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    Antropofagia e msica

    O perodo que vai do movimento modernista inaugurao de Brasliacompreende um ciclo especialmente fecundo da vida cultural brasileira. Eleinclui doMacunama(1928) de Mario de Andrade ao Grande Serto Veredas(1956) de Guimares Rosa, da Antropofagia de Oswald de Andrade (1928) Bossa Nova de Tom Jobim e Joo Gilberto (1958), da msica de Villa-Loboss obras de Oscar Niemeyer, todas elas peas-chave para o entendimento do

    pas, ao mesmo tempo que movimentos decisivos para o pensamento sobre omodo de insero brasileiro no mundo. Certas linhas de fora do perodo esten-dem-se ainda, para alm dos quadros cronolgicos desta exposio, ao Cine-ma Novo de Glauber Rocha e Tropiclia de Caetano Veloso e Gilberto Gil,nos anos sessenta, movimentos que se alimentam diretamente das proposi-es e das realizaes modernistas.

    Cito intencionalmente exemplos que vo da literatura msica, ao cinemae arquitetura, e onde se combinam manifestaes eruditas com manifesta-es da cultura popular e de massas. Quero assinalar com isso o carter algofusional e mesclado da singularidade cultural brasileira, ligado a sua vocao

    para cruzar ou dissipar fronteiras, o que no deixa de ser um trao antropo-fgico (embora a Antropofagia seja uma apenas entre as vrias tendncias eestratgias culturais do perodo, tendo permanecido inclusive pouco reconheci-da at a segunda metade dos anos sessenta, quando se d sua revalorizao

    pelos movimentos da Poesia Concreta, do Teatro Oficina e do Tropicalismoem msica popular). Em 1924, Oswald de Andrade afirmava que O Carnaval o acontecimento religioso da raa, e que Wagner submerge ante os cor-des do Botafogo (Manifesto da Poesia Pau Brasil). A afirmao proposi-talmente disparatada: imagina a Tetralogia aniquilada ou festivamente arrasta-

    foi do Prof. Dr. Jorge Schwartz e a sub-curadoria Musical ficou sob minha responsabilida-de. O texto tinha o objetivo de apresentar parte da cultura musical brasileira do perodo ao

    pblico espanhol. Algumas das questes tratadas foram discutidas em textos anteriores: Ocoro dos contrrios. A msica na semana de 22, So Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978;Getlio da Paixo cearense (Villa-Lobos e o estado Novo). In: O nacional e o popular nacultura brasileira. Msica.So Paulo: Ed. Brasiliense, 1982; Gaia cincia: literatura e msica

    popular no Brasil. In:Ao encontro da palavra cantada,Rio de Janeiro: 7 letras, 2001. Porm,

    aqui elas foram em parte sintetizadas e em parte ampliadas, ganhando nova articulao enovos contornos.

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    barbrie (para lembrar a frase de Walter Benjamin), cada ato cultural , tam-bm, um ato de singularidade plural.

    O contraponto entre Oswald de Andrade e Lamartine, fulcro do filme de

    Bressane, justifica-se na comparao entre os autores. Sem que houvesse inten-o ou influncia, podemos apreciar as correspondncias entre uma cano comoHistria do Brasil, de Lamartine, e um poema comoBrasil, de Oswald. A singe-leza esperta da primeira no deixa de afinar, mesmo surpreendentemente, com acomplexidade implcita na malha textual do poema. A cano:

    Quem foi que inventou o Brasil?foi seu Cabral

    foi seu Cabralno dia 21 de abrildois meses depois do carnavalA Peri beijou CeciCeci beijou Periao somao som do Guaranido Guarani ao guarancriou-se a feijoada

    e depois a Parati

    Nesse mito de fundao pardico, a descoberta-inveno do Brasil apare-ce, num anacronismo provocado, como posterior ao carnaval e humoradamentesimultnea a sua prpria representao no romance e pera romnticos OGuarani, de Jos de Alencar e Carlos Comes, dando origem, por sua vez, aesses cones populares e nacionais modernos, a feijoada, o guaran e a cacha-a Parati. O Brasil, ao mesmo tempo pr-cabralino e atual, engole sua prpria

    histria num movimento simultanesta que carnavaliza tudo, incluindo seus mitosde fundao novecentistas. O poema de Oswald de Andrade:

    O Z Pereira chegou de caravelaE preguntou pro guarani da mata virgem- Sois cristo?- No. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte- Teter tet Quiz Quiz Quec!L longe a ona resmungava Uu! ua! uu!

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    citum plus, compensando o que apresenta de irrisrio e fracassado com suavocao para abraar as diferenas.

    Heitor Villa-Lobos

    A figura de Villa-Lobos domina largamente o panorama da msica erudita brasi-leira neste sculo, estando sua personalidade indissociavelmente ligada ao arco

    produtivo do modernismo. Compondo, na dcada de dez, obras inicialmente mar-cadas por um romantismo tardio e muitas vezes descritivista, chega Semana deArte Moderna, de 1922, como figura de destaque, com peas onde se ouve umacerta liberao da dissonncia, a relativizao dos encadeamentos harmnicos e autilizao de novas combinaes instrumentais, como no Quarteto simblico(1921)

    para flauta, saxofone, celesta e harpa, com coro oculto de vozes femininas. Aomesmo tempo, ensaia algumas peas caractersticas inovadoras, como as Trsdanas africanas(1914-1916), onde combina ritmos sincopadamente brasileiroscom a escala debussysta de tons inteiros.

    Mesmo com esses procedimentos ainda timidamente modernos (mesmoque apresentados com sua conhecida desenvoltura), que remetem a linhas damsica francesa do fim do sculo, Villa-Lobos provocou escndalo e muitareao no meio musical brasileiro, ainda marcado por um gosto predominan-temente novecentista.

    Imediatamente aps a Semana de 22, no entanto, que ter funcionado comoum aguilho provocador, o compositor expande o arco das sonoridades, das

    pesquisas instrumentais, das agregaes politonais, da complexidade das textu-ras rtmicas, e passa a fazer um amplo uso de referncias s msicas populares

    brasileiras, montadas em agregados de clulas muitas vezes simultneas e descon-tnuas. , portanto, no movimento pelo qual des-reprime o lastro de sua experin-cia com a msica popular, posto em contato com o repertrio da vanguardaeuropia, que Villa-Lobos desencadeia, nos anos vinte, o impulso gerador de suaobra, que se confunde com uma espcie de viso sonora do Brasil.

    Nesse sentido, a trajetria de Villa-Lobos identifica-se exemplarmente como arco do grande ciclo a que se refere esta Exposio, que vai da Semana deArte Moderna a Braslia, s vsperas de cuja inaugurao o compositor fale-ceu, em 1959. Algumas caractersticas gerais desse perodo vital, brilhante efecundo da cultura brasileira podem ajudar a situar as prprias obras. Ele marcao momento em que a cultura letrada de um pas escravocrata tardio enxergouna liberao de suas potencialidades mais obscuras e recalcadas, ligadas secu-

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    larmente mestiagem e mistura cultural, entremeadas de desejo, violncia,abundncia e misria, a possibilidade de afirmar seu destino e de revelar-seatravs da unio do erudito com o popular.

    Com todas as diferenas que nele se abrigam, ou que nele brigam, o perodotem como nota cultural dominante a expectativa de um Brasil transformado

    pelo alto, por intelectuais modernizantes e comprometidos com a orquestraodas foras populares e nativas, inclusive e s vezes principalmente naquilo queo pas possa conter de arcaico, inconsciente e dissonante. Contentes e descon-tentes se unem num coro dos contrrios que tem como pressuposto comuma cultura e a nao, para as quais se busca muitas vezes uma formulao tota-lizante, pendendo turbulentamente para a sinfonia e para o carnaval, para a utopia

    anrquica e para o impulso autoritrio.Na verdade, esse desejo de modernizao do Brasil pela cultura alta, aliada

    fora do popular, foi minado nas ltimas trs dcadas pelas realidades damodernizao conservadora (a ditadura), da indstria cultural e da globalizao,mas contm o cdigo gentico de algumas das questes do Brasil contempor-neo, que no se superam com facilidade. O Tropicalismo (67-68), ltimo marcoreconhecvel de um movimento cultural com empuxe nacional e internacio-nal, assinala ao mesmo tempo, e contraditoriamente, o fim do ciclo e a vonta-

    de de dar-lhe uma nova e incisiva atualidade.Pois esse projeto difuso e amplo, se teve no escritor e musiclogo Mrio

    de Andrade um animador atormentado (para o qual o destino do Brasil aparececomo dilema e pergunta) e no ficcionista Guimares Rosa o mais profundo euniversal, simbolizador (para o qual o destino do Brasil aparece como carma eenigma), teve em Villa-Lobos sua expresso instintiva, imediatamente sens-vel, transbordante, grandiloqente e voluntarista. Para ele, o Brasil uma tu-multuada afirmao: ao mesmo tempo a problemtica e a soluciontica, para

    usar a famosa expresso de um jogador de futebol. Nesse sentido, Villa-Lobos um perfeito oswaldiano ao contrrio: antropfago sentimental e prolfico,romntico e inconsciente, caudatrio da maroteira dos primeiros mestios(como disse Oswald de Andrade dele, num poema cifrado), buscando, comoum duplo de Getlio Vargas e pai da ptria macunamico, a converso do pasnum grande orfeo cvico (por ocasio da ditadura do Estado Novo, de 37 a45, quando ps em prtica um projeto cvico-pedaggico com que procura-va, pelo ensino de msica nas escolas, dar ampla penetrao msica eleva-

    da, em oposio a expanso da msica de massas e do rdio).

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    dade ou desdm. Assinala tambm a admirao pela originalidade de suas for-maes instrumentais e de suas texturas sonoras, pelas quais se interessaramtanto o pianista romntico Arthur Rubinstein quanto um sonorista experimen-

    tal como Edgar Varese. Porque Villa-Lobos combina s vezes admiravelmentesafoxofone, harpa, celesta e coro, cuca e cordas, onomatopias indgenas,tmpano, reco-reco e caxambu.

    s vezes, tempera o seu mpeto espontanesta com intenes construtivascuriosas, como na peaNew York Skyline Melody, de 1939, decalcada sobre ocontorno dos edifcios de Manhattan. Este , alias, o ano da Feira Mundial de

    Nova Iorque, da qual o Brasil participa, num pavilho criado por Lucio Costa eOscar Niemeyer os futuros autores do projeto urbanstico e arquitetnico de

    Braslia , com numerosa amostra de sua msica erudita e alguma msica po-pular, despontando a o incio da carreira americana da cantora Carmen Miranda,que se constituir depois num cone hollywoodiano das veredas tropicais.

    Mas o processo de composio de melodias harmonizadas a partir da si-lhueta de paisagens j tinha sido experimentado por Villa-Lobos quando com-

    ps aMelodia da montanha, a partir do grfico acidentado da Serra da Pieda-de, localizada em Minas Gerais.

    Primitivo e cosmopolita, ndice de dimenses telricas do mundo do som

    que se expressam nas msicas nacionais de pases perifricos, ao mesmo tempoque indicador de transformaes sonoras de ponta, embora pontuais e no sis-temticas, Villa-Lobos tem um lugar na msica do mundo deste sculo findanteque inseparvel dos arranques desiguais e poderosos com que a cultura sub-desenvolvida buscou sua via de afirmao.

    Gilberto Mendes reconheceu no carter disparatado e desigual de sua obraum trao de autenticidade e independncia prprios das msicas inventivas dasAmricas (como as de Charles Ives, Cowell ou George Antheil), cujo suposto

    mau gosto no seria um acidente nem um desvio, mas uma dimenso pr-pria tumultuada procura da qual elas fazem parte e na qual esto envolvidas1.

    A msica de Villa-Lobos alimentou a esttica da fome de Gluber Ro-cha, quase inconcebvel sem o suplemento de fora telrica, antropolgica ecsmica que ela empresta pica do subdesenvolvimento e ao drama barroco

    1MENDES, Gilberto. Msica. In: VILA, A. O Modernismo. So Paulo: Perspectiva,1975, p. 127-138.

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    brasileiro, assim como alimenta at hoje O incansvel dionisismo trgico carna-valesco do teatro de Jos Celso Martinez Correa. Tom Jobim tinha nele seudolo e modelo, o que deixa marcas visveis nos desenvolvimentos sinfonizantes

    comidos em Urubue Terra brasilis(alm da frustrada Sinfonia de Braslia).

    Nazareth e Milhaud

    A estada no Brasil do compositor francs Darius Milhaud (que viveu noRio de Janeiro em 1917-18, como adido de Paul Claudel, ento embaixador daFrana) marcou de maneira significativa sua obra posterior, como o caso deLe boeuf sur le toit(1919), para orquestra, e das Saudades do Brasil(1921),para piano. Mais do que pelos compositores eruditos brasileiros, Milhaud inte-ressou-se pela msica popular urbana, em especial os maxixes, tangos brasi-leiros e sucessos de carnaval (data dessa poca o samba de Donga, Pelo te-lefoneconsiderado o inaugurador do gnero, ao qual Milhaud se refere emsuas memrias). Os maxixes encontravam-se superiormente tratados por doiscompositores que despertaram vivamente sua ateno: Ernesto Nazareth eMarcelo Tupinamb. Os ritmos dessa msica popular me intrigavam e mefascinavam [...]. Eu comprei ento uma poro de maxixes e tangos, e meesforcei para toc-los com suas sncopas que passam de uma mo para outra.Meus esforos foram compensados e eu pude enfim exprimir e analisar essequase nada to tipicamente brasileiro.

    Vale lembrar que a msica de Nazareth, como anota Mrio de Andradecitando Braslio Itiber, resulta da sntese realizada pelos pianeiros, msicosque se alugavam para tocar nos assustados da pequena burguesia e em se-guida nas salas de espera dos primeiros cinemas fundindo lundus e fados,danas de origem popular negra e polcas e habaneras importadas, transferin-do a msica de uma camada social a outra, ao mesmo tempo que convertiamformas vocais em formas tipicamente instrumentais (notar que o pianismo das

    peas de Nazareth, to afins do instrumento, incorpora tambm traos instru-mentais do violo, da flauta, do cavaquinho, do ofcleide).

    Vindo dessa linha pianeira, a obra de Nazareth produto, como todo omaxixe, de uma sntese de elementos africanos e europeus. Alm disso, emseu caso particular, elementos recm-vindos das camadas populares se fun-dem a influncias cultas (o pianismo de Nazareth tem muito de chopiniano). Omaterial com que Milhaud se depara no , pois, estritamente folclrico (comoele mesmo o chama), mas o resultado composto da interferncia de vrios

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    o de uma linguagem musical original, que se distinga da mera transposiode modelos europeus. Junto a uma coleo de temas populares, pesquisadosem campo, desenvolve uma anlise dos traos meldicos, rtmicos, harmnicos

    e polifnicos da msica popular brasileira, de modo a discutir processos desua incorporao msica de concerto.

    Se a antropofagia oswaldiana ter seu desdobramento natural, dcadas maistarde, no campo da msica popular urbana, o projeto mariodeandradino de-fende uma aliana entre a msica erudita e a msica popular rural, na qual vresguardadas as bases de uma cultura nacional autntica, livre das influnciasestrangeiras e dos chamativos comerciais e industriais. Pode-se compar-lo aBla Bartk, pela combinao de pesquisa musical e criao, mas um Bartk

    dividido entre a msica e a literatura, que preconiza caminhos para os msi-cos enquanto escreve a rapsdia ficcionalMacunama. Nesta, no entanto,as fontes populares so incorporadas em seus fundamentos tcnicos, criandouma plurifbula meta-narrativa baseada numa intuio profunda da morfologiado conto popular, ao invs de simplesmente estilizar temas folclricos, o quenem sempre foi compreendido pelos msicos que desenvolveram os princ-

    pios da composio nacionalista.Respaldada pelos esforos musicolgicos e programticos de Mrio de

    Andrade, a composio erudita baseada em motivos populares rurais predo-mina no panorama que se seguiu ao movimento modernista. Essa direo ge-ral est presente tambm, e sem dvida, na obra de Villa-Lobos, cuja personali-dade invulgar impede, no entanto, de situ-lo no mbito da escola nacionalista.Mas se pode falar, de fato, num grupo numeroso e consistente (para padres

    brasileiros de msica de concerto) de autores que constituem, resguardadassuas diferenas, uma escola de composio com traos comuns, ligados estilizao do folclore. So eles Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez,

    Camargo Guarnieri, Luciano Gallet, Fructuoso Vianna.No final da dcada de trinta, exila-se no Brasil o msico alemo Hans Joachim

    Koellreutter. Sua presena ter, com os anos, um forte poder de influncia peda-ggica com marca inovadora. Reunindo em torno de si um grupo de jovens alu-nos de composio, entre os quais Cludio Santoro e Guerra-Peixe, Edino Kriegere Eunice Calundu, e formando o movimento Msica Viva, que assume uma pos-tura crtica e polmica em relao ao panorama vigente, Koellreutter introduz osfundamentos da tcnica dodecafnica, que se chocam, em princpio, com os

    moldes de composio nacionalistas e, como vimos, quela altura hegemnicos.Situados esquerda esttica e poltica, Santoro e Guerra-Peixe ensaiam a prtica

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    de um tipo de composio cosmopolita e ps-tonal, at que as diretivas zdanovistas,ditadas no fim dos anos quarenta, representem para eles um verdadeiro curto-cir-cuito esttico-poltico. Na seqncia, tendero tambm para a composio a par-

    tir de fontes populares, mas certamente com traos de sua formao ps-tonal,que os distingue dos nacionalistas clssicos.

    Tudo isso indica um panorama complexo e tateante, mais do que clara-mente dualista. Nacionalismo e cosmopolitismo, folclorismo e dodecafonismoopem-se num movimento sujeito idas e vindas, que indica, em sua procurade caminhos, o carter problemtico da insero da msica erudita no Brasil,fundada numa legitimao sempre precria, oscilante entre a cultura popular ea modernidade internacional, ao mesmo tempo que ameaada pela onda cres-

    cente da msica popular urbana. Pode-se dizer que o nacionalismo represen-tou um projeto sistemtico de cultura musical erudita, empenhado na criaode um pblico, uma tradio instrumental, uma compreenso histrica, almde uma potica, baseados todos no pressuposto da autenticidade pura da msica

    popular rural. No campo especfico da cultura musical, esse projeto sofre, numdado momento, o abalo esttico da ruptura atonal, que por sua vez sofre oabalo poltico do zdanovismo. Considerado o contexto maior, o pressupostono-urbano do nacionalismo musical, o paradigma do folclore rural, que sofre

    com o avano da industrializao e da internacionalizao mercadolgica dachamada cultura de massas.

    Em 1930 o nacionalista Camargo Guarnieri, herdeiro simblico de Mriode Andrade, ataca, num episdio turbulento e confuso, o dodecafonismo simbo-lizado por Koellreutter. este, no entanto, que musicar, anos mais tarde, oCafde Mrio de Andrade, projeto de pera engajada que Mrio esperava verrealizado pelo nacionalista Francisco Mignone. Esse um dos sinais indicado-res do quanto, num pas em que a msica de concerto nunca se consolida

    completamente como um sistema estvel de autores, obras, pblico e intrpre-tes, os caminhos de sua legitimao se fazem atravs de uma busca incessan-te e muitas vezes tortuosa.

    Samba e Bossa Nova

    A msica popular urbana, por outro lado, encontra no Brasil um amploespao de irradiao e repercusso (no poucas vezes sentido nos meios erudi-tos e literrios como abusivo). O fato que, desde o final da dcada de dez, aintroduo do gramofone criou espao para a expanso da cano, galvaniza-

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    da pelo samba, gnero de msica que traz tona as bases rtmicas das msi-cas de negros, muitas vezes improvisadas a partir de refres coletivos, e a

    partir de ento condensada e compactada com vistas a seu novo statusde mer-

    cadoria industrializada. Reconhecido em 1917 atravs do sucesso de Pelo te-lefonecomposio de Donga que adaptava e bricolava temas annimos jconhecidos, o samba foi se constituindo pouco a pouco, mas em especial aofindar da dcada de trinta, em smbolo da cultura popular brasileira moderna,

    j capaz de apoiar-se nos signos daquilo que era, at pouco tempo, marca eestigma de um escravismo mal admitido.

    Desenvolvida ao longo dos anos vinte (com Sinh, Joo da Baiana, o pr-prio Donga), trinta (com Ismael Silva, Wilson Batista, Noel Rosa, Assis Valen-

    te), quarenta (com Dorival Caymmi e Ari Barroso), cinqenta (Geraldo Perei-ra), a tradio do samba vai ganhando, mais que sua cidadania, a condio deemblema entre malandro e apologtico do Brasil. Ao longo desse tempo,transcorre a produo de Pixinguinha, mais voltada para o choro do que parao samba, em sua extraordinria finura instrumental.

    A expanso da msica popular urbana se d, ao mesmo tempo, em estreitaligao com o fenmeno do carnaval de rua (assinalado por Oswald noMani-festo da Poesia Pau Brasil), fenmeno que ganha fora com a modernizao

    urbanstica do Rio de Janeiro, juntando numa espcie de caleidoscpio socialpolimorfo a festa antes reparada dos ricos, pobres e remediados. Uma parteconsidervel das gravaes de sambas e marchinhas (entre as quais destacam-se as de Lamartine Babo, j citadas) definia-se at os anos cinqenta pelo espritocarnavalesco ou destinava-se diretamente a esse uso.

    Nas dcadas de quarenta e cinqenta, a msica popular centrada no Riode Janeiro, e especialmente veiculada pela Rdio Nacional, rende culto tam-

    bm a Bahia, atravs de Dorival Caymmi e Ari Barroso; ao nordeste, atravs

    dos baies de Luiz Gonzaga; e ao sul do pas, tambm representado pelo inti-mismo de Lupicnio Rodrigues. Pode-se dizer que o papel difusor da Rdio

    Nacional acabou por decantar a experincia da msica popular urbana, consoli-dando-a como uma tradio moderna e amplamente enraizada na memria cole-tiva, com seu leque de cantores do rdio, de reis e rainhas da voz. Essa conso-lidao nacional da msica popular brasileira tem seu rebatimento internacionalna figura de Carmen Miranda; lanada pelo cinema americano, no contexto dageopoltica cultural que acompanha a Segunda Guerra, como cone do mundo

    tropical latino-americano, em que se fundem marchinhas e rumbas com umavisualidade prdiga em bananas e abacaxis. A fora da figura de Carmen Miranda

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    misria, as bases arcaicas da cultura colonizada e o processo de industrializa-o, a cultura de massas internacional e as razes nativas no podiam ser compre-endidas simplesmente como oposies dualistas mas como integrantes de uma

    lgica paradoxal e complexamente contraditria, que nos distinguia e ao mes-mo tempo nos inclua no mundo.

    A compreenso e a agressiva formulao desse estado de coisas encon-tram-se no movimento da Tropiclia e na obra de seus principais representan-tes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Z. A alegoria barroca do Brasil (levadaa cabo sobretudo no cinema de Glauber Rocha), a carnavalizao pardica dosgneros musicais, que se traduz numa densa trama de citaes e no desloca-mento de registros sonoros e poticos, trazem cena ao mesmo tempo o

    cantador nordestino, o bolero urbano, os Beatles e Jimi Hendrix. No mbito dacano de massas, esses fenmenos tm uma afinidade explcita com a estrat-gia antropofgica oswaldiana, revalorizada em 1967 pelo Teatro Oficina coma encenao de O rei da vela. A propsito, a cano emblemtica do movi-mento, Tropicliade Caetano Veloso, une as pontas do nosso assunto: inspi-rada pela Antropofagia e pela redescoberta, em 1967, da pea de Oswald deAndrade, ela compe uma figurao das espantosas, dolorosas e desafiadorasincongruncias do Brasil, vistas atravs da alegoria de uma Braslia onrica,

    deslocada como monumento ao mesmo tempo moderno e carnavalesco, plu-ral e precrio, traada com mpeto prospectivo sobre o cho de um inconscientecolonial movedio e labirntico:

    sobre a cabea os aviessob os meus ps os caminhesaponta contra os chapadesmeu narizeu organizo o movimentoeu oriento o carnavaleu inauguro o monumentono planalto centraldo pasviva a bossa-sa-saviva a palhoa-a-a-a-ao monumento de papel crepom e prataos olhos verdes da mulata

    a cabeleira esconde atrs da verde mata o luar

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    do sertoo monumento no tem portaa entrada uma rua antiga estreita e torta

    e no joelho uma criana sorridente feia e mortaestende a moviva a mata-ta-taviva a mulata-ta-ta-ta-tano ptio interno h uma piscinacom gua azul de amaralinacoqueiro brisa e fala nordestinae farisna mo direita tem uma roseira

    autenticando a eterna primaverae nos jardins os urubus passeiama tarde inteira entre os girassisviva Maria-ia-iaviva Bahia-ia-ia-ia-iano pulso esquerdo um bang-bangem suas veias corre muito pouco sanguemas seu corao balana a um samba de tamborimemite acordes dissonantes

    pelos cinco mil alto-falantessenhoras e senhores ele pe os olhos grandessobre mimviva Iracema-ma-maviva Ipanema-ma-ma-ma-madomingo o fino da bossasegunda-feira est na fossatera-feira vai roa

    pormo monumento bem modernono disse nada do modelo do meu ternoque tudo mais v pro infernomeu bemque tudo mais v pro infernomeu bemviva a banda-da-daCarmen Miranda-da-da-DADA