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CRÍTICA MARXISTA 151 João Quartim de Moraes: Na re- senha que consagrou em O Globo (“Pro- sa & Verso”, 1.1.05) a seu livro Fuga da História? – A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje, Lean- dro Konder pondera que “a motivação estrita e estreitamente econômica não combina com os ideais dos socialistas, com a luta incessante que eles travam contra as desigualdades, contra a opres- são, contra as injustiças, e em favor de um aumento da participação das cama- das populares na vida política”. Domenico Losurdo: Quando sintetizava na fórmula “soviet + eletrifi- cação” os objetivos básicos do país sur- gido da Revolução de Outubro, estaria Revolução chinesa, antimperialismo e a luta pelo socialismo hoje * * Esta entrevista, concedida pelo filósofo italiano Domenico Losurdo a João Quartim de Moraes, foi suscitada por uma resenha crítica, de autoria de Leandro Konder. Publicada no jornal carioca O Globo (01/01/2005), sob o título “Novas idéias para repensar velhas concepções”, a resenha trata de dois livros de Losurdo recém traduzidos para o português. O livro Fuga da história? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje, o objeto central da entrevista, foi editado pela Editora Revan no 2 o semestre de 2004. CRÍTICA marxista Entrevista Lênin esquecendo a luta contra a injus- tiça e a opressão? E a esquecia o Mani- festo do partido comunista quando conclamava o proletariado vitorioso a servir-se do poder político em primeiro lugar “para ampliar, com a maior rapi- dez possível, a massa das forças produ- tivas”? Em realidade, em ambos os ca- sos, a industrialização, a modernização, o desenvolvimento das forças produti- vas são identificados como o instrumen- to fundamental, numa situação bem determinada (o controle do aparelho estatal) para começar realmente a edificar a nova sociedade à qual se aspi- ra, para aumentar-lhe a capacidade de atração e defendê-la em caso de neces- sidade, para levar adiante concretamente

Revolução Chinesa, Imperialismo

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João Quartim de Moraes: Na re-senha que consagrou em O Globo (“Pro-sa & Verso”, 1.1.05) a seu livro Fugada História? – A Revolução Russa e aRevolução Chinesa vistas de hoje, Lean-dro Konder pondera que “a motivaçãoestrita e estreitamente econômica nãocombina com os ideais dos socialistas,com a luta incessante que eles travamcontra as desigualdades, contra a opres-são, contra as injustiças, e em favor deum aumento da participação das cama-das populares na vida política”.

Domenico Losurdo: Quandosintetizava na fórmula “soviet + eletrifi-cação” os objetivos básicos do país sur-gido da Revolução de Outubro, estaria

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* Esta entrevista, concedida pelo filósofo italiano Domenico Losurdo a João Quartim deMoraes, foi suscitada por uma resenha crítica, de autoria de Leandro Konder. Publicadano jornal carioca O Globo (01/01/2005), sob o título “Novas idéias para repensar velhasconcepções”, a resenha trata de dois livros de Losurdo recém traduzidos para o português.O livro Fuga da história? A revolução russa e a revolução chinesa vistas de hoje, o objetocentral da entrevista, foi editado pela Editora Revan no 2o semestre de 2004.

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Lênin esquecendo a luta contra a injus-tiça e a opressão? E a esquecia o Mani-festo do partido comunista quandoconclamava o proletariado vitorioso aservir-se do poder político em primeirolugar “para ampliar, com a maior rapi-dez possível, a massa das forças produ-tivas”? Em realidade, em ambos os ca-sos, a industrialização, a modernização,o desenvolvimento das forças produti-vas são identificados como o instrumen-to fundamental, numa situação bemdeterminada (o controle do aparelhoestatal) para começar realmente aedificar a nova sociedade à qual se aspi-ra, para aumentar-lhe a capacidade deatração e defendê-la em caso de neces-sidade, para levar adiante concretamente

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os ideais de emancipação que tinhampresidido a revolução.

Não diversamente se apresenta-vam as coisas no referente à RepúblicaPopular Chinesa. Em meu livro relem-brei a afirmação feita por Mao em se-tembro de 1949, na imediata seqüên-cia da tomada do poder, segundo a qualWashington aspirava a tornar a Chinadependente da “farinha americana” e,portanto a transformá-la em “uma co-lônia americana”. Aos olhos do grandedirigente comunista era bem claro o fatode que a luta contra o imperialismo es-tava passando da fase predominante-mente militar à fase predominantemen-te econômica. A verdade é que nesta lutaa dimensão econômica nunca esteveausente e Mao nunca a perdeu de vista.Eis o que ele escrevia em 23 de janeirode 1934 (Nossa política econômica),quando se tratava de defender peque-nas e isoladas áreas “libertadas” e sob ocontrole comunista do cerco e do ata-que da reação:

“Os imperialistas e o Kuomintangfixaram-se o objetivo de abater asregiões vermelhas, de minar aedificação econômica […] So-mente nossa vitória sobre o im-perialismo e o Kuomintang, so-mente nosso trabalho planifica-do, organizado, no campo daedificação econômica, podem sal-var nosso povo de uma desgraçasem precedente”.

Cerca de dez anos depois, ardemas chamas da segunda guerra mundial e,no que concerne à China, está em cursoa resistência contra o imperialismo ja-ponês. No mundo todo a palavra estádecisivamente com as armas, mas Maosente todavia necessidade de reiterar:

“Nas condições atuais de guer-ra, todos os organismos, as esco-las e a unidade do exército de-vem dedicar-se ativamente à cul-tura das hortaliças e dos cereais,à criação dos suínos, à coleta dalenha, à produção do carvão delenha; devem desenvolver o ar-tesanato e produzir uma partedos cereais necessários a seu sus-tento […] Os dirigentes do Par-tido, de governo e do exército emtodos os níveis, bem como os dasescolas devem aprender, sistema-ticamente, a arte de dirigir asmassas na produção. Aquele quenão estuda atentamente os pro-blemas da produção não é umbom dirigente” (Pela redução dopreço dos arrendamentos, 1 deoutubro de 1943).

Cultivar “hortaliças” e “cereais”,criar “suínos” mas onde está terminadaa luta contra a opressão e a injustiça?Em realidade, foi exatamente pela so-lução de tarefas tão modestas e tão pro-saicas que passou a vitória de uma gran-de revolução, que desfechou um golpedevastador no imperialismo e conferiuum enorme impulso à causa da eman-

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cipação dos povos. O universal se reali-za sempre através da mediação do par-ticular, e quem busca o universal emsua não contaminada pureza não o en-contrará nunca.

A situação atual apresenta nãopoucos pontos de contato com o passa-do. Sem dúvida, bem longe de exercero poder somente sobre regiões bastantelimitadas do imenso país asiático, hojecontrolam-no em seu conjunto. Mas,todavia, está como circundada pelomundo capitalista e imperialista, o qualcontinua a conduzir contra ela umapolítica de sufoco econômico. Sem dú-vida, hoje muita coisa mudou, mas osEstados Unidos tentam impedir de to-dos os modos o acesso da China àstecnologias mais avançadas. Se não numestado de subdesenvolvimento propri-amente dito, Washington gostaria demanter o grande país asiático, de umjeito ou de outro, em condições de atra-so, de modo a poder pressioná-lo,ameaçá-lo, e no momento oportunogolpeá-lo e desmembrá-lo. E, de novo,o crescimento das forças produtivas éum elemento essencial da resistênciacontra o imperialismo. Mas a tal pro-pósito se verifica um fenômeno bastan-te singular. Uma certa esquerda se co-move justamente e se entusiasma quan-do vê um povo pisoteado, humilhado eesfomeado buscar desesperadamentesacudir o jugo da opressão e melhorarsua própria situação; mas, quando estepovo conquistou o poder e está em po-sição de conduzir a luta pela consolida-ção da independência política e econô-

mica a partir de condições e de relaçõesde força menos desastrosas, eis que talesquerda torce o nariz: ela só é capaz dereconhecer e apoiar uma luta pela eman-cipação quando tal luta ocorre em con-dições trágicas. Ainda que com algumesforço, com o olhar voltado ao passa-do, uma certa esquerda logra nutrir sim-patia pelo esforço das regiões vermelhasdos anos 1920, 1930 e 1940 para pro-duzir cereais e hortaliças e a criar por-cos durante a luta de resistência contrao Kuomintang e o imperialismo japo-nês; mas reserva somente frieza e des-dém para o atual esforço da RepúblicaPopular Chinesa em desenvolver, porexemplo, a indústria eletrônica e a in-formática.

JQM: Mas Leandro Konder ob-jeta que pôr o acento sobre o desen-volvimento das forças produtivas sig-nifica esquecer ou relegar ao segundoplano o ideal da igualdade.

Losurdo: Quando atingiu o po-der, em 1949, o Partido ComunistaChinês assumiu a direção de um paíscuja renda per capita era a mais baixado mundo. Tão extrema desigualdaderelativamente aos países mais subdesen-volvidos não era um dado natural.Eminentes estudiosos têm chamado aatenção para o fato de que, ainda nofinal do século XVIII, a esperança devida chinesa estava quase em níveis in-gleses, sendo, pois, superior à média daEuropa continental. Sobrevêm em se-guida as infames guerras do ópio. Sem-

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pre no século XVIII as diferenças derenda e de bem-estar entre as grandescivilizações eram antes reduzidas. Su-cessivamente, as conquistas coloniais ea industrialização do Ocidente vão sen-do acompanhadas passo a passo peladesindustrialização dos países por elesubjugados. É a história da formaçãodo Terceiro Mundo e de seu subdesen-volvimento.

A partir pelo menos da Revolu-ção de Outubro a luta contra esta pa-vorosa desigualdade em prejuízo do suldo mundo, imposta pela agressão e pelosaque capitalista e imperialista, é umaspecto central da luta de classe em ní-vel internacional. Após ter sido obriga-da a conduzi-la por décadas no planomilitar, o povo chinês pode agoradesenvolvê-la no plano mais propria-mente econômico. E não há dúvida deque grandes resultados foram consegui-dos. Ainda que de extraordinária rele-vância, a ultrapassagem do subdesen-volvimento por mais de um quinto dapopulação mundial talvez não seja,mesmo assim, a coisa mais importante.A causa da igualdade entre os povospode agora dar grandes passos adiantetambém no plano cultural: o Ocidentecapitalista e imperialista está a pontode perder o monopólio da tecnologia,do qual até agora se valeu não só paracontrolar e estrangular o Terceiro Mun-do, mas também para tornar crível suapretensão de representar a Civilizaçãoenquanto tal e seu direito a dominar os“bárbaros”. Mais uma vez, para quemsabe ver a unidade do universal e do

particular, bem longe de significar oesquecimento do ideal da igualdade, oprodigioso desenvolvimento econômi-co da China atual é o ponto mais altoda luta para pôr fim a uma ordem in-ternacional fundada na desigualdade eimposta pela violência capitalista e im-perialista.

Sem dúvida, além do nível inter-nacional, o problema da igualdade sepõe também no âmbito de cada país emparticular. E, no referente à China, nãohá dúvida de que as regiões litorâneasse desenvolvem mais rapidamente doque as do Oeste. Nem poderia ser deoutro modo: seria bem estranho ummaterialismo histórico e um marxismoque não levassem em conta a geografia.E, no entanto, cabe precisar que o con-traste entre Este e Oeste da China nãoé entre desenvolvimento e subdesenvol-vimento mas entre dois graus diversosde desenvolvimento. É como se estivés-semos em presença de dois trens quetrafegam com velocidades diversas, masem direção de um nível comum, que éo da redução e da anulação do atraso eda desigualdade em relação aos paísesmais desenvolvidos.

Mesmo aqueles que por ora via-jam no trem menos veloz deixaram jápara trás as tragédias do passado. Já mereferi às condições desastrosas do gran-de país asiático, no momento em queos comunistas chegaram ao poder: amorte por inanição era um fato quoti-diano e nos momentos de crise ela eli-minava milhões de vidas humanas.Embora tendo sensivelmente melhora-

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do a partir de 1949, a situação alimen-tar da China continuou por algum tem-po a ser bastante precária. No final dosanos 1950, em conseqüência do desa-piedado embargo imposto pelo imperia-lismo, bem como de alguns erros dedireção política, uma carestia provocadapor condições meteorológicas adversasse transformou numa catástrofe: a mortepor inanição tornou a golpear em largaescala a população chinesa. É verdadeque a distribuição dos escassos recursosera fortemente igualitária. E, no entan-to, ainda que bem reduzida em termosquantitativos, a diferença que subsistiaentre aqueles que tinham e aqueles quenão tinham à disposição o pedaço depão capaz de assegurar a sobrevivênciaconstituía uma diferença e uma desi-gualdade absoluta. E esta desigualdadeabsoluta só foi eliminada graças ao de-senvolvimento das forças produtivas.

Sem dúvida, ainda é necessáriocaminhar muito ao longo da estrada darealização da igualdade. De outro lado,é exatamente fazendo alavanca sobrepontos de força das regiões litorâneasque agora é possível imprimir uma ul-terior e decisiva aceleração ao desenvol-vimento das outras regiões. É um pro-cesso em curso há alguns anos, que jáconseguiu alguns importantes resulta-dos, ainda que difundindo-se de modoirregular e em manchas desiguais. Háalgum tempo, nas páginas econômicasdos mais importantes diários italianos,podia-se ler uma análise bastante signi-ficativa: a linha política dos atuais diri-gentes de Pequim caracteriza-se pela

vontade de proceder a uma “redistribui-ção da riqueza” e levar ao término “aúltima etapa do milagre China”, abran-gendo as regiões centrais e o Oeste.Mutações extraordinárias estão já emcurso:

“Xian é famosa no mundo pelosguerreiros de argila, mas está setornando – se tornará – o SiliconValley da Ásia. Um caso que épouco conhecido. Trinta e seisuniversidades, um projeto paraempregar até 2007 cem mil en-genheiros no parque tecnológi-co onde se desenvolverão as pes-quisas no campo do software eda indústria aeroespacial. Quemsabe se em Xian se produzirãoos componentes para os Boeinge para os Gulfstream?” (FabioCavalera, La nuova Lunga Mar-cia verso Ovest, em Corriere dellaSera de 20 de dezembro de 2004,“Corrier Economia”, p. 7)

JQM: Konder acha, porém quese “a contradição decisiva” opusesse “acapacidade de desenvolver as forçasprodutivas do socialismo” à do capita-lismo, “é possível que este último levevantagem”.

Após ter-me criticado de algummodo em nome da ortodoxia (não sedeve esquecer a luta de classe contra aopressão e a exploração), LeandroKonder liquida tranqüilamente uma daspedras angulares da teoria de Marx. Não

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há dúvida de que no âmbito do pensa-mento deste desempenha um papel cen-tral o tema do desenvolvimento das for-ças produtivas: o comunismo pressupõeuma extraordinária riqueza material quepermita a cada indivíduo satisfazer suaspróprias necessidades; e o socialismo,que costitui o primeiro estágio do co-munismo, deve pôr as premissas paraisto tudo.

A partir da posição de Konder,não se compreende mais sequer o ma-terialismo histórico: em termos marxis-tas, a revolução derruba o ordenamentosocial e as relações de produção que blo-queiam o desenvolvimento das forçasprodutivas. Naturalmente, ninguém éobrigado a ser marxista. No que meconcerne, quero explicar brevementepor que, ao menos sobre este ponto,continuo a considerar válida a teoriaafirmada por Marx e Engels (e peloscomunistas chineses). Ao exemplo re-ferido pelo Manifesto do partido comu-nista, da gigantesca destruição de for-ças produtivas provocada pelas perió-dicas crises de superprodução da socie-dade capitalista, podem ser acrescenta-dos numerosos outros, que fazem refe-rência à realidade atual do imperialis-mo. Nestes dias está sob os olhos detodos a catástrofe que se abateu sobre oSudeste asiático: teria bastado uma por-ção infinitésima das despesas militaresestadunidenses para pôr em funciona-mento um sistema de pré-alarme sufi-cientemente rápido e conter eficazmentea fúria destrutiva do maremoto. Maisdo que nunca, capitalismo e imperia-

lismo comportam uma pavorosa dissi-pação de recursos materiais e um cruelsacrifício de vidas humanas.

JQM : Konder vê em tua confi-ança no triunfo do socialismo na Chi-na uma “aposta”, “no sentido que o ter-mo aposta assume na argumentação dePascal: o possível uso da razão em umaesfera que vai além da razão”. Teria elerazão de te pôr nesta companhia?

Losurdo: Em realidade, a propó-sito da China, o livro fala de “um pro-cesso de longa duração” que já pode fe-licitar-se de resultados extraordinários,mas cujo êxito é “totalmente imprevisí-vel”. Mas a considerar,em vez disso, fa-vas contadas e já concretizado o êxitodo capitalismo, estão Leandro Kondere tantos outros que, na esquerda, argu-mentam de modo semelhante ao dele.Neste ponto, entretanto, todos teriama obrigação de esclarecer em primeirolugar a si próprios o que ocorreu nogrande país asiático. O partido comu-nista, que em seu Estatuto e em seusdocumentos declara repetidamente ins-pirar-se no marxismo-leninismo e pre-tender avançar na via do socialismo edo comunismo, continua a deter o po-der. É tudo mera declamação? Confor-me os dados referidos por um respeitá-vel diário burguês (Il Sole-24 ore, de 8de novembro de 2003), o partido con-tém em seu interior uma larga maioriade operários, de camponeses e de apo-sentados: devemos considerar milhõesou dezenas de milhões de homens e

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mulheres cúmplices ou vítimas idiotasde uma retórica privada de qualquercredibilidade? Historicamente, o Parti-do Comunista Chinês foi o protagonistade uma das maiores revoluções da his-tória. Terá mudado radicalmente denatureza? E quando então se verificouessa radical mudança de natureza? Coma afirmação da linha que insiste nacentralidade do desenvolvimento das for-ças produtivas? Mas essa tem sido há lon-go tempo a linha oficial do partido co-munista em seu conjunto, e já o eraquando a China estava na vanguarda daluta contra o imperialismo. E, de outrolado, essa linha podia e pode reivindicarcontinuidade relativamente às teses sus-tentadas, como vimos, pelo Manifesto dopartido comunista e pelo próprio Lênin.Devemos agora considerar o PartidoComunista Chinês estranho ao marxis-mo e ao socialismo pelo fato de que to-lera uma vasta área de economia capita-lista? Releiamos então o que Mao decla-rava em 25 de dezembro de 1947:

“Dado o atraso econômico daChina, mesmo depois da vitóriada revolução em todo o país, seráainda necessário consentir por umlongo período a existência de umsetor capitalista da economia […]Este setor será ainda um elementoindispensável da economia nacio-nal tomada em seu conjunto”.

Poder-se-ia aduzir outras incon-táveis tomadas de posição análogas porparte de Mao, ainda depois de anos de

distância da tomada do poder (porexemplo, em 1958), mas seria uma inú-til perda de tempo e de espaço, mesmoporque já citei algumas em meu livro.

E então? Então é preciso encarara realidade. A história e a teoria do Par-tido Comunista Chinês são em largamedida ignoradas. Sim, são conhecidasas teses enunciadas no curso do con-fronto com o Partido Comunista daUnião Soviética e nos anos da Revolu-ção Cultural. Do resto se sabe poucoou nada. Quantos, por exemplo, ouvi-ram falar da polêmica desenvolvida porMao num texto programático da revo-lução chinesa (Sobre a nova democra-cia, janeiro de 1940) contra os “fanfar-rões de esquerda”, os quais, “não com-preendem que a revolução está dividi-da em fases, que só podemos passar àsegunda fase após haver completado aprimeira, e que não há a mínima possi-bilidade de resolver tudo ‘com um sógolpe”?

É por isto que um mesmo eventofoi percebido de maneira diversa e con-traposta na China e fora dela. Interpre-tada no Ocidente como sinônimo deabandono do marxismo e do socialis-mo, a chegada ao poder de DengXiaoping e a reafirmação da centra-lidade da edificação econômica foramsaudados na China como a retomada eo desenvolvimento da linha que tinhapresidido o triunfo da Revolução Chi-nesa e que tinha sido abandonada sópor um período de tempo relativamen-te breve.

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Antes de considerar fato consu-mado a restauração do capitalismo naChina, a esquerda do Ocidente e daAmérica Latina não faria melhor se es-tudasse uma linha, uma teoria, umatradição política em larga medida ig-norada? Estejam corretos ou equivoca-dos, o marxismo e o socialismo comcaracterísticas chinesas, que começama tomar forma já com Mao, merecemalgo melhor do que a liquidação sumá-ria e até mesmo preventiva.

JQM : Konder, enfim, conside-ra com explícito ceticismo tua afirma-ção de que há ainda “partidos e paísesimportantes empenhados no projetode construção de uma sociedade quevá além do capitalismo”. Detecta emtua resposta (a China é um país “habi-tado por mais de um quinto da huma-nidade”) um “tom inclinado à epo-péia”. Admites que o tom irônico deKonder se justifique ?

Losurdo:Sublinham a extraordi-nária importância daquilo que estáocorrendo no grande país asiático au-tores que não são inclinados aos entu-siasmos fáceis e, menos ainda, aos en-tusiasmos fáceis “filo-chineses”. Ao sereferir ao prometedor desenvolvimentona China das regiões que até agora ti-nham ficado para trás, o jornalista jácitado do Corriera della Sera fala, já notítulo de seu artigo, da “nova LongaMarcha para o Oeste”. A Longa Mar-cha propriamente dita, que conduziuum pequeno e perseguido partido co-

munista a cumprir em condições dra-máticas um percurso de milhares de qui-lômetros, para se pôr à frente da lutapopular de resistência contra um dosimperialismos mais bárbaros, represen-ta indubitavelmente um dos grandeseventos épicos do vigésimo século e dahistória da humanidade enquanto tal.Mas nesse contexto convém sobretudocitar Huntington. Ele escreveu que, seo gigantesco processo de industrializa-ção e modernização atualmente em cur-so vier a alcançar sucesso, “a ascensãoda China à função de grande potênciaultrapassará qualquer outro fenômenocomparável verificado na segunda me-tade do segundo milênio”. Tratar-se-ia,pois da ascensão decisivamente mais im-portante dos últimos 500 anos de his-tória.

É uma afirmação feita em 1996,ano da publicação de O choque de civi-lização. Retrocedendo cerca de cinco sé-culos, nos defrontamos com a desco-berta-conquista da América. É o mo-mento em que o Ocidente inicia suamarcha triunfal, subjugando o mundointeiro, pisoteando e freqüentementedestruindo culturas inteiras, diziman-do e até aniquilando os povos que astinham elaborado. Não é um fato ca-sual que quem se prepara para fecharesse capítulo de história seja um paísguiado por um partido comunista. Éum novo capítulo da história iniciadacom a Revolução de Outubro, queconclamou os escravos das colônias aromper suas cadeias. O segundo capí-tulo dessa história é aquele que inflige

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uma decisiva derrota à tentativa nazi-fascista de dar nova vitalidade à tradi-ção colonial, à tentativa de escravizarpovos inteiros, como nos piores perío-dos do tráfico dos negros, para colocaros Untermenschen, os presumidoshomúnculos ou sub-homens, a serviçoda “raça dos senhores”. A Longa Mar-cha representa para a Ásia aquilo queStalingrado é para a Europa: sobre avaga destas duas derrotas históricas doimperialismo se desenvolve um pode-roso processo de emancipação dos po-vos coloniais, que vai bem além da Se-gunda Guerra Mundial, investe cadaângulo do mundo e conhece momen-tos particularmente significativos empaises como o Vietnã e Cuba. Hoje ve-mos desdobrar-se um novo capítulo dahistória iniciada com a Revolução deOutubro. Um país de civilizaçãomilenar, agredido a partir das guerrasdo ópio, pisoteado, humilhado e desu-manizado (“Entrada proibida aos cãese aos chineses”!), se prepara para tor-nar-se protagonista na cena mundial, enão só no plano político mas tambémno cultural e tecnológico, como já o ti-nha sido por milênios. E, ao pôr fim aum capítulo trágico de sua história na-cional, a China tende a encerrar umcapítulo bem mais amplo da históriamundial no curso do qual, exatamentepor causa do domínio incontrastado doOcidente, e também para justificar asformas brutais que ele assumiu, emer-giram e se afirmaram muito tempo asideologias racistas mais grosseiras e in-fames.

Como o futuro em geral, tambémo futuro da China ninguém está emcondição de prever. Convém concen-trar-se no presente: certamente não fal-tam as zonas de sombra, os erros, osatrasos, as contradições, os motivos depreocupação e de desapontamento. Poroutro lado, está sob os olhos de todos oespetáculo de mais de um quinto dapopulação mundial que, a passos bas-tante rápidos, supera a miséria, o sub-desenvolvimento, o atraso. Não é sóquestão de economia. Ignorar a fortecarga de emancipação política, social eideológica inserida no extraordinário de-senvolvimento econômico da Repúbli-ca Popular Chinesa significa ser inca-paz de ver as árvores por causa da flo-resta.

Domenico Losurdo