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5/7/2014 Revista Cult » As distopias de George Orwell http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/as-distopias-de-george-orwell/ 1/7 Assine 0800 703 3000 SAC Batepapo Email Notícias Esporte Entretenimento Mulher Shopping BUSCAR MATÉRIAS EDIÇÕES COLUNAS OFICINA LITERÁRIA BLOG MARCIA TIBURI ESPAÇO CULT LOJA CULT na Cult na Web CONECTESE Esqueci minha senha LOGIN SENHA Home > Edições > 71 > As distopias de George Orwell As distopias de George Orwell TAGS: Ensaio A obra do escritor inglês se insere na tradição da ficção científica distópica, representada por H.G. Wells, Ievguêni Zamiátin e Aldous Huxley, e dos “contos cautelares” que alertam para tendências políticas e sociais que podem se tornar catastróficas no futuro Vivemos num mundo estranho. Mundo em que o editor da importante Harper’s Magazine aparece na CNN afirmando que a imprensa americana conspirou com o governo Bush, na construção de uma farsa – a farsa da ameaça iminente das armas de destruição em massa do Iraque, justificativa para a tomada de poder naquele país. Um mundo em que precisamos de alguém como Michael Moore e seu jornalismo humorístico para derrubar a linguagem ofi cialesca da imprensa e das salas dos relações públicas e expor o grotesco por trás das decisões políticas e corporativas (agora mais do que nunca, com o acúmulo dos meios de comunicação nas mãos de poucos). Mundo em que o assento do poder parece ditar a política do Estado, e não as ideologias ou os votos do eleitorado. Estranho mundo em que há uma guerra eterna contra um inimigo invisível. EDIÇÃO 190 EDIÇÕES ANTERIORES

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As distopias de George OrwellTAGS: Ensaio

A obra do escritor inglês se insere na tradição da ficção científica distópica, representadapor H.G. Wells, Ievguêni Zamiátin e Aldous Huxley, e dos “contos cautelares” que alertampara tendências políticas e sociais que podem se tornar catastróficas no futuro

Vivemos num mundo estranho. Mundo em que o editor da importante Harper’s Magazineaparece na CNN afirmando que a imprensa americana conspirou com o governo Bush, naconstrução de uma farsa – a farsa da ameaça iminente das armas de destruição em massa doIraque, justificativa para a tomada de poder naquele país. Um mundo em que precisamos dealguém como Michael Moore e seu jornalismo humorístico para derrubar a linguagem oficialesca da imprensa e das salas dos relações públicas e expor o grotesco por trás das decisõespolíticas e corporativas (agora mais do que nunca, com o acúmulo dos meios de comunicaçãonas mãos de poucos). Mundo em que o assento do poder parece ditar a política do Estado, enão as ideologias ou os votos do eleitorado. Estranho mundo em que há uma guerra eternacontra um inimigo invisível.

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 GUERRA É PAZ

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

IGNORÂNCIA É FORÇA

escreveu George Orwell em 1948, no que chamou de “dupli pensar” – um dos aspectos centraisdo seu romance 1984 –, expressão de suas angústias diante das novas estruturas de poder nopósguerra, com o mundo dividido em grandes blocos de pensamento ideológico.

Um dos autores de maior impacto no século XX, Orwell  tam bém se tornaria um dos nomesmais reconhecidos da ficção científica (FC), graças, principalmente, às suas distopias Arevolução dos bichos (1945) e 1984 (1949). As obras anteriores a essa última fase são romancescomo Dias na Birmânia (1934), que aproveita sua experiência no serviço da Polícia ImperialIndiana (192227), ou A filha do reverendo (1935) e O vil metal (1936), já assinalando a suatendência para a crítica social e para o socialismo.

O primeiro golpe contra a sua convicção socialista se deu na Espanha, quando ele enfrentou oscomunistas que tentavam esmagar seus oponentes políticos dentro da aliança republicana. Orelato Lutando na Espanha (1938) é resultado dessa experiência, que também o pressionou aescrever A revolução dos bichos e 1984 como denúncias aos descaminhos da Revolução Russa,sob a forma de distopia – a descrição de um lugar fora da história, em que tensões sociais e declasse estão aplacadas por meio da violência ou do controle social.

A FC distópica se tornou, durante todo o século XX, uma forma popular, respeitada e bastanteinternacional. Seu gérmen já existia no século anterior, como se vê em A máquina do tempo(1895), de H.G. Wells: um Viajante do Tempo encontra no futuro distante as classes subalternae superior transformadas em duas espécies diferentes, uma predadora da outra.

Um marco no século XX foi o romance do russo Ievguêni Zamiátin, no clássico A muralhaverde (tradução de We, que depois também seria traduzido como Nós), escrito em 1920 e queprovavelmente originou tanto Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, quanto 1984de Orwell. De fato, Zamiátin pode ser visto como pai da distopia moderna, além de anteciparno romance o clima do stalinismo que se abateria sobre a União Soviética em 1924. Ele, porém,já tivera contato com a FC na tradição do “romance científico”, pois havia produzido prefáciospara edições russas de obras de Wells.

Talvez emprestando de A muralha verde a noção de uma pessoa requisitando outra para o

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sexo, Robert Silverberg publicou em 1971 o impressionante Mundos fechados: a superpopulação e o constrangimento ambiental do futuro gera uma intensa promiscuidade comoválvula de escape, a ponto de não existir o direito à recusa. O escritor inglês L.P. Hartleytambém se aventurou no subgênero com Justiça facial (1960), em que a identificaçãoindividual é destruída pela imposição de um único rosto a todas as pessoas. A distopia suecaKalocaína (1940), de Karin Boyle, radicaliza a busca do estado totalitário pelo controle doscorações e mentes das pessoas, com a invenção do sorodaverdade perfeito. Em Farenheit 451(1953), de Ray Bradbury, os bombeiros existem como uma polícia política, encarregada dequeimar livros, em uma sociedade onde eles foram abolidos e as pessoas são controladas comdoses maciças de televisão e drogas. Ler é um ato criminoso.

Eventualmente a distopia chegou à literatura brasileira. A variante nacional mais característica talvez seja aquela centrada num mundo futuro de sexo livre, como na série de narrativasinterligadas de André Carneiro – o conto “Diário da nave perdida” (1963) e as novelas Piscinalivre (1980) e Amorquia (1991). A melhor realização dessa tendência, porém, é O outro ladodo protocolo (1985), de Paulo de Sousa Ramos. Nessa novela elíptica, o narrador viaja aofuturo por meio da máquina construída por um colega, que o hospeda e guia por umasociedade aparentemente utópica. Essa obra, assim como a série de Carneiro, emprestaelementos de Huxley, mas provavelmente também é influenciada por Zamiátin e Orwell.

A revolução dos bichos é uma fábula sobre animais falantes em uma fazenda. Eles se revoltamcontra a tirania dos homens, mas logo a revolução e sua promessa de liberdade se corrompemem um novo sistema opressor, agora com os porcos no topo da pirâmide da exploração.

Há algo de intrigante e talvez de irresistível nessa forma de alegoria. O livro foi imediatamentevisto como crítica áspera ao stalinismo e, apesar do formato, costuma ser citado em listas dosmelhores da FC. É visto como uma FC recursiva – que retorna a algumas das raízes do gênero(fábulas, lendas, contos de fadas). Como Cidade (1952), de Clifford D. Simak, em que a Terraabandonada pelos homens termina habitada por animais inteligentes que contam, ao redor defogueiras, fábulas sobre os seres humanos.

A fábula de Orwell parece convidar respostas ou continuações semelhantes, que possamrecorrer ao mesmo banco de tradições formadoras. Exemplos são Fazenda modelo (1975), deChico Buarque, que usa o esquema alegórico contra o regime militar brasileiro, e maisrecentemente Snowball’s chance (2002), de John Reed, que traz as situações e personagens dolivro de Orwell para o contexto do fim da União Soviética: o porcolíder Bola de Neve descobresua vocação para o capitalismo redivivo.

1984 também é visto como uma feroz crítica ao stalinismo. Há um objeto de culto personalista,

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o Grande Irmão. Também há falta de privacidade, espiões dentro da própria família,atividades coletivizadas, desaparecimentos e execuções, e a combinação de propagandamaciça com a constante revisão artificial da história, exigindo das pessoas o “duplipensar”, oregistro mental de idéias conflitantes. Mas o que permite à ditadura de 1984 existir “fora dahistória” não é apenas o controle da informação, mas o mundo dividido em blocos políticomilitares em guerra constante. O protagonista Winston Smith vive como um dissidentesilencioso, num Estado totalitário total que não dá qualquer saída para o indivíduo. Os “atossubversivos” que Smith comete são escrever um diário, apaixonarse pela jovem Julia e com elatentar ingressar em uma suposta organização revoltosa. O enredo propriamente é fraco. Dar aele mais suspense e reviravoltas seria minar a intenção principal do autor, que é sublinhar aimpotência do protagonista diante do poder implacável do Estado.

Orwell escreveu suas distopias a partir de suas ansiedades intelectuais, mas também, comoZamiátin, a partir de uma experiência pessoal. Mas e quanto a possíveis influências literárias?

1984 faz parte da tradição dos “contos cautelares”, que alertam o leitor para uma tendênciapresente que pode se tornar catastrófica no futuro. Um dos principais autores de contos cautelares foi H.G. Wells. Vale comparar a cena em que Smith e Julia ingenuamente conversamsobre a heróica resistência que pretendem impor contra o regime com aquela em A guerra dosmundos (1898), de Wells, em que o alter ego do autor discute com o personagem “artilheiro”,em termos não menos heróicos e não menos fúteis, a resistência futura contra os invasoresmarcianos que assolam a Terra.

A maior influência, contudo, é claramente o livro de Zamiátin. Em A muralha verde, o grandelíder é chamado de “Benfeitor”; em 1984, de “Grande Irmão”. No primeiro livro, há selvagensvivendo por trás da muralha verde do título, fora do alcance do regime; no outro, oproletariado urbano, descrito com carinho por Orwell, cumpre esse papel de reserva dehumanidade. Em um, a falta de privacidade é simbolizada por residências transparentes; nooutro, pelo televisor que tudo registra. Em ambos, o protagonista apaixonase por uma mulherescultural e rebelde, que é traída por ele. O primeiro é desenvolvido como o diário de D503(no futuro, não teremos nomes, mas números), enquanto o drama de Winston Smith começaquando ele abre o seu diário, embora o romance se desenvolva na terceira pessoa. Ascoincidências são tantas que se torna difícil não pensar em plágio. Uma alternativa é enxergarA muralha verde como um laço passado pela primeira vez em torno do horror do totalitarismoe 1984 como a obra que apertou esse laço de modo ainda mais sufocante. Tanto que o estilopoético de Zamiátin dá lugar às descrições naturalistas de Orwell, que enfatizam a situaçãomaterialmente difícil sob o regime, a dor e a tortura às quais Smith é submetido.

O que dizer da importância do romance, agora que nem há mais uma União Soviética?

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Orwell não endereçava a sua crítica apenas à URSS, mas também ao partido trabalhista inglêse à polarização Ocidente/Oriente. Ao descrever os mecanismos do totalitarismo, ele deu a 1984a qualidade protéica que lhe permite superar o contexto histórico que o inspirou. Há usos paratodas as ocasiões – como o da edição popular da Signet americana, de 1950, que enfatiza, pelailustração de capa de Alan Hass, o aspecto sexualmente repressivo do regime de 1984, mais emsintonia com as preocupações dos americanos que viviam um momento conservador nessaárea.

A oscilação da narrativa entre extremos pessoais (os gestos do próprio Smith, enquantocriança, de exploração da sua irmã menor) e ideológicos, entre ficção e nãoficção (pelacolagem da cartilha do pseudomovimento de resistência), entre o amor sexual e o amor peloregime, flexibiliza o relacionamento do romance com suas fontes inspiradoras e sinaliza atendência para o autoritarismo em todas as sociedades – mesmo nas democracias ocidentais.

No plano literário, o romance projeta uma profunda desconfiança quanto à linguagem. Orwellcompreendeu e explorou o seu aspecto ontológico, capaz de criar a realidade, ou delimitála: oobjetivo final do regime é controlar o pensamento, por meio da “novilíngua”, artefatolingüístico que oblitera a língua anterior e suas ferramentas de racionalidade e lógica. Nessesentido, Orwell antecipa preocupações pósmodernistas que se tornariam dominantes nasegunda metade do século XX, especialmente as expressas como “metaficção”, definida porPatricia Waugh (Metafiction: The theory and practice of selfconscious fiction, 1984) como“escritos [que] não só examinam as estruturas fundamentais da narrativa de ficção, [mas que]também exploram a possível ficcionalidade do mundo exterior ao texto ficcional literário”.

O que Orwell não faz, em comparação com os atuais escritores de metaficção, é incorporar essadesconfiança no seu próprio texto. Ao contrário, ela é projetada para fora – para o uso políticode uma linguagem que ele já via rascunhada no presente. Orwell enfraqueceria a eficácia doseu conto cautelar se minasse a força da objetividade do seu próprio texto. Mais do que isso, hánele uma urgência pelo uso da palavra e pela expressão do seu descontentamento. Afinal, oprimeiro gesto subversivo de Winston Smith é escrever em um diário.

Contudo, um componente estrutural da narrativa distópica que ele incorpora ao romance, emuma chave que poderíamos chamar de metaficcional, é o papel do dissidente.

Nenhuma das obras citadas existiria se não houvesse a figura de um dissidente que observa,com um olhar próximo do nosso, o mundo totalitário. De outra forma não haveria conflito,pois a própria idéia de um regime totalitário absoluto pressupõe a ausência do choque deopiniões e de posturas. O dissidente ou é estranho à dis topia, levado a ela como em Admirável

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mundo novo ou O outro lado do protocolo, ou ele de algum modo emerge no seio do regime.Assim, embora seja uma forma pessimista, a distopia apresenta em sua própria estrutura umalento de esperança: sempre haverá alguém que não se submete.

Orwell, que estava morrendo de tuberculose enquanto escrevia 1984, não queria essa saída.Para que o seu conto cautelar tivesse eficácia máxima, seria preciso fechar todas as portaspossíveis e afirmar apenas o desespero. O seu pesadelo literário é construído em torno dadestruição da personalidade do seu dissidente, Winston Smith, após uma chocante sessão detortura física e mental.

A tendência para o autori tarismo (de esquerda ou de direita) persiste em nosso mundo orwelliano de latifúndios midiáticos e de pressão para novos alinhamentos, agora em torno daguerra eterna contra o inimigo invisível do terrorismo. O grito de George Orwell para que nosacautelemos continua válido.

Roberto de Sousa Causoescritor, autor do livro Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950 (EditoraUFMG)

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