmento ou de um Sampaio (Bruno), este último educador do próprio Teixeira Rego, que fisicamente acabara por se parecer com seu Mestre. Já era o Casais daquela altura e daquela longa cabeça que o Brasil veio a conhecer, mas quase ficava oculto pelas pilhas de livros que requisitava de cada vez e que lia com voraci-dade e velocidade, muito antes de terem aparecido os métodos americanos de correr num segundo as páginas pares e adivinhar por elas as páginas ímpares; que lia, entendia e digeria em alimentação própria, sempre com um belo jeito de não ter grandes notas, como que a reservar-se para dar a sua medida na grande e difícil vida que o esperava.

E que já principiara, porque a erudição não era para Casais, como para tantos, uma forma de se esconder da vida; as noites pelas ruas do Porto, pacato ainda e provinciano mais que nunca, eram por Casais e seu grupo – o de um Viriato Gonçalves ou de um Horácio Cunha, de que poucos sabem e saberão, pois tiveram o excelente destino de serem extraordinários e de ninguém dar por eles – com exceção da polícia política, é evidente –, do mais ruidoso que se podia imaginar, bastante de acordo com o tom que o País ia tomando por aquelas alturas.

Nisto nos dividíamos, eu e Casais. O indo-europeu é mau conselheiro político – embora fosse a República a deusa de Teixeira Rego –, talvez, por outro lado andasse eu muito sob a influência de Goethe, coisa de que me curei depois, e prezasse sobre tudo a Ordem, com muita impaciência perante as fraquezas e os compromissos dos políticos e as injustiças que a cada momento via praticadas, o que já não era muito goethiano; o nosso poeta e crítico temia principalmente a ditadura que se aproximava e que, apesar de tudo, era apenas militar, quando o que realmente ameaçava o País era o obscurantismo coim-brão e o mesquinho espírito do quintal das couves. Quando tudo se decidiu, fiquei eu com a tropa, ele com a Constituição. Menos de um ano depois, entrei na Seara Nova,1 e tive o gosto de ser demitido do serviço público ainda antes de Casais Monteiro; onde iria o Goethe!

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Com Espanha, França e outras aventuras, perdi de vista Casais, que entrara na Presença, andava ensinando e fazia política. Não sei se o vi em São Paulo, na altura do Centenário, quando devia ele estar por Congressos2 – mas vi Delfim Santos, outra cria do Porto – e trabalhava eu na Exposição de História3: só o encontrei plenamente na Bahia e naquela Universidade que a imaginação, a inteligência, a habilidade humana e o prestígio de Ed-gard Santos transformara numa espécie de corte do Renascimento. Casais chegara para ensinar na Faculdade de Filosofia, na Cadeira de Hélio Simões, e na Escola de Teatro de Martim Gonçalves, viera eu propor a Edgard San-tos que se fundasse aquele Centro de Estudos Afro-Orientais que iniciou a política africana do Brasil e que talvez tivesse feito o mesmo com o Oriente – só trabalhou com o Japão e os Árabes – se o Presidente Jânio, que tão bem entendeu o Centro, não tivesse, por outro lado, deixado de reconduzir o Reitor no cargo de que jamais deveria ter sido apeado. Em 59, porém, só o Reitor me acompanhou na ousadia e praticamente se trabalhou a ocultas da Universidade, que talvez derrubasse o Centro se o tivesse sabido a funcionar; o escritório era no subterrâneo da Reitoria e, para disfarçar a minha pre-sença, inventaram-se na Escola de Teatro aulas de filosofia, não sendo esta a última vez em que havia de ensinar o que não sei; coisa muito útil, porque se aprende muito estudando com aluno.

Aí aprendi ainda a conhecer a generosidade humana de Casais, o seu entusiasmo por poder ajudar os escritores locais, o seu gosto de relações, a real identificação com que no Dois de Julho acompanhava, com as autoridades e o povo, o cortejo cívico dos Caboclos, muito admirado – mas não tinha de quê – de que um catedrático português, por esse tempo em Salvador, considerasse a festa como ofensiva para os seus brios de patriota dileto do regime, não das Musas. A todos, alunos ou não alunos, animava e ajudava Casais, empresa em que naturalmente, como sempre sucede, gastava às vezes ótima cera com pés-simos defuntos. Quando vinha a desilusão, que muito o feria, ou ficava dois ou três dias de papo para o ar, estendido na cama, meditando nas injustiças do mundo, e assim o encontrou Jorge de Sena, que tanto admirava Casais, quan-do em 59 desembarcou no Brasil para uma vida nova e grande, ou tinha um ataque de humor negro, de que sempre acabavam por o tirar a extraordinária Raquel Moacir e algum mais certo amigo como Pedro Moacir Maia, ou certo e vário como aquele talentoso e protéico Jair Gramacho, poeta principal, hele-nista e perfeito no seu imprevisível.

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Depois o vi cansar-se de tanto folclore baiano, que ia o nosso homem mais de que muito pelo velho Descartes e pelo “toute ma physique n’est que géométrie”, e abandonar, herdando-a eu, a casa da Federação, enquanto abala-va para o Sul, a buscar seu jornal, ou Faculdade ou editor. Intuição e razão nele se disputavam o trono, a ordem e a desordem nele o atraíam por igual, mas não vinham ao mesmo tempo, e depressa o cansavam durante o seu reinado. Além de tudo havia a saudade da velha Mãe e da sua Casa Grande de Ruivães, naquele exílio que era, simultaneamente, forçado e de gosto; não suportaria Portugal e lhe era difícil viver sem Portugal. Entre os contrários balançava, sem que tivesse chegado a alcançar que se unem as várias geometrias naquela que não tem dimensão alguma; por isso foi poeta, naturalmente, mas não na poesia de equânime altura que houve com Lao Tse ou Bashô; por isso en-tendeu como crítico tanta obra diferente, mas não pairou acima delas, como Sainte-Beuve, por exemplo; estar firme num rochedo e ver explodir mar não era dele; lhe eram casa a corrente, a onda e a ressaca.

* * *

Ainda me passou por Santa Catarina – e talvez fosse até antes de Salva-dor – e aí deu uma bela lição num Círculo de Filosofia que se tinha inventado naquele Desterro, sob a asa protetora de Henrique Fontes, o duro velho, e de Jorge Lacerda, aquele que os deuses, por o amarem, levaram jovem. Mas on-de o vi pela última vez foi no aeroporto do Rio, de viagem para São Paulo e Araraquara, onde se lhe metera na cabeça que me devia levar para a banca de seu doutoramento ou concurso, não sei mais. Ia, no seu jeito, com entusiasmo e com resignação; colegas e alunos lhe agradavam totalmente, tinha, naquele interior, todos os meios de trabalho de que podia precisar, ficava perto de São Paulo, onde lhe estavam amigos, livros, vida viva, podia passar suas férias no Rio, ao apartamento junto ao mar; o problema, porém, é que era homem de serra, e monge também de certo modo, e que Portugal lhe faltava.

Nunca o teve, e nem sequer aprendeu, com o desgosto que de vez em quando lhe dava a política feita no exílio, de que, mesmo que o tives-se, as saudades de Ruivães seriam substituídas pelas de Araraquara ou Itapuã, e que dificilmente deixaria de estar em oposição a qualquer go-verno que se estabelecesse no País, primeiro porque não há paraísos instantâ- neos, depois porque resta saber se seria o Paraíso o lugar de moradia a que daria Casais a sua preferência; não: saudades do Paraíso lhe serviriam, com seu amor e sua dúvida, seu avançar e seu fugir, sua plenitude e seu remorso. Não

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era homem para ter a felicidade, que não é, de resto, dos mais altos valores, nem para que a Paz o tomasse, que essa, sim, é valor; se jogar e jogar, eis seu destino, mas, perante esse destino, o espectador inteligente e sensível, e terno, e mole um pouco, que a aventura confrange.

Apesar dos filhos que finalmente se haviam escapado a Portugal, a morte de Raquel o marcava de solidão, ou o marcaria talvez de maior solidão, que só sempre ele fora; e não se sabe até que ponto, para algum velho, é a ju-ventude à volta sinal de solidão mais que de companhia. De algum momento para diante se tornou a sua vida, apesar de todo o entusiasmo pela literatura, e só nos menos bons pode ser ele absorvente, um caminhar lento e fatal para a morte; tão longe o via já, tão separado do que era realmente vida, que não lamentei muito que nos não tivéssemos encontrado durante o período em que lecionamos na América, ele em Wisconsin, onde, ao que parece, se sentiu muito bem, apesar do frio, eu em Nova York, onde recebi, por meus alunos, muita boa lição de humanidade excelente. Há quem morra antes de ter vivido e quem viva depois de ter morrido; houve em Casais as duas coisas: não creio que tivesse estado na América plenamente vivo; e estou seguro de que viverá mais e mais à medida que Portugal se despoje de seus falsos ouropéis de pode-roso Estado e renasça no espírito que o fez grande antes do absolutismo real, do capitalismo italiano e alemão e da opressão religiosa, isto é, na liberdade republicana, numa austera solidariedade econômica e na inteira fantasia de pensar Deus, ou de O não pensar; mais precisamente, de O pensar e de, simul-taneamente, O não pensar.

Notas1 O golpe militar que põe fim à República parlamentar portuguesa data de 28 de Maio de 1926; o ingresso do jovem Agostinho da Silva no grupo e na revista Seara Nova, de Outubro de 1928, mês em que estampa o seu primeiro artigo, “Carta aos velhos latinistas”, na célebre “revista de doutrina e crítica”, segundo seu subtítulo. De modo que não foi “menos de um ano depois” do tal golpe a altura em que se deu a sua adesão àquele notável cír-culo de intelectuais. O autor comete aí uma ligeira imprecisão cronológica, de resto, muito comum nos processos de rememoração. [N.O.]

2 É como convidado do Congresso Internacional de Escritores, decorrido naquela São Paulo de 1954, que Adolfo Casais Monteiro chega ao Brasil, iniciando a fase (definitiva) do exílio, donde pode dar-se como certo o reencontro, em São Paulo, dele com este seu condiscípulo da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. [N.O.]

3 Precisamente, Exposição de História de São Paulo no Quadro da História do Brasil, cuja realização se deveu a Jaime Cortesão e equipe, da qual, entre outros, fazia parte Agostinho da Silva, no contexto das comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo. [N.O]

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Ombrear com Herculano

SILVA, Agostinho da. Ombrear com Herculano.

JL - Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, ano II,

n.o 57, 26 abr. 1983, p. 12.

Creio que nenhum dos grandes vultos da história da cultura portugue-

sa poderia ombrear com Herculano tanto quanto Sérgio. Ligam-nos a exigên-cia do documento, a prioridade do pensar lógico (se é que há outro), a vocação pedagógica, a integridade do comportamento, a incansável intervenção cívica, a dedicação a um projeto de Portugal, a insistência numa reflexão de conjunto, e, na expressão, a virilidade de estilo, ainda mais vincada no de Vale de Lobos. Excede-o Sérgio na concepção filosófica, que vai além do kantismo, e, ao que me parece, pela breve referência que me fez a um seu “misticismo da razão”, mais o veria no caminho que abre a geometria analítica quando entendida por Espinosa – o que tudo se liga porventura a ser a linha matemática de Herculano (apesar ou por causa da Aula de Comércio – mas há a frequência do Oratório) bem tênue em comparação com a de Sérgio – e, sem matemática, bem curta será qualquer filosofia. Fica Sérgio abaixo do mestre na competência, decisão e serenidade com que o outro afrontou o quotidiano pragmático e o pragmático a largo prazo.

Diria agora que falharam os dois em ficarem demasiadamente ocupados com o Portugal que, como que adivinhando os conselhos do Velho do Restelo, interno se desenvolve e assegura até o fim do reinado de Dom Dinis; não enten-deram a expansão como certa para aquela condição do português que só fora do país inteiramente se revela, a de missionário e capataz e lutador, de que tanto gostaria São Bernardo, se é que a não previu. Dizia, a propósito, Manuel Bandei-ra que “todo o brasileiro é um português à solta” (o que põe o problema de saber que coisa ou coisas prendem o português em Portugal); acrescentaria eu, em imagem que me ficou de meu gostoso trabalho entomológico no Oswaldo Cruz do Rio, que o português em Portugal é larva apenas daquele que só no exterior rufla suas asas a um sol de vitória; e mal tem ido a tantos que o tentaram no interior mesmo; aí vem, para o atestar, o próprio Herculano e o próprio Sérgio, ou, ainda um seu mestre, Antero; e tantos outros dos “suicidas” de Unamuno: ou dos «suicidados», como melhor teria dito o salmantino.

Mas este defeito de, ao que creio, não ter Sérgio entendido a expan-são não é o que importa para o Portugal do nosso tempo ou do seqüente

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futuro: o avanço e afirmação da língua por todo o espaço a que ela outrora não chegou, está agora, ao que penso, a cargo dos outros países de expressão portuguesa, talvez com centro no Brasil; ao da Península vai caber, funda-mentalmente, o desenvolvimento interno – nunca mais o império sobre a miséria de um povo e a escravatura de tantos outros –, e desenvolvimento interno sobre a base política do municipalismo; não que a base vital de uma economia justa1 (enquanto a eletrônica e a informática nos não trazem a verdadeiramente humana, já sonhada por portugueses do século XIV e do século XV); sobre a base social da igualdade de oportunidades para todos, o que pressupõe economia de cooperação – talvez mais certa se for pelas linhas da que se esboçou em Vilarinho das Furnas ou Rio de Onor do que pelas que pensou Sérgio, as de Rochedale e Charles Gide; sobre a base de liberdade do pensamento político e metafísico, normal ou anormal que nos apareça.

Vai caber-lhe, mais, a participação, e talvez o papel mais importante, na reorganização da Península, em linhas que eliminem para sempre Carlos V e Filipe II, dando final triunfo aos “comuneros” e “irmandades” do século XVI. E lhe caberá ainda, com o restante da Ibéria, como se fez atrás pela álgebra, o aristotelismo e os descobrimentos, o renovar da carcomida Europa e, afinal, de todo esse hemisfério norte que tantos vêem ainda como ideal a atingir, quando é, apenas, um obstáculo a ultrapassar.

Talvez não interesse muito saber se António Sérgio está hoje vivo e atu-ante, como não interessa sabê-lo a propósito de Herculano ou de Antero: o que tem primazia é o saber-se que a História os não desprezará, porquanto trabalha ela com místicos alvos de futuro, mas racionais, matemáticos passos, atenção ao enlace das circunstâncias, e altruísmo que é falso se não se apóia em fundamen-tal pureza interna; ela os vai sagrar profetas e heróis, e quaisquer que tivessem sido suas fraquezas humanas, embora tantos dos nossos contemporâneos, que parecem fortes, poderosos e eternos (e alguma missão estarão cumprindo), se mostrem menos interessados em realizar os que chamam Mestres do que em imprimir-lhes os retratos em notas de banco. O Portugal que Sérgio sonhou da-rá certo, e ainda mais amplo será, embora por caminhos que se afiguram errados ou diferentes dos que ele próprio tomaria; ao contrário de outros países em que tudo dará errado pelos caminhos que se aplaudem como certos.

Notas1 Devido a possível erro de editoração, quando da publicação deste artigo no JL, sugerimos ao leitor que, no lugar de “não que a base vital de uma economia justa”, leia: “sobre a base vital de uma economia justa”. [N.O.]

ReSenHAS

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Romana Valente Pinho

O Essencial sobre Agostinho da SilvaLisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006. 95 p.&Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da SilvaLisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006. 476 p.

Visão analítica e plural sobre o pensamento de Agostinho da Silva

1. Introdução

Romana Valente é autora dos dois estudos biográficos e teóricos mais completos até hoje publicados sobre a totalidade do pensamento de Agostinho da Silva: O Essencial sobre Agostinho da Silva, e Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, ambos publicados em 2006. Com efeito, do seu conteú-do ressalta menos o encontro entre as ideias próprias e a obra de Agostinho da Silva e mais um escrúpulo de obediência ao conteúdo específico dos textos deste filósofo. Muito mais bem informados dos que as três biografias pioneiras de Artur Manso,1 ambos os livros de Romana Valente Pinho consolidam uma visão plural e analítica da obra de Agostinho da Silva, divorciando-se assim, através de uma perspectiva multidimensional do seu pensamento, das visões pedagógica (Maria Helena Briosa e Mota e Margarida Larcher Santos Carva-lho),2 culturalista (Renato Epifânio),3 espiritualista (Paulo Borges),4 raciona-lista (João Maria de Freitas Branco),5 católica (Maria Teresa Castro),6 esotérica (Elizabete de Almeida Ellys)7 e Sapiencial (José Florido),8 em que se divide actualmente a Fase Analítica da recepção da obra de Agostinho da Silva.9

Se em O Essencial… a autora espelha nos diversos capítulos a pluri-dimensionalidade da vida e obra de Agostinho da Silva, no segundo livro, a sua tese de mestrado, explorando do mesmo modo a totalidade das verten-tes culturais, pedagógicas, existenciais, filosóficas e religiosas de Agostinho da Silva, subordina-as, porém, a uma linha única, considerada, no seguimento do pensamento do mentor da tese, Paulo Borges, a bissectriz fundante do

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pensamento de Agostinho da Silva – o sentido de espiritualidade, postulado e demonstrado como sumo vector do seu pensamento: “O objectivo maior da obra agostiniana é a espiritualidade, a saber, a religião e a metafísica.”10

2. O Essencial sobre Agostinho da Silva

Com efeito, sem perder nunca o fito da espiritualidade como sentido último, a autora demarca claramente na “Introdução” a O Essencial…, e em harmonia com o livro maior, a visão pluridimensional apresentada: “… o pen-samento e a obra de Agostinho da Silva não se circunscrevem somente a uma ou outra orientação. Sendo assim, salientaremos a pluridimensionalidade da sua intervenção cultural, na medida em que abordarmos as vertentes socio-pedagógica, ético-política e filosófico-religiosa como fundos estruturais de toda a sua especulação e acção. Na verdade, se quisermos definir, em essência, a participação agostiniana no século XX português e brasileiro, teremos que assumir inapelavelmente a sua multiplicidade. Porventura, essa é a sua maior essência.”11 Neste sentido, Romana Valente Pinho realça os estudos de filologia clássica do estudante e doutorado Agostinho da Silva, bem como, num segun-do momento, a vinculação deste autor, menos ao ideário político da revista oposicionista ao Estado Novo, Seara Nova, e mais ao ideário pedagógico de António Sérgio, evidenciando a faceta de “educador” de Agostinho da Silva entre o final da década de 20 e o ano de 1944, data da sua partida para o Brasil. Assim, Agostinho da Silva, na esteira de Sérgio, teria sido um dos apóstolos da Escola Nova em Portugal. Porém, enquanto Sérgio submete a sua teoria educativa ao primado da razão, fundamento filosófico da organização demo-crática da sociedade, Agostinho da Silva, de mente religiosa, transcende este primado da razão analítica clara e distinta, fundamentando o seu apostolado cívico, cultural e pedagógico num ideal religioso comunitário, tendo como alicerce, primeiro, os conceitos helénicos de Verdade e Beleza, e, depois, o con-ceito-sentimento do Amor cristão, remissor da Dor, do Pecado e da Morte. O Cristianismo (1942) e Doutrina Cristã (1943), opúsculos de Agostinho da Silva, enfatizam a vertente espiritualista do pensamento de Agostinho da Silva, inexistente em Sérgio senão como ideal laico ou civil. Como Romana Valente Pinho sublinha, o que em Sérgio se trata de uma questão meramente social, em Agostinho torna-se uma questão espiritual: “Aquilo que, antes, e prima-cialmente, era uma questão social, passa (…) a ser religiosa e espiritual.”12

Integrando o pensamento de Agostinho da Silva nos traços fundos da cultura portuguesa, Romana Valente Pinho evidencia que a leitura deste, em-

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bora se encontre no estrangeiro e critique a política portuguesa do Estado No-vo, é oposta à “postura ‘estrangeirista’” (p. 49). Neste aspecto, realça a nova vi-são historiográfica de Agostinho da Silva, meditada no Brasil e vazada em dois livros dos finais da década de 50: Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa e Um Fernando Pessoa. Nestes, emerge o privilégio atribuído a um Portugal me-dieval e católico enquanto sociedade comunitária, gregária, descentralizada, municipalista, simbolizada não já pelo “Reino de Deus” na Terra em torno de Cristo, mas em torno do Espírito de Deus ou do Espírito Santo representado pela coroação do menino nas festas do Espírito Santo da Rainha Santa Isabel. Porém, esta vertente espiritual de Agostinho da Silva, coberta de teses “teológi-co-filosóficas” (p. 54) não deixa de possuir igualmente um vector político: “O Reino do Espírito Santo é também a vitória da luta contra a fome, da melhoria das condições de vida, do fim do capitalismo, da igualdade social, económica e cultural para todos os homens. A bem da verdade, quando o Reino do Espírito Santo se tornar uma realidade objectiva, os problemas da sociedade desigual e desequilibrada terão a sua solução, tão simplesmente porque os bens perten-cerão cooperativa e comunitariamente a todos. Não haverá lugar para injusti-ças sociais, todos terão o que comer e as prisões serão desnecessárias.”13

Como Romana Valente Pinho demonstra, vinculando multidimen-sional e analiticamente a teoria histórica, cultural, social e política às ideias religiosas de Agostinho da Silva, a partir da década de 50 todo o pensamento deste autor se subordina à sua concepção de sagrado como “Deus pentecostal” (p. 57): “A experiência do Espírito é a vivência do ecumenismo. No pensamen-to de George Agostinho da Silva, a doutrina ecuménica é uma filosofia reden-tora, salvífica e unificadora: no Reino do Espírito Santo, todos os seres estão mais próximos da sua essência. Afinal, todos se reconhecem ontologicamente equivalentes, na medida em que, para além de assumirem a sua individuação, reconhecem no outro a mesmidade que os compõe. Nesse processo dá-se um acréscimo de ser e de servir. Cada ser dá ao outro aquilo que é e que tem.”14

A assunção de um pensamento teológico original, totalmente hete-rodoxo às instituições da Igreja Católica, embora firmado na tradição desta, afasta Agostinho da Silva tanto da tradição estrangeirada portuguesa quanto do seu antigo mestre António Sérgio, quanto, ainda, do rumo politicamente nacionalista que nas décadas de 50 e 60 percorria a denominada “Filosofia Portuguesa” de Álvaro Ribeiro e António Quadros. “Monista e ecuménica” (p. 81), a doutrina sobre Deus de Agostinho da Silva recusa a existência de um Deus absoluto, transcendente ao modo católico, ou imanente ao modo espino-sista, afirmando a existência de uma divindade fazendo-se fazendo o mundo,

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a história e o homem individual segundo a absoluteidade de ser tudo para se realizar como nada, despindo assim as antigas características de omnipotência e omnisciência e afirmando-se, essencialmente, enquanto Espírito Santo, co-mo “imprevisível”. No final do seu livro mais pequeno, Romana Valente Pinho chama de novo a atenção para a característica de “pluridimensionalidade” da obra e da vida de Agostinho da Silva: “Em jeito de conclusão, diremos que Agostinho da Silva, no essencial, é um ser da pluridimensionalidade. Não só porque a sua obra ousa convocar a diversidade temática, mas também porque no seio de cada tematização busca o verso, o reverso e o transverso. Ousadia e busca que, de forma análoga, exercitou na sua própria vida.”15

3. Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva

Em Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, o mais com-pleto livro até hoje publicado sobre a obra deste filósofo e prolongando a her-menêutica plural de O Essencial…, Romana Valente Pinho integra o conjunto da pluralidade das vertentes do pensamento de Agostinho da Silva na dimen-são mais abrangente e iluminante da espiritualidade: “A existir uma dimensão hermenêutica preferencial no pensar de Agostinho, ela poder-se-á caracterizar de contornos metafísico-religiosos, tão-só porque, quando todas as dimensões são confrontadas e colocadas em causa, aquilo que persiste e que perpassa todas as outras é de natureza outra: a espiritualidade, que vem acrescentar ao Homem a devoção religiosa e metafísica – ‘onde o que importa não é o exercí-cio da política, mas o do Espírito’.”16

Neste sentido, Romana Valente Pinho detecta um inicial momento de formação do pensamento religioso e filosófico de Agostinho da Silva vincula-do ao pensamento grego, substituído, a partir da década de 40, pelo ideal cris-tão, primeiro do comunitarismo cristão primitivo, e, já a partir da década de 50, pelo ideal de Joaquim de Fiori da Idade do Espírito Santo. Nesta mudança de paradigma religioso, a autora evidencia a importância das obras de Agos-tinho da Silva sobre pensadores religiosos e sobre religião, nas décadas de 30 e 40 (São Francisco de Assis, Moisés, Buda, Confúcio, Maomet, Vivekananda…), na adopção da Teoria do Espírito Santo como espírito agregador, harmoniza-dor e unificador da pluralidade de doutrinas religiosas e como motor de uma religiosidade ecuménica pela qual se estatui que todos os deuses são também Deus, entificando ontológica e historicamente o catolicismo como momento preparatório e condutor da assunção universal do Reino de Deus na Terra. Neste sentido, Romana Valente Pinho propõe o termo “transantinomização” (p. 42)

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para dar conta do esforço teórico e do projecto espiritual de Agostinho da Silva de modo a superar todas as “dicotomias” históricas, existenciais e metafísicas em torno da ideia da vivência de Deus, limitando estas e afastando o homem da “sua condição e essência” (ibidem). A “transantinomização” realça a proposta de Agostinho da Silva da instauração de “um novo modo de ser e de viver que Tudo concentre, pois que Tudo será superado. Por isso é que o nosso pensador é apo-logista da paradoxia. Tudo e Nada ser, pensar e viver para que o Tudo e o Nada (con)fundindo-se e confluindo-se, sejam a experiência da completude. Transan-tinomizar quererá dizer ser mais do que os opostos isolada e até conjuntamente são, estar para além das antinomias castradoras”.17 E acrescenta a autora: “A teo-ria da transantinomização é uma filosofia redentora, salvífica e unificadora: no Reino do Espírito Santo, todos os seres, no seu interior, sofrerão paradoxalmente uma ultrapassagem, ou seja, tornar-se-ão mais iguais a si próprios, aproximar-se-ão da sua essência. Essa transmutação consistirá na indiferenciação de tudo. Todos os seres reconhecer-se-ão ontologicamente equivalentes. Neste processo dá-se um acréscimo de ser (que é, simultaneamente, um acréscimo de servir). Cada ser dá ao outro aquilo que é e que tem. Contudo, sublinhamos que esta trans-substanciação é interior, no sentido em que cada ser se ultrapassa dentro de si próprio com o objectivo de se tornar um ser melhor (ou até maior, tal como propõe Santo Anselmo). O Sobre-Humano, afinal, está dentro de cada um.”18

Dividido em seis capítulos, o livro de Romana Valente Pinho, aparen-temente estruturado de um modo cronológico, seguindo o itinerário biblio-gráfico de Agostinho da Silva, orienta-se, no entanto, de um modo mais fun-do, que se evidencia como o modo por que a autora estabeleceu o sentido da vida de Agostinho da Silva, através de uma progressiva espiritualização deste até à consciente teorização final de Deus como Ser e Nada, registada no úl-timo capítulo. Neste sentido, como o título do livro indica, a bissectriz que atravessa e dá sentido ao livro de Romana Valente Pinho consiste justamente na ostentação das metamorfoses que o pensamento de Agostinho da Silva vai sofrendo até à assunção final da sua original teoria de Deus. Consultando a hoje já vasta bibliografia sobre Agostinho da Silva, detecta-se a originalidade desta proposta de Romana Valente Pinho, em conformidade aliás com a tese do seu orientador académico, Paulo Borges, que o mesmo evidencia em livro igualmente publicado em 2006.19 Porém, se, neste livro, Paulo Borges assume como um dado isolado a espiritualidade de Agostinho da Silva, a singularida-de do livro de Romana Valente Pinho consiste justamente em demonstrá-lo década a década, tornando claro o percurso culturalmente multidimensional deste filósofo até à plena assunção da Teoria do Espírito Santo e de Deus como

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Tudo e Nada, ou, melhor, como Tudo-Nada ou Nada-Tudo. Se tivéssemos que sintetizar o quid deste livro, exprimi-lo-íamos tanto pela redução do itinerário biográfico de Agostinho da Silva à incessante busca de uma espiritualidade redentora quanto pelo cúmulo de provas e argumentos carreados, forte e ina-balavelmente, na defesa desta tese.

Deste modo, respeitando-a, mas submetendo a cronologia a um senti-do estrutural mais fundo, existe uma coincidência entre a capitulação do livro e a evolução década a década do pensamento de Agostinho da Silva. O primei-ro capítulo coincide com a década de 20; o segundo com a de 30; o terceiro com a primeira parte da década de 40; o quarto com a segunda metade desta década e a totalidade da década seguinte, e os dois últimos, tendo em conta a solidez do pensamento maduro de Agostinho da Silva a partir da década de 60, sintetizam a sua visão da espiritualidade religiosa e metafísica.

Neste sentido, o primeiro capítulo do livro de Romana Valente Pinho constitui o estudo mais desenvolvido (no sentido de minucioso e pormeno-rizado) sobre a obra de Agostinho da Silva da década de 20, princípios da seguinte, sobretudo no que incide sobre os estudos deste autor relativos às religiões antigas e às civilizações clássicas, evidenciando como estes estudos constituíram “um fundamento que se perpetua por toda a sua obra” (p. 48). Assim, não deixando de vislumbrar um carácter conservador na acção de Agostinho da Silva enquanto estudante, a autora, porém, discorda da tese de Joaquim Domingues que postula o jovem estudante Agostinho da Silva co-mo um “monárquico assumido” (p. 49). Reafirmando o que escrevera no livro mais pequeno, a autora evidencia os valores gregos da Beleza e da Verdade como sustentáculos e vínculos fundacionais da obra de Agostinho da Silva, mesmo quando, a partir da década de 40, a teorização sobre a doutrina cristã se sobrepõe à influência da civilização grega. Do mesmo modo, e contra a tra-dição cultural portuguesa, Agostinho da Silva não desprivilegia o papel da ci-ência e da técnica na realização humana, considerando-o de vital importância para a concretização de uma futura e divina sociedade da abundância. Assim como com Conversação com Diotima (1944), Romana Valente Pinho sublinha o texto A Comédia Latina (1952) como momento superador do paradigma helénico. A partir desta data, Agostinho da Silva situa a civilização grega “entre a Idade de Ouro [momento primitivo da civilização, anterior à perversão so-cial da introdução da propriedade privada, do Estado e da assunção da crença num Deus transcendente, efeitos conjuntos do sentimento de medo] e o Cris-tianismo” (p. 57), estádios ou momentos históricos que passa a privilegiar. O segundo capítulo aborda, igualmente de um modo minucioso, as importan-

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tíssimas relações com António Sérgio na formação da obra de Agostinho da Silva: forte influência, mas não discipulato, eis a conclusão de Romana Valente Pinho, evidenciando como Agostinho da Silva se opõe a Sérgio na questão do sebastianismo e no desprezo que este nutria por um sentido metafísico da história de Portugal; porém, por outro lado, Agostinho sente fortes afinida-des com o pensamento de Sérgio nos temas relacionados com as “vertentes políticas, sociais e pedagógicas” (p. 77). Em síntese, simpatia pelo empenho social e educativo sergiano, antipatia pelas ideias aristocratizantes (o “escol”) e racionalistas de Sérgio. No terceiro capítulo, a autora opera a aproximação de Agostinho da Silva ao socratismo de Leonardo Coimbra, ostentando igual-mente uma aproximação daquele ao paradigma cristão da sociedade, como que mostrando que (1) através da identificação entre o Reino de Deus na Terra e a Idade de Ouro, (2) através da necessidade de elevação económica e cultural da população por via de um apostolado de divulgação científica e cultural, e (3) através da crença nas virtudes socialmente transformadoras da Escola Nova, Agostinho da Silva é levado a entrar em conflito com o regime ditatorial do Estado Novo. O capítulo IV estuda a integração de Agostinho da Silva no ambiente cultural do Brasil a partir de 1944 e o que este contribui para apro-fundar e transformar as ideias trazidas da Europa. De realçar, neste capítulo, o estudo inédito sobre as relações entre o autor e o casal Dora e Vicente Ferreira da Silva e o classicista Eudoro de Sousa. Os capítulos V e VI tratam especifica-mente da religião e da metafísica no Agostinho da Silva maduro, isto é, a partir de finais da década de 50. Em primeiro lugar, a influência de Jaime Cortesão, escalpelizada minuciosamente no primeiro dos dois capítulos, fundamental-mente através do conceito de “humanismo universalista”, gerador do conceito agostiniano de “ecumenismo” (p. 177). Já com este pensamento firmado como sentido máximo da cultura portuguesa, Agostinho da Silva propõe a concre-tização organizativa desta na sua intervenção no Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, em 1959, no qual foi, por alguns, muito mal rece-bida, qualificada como “mística”. Do mesmo modo, e também ineditamente, Romana Valente Pinho analisa a configuração conceptual das relações entre as propostas do Luso-Tropicalismo de Gilberto Freyre e as de Agostinho da Silva (pp. 192 e ss.). É a partir da análise das relações entre Jaime Cortesão e Agostinho da Silva, e sobretudo a partir da pulsão franciscana deste, que a autora destacara nas obras anteriores ao período brasileiro, que Romana Va-lente Pinho introduz o tema do Espírito Santo na obra de Agostinho da Silva, já sintética mas esclarecedoramente tratado em O Essencial… Neste sentido, a Idade do Espírito Santo constituir-se-ia, do ponto de vista social, como um

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reatamento com a genuína atmosfera democrática medieval da consolidação de Portugal, e, do ponto de vista metafísico e religioso, como a assunção da eternidade no tempo. Muito lucidamente, a autora faz convergir a influência franciscana espiritual em Agostinho da Silva (por via de Jaime Cortesão, mas obedecendo a ditames pessoais) com a vivência por Agostinho da religiosi-dade africana no Brasil (o candomblé – pp. 223 e ss.). Tudo sendo aspirado para o centro da teoria em construção de Agostinho da Silva, Romana Valente Pinho evidencia as diversas influências religiosas e metafísicas que o autor foi sofrendo, inclusive de iniciativa própria (a comunidade da serra de Itatiaia; o texto “Alcorão” de 1947…), as quais, a partir da década de 50, se concentram fundamentalmente em torno da assunção da Idade do Espírito Santo como novo conceito estilhaçante das antigas dicotomias religiosas e metafísicas pro-duzidas pela Civilização Ocidental. Emerge então, a partir da década de 60, Deus como Espírito Santo ou como Tudo e Nada, imanente e transcendente, contínuo criador imprevisível do mundo, ou como “Deus sendo” – momento fundante na criação da paradoxologia de Agostinho da Silva, que, em simultâ-neo, aplicará aos momentos fundamentais da cultura portuguesa: a descrição da “Ilha dos Amores” de Camões, o Quinto Império vieirino e pessoano, bem como a experiência da pluralidade do eu neste último autor.

No último capítulo, Romana Valente Pinho, na linha de Paulo Borges, tematiza a influência do pensamento oriental na obra de Agostinho da Silva, reservando esta exclusivamente para o “taoísmo” e “algumas vertentes do bu-dismo-zen” (p. 313).

Subdividindo o capítulo VI em seis pequenos subcapítulos, Romana Valente Pinho esclarece e sintetiza brilhantemente a teoria de Agostinho da Silva sobre Deus como “homem sendo”, como Absoluto cosmicizado, como ser que se revela como Tudo e Nada, isto é, como Tudo-Nada ou Nada-Tudo, como ponto eterno-temporizado sem espaço, embora cobrindo toda a mate-rialidade. Este último capítulo estatui-se como um autêntico tratado sobre a teologia agostiniana.

A fechar, Romana Valente Pinho, socorrendo-se de textos inéditos de Agostinho da Silva, tematiza a “noção” de Mal neste autor, evidenciando a con-cordância entre a configuração metafísica deste conceito (o mal e o bem só existem in abstracto, perdendo o seu estatuto de conceito cristalizado e absoluto logo que se concebe a existência de um Princípio Único e uma finalidade última para o universo) e a metafísica agostiniana.

Miguel Real

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Notas1 MANSO, Artur. Introdução ao Estudo da Vida, Obra e Pensamento de Agostinho da Silva. Braga, Universidade do Minho, 1998 (policopiado); Agostinho da Silva: aspectos da sua vida, obra e pensamento. Porto: Estratégias Criativas, 2000; Agostinho da Silva (1906-1994). Porto: Estratégias Criativas, 2006.

2 MOTA, Helena Maria Briosa e; CARVALHO, Margarida Larcher Santos. Introdução ao Pensamento Pedagógi-co do Professor Agostinho da Silva. Lisboa: Hugin, 1996. Prefácio de Manuel Ferreira Patrício.

3 EPIFÂNIO, Renato. Visões de Agostinho da Silva: De Portugal e do Brasil – Da Galiza, da Ibéria e da Europa – Da Sociedade de Hoje e do Homem de Sempre. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006.

4 BORGES, Paulo. Línguas de Fogo: Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva. Lisboa: Ésquilo, 2006 (romance); Tempos de Ser Deus: A Espiritualidade Ecuménica de Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora, 2006.

5 BRANCO, João Maria de Freitas. Agostinho da Silva, um Perfil Filosófico: Do sergismo ao pensamento à solta. Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006.

6 CASTRO, Maria Teresa. Agostinho da Silva: Naturalidade e Transcendência no Acesso a Deus. Braga, Universi-dade do Minho, 2002 (policopiado).

7 ÉLLYS, Elizabete de Almeida. Raízes Intemporais da Vida e da Alma de Agostinho da Silva. Lisboa: Sete Cami-nhos, 2006.

8 FLÓRIDO, José. Reencontrar Agostinho da Silva: O Poeta e o Poema. Corroios, Portugal: Zéfiro: 2006; O Caminho da Afirmação, o Caminho da Renúncia: Dois Percursos de Agostinho da Silva. Corroios: Portugal Zéfiro, 2006.

9 Cf. REAL, Miguel. A Recepção da Obra de Agostinho da Silva (Anos 80 a 2006). In: AA. VV. Actas do Congres-so do Centenário do Nascimento de Agostinho da Silva (a publicar).

10 PINHO, Romana Valente. Religião e Metafísica…, ed. cit., p. 16.

11 PINHO, Romana Valente. O Essencial…, ed. cit., p. 4.

12 Id., ibid., p. 43.

13 Id., ibid., pp. 54-55.

14 Id., ibid., pp. 59-60.

15 Id., ibid., p. 83.

16 PINHO, Romana Valente. Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva, ed. cit., pp. 35-36.

17 Id., ibid., p. 42.

18 Id., ibid., p. 44.

19 Cf. BORGES, Paulo. Tempos de Ser Deus: A Espiritualidade Ecuménica de Agostinho da Silva. Lisboa: Âncora, 2006.

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Renato Epifânio

Visões de Agostinho da Silva: De Portugal e do Brasil – Da Galiza, da Ibéria e da Europa – Da Sociedade de Hoje e do Homem de SempreCorroios, Portugal: Zéfiro, 2006. 59 p

Visão culturalista sobre o pensamento de Agostinho da Silva

Com a publicação, em 2006, de Visões de Agostinho da Silva, de Renato Epifânio, consolidou-se a perspectiva culturalista sobre a obra deste pensa-dor português do século XX. Com efeito, os três ensaios constantes deste livro de Renato Epifânio demarcam-se claramente de uma visão exclusivamente espiritual, centrada no fundo filosófico-teológico da obra de Agostinho da Silva, para postularem o enraizamento do seu pensamento numa “situação” histórico-cultural específica. Neste sentido, segundo Renato Epifânio, “a via da plena realização [humana] passa, na nossa perspectiva, pelo aprofunda-mento do sentido de uma cultura, da mundividência que lhe subjaz. De outro modo, ela será apenas uma via geral: mais facilmente generalizável, mas não muito mais do que isso” (p. 58). Não negando a prevalência em Agostinho da Silva de uma “via para a plena realização espiritual” (ibidem), é porém no “aprofundamento das virtualidades de uma língua [e, logo, de uma cultura] que o discurso filosófico pode emergir enquanto tal” (ibidem). Deste modo, o autor considera que a via filosófica proposta por Agostinho da Silva emerge justamente no momento histórico da “era do vazio” (Gilles Lipovetsky), cú-mulo de uma acentuada descristianização da sociedade, idade do niilismo e do ateísmo, era da “assunção do Nada” no dizer de José Marinho, à qual Agos-tinho da Silva intenta dar resposta por via do resgate e aprofundamento da imagem arquetipal do Quinto Império ou da Idade do Espírito Santo, um dos traços fundamentais da cultura portuguesa. A reacção de Agostinho da Silva é, assim, uma resposta eminentemente espiritual, mas, segundo Renato Epifânio, ela é também, enquanto espiritual, eminentemente e “primeiramente uma rea-lização cultural” (p. 57).

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Neste sentido, o caminho para a superação do vazio ontológico actual-mente preponderante passaria, no entender do autor, pelos “múltiplos cami-nhos de realização espiritual: a priori tantos quantos o número de culturas” (p. 57), de que a obra de Agostinho da Silva se constitui como um dos cami-nhos possíveis. Aprofundar os cânones espirituais da cultura abriria assim o horizonte de uma nova realização espiritual, transcendendo o individualismo, o cepticismo e o pessimismo hoje pertinentes e vinculativos. No caso da cul-tura portuguesa e no caminho aberto por Agostinho da Silva, esta realização espiritual consistiria na retomada do pensamento sobre o Quinto Império ou a Idade do Espírito Santo, o estado ou o “espaço-tempo em que todas as comunidades, todos os povos, possam, de forma inteiramente livre, assumir, de modo pleno, a sua cultura” (p. 58). Deste modo, Renato Epifânio estatui a obra de Agostinho da Silva como a mais ingente reflexão sobre o “íntimo sentido da cultura portuguesa” (p. 13), não só no sentido teórico ou teorético, mas sobretudo no sentido prático ou práxico, enquanto reabertura de cami-nho no horizonte de uma ressurreição do ser universal do português como mediador cultural. Neste sentido, mais do que a de um filósofo teorético, a obra de Agostinho da Silva é enformada, segundo o autor, de um novo sen-tido para a cultura portuguesa, que, verdadeiramente, resgata toda a história existencial do povo português, revelando-lhe, à beira do século XXI, o seu ge-nuíno estatuto de mediador universal entre culturas díspares. Por isso, Renato Epifânio, no seu estudo, dando forma à ancoragem da cultura na história, húmus temporal desta, sente necessidade de balizar a historiografia singular da história de Portugal, evidenciando-lhe o percurso e as marcas essenciais. É justamente do que tratam o primeiro e o segundo ensaios do seu livro. O pri-meiro, Do Portugal e do Brasil, evidencia o cumprimento do destino da cultura portuguesa, por via da sua realização no Brasil, após o bloqueamento institu-cional e cultural sofrido por Portugal no final da empresa dos Descobrimen-tos, na segunda metade do século XVI, e após a irrupção cultural da Europa aquando da segunda Expansão Ultramarina. Os melhores de Portugal tinham abandonado Portugal, espalhando-se pelo vasto território do Império, nomea-damente o do Brasil. Não sendo já em absoluto Europa, mas também não permanecendo o Portugal medieval católico, comunitarista e municipalista, Renato Epifânio evidencia como Portugal, para Agostinho da Silva, permane-ceu numa posição cultural ambígua e dramática de cruzamento entre os seus arcanos genuínos e a influência da Europa mercantilista, protestante e racio-nalista. Segundo Renato Epifânio, Agostinho da Silva considera Mensagem, de Fernando Pessoa, o resgate deste Portugal bloqueado e interrompido no seu

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destino pela invasão da influência cultural da Europa Central, realçando ser actualmente o momento de Portugal se resgatar a si próprio, resgatando a Eu-ropa, findando com a decadência de ambos numa “outração de si” (p. 26), que levaria o primeiro ao desaparecimento como elemento universal mediador entre culturas, realizando-se pela consumação do seu desaparecimento (“Por-tugal, por já não ser, será”), dando lugar a um outro e radicalmente diverso horizonte cultural e a uma nova sociedade: “Assim, tal como ocorre no poema pessoano [refere-se às três partes em que se divide Mensagem], corresponde o ‘primeiro Portugal’ a uma inicial instância ôntico-temporal: o ser-tempo em que Portugal visava ainda, tão-só, a plena delimitação das suas fronteiras, da sua substancialidade identitativa. (…) O ‘segundo Portugal’, por sua vez, já não procurou ser apenas o que era, assim impondo a si e aos outros o seu pró-prio ser, mas procurou igualmente o ‘para além de si’, iniciando a sua viagem (…).” Do “‘terceiro Portugal’, ou seja, do Portugal que já não procura ‘firmar fronteiras’ – ainda nas palavras de Agostinho da Silva: (…) ‘É um Portugal que não tem seu centro em parte alguma e cuja periferia será marcada pela expansão de sua língua e da sua cultura de Pax in excelsis que ela levar consigo (…): [é] o Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra, de Vieira e da Mensa-gem’” (pp. 26, 27 e 28). Ostentando sempre uma visão culturalista da obra de Agostinho da Silva, Renato Epifânio conclui: “Ao invés, o que Agostinho da Silva defende é que cada um de nós, por extensão, cada comunidade, se assuma, o mais possível, na sua relativa diferença. Não porque essa diferença seja, de alguma forma, superior a qualquer outra. De modo algum. Tão-só só porque é nossa, porque é ela que funda a nossa singularidade. Tão-só. Não se trata aqui, com efeito, de afirmar qualquer espécie de superioridade de uma cultura relativamente as outras. Todas são igualmente verdadeiras, na medida em que sejam genuínas. De resto, a verdade não está, à luz desta visão, em ne-nhuma cultura em particular. De modo algum. Quanto muito está em todas: não – ressalve-se – na síntese de todas elas, mas na pluralidade irredutível de todas elas” (p. 29).

O segundo ensaio, “Da Galiza, da Ibéria e da Europa”, entende a Galiza como “raiz principial de Portugal” (p. 40), segundo uma visão iberista da cul-tura portuguesa. Nos contínuos conflitos entre Portugal e Castela, Agostinho da Silva defende a interpretação de uma Ibéria descentralizada, do estabele-cimento de regiões autónomas, produto e produtoras de culturas genuínas, opositora à centralização estatal e à uniformização cultural. Esta visão histó-rica de Agostinho da Silva – no entender de Renato Epifânio –, é garantia de que numa Ibéria unida e federada nunca Madrid poderia ou poderá exercer a

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sua centralização política. Neste sentido, e só neste, Agostinho da Silva é um “iberista”, como o provam as cartas deste autor a António Quadros que Rena-to Epifânio cita (pp. 43-45). Do mesmo modo, Renato Epifânio evidencia ser Agostinho da Silva um “europeísta” (p. 45), mas um “europeísta” defensor dos valores culturais emergentes na Europa do Mediterrâneo, opostos a “outra” Europa, a setentrional, a da cultura científica, mercantilista, protestante e cen-tralista, que intentaria fazer de Portugal uma nova “Dinamarca”. Neste sentido, a afirmação de Portugal reside sempre – na visão interpretativa de Agostinho da Silva por Renato Epifânio –, no cumprimento pleno da sua realização his-tórica, que outra não é que o resgate “da nossa tradição cultural” (p. 47).

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Paulo Borges

Tempos de Ser Deus: A Espiritualidade Ecuménica de Agostinho da Silva.Lisboa: Âncora, 2006. 205 p.&Língua de Fogo:Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva.Lisboa: Ésquilo, 2006. 372 p.

Visão espiritualista sobre o pensamento de Agostinho da Silva

1. Introdução

Prestando testemunho escrito às suas inúmeras intervenções em coló-quios e congressos sobre a obra de Agostinho da Silva, Paulo Borges, com a pu-blicação, em 2006, do ensaio Tempos de Ser Deus: A Espiritualidade Ecuménica de Agostinho da Silva, e do romance Línguas de Fogo: Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva, evidencia-se como o criador da visão espiritualista do pen-samento de Agostinho da Silva. Com efeito, ambos os livros respiram uma visão unificadora do pensamento deste filósofo, pela qual o autor reenvia todas as intervenções de Agostinho da Silva nas diversas áreas do saber e da acção social para o campo de um originalíssimo testemunho sobre o sagrado, apresentando este filósofo luso-brasileiro como anunciador, a partir da década de 60, de um tempo ecuménico futuro, para a emergência do qual Paulo Borges realça no pensamento de Agostinho da Silva dois importantíssimos factores: 1. – a visão do Espírito Santo como mediador sagrado e metafísico de todas as diferentís-simas e plurais experiências religiosas; 2. – a visão da cultura portuguesa como mediadora universal da emergência do Reino do Espírito Santo na Terra.

O primeiro livro aborda, quase em exclusivo, o primeiro ponto, sem, no entanto, deixar de realçar a tradição camoniana, vieirina e pessoana dos estudos sobre o Quinto Império ou a Idade do Espírito Santo; o segundo livro, profundamente existencial, realça mais o segundo ponto, sem, no entanto, dei-xar de evidenciar o primeiro.

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2. Tempos de Ser Deus: A Espiritualidade Ecuménicade Agostinho da Silva

Futura bíblia da espiritualidade agostiniana, Tempos de Ser Deus, de Paulo Borges, constituir-se-á doravante como a súmula de uma visão interio-rista, metafísica e espiritualista da obra e vida de Agostinho da Silva. A visão de Paulo Borges, pela sua fundamentação e pelo seu superior nível de análi-se, estatui-se como centrifugadora das restantes vertentes interpretativas do pensamento deste autor luso-brasileiro para um ponto central teológico e te-leológico derradeiro, anunciado no título do livro – a assunção de Deus no homem –, anunciador da sua realização ético-práxica por via de um ecume-nismo superador de fronteiras culturais, civilizacionais, religiosas e filosóficas: “Agostinho propõe, como alternativa à crise e esgotamento dos imperialismos monoculturais, uma comunidade ético-espiritual e um diálogo planetários, inter e trans-culturais e, especificamente, inter e trans-religiosos, enquanto trans-confessionais e abertos a todas as orientações possíveis do espírito, mes-mo as não-teístas, agnósticas ou ateias.”1

Constituído por três textos diferenciados, comuniza-os, primeiro, a concepção de Deus em Agostinho da Silva, e, segundo, o sentido de “espiritua-lidade ecuménica” que Paulo Borges atribui à essência do pensamento daquele autor; finalmente, Paulo Borges considera que a cultura portuguesa é postula-da por Agostinho da Silva como “vocação (…) para o universal, por razão his-tórica e propensão mental-existencial” (p. 19). Temos, assim, os três princípios teóricos animadores da interpretação de Paulo Borges sobre o pensamento de Agostinho da Silva, aliás, magistralmente tematizados no seu romance Línguas de Fogo: 1. – um fundamento teológico novo ou uma nova concepção de Deus; 2. – um sentido espiritualizante e ecumenista de vida cultural, filosófica e reli-giosa; 3. – a definição do estatuto da cultura portuguesa como mediadora uni-versal e instrumento espiritual do futuro ecumenismo. Com efeito, estas três ideias matriciais atravessam cada um dos três ensaios em que se divide o livro, posto que a primeira, pela sua importância primordial, se constitui como ori-ginária e fundante: “Cremos que o âmago do pensamento de Agostinho da Sil-va reside numa particular experiência/visão de Deus, de onde derivam as suas restantes concepções fundamentais. E o que aí predomina (...) é a intuição de Deus como «nada que é tudo», o que desde logo destina o seu saber/sabor ao paradoxo não só da expressão lógica mas também, mais fundo, da experiência ontológica. Aqui Deus é ausência de de-terminações ôntico-ontológicas, um não um, uma não entidade, um não algo, um vazio enquanto desprovido de

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qualquer qualificação de-limitadora, positiva ou negativa, e, por isso mesmo ‘tudo’” (pp. 27-28). Neste sentido, Agostinho da Silva intui Deus como “nada que é tudo”, “nada” porque, diferentemente do “não-ser” (pp. 13–14), é total ausência de determinações, de qualificações, e “tudo” porque se constitui co-mo “uma plenitude que se pode entender quer como um todo, simples, homo-géneo, indiferenciado e indeterminado, quer como um tudo propriamente di-to, que contém em acto todas as determinações e antinomias possíveis, porém sem que nelas se de-termine” (p. 28). Conclusivamente, o “nada” torna-se, em Agostinho da Silva, instância constitutiva de Deus, enquanto plenitude abso-luta” (idem), ou, dito de outro modo, “um vazio de ser que é possibilidade e potência do seu autopreenchimento infinito, dando-se tantas determinações quantas irresistivelmente queira” (p. 29). Neste sentido, a transfiguração de Deus em mundo “não é senão a consubstancial trans-formação de Deus, a sua íntima, una e simples infinitude e totalidade a devir unitotalidade complexa e múltipla” (p. 31), e, consequentemente, “faz mais sentido pensar o mundo como a eterna e instante auto-poiésis, ou autocriação, de Deus” (idem). Do ponto de vista ontológico, não existe “diferença substancial” entre Deus e o mundo, operando-se deste modo a “subversão” das “noções comuns de ‘cria-dor’ e ‘criatura’” (idem).

Como Paulo Borges enfatiza na p. 37, a dificuldade de pensar seme-lhante Deus radica na cristalização das categorias do pensar (e do falar) hu-mano, separador e radicalmente diferenciador entre o uno e a sua alteridade, recusando-se (as categorias) a pensar (e a dizer) um uno que em si e por si englobe e seja a realização da sua própria alteridade. É neste sentido que o autor enquadra as reflexões de Agostinho da Silva sobre Deus, que estilhaçam o estatuto do “ego” em Santo Agostinho e Descartes (p. 38), “fundado na auto-evidência do cogito”,2 num plano em que “todo o pensar humano [e, a fortiori, a instauração egológica] remeteria (…) para um mais radical pensar divino e criador” (p. 39). Do mesmo modo, o autor aproxima o pensamento de Agos-tinho da Silva do de Mestre Echart (pp. 40-44).

Paulo Borges explora com mestria as diversas possibilidades (“a rique-za inesgotável” – p. 52) do estudo do pensamento humano e das relações deste com o pensamento divino ou com Deus, firmadas na desentificação do eu e da possibilidade da ilusão constitutiva do mundo e do próprio pensamento “num suposto jogo de ir «vendo como nada vai»” (versos de Agostinho da Silva) ou de como o “tudo” se torna assim, ontologicamente, expressão do “nada”: “o «nada» é assim o sumamente real em Deus, no mundo e no homem, a verdade comum onde Deus, mundo e homem se identificam” (p. 55). Esta nova con-

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cepção de Deus teorizada por Agostinho da Silva, que, no terreno da cultura portuguesa, assenta na tradição heterodoxa de Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes e José Marinho, firma Deus no coração e no pensamento do homem, não como um ser estranho aqui depositado pelo sentimento (a crença) ou pela razão, mas como motor intrínseco e constitutivo da acção do homem, como centro ontológico da humanidade. Neste sentido, o espiritualismo ecuménico que Paulo Borges privilegia em Agostinho da Silva radica na própria busca e realização “imprevisível” do espírito de Deus por si mesmo enquanto suprema liberdade e suprema criação.

O esclarecimento da relação entre Deus e o homem em Agostinho da Silva prolonga-se no segundo ensaio, “Criação e Mística em Agostinho da Sil-va”, um ensaio densíssimo. Paulo Borges afirma a existência de uma “predis-posição mística” (p. 71) em todo o pensamento de Agostinho da Silva, evi-denciada desde logo nos livros do jovem Agostinho e reafirmado, já no Brasil, no texto Comédia Latina. Paulo Borges detecta, neste texto, uma forte influ-ência de Teixeira Rego como primeira corroboração da tendência mística de Agostinho da Silva, acrescentada pela leitura das tragédias e do sentido dos mistérios gregos, acrescidos de uma interpretação pessoal sobre a essência do teatro grego. Neste sentido, desde cedo Agostinho da Silva teria experimenta-do a radical contradição entre uma orientação moral e gnosiológica, em fun-ção da unidade intrínseca do Absoluto divino, e a constatação da existência de uma distinção ontológica entre o ser e o conhecer. A anulação desta dis-tinção, de profundas consequências gnosiológicas e morais, estaria na base da meditação do autor sobre a possibilidade de uma “trans-antinomização” (expressão de Romana Valente Pinho), ou, como Paulo Borges refere, a possi-bilidade da fruição de uma existência não firmada na “não-dualidade” (p. 79). Do mesmo modo, Paulo Borges detecta esta propensão mística de Agostinho da Silva na visão de Deus inserta nos textos Conversação com Diotima e Dou-trina Cristã, nomeadamente, no que àquele diz respeito, na fala da persona-gem “Estrangeiro”, textos que se estatuem como “charneira entre duas fases” [a inspirada pela configuração do pensamento helénico – o “jovem” Agos-tinho –, e a seguinte, de inspiração paracletiana, desembocado “num ecume-nismo trans-confessional”, p. 88] da obra agostiniana” (p. 84). Fazendo jus ao título do ensaio, Paulo Borges considera que o pensamento de Agostinho da Silva se concentra na perseguição do instante da criação divina, “nesse instan-te, dir-se-ia sempiterno, que suspenso vincula eternidade e tempo, na incriada emergência desse poder haver algo que transita e recorre entre o Nada-Tudo da indiferenciação divina e o existir do que é já alguma coisa, entificado e

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reificado, sem que a um ou a outro termo se reduza. É esse instante, ou, tal-vez, mais, o próprio impensável que o sustenta, que o pensamento e a vida de Agostinho perseguem, tal esse ‘impossível’ sem cuja paradoxal realização (…) não pode haver ‘homem’ pleno” (p. 90), ou, em outras palavras, o pensamento de Agostinho da Silva “confronta-se com a radicalíssima questão da origem da própria Origem” (p. 91). Contestando a tradicional teoria cristã da mani-festação das qualidades divinas, Paulo Borges reafirma que Agostinho da Silva consideraria possível que o “Deus que adoramos” e o mundo por si criado se estatuiriam como um sonho ontologicamente realizativo e continuamente realizante enquanto manifestação de um outro Deus de que nada sabemos e que Paulo Borges designa por “Consciência primordial” (p. 92). Numa outra hipótese, Paulo Borges desenvolve a possibilidade da tese agostiniana de um “êxtase” eterno de Deus por que se organizaria simultaneamente a transcen-dência deste mundo, como um “sair de si em si” (p. 93), numa espécie de “ma-nência” e de “conversão”, pelas quais o haver mundo se realizaria, bem como, por este, a transcendência divina: “No eterno êxtase do Deus-Uno primordial o mundo é a transcendência de Deus tanto quanto Deus é a transcendên-cia do mundo” (p. 93). Ainda explorando uma outra possibilidade, alimen-tada pelo texto de Agostinho da Silva “Sobre ideia de Deus”, não contradi-tória com as duas anteriores, este autor desenvolveria a sua tese recorrente de “Deus como o absoluto trans-antinómico onde os contrários coincidem” (p. 94). No autoconhecimento de Deus por si mesmo instaura-se o tempo e o mundo e nestes Deus vê-se como “Pai” e “Filho”, isto é, como sujeito e como objecto, bem como a sua remissão, fusão ou união, ou seja, como “Espírito Santo” (p. 94). E conclui Paulo Borges: “A trinitarização do absoluto é pois a sua cosmicização. A Trindade e o Mundo são sinónimos, no sentido em que Pai-Filho-Espírito Santo são simultaneamente a estrutura matriz da autocons-ciência divina e da espácio-temporalidade de todas as coisas” (p. 95).

Neste sentido, as díades mundanas, ou as antinomias tradicionais da metafísica, não possuem existência para Deus e, portanto, a existência onto-lógica do mal não possui igualmente sentido entificante. A esta trinitarização do mundo, acrescenta Agostinho da Silva – na visão de Paulo Borges –, a criação do mundo “perenemente e a cada instante” (p. 95).

Na página 97 – uma página densíssima –, Paulo Borges evidencia com magnificência a sua leitura da teologia agostiniana, que espiritualiza o tempo e o espaço (e porventura a matéria) e regista que o “Deus-Absoluto” e a “Trinda-de-Mundo” são simultâneas, como o é, no dizer de Agostinho, “a expansão e a contracção do universo”. Assim, relativo e absoluto, transcendência e imanên-

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cia, tempo e eternidade só fazem sentido humano se se estatuir a mundanei-dade como contracção existencial e trânsito criador da plenitude divina na sua “intimidade imanifestada”. Neste sentido, inominável, inclassificável e indeter-minável, Deus não perde a sua plenitude por via da sua manifestação cósmica e humana enquanto temporalização trinitária, acontecendo em simultâneo o Nada e o Tudo por que se manifesta. Assim, a plena assunção humana de Deus só se pode efectuar, não por uma elevação litúrgica ou pela mediação ascética, que reúnem as condições existenciais mas não as garantem, mas pela “criação” (p. 97) instantânea da mais indeterminável liberdade em nós, tornando-nos “Deus” nós próprios, ou, dito de outro modo, sendo de tal modo divinos que as categorias de transcendência e imanência divinas, eu e mundo, espaço e tempo materiais, são totalmente superadas. Deste modo, a potência criadora de Deus transita para o homem, para cada homem, que, maximamente livre, cria o “seu” mundo em descontinuidade com outros mundos de outros ho-mens. Assim, “santo” (p. 101), segundo Agostinho da Silva, é aquele que re-cria o mundo em conformidade com a matriz primordial do mundo como criação livre e imprevisível.

No último ensaio, “Espírito Santo e Ecumenismo em Agostinho da Sil-va: Um Contributo para o Diálogo Inter-religioso e Trans-confessional”, Paulo Borges aborda minuciosamente o lugar do “culto do Espírito Santo” na evo-lução do pensamento de Agostinho da Silva. Segundo Paulo Borges, foi justa-mente este conceito que obviou ao nascimento de um ideário multicultural, trans-confessional e ecuménico na obra de Agostinho da Silva, “aberto a todas as orientações possíveis do espírito, mesmo as meta-religiosas ou irreligiosas como a espiritualidade e a mística não-teísta, o materialismo, o agnosticismo, o ateísmo e o niilismo” (p. 108). Assim, Agostinho da Silva teria sido “um pre-cursor [do ecumenismo] a um nível raramente igualado, tanto no plano por-tuguês como europeu e mundial” (idem). Apontado o objectivo do ensaio, o autor explora cronologicamente as origens do conceito de “Espírito Santo” no pensamento de Agostinho da Silva, destacando diversos textos prenunciadores ao longo da década de 30 (A Religião Grega, por exemplo), considerando no entanto terem sido o contacto profissional e pessoal com Jaime Cortesão e a descoberta da popularidade do culto no Brasil que se constituíram como mo-mentos primeiros da tomada de consciência por parte de Agostinho da Silva da importância do culto do Espírito Santo tanto na cultura portuguesa quanto como modelo universalizante do sentido da vida humana, “festival sagrado” da vida, no seu dizer de 1952, em A Comédia Latina (p. 115), primeiro texto genuinamente paracletiano de Agostinho da Silva. Porém, diferentemente de

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outros pensadores portugueses da vertente cultural espiritualista, Agostinho da Silva, ao mesmo tempo que aprofunda o seu pensamento teológico e místi-co, privilegia igualmente o progresso das ciências e das técnicas, considerando que a sua aplicação social, vencedora da fome e da miséria e generalizadora de formas de vida despreocupadas, constitui um instrumento de “regresso à Idade de Ouro” (p. 118) primitiva, modelo da sociedade do futuro. Neste sen-tido, o “catolicismo”, no seu genuíno sentido de “universalismo”, correspon-deria à harmonização das tendências naturais do homem com o seu sentido civilizacional, concretizado no resgate da perdida unidade ontológica inicial. Todos os ensaios de Agostinho da Silva devem assim ser perspectivados, se-gundo Paulo Borges, detectando-se o fio espiritual que, a partir da década de 50, no Brasil, vai subsumir-se e concretizar-se num pensamento pentecostal e paracletiano, isto é, numa fusão indiferenciada ou numa coincidência de con-trários entre o Reino do homem e o Reino de Deus, com a assunção daquele por este, transfigurando o homem, cada homem, em Deus. Paulo Borges passa a explorar os diversos textos de Agostinho da Silva sobre este tema, desde Re-flexão à Margem da Literatura Portuguesa, de 1957, a Ecúmena, de 1964, Aqui falta saber, engenho e arte, de 1965, e outros textos, ponderando que “desta ideia de Deus fundada numa intuição de sentido místico, que considera la-tente na mentalidade nacional, deduz Agostinho uma antropologia, uma ética cósmica e uma escatologia em que a liberdade, a plenitude e a libertação, não só do homem mas de todos os seres, são os valores fundamentais e o sentido último do universo” (p. 139).

Após este itinerário textual, que igualmente percorre o transcurso sin-tético das interpretações agostinianas dos conceitos de Deus e de Espírito San-to, Paulo Borges retira a conclusão temática de que Agostinho da Silva “con-sidera viverem-se na contemporaneidade ‘os primeiros alvores de uma idade’ nova, onde o próprio progresso científico-tecnológico estaria a libertar a hu-manidade das ‘fatalidades físicas’” e, por aí, das subordinações opressivas que até então teriam impedido o espírito de cada indivíduo de brilhar «com o vivo fogo de suas origens», transmitindo a «mensagem única que, por ser único, lhe competia transmitir». «Tempos de liberdade vão raiar»: é o anúncio profético da nova era em que a integração política, a compreensão filosófica-científica e mesmo a ajuda fraternal e a santidade do sacrifício altruísta vão ceder o lugar, por já não serem necessárias, à «única missão» de, no respeito da liberdade de si e do outro, se dar plena expressão à criatividade e à vida, mas descobrindo «no espírito» tudo – «forças», «possibilidades», «recursos» – que até agora se tem procurado no mundo exterior, espácio-temporal” (p. 143).

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Esgotadas as Descobertas, resta “um outro Oriente-Origem, espiritual e íntimo” (p. 143) de que Portugal, ou os portugueses e “os lusófonos” (p. 145), possuiriam, por constituição ontológica, a prefiguração, no culto do Espírito Santo realizado no triplo simbolismo do Menino Imperador, do bodo e da extinção das prisões: “Transcendendo a atitude filosófico-científica e o valor do conhecimento conceptual, bem como a tecnológica-utilitária e o valor da acção manipuladora, transcende-se ainda a mera busca de união religiosa e fusão mística para, sem a negar, a assumir como condição inseparável de uma operação (re)criadora do mundo, jogo sem porquê nem para quê no qual o espírito de cada sujeito, e de todos em conjunto, manifesta a sua afinidade ou mesmo consubstancialidade com o divino, fundamentalmente um Espírito (Santo) livre e imprevisivelmente criador e não apenas santificador” (p. 145). Neste sentido – realça o autor –, o que tem sido entendido como decadência de Portugal pelos inúmeros pensadores portugueses desde o século XVII, é en-carado por Agostinho da Silva como resguardo ou conservação oculta, sobre o rasto da modernidade europeia e sua expansão mundial mercantilista e cienti-ficista, de uma cultura essencial, principial, de vínculo ontológico e teológico, fundada na “liberdade e criatividade” (p. 146), que mais se tem afirmado no agir da vida, e que no século XX e XXI, reemergindo, evidencia serem “os po-vos de cultura portuguesa os mais aptos a uma pronta libertação (…) e a uma rápida adesão ao ‘essencial’” (p. 146), isto é, à definitiva fusão “com a essência do ser e com a universalidade do fenómeno” (citação de Agostinho da Silva), superando as dicotomias humanas e civilizacionais.

Perscrutando a teologia de Agostinho da Silva a partir de textos diver-sos deste autor, Paulo Borges releva, em síntese, que “num dos textos publi-cados postumamente”, Pensamento à Solta, Agostinho parece confirmar os já referidos dois aspectos e possibilidades da sua teologia do Espírito Santo: por um lado como «comum essência» das pessoas que surgem do diálogo de Deus «consigo mesmo», pelo qual «de si mesmo gera um Filho», podendo esta «co-mum essência» designar o divino abscôndito e imanifestado que é anterior ao Pai e ao Filho ou a própria relação que no diálogo os vincula, caso em que o Espírito Santo não excederia o domínio da vida divina manifestada; por outro, e mais claramente de acordo com a segunda hipótese, como o «Comum Espíri-to» que só se manifesta como o vínculo da manifestação do Pai e do Filho, num processo eterno, sendo todavia o que permite apreender que na constituição da vida trinitária não há «senão Um», evidenciando ainda a unicidade divina. No mesmo texto, o pensador confirma também a intuição da experiência do Espí-rito Santo como limiar de acesso a uma instância trans-religiosa onde todavia

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se preservam, sem oposição nem contradição, as distintas vias e experiências religiosas, o que entende como harmonia do «humano» (a relativa diversidade dessas vias e experiências) e do «divino» (a sua transcensão na trans-religião paraclética, que podemos assimilar a tudo o que dissemos acerca do adorar Deus «em espírito e verdade»). Por fim, abre ainda para a teoria/teologia da história, da civilização e da evolução espiritual que, já mais e explicitamente inspirada em Joaquim de Flora, mas sobretudo no culto popular do Espírito Santo do Portugal medieval, e como uma metamorfose do próprio joaquimis-mo, decorre da exposta metafísica e teologia do Espírito Santo. Atento obser-vador da sua contemporaneidade e procurando inscrevê-la na sua visão global do devir histórico universal, Agostinho apreende ainda e sempre o trânsito dos Reinos do Pai e do Filho para o do Espírito Santo na substituição do ideal «do trabalho, da obediência ou da fraternidade» pelo «do tempo livre e da imagina-ção criadora»” (pp. 158-159).

Neste sentido, através do comentário ao texto “Terceira Revelação” do livro Só Ajustamentos, de 1962, pertencente à “fase assumidamente católica da evolução espiritual de Agostinho da Silva” (p. 159), Paulo Borges entende este momento da “terceira revelação” do Espírito simultaneamente como histórica e trans-histórica, tendo por sujeito, não os movimentos sociais colectivos, mas a consciência individual e interior dessa “revelação” que, “responsabilizando so-bretudo cada sujeito pelo esforço e labor sincero de se preparar e disponibilizar para ela, lucidamente se [demarca] da «absurda» expectativa de que tal profun-da mutação espiritual possa ser efeito da agitação exterior das consciências, em pensamentos, palavras e acções, por mais bem intencionados e simpáticos que sejam, ou ainda de uma vinda necessária do Espírito ao mundo dos homens, garantindo-lhes a revelação, salvação ou iluminação generalizadas” (p. 166). Revelação do espírito santo de Deus em nós, com consequente eliminação de todas as dualidades antinómicas que têm servido de alicerce espiritual à nossa civilização dicotómica, dicotomizadora ela própria da unidade divina, atribuin-do-lhe características de sujeito e de objecto, distinguindo o sagrado entre o Bem e o Mal, a assunção do novo Espírito identifica-se com o “âmago de todas as religiões”, incluindo as suas negações ateístas e agnosticistas enquanto iguais mediações do divino e espelho da “unimultiplicidade humana, cultural e reli-giosa, sendo o reconhecimento dessa unidade e convergência na diversidade que pode permitir e suscitar essa harmonia e diálogo inter e trans-subjectivo, inter e trans-cultural, inter e trans-religioso que Agostinho considerava e hoje se impõe como uma das tarefas maiores da humanidade contemporânea e a vocação superior dos povos de língua e cultura portuguesa” (p. 170).

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Por esta última frase, Paulo Borges opera a passagem hermenêutica do Deus de Agostinho da Silva para a inserção desta teoria no movimento da cultura portuguesa, considerando ser a vocação superior desta a tarefa da abertura e condução deste diálogo inter e trans-cultural e inter e trans-religioso. Não é assim possível, segundo o autor, prender o pensamento de Agostinho da Silva a uma religião específica, como a cristã ou simplesmente a católica, mas entendê-la no verdadeiro e etimológico sentido de “católica”, isto é, de universal e ecuménica. Paulo Borges faz entroncar a captação de um Deus absoluto teorizado pelos textos de Agostinho da Silva com a experiên-cia espiritual da Demanda (p. 172) da “Ilha Encantada” (pp. 173 e ss.) ou do Santo Graal, vinculativa da origem da cultura portuguesa enquanto espírito templário de cruzada, excurso exterior de uma metanóia interior que dentro de si busca o “Rei” encoberto, identificado com a essência revelada de cada homem segundo a “hermenêutica do imaginário sebástico” tematizado por Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e José Marinho, e con-tinuada por Agostinho da Silva (p. 176). Neste sentido, Paulo Borges releva uma notável interpretação (pp. 175-180) dos versos de Pessoa sobre as “Ilhas Afortunadas”, de Mensagem, postulando aquelas como “símbolos tradicionais de níveis mais subtis ou últimos da realidade, distantes da percepção comum mas não inacessíveis à consciência que dela se liberta assumindo os riscos da viagem da transformação de si através do oceano (da vida, da existência, do inconsciente, do desconhecido) que deste modo, em vez de separação e obs-táculo, se converte em meio de passagem e religação” (pp. 175-176). Propõe assim Paulo Borges uma radical alteração no estado e grau da consciência, sal-vaguardando-a “no próprio estado original, espontâneo e natural de uma total receptividade livre de elaboração [conceptual]” (p. 178), identificando o autor este estado com o que Agostinho da Silva considerava ser “a raiz oculta de todo o drama humano e universal” (ibidem). Neste sentido, o culto do Espírito San-to constituir-se-ia, para Agostinho da Silva, segundo a interpretação de Paulo Borges, como o símbolo temporal da experiência interna da consciência da transcensão de todas as religiões historicamente manifestadas e na necessida-de da emergência de um novo ecumenismo, causa e efeito simultâneos da “ex-periência última e inobjectivável” da consciência, “ao mesmo tempo [como] a vocação e a mensagem mais profunda da cultura lusófona” (p. 181). Mais do que uma religião, antes profunda vivência íntima do sagrado, o Espírito Santo revelar-se-ia, assim, como “figura do Absoluto”, revelada em todas as religiões e em todas as experiências “ateias, agnósticas ou anti-religiosas” (p. 182), isto é, a sinalização imanifestada mas revelada da “fusão do homem com o divi-

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no”, acolhedora fraterna das múltiplas experiências e liturgias religiosas ou vivências ateias e agnósticas. Mensagem ecuménica por excelência, o culto do Espírito Santo não se manifestaria enquanto religião institucionalizada, mas enquanto “sua quinta-essência unificante” (p. 183). Paulo Borges evidencia, assim, a reiteração na obra de Agostinho da Silva da passagem, na década de 70 do último século, do monolitismo cristão para um verdadeiro “catolicismo”, no real sentido desta palavra, evidenciando igualmente que esta passagem im-plica a assunção, não só de uma nova atitude religiosa, trans-confessional e verdadeiramente trans-religiosa, mas sobretudo de um novo viver em comum na cidade dos homens: “A comunidade revolucionária metanóica de todos os homens que lutam, sem nada destruir, pela transformação radical de si e do mundo.” «Revolução» que exige «estudar», «pensar», mas sobretudo «ser» o mais plenamente possível, vencendo ascética e humildemente as resistências da «natureza», dos «hábitos», do «ambiente» ou das «ambições». «Revolução» que exige, como é timbre do culminar místico da espiritualidade agostiniana, encontrar e ser «a essência que tudo liga», o que mais vale que dizê-lo ou es-crevê-lo, enquanto se ora por que os outros igualmente o façam. «Revolução» que não é, enfim, senão o pleno cumprimento da mais funda vocação exis-tencial de cada homem, vinda do absoluto» (pp. 188-189), ou, como também sublinha, uma comunidade inauguradora da “trans-histórica era do Espírito Santo” ou os «tempos de ser Deus» visionária e profeticamente anunciados” (p. 190) por Agostinho da Silva.

3. Línguas de Fogo: Paixão, Morte e Iluminação de Agostinho da Silva

Línguas de Fogo não é um livro de classificação normal, escapando à sua inserção em géneros literários cristalizados. Mais do que um romance, qualificativo que ostenta na capa e que o autor, na introdução, comprova, designando-o como uma “história” ou “romance”, preferimos designá-lo simplesmente por “texto narrativo”, fazendo-o equivaler, deste modo, ao es-tatuto literário e estilístico das narrativas medievais, como A Viagem de São Brandão ou como A Visão de Túndalo, cujo fundo ontológico fidedigno (não inventado) não lhes permite, embora narrem uma história, a qualificação de meros romances segundo o leque de classificações deste género literário, ad-vindas do racionalismo e positivismo do século XIX. “Texto narrativo” sim-plifica a análise, permitindo intermediar categorias puramente narrativas ou estéticas com categorias filosóficas e culturais. Neste sentido, para perspecti-

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varmos Línguas de Fogo de um modo mais completo, devemos enquadrá-lo segundo quatro níveis distintos:

1) Como apologia

Cumprindo a realização etimológica genuína do termo “filosofia”, Lín-guas de Fogo é um livro de amor transformado em sabedoria, ou, melhor dito, um livro em que amor e sabedoria se entrelaçam e confundem numa explo-são estética profundamente criadora. Mas também é um livro que cumpre a antiga tradição de amor-sabedoria pela qual um discípulo ritualiza em acto a passagem do núcleo fundante das ideias do mestre, tornando-as suas, não sem lhes acrescentar uma interpretação pessoal, isto é, ideias próprias. Neste senti-do, Línguas de Fogo foge de uma visão professoral das ideias de Agostinho da Silva e retoma, vivencialmente, por via das formas da imaginação simbólica, a arcaica tradição transmissora de ideias por via discipulata, neste caso eviden-ciando os momentos éticos, políticos, filosóficos e existenciais do pensamento de Agostinho da Silva. Assim, em síntese, Línguas de Fogo constitui-se como uma grande narrativa que imanentemente, por amor, constrói o seu próprio sentido seguindo a transcendência do modelo de vida de Agostinho da Silva.

2) Como narrativa de momentos marcantes da culturaportuguesa

Neste sentido, existe uma identificação entre as metamorfoses espiri-tuais post mortem da personagem Agostinho da Silva e (1) as ideias centrais do pensador Agostinho da Silva sobre a evolução da cultura portuguesa e (2) as transformações mais essenciais que esta foi sofrendo ao longo de 800 anos de história. Assim, mais do que um romance, Línguas de Fogo constitui-se como a grande narrativa romanceada da cultura portuguesa na visão mítica e provi-dencialista, atravessando a totalidade do cânone das suas imagens arquetipais definidoras e individualizadoras. Neste sentido, Línguas de Fogo afirma-se co-mo uma peregrinação concêntrica em torno da captação da essencialidade da nossa cultura enquanto ponto de mediação universal entre todas as culturas, resgatando-as do ciclo racional e tecno-científico iniciado pela Grécia Clássica, orientando-as para a assunção do Espírito Santo ou da emergência do Quinto Império, isto é, segundo Agostinho da Silva, para a emergência da assunção pelo homem de um Reino ditado por genuínos valores infantis, anteriores à perversão da personalidade da criança pela escola normalizada, e simbolizado

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pela coroação do Menino-Imperador na Festa do Espírito Santo. Neste sen-tido, Línguas de Fogo evidencia a experiência da alma de Agostinho da Silva na travessia das imagens historiográficas e arquetipais essenciais da cultura portuguesa, com relevo para a demanda da “ilha” como centro do mundo ou a “Ilha Namorada”, a experiência da loucura divina pela erotização do corpo ou pelo deslumbramento da alma, o conhecimento do “parvo”, da festa dos “loucos”, de “Todo-o-mundo-e-ninguém”, d’O Encoberto, mas também do conhecimento das personalidades constitutivas da cultura portuguesa, como Gil Vicente, Camões, Padre António Vieira, Fernando Pessoa, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Natália Correia, os filósofos vinculados às teses da “Filosofia Portuguesa”, bem como o resgate do pensamento de Prisci-liano, e, ainda, no Brasil, o casal Ferreira da Silva e Eudoro de Sousa. Assim, nas metamorfoses sofridas pelo espírito de Agostinho da Silva, este reminiscencia a revivescência do que se terá tornado historiograficamente o rosto divino da cultura portuguesa, sofrendo-o, vivendo-o almificamente, experimentando espiritualmente as imagens arquetipais da cultura portuguesa.

3) Como um livro de filosofia no mais puro sentido desta palavra, tematizando a fenomenologia do ser ou a revelação do espírito a si próprio

Neste último sentido, Línguas de Fogo evidencia os momentos por que o Espírito, sendo Nada, se revela como Tudo, para, num nível superior, se supe-rar de novo como Nada, ostentando uma ontologia do espírito denunciadora da falsa aparência dicotómica entre matéria e alma, corpo e espírito, realidade e espiritualidade, objecto e sujeito, e de como estas ilusórias manifestações se fundem num processo de auto-revelação do ser a si próprio, tudo absorvendo para no final se dissolver como presença nadificante.

Línguas de Fogo configura-se, assim, ao modo de A Fenomenologia do Espírito, de Hegel, como narração de uma epopeia do Espírito Absoluto na auto-revelação de si a si próprio por via de uma outração, que, no entanto, é sempre uma outração-de-si, em-si permanecendo. Ou, mais portuguesmente, como narração do Espírito Homogéneo de Sampaio Bruno que, realizando-se, decai, criando o Heterogéno da infinda pluralidade do Universo e do Homem, para, por via deste, regenerativamente, a si próprio regressar.

Neste auto-reconhecimento da luz como sombra ou nesta plurificação do Espírito, assumindo-se temporalmente como finito, multiplicado cósmica e existencialmente pelo universo dos entes, o espírito de Agostinho da Silva vai

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reconstituindo e reconhecendo o verdadeiro, isto é, o ontológico estatuto da Arte, da Ciência, da Escola e do conhecimento enquanto dualidade ontológica entre sujeito e objecto, reconhece a teoria dos diversos filósofos como espar-tilhadoras do Uno no múltiplo e do Absoluto no limitado. Assim, Línguas de Fogo, mais do que uma apologia, um romance ou uma travessia sobre a cul-tura mítica portuguesa, postula-se, deste modo, como um tratado ficcional polifónico sobre os grandes temas da filosofia, inclinando todos estes para a perspectiva teológica defendida por Agostinho da Silva, a da existência de um Ser Uno, Absoluto, um Tudo, de que o Universo e o Homem sendo expressão, se conhece a si próprio como o Nada da existência. Neste sentido, a famosa ex-pressão leibniziana, posteriormente retomada por Heidegger, relativa ao por-quê da existência do ser e não do nada, ganha novo fulgor neste romance, que conclui identificarem-se o ser e o nada, embora temporal e ontologicamente com expressão e manifestação diferentes.

4) Como romance, que historia a paixão, morte, metamorfoses espirituais e iluminação de Agostinho da Silva enquanto personagem principal

Por dois motivos, Línguas de Fogo, como romance, não tem paralelo na história recente da literatura portuguesa, gerando dificuldades na sua re-cepção pelo público leitor: 1. – pelo tema – um dos dois conflitos diegéticos da narração sucede todo ele num singular futuro post mortem da personagem principal, não no futuro colectivo cronológico, mas em futuro espiritual fora da matéria e do corpo, em um “lugar” atópico e acrónico, transformado em presente do romance. Lourenço é Nome de Jogral, de Fernanda Botelho, publi-cado em 1973, retrata o modelo habitual da narrativa portuguesa post mortem, no sentido do registo das ideias que os amigos vão tecendo sobre a vida da personagem principal. Porém, no caso do romance de Paulo Borges, temati-za-se o caminho e as transformações experimentadas pelo espírito de Agos-tinho da Silva após a sua morte física, tema indubitavelmente singularíssimo, senão único, na história da literatura portuguesa contemporânea; 2. – pela exploração do tema por via das imagens da mitologia portuguesa e universal, igualmente sem tradição no campo da literatura, tendo apenas como roman-ce precursor a publicação, em 1992, de As Núpcias, de Natália Correia. Neste sentido, do ponto de vista da recepção, a ausência de pontos de referência constituintes de uma tradição literária gera tanto uma perplexidade por parte da crítica literária institucionalizada, que, como é habitual, responde com o

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silêncio, quanto da parte do público leitor, virgem face à matéria do romance e porventura inculto quanto ao seu significado.

Narrado por um obscuro “cronista”, que é testemunha da história sem nela participar, o estatuto do narrador altera-se radicalmente no último capítulo, quando este constata que apenas ilusoriamente se encontrava fora da história, e que esta, sendo a história das metamorfoses de Agostinho da Silva, é igualmente a história das metamorfoses do seu (do narrador) espí-rito, como, aliás, de cada uma das restantes personagens singulares, todas envolvidas na metamorfose única, verdadeira e ontológica do Uno ou do Infinito Esplendor ou do Espírito. Assim, a acção diegética de Línguas de Fogo desdobra-se numa dupla história: 1. – a história, como se referiu, das metamorfoses iluminantes post mortem de Agostinho da Silva; 2. – a gradual ascese ou iluminação de um casal terreno, Sofia, professora universitária de Filosofia, e Fílon, um “sem-abrigo”, vivendo no jardim do Príncipe Real, em Lisboa. No final, ambas as histórias reduzem-se a uma só, percorrendo as etapas ou os degraus da anulação da entificação individual do “eu”, a singu-laridade pessoal e existencial de cada homem, superando-a e dissolvendo-se no Uno ou na Luz, ou no Infinito Esplendor, o ser divino que, sendo Tudo, nada é enquanto ser individual.

Na primeira história, assistimos a uma evolução do romance em três momentos distintos: primeiro, à desmaterialização do corpo de Agostinho da Silva, de alma ainda presa aos desejos e dores do corpo; num segundo momen-to, à desmemoriação do seu espírito ou ao esquecimento ontológico das re-cordações das vivências terrenas; estes dois momentos culminam no que – se não nos enganamos – no romance se designa por “Despertar”, isto é, finalizam a culminância da morte terrena, a desencorporação e desmaterialização total, abrindo o espírito para o horizonte da realidade suprema e verdadeira, ou seja, para a concepção de que Tudo, todos os seres, toda a existência, se constituem como momentos distintos de uma mesmidade única, sempre idêntica, mas vivencial e ilusoriamente desdobrada em seres e tempos, máscaras distintas de uma realidade Una. Finalmente, o terceiro e último momento desta assun-ção iluminadora reside na desespiritualização do próprio espírito individual ou, dito de outro modo, na desentificação da alma como sujeito ou realidade substancial e na sua dissolução no Tudo-Nada ou no Nada-Tudo espiritual, a Luz do Infinito Esplendor. Neste aspecto, nas páginas 116 e 117, o narrador evidencia estilisticamente os limites da linguagem, que são os limites da razão lógica, subvertendo a sintaxe da língua enquanto forma racional de entificação substancial do “eu”.

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Ao mesmo tempo que o espírito de Agostinho da Silva faz prova desta tripla experiência da Verdade, Sofia e Fílon, o par terreno, elevam-se, por via de técnicas de meditação e de uma nova atitude de perspectivar o mundo, a níveis de ascese activa e contemplativa que os preparam para o momento esca-tológico do fim do mundo, simbolizado no grande terramoto que a “Serpente” escondida sob o solo fizera deflagrar em Lisboa. Reunindo os “companheiros” de espírito – muitos deles reais companheiros culturais do autor na Associa-ção Agostinho da Silva –, o casal ascende a Serra da Arrábida, libertando-se do trânsito do mundo. Nesta fusão de duas histórias, o leitor que, tal como o narrador, se presumia “fora da história”, nela espantadamente se vê integrado desde as primeiras páginas, e, presumindo assistir ao espectáculo da narração da história, constata ser o seu próprio espírito que se metamorfoseia, ilumi-nando-se, deixando de ser quem é como espírito mundano, para se assumir como espírito, senão iluminante, pelo menos iluminado.

Miguel Real

Notas1 BORGES, Paulo. Tempos de Ser Deus, ed. cit., p. 12.

2 Para Santo Agostinho, a instauração do “eu” estatuir-se-ia como da ordem da “ilusão”, o que, segundo Paulo Borges, aproximaria este autor das reflexões sapienciais do budismo (p. 38).

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João Maria de Freitas Branco

Agostinho da Silva, um Perfil Filosófico: Do sergismo

ao pensamento à solta.

Corroios, Portugal: Zéfiro, 2006. 109 p.

Visão racionalista sobre o pensamento de Agostinho da Silva

João Maria de Freitas Branco, em Agostinho da Silva: Um Perfil Filosófi-co. Do sergismo ao pensamento à solta, evidencia uma visão racionalista da obra deste pensador, tanto a contendo no interior dos limites de um pensamento não-filosófico ou quase-filosófico, quanto realçando nesta o humanismo de in-tenções. Considerando Agostinho da Silva um pensador, João Maria de Freitas Branco, no entanto, não o considera um “filósofo” (p. 19), já que filósofo seria apenas “todo aquele que realizou, em grau elevado, uma formação no domí-nio do clássico espaço disciplinar do saber filosófico, do mesmo modo que se rotula de matemático quem aprofundadamente estudou a ciência de Pitágoras ou de biólogo quem o fez no domínio da ciência da vida, ou literato ao que em substância se dedicou ao estudo da literatura e a ‘cultiva distintamente’, como dizia Cândido de Figueiredo” (pp. 18-19). Sublinhando afirmações negativas de Agostinho da Silva sobre a sua possível qualidade de filósofo (pp. 17 a 19),1 João Maria de Freitas Branco realça, no interior da configuração do saber pós-25 de Abril de 1974, o papel do filósofo mais como pensador universitário es-pecializado, como erudito académico, e menos como dotado de uma reflexão abrangente, universalizante, pessoal e lúcida, sobre os temas classicamente do domínio da filosofia (Deus, a mente, a alma, o homem, a história, o ser…).2 Neste sentido, o autor privilegia mais o saber disciplinar e especializado da filosofia e menos o saber reflexivo existencial, considerando que Agostinho da Silva não tendo tido formação universitária em Filosofia, desta apenas comun-gou no contacto com António Sérgio, ao longo das reuniões semanais de sá-bado à tarde, que este organizava na sua casa da travessa do Moinho de Vento. Nesta “universidade do Moinho de Vento” terá Agostinho da Silva apreendido,

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segundo João Maria de Freitas Branco, dois dos traços fundamentais do seu pensamento: “o ecletismo assim como a tolerância ideológica” (p. 21). Porém, segundo o autor, nunca o pensamento de Agostinho da Silva “chega a fazer emergir um genuíno corpus filosófico, um ideário filosófico autónomo. Há um passo essencial, no sentido de ascensão a um novo patamar, que nunca chega a efectivar-se. Há labor de sage, há ideação, mas não chega a haver Filósofo. Há condições essenciais que ficam por satisfazer. E se todo o verdadeiro filósofo é um sage, nem todo o sage se eleva ao nível do filósofo” (p. 25). Sage, sim; filó-sofo, não – eis o perfil filosófico de Agostinho da Silva segundo João Maria de Freitas Branco. O que àquele pensador faltou para se elevar ao nível da verda-deira filosofia? Segundo o autor, que dá provas de um genuíno racionalismo, “a autêntica filosofia é sempre gesto dissipador de neblinas, em que a essencial postura dubitativa é factor de dilucidação e não de semeadura de mistérios insondáveis” (pp. 24-25). Dito de outro modo, Agostinho da Silva utiliza cri-vos, intuições e conceitos filosóficos, não para aclaração de teses e formulação de teorias, mas para “semeadura de mistérios insondáveis”. E João Maria de Freitas Branco, circunscrevendo quatro frases filosóficas de Agostinho da Silva (p. 26), evidencia, segundo a sua perspectiva racionalista, a arracionalidade das soluções teóricas deste autor, essencialmente a necessidade de se pensar que o Tudo e o Nada são o mesmo, Deus, o Uno, o Todo coexistem paradoxalmen-te enquanto mesmidade e alteridade nos opostos dicotómicos, centro da sua filosofia espiritual, que João Maria de Freitas Branco, como se torna eviden-te, não aceita, invectivando-a de “mistérios insondáveis”, concluindo que “é a ausência de respostas satisfatórias para as exigências racionais e conceptuais consubstanciadas (…) que tende a anular [na obra de Agostinho da Silva] a presença do Filósofo” (p. 27).

Mas, segundo João Maria de Freitas Branco, Agostinho da Silva não terá sido filósofo por “opção voluntária”: “Agostinho da Silva simplesmente não quis ser filósofo de corpo inteiro” (p. 32), já que o seu desiderato não seria o de tema-tizar os grandes conceitos e categorias da filosofia, mas o de tematizar os traços essenciais da cultura: “Agostinho da Silva foi fundamentalmente um pensador da cultura na rigorosa acepção por si própria conferida a este conceito de com-plexa significação; isto é, o processo de melhorar a vida dos seres humanos” (p. 33). A cultura teria sido, segundo João Maria de Freitas Branco, o espaço teórico e prático privilegiado de análise e de realização pessoal de Agostinho da Silva, não no sentido diletante de cultura, mas no sentido prático da melhoria da organização da vida das pessoas, ou seja, num sentido fortemente “político” (p. 34), entendendo-se no entanto este termo não no sentido partidário ou político

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tout court, mas num sentido humanista e global, isto é, cultural: “no vocabulá-rio agostiniano política e cultura são termos irmanados” (p. 34). Eis o cerne do ensaio de João Maria de Freitas Branco: “Em vez de se persistir em estudar um ine-xistente, de buscar um tratamento agostiniano, denso e sistematizado, das ques-tões filosóficas mais profundas, parece-me dever-se realizar um estudo alargado e aprofundado que tenha por título algo como: ‘o pensamento político de…’, ‘a realização agostiniana da cultura’; ou tão-só: ‘a política agostiniana’” (p. 36).

João Maria de Freitas Branco, resgatando forçadamente Agostinho da Silva para uma tradição racionalista, que apenas encontra o seu fundamento na participação deste no grupo Seara Nova, detecta elementos no pensamento deste autor que lhe determinam algum discipulato de António Sérgio, ainda que sem uma fidelidade absoluta: “No escrupuloso respeito da orientação do Mestre [António Sérgio], e coerente com o seu próprio eu-essencial, Agosti-nho nunca foi nem poderia ter sido um prosélito do sergismo, nem um mero continuador passivo do seu ensaísmo filosófico. No entanto, a verdade é que o magistério sergiano se faz sentir em muitos passos da sua obra” (p. 42). Neste sentido, o autor evidencia quatro frases soltas (pp. 42-43) de Agostinho da Sil-va que perfariam eco da filosofia sergiana, bem como a apologia do trabalho científico para a laboração filosófica. Do mesmo modo, no segundo ensaio do livro, João Maria de Freitas Branco insiste na existência de elementos comuns ao pensamento de Sérgio e Agostinho da Silva (pp. 77-78). No entanto, as pas-sagens do pensamento de Agostinho da Silva que João Maria de Freitas Branco ressalta são constituídas por ideias gerais, mesmo generalistas, que Agostinho da Silva pode, de facto, ter recebido de António Sérgio, mas também de Leo-nardo Coimbra, do seu professor na Faculdade de Letras do Porto Hernâni Ci-dade, como, influenciado pelo magistério ideológico da Seara Nova, pode ter concluído por si próprio com base nas inúmeras leituras que lhe alimentavam as três colecções de cadernos didácticos que animava e publicava.

Finalmente, o autor, depois de negar a pregnância propriamente filo-sófica do pensamento de Agostinho da Silva e de ter integrado algumas das idéias deste numa linha de continuidade sergiana, conclui da existência de um “perfil filosófico” agostiniano: “Do meu ponto de vista, o verdadeiro legado filosófico de Agostinho da Silva, valiosíssimo legado, consiste na apologia de uma atitude de espírito, de um modo de pensamento: aquilo a que o próprio chamou pensamento à solta. Mas em que consiste esta atitude de soltar o pen-samento? Significa legitimar todas as possibilidades, todas as hipóteses, todos os esforços de reflexão, independentemente da orientação, independentemen-te de quaisquer imagináveis pontos de chegada. Importante é o caminharmos

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incontáveis caminhos possíveis. Fundamentalíssimo é tão-somente a perma-nente abertura ao possível” (p. 44). É, evidentemente, para quem conhece com alguma vastidão o pensamento de Agostinho da Silva, uma definição muito limitada do seu pensamento, seja enquanto atitude (a valorização do sagrado é sempre superior à valorização do ateísmo; a valorização da atitude da crian-ça é sempre filosoficamente superior à valorização da atitude do adulto;…), seja enquanto desenvolvimento conceptual desta atitude (que, sem dúvida, passa por uma génese racionalista, mas a supera a partir da década de 50), historiografando de um modo muito novo a história da cultura portuguesa, teorizando de um modo muito novo a questão de Deus, tematizando de um modo muito novo o todo da história do Homem, inclusive o seu futuro. Por que João Maria de Freitas Branco não acolhe no seu ensaio estas soluções no-vas? Por que as desconhece? Não, porque elas integram-se numa vertente do trabalho filosófico que “concorre para aumentar o grau de confusão latente no espaço societal, cultivando o mistério” (p. 53), isto é, porque o olhar filosófico de João Maria de Freitas Branco realça os aspectos racionalistas de Agostinho da Silva, minorando os restantes. Ou, ainda dito de outro modo, segundo a perspectiva ideológica do autor, porque a nova configuração filosófica criada por Agostinho da Silva encontra-se encerrada no interior da fortaleza do ir-racionalismo: “Na forma do discurso de Agostinho da Silva, a sua inclinação poética (o amor poético), o uso da imagem alegórica, o seu estimado paracle-tismo, uma certa aparência mística, a palavra que sugere ou emociona mais do que conceptualiza, uma sensualidade pairante, o espírito provocatório aliado a um fortíssimo e omnipresente humor irónico (que não me canso de realçar), e ainda aquilo a que Eduardo Lourenço chamou íntima e irredutível ex-centri-cidade, são características discursivas que, de modo involuntário, nem sempre deixam de concorrer para a abertura da porta ao aludido perigo; isto é, ao risco de poder, a dado passo, estar a servir (de forma involuntária, repita-se) a cultura da confusão em detrimento do gesto que emana força dilucidativa e emancipadora” (pp. 53-54).

A simpatia do autor para com a atitude filosófica de “pensamento à solta” de Agostinho da Silva força-o a distinguir com nitidez a obra deste pensador da corrente filosófica habitualmente designada por “Filosofia Por-tuguesa” (Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Álvaro Ribeiro, José Marinho, António Quadros, António Braz Teixeira, Pinharanda Gomes, Dalila Pereira da Costa…), obliterando a comunidade de temas que circulam entre os pen-sadores desta corrente e que indubitavelmente impregnam o pensamento de Agostinho da Silva (a começar na preponderância da teologia face à filosofia,

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a elevação da Idade Média católica a modelo genuíno da cultura portuguesa, o seu confessado providencialismo…). Mesmo quando João Maria de Freitas Branco desloca Agostinho da Silva do tradicionalismo católico (pp. 82-83), tende a esquecer que a própria tradição da filosofia portuguesa do século XX tem sido sempre heterodoxa à dogmática da Igreja Católica.

Na página 82, aprofundando o perfil filosófico (título do livro) de Agostinho da Silva, o autor conclui “tratar-se de um pensamento neo-estoi-cista temperado de paradoxologia Novecentista de vincada inspiração cientí-fica (física pós-clássica)”. Segundo esta classificação – sem dúvida não menos confusa do que a “confusão” atribuída ao pensamento de Agostinho da Silva –, mais do que contemplativo, todo o pensamento deste autor desenharia uma “filosofia da acção”: “Muito à semelhança do que ocorre com os estóicos, a Filosofia é entendida ou, talvez melhor dito, praticada como arte terapêutica e não como reflexão sistemática sobre os clássicos problemas do conhecimento ou da fundamentação do Ser. O filosofar intervém aqui como factor auxiliar da criatividade que solta o pensar, que promove a reflexão descomprometida, enriquecendo a acção e, nessa precisa medida, leva cada homem a cumprir-se, furtando-se assim, ao mesmo tempo, a pecar contra o Espírito Santo [não ser “vário”, uno e múltiplo ao mesmo tempo, e não realçar a imprevisibilidade constitutivamente existente no homem]” (p. 83). Neste sentido, João Maria de Freitas Branco detecta em Agostinho da Silva a atitude estóica da tolerância (p. 84) (no primeiro ensaio do livro atribuída à influência de António Sérgio, como fizemos notar), bem como a existência de uma “metodologia de inspi-ração estóica” (p. 85): “no nosso pensador, a preocupação não é a transmissão de quaisquer conteúdos cognitivos determinados ou de qualquer conjunto estanque de regras morais, sendo antes um apelo à acção criativa que tenda a esgotar todos os possíveis ou seja, dito de outro modo, é um permanente convite para que nos instalemos no paradoxo. Daí o manifesto desejo de ver a pátria lusitana ser possuidora de ‘todas as filosofias como heteronímicas’” (p. 87). Assim se estatui a interpretação de João Maria de Freitas Branco sobre a teoria do Espírito Santo de Agostinho da Silva, racionalizando-a, ou, me-lhor, desespiritualizando-a e desdivinizando-a. Escreve João Maria de Freitas Branco: “Acreditar no Quinto Império [ou na teoria paracletiana do Espírito Santo] é tão simplesmente acreditar no futuro e em um futuro em que esteja em nossa posse o conhecimento capaz de tornar os problemas de hoje coisas do passado, peças do museu da história das sociedades humanas. Fundamen-talmente é isso e apenas isso o acreditar no Quinto Império, sendo que isso é basilar para que a vida de cada um de nós valha a pena ser vivida, para que

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seja uma forma útil de existência” (pp. 94-95). Eis a teoria do Espírito Santo e a teoria do Quinto Império integradas numa visão racionalista do mundo – a simples superação dos “problemas” do presente.

Miguel Real

Notas1 Cf. outra interpretação destas afirmações negativas de Agostinho da Silva sobre a sua qualidade de filósofo em BORGES, Paulo. Estudo Introdutório. In: SILVA, Agostinho da. Textos e Ensaios Filosóficos, v. I, Lisboa: Ânco-ra, 1999, p. 9 e ss.

2 Inexplicavelmente, porém, João Maria de Freitas Branco, no segundo ensaio do livro, na p. 73, sublinha que o desinteresse de Agostinho da Silva pela filosofia académica do seu tempo de universitário “Só [o] abona em favor da sua efectiva ligação ao universo do genuíno pensamento filosófico, da superior filosofia – essa que está em Aristóteles, Descartes, Espinosa, Kant, mas talvez não tanto nas aulas de certos docentes” [refere-se às aulas de Leonardo Coimbra e Matos Romão] (pp. 73-74).

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Quem somos: o PPRLB

O Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-brasileiras (PPRLB) é consti-tuído por professores e pesquisadores de várias áreas do conhecimento, em-penhados em aprofundar e dar visibilidade aos estudos que contemplam rela-ções luso-brasileiras.

Encontra-se vinculado ao Centro de Estudos do Real Gabinete Portu-guês de Leitura do Rio de Janeiro e sediado nas dependências desta instituição cultural fundada em 14 de maio de 1837, que tem em seu patrimônio uma das mais importantes e belas bibliotecas brasileiras.

O PPRLB tem por objetivos: a) propiciar aos pesquisadores, e estudiosos em geral, das relações lu-

so-brasileiras condições de permanente aprofundamento em suas áreas de interesse, que, no âmbito do PPRLB estarão agrupados em Núcleos de temática afim;

b) incentivar condições de diálogo e intercâmbio entre os participan-

tes do PPRLB e os vários Núcleos que integrem; c) promover cursos, eventos e publicações sobre aspectos das relações

luso-brasileiras; d) articular-se com diferentes organismos, no plano nacional ou in-

ternacional, visando a que suas promoções alcancem a desejável visibilidade na busca de divulgar amplamente os estudos sobre re-lações luso-brasileiras.

O corpo de participantes do PPRLB é ilimitado e acolherá pesquisa-

dores, professores, alunos e estudiosos em geral, vinculados ou não a insti-tuições acadêmicas, que compartilhem de seus propósitos e desejem colabo-rar na difusão dos estudos voltados para as relações luso-brasileiras.

Coordenação-geral: Prof.a Dra. Gilda Santos E-mail: [email protected]

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normas editoriais da revista Convergência Lusíada

1. Serão aceitos, para serem apreciados pelo Conselho Editorial textos inéditos no Brasil, sobre quaisquer aspectos das relações luso-brasileiras, des-de que observadas estas normas, dentro das seguintes modalidades:

a) ensaios e artigos, entre 21.000 e 28.000 caracteres digitados (cerca de 15 a 20 páginas), incluída a bibliografia;

b) resenhas de livros publicados ou teses defendidas (ambos nos dois últimos anos), entre 4.200 caracteres e 7.000 caracteres digitados (cerca de 3 a 5 páginas);

c) notas e comentários diversos, entre 7.000 e 14.000 caracteres digita-dos (cerca de 5 a 10 páginas).

2. Todos os textos serão submetidos a parecer do Conselho Editorial, que poderá aprová-los integralmente, vetá-los integralmente ou sugerir mo-dificações de estrutura ou conteúdo aos autores. Eventualmente, o Conselho poderá valer-se de pareceres externos.

3. Os textos devem ser entregues em duas cópias impressas e uma có-pia em disquete, digitada em programa Word para Windows, com a seguinte formatação:

a) Margens de 3 cm, papel A4. b) Uso da fonte Times New Roman, corpo 12, espaço 1,5, em todo

o texto, exceto para as citações com mais de três linhas e para os resumos.

c) Uso da fonte Times New Roman, corpo 11, espaço simples, para as citações com mais de três linhas e para os resumos.

d) As citações de até três linhas devem integrar o corpo do texto e ser assinaladas entre aspas.

e) Os textos não devem conter sublinhados nem negrito. Para desta-que, utilizar somente aspas e itálico.

f) As indicações bibliográficas deverão figurar no corpo do texto, en-tre parênteses, da seguinte forma:

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Sobrenome do Autor; vírgula; data da publicação; vírgula; abrevia-tura de página (p.) e o número desta(s); ponto. Não devem ser utilizadas expressões como idem ou ibidem. Exemplo: (Serrão, 1985, pp.31-36.)

g) Outros tipos de notas devem figurar no rodapé da página, em cor-po 10.

h) A bibliografia deverá estar no fim do texto, com a seguinte forma-tação: fonte Times New Roman, corpo 12, espaço simples, e conter todas as obras citadas nas indicações bibliográficas. Deve seguir as normas da ABNT, a saber:

— Para livros deverá ter o seguinte formato: SOBRENOME DO AUTOR, nome do autor. Título do livro. Local de

publicação: Nome da editora, Data da publicação. (Incluir, entre o Título do livro e o Local de publicação, o número da edição, quando não for a primeira, usando para tanto o formato: número da edição em algarismo arábico, ponto, ed.). A 2ª linha começa recuada, abaixo da 4ª letra do sobrenome do autor. Exemplo: LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. 2.ed. Lisboa: Dom Quixote, 1982.

— Para artigos publicados em revistas e periódicos em geral deverá ter o seguinte formato:

SOBRENOME DO AUTOR, nome do autor. Título do artigo. No-me do periódico, série do periódico, Local de publicação, v. Volu-me do periódico, no. Número do periódico, p. Páginas em que está presente o artigo, data. A 2ª linha começa recuada, abaixo da 4ª letra do sobrenome do autor. Exemplo: PESSOA, Fernando. A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada. A Águia, 2ª série, Porto, v.1, no. 4, pp.101-107, abr. 1912.

4. Todos os artigos devem vir já revisados e acompanhados de dois re-sumos, de até 700 caracteres, digitados após a bibliografia – um em português e outro em inglês (abstract) – com a seguinte formatação: fonte Times New Roman, corpo 11, espaço simples. Devem conter ainda 3 a 5 “palavras-chave”, em português e em inglês (keywords), ao fim de cada resumo.

5. As cópias impressas, com o respectivo disquete, devem ser enviadas em nome do PPRLB para o Real Gabinete Português de Leitura (Rua Luís

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de Camões, 30 /// 20051-020 – Rio de Janeiro – RJ - Brasil), com a iden-tificação de nome do autor, endereço postal e eletrônico, telefone(s) e fax para contato. Devem ainda ser acompanhadas por breves dados curriculares (3 linhas) do autor: profissão, titulação, vínculo institucional, outros dados que considere relevantes.

6. Os autores de textos publicados terão direito a três exemplares da obra. Os originais não aprovados não serão devolvidos, mas fica, natural-mente, resguardado o direito dos autores de divulgá-los em outros espaços editoriais