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RODRIGO CRIBARI PRADO
“A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO”
Narrativas e significados sobre o início e
a difusão do aikido no Brasil
CURITIBA
2014
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RODRIGO CRIBARI PRADO
“A MEMÓRIA É UMA ILHA DE EDIÇÃO”
Narrativas e significados sobre o início e a difusão do
aikido no Brasil
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do Título de
Mestre em Educação Física do Programa
de Pós-Graduação em Educação Física,
do Setor de Ciências Biológicas da
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: PROF. DR. ANDRÉ MENDES CAPRARO
DEDICATÓRIA
A minha sobrinha Lívia Inckot Prado pelas lindas memórias que deixou. Essas, guardo
comigo num lugar bem diferente do pensamento, no meu coração.
Aos meus sobrinhos Mathias e Alice, que apesar de pequenos
têm para mim o tamanho do mundo.
A minha cunhada Karime e ao meu irmão Cassiano,
pelo testemunho diário de fé no futuro e em Deus.
A Ana Paula Konopaztki, mestra na arte de cuidar.
AGRADECIMENTOS:
Agradeço a Jesus, mas não àquele Cristo das religiões frio e distante. Meu Jesus
é diferente, pois é poeta e também tem um amor humano e possível. Não tenho dúvida
que foi Ele que me deu forças para concluir este trabalho, não obstante as dificuldades
do caminho.
Agradeço aos meus pais, por terem me dado a vida e por continuamente
abastecerem meu coração com seu afeto.
Sou profundamente grato ao meu irmão Cassiano e a minha cunhada Karime,
pelo exemplo de coragem e tenacidade mesmo diante de uma perda tão dura. O
testemunho vivo de vocês me ajudou a não esmorecer e a fazer desta dissertação a
minha homenagem a Lívia.
Agradeço ao Sensei Gilberto Machado Marecos, que acreditou no meu trabalho
e me incentivou desde o início dando sugestões, me auxiliando com contatos,
orientações, etc. Estendo também, meus agradecimentos aos colegas do Shugyo Dojo
que indiretamente, também colaboraram para as reflexões que me auxiliaram na
elaboração desta dissertação.
Agradeço aos meus colegas de trabalho, mas merecem agradecimentos mais do
que especiais os meus amigos Sérgio Ferreira Andrade e Ricardo Martins de Souza que
me incentivaram a trilhar a vida acadêmica. Sou grato às minhas coordenadoras e
amigas Taís Glauce Fernandes de Lima Pastre e Camile Luciane da Silva pelo apoio
incondicional, mas principalmente pelo exemplo de professoras que são e que eu luto
para um dia alcançar.
Agradeço aos meus amigos da pós-graduação Thais do Amaral Machado, Ana
Cláudia Osieck, Adri Brum, Alessandra Dias, Riqueldi Straub Lise, Natasha Santos,
Leila Salvini, Matheus Vieira e Sabrina Demozzi. Entre os vários amigos que fiz desde
que ingressei no programa de mestrado, destacam-se a Bárbara Schausteck de Almeida
– por ter me ajudado com as leituras de Pierre Bourdieu –, e o meu parceiro Fernando
Dandoro Castilho Ferreira, com quem tenho uma dívida de gratidão para além do
mestrado. Não posso esquecer é claro da minha amiga Daniella de Alencar Passos, que
me apoiou incondicionalmente e me mostrou que é possível encontrar amizade
verdadeira na pós-graduação.
Aos meus “amigos-irmãos” Luciana Lirani da Silva, Mariana Perotta, Lisângela
de Oliveira e Rodrigo Tramutulo Navarro. Mari (Perotta) você foi mais do que especial
comigo e com a minha família. Sem o teu apoio espiritual e afetivo eu jamais teria
conseguido concluir este trabalho.
Aos meus amigos Sheila Backx do Rio de Janeiro e Cláudio Roberto Fontana
Bastos de São Paulo, que me receberam com muito carinho em suas respectivas cidades
e me deram condições (hospedagem, alimentação, etc.) para que eu pudesse realizar as
entrevistas para a minha pesquisa.
Aos Professores Marcelo Pastre e Doralice Lange de Souza pela avaliação
inicial do meu trabalho e pelas contribuições anotadas no meu projeto, antes da
submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFPR.
Aos Professores membros do Colegiado do Programa de Pós-graduação em
Educação Física da UFPR, que se sensibilizaram com o drama que eu e minha família
atravessamos ao longo do processo de doença da minha sobrinha e afilhada e depois,
com o seu falecimento.
Agradeço profundamente ao secretário do Programa de Pós-graduação, Rodrigo
Waki, que me tratou com respeito e sensibilidade desde que assumiu suas funções
administrativas. Tua competência e respeito com os estudantes Rodrigo, são
demonstrações de que é possível um serviço público de qualidade e mais humano.
Minha mais sincera gratidão a todos os professores de aikido que participaram
da minha pesquisa, cedendo o seu tempo, a sua confiança, suas memórias para que esta
pesquisa pudesse ser realizada: Bento José de Freitas Guimarães, Laurentino
Duodecimo Rosado Fernandes, José Ortega, Alberto Ferreira, Ichitami Shikanai, Adélio
Mendes de Andrade, Matias de Oliveira, Lilba Kawai de Oliveira, Yassussi Nagao e
Ricardo Leite da Silva.
Agradeço de todo o coração a Profa. Dra. Roseli Terezinha Boschilia pelo
exemplo ímpar de compreensão e humanidade, mas também pela participação na
qualificação do meu trabalho e principalmente pelo incentivo que me deu para que eu
pudesse concluir esta dissertação. Minha gratidão também ao Prof. Dr. Wanderley
Marchi Júnior, pelas considerações realizadas em meu projeto no processo de
qualificação e por também ter sido compreensivo no momento em que eu mais precisei.
Agradeço por fim, ao meu orientador o Prof. Dr. André Mendes Capraro. Sem
dúvida André, o teu lugar é especial nesta lista de agradecimentos. Você foi mais do que
paciente comigo, especialmente com o meu ritmo de trabalho... Você também foi muito
humano e soube separar as exigências acadêmicas da vida concreta. Sou e sempre serei
grato pelo apoio e pela possibilidade de crescimento pessoal e intelectual que você me
proporcionou. Os compromissos que assumi contigo continuam independente do que
ocorra daqui por diante. Muito obrigado!
CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY
A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?
A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queima de arquivos,
divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.
Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara
para depositá-las?
Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido o que traz
a marca d’água d’hoje.
Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozoniais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.
Nulla dies sine línea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.
E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço de paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano
fardo.
Corrigindo:
o humano fado.
(Waly Salomão, 1995)
RESUMO
O aikido é uma das mais modernas manifestações marciais nipônicas. Criado por
Morihei Ueshiba (1883 – 1969), o aikido chegou ao Brasil por meio dos imigrantes
Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai. A partir de sua influência,
diferentes grupos se constituíram e os brasileiros passaram a conhecer a “arte da paz”,
como o aikido também é denominado. Entretanto, apesar da forte conotação de paz e do
incentivo à harmonia, o aikido brasileiro, especialmente seu pioneirismo, tornou-se
motivo de dissenso e disputas entre alguns dos seguidores dos referidos mestres
imigrantes. Essa constatação foi possível, mediante a utilização da história oral (de
gênero temático) como metodologia na captação de memórias narrativas acerca da
chegada e difusão do aikido em solo brasileiro. Dessa forma, no lugar de valorizar
aspectos factuais e concretos, o presente estudo procurou privilegiar os sentidos e
significados presentes nas narrativas de professores de aikido que treinaram e
conviveram diretamente com os mestres Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami
Shikanai. Suas memórias foram analisadas a partir de diferentes referenciais teóricos
das áreas de antropologia, sociologia, historiografia e memória. Além do caráter de
disputa de alguns dos relatos recolhidos por ocasião desta pesquisa, também se
destacam os motivos relativos aos processos migratórios dos mestres em questão, suas
dificuldades iniciais de adaptação e o choque cultural decorrente das diferenças entre
brasileiros e japoneses, bem como a consolidação do aikido em território nacional.
Sobretudo, destacam-se nos relatos dos entrevistados, noções de tradição, discursos de
oficialidade, concepções de técnica, assim como representações relativas ao Japão e aos
japoneses. A relação entre o indivíduo e a coletividade, bem como a possibilidade de
compartilhamento de memórias e sentidos pessoais também são discutidas ao longo de
cada um dos capítulos. Pela ordem, a divisão de capítulos desta dissertação apresenta as
seguintes discussões: 1 – a prática da transcrição como um exercício de edição, sempre
arbitrário por parte do pesquisador; 2 – os significados que acompanham as memórias
individuais de cada um dos entrevistados a respeito da chegada do aikido ao Brasil; 3 –
a relação entre as identidades individuais e a concepção de aikido de cada um dos
entrevistados; e 4 – as diferentes representações acerca da cultura japonesa, bem como
as distintas formas de apropriação em relação ao aikido por parte dos entrevistados.
Ganha destaque neste último capítulo, a sobrevalorização dos aspectos técnicos e
marciais do aikido, em detrimento de seus sentidos espirituais e filosóficos. Assim, a
natureza da atividade transcritiva, as diferenças das memórias entrevistados, a
constituição de suas identidades, suas representações sobre a cultura japonesa, bem
como suas distintas formas apropriação e significação do aikido, são aprofundadas em
cada um dos respectivos capítulos desta dissertação, contudo, não deixam de ser
pensadas como elementos indissociáveis do trabalho com fontes orais.
Palavras-chave: Aikido. Memórias. Identidades. Significados. Apropriação.
ABSTRACT
Aikido is one of the most Japanese modern kind of martial expressions. Created by
Morihei Ueshiba (1883 - 1969), aikido came to Brazil by immigrants Reishin Kawai,
Teruo Nakatani and Ichitami Shikanai. From their influence, different groups were
formed and the Brazilians came to know the “art of peace”, as aikido is also called.
However, despite of its strong appeal for peace and harmony encouraging, the Brazilian
aikido – especially its pioneering – became a dissent matter and source of disputes
among some of the immigrant masters followers. This finding was possible by the oral
history methodology use, as a way to collect of narrative memories about the aikido
arrival and diffusion in Brazilian territory. Thus, instead of valuing factual and practical
aspects, the present study sought to privilege the senses and meanings in the narratives
of aikido teachers who trained and lived with the masters Reishin Kawai, Teruo
Nakatani e Ichitami Shikanai. Their memories were analyzed from different theoretical
frameworks of anthropology, sociology, historiography and other. Besides the features
of dispute in some of the repports collected for this research, also highlight the reasons
for the migration processes of the masters concerned, their initial difficulties of
adaptation and the culture shock arising from differences between Brazilian and
Japanese, as well as consolidation aikido in the country. Especially, we highlight the
interviewees, notions of tradition, officers speeches, technical concepts, and
representations relating to Japan and the Japanese. The relationship between the
individual and the collectivity, as well as the possibility of sharing personal memories
and senses are also discussed throughout each chapter. The order, the division of
chapters of this dissertation presents the following arguments: 1 – the practice of
transcription as an exercise in editing, always arbitrary on the part of the researcher; 2 –
the meanings that accompany the individual memories of each of the respondents about
the arrival of aikido to Brazil, 3 – the relationship between the individual identities and
the understandings of aikido by each of the respondents, and 4 – the different
representations about Japanese culture, as well as the distinct aikido appropriation forms
by the respondents. In this latter chapter, the overvaluation of martial and technical
aspects of aikido over its philosophical and spiritual aspects were also highlighted.
Thus, the nature of transcriptional activity, the differences of respondents memories, the
constitution of their identities, their representations about Japanese culture as well as
their separate ways appropriation and significance of aikido, are detailed in each of the
respective chapters of this thesis, however not cease to be thought of as inseparable
elements of working with oral sources.
Key-words: Aikido. Memories. Identities. Meanings. Appropriation.
NOTA DE ESCLARECIMENTO
O presente estudo foi constituído a partir das memórias de professores que
treinaram e conviveram diretamente com um dos mestres imigrantes que trouxeram o
aikido ao Brasil. Trata-se de uma pesquisa de história oral que procurou explorar,
sobretudo, os sentidos e significados conferidos ao passado narrativas dos entrevistados.
Dessa forma, as características semânticas dos relatos aqui coligidos tiveram um lugar
privilegiado em detrimento de aspectos factuais acerca da chegada e difusão do aikido
em terras brasileiras. Assim, o leitor encontrará ao longo desta dissertação relatos que
foram montados, remontados, colados, recortados, ou seja, editados, com a finalidade de
viabilizar sua análise. Esse tipo de tratamento e apresentação de narrativas está alinhado
com a metodologia da história oral, como pode ser observado em outras publicações
também de caráter acadêmico. Recomenda-se a leitura integral desta dissertação,
especialmente do capítulo referente à metodologia*, para uma melhor compreensão de
como se deu o processamento das narrativas dos professores entrevistados, bem como
as opções que balizaram o formato de apresentação de suas memórias. É cabível
informar que o roteiro de entrevistas, bem como o termo de consentimento livre e
esclarecido (TCLE) assinado pelos entrevistados, os quais constam nos apêndices,
foram aprovados pelo comitê de ética em pesquisa**
(CEP) da Universidade Federal do
Paraná. Por fim, ressalta-se, que não houve em momento algum o objetivo de
desqualificar ou desabonar a imagem dos professores de aikido que participaram desta
pesquisa ou de seus respectivos mestres. As eventuais falhas ou lacunas deixadas por
este trabalho, bem como sua responsabilidade, são exclusivas de seu autor.
* Capítulo de número 2 – Entre/vistas: apontamentos teórico-metodológicos. ** Ao final desta dissertação, no item “apêndices” é possível encontrar o parecer consubstanciado do CEP-UFPR,
bem como os termos de consentimento assinados pelos entrevistados.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Fundador do aikido, Shihans, Mestres pioneiros do aikido no Brasil e Professores
entrevistados....................................................................................................................32
Figura 2 – O fundador do aikido, seu filho Kisshomaru e seu neto, Moriteru Ueshiba, o
atual Doshu (representante máximo do aikido no mundo) e os diferentes alunos de
Morihei Ueshiba que criaram estilos próprios de aikido................................................68
Quadro 1 – Roteiro de entrevista....................................................................................27
Quadro 2 – Marcações utilizadas nas transcrições..........................................................36
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO: BUDŌ À BRASILEIRA............................................................................14
2 ENTRE/VISTAS: APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS.......................24
3 BURAJIRU: MISSÃO, DESTINO E ACASO......................................................................40
4 “QUE TIPO DE AIKIDO VOCÊ GOSTA?”.......................................................................67
5 O JAPÃO E O AIKIDO: ENTRE PRÁTICAS, REPRESENTAÇÕES E
APROPRIAÇÕES......................................................................................................................92
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................114
7 REFERÊNCIAS....................................................................................................................123
APÈNDICES.............................................................................................................................128
14
1 INTRODUÇÃO: “BUDŌ À BRASILEIRA”
Se “a imigração das ideias”, como diz Marx, raramente se faz sem
dano, é porque ela separa as produções culturais do sistema de
referências teóricas em relação às quais as ideias se definiram,
consciente ou inconscientemente, quer dizer, do campo de produção
balizado por nomes próprios ou por conceitos em –ismo para cuja
definição elas contribuem menos do que ele as define. Por isso, as
situações de “imigração” impõem com uma força especial que se
torne visível o horizonte de referência o qual, nas situações
correntes, pode permanecer em estado implícito.
Pierre Bourdieu - O poder simbólico (2007).
As diferentes manifestações de artes marciais, lutas e modalidades esportivas de
combate, têm adquirido uma visibilidade cada vez maior no cenário acadêmico nacional.
Publicações de referência têm sido produzidas sobre tais manifestações, embora ainda
sejam escassos os estudos com um viés sociocultural acerca de tais práticas, sobretudo,
na área de Educação Física1.
Não obstante a desproporção quantitativa das produções com perspectiva
sociocultural em relação às outras áreas da Educação Física, contribuições importantes
têm sido registradas por pesquisadores ligados a diferentes áreas do conhecimento. A
título de exemplo, podem ser citadas teses e dissertações defendidas em Programas de
Pós-graduação Stricto Sensu das áreas de Educação Física (NUNES, 2004; MAYER,
2005; POLATO, 2006; DRIGO, 2007; FERREIRA, 2013; LISE, 2014), História
(MARTA, 2004; 2009), e Sociologia (PIMENTA, 2006; SOUSA, 2010).
Levando em consideração as contribuições citadas acima, o presente trabalho
apresenta o estudo e a análise do aikido, uma prática marcial nipônica, que foi
introduzida no Brasil – de acordo com diferentes fontes de informação2 – pelos Mestres
imigrantes japoneses Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai. Seu objetivo
principal é apreender os sentidos e significados presentes nas memórias de professores
que conviveram e treinaram diretamente com um dos três mestres apontados como os
1 Em um levantamento realizado em 11 dos principais periódicos de circulação nacional da área de Educação Física,
entre os períodos de 1998 a 2008, Correia e Franchini (2010) identificaram a produção de apenas 75 artigos tendo
por temática as práticas de lutas, artes marciais e esportes de combate. Dentre as publicações, a maioria versava
sobre o Judô (49,3%) e a Capoeira (24%), enquanto outras modalidades apresentavam um número bastante limitado.
Além da quantidade reduzida de artigos, a maioria tinha por foco de pesquisa os aspectos biodinâmicos do
movimento humano (biomecânica, cineantropometria, bioquímica do exercício e fisiologia do exercício) em
detrimento de estudos relacionados às ciências sociais, o que ainda indica a preponderância de aspectos biológicos
na produção científica da área de Educação Física. 2 Revistas de artes marciais como KIAI e Top Fight, livros sobre o aikido (Aikido: técnicas básicas – Marco Natali e
Aikido: o caminho da sabedoria – Wagner José Bull), e sites de grupos e federações.
15
pioneiros do aikido em solo brasileiro. Ou seja, as narrativas presentes ao longo desta
dissertação foram analisadas em suas possibilidades semânticas e não por seu caráter
factual. Dessa forma, longe de serem considerados “desvios” em relação à temática
central, as recordações verbalizadas pelos entrevistados se apresentam justamente como
o foco principal deste trabalho.
Os objetivos específicos, por sua vez, acompanham a divisão de capítulos desta
dissertação. Assim, o primeiro capítulo apresenta o tratamento metodológico adotado
desde a fase de concepção até a discussão dos relatos de cada um dos entrevistados. No
segundo capítulo, as memórias dos entrevistados foram coligidas a partir dos sentidos
atribuídos à chegada e ao início do aikido em terras brasileiras. Significados não
compartilhados entre os narradores tornam rica a discussão em torno das motivações
que trouxeram os três mestres pioneiros do aikido ao Brasil. As memórias dos
entrevistados são tomadas como possibilidades jamais exauríveis, pois a cada nova
retomada há um novo e diferente começo possível a respeito das trajetórias dos Senseis3
Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai. Ao mesmo tempo as recordações
dos professores participantes que participaram desta pesquisa, evidenciam a
inauguração de um novo campo de práticas em solo brasileiro. No terceiro capítulo, as
diferentes concepções de aikido descritas pelos entrevistados são utilizadas como
alternativas para analisar o processo de constituição de suas respectivas identidades.
Suas biografias são cruzadas com os relatos acerca do que entendem ser o aikido. A
perspectiva de identidade presente no terceiro capítulo é, sobretudo, individual,
entretanto, não se perde de vista sua articulação com a coletividade. No quarto e último
capítulo, os diferentes discursos sobre o aikido e sobre a cultura japonesa são analisados
a partir da articulação das noções de práticas, representações e apropriações. Por fim, na
conclusão, são cruzados diferentes discursos, que demonstram o valor e a força da
subjetividade no processo de apreensão da realidade e como alternativa na construção
do conhecimento histórico.
Com a finalidade de viabilizar a consecução do presente estudo, foi utilizada a
história oral de gênero temático como metodologia, dando destaque às narrativas dos
entrevistados sem cotejá-las com outros tipos de fontes históricas. Os temas
selecionados para a realização das entrevistas foram a chegada e a difusão do aikido em
3 A expressão japonesa Sensei é geralmente traduzida para o português como Mestre ou Professor, mas também
tem o sentido de “tomar a dianteira” ou de “chegar primeiro”. É oportuno esclarecer que o uso do termo Sensei,
assim como das palavras Mestre e Professor foram registrados com as iniciais em letras maiúsculas todas as vezes
onde há menção a um Sensei, Mestre ou Professor de forma direta ou indireta ao longo do texto.
16
terras brasileiras. Nessa perspectiva, é importante reiterar que para além de eventos, as
fontes orais apresentadas ao longo desta dissertação, foram tomadas como um campo de
possibilidades. A esse respeito, o historiador oral italiano Alessandro Portelli (2010a)
explica que
Elas (as fontes orais) te dão, ao invés, coisas diversas. Elas te dão uma
dimensão de subjetividade. Você pode fazer, não somente história, mas
história da subjetividade, história da memória. Portanto, você pode não
somente reconstruir aquilo que aconteceu, mas também o que significa
aquele acontecimento depois. O que significou? E então, a fonte oral, é um
outro tipo de fonte literária. Em certo ponto, ela te diz mais. E então, no
centro da fonte, no centro da história oral, você colocará a subjetividade, a
memória, a linguagem, o diálogo, isto é, precisamente, aquelas coisas que a
crítica positivista às fontes orais criticava como ignorância, como limite,
como defeito da fonte oral. (PORTELLI, 2010a, p.49).
Assim, a partir da consideração de que a história oral guarda seu potencial na
presença da subjetividade4 e levando em conta – segundo Lowenthal (1998) – que o ato
de recordar ocorre sempre no presente, a questão-problema que norteou a construção
desta dissertação foi: como professores de aikido narram suas memórias a respeito do
processo de chegada e difusão dessa prática marcial japonesa no Brasil e quais são os
sentidos e significados presentes em suas narrativas?
A justificativa para a escolha do aikido como objeto de estudo, deve-se à relação
do pesquisador que chegou a praticar essa modalidade durante os anos de 2010 e 2011.
Além da experiência pessoal com a modalidade, outra justificativa para a realização de
uma pesquisa referente ao aikido, deve-se à inexistência de publicações de artigos,
dissertações ou teses versando exclusivamente sobre essa prática marcial em periódicos
e bases de dados on-line nacionais. Trata-se de uma contribuição, ainda que modesta,
para pesquisadores e leigos, que tenham interesse em conhecer o aikido a partir de uma
abordagem acadêmica que procurou articular leituras e definições de diferentes áreas
das ciências sociais, sobretudo, da historiografia e da sociologia.
Levando em consideração esses apontamentos iniciais, são necessários alguns
esclarecimentos referentes à expressão “arte marcial” com a finalidade de evidenciar
como o aikido se aproxima ou se distancia de tal noção. Paralelamente, cabe também,
apontar alguns dos sentidos e significados atribuídos ao aikido, o que possibilita o 4 A expressão subjetividade é aqui entendida como a “capacidade do locutor de se posicionar como „sujeito‟, e é na e
pela linguagem que o homem se constitui como sujeito.” (BENVENISTE, 1966, p.259). De acordo com
Charaudeau e Maingueneau, 2012, p.456) o locutor “[...] assim o faz, apropriando-se de certas formas que a língua
lhe disponibiliza, primeiramente com o pronome eu, cujo uso é o próprio fundamento da consciência de si.” Outro
esclarecimento por parte dos mesmos autores é que não há subjetividade sem intersubjetividade, ou seja, apenas por
meio de uma experiência de contraste – o que não necessariamente implica em conflito, dissensão – é possível
verificar a presença do por meio da linguagem.
17
conhecimento dessa prática marcial de maneira alternativa às tradicionais narrativas
lineares e totalizantes, peculiares ao modo de registro e descrição das histórias das
diferentes artes marciais.
O crescente interesse do meio acadêmico em relação às variadas formas de artes
marciais – de origem oriental ou não – tem proporcionado uma verdadeira proliferação
de noções e entendimentos acerca de tais práticas. Em função da insipiência do campo
de produção acadêmica a respeito desse tipo de manifestações, os debates acerca dos
elementos que definem e caracterizam as artes marciais, ainda não exauriram suas
possibilidades. Diferentes tentativas têm sido realizadas, com a finalidade de definir um
conceito abrangente, o qual tenha condições de abarcar de forma simultânea, (todas) as
diferenças relativas aos processos históricos e socioculturais, onde as distintas
manifestações de artes marciais se originaram e difundiram. Nesse sentido, uma
definição que vem sendo continuamente revisitada, e que tem servido de certa forma,
como um marco epistemológico na produção de publicações sobre artes marciais pode
ser encontrada em Franchini e Correia (2010, p.1),
“Arte Marcial” faz referência a um conjunto de práticas corporais que são
configuradas a partir de uma noção aqui denominada de “metáfora da guerra”,
uma vez que essas práticas derivam de técnicas de guerra como denota o
nome, isto é, marcial (de Marte, deus romano da guerra; Ares para os gregos)
(FRANCHINI et al., 1996). Assim, a partir de sistemas ou técnicas diversas
de combate situadas em diferentes contextos sociais, essas elaborações
culturais passam por um autêntico processo de ressignificação, em que a
dimensão ética e estética ganham uma expressiva proeminência. Desta forma
podemos identificar que a expressão “arte” nos sinaliza para uma demanda
expressiva, inventiva, imaginária, lúdica e criativa, como elementos a serem
inclusos no processo de construção de certas manifestações antropológicas
ligadas ao universo das Artes Marciais. Já o termo marcial, relacionado ao
campo mitológico faz alusões à dimensão conflituosa das relações humanas.
Assim, temos a inclusão contínua de elementos que ultrapassam as demandas
pragmáticas e utilitaristas das formas militares e bélicas de combate.
É necessário, no entanto, superar a ingenuidade relativa à busca de um conceito
monolítico referente às artes marciais. Observando exatamente essa tentação de uma
padronização conceitual, Ferreira (2013) recomenda certa dose de cautela no uso da
expressão arte marcial, cujas interpretações são bastante amplas e muitas vezes
inadequadas, visto que por vezes são desconsiderados os contextos socio-históricos
onde tais práticas foram produzidas. Além da observação minuciosa referente aos
contextos de produção de tais práticas, é imprescindível levar em conta os respectivos
processos de apropriação e ressignificação aos quais as artes marciais estão sujeitas. A
esse respeito, Marta (2009) chama a atenção para o modo de apropriação “ocidental”,
18
especialmente, em relação aos estilos e práticas marciais provenientes do Oriente
Extremo5
. O autor também dá destaque aos sentidos contemporâneos que têm
determinado a busca por esse tipo de práticas corporais,
[...] na atualidade, outros interesses, tais como necessidade de praticar uma
atividade física, o convívio social, o interesse pela prática de uma atividade
esportiva e o interesse pela cultura e filosofia orientais, nas quais as artes
marciais, em maior ou menor grau, encontram-se imersas, fazem com que
muitas pessoas se aproximem desse tipo de atividade. (MARTA, 2009, p.8).
Outros sentidos – também contemporâneos – atribuídos a tais práticas, podem
ser encontrados nos diferentes processos de esportivização e espetacularização pelos
quais algumas dessas modalidades passaram, de forma isolada, ou mista, como é o caso
das competições de artes marciais mistas, também conhecidas como MMA (Mixed
Martial Arts).
Todas essas considerações acerca de uma possível definição de arte marcial
oferecem, ainda que de maneira introdutória, uma noção da complexidade relativa a
esse tipo de manifestações.
Na sequência desses apontamentos, serão indicadas algumas das características
atribuídas ao aikido, com a finalidade de explicitar como essa prática marcial se
aproxima e/ou se distancia do entendimento de arte marcial. Além das características,
que evidenciam sentidos e significados próprios conferidos ao aikido, há também a
intenção a partir das informações a seguir, de aproximar o leitor(a) do objeto de estudo
desta dissertação.
O aikido foi criado pelo Mestre Morihei Ueshiba (1883-1969), nascido na cidade
de Tanabe, na província japonesa de Wakayama. Alguns dos biógrafos de Ō-Sensei6,
como Morihei também era chamado, explicam que a constituição do aikido se deu a
partir da síntese de suas experiências com diferentes estilos e técnicas marciais,
sobretudo, o Daito-ryu aikijujutsu7 (STEVENS, 2007; UESHIBA; 2011). Além dessas
experiências de cunho marcial, outros eventos – segundo os mesmos biógrafos – foram
determinantes para que o Mestre Ueshiba criasse seu próprio caminho marcial, entre
5 Designação ampla dada pelos ocidentais à região da Ásia que compreende os países do Leste Asiático (China,
Japão, Coreia, Mongólia, Manchúria e a parte oriental da Sibéria), e que inclui, por vezes, os países do sul e do
sudeste do continente e os arquipélagos das Filipinas e da Indonésia. 6 Ō-Sensei é uma expressão nipônica que designa um mestre (sensei) que está em uma condição (marcial, moral, e
espiritual) superior a outros mestres do mesmo ou de estilos marciais distintos. 7 O Daito-ryu aikijujutsu ou simplesmente aikijujutsu foi a prática marcial que mais influenciou o fundador do aikido
na criação de seu caminho marcial. Suas técnicas são mais contundentes e mais agressivas do que aquelas aplicadas
no aikido. Morihei Ueshiba conheceu o aikijujutsu com o Mestre Sokaku Takeda (1859 – 1943).
19
eles estão: sua participação na Guerra Russo-japonesa; o falecimento de dois de seus
filhos no ano de 1820; uma experiência “transcendente” em 1925; a observação da
destruição e da desesperança provocadas pela 2ª Grande Guerra, entre outros fatores.
Obviamente que essas informações não têm a finalidade de reiterar os discursos
biográficos que quase sempre apontam Morihei Ueshiba como o “maior artista marcial
do Japão” (STEVENS, 2007), entretanto, para viabilizar uma apresentação do tema, é
necessário ao menos uma breve exposição que retome os discursos acerca da história do
aikido no Japão e de seu criador.
Como modalidade marcial, o aikido adquiriu grande visibilidade internacional
especialmente após a estreia do filme “Nico acima da lei” (Above the Law),
protagonizado pelo astro hollywoodiano Steven Seagal em 1988. Na trama, Seagal
interpreta um detetive da polícia (Nico Toscani) de Chicago, e veterano da Guerra do
Vietnã, que ao final de sua adolescência se interessa por artes marciais, e resolve viajar
ao Japão para estudar o aikido. As cenas de lutas ganham destaque ao longo de toda a
película, sobretudo, enfatizam por meio de diferentes sequências e planos de filmagem,
a efetividade das técnicas marciais de aikido empregadas pelo protagonista. Mesmo
fazendo parte de um subgênero cinematográfico já bastante difundido à época – o dos
filmes que mesclam artes marciais com ação policial – Seagal conseguiu se distinguir de
outros astros e artistas marciais como Bruce Lee, Chuck Norris, e Jean-Claude Van
Damme em função de um estilo marcial bastante eficiente, e sem o uso dos golpes de
impacto, como socos e chutes, constantes nos filmes norte-americanos de artes marciais.
Desde então, o aikido passou a ser conhecido como a arte marcial que usa a força ou a
energia do oponente contra ele mesmo, e que tem exclusivamente a finalidade de defesa
pessoal.
Outras características comumente associadas ao aikido tais como, suas técnicas
fluidas e circulares, a ausência de competições entre seus praticantes, o forte apelo a não
violência, e a rigorosa observância da disciplina e da etiqueta, fizeram com que o aikido
passasse a ser conhecido como a “arte da paz” (STEVENS, 2002). Em função de seu
forte conteúdo filosófico e moral, além de aspectos espirituais – nem sempre facilmente
inteligíveis – o aikido também é chamado de o “Caminho do Amor” (UESHIBA, 2011).
Embora as técnicas do aikido possam ser aplicadas em situações de vida ou
morte, ele, em si, está relacionado ao amor que provém do coração. As
técnicas do aikido demonstram a execução da justiça pelo amor. Deveria ficar
evidente que as técnicas do aikido existem com a finalidade de proteger o
20
amor humano. Que tipo de técnica seria essa, sem amor? (UESHIBA, 2011,
p.287)
Diversas publicações (PERRY, 2002; UESHIBA, 2006; STEVENS, 2007;
PRANIN, 2010) procuram enfatizar que o aikido não é uma mera arte marcial conforme
o entendimento ocidental, mas sim um “caminho marcial” de desenvolvimento pessoal
e espiritual, também conhecido como budō. Entretanto, é cabível registrar que não há
consenso nas formas de classificação do aikido, que por vezes é descrito como uma arte
marcial, sendo que em outros momentos é apresentado como um budō, conforme já
referido. Essas diferenças de entendimento não são exclusivas de publicações
encontradas em livros, em revistas de artes marciais, ou em sites da internet, mas
também podem ser observadas, por exemplo, nas memórias e narrativas dos professores
que participaram deste estudo e que serão exploradas mais detalhadamente em cada um
dos capítulos que compõem esta dissertação.
A respeito da noção de budō Croucher e Reid (2010, p. 219) explicam que
O caractere budô [武 道 ] é composto de três caracteres básicos que
significam respectivamente “parar”, “dois” e “lanças”. A tradução literal do
caractere, portanto, é “parar duas lanças”. Na interpretação de muitos artistas
marciais japoneses, ele significa, portanto, “caminho marcial para a paz” ou
“paz por meio do treinamento marcial”.
A forma de tradução mais comum relacionada à expressão budō, pode ser
encontrada a partir da versão latinizada dos caracteres nipônicos, dessa forma o prefixo
bu pode ser traduzido como “marcial” ou “marcialidade”, e o sufixo dō – uma contração
do vocábulo chinês Tao – como “caminho” ou “via”. Assim, um budō é uma “via
marcial” ou um “caminho marcial”. Nessa perspectiva, é oportuno esclarecer que não
apenas o aikido é um budō, mas também o judo, o karate-do, o kendo8, o kyudo
9 e
outras tantas formas de práticas marciais japonesas. Além dessas diferenças próprias de
cada estilo de budō, Donn Draeger (1990) enfatiza ainda a necessidade de observar
outros critérios de classificação como o período de criação de cada sistema marcial –
que define as formas clássicas ou modernas de budō, como é o caso do aikido que foi
criado durante a primeira metade do século XX – e a presença ou não de competições, o
que pode evidenciar diferentes processos de esportivização pelos quais alguns desses
8 O kendo, ou o caminho da espada, é uma prática marcial realizada com espadas feitas de bambu conhecidas como
shinai. De acordo com Croucher e Reid (2010) o kendo tinha por finalidade a substituição dos antigos exercícios
de esgrima com espadas reais, o que não ocorreu integralmente. 9 O kyudo também é conhecido como a via ou o caminho da arcoaria. Também de acordo com Croucher e Reid
(2010, p.221) “O objetivo confesso do praticante do kyudô é o de criar um elo entre o seu espírito e o alvo no
momento do tiro. Atingir o alvo é um detalhe de importância secundária [...]”
21
caminhos marciais passaram. Nesse sentido, a ausência de competições entre os
praticantes de aikido é uma característica bastante explorada para reafirmar a diferença
desse caminho em relação a outros tipos de práticas marciais. A título de exemplo, pode
ser citado um trecho da primeira obra publicada no Brasil a respeito do aikido:
Nas aulas práticas de Aikido, usa-se a didática do método repetitivo
(repetição reiterada de uma mesma técnica), ao invés do método competitivo.
O Aikido é mais que um esporte, porque não busca objetivos relativos, como
o de uma competição, mas busca, isto sim, os valores absolutos que
transcendem os desejos de glória pessoal. (NATALI, 1985, p.23)
Natali (1985) também evidencia em sua obra o caráter elitista e seletivo – até os
dias de hoje – atribuído ao aikido, ao explicar que
Até a eclosão da Segunda Grande Guerra, o Aikido era praticado e ensinado
apenas a elementos selecionados da nobreza do Japão, e oficiais da guarda de
honra imperial, ministros de Estados, oficiais generais, aspirantes da
Academia Naval, cadetes da Academia Militar, líderes policiais e aos faixas
pretas acima do quinto grau de outras artes marciais, como o Judô e o Kendo.
Após a Segunda Guerra, o Aikido começou a ser divulgado mais amplamente,
primeiramente entre os oficiais das Forças Armadas e mais tarde ampliando-
se através das faculdades e grandes empresas. (NATALI, 1985, p. 23-24)
Uma suposta superioridade marcial do aikido e de seu repertório técnico em
relação a outras artes marciais também são regularmente reiteradas, como é possível
observar nas passagens a seguir:
Entre todas as artes marciais, o aikido é talvez uma das mais rígidas [práticas
marciais], pois se focaliza na procura da “verdade”; o que distingue
completamente sua prática das do esporte e da competição. (UESHIBA, 2011,
p.297).
Tenho visto que quando se menciona o Aikido para praticantes de outras
artes marciais, eles têm a imagem de que este Budô, é muito bom para o
espírito, que tem filosofia, que faz bem para a saúde, mas uma boa parte
pensa que em termos de artes marciais o Aikido não seria tão eficiente como
o Judô, o Karatê, o Tae Kwon Do, etc. E a verdade é que as coisas não são
assim. Quem assistiu os filmes de Steven Seagal, viu como a arte pode ser
usada de forma muito violenta e eficiente em termos de defesa pessoal. Então
eu me pergunto por que é que foi criada esta imagem errada de que o Aikido
seria uma arte mais filosófica do que marcial? (BULL, 2008, p.226).
Esses e outros tantos discursos que ainda poderiam ser aqui citados,
transformaram o aikido num vasto campo de produção de sentidos, os quais comunicam
valores, crenças, princípios e práticas que concorrem para o estabelecimento de
diferentes entendimentos acerca dessa modalidade. Essa riqueza e variedade de
significados também é um dos focos desta pesquisa, que lançando mão da história oral
22
como metodologia privilegiada na apreensão de subjetividades, procurou explorar o
caráter idiossincrático e as variações narrativas presentes nas memórias de alguns dos
professores que treinaram e conviveram com os mestres pioneiros indicados como os
responsáveis pela introdução e difusão do aikido no Brasil. Observando essa
característica única da história oral, no desvelamento da atividade memorial e do
exercício narrativo é que Portelli (1996, p.8-9) afirma que
A história oral e as memórias, pois, não nos oferecem um esquema de
experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas,
reais ou imaginárias. A dificuldade para organizar estas possibilidades em
esquemas compreensíveis e rigorosos indica que, a todo momento, na mente
das pessoas se apresentam diferentes destinos possíveis. Qualquer sujeito
percebe estas possibilidades à sua maneira, e se orienta de modo diferente em
relação a elas. Mas esta miríade diferenças individuais nada mais faz do que
lembrar-nos que a sociedade não é uma rede geometricamente uniforme
como nos é representada nas necessárias abstrações das ciências sociais,
parecendo-se mais com um mosaico, um patchwork10
, em que cada
fragmento (cada pessoa) é diferente dos outros, mesmo tendo muitas coisas
em comum com eles, buscando tanto a própria semelhança como a própria
diferença. É uma representação do real mais difícil de gerir, porém parece-me
ainda muito mais coerente, não só com o reconhecimento da subjetividade,
mas também com a realidade objetiva dos fatos.
Além do amplo universo de possibilidades associadas à natureza do trabalho
com fontes orais, é necessário levar em conta a natureza constitutiva desse tipo de
fontes, no sentido de que são construídas ou provocadas por meio de um processo
dialógico com um entrevistador. Dessa forma, é oportuno observar que há significados
que se sobrepõem e que também se amalgamam desde o início, até a publicação final de
qualquer texto baseado em fontes orais. Assim, destaca-se que esta é uma pesquisa
constituída em conjunto com diferentes narradores, que relatando suas memórias
auxiliaram o pesquisador a urdir uma trama de significações sobre a chegada e
disseminação do aikido em solo brasileiro.
Outras noções também emergem a partir das narrativas dos professores aqui
entrevistados, são referências a respeito das diferenças entre a cultura japonesa e
brasileira, sobre o valor atribuído à figura de cada um dos mestres como o verdadeiro
pioneiro do aikido no Brasil, assim como se destacam os contrastes identitários
relacionados aos grupos que se formaram sob a égide dos mestres Reishin Kawai, Teruo
Nakatani, e Ichitami Shikanai. São significados que atravessam muitas das memórias e
10 Trabalho artesanal composto de retalhos de diferentes tecidos.
23
relatos registrados ao longo desta dissertação, e que serão problematizados com maior
profundidade em cada um dos capítulos a seguir.
24
2 ENTRE/VISTAS: APONTAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Portanto, o que precisamos fazer? Mais uma vez, contrabalançar
necessidades ou requisitos opostos – ou que essa pessoa realmente
disse?
Alessandro Portelli (1997, p.40)
O presente capítulo tem por finalidade discutir as implicações relativas aos
procedimentos éticos e metodológicos empregados na consecução desta pesquisa, a
partir de diferentes referenciais teóricos e de seus respectivos posicionamentos
epistemológicos. Paralelamente são registradas reflexões sobre a produção do
conhecimento histórico a partir do encontro entre a subjetividade e os acontecimentos
sociais, ou seja, entre memória e história. O papel do pesquisador e as consequências de
sua atividade na produção e edição das narrativas individuais também são aspectos
explorados dentro desta seção.
Desde a concepção do projeto que originou este estudo, a história oral foi
considerada como uma opção metodológica. Dessa forma, a fundamentação teórica para
as questões surgidas na prática – no processo de entrevistas, na passagem do oral para o
escrito, nas relações entre memória e história, etc. – foram buscadas na teoria da história,
e em áreas correlatas das ciências sociais, como por exemplo, a antropologia e a
sociologia. Lançar mão da história oral como metodologia implica em reconhecer
segundo afirma Alberti (2005, p.18) que
Não se pode dizer que ela pertença mais à história do que à antropologia, ou
às ciências sociais, nem tampouco que seja uma disciplina particular no
conjunto das ciências humanas. Sua especificidade está no próprio fato de se
prestar a diversas abordagens, de se mover num terreno multidisciplinar.
Nesse sentido, esta não é uma dissertação com viés exclusivamente
historiográfico, mas um trabalho de caráter sociocultural. Assim, a história oral foi aqui
utilizada na ordenação de procedimentos de trabalho, que se iniciaram com a seleção do
tema a ser estudado, na elaboração do roteiro de entrevistas, no processo de transcrição
das narrativas coletadas, análises, entre outros.
25
Outra finalidade da escolha da história oral como metodologia de investigação
social, é que a partir dessa perspectiva não há a obrigatoriedade de cotejar os relatos
gravados com outras fontes ou vestígios históricos. Evitou-se dessa forma, o risco de
subaproveitamento das entrevistas – algumas delas com mais de 4 horas de duração – e
ao mesmo tempo o uso ancilar da história oral. A respeito dessa forma de concepção e
de emprego da história oral, Portelli (2010a, p.49) afirmou:
Eu creio que quando nós falamos de história oral nós dizemos o inverso [do
que o seu uso ancilar]. Isto é, no centro estão aquelas coisas que as fontes
orais podem dar a mais, ou melhor, dizer o que as outras não podem. E que
coisa é história oral? Não é tanto a informação, porque, grosso modo, do
ponto de vista informativo, digamos, os arquivos, os jornais são mais
especializados.
Entre as diferentes possibilidades de gênero da história oral, optou-se pelas
entrevistas de caráter “temático”. As entrevistas temáticas se apresentam como uma
estratégia focalizada na produção de narrativas em torno de assuntos específicos. Sua
escolha é
[...] adequada para o caso de temas que têm estatuto relativamente definido
na trajetória de vida dos depoentes, como, por exemplo, um período
determinado cronologicamente, uma função desempenhada ou o
envolvimento e a experiência em acontecimentos ou conjunturas específicos.
Nesses casos, o tema pode ser de alguma forma “extraído” da trajetória de
vida mais ampla e tornar-se centro e objeto das entrevistas. Escolhem-se
pessoas que dele participaram ou que dele tiveram conhecimento para
entrevistá-las a respeito. (ALBERTI, 2005, p.38)
Os temas selecionados para a elaboração do roteiro, e a realização das
entrevistas foram a chegada e a difusão do aikido no Brasil. Aparentemente, a
abrangência desses dois tópicos pode parecer contraditória com a especificidade que
visa a história oral temática, entretanto, sua escolha se deu com a finalidade de
identificar possibilidades mais amplas nas memórias dos entrevistados, tais como,
narrativas de origem, discursos de tradição e de legitimidade, definições acerca da
cultura japonesa, entre outras. Por guardar uma relação intrínseca com o relato
biográfico, a história oral temática permite observar o trabalho da memória, e a
inscrição do sujeito na história por meio de sua narrativa, ainda que o entrevistado não
tenha participado diretamente do(s) tema(s) colocado(s) em questão. Ou seja, é possível
observar onde eventos ou acontecimentos históricos se cruzam com significados e
sentidos individuais. Nesse perspectiva, Delgado (2010, p.18) enfatiza que o trabalho
26
com fontes orais “[...] contribui para relativizar conceitos e pressupostos que tendem a
universalizar e a generalizar as experiências humanas.”
O próximo passo após a opção pelos temas de entrevista foi a elaboração de um
roteiro, o qual foi dividido em três seções. A primeira seção foi reservada ao
conhecimento das biografias dos entrevistados. Além de levantar dados e informações
pessoais, essa seção também teve por finalidade diminuir a distância entre o pesquisador
e os professores entrevistados, criando um espaço de troca, de encontro, no momento
das entrevistas. Essa estratégia foi concebida previamente, visto que o pesquisador não
conhecia antecipadamente nenhum dos sujeitos que participaram desta pesquisa. A
segunda seção por sua vez, contém questões referentes à chegada e ao início do aikido
em solo brasileiro. Aqui cabe um parêntese, pois os termos “chegada” e “início” foram
utilizados ao longo do presente texto como sinônimos, ainda que se compreenda que a
expressão chegada tenha um sentido mais associado às viagens empreendidas por cada
um dos mestres imigrantes ao Brasil. Essa associação de termos foi adotada a partir das
narrativas dos entrevistados, que fundiram em seus discursos a chegada e o início do
aikido em solo brasileiro, sem estabelecer distinções entre essas duas expressões ou
momentos históricos. Por fim, a terceira e última seção, possui questões que versam
sobre a disseminação do aikido a partir da influência dos Mestres japoneses Reishin
Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai.
Não obstante as perguntas do roteiro tenham sido previamente elaboradas, é
oportuno esclarecer que esse instrumento não foi utilizado de forma rígida, à maneira de
um inquérito. Ou seja, o roteiro de entrevistas foi considerado como um instrumento
semiestruturado e flexível, visto que seu objetivo era apreender a subjetividade das
memórias dos entrevistados, e não a factualidade de suas narrativas. Sendo assim,
algumas perguntas não previstas anteriormente no roteiro foram incluídas de acordo
com o contexto de cada uma das entrevistas. Algumas dessas perguntas eram de caráter
tangencial e tinham por finalidade eliciar, de maneira indireta, memórias sobre possíveis
tensões e conflitos relacionados aos desdobramentos do aikido em solo brasileiro.
Outro esclarecimento oportuno, é que no caso do Mestre Ichitami Shikanai – o
único entrevistado entre os três pioneiros – sua entrevista contou com perguntas mais
próximas do gênero história oral de vida, que, segundo Alberti (2005, p.37-38)
[...] têm como centro de interesse o próprio indivíduo na história, incluindo
sua trajetória desde a infância até o momento em que fala, passando pelos
diversos acontecimentos e conjunturas que presenciou, vivenciou ou de que
27
se inteirou. Pode-se dizer que a entrevista de história de vida contém, em seu
interior, diversas entrevistas temáticas, já que, ao longo da narrativa da
trajetória de vida, os temas relevantes para a pesquisa são aprofundados.
Apesar de anunciar a valorização de aspectos relacionados à experiência de vida
do Mestre Ichitami Shikanai no Japão, assim como, destacar os motivos de sua
migração ao Brasil, os diferentes gêneros de história oral contemplados nesta pesquisa
(história oral temática e de vida) pressupõem a relação com o método biográfico
(ALBERTI, 2005). No quadro abaixo, é possível observar o referido roteiro utilizado
nesta pesquisa.
QUADRO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTA
Roteiro de entrevista
Dados
cadastrais
Nome:_________________________________________________
Data de nascimento:____________________
Endereço residencial:_____________________________________
______________________________________________________
Telefone(s):____________________________________________
Email:_________________________________________________
Profissão:______________________________________________
Mestre:________________________________________________
Tempo de prática:________________________________________
Graduação:_____________________________________________
28
QUADRO 1 – ROTEIRO DE ENTREVISTA (continuação)
Dados
Biográficos
- Quando e como o senhor(a) começou a treinar aikido?
- Quem foi seu primeiro Sensei?
- O senhor(a) teve outros(as) Senseis? Quem?
- Como foi essa “transição” de Sensei?
- Há quanto o senhor(a) tempo dá aulas?
Questões
sobre a
chegada do
aikido ao
Brasil
- O senhor(a) poderia me explicar como o aikido chegou ao Brasil?
- O senhora(a) sabe quais os motivos que trouxeram o Mestre_____
_______________________ ao Brasil?
- Onde o Mestre _____________ chegou primeiramente? Esse é o
mesmo local onde ele fixou residência?
- O senhor(a) tem conhecimento sobre o período e o(s) local(ais)
onde o Mestre________ começou a dar aulas?
- O Mestre__________mantinha alguma outra atividade profissional
29
além de ministrar aulas de aikido?
- Nesse mesmo período o(a) senhor(a) sabe se existia alguma outra
escola de aikido em algum outro lugar?
Questões
sobre a
difusão do
aikido no
Brasil
- O senhor poderia me descrever como se deu o processo de difusão
do aikido a partir da influência do Mestre___________________?
- Nessas quatro décadas e meia de presença do aikido em terras
brasileiras, quais eventos o(a) senhor(a) considera que foram
fundamentais para a difusão dessa prática em nosso país?
- Há algum ou alguns fatores que o senhor(a) identifica que podem
ter dificultado a expansão do aikido no Brasil?
- O senhor(a) poderia me citar alguns nomes que foram
fundamentais na difusão do aikido em nosso país?
- Nos dias de hoje, como o senhor(a) vê o desenvolvimento do
aikido em nosso país?
- Considerando que o senhor(a) já falou sobre o processo de início e
difusão do aikido no Brasil, existem outras informações que
considera importantes para que eu possa compreender melhor como
se deu todo esse processo?
Fonte: O autor (2014)
30
Ressalte-se que tanto o roteiro, como o projeto de pesquisa que originou esta
dissertação, foram submetidos ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, do
Setor de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Paraná, e foram aprovados
mediante o parecer consubstanciado número 163.573. A inscrição do projeto junto ao
CONEP (Comitê Nacional de Ética em Pesquisa) pode ser localizada no site
“Plataforma Brasil” a partir do número de registro: 09280112.1.0000.0102. Os termos
de consentimento assinados por cada um dos professores de aikido citados neste estudo,
podem ser encontrados no item “apêndices”. A partir da leitura do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), é possível observar alguns dos cuidados
éticos adotados antes, durante, e mesmo após a realização de cada uma das entrevistas.
Realizadas essas observações teóricas e procedimentais, deu-se então, o
estabelecimento da lista de entrevistados em potencial. A seleção dos professores de
aikido que compuseram o grupo de entrevistados desta pesquisa foi efetuada a partir de
contatos fornecidos, primeiramente, pelo professor de aikido do pesquisador, o senhor
Gilberto Machado Marecos11
, e posteriormente mediante uma ostensiva pesquisa nas
duas das principais publicações sobre a presença do aikido no Brasil: “Aikido –
Técnicas Básicas” de Marco Natali (1985), e “Aikido: O Caminho da Sabedoria. -
Dobun, História e Cultura” de Wagner José Bull (2008). Esse levantamento prévio a
respeito dos possíveis entrevistados é recomendado por Alberti (2005, p.32) a partir da
seguinte indicação:
É preciso conhecer o tema, o papel dos grupos que dele participaram ou que
o testemunharam e as pessoas que, nesses grupos, se destacaram, para
identificar aqueles que, em princípio, seriam mais representativos em função
da questão que se pretende investigar – os atores e/ou testemunhas que, por
sua biografia e por sua participação no tema estudado, justifiquem o
investimento que os transformará em entrevistados no decorrer da pesquisa.
Dessa forma, ao término desse processo de consulta, foram selecionados
professores que treinaram e conviveram com um – ou mais de um – dos pioneiros do
aikido no Brasil. Aqui cabe um esclarecimento, pois alguns dos entrevistados escolhidos,
da cidade do Rio de Janeiro, haviam treinado com mais de um mestre pioneiro. Isso se
deve ao fato do Mestre Ichitami Shikanai ter vindo ao Brasil para dar prosseguimento
nas turmas iniciadas pelo senhor Teruo Nakatani, que em função de seus compromissos
profissionais e de uma lesão sofrida durante um treinamento, não pôde continuar
11 O Professor de aikido Gilberto Machado Marecos ministra suas aulas no espaço de treinamento “Aikido Shugyo
Dojo” [Curitiba-PR] e é filiado a União Sul-americana de Aikido Kawai Shihan. Dessa forma sua lista de contatos
estava adstrita aos professores que treinaram somente com o Sensei Reishin Kawai.
31
ministrando suas aulas de aikido. Entre os mestres pioneiros, o senhor Ichitami Shikanai
foi o único a participar desta pesquisa, relatando por si mesmo suas memórias a respeito
de sua trajetória de vida antes e depois de chegar ao Brasil. A não participação dos
Mestres Reishin Kawai e Teruo Nakatani, se deve ao fato de o primeiro ter falecido
pouco antes do início desta pesquisa, no ano de 2010, e no caso do senhor Teruo – ainda
vivo – seu precário estado de saúde e sua idade avançada não permitiram a concessão de
uma entrevista.
Outro esclarecimento é que a ausência de outros seguidores do Mestre Nakatani,
além dos Professores Adélio Andrade e Bento Guimarães, se deve a dois fatores, o
primeiro é que houve grande dificuldade de encontrar professores que treinaram
diretamente com o senhor Teruo, pois muitos de seus ex-alunos já estão afastados do
aikido há muito tempo, o que os impossibilitaria de falar com maior propriedade sobre a
difusão dessa modalidade em terras brasileiras. O segundo fator é referente à idade de
alguns dos professores que treinaram com o Mestre Nakatani e que foram localizados
pelo pesquisador. Muitos deles já septuagenários ou octogenários, alegaram não ter
condições de conceder uma entrevista em função de sua idade avançada e de seu estado
de saúde.
A escolha dos entrevistados deu-se, portanto, principalmente em virtude de sua
proximidade em relação a cada um dos mestres japoneses aqui indicados, mas também
por estarem ativos treinando e ministrando aulas de aikido. Seu reconhecimento público
e a posição que ocupam em seus respectivos grupos e organizações também foram
fatores considerados para a sua seleção. Corroborando com esse formato de seleção,
Alberti (2005, p.31) explica que
A escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por
critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir
da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência.
Assim, em primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles
que participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou
situações ligadas ao tema e que possam oferecer depoimentos significativos.
O processo de seleção de entrevistados em uma pesquisa de história oral se
aproxima, assim, da escolha de „informantes‟ em antropologia, tomados não
como unidades estatísticas, e sim como unidades qualitativas – em função de
sua relação com o tema estudado –, seu papel estratégico, sua posição no
grupo, etc.
A seguir, pode ser observado o quadro onde constam os nomes de todos os
professores que participaram desta pesquisa, suas respectivas instituições e seus atuais
ou antigos mestres.
32
FIGURA 1 – FUNDADOR DO AIKIDO, SHIHANS, MESTRES PIONEIROS DO AIKIDO NO
BRASIL E PROFESSORES ENTREVISTADOS
Morihei Ueshiba
(1883 – 1969)
Fundador do aikido
Aritoshi Murashigue
(1895 – 1964)
Hiroshi Tada
(1929 – )
Yassuo Kobayashi
(1936 – )
Yoshimistu Yamada
(1938 – )
Reishin Kawai
(1931 – 2010)
Teruo Nakatani
(1932 – )
Ichitami Shikanai*
(1947 – )
Matias de Oliveira*
(Secretário-geral da União
Sul-americana de Aikido
Kawai Shihan)
Adélio Mendes de Andrade*
(Imigrante português e Professor
que ficou responsável pelas turmas
do Professor Nakatani após seu
afastamento)
Lilba Kawai de Oliveira*
(Filha caçula do Mestre Kawai)
Bento José de Freitas Guimarães*
(Foi aluno do Mestre Nakatani e após
o seu afastamento passou a treinar
com o Mestre Ichitami Shikanai)
Ricardo Leite da Silva*
(Ex-aluno do Mestre Kawai e atualmente seguidor do Mestre Yoshimitsu Yamada)
FONTE: O autor (2014)
33
O quadro acima demanda alguns esclarecimentos. Primeiramente é necessário
informar que os professores efetivamente entrevistados por ocasião deste estudo têm um
asterisco anotado ao lado de seus respectivos nomes. O nome do senhor Ichitami
Shikanai também possui um asterisco, pois esse Mestre – conforme já referido – foi o
único entre os pioneiros. Acima dos nomes e figuras dos imigrantes japoneses que
aportaram no Brasil trazendo o aikido, constam os nomes e imagens de seus respectivos
mestres, com quem aprenderam a “arte da paz”. São eles os senhores Aritomo
Murashigue, Hiroshi Tada e Yassuo Kobayashi. Optou-se por incluir esses Shihans12
no
quadro acima, visto que seus nomes foram citados em diversas entrevistas.
Outro esclarecimento oportuno é que além dos participantes apontados acima,
outros professores que tiveram ligação com um dos mestres pioneiros do aikido no
Brasil, também foram entrevistados, no entanto, em função do volume de material
transcrito e do risco de subaproveitamento de seus relatos, uma delimitação se fez
necessária. Dessa forma, constam no quadro da página anterior apenas os nomes dos
professores de aikido mais próximos a cada um dos mestres imigrantes. As
características de cada entrevistado e o nível de ligação que mantinham com seus
respectivos mestres, serão exploradas com maior profundidade no capítulo 2. O que
cabe para o momento é indicar que a composição do grupo de entrevistados aqui
listados, procurou privilegiar de forma concomitante, a singularidade de cada relato e a
polifonia a respeito da presença do aikido no Brasil. Assim, é possível encontrar, por
exemplo, as memórias do genro (Matias de Oliveira) e da filha caçula (Lilba Kawai de
Oliveira) do senhor Kawai, em contraste com as recordações de um de seus ex-alunos, o
Professor Ricardo Leite da Silva13
. Da mesma forma, as narrativas do Mestre Ichitami
Shikanai, e de seu principal seguidor, o Professor Bento Guimarães, são colocadas em
paralelo com as lembranças do Professor Adélio Andrade, que ao invés de seguir sendo
orientado pelo senhor Shikanai após sua chegada ao Brasil, optou por estabelecer um
grupo próprio de aikido, enquanto que o Professor Bento decidiu seguir sendo orientado
pelo novo mestre. A dissonância, portanto, foi valorizada não com o objetivo de tentar
12 A expressão japonesa Shihan tem o significado de mestre de mestres. Trata-se de um título conferido somente pela
Fundação Aikikai do Japão, instituição criada pelo filho do fundador do aikido para dar continuidade no legado
marcial de Morihei Ueshiba. A concessão do título de Shihan segue critérios internos da Fundação Aikikai e não
está atrelada necessariamente ao nível de graduação do mestre. Devido a isso, não é incomum verificar mestres
com 6º grau de faixa preta em aikido que portam tal título, ao passo que há mestres com 8º que não são
considerados Shihans. 13 O professor Ricardo Leite da Silva, apesar ter sido aluno do senhor Reishin Kawai, desligou-se do mesmo em
1990 e desde então tem sido orientado pelo mestre Yoshimitsu Yamada, residente nos Estados Unidos. Os motivos
para esse rompimento entre aluno e mestre, e seus respectivos significados subjacentes, serão explorados
oportunamente no capítulo 2.
34
alcançar alguma verdade ou consistência nas lembranças dos entrevistados, mas como
um recurso de valorização das peculiaridades de cada relato. Para tanto, as memórias
reunidas ao longo dos capítulos seguintes, não foram consideradas como versões sobre
o passado, mas como relatos, narrativas ou descrições sobre eventos vividos direta ou
indiretamente. Essa forma de classificar as recordações dos entrevistados foi extraída de
uma reflexão registrada por Alberti (2012). Nesse sentido, a autora aponta que se deve
[...] evitar que se tome “versão” como algo muito particular, como em “Essa,
é a minha versão dos fatos” (frase que também tem um tom de reivindicação
da verdade), ou então como algo menor, suscetível de erro, como em “Ah,
isso é a versão dele!” (ALBERTI, 2012, p.163).
Na sequência dessas explicações, é necessário acrescentar outro dado relevante,
a diferença etária entre os entrevistados. A diferença de idade entre os professores aqui
entrevistados está associada à sua participação direta ou indireta nos primórdios do
aikido no Brasil. Entretanto, é necessário considerar que a chegada da “arte da paz” em
terras brasileiras não está condicionada a uma data determinada, isso porque cada um
dos mestres pioneiros chegou num período diferente. Dessa forma, as lembranças dos
entrevistados mais velhos, como é o caso dos Professores Adélio Andrade e Bento
Guimarães, foram relativizadas em relação aos relatos dos narradores mais jovens. Esse
cuidado, também foi adotado na análise da narrativa do Mestre Shikanai que descreveu
por si mesmo suas impressões e percepções sobre sua chegada em solo brasileiro e
também sobre o início e o desenvolvimento de seu trabalho com o aikido.
Observando as considerações acima, pode-se dizer que a ausência da experiência
pessoal por parte dos professores mais jovens em eventos relativos ao início do aikido
no Brasil, não reduziu o valor e o significado de suas reminiscências. Isso porque, a não
participação de um indivíduo numa determinada situação ou circunstância, pode contar
com memórias transmitidas de forma indireta. Trata-se do que o sociólogo Maurice
Halbwachs examina no plano da memória individual:
Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às
lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora
de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da
memória individual não é possível sem esses instrumentos que são as
palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de
seu ambiente. (HALBWACHS, 2006, P.72).
35
Ainda nesse sentido, pensando nas diversas maneiras de transmissão da memória
individual enquanto possibilidades não isoladas ou fechadas, Michael Pollak (1992)
expõe a noção de “acontecimentos vividos por tabela”. De acordo com o autor, esses
São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no
imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase
impossível que ela consiga perceber se participou ou não. Se formos mais
longe, a esses acontecimentos vividos por tabela, vêm se juntar todos os
eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou grupo.
É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da
socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação
com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase
que herdada. (POLLAK, 1992, p.201).
Mais do que relatos sobre eventos pregressos, o que se observa nesse tipo de
recordações, são as formas de apropriação e os sentidos conferidos ao passado por
diferentes sujeitos.
Essas são apenas características iniciais a respeito dos professores que
participaram desta pesquisa, sendo que maiores informações, sobretudo, referentes às
suas respectivas situações de entrevista, serão abordadas conforme a apresentação de
suas narrativas nos capítulos seguintes.
No processo de transcrição das gravações, foram utilizadas – com certa reserva –
algumas das diretrizes presentes no “Manual de História Oral” da autora Verena Alberti
(2005). A reserva a que se faz alusão, diz respeito ao posicionamento epistemológico
rigoroso adotado por Alberti, que defende uma transcrição “fiel” àquilo que foi gravado.
De acordo com a autora, além da transcrição, o processamento de uma entrevista
compreende outras duas etapas: a conferência de fidelidade, e o copidesque (ALBERTI,
2005). Considerando-se que a própria atividade transcritiva implica em grande perda de
elementos que não podem passar para a forma escrita como, o ritmo da fala, a entonação,
a gestualidade, as hesitações, etc. é no mínimo ingênuo acreditar que uma transcrição
possa reproduzir sem perdas semânticas consideráveis aquilo que foi gravado. E, se
acrescentadas as etapas subsequentes – conferência de fidelidade e copidesque –
conforme recomenda Alberti, inevitavelmente o resultado final do processamento será
um texto editado e reeditado, provavelmente bastante diferente da exposição oral do
entrevistado.
Literalidade e fidelidade são expressões que segundo Portelli (1997) não
condizem com o ofício do historiador oral. Nesse sentido, o pesquisador italiano afirma
que
36
É preciso lembrar que qualquer transcrição torna-se, automaticamente, uma
forma de manipulação. Simplesmente não acredito na transcrição perfeita,
não acredito sequer na fita perfeita. [...] Simplesmente não existe nenhuma
reprodução neutra de qualquer evento. Em vista disso, creio que não
deveríamos nos empenhar tanto em conseguir a neutralidade, mas em deixar
clara a manipulação e, por conseguinte, buscar menos a reprodução do que a
representação. São, porém, coisas diferentes. (PORTELLI, 1997, p. 39).
Ou seja, a transcrição é sempre uma prática arbitrária, que diz mais a respeito do
pesquisador, do que sobre seus entrevistados. Isso ocorre em função de todas as
operações realizadas a fim de tornar o texto transcrito inteligível e preservar, ainda que
timidamente, um pouco da riqueza e vividez da fala.
Levando em conta essas e outras ponderações referentes ao processo de
passagem do oral ao escrito, optou-se como já referido, por lançar mão de alguns dos
procedimentos presentes na obra de Alberti (2005). Entre as diversas orientações
metodológicas indicadas pela autora, o que foi observado no processo de transcrição das
entrevistas realizadas para este estudo, foi o uso das marcações.
Na passagem de narrativas orais para a forma escrita, muitas vezes pode ser
necessário lançar mão de marcações que informem o leitor sobre elementos
que ultrapassam o conteúdo estrito das palavras proferidas. Essas marcações
tem a função de suprir algumas deficiências que resultam da passagem do
documento para a forma escrita: uma vez que não é possível, no documento
escrito, reproduzir o tom de voz, seu ritmo, a pronúncia das palavras etc., ao
menos se pode procurar fornecer outros indícios que complementam a
simples leitura das palavras enunciadas. (ALBERTI, 2005, p.178).
Abaixo, pode ser observado o quadro com as marcações realizadas nas
transcrições apresentadas ao longo desta dissertação. Ressalte-se que nem todas as
marcações propostas das pela autora foram utilizadas, assim como é necessário informar
que foram incluídas marcações criadas pelo próprio pesquisador a fim de conferir maior
legibilidade a algumas das transcrições.
QUADRO 2 – MARCAÇÕES UTILIZADAS NAS TRANSCRIÇÕES
Palavras
estrangeiras
Palavras estrangeiras e expressões idiomáticas foram registradas em itálico.
Ênfases
Palavras ou trechos que receberam destaque durante a gravação foram grifadas em
negrito. Nos casos de palavras estrangeiras, principalmente japonesas, enfatizadas pelos
entrevistados, sua marcação foi registrada simultaneamente em negrito e em itálico.
37
QUADRO 2 – MARCAÇÕES UTILIZADAS NAS TRANSCRIÇÕES (Continuação)
Silêncio
A marcação [silêncio] é feita entre colchetes, e reserva-se apenas aos casos em que a
duração da pausa for maior e chamar a atenção do entrevistador. Pausas curtas, comuns
na linguagem falada, devem ser marcadas pela pontuação usada na linguagem escrita.
Riso(s)
Nesse caso, há duas situações de marcação: a primeira, em que ri apenas a pessoa que
está falando, e a segunda, em que riem entrevistador e entrevistado(s). Elas
correspondem às formas [riso] e [risos], respectivamente.
Emoção
Como o riso, as lágrimas também acrescentam significado à expressão verbal e devem
ser marcadas para transmitir ao leitor da entrevista o envolvimento e os sentimentos do
entrevistado em relação a determinado assunto. E não só as lágrimas expressam esse
envolvimento, como também um tom de voz claramente emocionado. As emoções
também são marcadas entre colchetes: [emoção].
Enunciados
incompletos
Os enunciados incompletos foram marcados com reticências...
Palavras
erradas
Foram mantidas apenas as palavras erradas que eram fundamentais para a compreensão
do sentido da narrativa do entrevistado.
Omissões Foram omitidas com cautela palavras e expressões que não contribuíam diretamente para
a inteligibilidade da transcrição.
Notas
Eventualmente foram inseridas notas com a finalidade de traduzir para a forma escrita
situações percebidas no momento da entrevista. Outras informações referentes ao
contexto de cada uma das entrevistas e às características dos entrevistados foram
inseridas no próprio texto desta dissertação, antes ou depois do trecho transcrito.
Inaudível Quando na passagem das entrevistas para a forma escrita, foi impossível identificar,
mesmo após várias tentativas, aquilo que o entrevistado falou. Essa marcação é feita
entre colchetes: [inaudível].
Prosopopeia Os trechos em que o entrevistado dá voz e/ou imita pessoas ausentes, ou já falecidas,
foram registrados entre “aspas”.
Supressões Foram suprimidos quando usados em excesso: titubeações, cacoetes de linguagem, o
vocábulo “que”, e pronomes retos.
Pequenos
acréscimos
Foram acrescentadas conjunções, preposições, etc. quando necessárias para uma melhor
compreensão da transcrição. Acréscimos relativos ao contexto da entrevista foram
inseridos na transcrição entre [colchetes].
FONTE: Modificado de Alberti (2005)
Nem todas as marcações indicadas pela autora constam no quadro acima. Além
disso, com a finalidade de não sobrecarregar as transcrições, optou-se por adotar o
mínimo de marcações possível.
Além de todas essas modificações resultantes do confinamento do discurso oral
em um texto escrito, ainda foi adotada uma forma de apresentação das narrativas dos
38
entrevistados, que viabilizasse a possibilidade de discussão teórica de suas memórias.
Sendo assim, os relatos dos professores de aikido que participaram desta pesquisa,
foram cortados, costurados, colados, remontados, editados e reeditados. Aparentemente,
essa clivagem pode parecer um tanto extravagante, mas trata-se de um tipo de
procedimento alinhado com os cânones da história oral contemporânea, a qual visa,
sobretudo, por em evidência os sentidos atrelados aos processos de subjetivação da
realidade. Esse tipo de procedimento, não pertence apenas à história oral, visto que pode
ser encontrado no tratamento dado a outros tipos de fontes históricas. O que ocorre, é
que no caso do trabalho com fontes orais essa forma de intervenção é potencializada,
sem no entanto, esvaziar os significados presentes nas lembranças dos entrevistados.
Esse processo de edição até o formato final de publicação, pode em alguma medida, ser
aproximado do conceito de “trabalho de enquadramento da memória” de Pollak (1992,
p.206):
Por conseguinte, o trabalho de enquadramento da memória pode ser
analisado em termos de investimento. Eu poderia dizer que, em certo sentido,
uma história social da história seria a análise desse trabalho de
enquadramento da memória. Tal análise pode ser feita em organizações
políticas, sindicais, na Igreja, enfim, em tudo aquilo que leva os grupos a
solidificarem o social.
De acordo com Pollak, o próprio historiador – e isso vale para pesquisadores de
outras áreas – realiza de forma mais ou menos parcial esse tipo de trabalho, que põe em
evidência aquilo que ele pretende explorar por meio de suas incursões teóricas.
Outro ponto a ser descrito, é que as fontes orais aqui registradas foram
construídas em conjunto com o pesquisador. Respeitando, portanto, o caráter dialógico
do material aqui apresentado, de acordo com as circunstâncias, as perguntas que
produziram suas respectivas narrativas foram incluídas. Portelli (2010) explica que a
inclusão eventual das perguntas, serve para lembrar ao leitor, que o pesquisador tem um
papel fundamental na modulação dos relatos dos entrevistados, isso porque as pessoas
não começam simplesmente a falar, sem nenhum estímulo, sem nenhuma forma de
provocação. Nessa linha de raciocínio, a narrativa do entrevistado é de acordo com
Portelli (2010), sempre uma performance que tem como ponto de partida a presença do
entrevistador.
Outra consideração oportuna é que as expressões, memória(s), identidade(s),
prática(s), representação(ões) e apropriação(ões) foram ora designadas como conceitos e
ora como noções ao longo da presente dissertação. Essa forma de emprego de cada um
39
desses termos reflete em alguma medida as constantes retomadas e novas reflexões
propostas por diferentes áreas das ciências humanas que pesquisam indivíduos e
coletividades. Cada uma dessas noções e/ou conceitos serão descritas e aprofundadas
oportunamente nos capítulos que se seguem.
40
3 BURAJIRU14
: MISSÃO, DESTINO E ACASO
O presente capítulo tem por objetivo explicitar a variedade de memórias e seus
múltiplos sentidos, relativos à chegada do aikido ao Brasil. Ganham destaque nesta
seção, os significados não compartilhados sobre as motivações que trouxeram cada um
dos mestres pioneiros ao Brasil. As recordações dos entrevistados evidenciam o papel
ativo e a natureza processual da memória. De forma indireta, as narrativas aqui
presentes descrevem a inauguração de um novo campo15
no cenário marcial brasileiro.
Como a chegada do budō de Morihei Ueshiba está diretamente associada às
trajetórias individuais dos mestres pioneiros que aportaram em território brasileiro, os
trechos selecionados para compor este capítulo versam mais sobre os vários sentidos
atribuídos às motivações de seus processos migratórios e às suas dificuldades iniciais de
adaptação. Conhecer essas memórias implica em compreender desdobramentos
narrativos posteriores, que reivindicam a tradição e a oficialidade do aikido em solo
brasileiro.
Privilegia-se nesta seção, portanto, a singularidade de cada relato, de cada
memória, no lugar da consonância e dos significados compartilhados. Corroborando
com tal perspectiva de análise, Portelli (1997, p.16) explica que embora as fontes orais
estejam sempre moldadas “[...] de diversas formas pelo meio social, em última análise,
o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais.”
A título de esclarecimento, é cabível informar que os relatos registrados neste
capítulo têm uma ordem diversa em relação à realização das entrevistas. Com a
finalidade de conferir maior clareza textual, optou-se por manter a cronologia – já
consolidada nas fontes previamente consultadas – a respeito da chegada de cada um dos
mestres pioneiros ao nosso país. Assim sendo, as narrativas a seguir versam
primeiramente sobre o senhor Reishin Kawai, que foi sucedido por Teruo Nakatani, e
esse pelo Mestre Ichitami Shikanai.
Oriundo da província de Shimane localizada no sudoeste do Japão, Munenori16
Toshio Kawai, ou simplesmente Reishin Kawai como ficou conhecido posteriormente,
14 “Brasil” na língua japonesa. 15 A expressão campo está sendo utilizada de acordo com o a conceituação de Pierre Bourdieu. 16 Em matéria intitulada “A arte da paz – teoria e prática” publicada na Revista Kiai, ano V, n. 34, p. 28 – o Professor
Herbert Gomes Pizzano do grupo Aikido Ceará, discípulo do Mestre Reishin Kawai explica a mudança de nome
de seu Sensei: “Seu nome de nascimento é Toshio; Munenori é o nome que lhe deu seu Mestre Saito Torataro.
Finalmente Reishin é seu nome espiritual dado por Kassa Sensei, hoje com 103 anos de idade e sua orientadora
nos caminhos do Espírito há pelo menos 30 anos.”
41
foi o primeiro a aportar em terras brasileiras. Nesse sentido, o título de Sensei é
duplamente merecido, visto que essa expressão japonesa porta simultaneamente o
significado de Mestre ou Professor e indica na sua forma literal “aquele que veio antes”,
ou “aquele que chegou primeiro”. Não obstante sua posição na ordem de chegada, os
motivos que trouxeram Kawai Sensei ao Brasil, são apresentados com uma variação tão
rica, mesmo para pessoas próximas como seu genro, o Professor Matias de Oliveira e
sua filha caçula, a Professora Lilba Kawai de Oliveira, continuadores de seu legado
marcial.
A entrevista com o genro do senhor Kawai foi a primeira realizada na cidade de
São Paulo, local onde o Mestre pioneiro fixou residência. Diferentemente dos outros
entrevistados, o Professor Matias – no contato prévio para o agendamento de sua
entrevista – teve o cuidado de solicitar o roteiro de perguntas para analisar com calma as
questões e tópicos contemplados pelo roteiro. A esposa do Professor Matias por sua vez,
foi entrevistada ao final da mesma semana17
, entretanto, sua entrevista contou com a
presença atenta do marido, que em diversos momentos interveio, acrescentando novas
informações, corrigindo relatos e realizando admoestações sobre o que era melhor ser
deixado de lado. A preocupação apresentada pelo genro do Sensei Kawai é justificável,
sobretudo, pela posição que o entrevistado ocupa – como secretário-geral – na
instituição criada por seu sogro para a difusão do aikido, a União Sul-americana de
Aikido Kawai Shihan.
Observadas essas informações de ordem contextual, é possível estabelecer uma
primeira distinção entre as memórias do Professor Matias e aquelas relatadas pela filha
do Mestre Kawai. Enquanto os relatos do genro do senhor Reishin apresentam traços
característicos de uma memória pública, ou seja, sem indícios que possam macular ou
expor a vida do Sensei Kawai, a narrativa da Professora Lilba, tem um nível menor de
organização, e apresenta frequentemente profundas marcas afetivas. Dois recortes
narrativos que evidenciam os apontamentos anteriores podem ser constatados a partir
das diferenças de enquadramento realizadas pelo Professor Matias, e por sua esposa
quando questionados sobre como Kawai Sensei chegou ao Brasil e o que motivou sua
vinda para cá.
Então o Kawai Sensei, quando ele [inaudível] conhecer o mundo e voltar e
ser um político, se candidatar a deputado. E ele veio para o Brasil andou por
aqui e depois foi para a Europa, e lá ele teve um encontro com o pessoal do
aikido e tal. Aí que foi designado o [Mestre Aritomo] Murashigue falou
17 10/04/2013.
42
assim: “Você vai tomar conta do aikido na América do Sul! Lá no Brasil e
tal...” E daí ele na época, eu acho que não tinha, estava meio sem... sem
muito que fazer da vida, estava meio indefinido assim... E ele gostou do
Brasil quando esteve por aqui. Gostou do clima e tal. Ele acabou que quis
voltar para o Brasil. Então ele teve motivo para vir para o Brasil. Então ele
ficou aqui... O Murashigue na época era assim... um dos pilares lá da Aikikai.
Então ele voltou com esse intuito, depois esse Murashigue Sensei acabou
sofrendo um acidente na Bélgica e faleceu, alguns anos depois. Mas esse
Murashigue era um samurai assim, lutou na 2ª Guerra, matou muita gente
com a espada sabe? [riso] Era um cara muito respeitado lá. E ele chegou a
treinar com o Murashigue uma época, e o Murashigue também era muito
conhecido do Saito Torataro que era Professor do Kawai Sensei. O Kawai
Sensei não treinou apenas aikido [e] aikijujutsu, ele treinou muitas outras
coisas com esse Sensei.
Algumas características bastante interessantes podem ser observadas no relato
acima. Primeiramente, o efeito de sentido de distanciamento em relação ao sogro pela
forma de tratamento empregada pelo narrador ao longo de todo o seu relato. Ou seja, no
lugar de uma modalidade pessoal de referência, prevalece a modalidade institucional
“Kawai Sensei”. Essa poderia ser uma característica apenas do trecho selecionado, no
entanto, a forma de referência/reverência ao sogro, é a mesma em quase seis horas de
gravação. Além dessa característica, subjaz no discurso do entrevistado um sentido de
incumbência, de missão, em relação aos motivos que trouxeram o senhor Reishin Kawai
ao Brasil. Recorrendo a um dos conceitos de Pierre Bourdieu (1983), é possível indicar
na passagem acima, um processo de delegação que teve por finalidade legitimar a
transmissão do capital delegado por Murashigue Sensei ao Mestre Kawai:
O capital pode ser autoridade universitária, prestígio intelectual, poder
político, força física, segundo o campo considerado. O porta-voz autorizado,
é detentor ou em pessoa (e trata-se de carisma) ou por delegação (e trata-se
do sacerdote ou do professor) do capital institucional de autoridade que faz
com que se lhe atribua crédito, com que se lhe conceda a palavra.
(BOURDIEU, 1983, p.147).
Para melhor compreender a relação de delegação – uma espécie de investidura
na interpretação do entrevistado – que conferia a Sensei Kawai o poder de representação,
e o capital necessário à sua missão em território brasileiro – são necessários alguns
esclarecimentos sobre o seu Mestre, o senhor Aritoshi Murashigue.
Aritoshi ou Aritomo Murashigue (1895–1984) como também era conhecido, foi
aluno direto do fundador do Aikido e recebeu do próprio Morihei Ueshiba, a
incumbência de divulgar o seu caminho marcial na Europa. Seu nível de graduação e a
natureza de sua delegação, conferiam ao Mestre Murashigue a permissão para realizar
exames de graduação e conceder outros títulos sem a prévia autorização do próprio
43
fundador. Dessa forma, o senhor Reishin Kawai foi designado a iniciar e difundir o
aikido em terras brasileiras. Não é à toa que os grupos e instituições filiadas à União
Sul-americana de Aikido Kawai Shihan, reclamam o título de “introdutor oficial” para
seu Mestre18
.
Observadas essas informações tanto a respeito do senhor Kawai, quanto sobre
seu Mestre, é possível recorrer a um apontamento de Portelli (2010c) para aprofundar
alguns aspectos sobre a relação de entrevista estabelecida com o senhor Matias de
Oliveira e das características de suas memórias:
A ideia de que existe um “observado” e um “observador” é uma ilusão
positivista: durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para o
narrador, o narrador olha para ele, a fim de entender quem é e o que quer, e
de modelar seu próprio discurso. A “entre/vista”, afinal, é uma troca de
olhares. (PORTELLI, 2010c, p.20).
Desse modo, a relação de entrevista é constituída não apenas por relatos de
ações passadas, mas por ações que ocorrem em uma relação dialógica no presente. Sob
essa perspectiva é possível compreender a forma como o Professor Matias descreve suas
memórias e se relaciona com o pesquisador. Sua entrevista não diz respeito apenas à
memória e aos seus significados, mas tem o efeito de produzir aquilo que o entrevistado
pretende frente ao seu ouvinte, neste caso o pesquisador. Alberti (2004) aprofunda essa
característica inerente às relações de entrevistas e explica a partir do referencial teórico
de Peter Hüttenberger (1992) que todo encontro dialógico, fruto do trabalho com fontes
orais, produz “resíduos de ações” que não se encerram quando o gravador é desligado,
pois o que ficou registrado – não apenas pelo gravador, mas também pelo entrevistador
– produz novos significados e tem o potencial de gerar novos efeitos, como por exemplo,
em quem lê o texto de uma narrativa transcrita ou ouve o arquivo que foi gravado. No
caso do senhor Matias, é possível entrever uma intencionalidade que visa apresentar o
sogro, ou melhor, o Sensei Kawai como alguém que encontrou simultaneamente seu
caminho marcial (o aikido) e sua missão (vir ao Brasil difundir a “arte da paz”).
Outras considerações poderiam ser tecidas acerca do relato do Professor Matias,
entretanto, é oportuno explicitar como sua esposa, a Professora Lilba Kawai, descreve
os motivos e as condições da viagem de seu pai ao Brasil.
Não obstante o olhar e a escuta atenta do marido, a caçula do senhor Reishin
institui outro nível de comunicação ao longo de sua entrevista. Contrariando o
18 Segundo o site da União Sul-americana de Aikido Kawai Shihan, o senhor Kawai é apontado como o introdutor
oficial do aikido no Brasil. Ver em: www.aikidokawai.com.br
44
estereótipo do japonês lacônico, sua fala é suave e não exige grande quantidade de
questões adicionais. Suas memórias têm um tom doméstico, mais afetivo, que além de
indicar outro tipo de relação – mais pessoal – chegam mesmo a ir de encontro à
narrativa do Professor Matias.
É que o meu pai ele veio assim, praticamente com a roupa do corpo para cá.
Daí meio que ele veio contra a vontade da família, tanto que eu não conheço
ninguém lá! Porque o meu pai foi tipo um desertor assim! Abandonou tudo
então... Ele era mal visto com a família de lá. Até hoje assim ele fala: “Se
você for lá, não vai ser bem recebida!” Porque que nem ele fala assim:
“Quando eu parti de lá, o correto seria assim, mesmo eu não tendo dinheiro
todo mês [eu devia] mandar dinheiro pra lá!” Só que ele não fez isso né?
Então ninguém respeitav... ninguém mais quer saber dele! Aí ele veio para cá,
com a roupa do corpo não foi? [esperando a confirmação do marido]
Ao invés da figura pública, exemplar, comumente apresentada pelas informações
publicadas pelos seus seguidores, o trecho acima cede espaço para uma imagem mais
humana do Mestre Kawai. Outro traço característico da narrativa da Professora Lilba é
que suas memórias são mais semânticas do que propriamente factuais, informando
menos a respeito de “eventos que sobre significados” (PORTELLI, 1997a). Sobre essa
característica das fontes orais, o historiador oral italiano ainda complementa explicando
que as
Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer,
o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez. Fontes orais
podem não adicionar muito ao que sabemos, por exemplo, o custo material de
uma greve para os trabalhadores envolvidos; mas contam-nos bastante sobre
seus custos psicológicos. (PORTELLI, 1997a, p.31).
Entretanto, a característica mais interessante – não apenas do fragmento
selecionado, mas de toda a entrevista da filha do Mestre Reishin –, é o uso frequente do
tempo verbal no presente ao falar sobre o pai. Ou seja, coexistem diferentes
temporalidades no discurso da entrevistada, que explica que seu pai veio ao Brasil num
passado determinado, mas “Até hoje assim ele fala: „Se você for lá, não vai ser bem
recebida!‟ ” Sobre esses múltiplos tempos que se sobrepõem na atividade memorial
Lowenthal (1998, p.65) explica que
Na verdade temos consciência do passado como um âmbito que coexiste com
o presente ao mesmo tempo que se distingue dele. O que nos une é nossa
percepção amplamente inconsciente da vida orgânica; o que nos separa é
nossa autoconsciência – o pensar sobre nossas memórias, sobre história,
sobre a idade das coisas que nos rodeiam. A reflexão freqüentemente
distingue o aqui e o agora – tarefas sendo feitas, idéias sendo formadas,
passos sendo dados – de coisas, pensamentos e acontecimentos passados.
45
Mas união e separação estão em contínua tensão; o passado precisa ser
sentido tanto como parte do presente quanto separado dele.
Outro trecho da entrevista realizada com a Professora Lilba, indica de forma
curiosa a interferência do pai em seu presente narrativo. Ao falar sobre algumas das
falhas que acredita que o genitor cometeu em seus esforços para difundir o aikido em
terras brasileiras, a entrevistada torna vívida a sua presença no tempo (momento) e no
ambiente da entrevista:
Olha pode ser o melhor Professor do mundo, pode ter a melhor filosofia, mas
se for arrogante... não prospera e fica doente! Meu pai sabe, meu pai... É
assim, nessa parte o meu pai errou muito! Eu sei, eu estou falando, ele vai
ficar brabo comigo, mas tudo bem! Meu pai foi muito arrogante. Teve uma
fase da vida dele que o ego encheu tanto, que assim, ele com toda a sabedoria
dele, sabendo que era errado, o ego falou mais alto...
Desvela-se nesse comentário, não o passado com os eventuais equívocos que
possam ter sido cometidos pelo senhor Kawai, mas uma relação contemporânea com o
pai que pode, inclusive, ocasionar uma repreensão. É oportuno indicar, aproveitando os
exemplos extraídos dos relatos da senhora Lilba, que todo processo de rememoração
implica num ato interpretativo contínuo. Dessa forma, em toda narrativa há um
componente subjetivo, por mais que o tema da entrevista esteja fora do horizonte
temporal do entrevistado. Por isso, as fontes orais são de acordo com Portelli (1997)
sempre parciais e implicam numa multiplicidade de pontos de vista, de discursos.
A história oral não tem sujeito unificado; é contada de uma multiplicidade de
pontos de vista, e a imparcialidade tradicionalmente reclamada pelos
historiadores é substituída pela parcialidade do narrador. “Parcialidade” aqui
permanece simultaneamente como “inconclusa” e como “tomar partido”: a
história oral nunca pode ser contada sem tomar partido, já que os “lados”
existem dentro do contador. E não importa o que suas histórias e crenças
pessoais possam ser, historiadores e “fontes” estão dificilmente do mesmo
lado. (PORTELLI, 1997, p.39).
A presença de Kawai Sensei é tão marcante nos discursos dos Professores
entrevistados em São Paulo que mesmo quando inquiridos de forma objetiva sobre
como “o aikido” chegou ao Brasil, seus relatos se desviam da prática marcial, para dar
lugar às memórias sobre o mestre.
R.L. – Eu não participei desse momento. Quando eu perguntava ao Kawai
Sensei ele ficava ofendido! Porque ele tinha muito orgulho do Saito Torataro
Sensei, que foi o Mestre de acupuntura dele, e ensinou o que ele sabia de
aikido basicamente, que me parece que era mais uma linha do Daito-ryu
[aikijujutsu] do que aikido. E que era um sujeito de importância social muito
46
grande, que atendia a família imperial num determinado ponto, [e que
também tinha ligação] nomes importantes da história do Japão, então era um
cara de altíssimo nível social, e ele era discípulo desse Mestre, e isso ele
contava com orgulho. Quando você entrava na linha do aikido já ele ficava...
ele colocava o Murashigue Sensei que foi o Mestre [dele] que faleceu na
França, um sujeito de grande nome no aikido também, parece que tinha muito
talento, era um cara bastante habilidoso e de alguma forma o apresentou ao
Japão [à Fundação Aikikai de Aikido no Japão], e intermediou a relação
[dele] com o Japão. Mas ele nunca... [entrou em detalhes] Então hoje você vê
na internet e o que eu posso dizer pra você, você também pode ver na
internet!
O relato acima é de um ex-aluno do senhor Kawai, Ricardo Leite da Silva. A
participação e os relatos do Professor Ricardo dão vazão a uma tensão há tempos latente
entre o ex-aluno, e seu antigo Mestre. Segundo o entrevistado, o início de seus
treinamentos está associado a um marco cronológico mais do que especial: “30 de
agosto de 1978, dia do meu aniversário, quando fiz 14 anos.”19
Ao conquistar seu título
de shodan, faixa-preta, em 1981, o Professor Ricardo que à época estava desempregado
e acabara de completar 18 anos, recebeu um convite do senhor Kawai para se tornar um
uchi-deshi, ou seja, um aluno interno. A vida de um uchi-deshi implicava numa espécie
de imersão no modo de vida e na cultura japonesa, pois esses aprendizes passavam a
residir junto com o mestre e sua família20
. O objetivo, no caso de Kawai Sensei, era
oferecer aos seus uchi-deshis uma estreita experiência de convívio – tomar as refeições
juntamente com o Sensei e seus familiares, realizar faxinas, rezar, etc. –, paralela ao
aprendizado de seus três ofícios: a acupuntura, o shiatsu e o aikido.
O rompimento entre o professor e o aluno é o mote de quase toda a entrevista,
mesmo quando as questões foram formuladas de maneira mais direta e específica. Esse
tipo de desvio, longe de destituir o valor da narrativa do professor Ricardo, confere a ela
novos contornos. Nesse sentido, Portelli (2010a, p.34) explica:
Eu penso que a coisa mais importante da entrevista não seja tanto aquela de
saber fazer as perguntas, mas seja aquela de saber escutar as respostas e
aceitar quando o narrador fala de coisas diversas daquelas que nós lhe
perguntamos. Porque tem coisas que nós queremos saber e tem coisas que os
narradores querem dizer, que nós lhes perguntamos ou não. E, portanto,
aceitar essa negociação, essa espécie de dança a dois.
As referências constantes aos conflitos decorrentes da experiência de convívio
com o antigo mestre, e certo ressentimento acumulado, deixam entrever na narrativa do
19 [00:01:35] 20 A experiência de convívio e treinamento do senhor Reishin com o seu mestre Saito Torataro no Japão, havia sido
vivenciada em circunstâncias semelhantes.
47
Professor Ricardo, uma característica que passa quase despercebida. Seu
enquadramento sobre como e quando o aikido chegou ao Brasil tem balizas temporais
fundadas em sua própria experiência. De alguma forma o aikido chegou ao Brasil
quando o entrevistado começou os seus treinamentos, ou seja, no dia “30 de agosto de
1978”. É como se antes disso, o aikido não existisse, pois a subjetividade do ex-aluno
de Kawai Sensei ocupa todo o espaço/tempo relativo aos primórdios do caminho
marcial de Morihei Ueshiba em nosso país.
A fala do Professor Ricardo segue, ainda em resposta à mesma pergunta. Sua
narrativa é monológica e segue um fluxo quase torrencial:
[...] eu costumo me perder, mas enfim... O Kawai Sensei eu já sabia que ele
não era o que mito o propunha! Jamais perdi o respeito por ele por isso! Eu já
participava de demonstrações para ele, que sempre foi um show-men, eu já
tinha que ajudar a sua expressão corporal no sentido de muitas coisas que ele
fazia... jogava a gente para o alto! Ele começou comigo, depois começou
colocar quatro ou cinco, outro dia eu vi um vídeo aí, não sei quantos tinham
em cima dele, ele dava uma barrigada e saía todo mundo voando! Isso é de
verdade, não é verdade? É mentira? O que é verdade, o que é mentira? Tudo
é relativo! Então eu cumpria com a minha função como discípulo, dando
coerência ao que o meu mestre estava fazendo! Mas era verdade ou era
mentira? O que você chama de verdade, o que você chama de mentira? Era o
que era! Era o que era... [...] O próprio Kawai Sensei nessas reuniões da
Federação [Federação Paulista de Aikido - FEPAI], no fim quem ficou mais
tecnicamente preparado na Federação foi Sensei Nishida, que foi um senpai
[veterano] que sempre me apoiou... Uma vez comecei ir ao dojo21
do Nishida
aos sábados, só que não deu tempo de avisar o Kawai Sensei, eu não tinha
arrumado o argumento necessário para apresentar a ideia, mas eu já estava
indo... Aí ele ligou pra minha casa, e eu era jovem ainda e morava com
minha mãe e minha mãe disse que eu estava na academia do Nishida [riso].
Quando cheguei ao dojo foi uma das broncas que ele me deu, dessas de: “Vá
embora!” Aí eu expliquei pra ele e [depois] ele reconheceu que o Nishida era
um cara que tinha um preparo técnico muito bom, um preparo didático muito
bom, e após [eu] praticamente fazer um haraquiri moral [risos] ele me
perdoou, e aceitou que eu fosse aos sábados no Nishida, que foi um senpai
que me ajudou bastante naquela época. [risos] Ele falava na própria
federação: “Quem tem aqui ki22
sou eu!” Porque ele realmente tinha uma
energia louca, maluca! [...] Ele era loucão, [mas] nessas loucuras algumas
coisas eu discordava muito. Quando ele era tirano, quando era ditador,
quando era preconceituoso, e tudo isso eu via! E eu também não sou nenhum
santo! Na situação social, naquela época tinha o AI5, então pra completar o
que eu queria dizer assim: “Quem tem ki aqui sou eu, quem tem técnica é o
Nishida!” Isso era público! Ele não ficava dizendo: “Eu sou bom de aikido!”
Não! [Ele dizia:] “Eu tenho ki, e sou eu que sou o representante do Doshu
Kisshomaru aqui no Brasil! Eu sou delegado oficial! E o Nishida tem técnica
boa sim, estudem com ele!” Didática, técnica... na época era o que tinha de
melhor.
21 Local (de iluminação) onde se pratica o caminho (marcial). Local de treinamento. 22 Energia sutil que preenche, alimenta e conduz o universo. A força vital que ilumina os seres vivos. Energia
espiritual, princípio criador fundamental.
48
Confluem na narrativa do ex-uchi-deshi do Mestre Kawai a velocidade narrativa
e o fluxo de informações. Mesmo com as mudanças de direção operadas no relato do
Professor Ricardo, é possível perceber um trabalho de estruturação narrativa que em
alguns momentos chega a parecer uma forma de justificar o rompimento com o seu
antigo Sensei. É importante também considerar que a presença do entrevistador – como
ouvinte e espectador – estabeleceu uma influência direta na modulação do discurso do
entrevistado. Isso porque o pesquisador tinha conhecimento sobre a ruptura entre o
mestre e o discípulo, mas também porque o Professor Ricardo foi informado que tanto o
genro, quanto a filha caçula do senhor Reishin Kawai iriam participar da pesquisa. Esse
tipo de influência é o que fez com que Michael Pollak (1992) classificasse a memória
como “um fenômeno construído”, pois de acordo com o autor
A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela
é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento
constituem um elemento de estruturação da memória. (POLLAK, 1992,
p.204).
Assim, é importante considerar a entrevista como uma experiência dialógica e
também performática, sobretudo por parte do narrador. A esse respeito, Portelli (2010a)
esclarece que o processo de recordar é uma performance que se estabelece por meio de
um diálogo, dessa forma, a fala do entrevistado não é produzida per se, mas que implica
num processo de comunicação mais amplo e não em meras respostas produzidas na
ausência de interação. Essas observações dos autores acima mencionados permitem uma
melhor compreensão para as inúmeras oscilações presentes na narrativa do ex-aluno do
Mestre Reishin.
Outra reflexão possível a partir das memórias do Professor Ricardo, pode ser
viabilizada a partir da relação entre a história oral e a terapia psicológica discutida por
Alberti (2004). Citando exemplos de pesquisas com fontes orais sobre o nazismo, a
autora reflete sobre a “vocação terapêutica” da história oral. Seu olhar é fixado,
sobretudo, no processo narrativo que tem como característica central a elaboração do
passado.
Ou seja, trata-se da ideia de trabalhar um acontecimento ou experiência para,
de alguma forma, superá-lo psiquicamente, como ocorre em uma terapia. A
elaboração do passado que sobressai de diversos estudos no campo da
história oral na Alemanha tem, pois, essa conotação; é como se a história oral
possibilita-se uma terapia coletiva. (ALBERTI, 2004, p.49).
Dessa forma, o espaço narrativo e a possibilidade de escuta, fazem com que as
ambiguidades e flutuações presentes no relato do Professor Ricardo como, por exemplo,
49
“O que cabe aqui dizer é o que eu aprendi com o Kawai Sensei, nada! Ele escondia
muito!”23
ou “Eu sou fã dele! Eu era apaixonado por ele! [Estou sendo] sincero!”24
guardem alguma coerência, já que o narrador encontrou no pesquisador e no espaço da
entrevista a possibilidade de elaborar seu passado.
Além das características já mencionadas, as memórias do narrador sobre os
primórdios do aikido no Brasil, também chamam a atenção pelo lugar que a destreza
técnica ocupa em sua percepção:
Era uma época bastante inicial ainda, realmente era muito importante. Ele
eventualmente ia para o Japão, eventualmente trazia uma informação ou
outra. Naquela época pra você ter ideia, filme super 8 era uma coisa rara, e
tinha que colocar a fita cassete para sincronizar com a imagem... Qualquer
informação era uma raridade, era um tesouro! Naquela época você chamava
mestre do outro lado do mundo, mas nem tinha [ainda] seminário [técnico],
mas a gente ficava preocupado onde põe o pé, onde põe a mão, o que é uma
coisa elementar! Eu já era 3º Dan quando consegui licença do Kawai Sensei
para copiar os filmes super 8 dele, passar pra vídeo. Eu fui a primeira pessoa
que passou para vídeo e deu para as pessoas aí no Brasil, porque todo mundo
dependia dele liberar os vídeos super 8 que ele tinha lá. O resto era tudo de
um livro! Os livros do Saito [Morihiro]25
... Esses eram os mestres que a gente
tinha! Fitas super 8 eventual, uma vez por ano, sem replay, sem nada... e livro
do Saito... Então imagine você ver uma técnica, não entender, esperar o ano
que vem e ver se cai de novo na sorte do Kawai Sensei, de ele passar aquela
técnica pra você ver se entendeu o que estava na fita! Então naquela época
era muito básico! O Nishida ia ao Japão, trazia uma informaçãozinha de
alguém que ele conversou, de uma aula que ele fez... E era básico, não era
uma riqueza enorme! Era uma riqueza enorme diante da pobreza enorme!
Então a gente ficava louco atrás dessas informações... Então a mão pra cá, a
mão para lá, o pé aqui... Quando hoje a gente estuda, isso aí você pega no
youtube, e não passa do elementar! Mas você precisa do elementar para
avançar!
Técnica, didática, raridade, riqueza, e pobreza são substantivos que atravessam o
discurso do Professor Ricardo, e que refletem – ainda que metaforicamente – suas
interpretações sobre o início do aikido em solo brasileiro. Entretanto, não se pode perder
de vista que o entrevistado fala a partir de seu ponto de vista, dessa forma a escassez e o
amadorismo presentes nas recordações do narrador além de indicar sua visão sobre a
falta de perícia técnica do senhor Kawai, também permitem entrever suas
predisposições e valores.
Com a finalidade de conferir certa dose de factualidade às suas recordações o
Professor Ricardo explica ao entrevistador – mas também a si mesmo – que o próprio
23 [00:47:38] 24 [00:53:18] 25 Morihiro Saito foi discípulo direto de Morihei Ueshiba e era responsável pelo seu dojo do fundador em Iwama,
uma aldeia a duas horas por trem de Tóquio.
50
Kawai Sensei assumia perante os outros suas limitações técnicas: “Isso era público!” O
suposto compartilhamento de opiniões a respeito do antigo Mestre não se dá no passado,
mas no presente, uma vez que a situação de entrevista estabelece uma relação concreta
de comunicação. Nessa perspectiva Contardo Calligaris (1998) registra uma
contribuição pertinente ao explicar que
[...] as condições de enunciação de uma mensagem se tornam tão importantes
quanto, ou mais importantes que, a mensagem mesma. [...] Ora, minha
observação – em uma perspectiva antropológica – é uma maneira de
descrever como, na modernidade ocidental, a verdade que importa é cada vez
mais a que está no sujeito, no foro íntimo do indivíduo, de onde se presume
que provenham a fala e escrita. Essa proposição quase não precisa de
demonstrações. É comum observar que nas artes modernas, por exemplo, o
valor da obra depende da conotação subjetiva, ou seja, da presença e da força
expressiva da subjetividade do artista, e cada vez menos das qualidades
intrínsecas do produto. (CALLIGARIS, 1998, p.45).
As memórias sobre a chegada do aikido ao Brasil a partir das impressões dos
Professores Matias de Oliveira, Lilba Kawai de Oliveira e Ricardo Leite da Silva
desvelam sentidos próprios e relacionados às experiências de convívio com o Mestre
Reishin Kawai. Em seus respectivos relatos, a figura do sogro, do pai e do mestre se
fundem com a própria presença do aikido no Brasil. Ou seja, é como se o senhor Kawai
fosse o próprio aikido. O Professor Matias Oliveira deixa isso evidente ao destacar
energicamente a importância do sogro no processo de introdução e difusão da “arte da
paz” em terras brasileiras:
[...] Praticamente todos no Brasil treinaram com ele, essas pessoas que
estão na ativa. Tiveram envolvimento com o Kawai Sensei. Eu diria que o...
Menos esse que está morando em São Paulo agora... Esqueci o nome dele...
E. – Teruo Nakatani?
M.O. – Nakatani, isso! Menos o Teruo Nakatani – que eu não tenho
informação sobre isso – todos os outros tiveram de certa forma uma
ajudinha do Kawai Sensei com relação ao aikido. Todos! Shikanai... Todos!
Esse pessoal da FEPAI, esses caras aí que estão... Todos treinaram com o
Kawai Sensei! Todos! Todos os 6ºs dans do Brasil, menos o pessoal do
Teruo Nakatani! Todos têm o dedo do Kawai Sensei com relação ao
aikido! Todos! Todos têm a influência do Kawai Sensei. Então, é mais ou
menos isso...
O desconhecimento da influência do segundo Mestre a aportar em território
brasileiro, o senhor Teruo Nakatani, e a relação de dependência de “Todos!” os
aikidoístas brasileiros – até mesmo do Mestre Ichitami Shikanai – proporcionam ao
51
discurso do Professor Matias, um efeito de sentido sobrelevação do senhor Kawai em
relação a seus conterrâneos.
A lacuna deixada pela aparente ausência de informações a respeito do papel do
Sensei Teruo Nakatani no desenvolvimento e consolidação do aikido em terras
brasileiras é o ensejo para explorar as memórias dos professores que tiveram alguma
ligação com esse mestre pioneiro.
Nascido em 31 de julho de 1932, na ilha de Hokkaido, ao norte do arquipélago
japonês, Nakatani Sensei iniciou seus treinamentos de aikido no Hombu Dojo, que além
de ser um local de treinamento, também é a sede da Fundação Aikikai do Japão. Criada
em 1948 pelo filho do fundador do aikido, a Fundação Aikikai é conhecida e
reconhecida como a entidade que detém o monopólio institucional sobre o aikido
“tradicional” – tanto no Japão, quanto internacionalmente –, pois vem sendo mantida
dentro da linha de sucessão familiar de Morihei Ueshiba. O reconhecimento de mestres
e de seus respectivos grupos ou instituições26
, assim como a validação de exames de
graduação a partir da faixa preta, são algumas das atribuições da Aikikai, como também
é simplesmente denominada.
Entre os Professores que tiveram contato direto com o Mestre Nakatani e que
participaram da presente pesquisa estão os senhores Bento José de Freitas Guimarães,
Adélio Mendes de Andrade, e o Sensei Ichitami Shikanai. Entre esses Professores, o
primeiro a tomar a vez para falar sobre o início do aikido no Brasil é o Professor Bento
de Freitas Guimarães. Recolhido no Vale das Araras, na região serrana de Petrópolis, o
Professor Bento, é um dos aikidoístas mais antigos e respeitados do Rio de Janeiro. Sua
casa, localizada em meio a uma extensa área verde de mata atlântica, longe do centro de
Petrópolis, conta com um dojo nos fundos de sua propriedade, onde são ministrados
treinamentos, gashukus que são práticas ao ar livre, junto à natureza, e outros tipos de
encontros promovidos pela Associação Carioca de Aikido27
.
Com um ar severo e bastante desconfiado, o Professor Bento Guimarães começa
sua entrevista com respostas lacônicas que pareciam afastar qualquer possibilidade de
26 Há grupos de aikido que não têm o caráter de uma federação, sobretudo, em função de seu número de aikidoístas.
As federações já possuem uma forte conotação institucional e diferenciam-se pelo seu grande contingente de
filiados. Há ainda confederações de aikido, as quais abarcam todas as federações de uma determinada extensão
territorial, como é o caso, por exemplo, da União Sul-americana de Aikido criada pelo Mestre Reishin Kawai. 27 O Aikido Rio de Janeiro é uma associação que congrega diversas academias no estado do Rio de Janeiro sob a
supervisão do seu Presidente, o Professor Ichitami Shikanai, 7o Dan, representante da Fundação Aikikai em
Tóquio, Japão. O Presidente Honorário da associação é o Professor Teruo Nakatani, precursor do aikido no Rio de
Janeiro. Disponível em: <http://www.albertoaikidorj.com.br/aikidorj.html>. Acesso em 20 de maio de 2014.
52
uma experiência efetivamente dialógica como geralmente preconizam os manuais de
história oral.
E. – Quando foi que o senhor começou a treinar Aikido?
B.G. – Eu comecei em... 72. Com o Professor Nakatani.
E. – O senhor lembra o local onde o senhor começou os seus treinos?
B.G.- Foi Barata Ribeiro, Copacabana! [silêncio] Precisamente assim, não
sei dizer.
Ao invés de um espaço de narração compartilhado, a evidência mais clara do
encontro com o professor Bento Guimarães é, ao menos inicialmente, a diferença.
Entretanto, como afirma Portelli (2010b) a arte do diálogo é uma arte de paciência, de
flexibilidade, e pouco a pouco o laconismo e a desconfiança do entrevistado são
substituídos por um discurso eloquente, com uma estruturação narrativa bastante
elaborada.
E. – O senhor sabe me dizer o que motivou a vinda dele [do Sensei Teruo
Nakatani] ao Brasil? Se foi trabalho, se foi o próprio aikido?
B.G. – Ele... Bom eu não sei, eu acho que eu ouvi falar, eu não sei de... mas...
Era um problema econômico dele, entendeu? Parece que tinha a ver com
algum problema... Alguma coisa política também, alguma militância dele lá,
política. Ele andou desagradando lá certos grupos, alguma coisa assim, e aí...
Ele saiu de lá meio que apressado. Tanto que ele fez um curso rápido de
aikido entendeu? No Japão. Ele fez um curso rápido. Inclusive com o próprio
Ueshiba, Morihei Ueshiba. Consta isso que o Ueshiba deu umas... umas aulas,
um curso instantâneo pra ele [riso]. E aí foi isso! Agora eu acho que ele e o
Kawai começaram mais ou menos na mesma época, um em São Paulo e o
outro aqui [no Rio de Janeiro]. Tenho a impressão que foi mais ou menos no
mesmo período. [...] E lá ele estava sem muita perspectiva... Então ele, foi
mais ou menos como o Professor Shikanai também. Não tinha assim um...
Não tinha uma ocupação assim, sólida. Ele estava solto na vida, e lá as
perspectivas eram muito mais complicadas, inclusive na área de arte marcial.
Então aqui era uma [oportunidade], né? Tinha uma oportunidade estava toda
linha aberta, a maioria... O Nakatani veio para cá e se tornou pioneiro, junto
com o Kawai. Não havia... no Rio de Janeiro... Acho que com o Kawai foi a
mesma coisa. O Rio de Janeiro só tinha o Nakatani mesmo naquela época!
Ninguém sabia o que era o aikido.
As reminiscências do Professor Bento permitem divisar como dúvidas e certezas
podem coexistir em uma mesma narrativa oral. A expressão inicial de sua incerteza
denota num nível performativo, um cuidado com as informações que estão sendo
transmitidas, como se o entrevistado só falasse ou só pudesse falar a respeito daquilo
que realmente sabe. A hesitação, além de ser um traço característico do princípio de
cada relato do Professor Bento, pode ser interpretada como um expediente discursivo
53
que visa conferir à própria narrativa um caráter de factualidade, de certeza. Entretanto,
conforme afirma Lowenthal (1998, p.87 – 88),
[...] não há confiança que ateste a veracidade de nenhuma lembrança
específica. Lembrar-se de algo é, na melhor das hipóteses, considerá-lo
provável; embora suas consequências presentes ou futuras possam confirmar
algumas lembranças, elas somente podem ser confirmadas quando
comparadas com outras recordações do passado, nunca com o passado em si.
Corroborando com essa perspectiva de Lowenthal, Portelli (1996) explica que o
que se deve colocar em questão na análise das fontes orais não é a certeza dos fatos,
pois não há segurança sobre as memórias de quem quer que seja. Entretanto, de acordo
com o autor italiano, o que é indiscutível nas narrativas orais é a “certeza dos relatos”,
ou seja, aquilo “[...] que nossas fontes dizem pode não haver sucedido verdadeiramente,
mas está contado de modo verdadeiro.” (PORTELLI, 1996, p.4)
As afirmações do Professor Bento terminam quase sempre com interrogações
como condições de confirmação. Todavia, essa característica está associada ao início de
sua entrevista onde uma relação de confiança mínima, entre entrevistador e entrevistado
precisa se estabelecer. O encontro de gravação com o Professor Bento Guimarães traz à
tona a reflexão sobre quem está no controle da entrevista, pois o entrevistado percebe
que suas palavras deixarão Teresópolis e serão “faladas” por outra pessoa, nesse caso o
pesquisador. Portelli (2010) chama a atenção para essa característica da pesquisa com
fontes orais, especialmente no que diz respeito às assimetrias de poder entre
entrevistador e entrevistado, tanto no momento da entrevista, quanto posteriormente no
processo de transcrição, na preparação dos textos, e em sua publicação.
Outra característica que pode ser verificada a partir da narrativa do Professor
Bento, é a forma como o entrevistado aproxima, a partir de suas impressões, os motivos
que trouxeram não apenas o senhor Teruo ao Brasil, mas também os Mestres Reishin
Kawai e Ichitami Shikanai. “E lá ele estava sem muita perspectiva... Então ele, foi mais
ou menos como o Professor Shikanai também. Não tinha assim um... Não tinha uma
ocupação assim, sólida.” “Acho que com o Kawai foi a mesma coisa.” Em alguma
medida, na consciência do entrevistado, os passados dos três pioneiros ganham
contornos de motivações compartilhadas e têm um único e mesmo destino comum, o
Brasil. Considerando que a memória é idiossincrática e cria significados pessoais para
diferentes acontecimentos, é possível afirmar a partir da interpretação do professor
54
Bento Guimarães, que não só Brasil era uma possibilidade para os mestres precursores,
mas também seu passado individual.
A entrevista continua e o entrevistado complementa seu relato a respeito do
antigo mestre,
É ele não era um professor profissional, o Nakatani, entendeu? Ele estava
dando aula de aikido quase que forçado! É quase forçado porque... É num
determinado momento... Se não me engano foi, não sei nem se foi o Mehdi, o
professor George Mehdi28
, um professor de judô muito famoso no Brasil. O
Mehdi é que instigou ele, que insistiu com ele pra ele dar aula de aikido, ele
não queria, porque ele achava que o aikido dele não era essas coisas e tal...
E... Mas no Rio ele seria o primeiro né, não tinha ninguém dando aula; então
era um mercado a ser aberto! E aí ele começou, mas ele nunca foi um
entusiasta sabe? [riso] Por isso que ele sempre ficava assim, não usava
hakama29
essas coisas assim, ele era... É que a cabeça dele era de judô eu
acho sabe? No fundo a cabeça dele era de judô! Mas o aikido dele era forte!
Ele era aquele japonês da velha geração... Eu quando comecei a fazer aikido
um pouquinho antes, ocorreu um episódio que saiu até no jornal, ele foi
assaltado no Rio, dois caras assaltaram ele, e ele partiu pra cima dos caras! O
Nakatani era um cara corajoso!
Relacionando os elementos internos do trecho acima, é possível verificar que o
Professor Bento iniciou seus treinamentos algum tempo depois que o senhor Nakatani
havia começado a ministrar aulas de aikido na capital carioca. Como pois, o narrador
poderia saber se o Sensei Teruo estava dando aulas de aikido “quase que forçado”?
Nesse sentido, é cabível recordar conforme afirma Portelli (1996) que o ato de relatar
memórias é indissociável de sua interpretação. Dessa maneira, o entrevistado partindo
de impressões pessoais, e provavelmente de relatos de terceiros, quem sabe até mesmo
do antigo Mestre, estabelece hipóteses particulares sobre o início do aikido no Rio de
Janeiro. Suas metáforas para definir esse período são retiradas do mundo do trabalho,
assim, mesmo não sendo um “Professor profissional” o Sensei Nakatani tinha “um
mercado a ser aberto” já que não havia outros professores de aikido no mesmo período
na capital carioca. O conhecimento de algumas informações referentes à biografia do
Professor Bento permite compreender como
Mudanças que tenham subseqüentemente tomado lugar na consciência
subjetiva pessoal do narrador, ou em sua situação sócio-econômica, podem
afetar, se não o relato de eventos anteriores, pelo menos a avaliação e o
„colorido‟ da história. (PORTELLI, 1997a, p.34).
28 De nacionalidade francesa e radicado no Brasil o professor George Mehdi é um dos judocas mais conhecidos do
Rio de Janeiro. www.mehdijudo.com.br 29 Traje formal longo, similar a uma saia, utilizado pelos praticantes de aikido. O uso do hakama está reservado aos
praticantes que chegaram à faixa preta também chamados no aikido de yudansha(s).
55
As metáforas utilizadas pelo entrevistado são, sobretudo, uma consequência
direta de suas experiências de vida posteriores ao início de seus treinamentos de aikido.
Além de duas viagens ao Japão, o Professor Bento também experimentou um novo
aikido, mais moderno, com o Mestre Ichitami Shikanai que veio ao Brasil com o
propósito de dar prosseguimento nas turmas iniciadas pelo Sensei Nakatani, já que o
mesmo não poderia continuar orientando seus alunos em função de seus compromissos
e viagens profissionais. O processo de recuperação das memórias do Professor Bento,
foi sobremaneira afetado principalmente pela diferença de nível técnico constatada na
mudança de mestre.
E. – Como é que foi esse processo de transição para o senhor já que o senhor
tinha começado o seu treinamento com o Sensei Nakatani, quase chegou a
obter a faixa preta com ele, e depois houve essa transição pra começar a
treinar com o Shikanai Sensei?
B.G.- O Shikanai quando chegou no Brasil, ele veio com o [Mestre Yassuo]
Kobayashi30
, entendeu? O Kobayashi era o que... era... 6º dan na época eu
acho... 7º dan, alguma coisa assim... E... Logo que eles chegaram no primeiro
ou segundo dia, teve um exame, e eu fiz um exame, com o Kobayashi. Aí o
Kobayashi ficou uns 15 dias aqui no Brasil, foi a São Paulo e depois foi
embora e largou o Shikanai aqui em Copacabana, num apartamentozinho lá
na Figueiredo Magalhães. [riso] O Shikanai obviamente não falava nada de
português né? Mas o aikido do Shikanai era bastante diferente do aikido do
Nakatani, era um salto geracional entendeu? Era outra coisa! [riso] Já era
um pulo assim, tecnológico! E o Shikanai é uma história totalmente diferente,
o Shikanai já era, vamos dizer assim, praticamente profissional! Ele como
uchi-deshi... O trabalho dele praticamente era esse, assistente do Professor
Kobayashi... E nessa época, o Shikanai tinha, nós temos a mesma idade eu e
o Shikanai com a diferença de meses, acho que um ano, eu sou um ano mais
velho que ele. Então ele tinha 27 anos quando ele veio né? Não 27 não, nessa
época ele não tinha 27, nessa época ele tinha trinta e alguma coisa... E...
Então ele estava assim numa forma... Estava no auge! Então não foi, não foi
complicado não!
O contraste entre os dois Senseis e o impacto causado pelas novas tecnologias e
recursos trazidos pelo Professor Shikanai, afetaram em grande medida suas percepções
sobre o antigo Mestre, o senhor Teruo Nakatani. Paralelamente, o fragmento acima
também permite entrever um nível de maior de afinidade entre o Professor Bento e o
Sensei Shikanai, pois ambos tinham praticamente a mesma idade quando se conheceram.
Além disso, o narrador informou em outro momento da sua entrevista que quase não
conversava com o Sensei Nakatani “Primeiro porque era difícil entender o que ele
30 O Sensei Yassuo Kobayashi foi o Professor de aikido do Mestre Ichitami Shikanai. Verificar quadro n.1 na página
de número 30.
56
falava. E ele já não era um cara de falar, ele sentava do teu lado e se você ficasse duas
horas do lado dele, ele ia ficar duas horas calado, não falava nada!”31
Dando continuidade aos relatos sobre o início da “arte da paz” no Rio de Janeiro,
faz-se necessário apresentar outro entrevistado que teve contato direto com o Sensei
Nakatani e que também foi ex-colega de tatame do Professor Bento Guimarães, trata-se
do Professor Adélio Mendes de Andrade. Português, nascido na aldeia de Alvarenga,
região que pertence ao Conselho de Arouca e ao Distrito de Aveiro, próximos à cidade
do Porto, o senhor Adélio chegou ao Brasil em 1960, com apenas 17 anos e passou a
morar com os tios na capital carioca. Sua entrevista foi realizada na Associação Atlética
do Banco do Brasil – às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas – onde o entrevistado
ainda ministra suas aulas e se reúne diariamente com amigos para jogar sua
“sinuquinha”. Com um ar matreiro o Professor Adélio fala quase que ininterruptamente
por três horas. Sua relação com o senhor Teruo foi definitiva para o seu destino pessoal,
pois após o afastamento do Mestre dos tatames, o Professor Adélio ficou responsável
por manter a academia até um novo professor japonês aparecer para dar continuidade
nas turmas iniciadas pelo Sensei Nakatani.
E. - Eu queria que o senhor falasse só um pouco mais a respeito do Professor
Nakatani, algumas características dele, o que o senhor sabe a respeito do
Professor Nakatani, de onde ele veio, com quantos anos ele chegou ao
Brasil...
A.A. – A idade não... A idade eu não sei. Características... um japonês
sensacional que nunca, nunca, nunca ouvi alguém falar algo que não fosse
bom sobre ele! Caráter incrível, um japonês muito forte, para os padrões da
época grandão... O cara era um atleta, porque antes de praticar aikido ele era
alpinista, então ele falava: “Adélio várias vezes a minha vida dependeu da
força dos meus dedos...” Então ele tinha uma força muito grande... Em nível
de aikido para a época, para a época, para quem o conheceu e tudo mais, uma
coisa diferente... Ele era muito forte, então a técnica do aikido – aliás em
artes marciais como em tudo, força é igual a dinheiro né – não é tudo mas
ajuda pra caramba! Então o Nakatani era muito forte, era um atleta muito
forte. Não tinha a técnica do Shikanai, purificada que nem a do Shikanai,
mesmo porque ele foi preparado para vir ao Brasil, e foi feito um faixa preta
rápido. Quando souberam no Hombu Dojo que ele vinha ao Brasil como
imigrante, para ficar [aqui] no caso, é que alguém teve a ideia de prepará-lo
para ser Professor. Então, o [Hiroshi] Tada32
que foi quem levou o aikido
para Itália, Mestre Tada...[...] Então o Nakatani foi ao Hombu Dojo, [e] teve
o Tada como Mestre. Eu acredito até porque quem mais se assemelhava com
o Nakatani era o Tada, porque eles até fisicamente eram muito parecidos... O
Tada também tinha o aikido muito forte, forte que a gente diz é que o Tada
também já vinha de outra arte marcial, não sei se era karatê ou se era outro
negócio... e também era um cara muito forte. Então o que eu quero dizer é o
31 [00:23:36] 32 Hiroshi Tada (1929 –) é um Mestre ligado à Fundação Aikikai do Japão e que é apontado como o introdutor do
aikido na Itália. Ver quadro n.3 nos apêndices.
57
seguinte, aguentar um golpe do Nakatani pouca gente aguentava, haja visto
que ele deu aula aqui na academia do Mestre Mehdi do judô, que você já
ouviu falar, um francês que tem aqui no Brasil, [ele dava aula] aqui pertinho,
deve ser Visconde do Pirajá... Está velhinho também, não sei a idade dele,
mas acho que é um pouco mais velho que eu... e o Mehdi adorava ele, adorou
o aikido, por isso que permitiu que ele lecionasse lá. Então de uma técnica
assim... Agora, técnica apurada como a técnica do Shikanai isso não! [...]
A capacidade de mesclar elementos tão distintos numa mesma narrativa é a
característica central das memórias do Professor Adélio Andrade. Essa característica é
observável não apenas em suas memórias, mas também em sua voz, que mistura de
forma muito peculiar a pronúncia lusa com o sotaque tipicamente carioca. No caso da
entrevista com o senhor Adélio, a palavra “interpretação” adquire um duplo sentido,
isso porque além da ação interpretativa inerente a qualquer processo recordatório, o
entrevistado também interpreta de forma quase que dramatúrgica seus relatos.
Compreendendo que a memória é tanto pessoal ou individual, quanto social ou
coletiva, muitas vezes o indivíduo pode apresentar narrativas aparentemente ambíguas e
até opostas, como exemplificado em muitos momentos da entrevista realizada com o
senhor Adélio. Nessa perspectiva, Halbwachs (2006, p.71) esclarece que:
Por um lado, suas lembranças teriam lugar no contexto de sua personalidade
ou de sua vida pessoal – as mesmas que lhes são comuns com outras só
seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se distingue
dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se
comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para
evocar e manter lembranças impessoais, na medida em que estas interessam
ao grupo.
Assim sendo, diferentemente do Professor Bento Guimarães que passou a treinar
com o Sensei Shikanai assim que esse mestre chegou ao Brasil, o Professor Adélio
resolveu seguir seu próprio caminho na arte do aikido. Entretanto, mesmo seguindo um
rumo de treinamento distinto do ex-colega de tatame, há nas reminiscências do senhor
Adélio, alguns sentidos que se aproximam das memórias do Professor Bento a respeito
do Sensei Nakatani e de seu estilo marcial. Assim, o antigo Mestre é descrito como um
japonês muito forte e com uma técnica bastante contundente, sendo associado no
discurso do Professor Adélio, aos atuais praticantes de MMA:
Agora eficiência, eficiência, por exemplo no MMA, um Nakatani bateria dois
Shikanais! Entendeu como é? Ou seja, era mais o que eles consideram hoje
um praticante de MMA. Devido à formação física dele, devido ao esporte
dele, ser um esporte de força, que era o alpinismo na neve, enfim desenvolve
muito, então era um atleta.
58
Ou seja, a diferença técnica entre os dois mestres japoneses também faz parte do
discurso do professor Adélio, que reiterou que o senhor Teruo recebeu um rápido
treinamento marcial para se graduar como faixa preta, para que pudesse começar a
divulgar o aikido – ainda que com um parco conhecimento técnico – em solo brasileiro.
As menções dos Professores Adélio e Bento Guimarães referentes ao célere treinamento
recebido pelo Mestre Nakatani, evidenciam impressões semelhantes – porém não
idênticas – entre os dois ex-alunos do Sensei Teruo. Logo, ainda que os Professores
Bento e Adélio tenham treinado juntos e tenham participado do mesmo grupo, evitou-se
qualquer tipo de generalização de suas lembranças em um nível coletivo. Esse cuidado
foi tomado não apenas na análise das entrevistas dos senhores Bento e Adélio, mas
também, em relação a todas as outras narrativas que foram registradas neste trabalho.
Isso porque, entende-se conforme afirma Portelli (1997b, p.16) que
A memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas
os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a
memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar que,
à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas
quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo
individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de
instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as
recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém,
em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as
impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes – exatamente
iguais.
Não se trata de negligenciar a existência de uma possível “memória coletiva” do
grupo de que participavam os Professores Bento e Adélio – e aqui, é necessário
enfatizar que não há apenas uma memória coletiva, mas uma multiplicidade de
memórias coletivas, visto que um mesmo sujeito participa de diferentes grupos,
temporalidades e espaços. A esse respeito, Barros (2011, p.327) explica que “A
memória coletiva não é de fato única, e somente se pode falar esta expressão no singular
como recurso discursivo para a identificação e delineamento de um campo, porque há
na verdade inúmeras memórias coletivas.”
Longe de ser um espelho da realidade, a memória é um imenso campo de
possibilidades que se abre a cada nova narrativa, a cada novo olhar sobre a história
pessoal do entrevistado. É exatamente essa riqueza e vividez da memória que
permitiram ao Professor Adélio afirmar de forma contrária ao seu ex-colega, que o
Mestre “Nakatani foi ao Hombu Dojo, [e] teve o Tada como Mestre.” Ainda que nas
palavras do Professor Bento o senhor Teruo tenha passado por um treinamento
59
intensivo com o próprio fundador do aikido, “Ele fez um curso rápido. Inclusive com o
próprio Ueshiba, Morihei Ueshiba. Consta isso que o Ueshiba de umas... umas aulas,
um curso instantâneo pra ele [riso].”
O relato do Professor Adélio prossegue e um ponto, motivo de antigos embates
vem à tona em seu relato:
E foi ele que realmente trouxe o aikido... Se quiser falar um pouquinho pelo
que eu sei do Kawai... Eu acho engraçado que isso já em 1974, isso pra 75, o
Nakatani um dia chegou na academia aqui em Copacabana, aí falou: “Adélio,
tem livros aikido não tem? Onde estão?” Aí eu fui pegar lá pra mostrar pra
ele, aí ele sentou e tal... eu comecei até a fazer uma faxina no meu dojo e
tudo mais, dali a pouco ele estava falando sozinho: “Por quê? Por que não
faz livro? Livro tem aikido, por que não faz igual?!” Aí eu cheguei perto
dele e falei: “Sensei, o senhor está falando sozinho o que está havendo?”
“Kawai! Por que Kawai não olha livro fazer aikido? Kawai não fazer
aikido!” Entendeu? Ele estava revoltado com o Kawai! Então pelo que eu sei
do Kawai é o seguinte, o Kawai aprendeu algo parecido com o aikido com
alguém, pelo que eu soube foi na Bélgica ou num país assim da Europa... e
como não tinha aikido, aí ele depois denominou a técnica dele de aikido e
andou se aperfeiçoando da maneira que ele pode, que nem eu provavelmente,
ou seja, também desenvolvendo o que ele queria que fosse aikido e tudo mais.
Mas aikido de verdade mesmo, quem implantou no Brasil foi Sensei
Nakatani! Porque praticantes, os alunos do Kawai costumam dizer que ele
veio primeiro. Veio primeiro, mas não com o aikido! Ele não era formado em
aikido, e tinha pouco conhecimento do aikido.
Diferente do discurso missionário do genro do senhor Kawai – o Professor
Matias de Oliveira – a descrição do senhor Adélio traz para o contexto de sua entrevista
outro ponto de vista a respeito dos primórdios do aikido em terras brasileiras. A
expressão “E foi ele que realmente trouxe o aikido...” ao invés de ser apenas o princípio
de uma sentença tem, em termos discursivos, a finalidade de encerrar qualquer ponta de
dúvida sobre quem foi o introdutor do aikido no território brasileiro. Todavia, é cabível
enfatizar a natureza contemporânea da memória, sendo assim, nas palavras do Professor
Adélio, o Sensei Teruo não “foi”, mas “é” o precursor do aikido. O critério do
entrevistado não é a ordem de chegada ao Brasil, mas o domínio de um aikido
considerado verdadeiro, portanto, legítimo. Assim, mesmo tendo feito um curso rápido
de aikido no Japão, o fato do senhor Teruo Nakatani ter treinado diretamente no Hombu
Dojo, confere a ele – na interpretação do Professor Adélio – o título de verdadeiro
introdutor da “arte da paz” em terras brasileiras. Desvela-se nesse ponto uma
característica não apenas da narrativa do Professor Adélio, mas de toda e qualquer fonte
oral, a parcialidade. Isso porque, curiosamente, aquele “algo” que Kawai Sensei treinou
na Bélgica e que depois denominou de aikido era nada mais, nada menos que o estilo
60
marcial a partir do qual Morihei Ueshiba criou o seu aikido33
. Não se trata de destituir o
valor das recordações do Professor Adélio, ao contrário, é isso que faz segundo Portelli
(1997a, p.32) que as fontes orais gozem de uma credibilidade “diferente”, pois
A importância do testemunho oral pode se situar não em sua aderência
ao fato, mas de preferência em seu afastamento dele, como
imaginação, simbolismo e desejo de emergir. Por isso, não há “falsas”
fontes orais. [...] a diversidade da história oral consiste no fato de que
afirmativas “erradas” são ainda psicologicamente “corretas”, e que
esta verdade pode ser igualmente tão importante quanto registros
factuais confiáveis.
Outras considerações poderiam ser tecidas acerca das descrições do professor
Adélio, entretanto, faz-se necessário apresentar o último mestre imigrante, o Sensei
Ichitami Shikanai.
Nascido em 30 de julho de 1947, na província de Aomori, ao norte da ilha de
Honshu, o Professor Shikanai, como também gosta de ser chamado, chegou ao Brasil
em 1975.
Agendar um encontro com o senhor Ichitami foi um grande desafio, pois pelo
menos cinco pessoas intermediaram a negociação de uma possível entrevista até o aceite
do referido Mestre. A sugestão para que uma entrevista também fosse realizada com o
Sensei Shikanai foi feita pelo Professor Bento Guimarães, que indicou firmemente que
o pesquisador tomasse cuidado ao procurar o senhor Shikanai:
B.G. – Eu se fosse você não usava essa palavra científico com ele não,
porque você vai bater de frente com ele! Ele não tem nada de... Ele não gosta
desse negócio de científico não! Ele é muito espiritual.
Posteriormente, o Professor carioca Alberto Ferreira que também foi
entrevistado por ocasião desta pesquisa, mas que não teve suas memórias aqui
registradas pelos motivos já apontados no primeiro capítulo, deu novas dicas e indicou
os nomes dos dois principais assistentes do Mestre Shikanai, os Professores mineiros
Gliber Angelo Lavalle Filho e Euler Vilaça Lima. Assim como o Professor Bento
Guimarães, o Professor Alberto também admoestou severamente o pesquisador para que
não tentasse fazer contato diretamente com o Sensei Ichitami, pois certamente ele se
33 Esse estilo marcial é conhecido como daito-ryu aikijujutsu ou simplesmente aikijujutsu e foi ministrado a Morihei
Ueshiba pelo Mestre japonês Sokaku Takeda. Há inúmeras semelhanças técnicas entre o aikido de Ueshiba e o
aikijujutsu do Mestre Takeda. Assim, mesmo tendo treinado diferentes práticas marciais, o próprio fundador e seus
descendentes reconhecem que o daito-ryu do Sensei Takeda foi sua principal influência marcial para a criação do
aikido (UESHIBA, 2011).
61
recusaria de imediato a participar de qualquer tipo de entrevista que pudesse dar
publicidade à sua vida, mesmo sendo para uma pesquisa com viés acadêmico. Assim,
foi feito um primeiro contato com o Professor Gliber que explicou ao pesquisador que a
única pessoa que poderia convencer o Mestre Ichitami a conceder uma entrevista seria o
seu Professor norte-americano de Jodo34
, o Sensei Phil Relnick. Quando os contatos
com o senhor Gliber começaram a ser feitos a fim de explicar a proposta da presente
pesquisa, o Mestre Shikanai estava em Seattle, na casa do Sensei Phil e foi ele quem
persuadiu o senhor Ichitami a participar deste estudo.
Todos esses percalços até o acesso efetivo ao entrevistado poderiam parecer
preciosismo, entretanto, posteriormente foi possível perceber que o Sensei Shikanai
demonstrou ter aversão a qualquer tipo de publicidade sobre sua intimidade, sobre o seu
aikido.
As maiores dificuldades, no entanto, foram relativas ao momento da entrevista e
à transcrição da gravação realizada com o Mestre Shikanai. Com um português
complicado, o processo de passagem da narrativa oral do Sensei Ichitami ao formato
escrito, exigiu um registro gráfico distinto, a fim de preservar minimamente a qualidade
sonora e o seu sotaque nipônico.
A gravação da entrevista do Professor Ichitami foi realizada em seu pequeno
dojo, no bairro Savassi, em Belo Horizonte – MG. A ausência de mesas ou cadeiras, ou
recepção, ou qualquer outro elemento típico das modernas academias de artes marciais,
denota tanto a simplicidade do entrevistado, quanto sua compreensão do que
efetivamente é um dojo que tem como tradução para o português, o “lugar onde se
treina o caminho”. Após uma longa explicação sobre as características da pesquisa que
estava sendo empreendida, o gravador é ligado e inicia-se não apenas uma entrevista,
mas uma experiência interativa, onde distâncias culturais, étnicas e etárias se sobrepõem
e se fundem, gerando um diálogo cheio de ricas lições de vida e histórias com
profundos significados filosóficos e morais.
As muitas mudanças territoriais experimentadas pelo senhor Ichitami deixaram
impressas profundas marcas em sua consciência. Antes de vir ao Brasil, o Professor
34 Prática marcial também de origem japonesa, realizada com bastão de aproximadamente 120 centímetros de
comprimento. Acredita-se que essa arte “[...] foi desenvolvida pelo grande espadachim Muso Gonosuke, há
aproximadamente quatro séculos atrás, após uma derrota em combate pelo famoso Myamoto Musashi, que
utilizava espadas de madeira (bokken, bokutô) para seus combates.” (BUGUEI, 2014).
62
Shikanai saiu primeiramente da região de Hakkoda, no subúrbio da cidade de Aomori, e
viajou a Tóquio para iniciar seus estudos na faculdade de Economia35
.
E. – O senhor foi sozinho para Tóquio, ou sua família foi junto?
I.S. – Não, não, não, eu sozinho. Morei sozinho. Nove anos morei em Tóquio
total né? Depois formei faculdade, dois anos e pouco trabalhei, aí entrei na
academia da Kobayashi e dois anos e dez meses eu fiquei, aí depois me
mudei para cá. Porque eu queria trabalhar minha terra, terra de meus pais, eu
gostava pai, eu queria ficar perto do meu pai. Eu tinha esse desejo, só que
Nakatani voltou Japão, procurou academia central: “Rio de Janeiro já tem
academia, tem aluno, só que eu não posso dar mais, será que alguém
interessado? Fica no lugar, meu lugar?” Assim que procurou jovens,
instrutores jovens na academia central, mas pessoal da academia ninguém
interessado. Aí segunda vez quando Nakatani procurou na academia central,
meu Professor estava lá, eles são conhecidos né. Nakatani antes de emigrar
para o Brasil, ele já conhecia. “Ah, Kobayashi san, você aluno jovem
academia interessado? Já tem academia, já tem aluno!” Aí Kobayashi quando
voltou à academia, eu e Igarashi meu colega, aí consultou: “Um de vocês eu
quero que vá a Brasil, pra ficar no lugar do Nakatani!” Aí eu vem! [risos]
Não é meu interesse não, meu desejo era ficar, trabalhar, encontrar emprego e
ficar perto do meu pai. Cuidar meu pai que morreu, esse era meu desejo, aí
desistiu.
E. – Mas se o senhor pudesse o senhor teria voltado a Aomori?
I.S.- É!
E. – E por que é que foi o senhor que veio, e não foi o seu amigo, o Igarashi
Sensei?
I.S. – Igarashi pai dele estava machucado. Então eu pensei que ele assim
[tinha] família, “Ah, então se for longe lugar para ele não dá...” Eu sou
terceiro filho né! Eu sou da roça! Terceiro filho era eu: “Vai, vai, vai onde
quiser!” [riso] Nesse sentido... Então eu: “Ah, Igarashi não dá...” Igarashi era
superior na faculdade né!
A ligação com a terra – não apenas a terra natal – e o desejo de ficar perto do pai,
distanciam as memórias do Mestre Shikanai do estereótipo do japonês desprovido de
qualquer traço de afetividade. O retorno do Sensei Nakatani ao Japão acabou se
tornando uma missão compulsória por parte do senhor Shikanai, face ao sentimento de
dever para com o Mestre Yassuo Kobayashi. A maneira como o entrevistado se refere a
esse episódio é curiosa, pois mesmo em tom de “consulta” o Sensei Kobayashi
determina de forma categórica que um dos assistentes teria que viajar ao Brasil. As
relações entre mestre e discípulo nas artes marciais, assim como na própria cultura
japonesa, são intrincadas e complexas. Em alguma medida, o entrevistado tenta
35 Universidade Meiji do Japão.
63
transmitir essas diferenças ao pesquisador, tentando indicar – ainda que de forma sutil –
os motivos que o compeliram a vir ao Brasil:
Mas quando eu entrei na academia central, eu sou mais antigo, então eu sou
superior [a] ele na academia, quando nos encontramos [ele me fala]: “Oh,
Professor! Oh, senpai!” Senpai-kohai lembra essa palavra! Não tem nada a
ver com parte técnica. Esse cultura engraçado né? Aluno antigo tem
prioridade... [riso] Esse cultura japonesa. Aqui não tem isso né? Aqui não
tem isso não... Ninguém entende isso aqui... [riso]
A expressão japonesa senpai-kohai designa uma relação entre um aluno mais
antigo, ou um veterano (senpai), e um praticante mais moderno (kohai). Como as
relações nas artes marciais japonesas são bastante verticais, há um forte senso de
hierarquia não apenas entre os seguidores e seu mestre, mas também em relação aos
próprios praticantes que devem reverenciar os alunos mais antigos, portanto mais
graduados. No caso da cultura japonesa esse respeito não está associado apenas ao nível
de graduação dos veteranos, mas também à idade, ou seja, pessoas mais velhas são
merecedoras de respeito por terem mais experiência de vida, e por consequência mais
sabedoria. No Japão essa linha hierárquica invisível é denominada de tate-shakai.
Dessa forma, ainda que atenuado por risos, o comentário do Mestre Shikanai
deixa entrever uma nuança que vai além da mera distância cultural entre japoneses e
brasileiros, trata-se do reconhecimento – por parte do narrador – da impossibilidade de
compreensão, por parte do entrevistador, dos motivos que o constrangeram a emigrar
para o Brasil. Nesse sentido, as memórias do Sensei Shikanai passam por um duplo
filtro de interpretação, temporal e cultural. Assim, de forma paralela ao ato narrativo, o
entrevistado acrescenta suas impressões sobre a cultura e os valores do povo japonês.
Mesmo sendo um issei36
, houve aqui o cuidado de relativizar as impressões do
senhor Shikanai a respeito da vida e dos costumes de seu povo. Isso porque o
entrevistado fala sob o prisma de suas interpretações, as quais são sempre
idiossincráticas e, portanto, parciais. De acordo com Oda (2011, p.104) a representação
monolítica e reificada da sociedade japonesa não é exclusividade dos brasileiros, até
mesmo os imigrantes e seus descendentes tendem a tratar a cultura nipônica “[...] como
uma totalidade homogênea, imutável e exótica, sem atentar para os sérios conflitos
políticos que este tipo de perspectiva oculta.”
36 Japonês que emigrou para a América.
64
Após explicar ao pesquisador as motivações de seu processo migratório, o
Mestre Shikanai passa a descrever as primeiras dificuldades que experimentou ao
chegar ao Brasil:
I.S. – Eu, não é negócio... não é negócio comércio, não, nada disso. Já tinha
academia, então só dar, continuar no lugar do Nakatani, dar aula de aikido, na
Associação Carioca de Aikido. Naquela época quem estava tomando conta
era Professor Adélio que você vai entrevistar né? É bom, ele conhece muito
bem. Mas ele característica muito forte, minha opinião. Muito forte. Por isso
que pessoalmente, eu tive que sair. Eu saí, de lá. E que quando abriu Niterói
eu fiquei com Niterói. Continuando a amizade, mantendo a amizade com ele.
E depois mais tarde, a Associação Carioca, eu fiquei com Niterói só. Mas
Adélio é trabalhador, ele não é homem ruim não. Até agora eu tenho amizade,
igual com Bento. Só que dentro de grupo tem assim, cada um... [...] Aqui
Confederação tem muito, quando eu cheguei aqui, Professor Kawai
aproveitou esse daí. Então quando eu cheguei aqui no Brasil, eu recebi tanta
rivalidade ele correu, [e] organizou. Para mim é outra cabeça, eu aproximou
ele, por causa de ele superior. Então eu respeito ele. Eu respeito ele. Para ele
me dominar teve que correr, é que cabeça diferente de mim. Todo mundo
reconhece: “Não, ele é mais antigo! Ele que começou o aikido antes de
Nakatani, começou!” Agora reconhecimento de academia central talvez
Nakatani é mais antigo, mas quando eu cheguei aqui no Brasil ele já tinha
reconhecido da academia central, então eu tenho que respeitar. Não tem
problema nenhum comigo, [só que o] aikido não interessa dele! Aikido dele
para mim não me interessa. Não é por causa de arte. Mas respeito tem, esse é
cultura japonesa! Eu tem. Agora ele domina como pode. Cara tem arte dele.
Personalidade dele! Eu não faço isso, eu não tem. Se meus alunos quer fazer
organização, associação, se precisa de um nome pode usar, mas eu não entro.
Só entro se precisar só parte técnica, só parte técnica interessa. Se isso ajuda
pra crescer, tá bom, aproveita. Mas eu não interessa como esse maneira para
aumentar, não, não, não interessa. Então minha maneira só. Esse [é] meu
jeito. Por isso que meu grupo não cresce, cresce bem menos do que outro.
Daí dá aula, “Não, dá aula! Abre academia e você pode dar aula!” Mas não
quer dar aula.
O trecho acima revela uma característica fundamental das fontes orais, que
posicionam o sujeito na história e privilegiam a pessoalidade das experiências vividas,
no lugar de acontecimentos de grande amplitude social. Nessa perspectiva, as memórias
do Sensei Shikanai operam em escala reduzida, individual, e refletem tensões antigas
relacionadas às disputas de poder que estavam apenas começando no cenário nacional
do aikido. Duas reflexões são oportunas a partir desse desvio circunstancial operado
pelo narrador. A primeira diz respeito aos significados individuais que no entendimento
de Portelli (2010a) são sempre escolhas, uma vez que mesmo que diferentes sujeitos
participem de um mesmo evento coletivo, cada pessoa chega com uma multiplicidade
vivida de histórias pessoais. E a segunda diz respeito à singularidade intrínseca de cada
entrevista, que Alberti (2003, p.1) explica ter uma vivacidade especial, pois
65
É da experiência de um sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo o
passado com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um
indivíduo único e singular, um sujeito que efetivamente viveu – e, por isso dá
vida a – as conjunturas e estruturas que de outro modo parecem tão distantes.
Ouvindo-o falar, temos a sensação de ouvir a história sendo contada em um
contínuo, temos a sensação de que as descontinuidades são abolidas e
recheadas com ingredientes pessoais: emoções, reações, observações,
idiossincrasias, relatos pitorescos. Que interessante reconhecer que, em meio
a conjunturas, em meio a estruturas, há pessoas que se movimentam, que
opinam, que reagem, que vivem!
A personalidade forte do Professor Adélio Andrade e a rivalidade gratuita do
senhor Kawai tomam forma e relevo na consciência do Sensei Shikanai. Suas
dificuldades de adaptação não se referem ao idioma, ao clima, ou aos costumes
brasileiros, mas ligam-se em suas lembranças aos conflitos e tensões por ter ingressado
no “campo” do aikido brasileiro. A expressão campo está sendo aqui utilizada nos
termos de Bourdieu (1983, p.121-122), que explica que
[...] todas as pessoas que estão cometidas num campo têm em comum um
certo número de interesses fundamentais, a saber tudo o que está ligado à
própria existência do campo: daí uma cumplicidade objectiva que está
subjacente a todos os antagonismos. Esquece-se que a luta pressupõe um
acordo entre os antagonistas sobre aquilo que merece que se lute e que está
recalcado no que é óbvio, deixado no estado de doxa, quer dizer tudo o que
faz o próprio campo, o jogo, as paradas em jogo, todos os pressupostos que
tacitamente se aceitam, sem se saber sequer, pelo facto de se jogar, de se
entrar no jogo. Os que participam da luta contribuem para a reprodução do
jogo contribuindo, mais ou menos completamente segundo os campos, para
produzir a crença no valor das paradas em jogo. Os novos que entram têm de
pagar um direito de entrada que consiste no reconhecimento do valor do jogo
(a selecção e a cooptação prestam sempre muita atenção aos índices da
adesão ao jogo, do investimento) e no conhecimento (prático) dos princípios
de funcionamento do jogo.
Assim, mesmo que discursivamente o Professor Shikanai procure afastar seu
aikido de qualquer interesse institucional ou econômico, afirmando que a ele só
interessa a parte técnica, sua chegada em território brasileiro, compulsoriamente o
inscreveu no interior de um jogo atravessado por relações de poder, tensões e interesses
próprios. Ou seja, uma forma diferente de “arte da paz”.
Finalizando, o que se procurou explicitar a partir das narrativas coligidas no
presente capítulo, foi a riqueza e a variedade das memórias (pessoais e sociais) relativas
à chegada e ao início da prática do aikido em terras brasileiras. Missão, destino e acaso,
são possibilidades que nas memórias dos professores entrevistados trouxeram os
Mestres Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai ao Brasil. Um sem número
de análises, de novas relações e de enquadramentos poderiam ser realizados a partir dos
66
mesmos fragmentos, dos mesmos textos – e as reminiscências aqui registradas, têm o
estatuto de textos. Isso porque, todo texto, fruto de uma entrevista em história oral, tem
de acordo com Portelli (1997a), caráter dialógico, pois é produzido por múltiplas vozes
e permite múltiplas interpretações: as muitas interpretações do entrevistado, do
pesquisador-entrevistador, e as interpretações dos leitores.
67
4 “QUE TIPO DE AIKIDO VOCÊ GOSTA?”
Lá onde a identidade individual se apaga,
não há nem punição nem recompensa.
Ernst Jünger (1895 – 1998)
A interrogação que dá nome ao presente capítulo foi retirada da entrevista
realizada com o Mestre Ichitami Shikanai. Aproveitando essa reflexão surgida no
contexto da entrevista com o Mestre imigrante, optou-se por estabelecer como objetivo
deste capítulo a análise de como os diferentes entendimentos a respeito do aikido
refletem as diferenças identitárias individuais e coletivas por parte dos entrevistados. As
memórias registradas nesta seção são problematizadas, sobretudo, como esquemas de
percepção que conformam identidades individuais. Entretanto, não se perde de vista a
relação entre o particular e o coletivo, ou seja, os relatos dos entrevistados também
descortinam possibilidades de pensar a identidade individual em sua relação com o
social. A intervenção do pesquisador como coprodutor das identidades de cada um dos
professores entrevistados, também ganha destaque ao final deste capítulo.
Há diversos tipos de aikido (vide quadro n.3), e esses diferentes estilos não
guardam relação apenas com as interpretações dos professores que participaram da
presente pesquisa. O mestre e fundador da “arte da paz” – Morihei Ueshiba – teve
diversos alunos antes, durante e depois da Segunda Grande Guerra, muitos deles, no
entanto, após a institucionalização do aikido empreendida por Kisshomaru Ueshiba –
filho de Morihei – decidiram trilhar caminhos individuais e criaram seus próprios estilos.
É o caso do Tomiki Aikido (criado por Kenji Tomiki), do Yoshinkan Aikido (criado por
Gozo Shioda), do Yoseikan Aikido (criado por Minoru Mochizuki), do Shin Shin Toitsu
Aikido (criado por Koichi Tohei), do Korindo Aikido (criado por Minoru Hirai), e do
Ki No Michi Aikido (criado por Masamichi Noro).
68
FIGURA 2 – O FUNDADOR DO AIKIDO, SEU FILHO KISSHOMARU E SEU NETO, MORITERU
UESHIBA, O ATUAL DOSHU (REPRESENTANTE MÁXIMO DO AIKIDO NO MUNDO) E OS
DIFERENTES ALUNOS DE MORIHEI UESHIBA QUE CRIARAM ESTILOS PRÓPRIOS DE
AIKIDO.
1920s 1930s 1950s
Yoichiro Inoue
(1902 – 1994)
Criador do estilo
Shin‟ei Taido Aikido
Gozo Shioda
(1915 – 1994)
Criador do estilo
Yoshinkan Aikido
Doshu
Kisshomaru Ueshiba
(filho de Morihei Ueshiba
e principal responsável
pela institucionalização
aikido)
(1921 – 1999)
Masamichi Noro
(1935 – 2012)
Criador do estilo
Ki no Michi Aikido
Kenji Tomiki
(1900 – 1979)
Criador do estilo
Tomiki Aikido
Koichi Tohei
(1920 – 2011)
Criador do estilo
Shin Shin Toitsu Aikido
Doshu Moriteru Ueshiba
(neto de Morihei Ueshiba
e atual responsável pela
Fundação Aikikai do
Japão)
1940s
Morihiro Saito
(1928 – )
Criador do estilo
Iwama-ryu Aikido
Minoru Mochizuki
(1907 –)
Criador do estilo
Yoseikan Aikido
Minoru Hirai
(1903 – 1908)
Criador do estilo
Korindo Aikido
LEGENDA
ESTILO DE AIKIDO DESCRIÇÃO
Shin‟ei Taido Aikido Estilo criado pelo sobrinho do fundador, o Mestre Yoichiro Inoue. Não foram
encontrados consistentes e confiáveis sobre as características desse estilo.
Tomiki Aikido O mestre Kenji Tomiki uniu sua experiência como atleta de judô e criou uma
forma de aikido esportivo ou competitivo bastante criticada não só pelos
tradicionalistas ligados à Fundação Aikikai, mas também em relação a
aikidoístas de outros estilos.
Yoseikan Aikido O Mestre Minoru Mochizuki fundiu seus conhecimentos e experiências em
69
Fonte: O autor (2014)
Todos os Professores que participaram deste estudo praticam o aikido chamado
Aikikai, que é o estilo mantido dentro da linha de sucessão familiar de Morihei Ueshiba.
Não obstante seu caráter institucional, o aikido Aikikai é tido como o estilo
“tradicional”, pois segundo seus defensores é o “verdadeiro” aikido praticado por
Morihei Ueshiba. Passado e presente, tradição e instituição são expressões que
coexistem nos discursos dos narradores e evidenciam formas muito pessoais de
interpretação sobre o aikido e por consequência definem diferentes processos de
constituição identitária atreladas a essa prática marcial.
Aproveitando essas considerações sobre os diferentes estilos de aikido, a
narrativa do Professor Matias de Oliveira é retomada e o entrevistado é instado a refletir
sobre em que medida sua experiência como continuador do legado marcial do Mestre
Reishin Kawai, se assemelha às dificuldades iniciais experimentadas pelo filho de
Morihei Ueshiba, que transformou um caminho marcial artesanal em um
empreendimento organizacional. Sua relação de parentesco com o senhor Kawai e as
dificuldades enfrentadas com a finalidade de profissionalizar a administração da
entidade criada pelo sogro são temas que atravessam sua narrativa e desvelam sua
concepção de aikido e em outro nível sua identidade como aikidoísta.
Isso existe até hoje, e sempre vai existir. Porque antiguidade é antiguidade.
Agora as pessoas confundem antiguidade com administração, uma coisa é
diferente da outra. Respeito é respeito, por antiguidade e graduação. Agora
administrativamente têm as funções. É isso que as pessoas não conseguem
separar! Então eu respeito todos pela graduação. Agora quando a gente
começa a falar sobre a entidade, sobre atribuições dentro da entidade, aí que
existe o conflito! As pessoas não conseguem separar isso! As pessoas
pensam que a antiguidade supera qualquer função administrativa, não é assim
outras artes marciais como o judô, o karatê, iaido, etc. para criar uma arte ou um
caminho marcial.
Yoshinkan Aikido Também conhecido como estilo “duro” ou “hard aikido”, suas técnicas estão
mais associadas a movimentos realizados com contundência. Esse estilo guarda
grande proximidade com o aikijujutsu também treinado pelo fundador do aikido.
Shin Shin Toitsu Aikido Criado pelo genro de Morihei Ueshiba, esse estilo está fortemente associado à
respiração. Os movimentos de seus praticantes são suaves e bastante fluidos.
Aikido Aikikai O aikido Aikikai está relacionado à Fundação Aikikai do Japão, organização
atualmente liderada pelo neto do fundador, o Doshu Moriteru Ueshiba. Trata-se
de um estilo cada vez mais formalizado, em função de seu caráter cada vez mais
institucional.
Iwama-ryu Aikido O nome desse estilo foi retirado do nome da cidade onde Morihei Ueshiba
passou sua velhice antes de falecer. Seu principal seguidor em Iwama era o
Mestre Morihiro Saito que treinou e desenvolveu suas técnicas com o bastão ou
jo.
Ki No Michi Aikido O Ki no Michi é um amálgama de experiências do Sensei Masamichi Noro que
reuniu conhecimentos de diferentes áreas e artes para fundar seu caminho
marcial. Seu estilo talvez seja o mais suave e coreografado de todos.
70
que funciona! Se for assim a entidade não vai conseguir sobreviver! [...] Só
que a administração da academia envolve algumas decisões que tem a ver
com um evento, com exame de faixa... Então nessa hora às vezes acontecia
muitas coisas assim que não condiz com uma boa administração o que estava
acontecendo, e eu não poderia também fechar o olho. Então eu tive que criar
algumas regras, para que essas regras fossem seguidas que não interferisse na
administração o posicionamento dos Professores com relação à graduação,
com relação... Então tem que ter regras, critérios, para que não existam
facilidades para A ou B. Então eu comecei a criar alguns critérios aqui dentro
da academia, e esses critérios começaram também a ser colocados em prática
dentro do grupo, isso com relação a graduações, principalmente com relação
a graduações. Mas isso aí, qualquer mudança que a gente faz numa entidade
assim que hoje está com cinquenta anos, não é? O pessoal estava muito
acostumado de certa forma, qualquer mudança que a gente faz, que a gente
tenta fazer, algumas pessoas não vão ficar contentes.
Do recorte acima é possível extrair tanto significados pessoais atribuídos ao
aikido, quanto traços característicos da personalidade do Professor Matias. Logo no
início de sua entrevista, ao ser questionado sobre sua profissão, o senhor Matias
respondeu categoricamente: “Hoje eu sou instrutor de aikido, essa é minha profissão!”37
Sua experiência profissional anterior como analista contábil e posteriormente como
representante comercial de empresas do ramo alimentício, dotaram o Professor Matias
de Oliveira de um acurado senso administrativo. Os problemas de saúde e a idade
avançada do senhor Kawai, acabaram compelindo seu genro e sua filha Lilba a darem
prosseguimento na instituição que o Mestre Reishin havia criado. Entretanto, assim que
assumiu a gestão da gestão da “academia central” – como também é chamada a sede da
União Sul-americana de Aikido Kawai Shihan – um problema entre antiguidade e
entidade se instalou. Desprovido do capital que acompanha as graduações mais
avançadas no aikido – assim como em qualquer arte marcial – o Professor Matias
enfrentou seu primeiro desafio administrativo na definição dos novos rumos que a
União-sul Americana iria seguir. Aqui, cabe um breve parêntese sobre o sentido em que
a expressão capital está sendo empregada. De acordo com Bourdieu (2007, p. 134),
O capital – que pode existir no estado objectivado, em forma de propriedades
materiais, ou, no caso do capital cultural, no estado incorporado, e que pode
ser juridicamente garantido – representa um poder sobre um campo (num
dado momento) e, mais precisamente, sobre o produto acumulado do trabalho
passado (em particular sobre o conjunto dos instrumentos de produção), logo
sobre os mecanismos que contribuem para assegurar a produção de uma
categoria de bens e, deste modo, sobre um conjunto de rendimentos e ganhos.
As espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que
definem as probabilidades de ganho num campo determinado (de facto, a
cada campo ou subcampo corresponde uma espécie de capital particular, que
37 [00:01:42]
71
ocorre, como poder e como coisa em jogo, neste campo). Por exemplo, o
volume do capital cultural (o mesmo valeria, mutatis mutandis, para o capital
económico) determina as probabilidades agregadas de ganho em todos os
jogos em que o capital cultural é eficiente, contribuindo deste modo para
determinar a posição no espaço social (na medida em que esta posição é
determinada pelo sucesso no campo cultural).
Dessa forma, mesmo sendo genro do senhor Kawai, o volume e a estrutura de
seu capital estavam aquém do necessário, ao menos inicialmente, para gozar de
reconhecimento e autoridade em meio aos aikidoístas mais antigos e graduados. A
concepção de aikido do Professor Matias é organizacional, administrativa, e está
relacionada a um modelo racional baseado em critérios que passaram a ser adotados na
a fim de viabilizar a continuidade da instituição criada pelo Mestre Kawai. Na sua
percepção os alunos mais antigos estavam tirando proveito do sogro, o que pode ser
constatado pelos números que acompanham o discurso do entrevistado:
A academia estava com 82 alunos, 67 não pagantes! Esse era o quadro da
academia em 2002, então ou eu fazia alguma coisa, ou a academia fechava.
Então não era uma coisa assim, eu preciso mudar por mudar, não! Eu tinha
que fazer alguma coisa para manter a academia.
A narrativa do entrevistado articula elementos de sua história de vida com sua
concepção fortemente institucional de aikido. Observando a relação estabelecida pelo
Professor Matias entre sua biografia e sua compreensão acerca do aikido, é necessário
destacar o papel fundante desempenhado pela memória no sentimento de identidade. A
esse respeito, Michael Pollak (1992, p.204, grifo do autor) explica que
[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de
uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.
Nessa perspectiva lidar com fontes orais é identificar como memórias e
identidades refletem processos de apreensão da realidade em suas instâncias individual
e coletiva. O relato do Professor Matias dá margem à reflexão sobre como a sua
concepção pessoal – a respeito do que é o aikido – pode refletir ainda que parcialmente
uma identidade em nível coletivo. Isso porque, ao utilizar expressões como “a entidade”,
“o grupo”, “a gente”, “os graduados”, o genro do senhor Kawai confere à sua narrativa
um efeito de sentido de coletividade, ou seja, de que a sua concepção de aikido é
compartilhada pelos outros membros do grupo do qual faz parte. Não há aqui a intenção
de destituir as memórias do senhor Matias de uma possibilidade de compartilhamento
72
com outros praticantes de aikido, sobretudo, ligados ao Mestre Reishin Kawai,
entretanto, o que seu relato põe em questão é até que ponto existe algum
compartilhamento entre os significados presentes nas memórias de um indivíduo – as
quais fundam seu sentimento de identidade pessoal – e uma identidade em nível
coletivo. A esse respeito, Candau (2012, p.24) explica que
[...] um grupo não recorda de acordo com uma modalidade culturalmente
determinada e socialmente organizada, apenas uma proporção maior ou
menor de membros desse grupo é capaz disso. [...] quer dizer, um enunciado
que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória
supostamente comum a todos os membros desse grupo.
Para viabilizar alguma anotação mais consistente a respeito dessa reflexão, faz-
se necessário apresentar as memórias e identidades dos outros entrevistados que tiveram
contato com o Mestre Reishin Kawai. Nessa via, a filha caçula do senhor Reishin
registra em sua memória uma definição diferenciada de seu marido a respeito do que
entende ser o aikido.
Meu pai sempre falou assim: “O que é „do‟do aikido? [O] “Do” do aikido é
caminho né? Mas é aquele caminho de não balançar! Você não balança com
nada... Se você quer ser um aikidoísta de verdade, a gente tem que ter as três
palavrinhas o ai, o ki, e o do. Ai [é] aquele amor assim incondicional, amor
com todo mundo... mas principalmente com as pessoas que a gente não gosta.
O ki é energia! Mas a energia está em todo lugar, então tem que ser aquela
energia boa! Se a gente tiver uma energia boa, sentimento bom, pensamento
bom, ação boa, a gente vai ter um ki bom. Se a gente não tiver esses três,
nosso ki é ruim. Do [é] caminho! Você tem um caminho, mas assim o que é
caminho? “Ah, caminhar certo?” Não, caminho [é] aquele que você não
balança. Você não balança com nada! Aconteceu um terremoto aqui, você
não balança. Então é assim que a gente vê... Quando meu pai ri, na verdade
ele não está rindo... É só o exterior! Entende? Existem várias situações... Um
verdadeiro... Uma pessoa que quer realmente seguir o caminho do aikido ela
não balança com nada! Meu pai fala assim: “Bakudan nani ga attemo!”
Bakudan é bomba né? Mesmo que caia uma bomba na sua cabeça você não
balança.
E. – Baku...?
L.K. – Bakudan, é! É uma bomba né, explodir você não balança. Porque
assim, nós ocidentais a gente é muito assim, [por exemplo], olha vou te ligar
[e dizer] aconteceu isso: “Ai meu Deus do cééééuuuuu!!!!” Você já viu
muito oriental fazer isso? Geralmente não faz. Aquilo lá está dentro, ele está
aos pedacinhos, pode ficar aos pedacinhos, mas geralmente não mostra. O
ideal é não estar nem por dentro... Aí é que está, como é difícil a gente
evoluir! Porque pra gente alcançar que nem eu falo um nirvana, a gente tem
que estar por fora e por dentro né! Não balançou nem por fora e nem por
dentro. A maioria dos orientais não balança por fora, mas por dentro está aos
pedaços. Mas se a gente conseguisse não balançar por fora e por dentro
também não, aí a gente está caminhando... É diferente a maneira de pensar. A
gente pensa como nós, ocidentais... Se a pessoa faz uma brincadeirinha de
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mal gosto falando isso, a gente fica magoado. Por que o meu pai falava
assim: “Lilba segue caminho do „do‟!” Se a gente ficar [se] importando com
o que os outros pensam da gente, vai, chega uma pessoa aí e fala assim:
“Nossa Lilba esse seu aikido é bonito, maravilhoso...” Aí eu fico cheia de
ego... Já caí! Já caí! Se vem outra pessoa e fala assim: “Ah, o aikido dela é
ruim não sei o quê...” [Se eu] balançar com isso, já caí também! Se vem
uma pessoa que está se destacando mais que a gente, e a gente fica balançado,
já caí também! Não pode balançar... Nada pode balançar a vida da gente!
Nada! Então, pode vir furacão, pode vir não sei o quê...
O rigor da educação nipônica à qual a Professora Lilba Kawai foi submetida,
deixou profundas marcas em suas memórias que mesmo descritas num tom de voz
delicado, guardam um alto grau de austeridade. A superexigência do pai – que no
entendimento da entrevistada era uma forma de proteção – forjou no cadinho das
experiências domésticas sua identidade e por consequência sua concepção de aikido. A
repressão de qualquer traço de fragilidade e a dureza de caráter são nas palavras da
Professora Lilba, expressões que definem tanto a personalidade de seu pai, quanto o
jeito de ser japonês. A metáfora da bomba de Hiroshima descrita nas palavras da
entrevistada, além de indicar o nível de dificuldade inerente a um caminho marcial
como o aikido, evidencia um marco pessoal na biografia da entrevistada que faz
aniversário exatamente “No dia da bomba atômica, 6 de agosto!”38
A história pessoal da Professora Lilba e o desenvolvimento de sua personalidade
revelam como suas experiências de vida, ou seja suas memórias, convergiram para
formar tanto seu senso de identidade, como sua compreensão de aikido. À severa
educação familiar – reflexo das experiências do pai que vivenciou a desolação da 2ª
Guerra Mundial e enfrentou inúmeras dificuldades como imigrante – soma-se a sua
experiência de treinamento num ambiente predominantemente masculino. Essa
participação de um mesmo sujeito em diferentes espaços e temporalidades conflui
segundo Delgado (2003), na estruturação de um sentido de identidade nos níveis pessoal
e coletivo. A autora lança mão de um exemplo relacionado ao universo estudantil para
indicar essa heterogeneidade de contextos de que um mesmo indivíduo pode fazer parte:
Dessa forma, na história de uma comunidade estudantil universitária de um
determinado país, entrecruzam-se temporalidades diversas: a da vida
universitária propriamente dita, a da cidade na qual a universidade está
inserida, a do país na qual está integrada – e a do movimento estudantil em si
mesmo, com suas heterogêneas vivências e a dos estudantes, sujeitos
principais desse processo específico. (DELGADO, 2003, p.12).
38 [00:37:51]
74
A narrativa da caçula do senhor Kawai, também põe em questão a forma como a
noção de identidade, sobretudo individual, é geralmente mobilizada nas discussões
teóricas sobre memória. Isso porque, a identidade individual é geralmente associada a
ideias de unidade, de coerência, de solidez. Por exemplo, Pollak (1992) mesmo
recorrendo à literatura da área de Psicologia Social e da Psicanálise, explica que a
construção da identidade conta com três elementos essenciais:
Há a unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do
corpo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no caso de um
coletivo; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra,
mas também no sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento de
coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um indivíduo
são efetivamente unificados. De tal modo isso é importante que, se houver
forte ruptura desse sentimento de unidade ou de continuidade, podemos
observar fenômenos patológicos. (POLLAK, 1992, p.204).
Sem desconsiderar a contribuição do autor, é necessário, no entanto, apontar as
contradições, ambiguidades e variações que conferem às identidades individuais um
caráter de dinamismo, de fluidez. No caso da Professora Lilba, isso é perceptível
quando a entrevistada tenta destacar as diferenças de comportamento entre os orientais e
os ocidentais. Longe do sentido de unidade e coerência o que se observa no seu relato é
o trânsito entre os modos de vida oriental e ocidental, quase que como um reflexo do
não lugar ocupado pela narradora tanto em seu país natal, como em relação ao Japão.
O tom de louvor emprestado às virtudes japonesas, sobretudo, à impassibilidade
do oriental frente às adversidades, gera ainda que de forma sutil um efeito de sentido de
pertencimento ao povo nipônico. Entretanto, enquanto fala a Professora Lilba faz
questão de lembrar a si mesma e ao entrevistador que pensa como ocidental. Os trechos
acima denotam que a narradora tenta localizar sua identidade que não está ligada com
exclusividade nem ao universo japonês e nem ao mundo ocidental. A variação e as
ambiguidades presentes no enunciado da Professora Lilba, contribuem para uma noção
de identidade menos unificada e coerente, porém mais real. Contribuindo com essa
perspectiva Candau (2012, p.27, grifo do autor) afirma que os
[...] destaques das “dimensões” e das “significações da identidade” são
geradores de diferenças ou, mais exatamente, de “fronteiras sociais”
escorregadias a partir das quais os atores estimam que as coisas e as pessoas
– “nós” versus “os outros” – são diferentes. Essas variações situacionais da
identidade impedem de reificá-la, de reduzi-la a uma essência ou substância.
75
Essa variação que confere maior vivacidade e diferentes matizes à identidade de
um mesmo indivíduo também pode ser observada nos relatos de outros entrevistados,
como no caso do ex-seguidor do Mestre Kawai, o Professor Ricardo Leite. No
fragmento abaixo, o Professor Ricardo descreve como deu prosseguimento ao seu
caminho marcial como aikidoísta, contudo antes, abre um parêntese para explicar o
motivo do rompimento com o Sensei Kawai:
Mas tem uma coisa que eu queria contar pra você antes... Não sei te dizer a
data, porque você está falando sobre a separação... [sobre a] vinculação, [e]
desvinculação com o Kawai Sensei. Ainda faixa preta, relativamente novo, já
discípulo dele – do Kawai Sensei – estagiando o dia inteiro lá, ainda fazia
escola, mas já ficava o dia inteiro acupuntura, shiatsu e aikido à noite. E aí, o
sensei já sabia, já via minha conduta. O Kawai Sensei tinha uma religião que
ele seguia, e tinha uma mestra dessa religião que recebia [uma entidade],
chamava Fudoo Myoo Sama39
[era] o nome do Deus. Então essa mestra era
uma médium que intermediava mensagens supostamente do Fudoo Myoo
Sama segundo o conceito da religião [dele], então o Sensei vinha toda 4ª feira
na época também... mudou um pouco o período mas... com as respostas do
que era pra ser feito, do que não era pra ser feito, [com todas] as decisões. Foi
uma das coisas que comprometeu a relação dele com a federação [FEPAI40
],
porque veja bem, eu chego numa reunião de federação como presidente – ou
não tanto faz, como mestre responsável de qualquer forma – e digo: “Bom,
nós temos que decidir sobre esse assunto. Eu consultei Deus ontem e ele
mandou dizer que é isso aqui! Só queria adiantar, agora vocês discutem o
que quiserem a respeito. Claro que os votos vão ser respeitados, mas Deus
já decidiu isso! É opinião de Deus!” [riso] Fudoo Myoo Sama... aí o
pessoal vai dizer o quê? [riso] E tudo discípulo né? Tudo formado por ele...
Então isso com o tempo acabou começando a pesar.
Na entrevista do Professor Ricardo, a palavra “remissão” assume uma dupla
conotação, pois sua narrativa adquire contornos de uma experiência catártica, por meio
da qual o entrevistado procura se “redimir” da separação com o antigo Mestre,
“remetendo-se” constantemente à sua experiência de convívio com o senhor Reishin. A
maneira como o interlocutor eufemiza em sua consciência seu comportamento de
discordância em relação às decisões do Sensei Kawai evidencia que o entrevistado
possuía outra compreensão de aikido e que buscava um caminho marcial diverso
daquele que o Mestre Reishin estava trilhando até então.
A forma complexa de culto religioso professado pelo senhor Reishin e os
critérios espirituais utilizados para fundamentar suas decisões, começaram a entrar em
39 Entidade japonesa que é simbolizada como o guardião das artes marciais, especialmente do aikido. 40 A FEPAI, Federação Paulista de Aikido, foi a primeira federação nacional de aikido. Fundada em 1979 a partir dos
esforços do mestre Reishin Kawai e de sua esposa Letícia Kawai.
76
choque – na interpretação do narrador – não apenas com seus interesses, mas com os
interesses de todos os outros membros da entidade que o próprio mestre havia criado.
A época, em função da legislação vigente e por sua condição de imigrante, o
senhor Kawai estava privado de exercer – ao menos formalmente – a presidência da
Federação Paulista de Aikido. Para tanto, um de seus alunos mais antigos, o Professor
José Gomes Lemos foi escolhido como presidente interino. A incompatibilidade entre a
gestão praticada pelo Mestre Kawai e os rumos, principalmente técnicos, que a FEPAI
deveria tomar, põem em evidência a concepção de aikido do Professor Ricardo Leite
que explica na sequência do mesmo relato:
No início o Mestre vai decidir de qualquer jeito, [mas] depois as pessoas já
começam a ter 3º, 4º dan já começam a ter academia própria, a federação já
precisa ter um ritmo mais próprio e o Kawai Sensei já... esse ritmo já
começou...
Na percepção do entrevistado o Sensei Kawai estava ultrapassado e sua
autoridade passou a ser questionada, por ele e – na sua interpretação – por outros
colegas de tatame que também já haviam conquistado graduações mais altas na arte do
aikido. O relato do Professor Ricardo Leite é rico em possibilidades de análise,
sobretudo, pela forma como sua narrativa flui de impressões pessoais para sentidos
tomados como coletivos. Sua fala pode ser interpretada primeiramente como uma
tentativa de eximir-se – ao menos perante o entrevistador – de qualquer traço de culpa
por ter rompido com o antigo mestre. Esse tipo de expediente discursivo foi
amplamente analisado por Portelli (2010, p.202), que explica que “O modo mais fácil
de encontrar absolvição é lançar a responsabilidade sobre o contexto: todo mundo fazia,
eles nos forçaram a fazer isso, nós estávamos cumprindo ordens.” Outra característica
do relato do Professor Ricardo é o efeito de sentido gerado por sua narrativa – à
semelhança do Professor Matias de Oliveira – a qual visa inscrever seu relato num nível
coletivo de compartilhamento. E aqui, mais uma vez as noções de memória e identidade
se cruzam tanto em seus sentidos individuais como coletivos. Essa interdependência é
analisada por Candau (2012, p.27, grifo do autor) a partir da seguinte perspectiva:
[...] tal como para a noção de memória coletiva, coloca-se a questão da
pertinência dos conceitos de identidade quando aplicados a grupos, quer dizer,
a pertinência de expressões tais como “identidade cultural” ou “identidade
coletiva”. Em resumo, nos dois casos, tanto para memória quanto para
identidade, somos levados a questionar sobre o grau de pertinência do que
chamo de retóricas holistas [...]
77
O conceito de retórica(s) holista(s) elaborado por Candau (2012) reflete o
esforço do autor na análise da passagem do individual ao coletivo, sobretudo com a
finalidade de distinguir entre as “retóricas heurísticamente necessárias” e aquelas
empregadas como generalizações que resvalam em super ou subinterpretações. Visto
que os indivíduos não vivem suas vidas de forma apartada da coletividade, Candau
(2012, p.31) parte do pressuposto que há um compartilhamento ainda que mínimo na
produção de significados “[...] de conhecimentos, de saber, de representações, de
crenças cuja descrição e explicitação irão justificar o recurso às retóricas holistas.”
Desse modo, não se discute que ocorra uma comunicação de sentidos entre diferentes
indivíduos como demonstram as narrativas dos Professores Ricardo Leite e Matias de
Oliveira, e aqui cabe reiterar que ao indicar a incontestabilidade da comunicação
Candau (2012) está se referindo ao entendimento de memória(s) e identidade(s). Assim,
o autor se concentra sua análise especificamente na natureza da comunicação das
retóricas holistas e no resultado daquilo que foi compartilhado entre diferentes
indivíduos. Comunicação e compartilhamento no entendimento de Candau têm
definições distintas e para explicitar seu raciocínio o autor recorre às noções de “[...]
representações factuais, que são representações relativas à existência de certos fatos, e
as representações semânticas, que são as representações relativas ao sentido atribuído a
esses mesmos fatos.” (CANDAU, 2012, p.39, grifo do autor). Dessa forma, segundo o
autor, as retóricas holistas tem maior grau de pertinência quando as representações são
factuais, ao passo que as representações semânticas mesmo quando “corretamente
comunicadas e transmitidas” têm um baixo grau de pertinência em função das
idiossincrasias de cada indivíduo comunicante. No caso do trabalho com fontes orais,
que tem como principal finalidade analisar como se dão os diferentes processos de
apreensão subjetiva da realidade, essa perspectiva de compartilhamento de sentidos fica
praticamente anulada, pois as pesquisas de história oral operam em escala reduzida ou a
partir daquilo que Portelli (2010a, p.46) chama de um olhar sobre a “micro-experiência”.
A fim de exemplificar essa impossibilidade de generalização de significados, é possível
retomar a sequência do relato do Professor Ricardo Leite:
Mas, em determinada época ele me abordou na academia e falou: “Você... é...
Fudoo Myoo Sama falou e eu também estou sentindo que você não concorda
comigo, e vai me abandonar um dia!” [emoção] Eu sou muito emotivo
desculpe! Essas coisas são muito fortes pra mim... E aí... Tem muito sangue
aí né? E aí ele pediu pra traduzir, foi o... Célio Taniguchi! Professor aqui da
USP também. E aí ele treinava lá com a gente, e ele pediu para o Célio
78
Taniguchi traduzir a conversa que ele tinha pra dizer pra mim, e ele disse isso
pra mim: “Você um dia vai me deixar, então já prefiro que você já faça isso
logo, que é pra gente já ficar liberado, já estar tranquilo...” Aí eu falei, “Ó
Kawai Sensei, primeira coisa...” Eu era discípulo novo dele, e ele era
praticamente o maior representante que tinha no Brasil, e era o f...!!41
Era o
cara que tinha o todo o domínio aqui sobre o país, e eu já havia visto pessoas
que haviam saído da escola dele e [haviam sido] marginalizadas!
Excluídas! Então eu sabia que mesmo se eu fosse sair de lá não adiantava eu
ir treinar em outra academia. [Era] Exclusão! E falei: “Ó Sensei, então se o
Sensei quiser eu não posso dizer contra, quer dizer Fudoo Myoo Sama está
dizendo né, Deus está dizendo... e o Sensei também está vendo...” [...] Mas
eu falei pra ele: “Então é o seguinte...” – isso já com lágrimas rolando, sem
desespero, mas [com um sentimento] profundo – “... se o Sensei decidir eu
vou parar de treinar, nem adianta ir procurar outra academia, mas eu estou
aqui de coração! Eu gosto muito de aikido, acho que aikido é uma coisa que
estou decidindo pra mim, e gosto muito do Sensei...” – naquela época eu não
via razão, nem caminho algum de dissociação – “... mas se o Sensei está
dizendo eu não vou discordar, nem desacreditar. Mas eu me comprometo
com o seguinte, o Sensei é o único delegado oficial da Aikikai no Brasil. O
Sensei é o cara que é o delegado oficial, então nesse sentido eu peço que o
Sensei se aceitar , que o Sensei continue me aceitando como discípulo e eu
tenho o compromisso de manter o aikido no melhor nível possível, de manter
o aikido da Aikikai...”
Após passar por modalidades verbais e pronominais coletivas, o entrevistado
personaliza seu discurso. O uso de diferentes referentes – institucionais, coletivos, e
pessoais – é uma das características centrais das narrativas orais, sobre esse aspecto
Portelli (2010c, p.22) destaca que
Nos relatos de história oral estas modalidades jamais são separadas, ou
separáveis, de modo nítido ou explícito; pelo contrário a arte de contar a
história consiste em combiná-las de maneira criativa em estruturas
significativas [...].
Fortemente emocionado, o Professor Ricardo indica que as diferenças com o
Mestre Kawai tinham chegado ao limite. A metáfora sanguínea utilizada pelo
entrevistado é descrita no tempo presente, momento em que o narrador interpreta suas
memórias e tenta entender o que aconteceu para que ele e o mestre se separassem.
Entretanto, as diferenças entre o poder do senhor Kawai – advindos de sua delegação e
de sua graduação – e a posição do Professor Ricardo dentro da Federação Paulista de
Aikido se tornaram um ponto de inflexão em sua fala, pois não havia como concorrer
com o maior representante do aikido no Brasil. Desse modo, a falta de outros mestres de
aikido e a inexistência de outros dojos de treinamento a época, poderiam fazer com que
os títulos de graduação do entrevistado ficassem reduzidos a meros pedaços de papel, já
que ele não teria nem o reconhecimento da Federação Paulista de Aikido, muito menos
41 O entrevistado não usou um palavrão, mas apenas a letra “f” de maneira enfática.
79
o da Fundação Aikikai do Japão, que legitima os títulos de dans42
conferidos aos
praticantes de diferentes países.
A graduação de um aikidoísta é seu capital, conforme já foi indicado a partir do
relato do Professor Matias de Oliveira. Esse capital pode assumir diversas formas no
jogo das trocas sociais que ocorrem não só num dojo de aikido, mas em um espaço mais
amplo de relações como, por exemplo, no que diz respeito a outros agentes sociais que
participam do mesmo campo e estão filiados a outras instituições. As diferentes feições
que uma ou mais formas de capitais podem assumir, especialmente em um cenário
marcial como o do aikido definem não só a participação dos sujeitos em relação às
“paradas em jogo” para usar uma expressão de Bourdieu (1983), mas também o seu
direito de jogar o jogo.
O capital – que pode existir no estado objectivado, em forma de propriedades
materiais, ou, no caso do capital cultural, no estado incorporado, e que pode
ser juridicamente garantido – representa um poder sobre um campo (num
dado momento) e, mais precisamente, sobre o produto acumulado do trabalho
passado (em particular sobre o conjunto dos instrumentos de produção), logo
sobre os mecanismos que contribuem para assegurar a produção de uma
categoria de bens e, deste modo, sobre um conjunto de rendimentos e ganhos.
As espécies de capital, à maneira dos trunfos num jogo, são os poderes que
definem as probabilidades de ganho num campo determinado (de facto, a
cada campo ou subcampo corresponde uma espécie de capital particular, que
ocorre, como poder e como coisa em jogo, neste campo). Por exemplo, o
volume do capital cultural (o mesmo valeria, mutatis mutandis, para o capital
económico) determina as probabilidades agregadas de ganho em todos os
jogos em que o capital cultural é eficiente, contribuindo deste modo para
determinar a posição no espaço social (na medida em que esta posição é
determinada pelo sucesso no campo cultural). (BOURDIEU, 2007, p.134)
É possível reconhecer na fala do entrevistado, o lugar reservado à graduação,
especialmente se levados em consideração todo o tempo e energia investidos pelo
Professor Ricardo em sua formação como aikidoísta. Além da desvalorização de seus
títulos como aikidoísta, também havia o risco da identidade do Professor Ricardo ser
afetada pela marginalização e pela exclusão a que estaria sujeito caso o rompimento
com o mestre se efetivasse.
A análise das memórias do ex-seguidor do Mestre Reishin ainda permite
verificar como determinações sociais e significados pessoais se cruzam no
desenvolvimento da identidade. Não obstante sua experiência tão íntima como ex-uchi-
42 Após atingir a faixa preta no aikido, o praticante ainda pode galgar diferentes dans ou graus na escala de hierarquia
estabelecida pela Fundação Aikikai do Japão. Esses graus são divididos da seguinte forma: 1º grau – shodan; 2º
grau – nidan; 3º grau – sandan; 4º grau – yodan; 5º grau – godan; 6º grau – rokudan; 7º grau – nanadan; 8º grau –
hachidan. Graduações superiores a essas não são mais concedidas pela Aikikai, entretanto, há mestres ainda vivos
que tem graduações superiores, recebidas diretamente do fundador do aikido.
80
deshi do senhor Kawai, o significado atribuído pelo Professor Ricardo ao aikido está
atrelado a um reconhecimento institucional, por isso palavras como “lealdade” e
“gratidão” assumem uma conotação diferente em seu discurso, pois ao invés de serem
reservados ao seu antigo mestre, são empregadas para registrar sua reverência ao aikido
da Aikikai.
[...] ele como representante da Aikikai foi um cara que introduziu o espírito
de lealdade no melhor sentido! De gratidão, de valorização à família
Ueshiba. Porque ele mesmo não tinha tanto vínculo com a família Ueshiba,
mas era realmente a linhagem que a gente queria seguir e ele cultivou no
Brasil inteiro o respeito a essa linhagem. E fez muito sentido pra nós, tanto
que ele não impôs! Ele cultivou, implantou com todo carinho e todo mundo
se apropriou desse carinho pela família Ueshiba e pela linhagem da Aikikai.
A sequência da entrevista com este professor revela que sua ruptura efetiva com
o Mestre Kawai se deu em 1990, e em 1991 o entrevistado se ligou ao Mestre
Yoshimitsu Yamada, delegado da Fundação Aikikai na América do Norte. A partir de
então, o Professor Ricardo passou a contar com o reconhecimento e a orientação técnica
do Mestre Yamada, e abriu seu próprio dojo43
na capital paulista, contudo, pode-se dizer
que o primeiro Mestre não só ainda é presente em suas memórias, como faz parte de sua
própria identidade:
A minha relação com o Kawai Sensei foi muito rica pra mim, eu nunca vi
desgosto da parte dele com relação à vivacidade da nossa relação... [em
relação à] simbologia da nossa relação, ao amor da nossa relação, à
sinceridade da nossa relação...
Na esteira dos diálogos encetados, o Professor Bento Guimarães toma a vez e ao
descrever suas memórias registra suas impressões acerca do que entende ser o aikido a
partir de suas experiências como professor, mas também como aluno que teve como
mestres os Senseis Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai. Sua identidade se desvela como
um substrato de seu discurso.
E ao contrário do Nakatani, eu com o Shikanai a gente conversava muito! A
gente conversava muito! Então quer dizer respondendo a sua pergunta, esse
troço me impressionou muito essa coisa de educador, porque eu nunca tinha
feito essa correlação. Pra mim arte marcial era luta! Quer dizer era um
educador isso era uma, já uma coisa... Pra mim foi até revolucionário!
O recorte acima permite divisar a complexa relação de dependência e influência
mútua entre a memória e a identidade. Considerada como o “esteio da identidade”
43 www.bushinkan.com.br
81
segundo afirma Delgado (2010, p.14), a memória tem uma natureza ativa e está
permanentemente sujeita a modificações, distorções, omissões, invenções, etc. Desse
modo, a identidade como seu substrato, também assume um caráter de não fixidez e de
mutabilidade. Isso não significa, no entanto, que não haja qualquer coerência ou coesão
como já foi apontado na análise da narrativa da Professora Lilba um pouco mais acima.
Entretanto, esse caráter de mudança da identidade é acentuado no relato do Professor
Bento Guimarães que explica em sua narrativa o quanto sua concepção de aikido se
modificou a partir da transição de mestre. Nessa perspectiva, Delgado (2010, p.51) a
memória como fundamento da identidade caracteriza-se como “[...] um processo
dinâmico, dialético e potencialmente renovável, que contém no seu âmago as marcas do
passado e as indagações e necessidades do presente.”
A influência e o caráter de educador do Mestre Shikanai alteraram
completamente a visão do entrevistado que modificou não apenas sua percepção a
respeito do aikido, mas também seu comportamento junto a seus próprios alunos. Essas
mudanças podem ser constatadas a partir de dois outros trechos de sua entrevista. No
primeiro o Professor Bento, explica com certa ironia a despreocupação do seu primeiro
Mestre, o senhor Nakatani com qualquer tipo de formalidade ao ministrar seus
treinamentos:
O Nakatani era totalmente fora do padrão, entendeu? [riso] Ele não seguia...
Ele não estava nem interessado nessas coisas, de procedimento padrão. [...]
Tanto que eu nunca usei faixa, e o Professor Nakatani nunca se importou. Ele
não estava nem aí para isso! Se quisesse usar usava, se não quisesse não
usava! Ele era tão pouco ortodoxo que nem hakama ele usava. Ele não usava
hakama!
Na sequência, o entrevistado ao discorrer sobre seu início como professor de
aikido – já sob a orientação do Mestre Shikanai – relata ao entrevistador:
Eu quando comecei a dar aula tal, eu sempre fiz questão dessa coisa da
etiqueta, do cerimonial, eu nunca admiti o menor deslize nesse sentido. [...]
Eu por exemplo, eu não deixava aluno meu fazer aula se ele chegasse
atrasado. Não deixava. Podia deixar assim excepcionalmente, mas mesmo
assim eu ia criar um clima lá com ele bem desagradável. Eu considerava isso
uma falta de respeito! E hoje em dia eu vejo, inclusive entre os meus alunos,
hoje em dia essa coisa está praticamente desaparecendo. O aluno chega a
hora que quer, entendeu? Isso tudo pra acomodar pra... Então essa coisa você
vai perdendo aquele ambiente espiritual! De respeitar a aula? De chegar
cedo e respeitar, e isso tudo vai... Na verdade parece que o objetivo hoje em
dia é exigir o mínimo do aluno, sabe? “Ah não, ele já está muito traumatizado
com as coisas que acontecem... então aqui tem que ser um negócio agradável
e tal.” Mas não era pra isso né? Dojo é como a própria palavra dojo significa:
lugar do caminho. Supostamente é porque você está interessado em achar o
82
seu caminho! Por isso que é bom o professor ter outro trabalho, não ficar
dependendo do que ele está ensinando não, de aikido... Porque senão ele
começa a ter essa pressão sabe? Se você não depende do que você está pra
viver, você pode ficar à vontade! O aluno não gosta vai embora! É
importante o aluno ir embora entendeu? Porque você seleciona. O problema
em arte é esse negócio, o negócio vai crescendo, crescendo... Isso pronto
acabou! A qualidade [caiu]...
O contraste entre os dois trechos acima, reflete o quanto as impressões e a
identidade do Professor Bento Guimarães foram transformadas a partir da sucessão de
suas experiências na prática da “arte da paz”. A mudança de sentido operada na
consciência do entrevistado além definir sua interpretação bastante parcial em relação
ao aikido – e a outras artes marciais japonesas – revela traços únicos de sua identidade,
como por exemplo, o rigor e a austeridade. Não se pode afirmar, entretanto, que essas
características da personalidade do Professor Bento foram apreendidas exclusivamente a
partir da convivência com o senhor Shikanai que demonstrou uma visão de aikido mais
maleável, o que poderá ser constatado mais adiante na apresentação de seu relato.
Essa mudança na percepção do Professor Bento dá margem a outra análise
oportuna na lida com fontes orais. Assim, é possível refletir sobre em que medida uma
categoria macrossociológica como o conceito de habitus de Bourdieu (1983) guarda –
ou não – alguma relação com a noção de identidade nos níveis individual e coletivo.
Para tanto, é necessário definir o conceito de habitus que pode segundo Bourdieu (1983,
p.125) ser considerado como um
[...] sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou
explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de
estratégias que podem estar objectivamente em conformidade com os
interesses objectivos dos seus autores sem terem sido expressamente
concebidas para esse fim. (BOURDIEU, 1983, p.125).
Essa reflexão é aqui proposta, pois com frequência a expressão habitus é
aproximada da(s) noção(ões) de identidade, o que implicaria em definir traços comuns a
diferentes indivíduos, como, por exemplo, uma possível identidade coletiva
compartilhada pelo Professor Bento Guimarães e os outros alunos do Mestre Ichitami
Shikanai. O referencial teórico de Candau (2012) é que permite mediar a aparente
impossibilidade de conciliação entre as instâncias individual e social. Segundo esse
autor,
[...] as estratégias identitárias de membros de uma sociedade consistem em
jogos muito mais sutis que o simples fato de expor passivamente hábitos
83
incorporados. Evidenciar essa sutileza constitui, aliás, o aporte principal das
teses situacionais, desenvolvidas em oposição ao primordialismo. Essas teses
são muito convincentes, uma vez que sustentam que as identidades não se
constroem a partir de um conjunto estável e objetivamente definível de
“traços culturais” – vinculações primordiais –, mas são produzidas e se
modificam no quadro das relações, reações e interações sociossituacionais –
situações, contexto, circunstâncias – de onde emergem os sentimentos de
pertencimento, de “visões de mundo” identitárias ou étnicas. (CANDAU,
2012, p.27).
Não se desconsidera a pertinência e o valor da categoria interpretativa formulada
por Bourdieu, mas é evidente que em trabalhos com fontes orais – as quais são sempre
parciais – qualquer traço de generalização implica na perda daquilo que a história oral
proporciona de mais rico, ou seja, a forma idiossincrática como as pessoas interpretam e
conferem sentido à realidade. Aproveitando um dos trechos da entrevista do Professor
Bento, é possível relacionar sua fala com a reflexão que está sendo aqui empreendida:
Arte marcial é coisa pequena! Arte marcial de qualidade é coisa
pequena! É coisa dentro de uma sala assim ó 44
! Aí você começa a fazer
federação não sei o que, pode ter certeza que isso vai virar bagunça! E você
acha lugares com essa tendência em fechar a coisa! Voltar às origens
entendeu? Aí você tem grupos pequenos... Você tem Professor aí de diversas
artes com dez, doze alunos... Dez, doze alunos! E ele não quer mais não!
O trecho acima reflete de forma metafórica a questão da identidade individual
que tende a ser obliterada em um nível coletivo, social. Quantidade e qualidade são
noções antagônicas, tanto no discurso do entrevistado, quanto em relação às discussões
sobre identidade(s), que muitas vezes tendem a solapar diferenças em favor de análises
totalizantes e essencialistas.
Por ser a memória um fenômeno construído, é possível observar como por meio
de sua organização narrativa, o entrevistado – e esse comentário não está adstrito ao
Professor Bento – quer ser visto pelo entrevistador. Ainda que o pesquisador module
por meio de suas perguntas aquilo que o entrevistado vai falar, em última instância o
trabalho de organização de memórias e a forma como a narrativa vai ser proferida são
sempre exclusividade do entrevistado. Assim, ao verbalizar suas lembranças, o narrador
realiza uma performance que não é apenas oral, mas sim total, já que dispõe de outros
elementos, como por exemplo, a linguagem não verbal e as relações espaciais durante a
entrevista, para que consiga expressar suas recordações e ao mesmo tempo revelar sua
44 O entrevistado exemplifica o tamanho “ideal” de um dojo de aikido, fazendo referência ao espaço (pequeno) da
sala da sua residência.
84
identidade. Nesse sentido a narrativa do Professor Adélio Andrade, presta grande
contribuição:
E em 1971 um amigo meu estava praticando o aikido... naquela época o
aikido era pouco conhecido, só tinha o Nakatani no Brasil, havia inaugurado
uma academia na Barata Ribeiro, aqui em Copacabana, em 1970. Então isso
foi final de 70 que ele abriu a academia, creio eu... e em 71, em julho, dia 15
de julho esse colega me convenceu a ir assistir uma aula, eu fui assistir aí
gostei da filosofia, gostei dos movimentos e essas coisas e tudo mais. Aí me
matriculei e comecei a praticar, abandonei o que eu estava fazendo, treinando
com o pessoal do telecatch porque era totalmente diferente, ali tinha tudo:
pancadaria, tinha jiu-jitsu, capoeira, luta livre – greco-romana no caso –
enfim, tinha tudo.
Da mesma forma que o telecatch é uma luta bastante performática, a entrevista
do Professor Adélio também o é. Enquanto fala, o entrevistado senta e levanta várias
vezes, descreve golpes no ar, explica técnicas, bate sobre a mesa, arregaça as calças e
mostra suas lesões nos joelhos... Alguns fatores podem ter contribuído para que o relato
do Professor Adélio fosse apresentado dessa forma, como por exemplo, o fato de o
entrevistador desconhecer antecipadamente o entrevistado, a diferença etária entre
ambos, o nível de graduação do Professor Adélio como artista marcial, a possibilidade
de poder contar suas memórias e ser escutado, entre outros.
Considerando-se que as memórias são lastros de identidade, é necessário,
especialmente no trabalho com história oral, levar em conta as circunstâncias que
influenciaram a relação de entrevista, as quais por sua vez, vão dar ensejo à produção da
identidade do entrevistado. Corroborando com esse raciocínio, Pollak (1992) explica
que a questão da identidade sempre se põe em relação ao outro. Desse modo, o autor
afirma que:
Se assimilamos aqui a identidade social à imagem de si, para si e para os
outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao
indivíduo e, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o Outro.
Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de negociação,
de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um
fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios
de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio
da negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade podem
perfeitamente ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser
compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo. (POLLAK,
1992, p.204).
Narrativas, temporalidades e identidades são as marcas do trabalho com fontes
orais. Compreender como a realidade foi apreendida, também é verificar como
diferentes identidades se constituíram. No caso do Professor Adélio Andrade, por
85
exemplo, é possível constatar como suas memórias sobre o afastamento do Mestre
Teruo Nakatani dos tatames, influenciou sua identidade e seu caminho marcial como
praticante e Professor de aikido:
Então nesse dia ele reuniu os alunos e comunicou que as atividades, [que]
não poderia mais vir para o Rio de Janeiro e tinha que fechar a academia. Aí,
eu que sempre fui assim na minha vida, continuo sendo, tenho 70 anos já
feitos, completos, e continuo sendo assim, questiono tudo, aí falei: “Sensei,
eu não concordo com o senhor fechar a academia! O senhor já procurou
analisar as possibilidades de alguém assumir, de alguém ficar sob o seu
comando?” [ele respondeu] “Ah... é uma boa pergunta, seria mas... realmente
Herbert não pode [era um faixa preta], Eduardo também não pode, não sei o
quê, todos eles têm coisas, não tem ninguém pra assumir...” Aí eu falei,
“Sensei é uma pena, porque eu acabo de fazer exame pra faixa marrom e vou
parar nisso?” Aí eu falei pra ele: “Puxa eu já sou marrom de judô e não sei o
quê, nunca vou conseguir nada? E agora que eu estou gostando?” Aí ele falou
assim: “Olha, há uma coisa, você assumiria a academia?” E eu falei: “Sensei
eu sou faixa marrom, o senhor acabou de me dar a faixa marrom!” “Não
importa!” [Eu] falei: “Sensei, olha assumir eu assumo, agora tem uma
condição, o senhor me dá carta branca?” Ele falou, “O que é isso „carta
branca‟”? Ele não sabia o que era carta branca. Eu falei, “Sensei, eu sou você
na sua ausência! Então só isso! Eu sou você na sua ausência. Eu vou fazer
tudo o que eu acho que o senhor faria! Obviamente tecnicamente não, eu não
tenho a sua técnica e tudo mais... Mas eu vou pensar, eu sou você e fim de
papo! Agora, também todo mundo vai me obedecer!” Aí ele falou: “Carta
branca é isso? Ah, está dada a carta branca! Você assume mesmo Adélio?”
“Assumo!”
Ao falar pelo Mestre Nakatani em seu relato, o entrevistado não legitima a
passagem de comando apenas em relação aos seus colegas de tatame mais graduados,
mas também em relação ao entrevistador. Nesse sentido, é cabível recordar que a
entrevista como espaço de narração permite ao entrevistado que projete sua identidade
por meio de seus relatos, de suas lembranças. Sobre essa característica de constituição
de diferentes identidades própria do trabalho com fontes orais, Alberti (2000, p.5)
afirma que
[...] em um trabalho de história oral, a biografia, a trajetória individual, não é
coisa dada, mas construída à medida mesmo em que é feita a entrevista. Se a
pessoa tem o costume de refletir sobre sua vida, provavelmente já tem uma
espécie de sentido cristalizado para alguns acontecimentos e percursos e pode
preferir relatar esses, em vez de outros. Isso não quer dizer que aquele
sentido seja falso ou não tenha relação com a realidade. É preciso ter claro,
contudo, que ele não é a única possibilidade.
A graduação ocupa um lugar de destaque não apenas no fragmento acima, mas
ao longo de toda a entrevista com o Professor Adélio que em outro trecho de sua
narrativa afirma categoricamente: “Nunca na minha vida eu fui reprovado em nada
86
também!”45
Sua principal característica é o exagero, traço peculiar de sua identidade,
de sua concepção a respeito da “arte da paz”. Isso pode ser constatado na continuidade
da narrativa do entrevistado que explica: “Então aí eu assumi, assumi e comecei a
desenvolver o meu aikido.”46
Essa talvez seja a frase mais emblemática de toda a
entrevista realizada com o Professor Adélio, que explicou posteriormente ter inserido
técnicas novas em seu aikido, como por exemplo, o armlock – uma chave de braço que
faz parte do rol de técnicas do judô e do jiu-jitsu – e a “biqueira”, segundo ele o mesmo
chute ensinado por Steven Seagal aos lutadores de MMA, Anderson Silva e Lyoto
Machida47
.
Ainda que as descrições do Professor Adélio apresentem certo grau de
comicidade em diversos momentos, a organização de sua narrativa guarda certo grau de
coerência, especialmente se for levada em conta a experiência de treinamento do
entrevistado com o telecatch. Obviamente que o feixe de influências que permitem ao
entrevistado conciliar elementos tão distintos como a “arte da paz” com as lutas de
MMA – geralmente associadas a altos índices de violência – não pode ser reduzido
apenas às suas experiências no terreno das lutas e das artes marciais. Nessa linha de
raciocínio, Delgado (2010) explica que as pesquisas com fontes orais, sobretudo quando
se debruçam sobre as questões da identidade, devem levar em conta que
O ser humano tem múltiplas raízes: familiares, étnicas, regionais, nacionais,
religiosas, partidárias, ideológicas, culturais. Sua vida é uma totalidade, na
qual processos diversificados conformam a dinâmica do viver. (DELGADO,
2010, p.51).
Da capital carioca a Belo Horizonte, quem toma a vez na ordem dos relatos é o
Sensei Ichitami Shikanai. Sua narrativa começa com a interrogação que deu origem ao
título deste capítulo:
Que tipo de aikido você gosta? “Ah, eu gosto mais de defesa pessoal!” [ou]
“Não, eu gosto mais harmonia, eu gosto desse filosofia de fundador...” Tem
vários tipos. Então acaba criando divisão. [...] Mas eu sou reconhecido pela
academia central, então todo mundo me respeita obrigatoriamente. [riso] Essa
que é a diferença entre outro instrutor que tem grupo, ele não tem autoridade,
porque a academia central não reconhece; através do grupo [é que] ele vai
chegar lá... Mas eu particularmente não tenho organização, mas a academia
central me reconhece. Então, depois de morrer por exemplo, meu grupo, vai
45 [00:05:35] 46 [00:09:40] 47 Anderson Silva também conhecido como “The Spider” e Lyoto Machida “The Dragon” são lutadores brasileiros de
artes marciais mistas. Por seus resultados no UFC (Ultimate Fight Championship) ganharam fama e grande
visibilidade internacional.
87
dar problema. Eu tenho que providenciar isso antes de eu morrer, tem que ter
[uma] organização. Esse tipo de arte tradicional japonês geralmente – aikido
é arte moderna – arte tradicional japonês, tem essa linha, e linha é coisa mais
importante na cultura dessa organização. Mas esse aikido, “Aikikai”, aqui
fala Aikikai, é organização modelo. Ele para Aikikai importante... Eu não uso
organização porque eu quero manter essa coisa tradicional. Ensinamento de
técnica, transmissão é individual. Quem faz arte ou, quem faz isso é
cerimônia de chá, arranjo floral, zen budismo, é estilo antigo de arte marcial
japonesa, qualquer estilo, jujutsu, kenjutsu, etc. Tudo coisa antiga que a gente
respeita, é mesmo jeito. Não é assim aula, seminário pra todo mundo assim,
não é não. Transmissão individual! Porque cada um diferente né? Como
cuidar pranta [planta] de cada lugar. Hoje em dia fazendeiro grande “Pow!”48
Não cuida né? Arte não é assim não, transmissão individual. Eu quero manter
isso. Só que a academia central quando cresce demais tem que ter através de
organização para ser... Por exemplo, se um dia... vamos supor [que houvesse
um] “governo mundial” né? Então quem vai definir [que] você é cidadão
mundial desse planeta Terra! Então quem reconhece? “Oh, governo Brasil,
você reconhece, brasileiro!” “Presidente da Argentina, você reconhece?
Você vai carimbar argentino?” Então governo mundial reconhece como se
fosse cidadão... [riso] nesse sentido. A academia central acho que quer adotar
essa sistema. Sistema organização democrática. Então, essa transmissão
individual não é democrática. Se achar bom ensina, se [não] gostar não
ensina. Eu tenho frente de mim, tem cinco alunos importantes, mas para mim
você diferente dele. Então sou opinião diferente, fala diferente, por causa de
pensar seu crescimento, seu entendimento, seu maneira de entender, seu
maneira de ser homem, aí muda palavra e ensina individual. Não pode dizer
igualmente, igual, igual: “faça isso”, não é assim. [inaudível] Então eu tenho
que manter isso, eu quero manter isso aqui.
Além dos diversos estilos marciais de aikido criados pelos ex-seguidores de
Morihei Ueshiba e descritos no início desta seção, o Mestre Shikanai acrescenta que a
escolha por uma forma ou outra de aikido tem relação direta com o gosto pessoal, com a
identidade do praticante. Predisposições, valores, crenças, ou seja, a história de vida irá
concorrer para determinar não apenas a escolha do estilo de aikido a ser praticado, mas
também a forma como o praticante irá interpretar e atribuir significado ao “seu” aikido.
Acrescente-se ainda, que dentro de um mesmo estilo, como é o caso, por exemplo, do
aikido Aikikai – praticado por todos os professores entrevistados neste estudo – há
variações que são fruto das diferenças de identidade entre os mestres imigrantes que
aportaram no Brasil. Seus entendimentos, suas noções e interpretações também estão
presentes na forma como difundiram – e continuam difundindo como é o caso do
Mestre Shikanai – seu aikido. Isso por si só, na compreensão do entrevistado gera
“divisão”.
No caso do senhor Ichitami ainda há outro fator que acrescenta um nível maior
de complexidade na compreensão da relação entre identidade e significados pessoais
48 Trata todas as plantas da mesma forma, sem respeitar as peculiaridades de cada espécie.
88
atribuídos ao aikido. Isso porque, o entrevistado explicou que gosta de “Bastão e espada.
Pessoa que não interessa bastão e espada, já divisão comigo!”49
O bastão e a espada aos
quais o Sensei Shikanai se refere são outros dois tipos de budō que há anos esse Mestre
treina, o jodo e o iaido. O primeiro, é uma forma de caminho marcial que utiliza o
bastão ou jō50
na defesa contra movimentos de espada. Não há nenhuma forma de
combate na prática de jodo, mas apenas técnicas denominados kihon, que são treinadas
individualmente ou em duplas. Já o iaido, compreende um conjunto de técnicas
exclusivamente para desembainhar uma espada. Assim como o jodo, o iaido não possui
qualquer tipo de competição e está adstrito ao estudo minucioso do saque da espada
japonesa conhecida como katana. Trata-se de uma forma de aprimoramento pessoal e
espiritual, por meio de um treinamento extremado da concentração.
Se as experiências do Mestre Shikanai com outras formas de budō fossem
desconsideradas, dificilmente se compreenderia sua concepção atual acerca da “arte da
paz”, que no seu entendimento – apesar de ser uma arte marcial moderna – deve ser
transmitida individualmente. No desenrolar de sua entrevista, o senhor Shikanai
explicou ao entrevistador que nas formas ditas tradicionais de budō – como é o caso do
jodo e do iaido – se não houver uma indicação fortemente respaldada por outro
praticante “Como se fosse [um] fiador, ninguém aceita para praticar arte marcial!”51
A noção de tradição atravessa em diferentes momentos as descrições do
entrevistado e é oposta ao modelo de organização preconizado pela Fundação Aikikai
do Japão. Em sua consciência há a associação entre tradição e transmissão, como se os
seus ensinamentos – com a marca de sua identidade – pudessem ser mantidos e
perpetuados tal como foram apreendidos pelos seus seguidores. O efeito de sentido
produzido pela fala do Mestre Shikanai leva a crer numa espécie de transmissão pura,
livre de todo e qualquer tipo de influência. Mais a frente – e essa discussão ficou
reservada ao próximo capítulo – o entrevistado irá reconhecer por meio de seu discurso
a dificuldade de fazer com que seus alunos compreendam a importância de manter a
tradição e de não criar adaptações ou mudanças que maculem a sua arte.
A partir dessas noções de tradição e transmissão descritas pelo Sensei Shikanai
em sua narrativa, é possível recorrer a Candau (2012, p.121) que explica que a tradição
49 [00:13:35] 50 Devido à sua característica física (1,28 cm de comprimento e cerca de 2,6 cm de diâmetro), o jo permite um
manuseio fácil e uma grande variação de movimentos contra os ataques da espada, podendo estocar como a lança,
dar pancada como a espada e ser arremessado como uma foice, sem que, necessariamente, provoque a morte
do adversário. Fonte: www.albertoaikidorj.com.br/jodo.html 51 [01:30:47]
89
está fortemente associada à lógica identitária e é moldada pelo “[...] presente de onde
obtém sua significação”. O autor ainda acrescenta que o apelo à tradição encontra
[...] sua justificativa não apenas em assegurar uma continuidade fictícia ou
real entre o passado e o presente, mas também em satisfazer uma lógica
identificadora no interior do grupo, mobilizando deliberadamente a memória
autorizada de uma tradição. (CANDAU, 2012, p.122).
O que se pode observar na fala do Mestre Shikanai não pode ser interpretado
apenas como um apelo à manutenção de um suposto legado marcial, pois seu relato
reflete sua identidade – a qual, em sua interpretação – corre o risco de desaparecer caso
a tradição não seja respeitada. Desse modo, o entrevistado usa metáforas que em um
nível mais profundo traduzem suas experiências de vida, ou seja, de alguém que saiu da
região agrícola de Hakkoda nas cercanias da cidade de Aomori e confrontou a realidade
de grandes cidades como Tóquio e o Rio de Janeiro. Assim, uma “pranta” no seu
português carregado demanda cuidados especiais de acordo com o local onde foi
plantada, ao passo que a individualidade e as características únicas de cada sujeito
desaparecem em relação a um “governo mundial”.
Percebendo esse movimento organizacional que visa adquirir um monopólio
institucional cada vez maior sobre professores e praticantes de aikido de diferentes
países, o senhor Ichitami fala com certa perplexidade tentando entender como um
modelo de ensino democrático e impessoal pode realmente contribuir para a formação
de bons artistas marciais, e por consequência de bons seres humanos. A seu modo, o
Mestre Shikanai descreve no contexto de sua entrevista reflexões que se aproximam do
objetivo do presente capítulo desta dissertação: valorizar o indivíduo e sua identidade,
suas peculiaridades a partir de sua concepção de aikido. Nesse sentido, a história oral
presta grande contributo ao revalorizar o sujeito, sua identidade e suas memórias.
Alberti (2004) enfatiza o papel da história oral, como metodologia privilegiada capaz de
romper com posturas totalizantes e essencialistas ainda bastante comuns em pesquisas
de diferentes áreas das ciências humanas que tendem a desvalorizar o indivíduo em
detrimento das análises macrossociológicas:
Tomar o indivíduo como valor não é apenas considerá-lo uma entidade
valorizada em nossa cultura “individualista”. É verificar que a crença no
indivíduo autônomo e igual perante os outros, que é também o indivíduo
único e singular, o ser psicológico, dá sentido a uma série de concepções e
práticas em nosso mundo. Basta ver que, em outras culturas, igualdade,
liberdade, singularidade psicológica etc. não dão sentido a práticas e modos
de ser, para reconhecer que esse indivíduo é um valor em nossa cultura, não
90
tendo nada que ver com uma suposta “natureza humana”. (ALBERTI, 2003,
p.2).
Não obstante o ar de tristeza e descrença em relação ao futuro de seu trabalho, o
Sensei Shikanai reconhece que em algum momento antes de morrer terá que se dobrar à
lógica coercitiva da Fundação Aikikai. Ou seja, ainda que seu método de ensino seja
baseado na transmissão individual – inclusive de outros caminhos marciais como o jodo
e o iaido – o mestre Ichitami entende que não pode se eximir da tarefa de buscar uma
filiação formal junto à Fundação Aikikai sob o risco de também reduzir os títulos de
seus alunos a meros pedaços de papel, como exemplificado no caso do professor
Ricardo Leite. Sem recorrer novamente à questão da importância dos dans (graduação)
como uma forma de capital entre os aikidoístas, o comentário do Sensei Shikanai dá
margem a uma discussão permanente nos estudos socioculturais sobre a identidade, a de
que não existe identidade individual ou coletiva sem uma experiência de contraste, ou
seja, em relação ao outro.
Além disso, precisamos considerar que toda identidade é uma construção
histórica: ela não existe sozinha, nem de forma absoluta, e é sempre
construída em comparação com outras identidades, pois sempre nos
identificamos como o que somos para nos distinguir de outras pessoas. A
identidade feminina, por exemplo, se constrói ante a identidade masculina, a
identidade dos negros ante a identidade dos brancos etc. (SILVA, K. V.;
SILVA, M. H., 2012, p.204).
Orientando essa discussão para o escopo desta pesquisa, pode-se dizer que a
relação de entrevista produz duas identidades, a do entrevistado e a do entrevistador,
ainda que esta última esteja esmaecida, eufemizada. No caso de um trabalho de história
oral essa questão atinge um grau superlativo, pois além do entrevistado produzir sua
identidade no curso da relação de entrevista a partir das questões propostas pelo
entrevistador, sua entrevista é posteriormente transcrita – portanto manipulada – e de
acordo com o critério de seleção daquilo que será analisado na narrativa do entrevistado
haverá também um processo de edição que implica em cortes, recortes, montagens e
desmontagens do texto transcrito. Acrescente-se ainda, a forma como o narrador é
apresentado ao leitor no decorrer do texto, a qual está sujeita às impressões do
entrevistador e às orientações de sua pesquisa. Ou seja, aquela identidade inicial – a
produzida no momento da entrevista – é apresentada de uma forma bastante diversa
daquilo que inicialmente foi percebido no encontro de gravação. Assim, fundem-se no
91
trabalho com fontes orais as identidades do entrevistado, a do entrevistador, e a do
próprio leitor que realiza uma interpretação bastante pessoal daquilo que está lendo.
Dessa forma, tanto as concepções de aikido, como as identidades dos professores
aqui apresentadas e analisadas, repousam menos em aspectos factuais do que nos
sentidos e significados que informam sobre cada uma de suas identidades.
O próximo capítulo desta dissertação também irá explorar essa sobreposição de
sentidos, contudo, em outra perspectiva, a de relacionar a importância da técnica nos
discursos dos entrevistados, com noções e interpretações acerca da cultura japonesa.
92
5 O JAPÃO E O AIKIDO: ENTRE PRÁTICAS, REPRESENTAÇÕES E
APROPRIAÇÕES
A palavra é meu domínio sobre o mundo.
Clarice Lispector – “A descoberta do mundo”
Este quinto e último capítulo possui uma abordagem diferente em relação aos
anteriores. Invertendo a perspectiva de análise, optou-se por partir de três noções
amplamente difundidas nos estudos socioculturais para então selecionar os trechos das
entrevistas a serem analisados. Ou seja, as narrativas que constam ao longo deste
capítulo, foram coligidas arbitrariamente para viabilizar a discussão sobre práticas,
representações e apropriações. Essas três noções são discutidas a partir de diferentes
referenciais, principalmente, de publicações de Roger Chartier (1990, 1991), Edward
Said (2007) e Ernani Shoiti Oda (2010, 2011). Dentre as possibilidades oferecidas pelas
descrições dos entrevistados para análise, dois temas foram selecionados: o primeiro diz
respeito às representações sobre o Japão, sua cultura e seus valores, e o segundo está
relacionado às apropriações e significados atribuídos ao aikido por parte dos narradores.
Os diferentes discursos sobre o aikido e o Japão foram aqui tomados como o âmbito da
prática, na articulação das noções de práticas, representações e apropriações. Isso
porque o objetivo desta pesquisa é analisar os significados presentes nas memórias dos
entrevistados, e não sua performance concreta nos treinamentos do aikido.
No meio das artes marciais japonesas, é bastante comum a presença de
narrativas laudatórias e carregadas de veneração em relação aos comportamentos e
virtudes definidos como “tipicamente” nipônicos. São impressões por vezes desprovidas
de criticidade e que tornam o Japão um lugar homogêneo e inerte, onde diferentes
valores e crenças podem ser anotados conforme o bel prazer daquele que versa acerca
da nação insular japonesa. Essa característica, no entanto, não faz parte apenas dos
discursos dos praticantes de artes marciais, pois também pode ser observada em autores
de diferentes áreas, inclusive, no próprio meio acadêmico. A título de exemplo, podem
ser citados os trabalhos de Célia Sakurai (2008) e Marcel Farias de Sousa (2010) que
mesmo procurando desconstruir estereótipos associados aos japoneses e à sua cultura,
93
acabam tentando definir as características típicas dos japoneses52
, no caso da primeira
autora, ou traçar as diferenças de pensamento entre ocidentais e orientais conforme
indica o segundo autor53
.
Para aprofundar a discussão em relação aos japoneses e sua cultura, é possível
recorrer a um trecho da entrevista do Professor Matias de Oliveira que procura explicar
o quanto o imediatismo ocidental impede que os praticantes de aikido percebam os
supostos benefícios intangíveis que podem ser auferidos a partir de uma dedicação
sincera a esse caminho marcial.
[...] Porque pra você realmente receber os benefícios do aikido, você vai ter
que treinar muitos anos, e o nosso... o ocidental ele é imediatista! Ele quer
retorno rápido! Então a pessoa que treina aikido mais de cinco anos, com
certeza vai entender o aikido, ele vai receber esses benefícios da prática do
aikido. Realmente vai se tornar um praticante de aikido, e não um praticante
das técnicas do aikido. Então só nesse momento que ele começa a ser
realmente um praticante de aikido, ele vai entender os benefícios do aikido
em si, não só como atividade física, mas como uma filosofia que é aplicada
em todas as situações do dia a dia. E aí ele começa a receber os benefícios.
Mas isso aí não é palpável para o ocidental. Para o oriental sim! Mas para o
ocidental não. [...]
O excerto acima evidencia, no entendimento do entrevistado, as diferenças
culturais entre ocidentais e orientais. Obviamente que não se pode desconsiderar o
lugar de onde o entrevistado fala, por isso como administrador e continuador do legado
marcial de seu sogro, o Professor Matias reconhece as dificuldades de uma maior
adesão ao aikido em função de suas características ainda é pouco atrativo aos ocidentais.
A compreensão do entrevistado é de que os japoneses conseguem desfrutar
verdadeiramente dos benefícios do aikido em função de sua natureza oriental e não
necessariamente por sua dedicação e estudo da “arte da paz”.
As representações do entrevistado reservam um lugar privilegiado aos habitantes
da terra do sol nascente, os quais sabem valorizar aquilo que não é imediato e que custa
ser alcançado, pois entendem verdadeiramente o que é um dō japonês. Seu relato – além
de ter um efeito de sentido de propriedade sobre o Oriente – parece ter sido proferido
por um japonês que tem consciência de uma suposta superioridade nipônica em relação
ao mundo ocidental. A expressão “representações” acima, demanda um parêntese para
52 Célia Sakurai (2008, p.261) dedica um capítulo inteiro em seu livro “Os japoneses” para definir o que é tipicamente
japonês. A autora dá destaque especial à língua, aos regionalismos e ao associativismo para definir características
próprias e compartilhadas por todos os japoneses. 53 Sousa (2010, p.99) lança mão da comparação estabelecida por Daisetz Teitaro Suzuki (1960) entre os poetas Alfred
Tennyson (inglês) e Matsuo Bashō para definir as diferenças de personalidade entre os “ocidentais” e os
“orientais”.
94
indicar a partir de qual perspectiva essa noção está sendo aqui empregada. Concorrem
para o entendimento de representação – leia-se também representações – aqui presente,
os referenciais teóricos de Edward Said (2007), Ernani Oda (2011). No caso do primeiro
autor, suas incursões teóricas não versaram especificamente sobre o Extremo Oriente, e
nem tinham como objeto de estudo as artes marciais japonesas, entretanto, seus
conceitos e metodologia são cabíveis para auxiliar na interpretação das descrições
produzidas acerca do Oriente. A análise de Said (2007, p.17) baseia-se, sobretudo, na
consistência interna entre os discursos e as representações sobre o Oriente “[...] a
despeito ou além de qualquer correspondência, ou falta de, com um Oriente „real‟.”
Assim, sua análise recai especificamente sobre como as representações acerca do
Oriente Próximo – sua delimitação geográfica para efeito de estudo – adquiriram
espessura e densidade, e ao mesmo tempo sobre como tais representações traduzem
certa forma de dominação por parte do Ocidente em relação ao Oriente. No caso de
Ernani Oda (2011) sua perspectiva teórica refere-se aos discursos ufanistas em torno do
Japão e das virtudes e costumes do povo nipônico a partir da análise das comemorações
do centenário da imigração japonesa no Brasil (1908 – 2008). Oda afirma que tanto os
brasileiros, quanto os próprios japoneses tendem a adotar uma postura conservadora e
acrítica em relação à “cultura japonesa”. O autor explica que
[...] uma das principais razões para isso é a ausência no Brasil de uma
discussão consciente das transformações e das contradições sociais da
sociedade japonesa, e o desconhecimento dos debates entre os principais
pensadores sociais do cenário intelectual japonês. (ODA, 2011, p.104).
Para explicar os discursos de veneração da vida e dos valores japoneses Oda
se debruçou sobre a produção teórica – literária e acadêmica – nipônica, sobretudo, após
os anos 90 onde um novo sopro neonacionalista procurou retomar a primazia da
identidade japonesa e de suas tradições culturais54
(ODA, 2010).
A narrativa do Professor Matias tem continuidade e outras imagens a
respeito dos japoneses surgem em suas descrições:
[...] Eu penso que isso, esses Senseis que nem [o] Morihei Ueshiba, que nem
esses caras, eles eram muito rigorosos nesses princípios do dō, sabe? E a
gente está perdendo isso, a gente está aceitando tudo! “Ah, tudo bem...” A
gente tampa o olho e aceita. Isso é uma atitude que está na nossa cultura já,
agora como que você vai fazer frente a isso? Eu estou falando uma coisa
assim que acontece, você sabe que acontece, a gente sabe que acontece, tudo
54 No bojo dessas tradições estão, sobretudo, a valorização da figura do imperador e a lealdade às virtude e ao
“espírito japonês”.
95
mundo aceita e está tudo bem! “Ah, mas eu não posso fazer nada por isso!”
Não, você pode não aceitar! Assim, tu não compactua com isso! Eu quando
vejo o Brasil cavando falta, eu não compactuo! Eu olho [e falo] assim: “não
tinha que ser pênalti e pronto acabou!” “Ah, mas ganhou!” Não interessa!
Jogou mal tinha que perder! Então assim, eu não compactuo com isso, com
coisas erradas assim... Igual a maioria aceita, eu não aceito! [...] É igual tirar
cópia de CD, piratear um CD. Pirataria é crime, todo mundo sabe que é
crime! Mas me diga uma coisa, quantas pessoas respeitam isso aqui no
Brasil? Aí eu fico pensando a nossa cultura é muito pobre! Agora eu peguei
tirei um... um evento aí de 2005, 2006 eu fiz um DVD do seminário, editado
tudo ficou muito legal, e no ano seguinte eu dei de presente para o Seki
Shihan levar cinco CDs. Ele levou! Ele deu de presente para umas pessoas lá
no Japão. Alguns praticantes lá do Hombu Dojō. No ano seguinte uma pessoa
foi para lá, e voltou e falou assim: “Olha aquele CD do Seki Shihan, que o
Seki Shihan deu, o pessoal está pedindo... Você não tem mais para vender?
Tem que mandar para lá, o pessoal quer comprar!” Eu falei: “Ah, eu não
tenho mais... Não tenho mais. Fala para a pessoa copiar!” “Ah, de jeito
nenhum! De jeito nenhum, lá ninguém faz isso!” Não faz! Não faz nem
escondido no quarto dele! Não faz! Porque na cultura dele é inaceitável isso,
ele copiar um CD. Você vê como que a gente está longe de chegar a ser uma
pessoa correta! Então é isso que eu chamo de dō. Assim a gente precisa
aprender mais com isso, [a] realmente ser honesto.
Duas distâncias, ou formas de representação, se sobrepõem no relato acima.
A primeira diz respeito ao passado como um período melhor do que o presente, no qual
tem vigorado a falta de ética e a ausência de valores: “Qual que é o sentido do dō? É a
evolução tudo bem, mas e aí? Então acabou! Então quer dizer, na realidade a gente está
vivendo uma grande assim, um engana o outro e está tudo bem!”55
A segunda forma de
representação é relativa ao Japão e aos japoneses, sobretudo, ao rigor dos antigos
mestres, como Morihei Ueshiba por exemplo, que vem se perdendo. As assimetrias
entre as culturas brasileira e japonesa são explícitas na narrativa do Professor Matias e
chegam ao seu ápice no exemplo da pirataria de CDs, aprovada tacitamente no Brasil
por relaxo moral e “pobreza cultural” e veementemente reprovada em seu relato por
“todos” os japoneses, já que “lá ninguém faz isso!” Ou seja, o Brasil adquire os
contornos de sua representação na experiência de contraste com o Japão e os japoneses,
dessa forma pobreza e passividade civil são expressões empregadas para definir a
cultura nacional, ao passo que os habitantes da terra do sol nascente têm o rigor e a
austeridade necessários para evitar e coibir qualquer tipo de desvio.
As representações do narrador são obviamente essencialistas e reificam não
apenas os japoneses “como um tipo de abstração ideal e inalterável” conforme afirma
Said (2007, p.20), mas também os brasileiros e sua(s) cultura(s) que não podem ser
55 [03:20:26]
96
todos englobados num mesmo tipo de classificação genérica e totalizante. Diferente dos
discursos de subjugação presentes nas análises textuais realizadas pelo orientalista
Edward Said (2007), o Japão é nas palavras do Professor Matias – e de outros
entrevistados que participaram desta pesquisa – é um lugar de sobrelevação, de
investimento.
Com um tom diferente do marido, a Professora Lilba Kawai têm outra
percepção a respeito dos japoneses e de sua cultura. Ao final de sua entrevista, a
Professora Lilba foi questionada sobre a possibilidade de escolher entre o Brasil e o
Japão, já que mesmo não tendo viajado ao arquipélago japonês sua educação foi
fortemente influenciada por um modelo de educação nipônico, fruto do convívio com o
pai. Assim, a narradora acrescenta um ponto de vista e representações diferentes do
Professor Matias, em função de sua história de vida.
L.K. – Se eu moraria? Não! Por quê? Ah, porque assim... Assim ó, o amor
que eu tenho pelo Brasil é muito grande. Eu nunca fui ao Japão, passei a
minha infância inteira querendo conhecer o Japão, eu ficava: “Pai quando que
eu vou?” “Não, este ano não dá!” Pelos motivos que eu te falei. No ano
seguinte: “Dá pra ir?” “Não, não dá!” Aí assim, eu peguei e falei assim:
“Acho que não é para [eu] ir né?” E assim, a minha vida inteira foi o Brasil!
Eu não tenho nem vontade de conhecer o Japão para você ter uma ideia! O
Matias queria ir este ano ao Japão. Falou assim: “Não, eu só vou se você for!”
Eu falei assim: “Então vá sozinho, porque eu não vou...” “Não é importante
pra gente, até pra ter um reconhecimento maior dos alunos...” Porque eles
valorizam muito isso, “ah foi no Hombu [Dojo], foi treinar...” aquela coisa!
Aí Matias: “Vamos?” Eu falei assim: “Ah vai sozinho, eu ainda não sinto...
Primeiro porque eu não estou nem aí para o que os alunos estão pensando!
Eles têm que gostar da minha técnica e do que eu sou. E segundo que eu não
faço questão!” Aí ele falou assim: “Então vamos no ano que vem conhecer
Shimane?” [Aí eu falei] “Ah, Shimane a gente pode...” Mas assim, vai
passear conhecer Shimane... Tá eu gosto de aikido, então vou treinar no
Hombu e volto.
Conforme relatado no primeiro capítulo, as memórias da Professora Lilba
têm algo mais doméstico, e, de alguma forma, seu desejo tantas vezes frustrado de
viajar ao Japão acabou embotando sua vontade, “[...] aquela vontade, sabe aquela?
Não tenho a menor vontade de conhecer o Japão!”56
Suas representações sobre os
japoneses e seu modo de vida foram fortemente influenciadas pelos sacrifícios aos quais
sua família foi submetida para que seu pai pudesse dar continuidade no processo de
desenvolvimento do aikido em território brasileiro.
56 [00:19:22]
97
L.K. – Então isso é outra coisa que me... eu tenho uma revolta com o meu pai
assim que... Ele não... Ele falava assim: “Aprende a falar japonês que [você]
vai para o Japão ano que vem.” Tá bom, aprendi! Nunca me levou! [riso]
“Não, tem que comer bonito senão [você] não vai para o Japão!” Mas
nunca que me levou para o Japão né... Mas assim, o meu pai, ele assim... na
verdade ele tinha muitos gastos. Então quando ele trazia o pessoal do Japão, a
gente... Ah, eu vou falar, porque está aqui [no roteiro de perguntas] e eu vou
ter que falar... A nossa família foi muito privada das coisas, todo mundo
vinha do Japão e era aquele abuso sabe? Meu pai quando trazia eram três,
quatro [mestres do Hombu Dojo]. Hoje a gente deixa no hotel Matsubara que
é um hotel assim três estrelas, não sei duas estrelas... Mas o meu pai só
deixava no Maksoud Plaza! Maksoud Plaza... Então assim, quatro pessoas,
uma semana, Maksoud Plaza... A diária, a diária é R$ 1.000,00 e pouco...
Então seria sei lá R$ 1.500,00, não sei quanto está mas é nessa faixa a diária,
é... quatro pessoas dá quase R$ 7.000,00 aí não sei...
E. – Mil todos eles juntos? Todos juntos?
L.K. – Mil reais uma pessoa a diária.
E. – Quatro pessoas se ficarem uma semana [isso] dá R$ 28.000,00...
L.K. – R$ 28.000,00! Aí, fora isso presentes... Então o meu pai, ele tinha que
presentear todas as esposas dos Professores... Então era a minha mãe
“H.Stern”! Não sei se ainda tem, faz tanto tempo que eu não vejo joia... [riso]
Mas na época era H.Stern. Então a minha mãe ela ia muito triste assim,
chateada assim... Não, chateada assim porque pesava né? Comprar joias para
presentear as esposas dos Professores. Geralmente minha mãe gostava muito
de comprar broches, mas eram broches caros e comprava para dar de presente.
Fora isso tinha que presentear os próprios Professores... Comida! Porque não
é só hospedar, tinha que levar pra jantar e o meu pai era desse negócio, tinha
que levar num lugar muito bom! Então levar quatro pessoas, sete dias, levar
pra jantar, almoço, café da manhã... Antigamente era Palmeiras né que a
gente tinha o doutor Lemos – José Gomes Lemos – ele era presidente do
Palmeiras, então a gente tinha acesso a fazer as demonstrações lá né... Mas
assim o meu pai gastava muito dinheiro com isso. Fora o sharei!57
O sharei
pra todos! Ó, se a gente com o Seki Shihan a gente tem que dar... quanto que
a gente deu de sharei... 4 mil dólares? Não, 3 mil dólares, são quase 6 mil
reais para o Seki Shihan de sharei. Meu pai dava muito mais pra eles de
sharei! Então a família mesmo a gente tinha que ficar assim ó [se apertando].
Então eu falava pai: “Eu para o Japão?” [Ele respondia] “Não dá ó esse ano
vem ele, o fulano, o beltrano, tenho esse gasto e tal... Você não dá... Nem
pensar em você” Aí então a gente ficava meio assim né: “pô!” Perto do que
eu iria gastar não era nada, podia ir...
Os significados presentes nas representações da Professora Lilba Kawai são
diferentes do tom laudatório atribuído aos japoneses na narrativa do marido. Essa
diferença de interpretação entre os dois entrevistados é o ensejo para introduzir a noção
de apropriação de Roger Chartier (1990, 1991) a qual pode corroborar para a
compreensão dos diferentes processos de significação da realidade. Chartier (1991)
postula uma abordagem articuladora entre as noções de práticas, representações e
apropriações, as quais segundo o autor não podem ser pensadas de forma isolada e ainda
57 Remuneração; gratificação.
98
demandam a consideração de um extenso universo de variáveis. Não obstante a obra de
Chartier esteja baseada na história do livro, da edição, e da leitura, é possível fazer um
paralelo entre alguns de seus pressupostos e as diferentes formas (práticas) de
conhecimento sobre o Japão, suas representações e os distintos modos de apropriação e
de atribuição de significado ao seu povo e à sua cultura. Dessa maneira, fazendo um
paralelo entre o objetivo do presente capítulo e as proposições de Chartier (1991) é
possível pensar a cultura japonesa em suas diferentes formas de manifestação como um
texto ou um conjunto de textos, ao passo que sua forma de conhecimento pode assumir
o lugar do livro com todas as edições pelas quais passa até chegar ao seu destinatário, e
por fim o processo e as práticas de leitura operadas pelo próprio leitor no momento em
que está “lendo” interpretando o conteúdo da obra que tem em mãos. Aqui é cabível um
esclarecimento sobre o uso metafórico extraído da obra de Chartier, pois há
transferências que não são possíveis entre seus exemplos relacionados à história do livro
e da leitura. Contudo, seu modelo articulador de análise é o que permite aprofundar as
noções de práticas, representações e apropriações empregadas pelos entrevistados ao
longo de seus relatos.
Retomando as diferenças entre as biografias do Professor Matias, como um não
descendente de japoneses e genro do senhor Kawai, e de sua esposa como nissei e filha
senhor Reishin já é possível compreender, ainda que minimamente, suas diferenças de
interpretação decorrentes dos “livros” das formas que conheceram o Japão como um
“texto”, e das apropriações bastante idiossincráticas que realizaram a partir de suas
“leituras”. Assim, ao entusiasmo do Professor Matias em relação à honestidade e
virtudes do povo japonês, opõe-se todas as frustrações de sua esposa que quando jovem
se esforçou ao máximo na tentativa de viajar ao Japão.
Aproveitando a reflexão oportunizada pelo referencial teórico de Chartier – e de
acordo com o objetivo estabelecido no início deste capítulo – é possível pensar os
significados pessoais atribuídos ao aikido por parte dos entrevistados, a partir da relação
dinâmica e de mútua influência entre as noções de representação(ões), prática(s) e
apropriação(ões). Para viabilizar essa análise, é apresentado a seguir um trecho da
entrevista do Professor Ricardo Leite, que procura explicar ao entrevistador seu
entendimento de aikido.
O que é que você chama de aikido? Primeira questão. O termo arte marcial,
você consegue definir? Pra japonês ao se referir a esse termo ele fala budō.
Se você traduzir budō não significa arte marcial! A tradução primária,
99
comum, corrente é: caminho do guerreiro. Também não significa isso. Bu
não significa guerreiro, simplesmente guerreiro. O que quer dizer guerreiro?
Tem uma especificidade... Do não significa caminho por si mesmo, não tem...
aliás, bu não tem especificidade, guerreiro é específico! Bu não! Do não tem
especificidade! Caminho sim, caminho é uma via, caminho! Do não quer
dizer simplesmente isso. Arte marcial é um termo ocidental [que] quer dizer
o quê? Também não... é genérico, não significa nada. Aikido significa o quê?
Ai significa um monte de coisa, ki outro monte de coisa, do outro monte de
coisa... Aikido tudo junto significa outro monte de coisa, aiki sozinho
significa outro [monte de coisa]... Do que é que nós estamos falando quando
fala o aikido está se... entendeu? Então quando o cara generaliza, quer dizer é
uma generalização... Já é como alguém disse, em algum ponto a ciência é
um assassinato do real, Porque tem que generalizar pra estudar. É
impossível estudar sem você ter certo nível de generalização, mas aikido em
si é um termo... Por exemplo, o fundador era no que eu gosto de chamar de
locão né? Era um maluco! Em termos de experiências espirituais dele, [se] a
gente estudar bastante o que foi a sociabilização dele, um homem que teve
dois filhos falecidos quando crianças, lutou na guerra russo-japonesa, duas
bombas atômicas explodiram no país dele, enfim... [Ele teve] Um encontro
com Sokaku Takeda que não era um sujeito de fácil convívio, Deguchi
Onisaburo não era um sujeito comum, profundamente significativo, [foram]
duas fortes influências para o Ueshiba... Então qual foi a sociabilização dele?
E o que significou pra ele? E o que nasceu dele? Que depois o filho e a
primeira geração começou a organizar pra poder estudar aquela loucura que
era legal, parecia uma coisa boa aquilo lá, parecia uma coisa que podia ser
útil... e no pós-guerra o próprio fundador aceitou difundir em massa, ou pelo
menos abrir pra difundir em massa... Então veja bem, até então difundir era
pra discípulos! E era um convívio, não era organizado, sistematizado, era um
convívio da construção dele. Então se organizou, [com] alguma influência da
lógica ocidental de didática... o Kisshomaru Sensei com [a ajuda de] alguns
discípulos... Não sei se eu vou chegar onde você quer, mas, por exemplo,
você pega o [Gozo] Shioda Sensei, [criador do estilo] Yoshinkan. Em
qualquer parte do mundo que você ver o cara faz dois movimentos e já
chama: “Yoshinkan!” O [Morihiro] Saito Sensei que agora saiu chama
Iwama-ryu, o filho dele saiu da Akikai, Iwama-ryu, claro você vai em
qualquer parte do mundo o cara faz dois movimentos e você: “Iwama-ryu!”
Shin Shin Toitsu é um pouco mais difícil de identificar, mas você acaba
identificando... O que mais que tem, bom enfim...
A narrativa do Professor Ricardo é rica em possibilidades de análise, pois é
possível constatar ao longo de suas descrições como um mesmo indivíduo pode
apresentar diferentes formas de apropriação acerca de um mesmo tipo de prática como é
o caso do aikido. O enunciado acima revela o nível de conhecimento do entrevistado
que teve sua entrevista realizada nas dependências da USP (Universidade de São Paulo)
pelo fato de estar cursando uma disciplina como aluno ouvinte no Programa de Pós-
graduação em Educação Física. A paixão do narrador pelo seu ofício que trabalha
exclusivamente ministrando aulas de aikido, fez com que o entrevistado se dedicasse
com afinco não apenas ao estudo da história do aikido e de seu fundador, mas a uma
compreensão mais aprofundada das noções de arte marcial e de budō. Além do
conhecimento teórico, o Professor Ricardo foi um dos entrevistados que visitou o Japão
100
em 1994 e ficou na cidade de Iwama onde o criador do aikido fundou seu dojo
particular, o qual posteriormente virou um local de peregrinação de praticantes e
mestres da “arte da paz”. Estabelecendo um paralelo entre a perspectiva teórica de
Chartier e o relato do Professor Ricardo é possível inferir como o aikido em seu estado
primordial – ou o aikido do fundador conforme relata o entrevistado – atravessa um sem
número de influências até chegar ao seu receptor final, ou seja, até o seu praticante. Esse
raciocínio está sendo aqui descrito com a finalidade de evidenciar as diferenças de
apropriação por parte dos entrevistados acerca do aikido e o seu processo pessoal de
significação em relação a essa prática marcial. Assim se o aikido original de Morihei
Ueshiba for considerado como o “texto” de Chartier (1991), ainda deve ser levado em
conta seu processo de “edição” com a institucionalização comandada por seu filho
Kisshomaru, e suas diferentes formas de apresentação no formato de “livros” a partir
das figuras dos mestres pioneiros do aikido que trouxeram essa prática marcial ao Brasil.
Por fim, ainda devem ser acrescentadas as práticas de “leitura” dos diferentes
professores de aikido entrevistados ao longo desta pesquisa que imprimiram
significados muito particulares aos seus respectivos aikidos. Nessa via, Chartier (1991,
p.180) esclarece que
A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das
interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas
práticas específicas que as produzem. Assim, voltar a atenção para as
condições e os processos que, muito concretamente, sustentam as operações
de produção do sentido (na relação de leitura, mas em tantos outros também)
é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que nem todas as
inteligências nem as idéias são desencarnadas, e, contra os pensamentos do
universal, que as categorias dadas como invariantes, sejam elas filosóficas ou
fenomenológicas, devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias
históricas.
O fragmento extraído da entrevista com o Professor Ricardo Leite, além de
explicitar seu processo pessoal de significação relativo ao aikido, também indica que o
aikido tal como ele foi formatado pela Fundação Aikikai do Japão permite uma grande
variedade de apropriações por parte dos seus praticantes. Para explicar essa
possibilidade, o entrevistado se refere a outros estilos de aikido, criados por ex-alunos
de Morihei Ueshiba e que decidiram trilhar caminhos marciais autônomos, como é o
caso do Yoshinkan Aikido, do Shin Shin Toitsu Aikido e do Tomiki Aikido.
101
Tomiki nem é considerado aikido né? Ele58
está autorizado por ter convivido
[com o fundador]... Mas a própria família Ueshiba não chama de aikido...
mas você vê ó: “Tomiki aikido”! E Aikikai? Quando o cara faz um
movimento você acha ali identificação Aikikai? Não tem, você não sabe o
que o cara é... Quando você não sabe o que cara é, você chama de Aikikai!
Então você vê que essa lógica pra mim é muito rica e muito significativa,
porque o cara quando tem que se diferenciar, e se determinar, se definir, ele
recorta a arte e mostra a cara dele e ó: “Nós vamos por aqui e é desse jeito!”
Mas ele tem que mostrar uma cara definidora, distintiva! Aikikai não...
Aikikai é aikido, aikido, e a gente tem aí uma referência. E eu acho isso uma
riqueza enorme, tanto que é uma riqueza enorme a variedade de mestres que
tem no aikido e a Aikikai não determina! Não define o que é! Como é! O
que você tem que fazer! Tem toda a estrutura organizacional e permanece
dentro de uma lógica que o próprio criador fundou. O fundador do aikido
[dizia]: “Ó a referência é aqui!” A questão é, quando você difunde em massa
você tem uma lógica e a lógica de massa é sempre superficial.[...]
A forma de apropriação do narrador pressupõe outras (diversas) formas de
apropriação já que o aikido da Aikikai no seu entendimento, mesmo tendo um caráter
altamente formalizado e institucional não tem uma característica definida. No
prosseguimento da mesma resposta, o narrador evidencia a importância do lugar da
técnica na sua formação como aikidoísta. Essa importância pode ser constatada,
sobretudo, quando o Professor Ricardo enfatiza com veemência as diferenças entre o
antigo mestre, o senhor Kawai, e seu novo Sensei, o senhor Yoshimitsu Yamada:
[...] Quando veio o Yamada Sensei para o Brasil a primeira vez foi um
choque fenomenal! Ele ensinou [Shomen Uchi Dai] Ichi Kyo Omote, a
primeira técnica básica elementar de qualquer praticante de aikido, o nível
básico, o bê-á-bá do aikido... e também o alto nível do aikido, ou seja, o
fundamento! [...] Me deu vergonha!! Gigantesca!! Gigantesca!! Eu queria
colocar a faixa branca quando veio o Yamada Sensei ao Brasil... Eu não sabia
elementos básicos, do fundamento básico do aikido! Shomen Uchi Dai Ichi
Kyo Omote!59
Entendeu? E ali já estava rodando há um tempão de vida... um
tempão de estudo, pesquisa e tal... [...] eu fiquei humilhado, teve gente que
desistiu, teve gente que ficou em depressão, sabe? Foi humilhante,
tecnicamente humilhante! Eu portando um 3º pra 4º dan, já com academia
aberta, própria, com alunos, vendo aquele vexame da tamanha ignorância da
minha parte foi humilhante positivamente! Ou seja, foi um bloco de concreto
gigantesco que foi tudo que eu sonhei na minha vida! Tudo o que eu queria
era ter acesso àquele nível de aikido!
A humilhação técnica relatada pelo entrevistado, além de denotar o parco
conhecimento marcial de seu antigo mestre que na sua interpretação “não foi preparado
no aikido para conduzir as pessoas para transitar do nível básico para o nível superior da
58 A pessoa ao qual o Professor Ricardo Leite está se referindo é o Mestre japonês Kenji Tomiki (1900 – 1979). Esse
Sensei criou um estilo de aikido competitivo, que por sinal é bastante criticado entre os aikidoístas que praticam o
estilo Aikikai mantido pela linhagem de Morihei Ueshiba. 59 A técnica descrita pelo entrevistado é uma das mais básicas aprendidas pelos praticantes de aikido. No quadro de
técnicas para progressão de graduação, é a primeira técnica cobrada em exames de faixa.
102
técnica”60
, também é decorrente de sua nova representação de aikido, produzida pelo
encontro com o Mestre Yamada. Retomando a metáfora do mestre como um livro a ser
lido e significado por parte do leitor, o narrador se deparou com um novo dispositivo de
leitura, com formas tipográficas distintas, e recursos diferentes. No entendimento do
Professor Ricardo, nem se pode afirmar que o texto era o mesmo, já que o Sensei
Yamada além de ser mais jovem que o senhor Kawai, também havia treinado
diretamente com o fundador do aikido. Essa metáfora emprestada da obra de Chartier
(1991) visa indicar não tanto as diferenças técnicas entre os dois mestres do entrevistado,
mas sobretudo, a nova leitura realizada pelo entrevistado e sua consequente mudança de
representação. Para reiterar esse raciocínio é possível recorrer ao próprio Chartier (1991,
p.182) que em seus apontamentos sobre a história do livro e da leitura, explica que os
leitores
[...] com efeito, não se confrontam nunca com textos abstratos ideais,
separados de toda materialidade: manejam objetos cujas organizações
comandam sua leitura, sua apreensão e compreensão partindo do texto lido.
Contra uma definição puramente semântica do texto, é preciso considerar que
as formas produzem sentido, e que um texto estável na sua literalidade
investe-se de uma significação e de um estatuto inéditos quando mudam os
dispositivos do objeto tipográfico que o propõem à leitura.
Assim, além da avidez por um novo horizonte marcial presente no discurso do
Professor Ricardo, o Sensei Yamada apresentou ao entrevistado uma edição mais
moderna com um projeto gráfico singular de aikido, contendo movimentos mais fluidos
e técnicas mais refinadas, compatíveis com seu treinamento marcial que foi realizado no
Hombu Dojo, sede da Fundação Aikikai do Japão.
Na continuidade dos relatos, o Professor Bento Guimarães descreve seu modo
particular de interpretar e significar o aikido, ou seja, sua forma de apropriação e por
consequência de representação dessa prática marcial. O enunciado abaixo também
viabiliza a análise dos significados atribuídos aos japoneses e à sua cultura. O Professor
Bento ao ser inquirido sobre a prática contemporânea de realizar seminários técnicos
com Senseis japoneses responde com veemência:
É uma festa! É uma festa! É uma festa! O aluno finge que estuda e o
Professor finge que ensina! É virou isso... E os Professores estão cada vez
mais... [riso] O japonês é gozado, o japonês tem muito a coisa de... O japonês
de certa forma ele tem uma cabeça de camponês, sabe? De pequeno
comerciante... Porque o Japão é uma grande classe média, né? E o japonês
60 [01:28:00]
103
ele se impressiona muito com o ocidental, costumava se impressionar muito,
ele ficava assim [boquiaberto]... Eu acho que até hoje ocorre isso, ele fica
assim parado sabe sem saber como lidar com o ocidental. Então ele acaba... E
o japonês tem horror a desagradar né, porque é o negócio da etiqueta do
japonês, ele vai querer te agradar o tempo todo, mas ele não vai deixar você
entrar na [intimidade dele]... Se aproximar dele! Nunca! Vai ser muito
agradável, mas vai ter sempre... Uma coisa é japonês e outra coisa é
estrangeiro! Isso aí eles não deixam misturar nunca! Mas pra agradar então
ele começa a imitar. Ele vê... É que nem criança ele vê qual é a reação que
faz você rir, qual é a ação que faz você rir, aí começa a fazer aquela ação
porque vê que está agradando! É esse o... Com a arte marcial aconteceu isso
também! Aos pouquinhos eles foram eliminando aquelas coisas que o
ocidental não gostava, entendeu? E ficou fazendo... Aí se concentrando
naquilo que o ocidental gosta, e com isso a qualidade da arte marcial caiu.
Esses seminários hoje em dia são uma grande festa, sai todo mundo rindo,
não sei o quê... É um verdadeiro show! Um showman entendeu? Agora,
ocorre muitas vezes o seguinte, que se você for, se você conseguiu ir a uma
academia lá no Japão ou coisa assim, hoje em dia está difícil, porque é difícil
encontrar um lugar restrito hoje em dia, hoje em dia nada mais é restrito, né?
[riso] Mas o ambiente de um pequeno Dojo de interior e tal, que só tenha
japonês por exemplo, aí você vai treinar na academia central em Tóquio, eu
fui ao Japão em 79 a primeira vez, e eu estava na academia do Kobayashi,
nessa época tinha um sueco, e acho que um rapaz da Filândia alguma coisa
assim... E eu! Aí você vai treinar na academia central, a academia central é
uma metrópole! Tem gente do mundo inteiro treinando todo dia lá! E são
várias aulas por dia, cada aula é um Professor, 6º Dan, 5º Dan, acho que o
mínimo lá é 5º Dan. Cada Professor tem um estilo, entendeu? Bem diferente
um do outro, aquela coisa assim e tal... E o ambiente da academia central é
totalmente distinto, era totalmente distinto da academia lá onde eu estava, e
os japoneses dessa academia eles não gostavam que a gente fosse treinar lá
na academia central, eles achavam que isso era uma... Eu sentia na época uma
certa reação! Tipo assim, “Pô, você vai se contaminar lá! O aikido mesmo
está aqui!”
Cruzam-se no trecho acima, a representação do entrevistado a respeito do aikido
e as características contrastantes entre “o japonês” e “o ocidental”. Mesmo tendo
viajado ao Japão por duas vezes e permanecido longos períodos de tempo no
arquipélago nipônico, o Professor Bento lança mão de referentes no singular para
definir os traços peculiares aos japoneses em oposição aos estrangeiros. Suas descrições
são globalizantes e carregam sentidos já acumulados sobre características classificadas
como inerentes aos habitantes da terra do sol nascente. O filtro de percepção do
Professor Bento Guimarães faz com que o Japão seja transformado naquilo que Said
(2007) chamou de uma “tela aceitável para o conhecimento do Oriente”. Ou seja, apesar
de toda sua experiência e conhecimento, sua perspectiva reduz a nação insular japonesa
e os japoneses a algo único, unificado. Obviamente que sua interpretação não está isenta
da rede de significados que foram e continuam sendo atribuídos aos japoneses e à sua
cultura. Said (2007) explica que um investimento teórico e prático operado por
gerações transformou o Oriente num “lá” que pode ser facilmente definido, reificado,
104
mas que também assume sentidos e significados próprios à consciência ocidental. Nessa
via, o autor explica que
Com efeito, o meu verdadeiro argumento é que o orientalismo é – e não
apenas representa – uma considerável dimensão da moderna cultura político-
intelectual, e como tal tem menos a ver com o Oriente que com o „nosso‟
mundo. (SAID, 2007, p.24).
A representação de arte marcial – e não apenas do aikido – do entrevistado
guarda relação com valores tradicionais que estão se perdendo com a presença
estrangeira cada vez maior no Japão. Sua concepção em relação ao aikido é esotérica,
restrita, e não está aberta a grandes grupos que têm transformado o rigor e a austeridade
próprios da prática marcial em uma verdadeira “festa”, num “show”! A influência
perniciosa por parte dos ocidentais revela a associação que o entrevistado opera em sua
consciência entre arte marcial verdadeira e severidade de conduta. A interpretação do
Professor Bento é eivada de austeridade e rigor, que segundo seu discurso são valores
mantidos pelos fechados círculos dos “verdadeiros” praticantes de artes marciais. As
representações presentes no discurso do Professor Bento têm uma forte conotação de
ortodoxia e procuram marcar a autoridade de sua percepção, de sua visão de mundo.
Nessa perspectiva, é possível recorrer a Bourdieu (1983) que ao versar sobre as
diferentes formas de disputas pela imposição da visão legítima acerca do mundo social,
entenda-se representação – explica que
A autoridade que fundamenta a eficácia performativa do discurso sobre o
mundo social, a força simbólica das visões e das previsões que têm em vista
impor princípios de visão e de divisão desse mundo, é um percipi, um ser
reconhecido e reconhecido (nobilis), que permite impor um percipere. Os
mais visíveis do ponto de vista das categorias de percepção em vigor são os
que estão mais bem colocados para mudar a visão mudando as categorias de
percepção. Mas, salvo excepção, são também os menos inclinados a fazê-lo.
(BOURDIEU, 2007, p.145).
Dessa forma, recordando que a entrevista é um sempre um encontro dialógico e,
portanto, performativo, o narrador ao mesmo tempo em que produz suas representações
sobre o mundo social, procura legitimá-las perante o entrevistador. Destarte, ainda que
tomadas de forma isolada, as entrevistas realizadas por ocasião desta dissertação não
anulam o caráter social dos relatos dos entrevistados. Ou seja, cada pronunciamento
presente neste capítulo apresenta uma representação considerada “legítima” por cada
um dos entrevistados a respeito da cultura japonesa e também sobre o aikido como
prática marcial. A esse respeito, é cabível recordar, segundo afirma Portelli (1997, p.31),
105
que “A construção da narrativa revela um grande empenho na relação do relator com a
sua história.” Assim, mesmo que o enunciado do Professor Bento Guimarães assuma
um ar de autoridade – fruto de todo seu capital acumulado e decorrente das diferenças
em relação ao entrevistador – não se pode desconsiderar que as representações dos
outros entrevistados também não estejam investidas de um caráter de autoridade e de
legitimidade.
Na continuidade de seu relato, o narrador aprofunda as diferenças entre os
brasileiros – leia-se os ocidentais – e os japoneses, a partir de uma experiência vivida
durante um de seus treinamentos no Japão:
Uma vez eu presenciei uma cena, tinha um Professor lá, esse Professor tinha
estado aqui no Rio, na época em que o filho do Ueshiba esteve aqui no Rio,
Kisshomaru, na primeira vez. Esse Professor era o [Ichiro] Shibata!
Professor Shibata. Ele tinha um aikido muito violento, todo mundo tinha
medo dele, ele tinha um aikido muito forte, ele era violento! E eu fui fazer a
aula dele na academia central, e nessa aula devia ter o que, umas cinquenta
pessoas treinando uma coisa assim... Um bando de estrangeiros... tudo né, e
japoneses, principalmente estudantes universitários. Aí esse Professor
Shibata chamava lá um estrangeiro para demonstrar, aí fazia o movimento
todo bonitinho, todo certinho, tal não sei o que... Aí chegou um determinado
momento eu acho que ele cansou daquele negócio, acho que passou na
cabeça dele “bom agora eu vou mostrar pra vocês como é que a gente faz
aikido aqui na terra!” E ele chamou um rapaz lá que me parecia ser um
estudante universitário japonês. E ele estendeu a mão assim 61
, para o sujeito
segurar né? Na hora que o cara segurou, ele desferiu um violento tapa no
rosto do cara, mas o tapa ressoou assim pelo salão inteiro, era um negócio
grande né, “páááááááá” foi um negócio... [risos] O rapaz, o japonês que
levou aquele tapão na cara, pra ele aquilo ali não foi absolutamente nada!
Continuou lá o movimento tal não sei o que... [riso] Eu achei incrível que
aquilo foi uma aula de sociologia, entendeu? “Vocês pensam que nós somos
assim como vocês estão vendo aí a gente tratando vocês? Nada disso, nós
somos assim ó!” 62
Ele não faria nunca isso com um ocidental! Não faria
nunca isso! [silêncio] É... E isso é que é interessante, entendeu? É importante
você perceber isso.
O trecho acima evidencia nas palavras do entrevistado a valorização do caráter
de virilidade dos mestres japoneses de aikido. O exemplo do violento tapa desferido
pelo Sensei Ichiro Shibata e da impassibilidade do aluno japonês são interpretados pelo
entrevistado como exemplos autênticos do modo de vida e do caráter nipônico.
Sobrepõem-se na descrição a respeito do tapa, tanto uma representação acerca dos
japoneses e de sua “verdadeira” natureza – já que esse os estrangeiros foram poupados
61 Demonstrando como o Sensei Ichiro Shibata esticou a mão para o uke [parceiro de treinamento ou assistente que
auxilia o mestre a demonstrar as técnicas] segurá-la. 62 Realizando novamente o gesto do rapaz recebendo o violento tapa do Professor Shibata.
106
da violência do Professor Shibata – quanto uma representação do que é o autêntico
aikido. As metáforas e expressões empregadas pelo Professor Bento são indicativos de
sua interpretação e forma de apropriação sobre o aikido. Assim, as metáforas de “festa”
e “show” utilizadas para definir a realização de seminários técnicos de aikido com
grandes contingentes de participantes, contrastam com expressões como “é difícil
encontrar um lugar restrito hoje em dia”, “num ambiente de pequeno dojo” ou ainda
“você vai se contaminar lá [no Hombu Dojo]!”. Seu discurso tem a marca da distinção,
pois no entendimento do entrevistado o aikido considerado verdadeiro é reservado a um
pequeno e restrito círculo de praticantes que entendem o significado do que é
efetivamente uma arte marcial japonesa. Nesse sentido, é possível relacionar a fala do
Professor Bento com aquilo que Pierre Bourdieu (1983) denominou de “estratégias de
distinção”. Segundo esse autor,
O ganho de distinção é o ganho proporcionado pela diferença, a distância,
que separa do comum. E este ganho directo é dobrado por um ganho
suplementar, ao mesmo tempo subjectivo e objectivo, o ganho de
desinteresse: o ganho que há no facto de alguém se ver – e ser visto – como
alguém que não procura o ganho, alguém totalmente desinteressado.
(BOURDIEU, 1983, p.14).
No prosseguimento das análises empreendidas neste capítulo, o Professor Adélio
Andrade toma a vez e descreve por de sua narrativa, sua forma singular de apropriação
sobre o aikido:
Então são coisas que eu aprendi na vida e faço até hoje. Uma coisa que eu
faço, sempre respiração abdominal! Dificilmente você vai me ver fazendo
a respiração só em cima, no tórax. Eu sempre mantenho meu abdômen
inflado. Eu faço uma coisa há 70 anos, hoje não tenho mais musculatura no
abdômen nem nada... Qualquer praticante de MMA eu deixo ele chutar
ou socar a boca do meu estômago, menos as partes genitais! Dali pra cima
pode chutar, fazer o que quiser! Eu faço isso conversando com ele, não altero
o tom de voz, não interrompo a voz, do jeito que eu falo com você agora,
nesse tom, não interrompo. Os meus alunos eu procuro ensinar, ensinar,
ensinar, nenhum deles ainda consegue fazer isso. Tenho um aikido diferente
de todo mundo que você já viu aqui no Rio de Janeiro, em São Paulo, quiçá
no planeta! Ninguém faz como eu faço aikido. Ninguém! Nem Shikanai,
nem ninguém... O Shikanai ultimamente, sempre que a gente faz um evento,
[ele] só está vindo ao Rio de Janeiro umas três, quatro vezes por ano... Todos
os nossos exames são presididos por ele, e por mim, quer dizer [os exames]
dos meus alunos né! Então nós fazemos os exames sempre, e sempre que há
tempo enfim, a gente dá uma aula. Então o Shikanai, mesmo as aulas do
Shikanai, ele começa uma aula quando chega no meio da aula, ele passa o
comando pra mim. Então na última vez que nós fizemos na Urca, que tinha
uns alunos que lecionavam no Forte da Urca, lecionavam lá há muitos anos...
Ele estava mostrando como fazia a defesa de Shomen-uchi e o Shikanai tem
uma técnica que eu admiro, mas não entra na minha cabeça, não tem jeito!
Primeiro que eu nunca tive tempo, nem possibilidade de treinar com ele!
Assim no sentido pra poder aprender. Quando ele chegou em 75, ele fez lá o
107
3º dan e o sensei Kobayashi, Professor dele, me deu o 2º dan. Aliás, o 2º dan
que é o único que eu realmente prezo, que eu realmente dou valor, porque
aconteceu uma coisa, um fato interessante no dia desse exame. O presidente
da nossa academia, que era diretor comercial da Globo, da TV Globo, fez
exame pra 2º dan, o [George] Prettyman que era um aluno que começou com
o Nakatani, todo surfista... um cara fantástico! Filho de um Sir, o pai dele é
Sir! Um inglês, a família inglesa. Ele ia todos os anos para o Havaí treinar
com o [Koichi] Tohei... ia para o Japão treinar... Nós – os três – fizemos
exame para 3º dan, os dois não foram aprovados. Eu fui aprovado com a
maior nota que o Kobayashi deu em todo o exame pra amarela, pra laranja,
pra verde, pra preta, o Bento fez exame também pra preta também passou,
enfim... Todos os meus alunos passaram, os dois não passaram e não foi por
nada, é que ele [Sensei Kobayashi] deu ataque livre, defesa contra três e os
dois foram encurralados e se renderam. Ou seja, a nível de filosofia oriental
eles morreram! E eu golpeie todo mundo, derrubei todo mundo, ninguém
me encostou com um dedo! Então, graças a Deus eu passei por isso com
honra pra caramba que foi esse 2º dan, porque foi o dan que realmente eu
tive de verdade! Então é isso...
Diferente da representação genérica de um aikido feito de movimentos suaves e
circulares, o fragmento acima revela como o entrevistado interpretou e atribuiu
significado ao seu aikido. As forças de influência que atuaram sobre a percepção do
Professor Adélio são muitas, algumas delas já descritas nos capítulos anteriores, mas
para aprofundar essa reflexão, vale retomar a analogia já registrada entre o aikido e as
noções de texto, livro e leitura, mobilizadas por Roger Chartier. Assim, retomando o
exemplo do aikido como um texto e de Morihei Ueshiba como seu autor, o Sensei
Nakatani pode ser representado como um livro com um formato tipográfico único –
experiências de vida, conhecimentos, técnicas possibilidades corporais, etc. – e ainda
sujeito àquilo que Chartier (1991) denominou de o “horizonte de expectativas do leitor”,
neste caso, o Professor Adélio Andrade. Enfatizando a necessidade de uma perspectiva
articuladora entre práticas culturais, representações e apropriações, Chartier (1991,
p.189), versando sobre a história do livro e da leitura explica que
Contra a representação, elaborada pela própria literatura, segundo a qual o
texto existe em si, separado de toda materialidade, é preciso lembrar que não
há texto fora do suporte que lhe permite ser lido (ou ouvido) e que não há
compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas
pelas quais atinge o leitor. Daí a distinção indispensável entre dois conjuntos
de dispositivos: os que provêm das estratégias de escrita e das intenções do
autor, e os que resultam de uma decisão do editor ou de uma exigência de
oficina de impressão.
Para corroborar com o raciocínio aqui proposto, é possível citar alguns dos
fatores que participaram do processo de edição da “obra” lida e significada pelo
Professor Adélio. Trata-se de influências que atuaram sobre o Sensei Nakatani e por
consequência sobre o seu aikido, como por exemplo: o fato de ter se graduado como
108
faixa preta em judô antes de começar a treinar o aikido, ou sua experiência como
escalador conforme relatado pelo Professor Adélio no primeiro capítulo desta
dissertação, ou ainda sua rápida preparação como aikidoísta antes de viajar ao Brasil.
Ainda que sejam poucos exemplos, os fatores aqui indicados evidenciam como o aikido
não pode ser tomado como uma representação unificada e estática, imune a qualquer
tipo de influência ou ressignificação. Além dessa rede de influências que consolidou o
aikido do Mestre Teruo, deve-se considerar o processo de leitura descrito pelo próprio
Professor Adélio. Nessa perspectiva, Chartier (1991, p. 179) explica que “Os que
podem ler os textos, não os lêem de maneira semelhante [...]”, ou seja, o próprio
processo de leitura de um livro ou de consumo de um bem ou elemento cultural – como
é o caso do aikido – também se traduz numa forma de produção de novos sentidos e
significados. Por isso, conforme afirma Chartier (1990, p.59) as representações do leitor
“[...] nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou o artista, investiram na sua obra.”
Assim, ainda que com um forte contraste em relação à imagem amplamente consolidada
do aikido como a “arte da paz”, o processo de apropriação e representação do Professor
Adélio possui o significado que o entrevistado forjou por meio das condições e
circunstâncias a partir da qual “leu” o aikido do Mestre Nakatani. Portanto, ainda que
sua forma de apropriação gere sentidos que se distanciam do lugar comum geralmente
atribuído ao aikido é possível afirmar que sua interpretação segue uma lógica própria, a
qual, pode por exemplo, ser constatada no enunciado abaixo:
Dentro daquilo que é possível eu faço muitas coisas diferentes, tanto que os
meus alunos... Por exemplo, criar golpes. Meus alunos chamam “Aikidélio”
porque não faz parte do aikido. Então eu introduzi dentro da minha técnica do
aikido, por exemplo, armlock! Eu dou armlock em pé, em fração de
segundos! Katagatame63
que eles fazem no chão, eu encaixo ele em pé, em
fração de segundos! E não faço força nenhuma!64
Sem perder de vista que a relação de entrevista é sempre performática, o
Professor Adélio explica sua inventividade ao introduzir novas técnicas em seu aikido,
fundindo assim elementos da cultura marcial japonesa com práticas contemporâneas de
modalidades esportivas de combate, como é o caso do MMA.
Seu modo de apropriação é único, quase caricata, e sua representação de aikido
tem fortes traços de comparação e competitividade. A importância que o entrevistado
concede aos níveis de graduação, aos exames, e à efetividade prática das técnicas que
63 Katagatame é estrangulamento do jiu-jitsu e do judô, aplicado quando os praticantes estão no solo, e um deles
passa um dos braços por baixo do pescoço do oponente e o outro por fora do braço do adversário que está esticado. 64 [00:57:47]
109
domina, expressa a que o Professor Adélio atribui valor em seu aikido. Sua narrativa
traduz – ainda que de maneira exagerada e jactanciosa – o caráter distintivo e singular
de seu estilo marcial, o “Aikidélio”. Os fragmentos recortados da entrevista realizada
com o Professor Adélio também permitem explorar a noção de “agenciamento” presente
na obra de Chartier (1990), a qual segundo o autor pode ser explicada como a margem
de reemprego disponível de práticas culturais diversas, como é o caso do próprio aikido.
Dessa forma, tanto o Professor Adélio quanto os outros entrevistados, desempenham um
duplo papel, o de leitores e de livros, uma vez que todos continuam ministrando aulas
aos seus alunos, aumentando assim a rede de representações e apropriações em torno do
aikido.
Na esteira das análises sobre práticas, representações e apropriações, o Mestre
Ichitami Shikanai procura explicar ao entrevistador quais são, em seu entendimento, as
principais diferenças culturais entre japoneses e brasileiros, especialmente, no que diz
respeito ao treinamento marcial. Revelam-se em sua narrativa, as representações de um
issei sobre a própria cultura, assim como suas representações sobre a cultura e o “jeito”
brasileiro de praticar o aikido. Seu inventário das diferenças entre japoneses e
brasileiros, também permite entrever sua forma de apropriação e os significados que
atribui ao aikido como caminho marcial.
Na contramão da construção narrativa do Professor Adélio Andrade, o Mestre
Shikanai explica que aquilo que mais o incomoda no comportamento dos brasileiros são
as mudanças ou os “agenciamentos” realizados ao seu bel prazer no aikido, mas também
sua forte tendência à competição e comparação:
[...] porque brasileiro recebe mas procura seu jeito! Esse cultura brasileira!
Esse cultura aparecer quando mudança de governo! Por exemplo, se governo
de PT fazer uma coisa e outro não tem nada a ver com compromisso de PT,
desfazer tudo! Esse é tudo cultura do Brasil! Esse único que não concordo
isso! [riso] O único que não concordo, o resto eu concordo! [riso] Porque
Japão não tem nada! É cheio de catástofre natural! Se desperdício, se não
tiver cooperação, não consegue sobreviver! Se esse cultura japonesa se
prantar aqui no Brasil nossaaaa... Esse que é grande... senti, até agora sente.
O resto aqui maravilha. E japonês... você viu aquele catástrofe, aquele
terremoto de Sendai65
? Calmo né? Não aparece! Esse cultura japonesa. Aqui
se tiver catástrofe, “Ahhhhhhhhhhhhhh!!” Cada mamãe grita: “Ah meu
filho, minha filha!!!” [riso] Japonês não. Porque esse catástrofe vai reclamar
pra quem? [riso] Não tem como reclamar, o importante é levantar amanhã!
Porque é [inaudível] todo ano vem! Então é cultura diferente. Esse arte
65 A cidade de Sendai é a capital da província de Miyagi, no Japão, e a maior cidade da região nordeste da principal
ilha da nação japonesa, Honshu. No dia 11/03/2011 a cidade foi atingida por uma onda gigante (Tsunami) que
varreu a costa do Japão matando pelo menos 228 pessoas e causando grande destruição.
110
marcial japonesa tem que fazer saudação começo da aula, final da aula... Eu
admiro brasileiro não reclama nada, aceita né? Mas hoje em dia esse
globalização... às vezes como esse onda de MMA talvez vai pouco a pouco
influenciar para negativamente... Esse quero manter cultura japonesa aqui,
porque brasileiro aceita! Transmissão individual para manter essa arte. Se
transmissão manter, individual aí não quebra. Esse do governo político está
fazendo totalmente é diria diferente! Quando muda governo leva diretoria,
muda diretoria, muda tudo, vai começa tudo de novo, não manutenção, nada
de construir novo, como orçamento novo, com próprio dinheiro, orçamento
não cuida nada! Esse transmissão individual, meu compromisso, porque eu
faço informação dou para você é assim, é diferente do outro, porque eu cuido
você! Claro que você esse diferente, planta que planta aqui, leste, canto de
leste, canto do oeste, é claro que diferente! Direção do sol diferente, terra
diferente, então eu tenho que cuidar. Esse transmissão individual é assim.
Não é eu gostar ensina, e se não gostar ensina... [inaudível] ensino, claro que
ensino! Mas esse melhor não garante bom para você... Aí quando é choque
cultural, eu estive aqui Associação Carioca de Aikido né, eu ensinei para
você, aí vem outro assim [fica olhando], aí um descendente de árabe, ele me
disse assim ele falava pouco inglês, não falava português, ele me pergunta em
inglês: “Shikanai, ó você falou para ele assim, para mim assim, qual é
melhor?” “Não, o que eu falei para ele é melhor!” “Então porque não me
ensinou?” “Não, eu falei para você, melhor para você!” [risos] Custa para
explicar... [risos] Custa para explicar...
A análise do relato do Sensei Shikanai demanda um cuidado redobrado, pois sua
condição de imigrante pode levar àquilo que Alberti (2003) denominou de o “fascínio
do vivido”, o qual segundo a autora é uma consequência de dois paradigmas no trabalho
com fontes orais, a interpretação hermenêutica e a idéia do indivíduo enquanto valor.
Práticas e valores muito “infiltrados” em nosso modo de ver o mundo correm
o risco de parecer coisa dada, verdades absolutas, comuns a todas as culturas.
É o que acontece com os dois paradigmas aqui destacados. O modo de pensar
hermenêutico, que privilegia a interpretação do mundo com vistas à busca de
um sentido profundo das coisas, inclusive da história e das biografias, é tão
difundido – nos livros, nos filmes, nos meios de comunicação, na academia,
nas terapias etc. – que mal podemos imaginar que possa haver outras
possibilidades. O mesmo se passa com o indivíduo como valor. Ambos são
totalizadores, fixam sínteses e sentidos. (ALBERTI, 2003, p.4).
Dessa forma, o local e as condições a partir das quais o Mestre Shikanai fala,
podem fazer supor que sua visão de mundo tem maior autoridade em relação aos outros
Professores que participaram desta pesquisa, por isso a necessidade de cautela no que
diz respeito à sua narrativa.
O olhar do interlocutor japonês sobre os brasileiros e sua cultura também é por
sua vez totalizante. Entretanto, no caso de pesquisas com fontes orais, é exatamente no
exercício das generalizações que valores e impressões subjetivas são registrados. Nesse
111
sentido, à apropriação que o senhor Shikanai realizou sobre o aikido66
, devem ser
acrescidas as representações apreendidas em sua terra natal – sobre a cultura japonesa,
sobre o aikido e também sobre a cultura dos brasileiros – bem como, as novas
representações adquiridas desde sua chegada ao Brasil. A respeito dessas representações
apreendidas em solo brasileiro, é adequado indicar que elas também se estendem ao
aikido e às artes marciais em geral, à cultura japonesa, e à própria noção de cultura
brasileira. Para aprofundar essas reflexões acerca do relato do Sensei Shikanai, é
oportuno recorrer ao referencial teórico de Ernani Oda (2011), pois esse autor explica
que a compreensão da noção de cultura japonesa – e aqui o termo “noção” está sendo
adotado com o mesmo sentido de “representação” – e de seus desdobramentos no
próprio Japão e nos países estrangeiros só é possível a partir da mobilização de
conceitos como nacionalismo e globalismo. No entendimento do autor, os próprios
japoneses foram influenciados por uma visão totalizante de cultura, a qual passou a ser
perpetuada após a década de 1990 marcada pelo início de um período de recessão
econômica e de grande instabilidade social. Oda (2011, p.112) explica que
Como todo objeto de consumo, esta noção de cultura japonesa está
claramente inserida em um mercado global. Ela deve, portanto, ser atraente
não somente ao consumidor interno do Japão, mas também a outros países,
cuja aprovação passa a ser determinante para o status e o valor dessa “cultura
japonesa”. Daí a necessidade paradoxal de construir um nacionalismo que
precisa ser reconhecido em escala global. Por isso mesmo, a mídia japonesa
não se cansa de realizar reportagens sobre a disseminação da cultura japonesa
no mundo por meio da literatura, das histórias em quadrinhos, dos desenhos
animados, ou do cinema, que são apontados como sinal do vigor da cultura e
da sociedade japonesas.
No discurso do Mestre Shikanai aparecem os reflexos desses traços considerados
como característicos da cultura japonesa. A importância que o entrevistado concede à
transmissão – a qual não deve ser “quebrada” – evidencia uma noção “tradição”
comumente associada à cultura do povo japonês, e principalmente às artes marciais
nipônicas. A tradição no entendimento do Mestre pioneiro está associada a uma
continuidade cristalizada e imutável. Esse entendimento por parte do interlocutor pode
ser captado tanto no fragmento acima, quanto em outro trecho de sua entrevista no qual
o Sensei Shikanai relata que o seu primeiro aluno no Brasil – o Professor José Macau –
66 Isso também vale para os outros tipos de caminhos marciais que o entrevistado treinou no Japão, o Jodo e o Iaido.
112
hoje residente em Israel, conserva tudo o que aprendeu com seu Mestre: “Ele cabeça
diferente! Tudo que ensinei, ele guarda conserva!”67
A receptividade dos brasileiros aos valores e costumes japoneses, não obstante
as distâncias, geográfica, étnica, histórica, política, etc., faz com que o Mestre Shikanai
vislumbre a possibilidade de manter seu aikido, sua cultura e seu legado ainda que não
seja em sua terra natal. Paralelamente, o entrevistado reconhece que a manutenção de
seu aikido – entenda-se de suas representações e de sua forma particular de apropriação
sobre o mesmo – corre o risco de se perder, sobretudo, em consequência da globalização
e dos valores preconizados pelo mundo contemporâneo:
Quando coisa negativa tudo a gente fala nome da globalização né? [riso] Esse
globalização influenciou mal, e às vezes perde controle, perdendo coisa
valor... Coisa importante a gente está perdendo eu acho. Nome melhor, mas
essas coisas mudando nome às vezes perdendo as coisas boas.
Como já indicado na discussão da narrativa do Professor Bento Guimarães, ao
mesmo tempo em que o entrevistado descreve suas impressões, ele produz para si
representações sobre o mundo social e tenta – de maneira mais ou menos consciente –
legitimá-las perante o entrevistador. No caso do Mestre Shikanai isso também ocorre, e
a autoridade da qual está investido é fruto de sua origem nipônica e dos conhecimentos
e técnicas apreendidos ao longo de todo o seu treinamento marcial.
Para concluir este capítulo, é oportuno esclarecer que mesmo sendo tomadas em
sua singularidade, as práticas, representações e apropriações descritas pelos
entrevistados estão inscritas em limites coletivos. O que se procurou evidenciar, no
entanto, não foram possíveis disputas de representações cuja finalidade é segundo
Chartier (1991) o ordenamento e, portanto, a hierarquização da própria estrutura social.
O valor das práticas, apropriações e representações aqui registradas, está justamente na
presença da subjetividade com toda sua parcialidade, seus significados e idiossincrasias.
Além das práticas relatadas pelos entrevistados, de suas representações e apropriações
sobre o aikido e sobre a cultura japonesa, devem ser acrescentadas as próprias
representações e apropriações do pesquisador que por sua experiência breve de
treinamento no aikido também influenciou as narrativas e descrições dos entrevistados.
Assim, sejam quais forem as intenções que tivermos, o trabalho que
realizamos adquire uma dimensão dialógica intrínseca, na qual nossas
67 [02:03:42]
113
interpretações e explicações (expressamente claras) coexistem com as
interpretações contidas nas palavras que reproduzimos de nossas fontes e,
ainda, com as interpretações que os leitores delas fazem. [...]
Conseqüentemente, aquilo que criamos é um texto dialógico de múltiplas
vozes e múltiplas interpretações: as muitas interpretações dos entrevistados,
nossas interpretações e as interpretações dos leitores. (PORTELLI, 1997b,
p.27).
114
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É preciso demonstrar a arte! É preciso demonstrar a
arte... Porque senão você é um intelectual. Por isso,
você pode fazer um belo trabalho científico, mas isso
não vai transformar você num artista marcial. Artista
marcial tem que fazer a arte!
Prof. Bento de Freitas Guimarães - 6º dan de aikido
As narrativas registradas ao longo de cada um dos capítulos desta dissertação
indicam a riqueza e a fecundidade do aikido como objeto de estudo, mas principalmente
da subjetividade como possibilidade de investigação científica. Gradualmente o estudo
da(s) individualidade(s) tem sido valorizado pelo meio acadêmico como forma de
conhecimento alternativo na interpretação de fenômenos sociais. No caso do trabalho
com fontes orais, Alberti (2004, p.15) explica que:
Em muitos casos, a entrevista de história oral nos acena com a chance, ou
ilusão de suspendermos, um pouco que seja, a impossibilidade de assistir a
um filme contínuo do passado. Quando isso acontece é porque nela
encontramos a “vivacidade” do passado, a possibilidade de revivê-lo pela
experiência do entrevistado. Não é à toa que a isso muitos dão o nome de
história (ou memória) “viva”.
Mas concordamos todos que a impossibilidade de restabelecer o vivido é
coisa dada. Não existe filme sem cortes, edições, mudanças de cenário. Como
em um filme, a entrevista nos revela pedaços do passado, encadeados em um
sentido no momento em que são contados e em que perguntamos a respeito.
Através desses pedaços temos a sensação de que o passado está presente. A
memória, já se disse, é a presença do passado.
As distintas manifestações de artes marciais ou caminhos marciais de origem
japonesa, carregam consigo noções bastante caras, principalmente, ao terreno da história
e da historiografia. Memória, história, passado, tradição, ancestralidade, linhagem,
Não sendo historiador das práticas desportivas, faço
figura de amador entre profissionais e tudo o que
posso é pedir-vos, segundo a fórmula, que tenham
“espírito esportivo”...
Pierre Bourdieu - Questões de Sociologia (1983)
115
modernidade, avanço, desenvolvimento, institucionalização, difusão – entre outras – são
expressões que acompanharam os discursos dos professores entrevistados por ocasião
da presente pesquisa.
As diferentes formas de enquadramento da memória nos termos de Pollak
(1992) também são alternativas emprestadas individualmente à realidade social, e
eventualmente esses sentidos podem ser compartilhados por diferentes sujeitos. Por isso,
mesmo que o aikido tenha em seu bojo o significado de “arte da paz” conforme insistem
em afirmar alguns de seus estudiosos como, por exemplo, John Stevens (2002) e
Stanley Pranin (2010), as interpretações acerca desse caminho marcial não são e não
podem ser livres das idiossincrasias e interpretações pessoais de seus praticantes.
A chegada do aikido ao Brasil inaugurou um campo de práticas sociais
compartilhadas e passou por diferentes formas de apropriação e significação. Brasileiros
se graduaram e instituições foram criadas para manter e desenvolver o trabalho iniciado
pelos Mestres imigrantes Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai.
Entretanto, o que se observou a partir da análise das memórias recolhidas durante a
realização das entrevistas para esta dissertação, é que a memória pode ser
simultaneamente um objeto de investimento e de disputa, visto que pode ser convertida
em diferentes formas de capital de acordo com o mercado em questão. Como
investimento, a memória pode ser compreendida a partir do trabalho de enquadramento
da memória descrito por Michael Pollak (1992). Ou seja, para além das características
inerentes à memória (construção, desconstrução, reconstrução e esquecimento) é
possível indicar um trabalho nos níveis pessoal e coletivo de “organização memorial”
que evidencia diferentes estratégias com a finalidade de sobrelevar a figura de cada um
dos mestres pioneiros e de seus respectivos aikidos. Como capital, a memória pode
assumir diversas roupagens (capital simbólico, capital social, capital cultural, capital
econômico, etc.) e está sujeita às leis de cada mercado nos quais há a possibilidade de
realização de trocas e obtenção de lucros dos mais diversos. Nesse sentido, é importante
recorrer à noção de “conversão de diferentes espécies de capital em Bourdieu (1983, p.
61) que explica:
Para que se torne operante, é necessário fazê-lo sofrer uma transmutação: é a
função por exemplo do trabalho mundano que permitiria transmutar o capital
económico – sempre raiz em última análise – em nobreza. Mas não é tudo.
Quais são as leis segundo as quais se opera esta reconversão? Como se define
a taxa de câmbio segundo a qual se troca uma espécie de capital por outra?
Em qualquer época, há uma luta de todos os instantes a propósito da taxa de
conversão entre as diferentes espécies, luta que opõe as diferentes fracções da
116
classe dominante, cujo capital global atribui uma parte maior ou menor a esta
ou àquela espécie.
Assim, mesmo com a forte conotação de paz e conciliação, o aikido tem
apresentado feições de uma disputa já instalada, a qual pode ser constatada na retomada
de sentenças extraídas das narrativas dos Professores Matias de Oliveira e Adélio
Andrade. O primeiro assegura, sem hesitar, que o sogro recebeu uma incumbência para
se tornar pioneiro do aikido: “Você vai tomar conta do aikido na América do Sul! Lá no
Brasil e tal...”. Já o segundo, afirma energicamente para não deixar rastro de dúvida:
“Mas aikido de verdade mesmo, quem implantou no Brasil foi Sensei Nakatani!
Porque praticantes, os alunos do Kawai, costumam dizer que ele veio primeiro. Veio
primeiro, mas não com o aikido!” Observando afirmações como essas, é possível
aproximar a metáfora de “investimento” memorial indicada por Pollak ao conceito de
capital de Bourdieu. Isso porque, segundo o próprio Pollak (1992), além do trabalho
pessoal de enquadramento da memória, há também aquilo que o autor denominou de o
“trabalho da própria memória por si mesma”.
Ou seja: cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua
um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, da
organização. Por exemplo, a partir do momento em que o Partido Comunista
amarrou bem a sua história e a sua memória, essa mesma memória passou a
trabalhar por si só, a influir na organização, nas gerações futuras de quadros;
os investimentos do passado, por assim dizer, renderam juros. (POLLAK,
1992, p.206, grifo nosso).
Assim, é importante não perder de vista a articulação entre esse duplo trabalho
memorial, individual e coletivo, apontado por Pollak, os quais afetam de maneira direta
os sentidos e significados conferidos à chegada e ao início do aikido em solo brasileiro.
As narrativas coligidas ao longo desta dissertação formam não uma rede, mas
um intrincado emaranhado de memórias, que em alguns momentos possuem
significados próximos e em outros, possuem sentidos antagônicos e diametralmente
opostos. Acrescente-se ainda, a participação do pesquisador como coprodutor de
memórias a partir de seu próprio enquadramento ou de sua “moldura de referência
prévia”, conforme indica Portelli (1997a). Dessa maneira, um conjunto de
interpretações se sobrepõe na presente dissertação – incluindo os sentidos emprestados
pelos leitores – formando um sem número de camadas que talvez distanciem as
narrativas dos entrevistados de suas intenções originais, produzidas em seus respectivos
contextos de entrevistas. Por isso, é cabível recordar que um trabalho de história oral
117
como este, se baseia não nos aspectos factuais da memória, mas em sua natureza
semântica. A esse respeito Alessandro Portelli (2010c) afirma que
[...] a história oral é menos o „testemunho‟ de eventos e mais uma
„construção‟ feita de palavras por meio da cooperação de editores,
entrevistadores, testemunhas e narradores, cada um deles buscando através da
linguagem, dar forma e significado à experiência e à memória. (PORTELLI,
2010c, p.187).
Além do caráter de disputa observado nas memórias de alguns dos entrevistados
e é necessário enfatizar que o tipo de disputa a que aqui se faz menção não é uma
disputa bipolar, entre uma memória oficial e outra pouco conhecida ou “subterrânea”
para utilizar outra expressão de Pollak (1989), mas há muitas memórias que concorrem
de forma direta ou indireta arrolando valores distintos tais como: tradição e transmissão
individual, oficialidade e instituição, expertise técnica e destreza marcial, etc. Mais do
que dissonância, talvez a palavra correta a ser empregada no caso das narrativas aqui
recolhidas seja polifonia. A inscrição pessoal na história e a valorização das próprias
memórias é uma característica bastante observada no trabalho com fontes orais. No caso
dos professores entrevistados para a realização desta pesquisa essa característica se
mostrou bastante acentuada, sobretudo, por sua ligação com um dos três mestres
pioneiros do aikido no Brasil. Um dos entrevistados, o Professor Ricardo Leite da Silva,
procurou ao longo de seu relato, tentar demonstrar ao pesquisador, porque há tanta
necessidade de valorizar ou sobrevalorizar o próprio mestre:
No Brasil pra ser simples e sincero, muita gente – e não foi só o Kawai
Sensei, eu estou usando ele só como exemplo, porque é claro você na sua
pesquisa vai encontrar isso – endeusa o mestre! Pra quê? Porque eu estou
aqui [demonstrando o nível] e eu preciso ter importância, eu não sou um ser
insignificante, eu sou um ser especial, eu sou eu! Minha mãe sabe quem sou
eu... só eu e minha mãe sabemos quem sou eu. E vou dizer pra você quem
sou eu: “eu sou discípulo desse grande mestre!” [dando um exemplo] E nem
sempre o cara é um grande mestre...
A legitimidade é um dos pontos centrais das disputas observadas ao longo do
das entrevistas que constam nesta dissertação e mesmo naquelas que ficaram de fora
deste trabalho. No entanto, a definição – e o reconhecimento – das trajetórias e imagens
dos respectivos mestres pioneiros vem se dando dentro de uma dinâmica complexa e
que deve levar em consideração diversos fatores, como por exemplo, o público atual de
praticantes de aikido e suas características. Trata-se de uma intricada relação entre os
produtores de bens simbólicos – como as graduações alcançadas por meio do
118
treinamento continuado, o fato de pertencer a um grupo vinculado a determinado mestre
pioneiro, ou ainda treinar em uma instituição reconhecida internacionalmente, etc. – e
sua relação com outras instituições e agentes que participam do mesmo campo, bem
como com seus respectivos consumidores. Nessa perspectiva, é possível estabelecer um
paralelo com uma das análises empreendidas por Bourdieu (2013) acerca do campo da
arte68
:
Todas as relações que os agentes de produção, de reprodução e de difusão,
podem estabelecer entre eles ou com as instituições específicas (bem como a
relação que mantêm com sua própria obra), são mediadas pela estrutura do
sistema das relações entre as instâncias com pretensões a exercer uma
autoridade propriamente cultural (ainda que em nome de princípios de
legitimação diferentes). Destarte, esta estrutura das relações de força
simbólica exprimem-se, em um dado momento do tempo, por intermédio de
uma determinada hierarquia das áreas, das obras e das competências
legítimas.
Cabe observar, contudo, que a diversidade de concepções – discursos e
práticas – acerca do aikido relativas às experiências de cada um dos professores aqui
entrevistados, traduz não apenas suas idiossincrasias, mas também indica um campo
relativamente novo dentro do contexto nacional. Dessa forma, os bens simbólicos
produzidos dentro do espaço de relações originado pela inserção do aikido no Brasil,
ainda seus contornos, ou seja, sua natureza e características, dentro de um mercado de
trocas que gradualmente vem se ampliando. O que se observa na atualidade é uma
formalização cada vez maior, decorrente de um amplo processo de institucionalização
pelo qual o aikido está passando. Processo esse, que não está ocorrendo apenas em solo
brasileiro, mas em todo o mundo, e que é uma consequência de um movimento de
institucionalização iniciado no próprio Japão, por meio da Fundação Aikikai, criada
pelo filho do fundador da “arte da paz”. Esses novos valores podem ser fatores
decisivos, tanto para os futuros relatos dos professores que participaram desta pesquisa,
assim como para outros agentes que sejam entrevistados – praticantes,professores ou
outros – e que percebam a memória como um capital que pode gerar um sem-número de
dividendos, desde que reconheçam as leis do mercado de trocas (simbólicas) em questão,
e saibam lançar mão das estratégias e posicionamentos mais favoráveis.
68 Cabe registrar que a análise de Bourdieu (2013) no capítulo 3 – “O ensaio dos bens simbólicos”, não está adstrito
ao campo da arte, pois dentro desse mesmo capítulo o autor faz menções à vinculação do campo artístico com o
campo educacional – que define os atuais e futuros produtores e consumidores das mais variadas manifestações de
arte em função de sua formação – bem como estabelece paralelos com o campo religioso.
119
Além das características próprias às diferentes formas de disputas,
constatadas nas descrições dos entrevistados, não se pode perder de vista a riqueza e a
singularidade de seus relatos, todos eles irrepetíveis. Essa é, segundo afirma Portelli
(1997b), uma das primeiras lições de ética no trabalho de campo com fontes orais.
Cada pessoa é um amálgama de grande número de histórias em potencial, de
possibilidades imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes,
contornados e por pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de
ouvir baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com
quem conversamos enriquecem nossa experiência. [...] Cada entrevista é
importante, por ser diferente de todas as outras. (PORTELLI, 1997b, p.17)
Outra constatação decorrente da pesquisa aqui empreendida é a respeito da
formação das identidades de cada um dos entrevistados. É impossível pensar a memória
sem a identidade como seu “substrato”, conforme afirma Delgado (2010). A polissemia
conferida ao aikido é indissociável da biografia de cada um dos entrevistados,
demonstrando inclusive a impossibilidade de extrapolar (generalizar) entendimentos e
noções sobre a “arte da paz”. Obviamente que o sujeito não pode ser compreendido fora
dos limites sociais e históricos aos quais está subordinado, entretanto, no limite, sua
participação é sempre pessoal e suas impressões e percepções são registradas à luz de
sua história de vida. É esse olhar “microscópico” sobre o sujeito – o qual por vezes
inviabiliza qualquer tipo de generalização – que Portelli (2010a) define como micro-
história. Isso porque, segundo o autor italiano, dentro de um evento coletivo, os
significados individuais são escolhas: “Isto é, dentro do evento coletivo as pessoas
chegam com uma multiplicidade vivida de histórias pessoais.” (PORTELLI, 2010a,
p.46).
Reitera-se o papel do pesquisador na construção da identidade do
entrevistado, primeiramente ao modular suas respostas por meio da experiência de
entrevista, posteriormente na passagem do oral para o escrito, e finalmente a partir da
edição operada nos textos para que sejam apresentados em seu formato final a ser
publicado. Ou seja, mesmo em relação às identidades individuais de cada um dos
professores aqui entrevistados, não se pode tomá-las como identidades reais, concretas,
pois o processo de construção pelo qual passaram até sua apresentação final não dá
margem a qualquer factualidade ou concretude. Mesmo assim, é importante recordar
conforme afirma Delgado (2010, p.62) que as pesquisas acadêmicas que privilegiam a
oralidade e que têm como matéria prima a memória “[...] contribuem para a
120
relativização das interpretações que tendem a sobrevalorizar as totalidades em
detrimento das especificidades e dos particularismos.” Além do papel ativo na produção
das identidades dos entrevistados, é necessário acrescentar que o pesquisador sempre
sofre influências, coerções – diretas e indiretas –, visto que os participantes de sua
pesquisa ainda estão vivos e terão acesso ao texto final. Nesse sentido, Amado (1997,
p.148) explica que a antecipação das consequências de uma publicação com fontes orais
“[...] interfere na elaboração do trabalho, fazendo com que o historiador seja
especialmente cuidadoso na redação da pesquisa e, até mesmo, que omita uma ou outra
informação capaz de gerar tormentas para si próprio.”
Na esteira desses apontamentos é oportuno considerar que há uma íntima
articulação entre a memória, a identidade e as representações. As representações de cada
um dos entrevistados desta pesquisa refletem simultaneamente seu lugar e sua
participação em eventos coletivos, mas também seu processo pessoal de significação e
de apropriação de um elemento cultural originário de um país tão distante como o Japão.
Estabelecendo outro paralelo com a obra de Chartier (1990), é possível conceber o
aikido como um “texto” passível de ser lido e interpretado de acordo com o seu leitor,
neste caso, de acordo com cada um dos professores entrevistados:
Por outro lado, esta história deve ser entendida como o estudo dos processos
com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga ideia que
dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual
a crítica tinha obrigação de identificar –, dirige-se às práticas que,
pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo. Daí a
caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de
afirmação de distâncias, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de
apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação.
(CHARTIER, 1990, p.27-28).
A trajetória de cada um dos mestres pioneiros, com seus respectivos mestres
e estilos marciais, os locais onde praticou aikido, seu tempo de treinamento, seus
colegas de tatame, e uma série de outras variáveis poderiam ser tomadas como as
influências na produção do “livro” de Chartier. Ao mesmo tempo, os locais onde os
mestres pioneiros do aikido no Brasil aportaram, os locais onde ensinaram, seu estilo
marcial já eivado de significados e características pessoais, suas dificuldades de adaptar
conceitos e informações originárias da cultura japonesa ao pensamento e vocabulário
dos brasileiros, entre outros fatores podem ser considerados como elementos
constituintes do “livro” propriamente dito, o qual viria a ser lido posteriormente pelos
professores de aikido que participaram deste estudo. Acrescente-se ainda, a visão de
121
mundo de cada um desses professores, sua biografia, seus colegas de tatame, suas
dificuldades corporais com a prática, o tempo despendido ou não em um
aprofundamento teórico a respeito do aikido, seu tempo de treinamento, a rapidez ou a
morosidade com que evoluiu dentro dos níveis de progressão técnicos e de graduação,
etc. e aí se terá uma noção do universo do “leitor” e dos significados que atribuiu e
continua atribuindo ao aikido e ao seu respectivo mestre. Levando essas informações
em consideração, é possível recorrer a um trecho da obra de Chartier (1990, p.58) que
explica que não se pode “Agir como se os textos (ou as imagens) tivessem significados
por si mesmos, fora das leituras que os constroem [...]”. O autor ainda complementa
informando que as representações do leitor “[...] nunca são idênticas às que o produtor,
o autor, ou o artista, investiram na sua obra.” (CHARTIER, 1990, p.59). Seria inevitável
portanto, constatar a pluralidade de sentidos atribuídos ao aikido, à sua chegada e
difusão em terras brasileiras, a partir da perspectiva de cada um dos professores aqui
entrevistados. Essas considerações não estão adstritas ao aikido, mas também podem ser
estendidas às noções e interpretações sobre a cultura japonesa, geralmente representada
como uma totalidade orgânica indiferenciada (ODA, 2011).
Longe de esvaziar o sentido do aikido, a multiplicidade de visões sobre esse
elemento proveniente da cultura nipônica atribuiu à presença desse caminho marcial –
na perspectiva dos entrevistados – novos significados, alguns deles bastante distintos de
sua concepção original.
Por fim, o que não pode ser esquecido é o enriquecimento da experiência
acadêmica e de vida do pesquisador em virtude de todas as viagens e entrevistas
realizadas com cada um dos professores que cedeu seu tempo, sua intimidade, suas
memórias. A possibilidade de abertura a um encontro concreto, dialógico, relacional
sempre significativa, no entanto, é cada vez mais esquecida na atualidade. A esse
respeito, Delgado (2003) afirma que na contemporaneidade – marcada por uma cultura
cada vez menos concreta e mais virtual – onde as informações são cada vez mais
descartáveis “[...] tendem a desaparecer os narradores espontâneos, aqueles que fazem
das lembranças, convertidas em casos, lastros de pertencimento e sociabilidade.”
(DELGADO, 2003, p.22). É oportuno reforçar que no curso da realização desta
pesquisa, não foram apenas as experiências de professores com o aikido que foram
compartilhadas, e sim experiências, impressões e percepções sobre a vida que também
atuaram de maneira direta sobre o entrevistador. Nessa linha de raciocínio e para
concluir, é necessário recorrer mais uma vez a Portelli (1997b, p.29):
122
Na verdade, depois de ouvir atentamente centenas de histórias e pessoas – e
de com elas conversar em profundidade –, adquiri uma percepção muito
diferente de mim mesmo, pela qual sou grato.
123
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UNIVERSIDADE FEDERAL DOPARANÁ - SETOR DE
CIÊNCIAS DA SAÚDE/ SCS -
PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP
Pesquisador:
Título da Pesquisa:
Instituição Proponente:
Versão:
CAAE:
Memórias sobre a introdução e difusão do Aikido no Brasil
RODRIGO CRIBARI PRADO
Departamento de Educação Física
2
09280112.1.0000.0102
Área Temática:
DADOS DO PROJETO DE PESQUISA
Número do Parecer:
Data da Relatoria:
163.573
13/12/2012
DADOS DO PARECER
Trata-se de pesquisa de mestrado no a¿mbito do Programa de Po¿s-graduac¿a¿o em Educac¿a¿o Fi¿sica
da UFPR, que tem por objeto o estudo da histo¿ria da introduc¿a¿o e difusa¿o do Aikido no Brasil. O
pesquisador pretende entrevistar diferentes Senseis (professores(as)) dessa arte marcial, com o fim de
reconstruir as narrativas da histo¿ria oral do Aikido no Brasil. A pesquisa e¿ qualitativa e sera¿o realizadas
entrevistas semiestruturadas, que tera¿o como temas centrais a chegada do Aikido no Brasil e sua
disseminac¿a¿o no pai¿s. A amostra e¿ varia¿vel, mas consiste aproximadamente de 12 Senseis, ligados
aos tre¿s mestres pioneiros dessa arte marcial no Brasil.
Apresentação do Projeto:
Analisar como se deu a introduc¿a¿o e a difusa¿o do Aikido no Brasil, a partir da memo¿ria de Senseis que
conviveram e foram treinados por mestres pioneiros dessa arte marcial no pai¿s. Comparar e verificar
proximidades e diferenc¿as entre as diversas narrativas, bem como verificar a existe¿ncia de uma histo¿ria
"oficial" ou hegemo¿nica do Aikido no Brasil.
Objetivo da Pesquisa:
O pesquisador pondera a existe¿ncia de risco de desconforto dos entrevistados tanto durante a entrevista
como pela publicac¿a¿o de suas narrativas. E¿ preciso esclarecer que o pesquisador pretende, com a
autorizac¿a¿o de cada Sensei, publicar seus nomes e relatos. Preve¿, por isso, a possibilidade de
renu¿ncia ao anonimato pelos entrevistados no pro¿prio TCLE. Como medida de minimizac¿a¿o de risco,
que as entrevistas desgravadas sera¿o disponibilizadas aos participantes e so¿ sera¿ publicado aquilo que
for autorizado pelo sujeito da pesquisa. Se o Sensei na¿o quiser ter
Avaliação dos Riscos e Benefícios:
80.060-240
(41)3360-7259 E-mail: [email protected]
Endereço:Bairro: CEP:
Telefone:
Rua Padre Camargo, 2802ª andar
UF: Município:PR CURITIBA
UNIVERSIDADE FEDERAL DOPARANÁ - SETOR DE
CIÊNCIAS DA SAÚDE/ SCS -
seu nome publicado, sera¿ garantido o anonimato. Ale¿m disso, o pesquisador assegura ao entrevista a
total liberdade de na¿o responder a questo¿es que lhe constranjam ou lhe causem desconforto.
Como benefi¿cio, aponta o pesquisador a possibilidade de contribuir para a construc¿a¿o de uma histo¿ria
plural e democra¿tica do Aikido no Brasil, bem como para a produc¿a¿o de estudos socioculturais na a¿rea
de Educac¿a¿o Fi¿sica.
A pesquisa esta¿ bem fundamentada, e¿ relevante e o projeto esta¿ bem redigido.
Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:
Todos os termos obrigato¿rios foram apresentados.
Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória:
Não há.
Recomendações:
As pendências apontadas por este CEP foram sanadas.
Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:
Aprovado
Situação do Parecer:
Não
Necessita Apreciação da CONEP:
- É obrigatório trazer ao CEP/SD uma cópia do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que foi
aprovado, para assinatura e rubrica, ante da sua aplicação junto ao sujeito da pesquisa. O TCLE deverá
conter duas vias, uma ficará com o pesquisador e uma cópia ficará com o participante da pesquisa (Carta
Circular nº. 003/2011CONEP/CNS).
Considerações Finais a critério do CEP:
CURITIBA, 05 de Dezembro de 2012
Claudia Seely Rocco(Coordenador)
Assinador por:
80.060-240
(41)3360-7259 E-mail: [email protected]
Endereço:Bairro: CEP:
Telefone:
Rua Padre Camargo, 2802ª andar
UF: Município:PR CURITIBA