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MARYANNA NASC IMEN TO

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Aos que acreditaram

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Prefácio do autorO nome do livro indica o seupróprio teor

– Maryanna Nascimento

9

Sobre a guerraVocê não consegue entendersem falar dos agentes externos

– Samy Adghirni

17

Uma crônica no caminhoEntre todas as histórias que ouvi,uma apinhou a minha mente

– Maryanna Nascimento

11

Nota introdutóriaA primeira vez que parei parapensar sobre a Síria

– Maryanna Nascimento

13

De quem são as vozes?Diogo, Germano, Lourival, Marcelo, Patricia, Samy, Tariq, Yan

15

VistoTentei inúmeras outras vezesvoltar à Síria e não consegui

– Diogo Bercito

25

Bloco e coleteHá dois fatores: segurança eprodução

– Tariq Saleh

45

Chegada à SíriaEu fui uma vez lá para fronteirae me apresentaram um plano

– Marcelo Ninio

31

Treino é treino...Eu comecei a cobrir guerra deuma forma não planejada

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– Lourival Sant'Anna

SeguroEu tinha isso tratado boca aboca. Eu assumi o risco

– Germano Assad

41

Sumário

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Fixer e minderO fixer é o seu termômetrocultural

Patricia Campos Mello

53

Toca pra guerraNão pode ir na rua, entrar no táxie dizer 'Toca pra guerra'

– Marcelo Ninio

87

Pautas, metas e deadlineAcho que eu me pautei em 90%das matérias

– Marcelo Ninio

63

Multi repórterNão tem sentido ir lá fazertextos e colocar foto de agência

– Tariq Saleh

81

ApuraçãoPrefiro não fazer nenhumaentrevista com ninguém oficial

– Yan Boechat

71

Cama, mesa e banhoBanho quente todos os dias,cama king size, comia bem

– Samy Adghirni

93

A guerra não tem voz de mulherA gente tem acesso a 50% da população que os homens não têm

– Patricia Campos Mello

119

PsíquicoPercebi que as minhas reservas(emocionais) estavam acabando

– Lourival Sant'Anna

101

Linha editorialEscrevo 'presidente' na matériapublicada e está escrito 'ditador'

– Germano Assad

107

O papel na guerraO meu papel foi o papel de todoenviado especial

– Samy Adghirni

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p r e f á c i o d o a u t o r

Na secular Síria, a história é costurada e desmanchada desde 2011. São 185.180 km² de um país que está em retalhos por causa de uma guerra civil: territórios mudam de mãos, atores entram e saem de cena e mais de cinco milhões de pessoas se refugiam em outros países. Alguns fazem o caminho de volta enquanto este prefácio é escrito. Para quem está do lado de cá, o que chega de informação vem, sobretudo, de matérias de agências. A tarefa de personificar a luta dos sírios, por outro lado, coube a poucos jornalistas. Neste livro de relatos, a voz — que às vezes parece uníssona e outras desarmônica — vem dessas pessoas. Oito brasileiros que atravessaram a fronteira em busca de histórias do início dos conflitos até 2017. Sahafi brazili não se propõe, porém, a recontar essas vivências que ontem estamparam os jornais e a televisão. O nome do livro indica o seu próprio teor: é sobre e para os ‘jornalistas brasileiros’ (tradução do árabe). Ao longo de dezoito capítulos, eles contam desde o processo de pedido de visto para acessar o território controlado por Bashar al-Assad até as condições de produção. O período e quem controlava a área em que estavam — forças pró-governo, rebeldes e curdos —, diz muito. Ao final das páginas, se o leitor tiver alguma dedução, o mérito é próprio da sua postura analítica. O meu papel foi, acima de tudo, o de condução.

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Entre todas as histórias que ouvi ao longo das entrevistas, uma apinhou a minha mente com imagens. Peço licença ao jornalismo e ao dono da experiência, Samy Adghirni, para esta crônica — que apesar de não cobrar explicações, digo: há muita verdade.

Fiz o check-in no hotel Talisman Al Ameen por volta das 20h de uma quinta-feira de dezembro. O cheiro que exalava da mobília de madeira e a arquitetura tradicional denunciavam: o edifício situado no centro histórico de Damasco era centenário. No quarto, a cabeceira da cama de casal lembrava o cabelo anelado de Buda. Sentei naquele colchão espaçoso e abri o meu moleskine de capa vermelha, comprado por 2 euros em uma loja chinesa há muitos quilômetros da Síria. Consultei a lista rabiscada à lápis no final do livro. Até o fim da viagem de cinco dias, precisava comprar algumas lembranças para amigos — logo eu que volto de mãos vazias das viagens me dei esse luxo, afinal não é todo dia que encontramos regalos a 10% do preço original. Entre artesanato e bijuterias locais, ainda havia um lustre na lista. O desafio era fazer uma viagem intercontinental sem quebrá-lo.

Já se aproximava das 21h15 quando decidi sair do quarto. Os corredores do hotel cinco estrelas estavam em silêncio, a piscina iluminada por candelabros não tinha sequer um hóspede. Continuei caminhando e encontrei um homem bigodudo fumando próximo a uma árvore. Me aproximei. ‘Salaam Aleikum’, disse usando a única expressão que sei de árabe. Ele respondeu com cara de poucos amigos. Contei de forma breve que estava na Síria à trabalho e que queria saber o que fazer na noite em Damasco. O homem, com um inglês convincente, explicou que conhecia pouco dali mas que tinha ouvido falar de uma discoteca a poucos metros do hotel. Dei adeus e segui em direção à recepção. O atendente revelou que aquele quarentão do bigode grande e

u m a c r ô n i c a n o c a m i n h o

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com fios alvinegros era o único hóspede, além de mim, naquele estabelecimento com 17 quartos. Não era de se espantar. Pedi indicações de restaurantes na redondeza, confirmei a existência da tal discoteca e segui para a rua.

Fazia cerca de 7º. Com luvas pretas e um cachecol mostarda andava meio perdida pelas ruas. O vento rasgou o mapa da primeira vez que decidi abrir. Tentei recordar das indicações do atendente. Depois de três quadras, parei em um restaurante. Não entendi o que estava escrito no cardápio e a garçonete não conseguia traduzir. Escolhi pelo preço. Depois de alguns minutos, recebi um cesto de pães, salada e iogurte. ‘Não acredito que saí do Brasil para comer iogurte na Síria’, lamentei mentalmente. Comi os seis pães que me foram servidos e quando estava prestes a pedir a conta, eis que a garçonete retorna com uma carne de carneiro. Ela me olhou um pouco torto, afinal não deve ser todo dia que uma brasileira chega naquele restaurante e come todos os pães do cesto ignorando o prato principal. Me passei! Comi o carneiro — que estava delicioso, à propósito — com raiva pela minha estupidez e, de bucho cheio, fui até a discoteca. Logo na entrada havia um francês dando algumas indicações para os seguranças. Pelo visto, ele era o dono do local. Deixei o meu casaco na entrada e segui adiante. Bebi pouco, afinal estava sozinha, mas me embriaguei com aquelas músicas ocidentais remixadas. Elas me faziam esquecer por algumas horas que eu estava na Síria. Aliás, toda a vivência daquele dia da chegada me fizeram esquecer por que eu estava naquele país. Tudo mudou quando o segurança abriu aquela pesada porta escura por volta das 3h da manhã, quando eu estava indo embora. A realidade veio à tona: as explosões aconteciam do lado de fora, a pouco mais de dois quilômetros. Bom! Bom! Bom! A Síria estava em guerra.

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n o t a i n t r o d u t ó r i a

A primeira vez que parei para pensar sobre a Síria foi em janeiro de 2016. Estava à passeio na Turquia e cheguei a ficar a cerca de 500 quilômetros do país quando estive em Göreme. Durante a viagem, recebi mensagens de alerta. Diziam que não era seguro, afinal eu estava sozinha e os territórios eram muito próximos. Segui. Já em Éfeso, alguns dias depois de ter saído de Istambul, comprei o jornal Sabah (‘Manhã’, em turco). Na manchete principal, havia a chamada ‘Teröre karşı tek yürek olalım’. ‘Vamos ser um coração contra o terrorismo’, traduziu um host local. A matéria falava sobre um ataque terrorista próximo à Hagia Sophia e Blue Mosque, basílica e mesquita no centro turístico da cidade. Foram 11 mortos e 15 feridos. De acordo com o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, o ataque foi feito por um jihadista do Estado Islâmico. A acusação é de que ele havia saído do país vizinho, que estava em guerra. Naquela época, eu não me importava com a guerra. Hoje, escrevo sobre ela.

Certo dia, cerca de seis meses depois, me deparei com uma reportagem de 2014 recheada com relatos de jornalistas que se afastaram da Síria porque estavam sendo perseguidos por jihadistas. Logo no lead, a frase “Na guerra, a primeira vítima é a verdade”, de autoria questionável. O despertar e sentimento de incômodo, se me recordo bem, foi o mesmo daquele 12 de janeiro, dia do ataque. Nesse segundo caso, o que me afligia é que histórias estavam deixando de ser documentadas. Foi nesse momento que parei para refletir além e aquém do meu umbigo: do lado de fora haviam jornalistas se esforçando para contar sobre uma realidade que até então eu ignorava. Me dei a chance de mergulhar — ainda que na teoria — no mundo da guerra. Na guerra da Síria. Assisti documentários, vi inúmeras fotografias, li alguns livros e quanto mais eu pesquisava, mais questionamentos surgiam. As respostas às dúvidas não chegavam. Quem era James Foley, Gilles Jacquier e

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Mika Yamamoto, três dos mais de 200 jornalistas mortos durante a cobertura de um confronto que já dura seis anos? O que leva esses jornalistas a irem para a guerra? Qual a rotina produtiva quando se cobre um conflito? Quais as implicações de se cobrir em uma área dominada por Bashar al-Assad, pelos rebeldes ou curdos? As duas últimas inquietações deram lugar a todas as perguntas e respostas que estão neste livro. Agora posso dizer que decifrei uma parte dessa realidade.

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o início dos conflitos, acabou cobrindo de forma anônima. Em novembro domesmo ano ele foi preso e interrogado. Foram quatros dias em uma solitária.Segundo as autoridades do país, ele ficou em cárcere por trabalhar semautorização do governo. Colaborou para a Folha de S. Paulo, G1, RádioFrança Internacional, Associated Press e outros.

Lourival Sant’Anna é repórter e analista internacional. Esteve na Síria em 2012 e ficou em Damasco, área controlada pelo governo, com visto de dez dias. À época foi enviado especial pelo Estadão, onde já havia sido editor-chefe, editorialista e correspondente em Londres. Já havia feito cobertura de conflitos em países árabes como Afeganistão e Iraque.

Marcelo Ninio foi para a Síria cinco vezes, duas durante a guerra: em 2011 e 2012. Da primeira vez esteve em Damasco, área controlada pelo governo, com visto. Da segunda, em Aleppo, dominada pelos rebeldes. Cada ida durou cerca de uma semana. Era correspondente da Folha de S. Paulo em Jerusalém e é mestre em Relações Internacionais.

Patricia Campos Mello esteve na Síria duas vezes em 2016. Foi para o norte do país, tanto na região controlada pelos curdos quanto pelos árabes, sem

d e q u e m s ã o a s v o z e s ?

Diogo Bercito é mestre em estudos árabes e foi correspondente internacional da Folha de S. Paulo em Jerusalém. Responsável por todo o Oriente Médio, foi para a Síria em 2014. Ficou uma semana no país, com visto, em área controlada pelo governo — Damasco e Homs. Escreve no Orientalíssimo, blog da Folha dedicado ao Oriente Médio.

Germano Assad morou na Síria em 2011. O jornalista foi estudar árabe em Damasco e fez uma imersão na cultura do país, já que o seu avô é sírio. Com

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visto. Na primeira viagem, passou uma semana; na segunda, quinze dias. Em ambas, foi enviada pela Folha de S. Paulo. Na segunda parada conciliou a cobertura com a apuração do livro ‘Lua de Mel em Kobane’, lançado pela Companhia das Letras em novembro de 2017. O livro conta a história de um homem e uma mulher que se conheceram na internet, se apaixonaram e, recém-casados, foram viver em uma cidade sitiada pelo Estado Islâmico.

Samy Adghirni viveu três anos em Teerã como correspondente da Folha de S. Paulo. Esteve na Síria em 2012, durante uma semana. Foi para Damasco ecidades do interior, todas sob o controle do governo. Entrou no país comvisto. Anteriormente, cobriu conflitos da Primavera Árabe no Egito na Líbia,Tunísia e Egito.

Tariq Saleh foi para a Síria em 2011, 2012 e 2013 como produtor de televisão pela BBC e repórter pelo Terra. Esteve em Aleppo, área controlada pelos rebeldes à época. A cada viagem ficou em média uma semana no país. Atualmente está baseado em Beirute, onde nasceu.

Yan Boechat esteve na Síria em 2017. Foi como freelancer e colaborou para a Folha de S. Paulo e Band. Tinha visto de dez dias e esteve em Damasco, Aleppo e Homs, áreas controladas pelo governo à época. Já fez coberturas nas guerras do Afeganistão e Congo, além de conflitos na Ucrânia e no Iraque.

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Sobre a guerra

C A P Í T U L O I Em 2011, o mundo árabe viveu um momento histórico de reivindicações e lutas contra os governos ditatoriais do Oriente Médio e norte da África. As manifestações a favor da democracia causaram uma crise política e social e tiveram como consequência a derrubada de governos, como o do então presidente da Tunísia, Ben Ali. Na Síria, importante território geopolítico da região, a Primavera Árabe — nome dado à conjuntura — teve o seu estopim em março do mesmo ano. Na cidade de Deera, no sul do país, jovens sírios foram presos e torturados após picharem frases revolucionárias no muro de uma escola. A resposta violenta das forças de segurança gerou manifestações nacionais contra o governo de Bashar al-Assad, presidente da Síria de origem da minoria alauíta.

Milhares de pessoas foram às ruas e membros da oposição política passaram a portar armas na tentativa de se defenderem e expulsarem as tropas governamentais de algumas regiões. O embate acabou por adquirir um rumo sectário e de interesses internacionais,

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Tariq Saleh

Yan Boechat

Patricia C. Mello

Samy Adghirni

Lourival Sant'Anna

Marcelo Ninio

Diogo Bercito

Germano Assad

tornando-se uma guerra pelo controle de territórios que envolve principalmente defensores do presidente Bashar al-Assad, radicais, curdos e jihadistas do Estado Islâmico — que catapultou o seu poder durante a guerra. Desde então o país vive uma constante instabilidade. Como consequência, o saldo é de mais de 300 mil mortos e metade da população, cerca de 23 milhões antes dos conflitos, obrigada a abandonar as suas casas. São seis anos de guerra.

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Por

g e r m a n o a s s a dCobriu o início dos conflitos, em 2011 - Damasco (Freelancer)

Não havia um conflito quando eu fui para lá, o que havia era uma situação muito peculiar no país, afinal as pessoas estavam discutindo abertamente política, uma coisa que nunca foi normal na Síria. Isso estava acontecendo porque logo após uma onda de protesto por abertura política e econômica no país. O regime dava sinais de que ia se abrir, ia aceitar e acatar algumas sugestões da oposição. O maior exemplo disso é que eu conversei com muitos intelectuais de oposição à época e essas pessoas estavam vivendo tranquilamente no país. Inclusive existia uma espécie de confraria de intelectuais de grandes pensadores na Síria naquele momento e o próprio Bashar fazia parte, ele participava como ouvinte. Grande parte dessas pessoas que faziam parte dessa confraria eram pessoas da oposição Síria. A explosão do que aconteceu no país foi surpreendente porque o ambiente não era, não indicava isso. E aí de repente em um desses encontros dessa tal confraria o Bashar não só não apareceu como mandou a polícia prender todo mundo. Foi a partir daí que a coisa começou a ficar tensa. Presos políticos, protestos pela libertação deles, violência nos protestos, repressão... Aí a coisa foi calando.

Por

l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Quando eu estive lá tinham começado os atentados a bomba, atentados terroristas. No final de dezembro, por volta do Natal, teve um atentado grande em Damasco. Estavam começando esses atentados e era justamenteo que o regime queria, que ficasse caracterizado que os rebeldes eramterroristas. E era uma pequena fração dos rebeldes que era terrorista. Agrande maioria eram pessoas comuns. Assim como aconteceu nos outrospaíses da Primavera Árabe, eram pessoas como nós, que nunca tinhampegado em arma, tinham inclusive escapado de servir o exército porque nãogostavam do regime e, às vezes, usando influência e tal da família,conseguiam não servir. Eram pessoas que estavam pegando em armas pela

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primeira vez, desde pedreiros, mecânicos, até médicos, dentistas, engenheiros e empresários também, pequenos empresários, todo mundo nessa luta.

Na época que eu fui, eu ainda entrevistei um alauita, líder oposicionista, mas era uma oposição permitida. Assim como cristão também, oposicionista. Mas era a oposição permitida pelo regime que sem querer desmerecer essas pessoas, mas que acabavam ali tendo um papel de confirmar a versão do regime, que aquilo era uma democracia, que ali podia ter posição. A oposição não era necessariamente sunita. Mas na verdade, a partir daquele momento que eu estive lá, cada vez ficou mais forte esse fator religioso, até por causa desses atentados terroristas e de uma radicalização de uma parte dos rebeldes. Daí a maioria dos cristãos começou a apoiar mais o regime com medo do que poderia acontecer com eles. Os alauitas, praticamente todos, apoiavam o regime porque é um regime alauita e é uma pequena minoria que sem ao apoio desse regime seria massacrada ou perderia os seus privilégios. E aí ficou essa clivagem. Virou um conflito étnico, religioso, tecnicamente religioso, porque etnicamente são todos árabes. Mas um conflito religioso em que os sunitas acabaram não se identificado com a oposição, com a rebelião, que era algo novo na Síria. Onde existem grupos religiosos convivendo, há sempre uma certa rivalidade, mas era uma coisa bastante controlada, relativamente tranquila e depois se transformou em uma guerra.

Por

s a m y a d g h i r n iCobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Você não consegue entender a Síria sem falar dos agentes externos, dos países que é a razão pela qual a Síria imediatamente se transformou num banho de sangue. A Síria é pequena mas estrategicamente muito importante, é o coração do Oriente Médio, e segue uma agenda muito diferente da agenda pró-ocidente, das potências ocidentais. Embora o Bashar antes dessas revoltas estava em um processo de aproximação com o ocidente — tinha analisado a relação com os Estados Unidos, tinha embaixador americano em Damasco, o Bashar foi recebido pelo Nicolas Sarkozy em Paris, em grande pompa — quando estourou a revolta,

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imediatamente a Arábia Saudita, o Catar, os Emirados botaram muito dinheiro financiando os rebeldes para derrubar o Bashar, que era uma maneira de enfraquecer o Irã. Então o que o Irã fez? O Irã respondeu. Começou a mandar a guarda revolucionária, que é a elite militar do Irã e uma força fundamental no Oriente Médio. E a guarda revolucionária ali bancando o Bashar. A Rússia também já estava ajudando, mas era mais politicamente naquela época. Depois a Rússia começou a bombardear mesmo a Síria.

Mas mesmo assim havia uma clara tendência que os anti-Bashar estavam levando a melhor. Primeiro porque existia uma mobilização popular real contra o governo e ali você tinha na memória ainda muito fresca como as histórias “bem-sucedidas” nas revoltas: Tunísia, o ditador caiu; Egito, o ditador caiu e a Líbia, o ditador caiu. Ditadores tidos como não derrubáveis, poderosos. O povo foi para a rua, teve sangue, mas os caras caíram. Na Síria os que se rebelaram também tinham esperança de derrubar o Bashar. Só que é complicado, a Síria tinha uma diferença muito grande: o país realmente estava dividido. Quando está dividido é muito mais difícil cair. Só cai quando ninguém mais apoia. É uma pouco dita, mas o Bashar é muito popular, principalmente entre cristãos. A Síria preza muito o discurso e o discurso oficial do regime de Bashar é muito de ser um estado laico e de não ter essa separação por facções. No Líbano o seu RG está escrito lá se é druso, se é maronita, xiita, sunita. Na Síria não tem, o RG é RG. Você pergunta principalmente nas áreas controladas pelo governo: ‘Você é curdo?’ ‘Eu sou Sírio’. ‘Você é xiita?’ ‘Eu sou Sírio’. De fato isso cria um contexto muito importante. Então no final de 2012 os rebeldes estavam cercando Damasco, os rebeldes tinham tomado boa parte de Homs, tinham tomado Deir ez-Zor, tinha tomado Raqqa, áreas muito grandes do interior. O governo acuado, muito nervoso, que basicamente controlava o centro de Damasco.

Por

t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012 e 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Nos primeiros dois anos houve vários conflitos. Primeiro que a parcela da população que queria derrubar o regime era mais alta e os grupos rebeldes

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estavam em uma posição também mais forte. O Exército Livre da Síria era o principal grupo rebelde, era mais secular. Muita gente era ex-militar doexército sírio. Ex-coronéis, ex-capitães, ex-generais. No final de 2013 aguerra começou a ficar mais complexa. Outros grupos mais islamistasapareceram. Grupos com ideologias não seculares. Foi nessa época, nametade de 2013, mais ou menos, que o Estado Islâmico surgiu. Era afiliado àAl-Qaeda e parceiro de um outro grupo chamado Al-Nusra — depoisbrigaram e ficaram inimigos. A quantidade de pessoas morrendo aumentou,a desilusão com a revolução começou a esfriar. O Exército Livre da Síriacomeçou a se enfraquecer porque os outros grupos, para ter domínio,começaram a conspirar contra ele. Ou seja, ‘Vamos acabar com eles para agente tomar o lugar deles’. Isso é uma coisa que acontece em qualquerconflito, sempre vai acontecer, os grupos menores querer derrubar o grupoprincipal para ele ter o domínio. Muita gente que era do Exército Livre daSíria viu que era uma causa perdida ou talvez foram atraídos pelos outrosgrupos mais ideológicos, mais extremistas, islamistas, por exemplo, emigraram para esses grupos. Então foi um período de muitas mudanças,muitas mudanças no tabuleiro de xadrez.

Por

d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Essa era uma época decisiva porque o Estado Islâmico havia chegado muito próximo de Damasco. Existia essa impressão de que eles poderiam conquistar a cidade ou cercá-la. Também foi um momento em que o governo começava a ganhar espaço de novo. Em Homs, por exemplo, uma cidade super importante ao norte de Damasco que havia tinha sido tomada pelos rebeldes, o governo tinha começado a expulsá-los. Quando eu estava lá, quase toda a cidade estava sob as mãos do governo, exceto o centro histórico. Eles ficaram um, dois anos ali, encurralados no centro histórico. Bairros inteiros já tinham sido destruídos. Eu visitei um bairro que ficou bastante conhecido na época, o Bab Amro. Ele foi totalmente devastado, não existe mais nada lá. Isso significa que o caminho entre Damasco e Homs passava por zonas de combate. Indo de Damasco para Homs, à esquerda, por exemplo, ficava um vilarejo que chama Maalula. É um vilarejo cristão que tinha acabado de ser conquistado pelo Estado Islâmico. Você

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sabe que tem uma base do Estado Islâmico de um lado, o Exército Sírio do outro.

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte do país (Folha de S. Paulo)

Eu fui logo depois daquela foto do menininho, do Alan Kurdi. Eu já queria ir, aí rolou aquela foto e eu fui fazer uma matéria. Eu conversei com os avós dele, com a família dele, de onde ele veio, porque ele morava em Kobanî antes de se refugiar na Turquia, de onde ele tentou atravessar com a família dele, com a mãe, o pai e o irmão. Nessa época, qual era a situação em Kobanî? Kobanî ficou no cerco do Estado Islâmico até fevereiro de 2015. Em junho de 2015 eles foram invadidos de novo. Foi uma coisa horrorosa. Fizeram um massacre, morreram umas 300 pessoas. Eu fui em setembro de 2015. A região curda estava sob o poder dos curdos só que ainda havia muito atentado do Estado Islâmico. Também havia um acordo tácito entre os curdos e o Exército Sírio de não agressão, um não agredia o outro, e você tinha faixas. A região curda era dividida entre Afrîn, que é uma cidade ao Oeste e Kobani, que é a que eu fui. Lá tinha uma faixa de território com tropas turcas, que são contra os curdos. Você tinha tropas do regime, russos e alguns bolsões do Estado Islâmico. Raqqa ainda estava sob o poder do Estado Islâmico e tinha muita região ainda sob o poder deles. Tell Abyad, uma cidade que eu fui em fevereiro de 2016, também estava sob o poder do Estado Islâmico.

Por

y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Homs e Aleppo (Freelancer)

O governo tinha tido ganhos importantes. Era um momento de quase euforia, porque tinha reconquistado Aleppo depois de cinco anos. Tinha feito ganhos importantes em Homs e as áreas de combate na periferia de Damasco, que estão ao lado da cidade antiga, pareciam estar cedendo.

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Houve um contra ataque algumas semanas antes, que os caras chegaram bem próximo à área central de Damasco mas foi repelida. Naquela mesma semana que eu estava lá, o Rex Tillerson, o secretário do estado americano, falou em Ancara que o Assad já não era mais um problema para os Estados Unidos e que a Casa Branca já não via a saída do Assad como algo fundamental. Então havia um clima de muito otimismo de que a guerra estava chegando ao fim. Que logo foi suplantado por um temor imenso quando o Trump bombardeia depois das acusações de que o Assad tinha usado armas químicas em Khan Sheikhun quatro dias depois desse anúncio do Tillerson. A cidade (Damasco) estava muito operacional, na cidade tentava haver um clima de naturalidade, os bares cheios, as pessoas saiam nas ruas para beber na quinta-feira. Quando cheguei lá teve uma semana de moda em Damasco. Parecia que tinha virado mesmo a página. Com o Estado Islâmico sendo muito enfraquecido em Mossul e a Al-Qaeda também enfraquecida em Aleppo, as coisas pareciam caminhar para um desfecho. Então essa era a sensação que eu tinha lá. Mesmo saindo de Damasco, indo para Aleppo, Homs, esse também era um sentimento muito parecido. Mas é importante lembrar que eu estava em uma área dominada pelo Assad, então não havia espaço para nenhum tipo de oposição e a antiga oposição política tinha se aliado a ele. Os comunistas tinham se aliado a ele, faziam muitas críticas a ele. Havia uma sensação dentro da Síria de que aquela era uma guerra pela civilização ou pelos valores civilizatórios. Ali, principalmente Damasco — onde havia ainda uma diversidade religiosa e cultural muito grande e secular — havia uma sensação de que era as fronteiras do mundo civilizado e do outro lado estavam a barbárie. Esse era um sentimento muito forte lá. As pessoas estavam ali defendendo um estilo de vida, digamos assim.

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Visto

C A P Í T U L O I I No emaranhado conflito que ainda acontece na Síria, ter um visto concedido é sinônimo de poder acessar um território dominado pelas forças do Bashar al-Assad, mais precisamente Damasco, a capital. Ainda que seja um processo legal, as etapas burocráticas são diferentes para cada um. Afinal tudo depende de quem você é, de onde vem, para quem trabalha, quais interesses e contatos têm do lado de lá e sobretudo, em que momento do jogo pretende entrar no país.

Para aqueles que têm a solicitação aprovada — a resposta pode demorar de dois meses a anos, a relação que se cria pode ser semelhante à cobertura jornalística de cultura: a receber o convite para uma viagem em que haverá entrevista exclusiva com um artista, o jornalista sofre pressão para dar espaço e fazer uma cobertura positiva. Quando o resultado é apenas uma nota, o repórter perde o time (dos produtores) e o texto traz críticas, o profissional corre o risco de ser banido do métier. O visto na Síria não é diferente. Quem se atreve a chamar Bashar al-Assad de ditador?

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Por

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g e r m a n o a s s a dCobriu o início dos conflitos, em 2011 - Damasco (Freelancer)

A verdade é que na Síria eu não tinha visto de jornalista, eu tinha visto de estudante. Eu fui para estudar árabe. Eu estava em um nível intermediário aqui (no Brasil), queria fazer uma imersão em um país de língua árabe e eu tinha um interesse do meu vô que é sírio. Eu queria conhecer e viver um tempo lá e eu fui para estudar. Me matriculei pela universidade de Damasco, como estudante de língua árabe e assim eu fui. Lá as coisas começaram a acontecer.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011- Damasco (Folha de S. Paulo)

Damasco eu fui com visto. (Para conseguir) demorou muito tempo. Claro, tudo é relativo. Demorou alguns meses. O processo começou em março e eu consegui em agosto. Para o padrão Oriente Médio ou para padrões soviéticos ou sei lá o que de burocracia, você pode considerar pouco. Mas foi bastante tempo e demandou muita insistência e articulação. E ainda com a ajuda da Embaixada Brasileira, diplomatas brasileiros.

Por

l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

É bem difícil conseguir o visto, provavelmente levou uns 2 meses, foi demorado. Mas na época o Brasil era governado por um governo amigável à ditadura síria e isso facilitou, tanto que o meu visto era mais longo do que os dos outros jornalistas de outros países. Normalmente quando eles

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s a m y a d g h i r n iCobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu queria ver Damasco, eu não queria ver esta história que estava muito contada, a dos rebeldes. Eu queria ver a capital. Como estão os arredores do Palácio do Bashar? Como está Damasco, a cidade vitrine do governo da Síria? Eu queria ir com visto e o meu primeiro reflexo foi pedir um na embaixada da Síria em Teerã, só que ali eu via que não ir rolar, pela própria relação estratégica da Síria com o Irã. O Irã é um aliado indefectível da Síria. Na verdade, a embaixada é um posto de inteligência, cooperação militar e de serviço secreto. Quando eu toquei a campainha para pedir o visto, me olharam com uma cara... 'O que você está fazendo aqui?'. O funcionário que tinha menos o perfil de militar ainda tentou ajudar, mas eu vi que não ia conseguir.

Então fiz o contato com o consulado da Síria em São Paulo e a embaixada da Síria em Brasília. E só aí eu consegui convencer a me darem o visto. À distância, por email, conversando com um funcionário, ele falou 'Olha, mas mas você precisa vir para cá'. Era uma época que os jornais tinham muito dinheiro, então acredite: eu fui até o Brasil, saí de Teerã, e peguei o meu visto. Para você ver a importância dessa viagem. Mas também era um projeto legal, tinham pouquíssimos jornalistas lá. Eu fui a São Paulo. O cônsul da Síria me recebeu muito bem. Porém, eles estavam arredios com a Folha, com pé atrás, porque o Germano (Assad) publicou clandestinamente, sem assinar, e o Marcelo (Ninio) foi lá com visto e deu migué nos caras. E eu ali 'Não, quero fazer as coisas legalmente, a Folha está indo para mostrar o outro lado'. Aquela conversinha que você joga. E aí o cara me disse 'Então

concediam, eles concediam sete dias e eu tive um visto de 10 dias. Foi um visto especial numa deferência à simpatia que o governo da época tinha em relação à ditadura síria.

O que acontece é que quando você faz o pedido aqui no consulado, em São Paulo, eles enviam o pedido para o Ministério das Relações Exteriores em Damasco, e o Ministério das Relações Exteriores envia para o Ministério da Informação, que é quem de fato toma a decisão.

Por

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Eu fui com visto. Nunca é fácil conseguir. Eu tinha um contato no governo que me ajudou, alguém que eu conhecia e que acelerou a burocracia, afinal ela é enorme. São muitos papéis, pessoas, cartas do jornal. As coisas tomam muito tempo. Eu fui em 2014 e desde então tentei inúmeras outras vezes voltar à Síria e não consegui porque negaram ou nunca me responderam. Tem um pedido de visto que está tramitando há mais de um ano, por exemplo. Depende deles quererem ou não que você vá. Esse em específico não demorou tanto, um mês mais ou menos.

Abril de 2014 era um período em que o governo sírio tinha mais interesse que os repórteres fossem para lá, agora existe um interesse menor. Isso varia também de acordo com a política. Não há um processo burocrático que depende de etapas, como se você fosse pedir um visto aos Estados Unidos, por exemplo. É um processo que depende da vontade política do governo sírio, depende de como eles avaliam a cobertura que a Folha faz, o quanto eles se interessam que a Folha especificamente vá para lá. Depende o que a Folha escreveu no passado, depende de uma série de coisas. Não éalgo que tem um procedimento muito claro. Você pode pedir e conseguir,ou não. Cada vez mais as pessoas não conseguem. Existe um consenso queé cada vez mais difícil conseguir hoje em dia.

tá, vou dar o visto. Você chega em Damasco e tem que se apresentar’. Peguei o visto, voltei para Teerã e pouco tempo depois eu cheguei em Damasco. Eles me concederam em torno de 8 a 10 dias. Era um visto bom que eu podia viajar, eu podia sair de Damasco. Isso era muito legal. Eu também tinha uma espécie um pré acordo para entrevistar o Bashar.

Por

d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Cobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Por

y a n b o e c h a t

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O visto para entrar na Síria é um processo bastante complicado, bem chato. Eu estava pedindo aqui pelo Brasil e nunca recebi resposta. Eu estava no Iraque na época, morando em Erbil, e acessei a baixada de Beirute. Depois de meses eu consegui o visto. É um visto de jornalista, que te dá direito a ficar dez dias dentro da Síria, mas você precisa ser acompanhado por um minder do governo e todos os seus movimentos precisam ser pré-aprovados por eles. Eu fui o primeiro jornalista brasileiro a conseguir o visto, eu acho, nos últimos quatro ou cinco anos, talvez. Tem muito tempo que não entra um jornalista brasileiro lá. A minha carta (de recomendação) era da Folha. Acho que era um momento que eles estavam se abrindo mais, que queriam se abrir mais. Eu nunca tinha entrado em área controlada pelos rebeldes, então isso facilitou, mas até hoje eu não entendi muito bem por que eu consegui esse visto, eu vou ser bem sincero. Não entendi muito bem qual foi a lógica. Mudou a chefe de departamento internacional, talvez ela tenha começado a abrir mais.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2012- Aleppo (Folha de S. Paulo)

Da segunda vez eu não consegui porque eles negaram. Era muito difícil conseguir o visto. Para Aleppo, principalmente, era impossível porque era ali onde estava acontecendo o principal naquela época, afinal existia uma possibilidade de que os rebeldes — na época, o Exército Livre da Síria —, conquistasse Aleppo. Parece incrível, mas existiu essa possibilidade. Eu tentei várias vezes chegar. Para mim era mais difícil ainda porque eu estava em Jerusalém, então você pode imaginar como isso dificulta as coisas. Então eu decidi ir (sem visto), como os que estava entrando pela Turquia.

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O S C U R D O S E Á R A B E S •

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Para você entrar agora está mais complicado, mas basicamente você precisa de uma autorização do Governo Regional do Curdistão Iraquiano. Hoje em dia isso está completamente diferente porque antes desse plebiscito pela independência que eles fizeram, eles tinham um grau de autonomia muito grande. Agora rolou uma intervenção do governo central embargar, então eles tinham muito menos fronteiras. Como era? Você conseguia essa autorização. Era um negócio meio complicado, meio chato, porque em tese cada jornalista só pode ir uma vez na vida cruzar essa fronteira. Para entrar do outro lado você tem que ter arrumado também uma autorização da milícia curda síria, que é o YPG. Na realidade a gente entra ilegalmente porque estamos sem o visto. Inclusive, depois eu fiz um pedido de entrevista com o Assad e para ir para Damasco e eles me vetaram. 'Não, a gente sabe que você entrou ilegalmente no país uma vez, então está banida e não pode entrar'.

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Chegada à Síria

C A P Í T U L O I I I Chegar à Síria apresenta desafios. As condições de produção não se comparam com a do repórter que bate ponto na redação às 13h e minutos depois — tempo suficiente para pegar o crachá, bloquinho e caneta — precisa cobrir um enterro e depois a chegada do Papai Noel. Quando se atravessa o oceano não sobra espaço para improviso, despreparo e mea culpa: o investimento é alto, o tempo é curto e é preciso planejamento. Essa palavra de ordem permite ter um referencial futuro para que na hora da cobertura não faltem recursos técnicos, financeiros e humanos. O último caso se refere àqueles que estarão à espera na fronteira ou do outro lado dela, o que inclui desde o fixer até um jornalista de nacionalidade diferente que te aguarda para dividir os gastos. A chegada ao país é o primeiro indício de que as coisas têm chances de dar certo, ou não.

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s a m y a d g h i r n iCobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

O voo para Damasco já foi uma coisa muito interessante. Fui fazer o check- in em Teerã e quando entrei no avião eu vi que só tinham homens mal encarados de idade entre 35 e 50 anos. Só agentes do governo. Dos dois governos (Síria e Irã). E era um voo que basicamente servia para mandar os agentes iranianos a serviço do governo sírio e os sírios que estavam no Irã recebendo treinamento. Só ali já era 'Uau, eu estou realmente indo para um lugar onde está acontecendo muita coisa'.

Aí teve o interrogatório (na chegada em Damasco). Mesmo você com visto eles querem te fazer mil perguntas. ‘O que você veio fazer aqui? Onde você vai ficar? Quem são os seus contatos?’. Então me liberaram. Tinha um cara me esperando, que já cobrou o dinheiro e já botou outro cara para andar comigo no dia seguinte. Um ‘troço’ bem opressor, bem desagradável.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu saí de Jerusalém e fui para Beirute. É impossível entrar na Síria vindo de Israel ou com um passaporte com qualquer prova de que você esteve lá. Esses países não têm laços diplomáticos. Eu tenho dois passaportes brasileiros — o Itamaraty tem uma política específica para correspondentes que cobrem essa área. Não é nada irregular, mas basicamente serve para essas ocasiões, para que meu passaporte não tenha um carimbo de Israel, enfim, uma coisa que ponha a minha vida em risco. Então eu saí de Israel com um passaporte e entrei no Líbano com um segundo passaporte. Deixei

o primeiro no Líbano, no cofre, e então fui para a Síria de carro.

O motorista, que eu contratei por indicação do tradutor, me buscou em

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Beirute. Ele me levou diretamente ao tradutor, que estava me esperando, e como parte do procedimento eu fui ao Ministério da Informação me apresentar. ‘Sou Diogo, da Folha. Bom, a gente combinou, eu tô com o visto'. Então me deram um papel, uma espécie de permissão de trabalho temporário e me perguntaram o que eu planejava fazer, quais eram os meus planos, para quais lugares eu planejava viajar — todos esses deslocamentos precisam de autorização, ainda mais nessa época que a guerra era muito pior. O trajeto entre Damasco e Homs passava por uma zona de guerra, então não é uma coisa que você possa passar livremente. Se me lembro bem imprimiram uma autorização para fazer esse trajeto que é o papel que devo ter mostrado ao longo do caminho.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

O caminho tradicional para quem vai entrar oficialmente na Síria, é pegar um táxi em Beirute e ir até Damasco. Esse é o meio natural de se fazer. Você atravessa a fronteira pelo vale do Bekaa e rapidinho está lá em Damasco. Damasco é uma cidade que está bem normal, bem operacional em todos os sentidos. Foi tranquilo, não foi uma experiência complicada. No Ministério da Informação foi tranquilo também. Eu tinha apresentado todos os meus planos de viagem para onde eu queria ir, então a coisa caminhou bem, não foi uma coisa tensa.

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012 e 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Em 2011 muita gente ia até o sul da Turquia, até Antakya. De Antakya cruzava a fronteira para a região de Idlib, onde no início do conflito sírio se

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concentrou muito a presença de grupos rebeldes e foi uma das primeiras cidades naquela região onde teve protestos, revoltas. Para chegar na região de Aleppo você poderia ir pela região de Idlib ou de Gaziantep, uma cidade turca. Dali você ia de carro até a fronteira e aí cruzava para um controle de fronteira que se chama Aziza. Ali era controlada pelos rebeldes. Então você passava por ali e ia até a região de Aleppo.

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m a r c e l o n i n i oCobriu em 2012 - Aleppo (Folha de S. Paulo)

É um negócio muito arriscado porque você vai entrar pela Turquia, tem o Exército forte e um regime que não é mole. Eu fui uma vez lá para fronteira e me apresentaram um plano. Porém, na hora H, eu não gostei das pessoas, tive um feeling ruim, não quis entrar com elas. Desisti. Planejei melhor, voltei de novo e aí já tinha um contato que alguém havia me indicado de um sírio que tinha família na Turquia. Ele organizou a entrada com uma jornalista e um fotógrafo italianos. A gente dividiu as coisas. É assim que se faz. Você conhece um jornalista, você também se protege. É melhor do que ir sozinho.

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2014 e 2015 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Estava na Turquia e fiz várias matérias sobre refugiados. Depois, fui para o Iraque. Lá, você pega um carro, vai até uma cidade de Faysh Khabur e apresenta uma papelada. Você tem que ter duas autorizações — do Governo Regional do Curdistão Iraquiano e da milícia curda síria —, cruza com o barquinho e entra. Por quê? Porque no norte da Síria, na área curda, eles têm uma autonomia de fato. A presença do governo sírio é mínima.

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Treino étreino...

C A P Í T U L O I V Como utilizar corretamente a máscara de gás em caso de um ataque? O que fazer se for sequestrado? Como identificar a arma de fogo a partir do barulho dos tiros e saber o melhor local para se proteger? Na tentativa de atenuar os riscos que uma cobertura de guerra oferece, alguns jornalistas apostam em treinamentos que envolvem desde segurança até primeiros socorros.

A depender da política das empresas, elas mesmas se responsabilizam pelo investimento. Há opções que vão de cursos oferecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) até pelo exército brasileiro. Em alguns casos, como o da BBC, funcionários e freelancers passam por treinamentos de segurança de acordo com o nível de vulnerabilidade durante o exercício da profissão. Para aqueles que trabalham em ambientes hostis, como guerras, é preciso fazer o Hostile Environment and First Aid course and refreshers (HEFAT), que inclui tópicos que vão de minas terrestres a violência sexual. Outros, contudo, aprendem no front como se defender.

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l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Eu nunca fiz treinamento. Eu comecei a cobrir guerra de uma forma não planejada a partir dos atentados terroristas de 2001, que eu fui pro Afeganistão e fui aprendendo sozinho. Surgiu oportunidade de fazer curso mas já era tarde. Acabei dando cursos, mas não fazendo.

Por

s a m y a d g h i r n iCobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu nunca tive nenhum treinamento. Tem muitos colegas que fizeram coisas que eu acho muito legal, como o treinamento da ONU, da Cruz Vermelha, do exército. Mas isso é pesado, você toma bem uns tapas, tem que ficar de madrugada no frio. Eu queria ter feito isso, mas nunca surgiu oportunidade e eu fui um autodidata. A primeira vez que eu fui para uma zona de conflito foi em 2004, fui para a Palestina, para Gaza, Israel, Cisjordânia. Mas foi uma viagem muito enquadrada porque eu fui acompanhando uma delegação de deputados brasileiros. Então tinha uma estrutura, carro com motorista, os caras têm imunidade diplomática. Mas ali você já aprende a ver o que é um tanque, você fica com medo. Aquela viagem te credencia para a seguinte, você vai desenvolvendo reflexos. Você pode achar uma bobagem, mas quando era criança eu sempre brinquei muito na rua. Eu não sou filho de rico, então adolescente eu andava de ônibus, andava nas quebradas. Você tem uma namoradinha que mora em uma periferia super distante... A vida, as suas experiências de vida, te credenciam para isso. Uma pessoa que cresceu numa bolha, por mais que seja inteligente, capacitada, tenha feito uma boa faculdade, eu acho que a distância é maior. Você joga essa pessoa em um terreno muito difícil.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu fiz um treinamento de sobrevivência em área de conflito com uma empresa britânica, a AKE International. Foi pago pela Folha: passagem, hotel, o curso. Deve ter durado uma semana. Basicamente você aprende o que fazer nessas situações (de guerra): como reagir, como interagir se você for sequestrado ou ferido. Tinha uma parte que era de primeiros socorros: como parar um sangramento, colocar um braço de volta no lugar. Coisas básicas que podem salvar a sua vida ou a vida de outra pessoa. Eu estou minimamente preparado. Se eu for alvejado por um tiro ou se eu quebrar uma perna correndo no meio de uma guerra eu sei mais ou menos o que fazer. Claro, não tenho diploma de enfermeiro, não é a mesma coisa, mas são cuidados pequenos que podem fazer a diferença. Eu acho que condiciona bastante a sua mente sobre que o que é perigoso, como queimaduras, por exemplo. Dependendo da porcentagem do corpo que queima, você perde uma quantidade de água. Então você precisa hidratar a pessoa que foi queimada. Esse tipo de coisa eu não sabia. Outra coisa que sempre faço desde então: quando chega a uma praça, você sabe que existe um risco de combate com o exército. Eu imediatamente procuro uma saída. Se o exército vier, eu posso correr para aquele lado... E se tiver tiroteio, eu posso deitar no chão. São coisas que você já sabe mais ou menos como fazer.

Por

y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Só fiz de primeiros socorros durante três sábados. Eu não sei se esses treinamentos todos são tão eficazes, mas tem muito do bom senso. Claro que é importante fazer treinamento, mas o que eu quero dizer é que muitas vezes bom senso, calma, às vezes são mais eficazes do que um treinamento de guerra. Quando as coisas dão errado, dão errado de verdade, você tem pouca capacidade de mudar o curso das coisas ali. Pode tentar salvar um amigo com alguns treinamentos básicos, mas você não tem arma, o 'pau está comendo'. Às vezes tem alguém do teu lado com uma arma, o que você

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vai fazer? Claro, tem coisas muito básicas de como se comportar, de como pisar aqui, de como pisar ali e tal, mas acho que bom senso resolve uma boa parte dos problemas. Se você tiver bom senso e jogo de cintura, ajuda bastante. É claro que eu não estou querendo diminuir o treinamento. O treinamento é bem importante e é legal ter, mas eu não sei se é fundamental.

Por

t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012 e 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

A BBC tem um regulamento bem restrito nesse sentido. Todos os seus jornalistas passam por um treinamento que se chama HEFAT (Hostile Environment and First Aid Training), um treinamento médico e de zona de conflito. Mesmo aqueles que trabalham em Londres, que trabalham na Inglaterra, que fazem coberturas domésticas, eles passam por esse treinamento. É uma coisa padrão porque há perigos não só em zona de conflito. Você está cobrindo protesto em Londres e aí de repente a coisa fica violenta, como ocorreu por exemplo com um cinegrafista brasileiro que morreu naquele protesto lá em 2014, que alguém disparou um rojão e acertou a cabeça dele. Os primeiros dois jornalistas que chegaram ali para socorrer ele eram da BBC e fizeram os primeiros socorros porque já tinham esse treinamento. Infelizmente nem todas as empresas brasileiras oferecem isso para os seus jornalistas. O máximo é, por exemplo, um correspondente que vai cobrir um conflito na África ou no Oriente Médio e eles dão um treinamento com o exército brasileiro ou coisa assim. São treinamentos caros, então eles não têm essa cultura ainda, infelizmente. Mas na imprensa internacional a imensa maioria dos seus jornalistas são treinados para isso. Eu estou falando das empresas grandes, New York Time, The Guardian, Al Jazeera, BBC. Mesmo para os freelancers que trabalham constantemente com essas empresas eles também oferecem os treinamentos porque é responsabilidade deles. Há um senso de responsabilidade por isso. Esse tipo de treinamento é muito importante porque ele abre a visão do jornalista, de ver coisas para não se colocar em perigo e não colocar os seus colegas em perigo. No meu caso, além desses treinamentos, fiz treinamento de militar,

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de tiro, contra terrorismo, tática militar. Não é exigido isso, mas eu resolvi fazer. O que é exigido é você ter o treinamento de zonas de conflito para jornalistas, o treinamento médico. Eu queria fazer para entender bem o outro lado. Entender o lado das milícias, dos militares.

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Eu não fiz nenhum treinamento formal. Em 2009, fui correspondente do Estadão em Washington durante quase cinco anos, de 2006 a 2010. Enquanto eu estava lá, eu fui cobrir a guerra do Afeganistão embedded — quando você vai acompanhando a tropa — com os soldados americanos. Eles explicam como se faz torniquete, mas não era um treinamento. Eu até gostaria de fazer, eu não me orgulho de não ter feito.

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Seguro

C A P Í T U L O V Desde o início da guerra na Síria, pelo menos 211 jornalistas e jornalistas cidadãos foram mortos no país. De acordo com o Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa, divulgado em 2017 pela organização Repórteres Sem Fronteiras, a Síria ocupa a 177º posição, na frente de apenas três países. Além da morte, no ‘fogo cruzado’ ainda há espaço para repressões, intimidações e sequestros. Nesse cenário, o seguro de vida e acidente não minimiza a insegurança mas é uma ferramenta que não deve ser esquecida e negligenciada. Cabe, no geral, às empresas de comunicação se responsabilizam pela contratação de seguros — valor somado ao alto investimento de dinheiro para enviar alguém para a guerra. Um dos repórteres entrevistados disponibilizou a tabela de prestação de contas para o jornal. Em nove dias de viagem foram gastos mais de US$ 3 mil, sem incluir passagem aérea e seguro.

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l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Há um seguro especial para coberturas de risco. O Estadão contratava, além do meu seguro que eu já tinha normalmente dentro do jornal e do meu próprio seguro de vida. Eu andava com três seguros de vida, no final das contas.

g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Eu tinha isso tratado boca a boca. De certa forma formalizado senão por via contratual, por e-mails. Um método mais informal, mas isso eu tinha. Eu assumi o risco.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 - Damasco (Folha de S. Paulo)

O seguro não era diferente dos tradicionais, porque eu não sei quanto a Folha tinha experiência em ter um correspondente permanentemente em zona de guerra, como foi o meu caso. Quando eu ficava baseado em Jerusalém, não tinha esse posto da Folha. Então quem levantou essa questão de seguro foi eu e a Folha topou. Então tinha um seguro de vida que cobria invalidez, morte, ferimentos, essas coisas de seguro de vida. Agora eu não lembro especificamente. Eu acho que as seguradoras não fazem seguro de vida para a guerra, então é um acordo entre o repórter e o jornal.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

É muito difícil você conseguir um plano de saúde que cubra a área de guerra. No meu caso, eu não tinha, então fiquei bastante tempo no Iraque sem cobertura nenhuma. Aconteceram algumas coisas bobas que fui no SUS do Iraque e deu tudo certo. Na Síria não aconteceu nada.

s a m y a d g h i r n iCobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu me lembro de ter assinado algumas vezes uma espécie de um seguro extra que definia até o valor para a minha vida, quanto que ia para a minha mãe, irmã. Muitas dessas viagens eu era solteiro; nessa da Síria, eu já estava com a Marina que hoje é a minha esposa. A Folha tinha um esquema de seguro especial.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu já tinha um seguro de vida global que era pago pelo jornal. Mas nesse caso, como é um pouco mais extremo, o jornal fez outro seguro para a região. Existia um instrumento legal específico. O seguro que eu tinha para o dia a dia não cobria desastres naturais, guerras e atentados, por exemplo.Todos os seguros têm coisas que cobrem e não cobrem. Sou funcionário dojornal e o jornal sempre cuida dessas burocracias, mas pelo que eu entendoessas situações requerem um seguro mais específico, que diga que é umasituação de guerra, que tem riscos envolvidos.

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012 e 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Especialmente a BBC tem a cultura de ter tudo certinho. O pessoal que é funcionário já tem o seguro da BBC. O pessoal que faz freela fixo eles fazem um seguro para aquele tempo da duração da cobertura. Isso funciona com a maioria das empresas. Geralmente as empresas que oferecem seguro têm geralmente para freelancers, você paga por dias. Então se vai ficar uma semana em uma zona de conflito, você paga por aquela quantidade de dias. Obviamente cobre o valor, seguro para as zonas de conflito é diferente para zonas comuns. É mais caro, cobre todo o tipo de situação. No caso, se um jornalista acaba ferido ou se acaba morto por circunstâncias de tiro ou mina terrestre, ou qualquer situação de conflito, tem uma cobertura especial que é voltada para isso. As seguradoras têm uma cláusulas especiais.

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

A gente não tem seguro de vida, nesses lugares é bem difícil. A Folha se compromete a pagar uma quantidade de vezes o nosso salário se acontecer alguma coisa. Eles fazem um termo de compromisso que se acontecer alguma coisa enquanto você estiver desempenhando a função do seu trabalho — e eles fizeram isso comigo em algumas viagens, quando eu fui para a ebola, Líbia — eles se comprometem a pagar uma quantia para a minha família.

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Bloco ecolete

C A P Í T U L O V I Se bloquinho e a caneta fazem parte da cobertura de muitos jornalistas, em ambientes de conflitos alguns acrescentam à lista de materiais os equipamentos de segurança. Entretanto, se por um lado eles têm a função de proteger o jornalista, há quem considere que o efeito pode ser o contrário — ironicamente, você se torna alvo quando ninguém mais está usando tais dispositivos. Nesses casos, o colete à prova de balas e o capacete ficam trancados em um quarto de hotel, enquanto o jornalista vai para a guerra. O motivo por trás dessa postura está intimamente relacionado ao jornalismo de observação e sua necessidade de descrição in loco: cheiros, cores, formas, sons. É mais fácil haver a imersão e o sentido de pertencimento com a cabeça ao vento do que com um capacete tático.

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g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Àquela época estava bombando aquelas handycam. E foi uma tendência muito rápida, eles lançaram vários modelos. Eu tinha uma Sonyzinha pequenininha que parecia um telefone celular. Então se eu caísse em um checkpoint ou em alguma coisa assim, aquilo ainda passava por um telefone porque não tinha a menor condição de carregar uma câmera profissional, era impossível. Qualquer pessoas andando pela cidade com uma câmera era detida imediatamente para averiguação. Então não fazia o menor sentido circular com equipamento profissional. Gravador sim. Eu tinha um digital, pequeno, que levava comigo. Quando fui preso consegui passar ele por um MP3 que eu tinha música nele também. Tudo criptografado mas tinha, o gravador tinha que ter.

Mas equipamento de segurança? Imagina. Eu não tinha autorização para trabalhar como jornalista. Como eu ia andar com um colete à prova de balas? E outra, não existe imprensa livre cobrindo lá. Se você ver um cara com colete à prova de balas não faz o menor sentido.

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l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Naquela época eu usava um câmera Canon, ela era bem simples, mas era vídeo e foto. Ela é bastante compacta, tem zoom mas quando está desligada ela recolhe a lente zoom, então isso foi bom porque eu fui em uma manifestação que acabou virando um conflito com o exército e entrei em um bairro pobre com a câmera e o bloco de anotações dentro da minha jaqueta. A minha jaqueta tem um compartimento atrás, nas minhas costas, e aí isso foi bom porque não fui identificado como jornalista, me misturei lá. Todo mundo sabia que eu não era morador porque todo mundo se conhece, mas não sabiam que eu era jornalista.

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Geralmente eu não levo equipamento de segurança porque aqui no Brasil não pode entrar, internalizar o colete que é para guerra, que protege contra fuzil e tal. Tem uma portaria do Ministério da Defesa que proíbe a internalização do equipamento. Então os coletes que são usados aqui no Brasil eles não protegem contra fuzis. Tanto que dois cinegrafistas da TV Bandeirantes foram mortos no Rio por tiro de fuzil e eles estavam usando o colete que é permitido aqui. Então eu tenho um capacete de guerra que comprei em Israel e colete. Agora o colete eu uso lá da Europa mesmo, eu alugo, pego emprestado. Tem o Repórteres sem Fronteiras lá em Paris, eles emprestam esses coletes. Mas no caso da Síria como eu estava com visto e tudo é muito controlado, até tentei ir pro Norte, mas eles não me deixaram, que era onde estava tendo guerra mesmo. Mas aí se eu tivesse ido teria ido sem equipamento mesmo.

Eu mesmo quando estava no Estadão, eu tentei fazer essa internalização, pedir autorização do Exército, mas não consegui. O jornal oferece os coletes que são permitidos aqui no Brasil. Para o Iraque, em 2014, quando cobri o avanço do Estado Islâmico lá no Norte do Iraque, eu peguei três coletes e peguei as placas internas, retirei, juntei as placas de três coletes e coloquei em um só para ter mais proteção. (risos) O ideal mesmo é ter lá na Europa, deixar em local guardado e quando precisa, passa pela Europa, pega e vai. Porque se entra aqui, é bem provável que a Polícia Federal vai confiscar o equipamento.

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s a m y a d g h i r n iCobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu tinha um moleskine dado pela minha esposa e meu moleskine. Você bota no bolso e não precisa de mochila, de nada. É muito prático. Gosto muito desse jornalismo de observação que você vai anotando as coisas. Você vai anotando ideia, os cheiros, você vai anotando as sensações, detalhe. Eu também tinha um gravador que talvez eu tenha usado com um ou outro militar e tirei algumas fotos, basicamente foto com iPhone.

Equipamentos de segurança: Eu não tinha colete. Eu estava em Teerã e o correspondente do New York Times em Teerã, que era meu amigo, o Thomas, ele me emprestou o colete.

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E aí eu levei. Só que o colete é considerado armamento, então é complicado você transitar em aeroportos com colete. 'O que você está fazendo com isso?'. E aí eu entrei na Síria com muita dificuldade. Mas chegou lá e o colete ficou dentro do armário do quarto. Não usava equipamento de segurança. É uma escolha minha. Eu já havia ido a várias situações de risco e pessoalmente acho que colete em guerra não ajuda. Mais atrapalha do que ajuda. Primeiro porque você vira o alvo. Você fica ridículo ali de colete na frente de todo mundo. Segundo, o colete é um troço muito pesado. Pesa. Imagine 20kg nas suas costas, na sua barriga. E sinceramente, numa guerra, com tipo de armamento que é usado em guerra, esse colete não vai te salvar nada.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Laptop, celular, colete, capacete, bloquinhos, gravador e uma câmera. Trabalho de repórter de jornal é bem simples nesse sentido. Não tinha tripé, microfone. Essas coisas não fazem sentido para a gente. Na viagem entre Damasco e Homs eu fui com equipamentos de segurança. Existia um risco real? Não sei! Meu motorista não estava equipado. O tradutor não estava equipado. Ninguém estava equipado. 'Ah, imagina, não tem risco'. Eu sempre me protejo porque é minha vida. São equipamentos que eu herdei quando fui à Jerusalém. É tudo da Folha. Eu substituí uma pessoa que estava lá, o Marcelo Ninio. Então herdei os equipamentos que eram do jornal e que estavam com ele. A máscara de gás comprei porque o jornal não tinha, mas o valor foi restituído. São coisas que pertencem ao jornal. São coisas queestão comigo a empréstimo, não pertencem a mim.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Eu trabalho com uma Canon 5D Mark III, que é a minha câmera fotográfica primária. E um Iphone 7 plus, além de um MAC e, nesse

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caso da Síria, eu levei tripé também. Como eu sabia que não ia rolar front, eu levei tripé e levei duas lentes: uma 28-300mm e uma 35mm. A 28-300 para filmar e a 35 para fotografar. E o iPhone para filmar, bastante. Eu usava bloquinho só, gravador não, nunca. E às vezes fazia a entrevista com a câmera, mas no geral eu fazia com o bloco e depois a gravação.

Equipamentos de segurança: eu levei o meu colete, as minhas coisas, mas não achei necessário usar. Não usei em nenhum momento. Como não estava tendo combate, o máximo que eu cheguei do front foi 2km, então não tinha muita necessidade de usar. Eu prefiro usar quando é preciso, eu prefiro usar porque eu não sou soldado, sou jornalista. Mas eu gosto às vezes da ideia de me separar. Acho que o colete separa também, mas a gente precisa ser diferente de soldado e às vezes as pessoas confundem um pouco. Mas eu uso sempre quando eu sinto que pode dar merda.

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012 e 2013- Aleppo (BBC e Terra)

Há dois fatores: segurança e produção. Na parte de segurança você tem que ter um colete, você tem que ter um capacete. Como regra geral, colete e proteção se usa em qualquer situação. Mas há alguma exceção aqui e ali. Por exemplo, quando não se quer chamar atenção ou o colete pesado dificulta a mobilidade (neste caso, se usa colete mais leve, mas menos protetor). Na produção, você tem que pensar na parte logística, você tem que pensar nos equipamentos que precisa levar. Vale a pena levar uma câmera grande? Talvez seja melhor levar uma câmera menor porque o produtor e o próprio cinegrafista têm que pensar na mobilidade, afinal você não vai matar um cinegrafista dando uma câmera pesada em uma região montanhosa, que exige esforço físico. Quais os equipamentos vamos levar e como vamos transmitir? A gente vai ter que gerar material ali no local porque eles têm pressa? Sim ou não? Se sim, então tem que levar um telefone satélite, tem que levar um gerador de imagens. É uma mochila pequena que ela usa uma tecnologia dos últimos anos. Você coloca seis ou

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oito chips de celular com internet e ele usa toda essa banda larga e manda esse material via internet do celular. Ele reparte a informação. Você consegue gerar ao vivo através dessa mochila. Então se a gente vai fazer isso, tem que levar a mochila.

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m a r c e l o n i n i oCobriu em 2012 - Aleppo (Folha deS. Paulo)

Eu não usava equipamentos de segurança. Eu usei muito pouco, em uma época eu até tinha colete, capacete e tal, mas eu não usava. Eu acho que tem situações que você tem que usar, mas eu achava que nas situações que eu estava seria mais prejudicial do que me ajudaria. Também por chamar muita atenção, afinal você vê as pessoas que estão à tua volta e ninguém está de capacete e colete, então é também meio estranho. Na Síria eu não usei, mas tinha. O que aconteceu é que a cobertura da Síria, quando eu cheguei em Damasco, eu estava vindo da Líbia. Então eu estava com colete e capacete por causa da Líbia. A Síria ainda não estava numa situação dessas de capacete e colete porque ainda era o começo. Acreditava-se que era o começo de um protesto popular, tipo o Egito. Mas depois virou aquilo. Então eu estava com os equipamentos porque eu já estava com eles na mala. Até me criou problema, porque eles viram quando eu cheguei lá.

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Da primeira vez eu estava na roubada, eu não levei máquina fotográfica porque em tese eu teria um fotógrafo. Eu levei o meu celular, laptop, bloquinho e gravador.

Equipamentos de segurança: Levei capacete e colete à prova de balas,

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mas só pus quando fui para o front. Você não anda de colete e de capacete quando não está no front. O que pode acontecer é ter um homem-bomba e não adianta nada você ter um colete, você morre do mesmo jeito. Quando você vai para o front, aí tudo bem, você tem que colocar e faz uma diferença.

Véu, dependendo do lugar você tem que usar. Na Síria é muito mais secular do que alguns lugares do Iraque, por exemplo, então a maioria das pessoas não cobrem a cabeça. Quando você vai nos lugares mais conservadores você usa o véu. Eu sempre tenho um kit de roupa que eu levo o véu, o Hijab e o Chador [veja ilustração no último capítulo], que fica só o rosto de fora, just in case, e aí as roupas normais. Hiking boots, uma calça e sempre uma blusa que seja de manga comprida. Como fiz muita matéria da Índia, eu tenho um estoque de Salwar Kameez, uma túnica com entrada embaixo, então eu levo umas três porque aí é um jeito de você respeitar os caras. Você está com uma roupa decente, discreta e usa conforme o lugar pedir. Nesse caso eu não precisei usar, só quando a gente foi para Tal Abyad que eu me cobri, mas eu levo véu se precisar.

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Fixer eminder

C A P Í T U L O V I I Estou à procura de um bom fixer no oeste da Síria (Novembro de 2017)

Pretendo ir para Hatay, Turquia, para entrar na Síria. É possível? Existe algum fixer na área? (Junho de 2017)

(No Facebook)

O mercado de fixers está no boca a boca dos correspondentes, enviados e freelancer mas também na rede. No Facebook, grupos fechados têm a função de "facilitar a comunicação entre jornalistas, fixers e tradutores que trabalham na Síria" (descrição de um deles). Mas qual a função desse profissional? Se para o Cambridge Dictionary o significado é "alguém que é habilidoso em providenciar que as coisas aconteçam, às vezes de uma maneira que é desonesta", para quem vai cobrir uma guerra a definição vai além. Atuando como guia, ‘termômetro cultural’, tradutor e, às vezes, motorista, essa figura é essencial para alguns jornalistas estrangeiros que não dominam o idioma local ou precisam de alguém que conheça o território — e, sobretudo, as fontes disponíveis nele. O

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fixer pode ser pauteiro, produtor, tutor. A formação, ou falta dela, não importa. O fixer pode ser qualquer pessoa, desde que hiperconectada com a sua realidade. O preço a se pagar, que em alguns casos pode chegar a € 600 por dia, varia de acordo com a qualidade do profissional, área, período de cobertura e produto. O ‘colaborou fulaninho’, típico de notas de rodapé no jornalismo, dificilmente terá o nome dos fixers. Justo?

Do outro lado da moeda, representando a coroa, estão os minders. O papel é semelhante ao do fixer, mas ao invés de ser um jornalista local ou um morador conectado, eles têm relação direta com o governo e não terão problemas em censurar a imprensa. Não à toa, o significado vai de “alguém que protege outra pessoa” a “alguém que controla o que outra pessoa diz e faz”.

Por

g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Eu jamais trabalhei com fixer em toda a minha vida. Até porque em especial em país árabe, na Síria, tem muito repórter sendo enganado por fixer. Eu acho o seguinte: eu não acredito nessa coisa de repórter de guerra. Eu acho que a pessoa é repórter de região. Eu me considero especialista em países árabes. Síria e Líbano, especificamente. Eu estou com tudo pronto para cobrir eleição, conflito, para cobrir o que for. Agora me coloca para cobrir um conflito na Venezuela. Posso dar conta por causa da proximidade, mas não vou cobrir com a propriedade de um especialista em Venezuela. Considero que o mínimo que a pessoa precisa para cobrir um conflito desses com verdade e com noção do que está fazendo é dominar o idioma. Se você não fala árabe, não vai cobrir um conflito no Oriente Médio. Se não fala espanhol, não vai cobrir na Venezuela. Para mim é o básico do básico. Eu acho que você quer um pouquinho de convivência no lugar. Uma pessoa que passa uma semana e volta é outro tipo de jornalismo. É até interessante que não seja uma visão parecida do local, mas é outra cobertura.

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m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011- Damasco (Folha deS. Paulo)

Na minha experiência eles (o governo) colam um cara em você e fim de papo. Não é um guia, é um cão de guarda. É um cara da polícia secreta, polícia política, um cara que se você andar do lado errado ele vai te levar. No meu caso, tinha também um outro cara que era um diplomata, um embaixador, um cônsul honorário sírio que morava no Brasil e ele foi designado para ser um dos meus mainders, os caras que ficam com você. Então tinha ele e o cara da polícia o tempo todo. Não era fácil (sair sem eles), era bem difícil. A situação estava muito tensa. Eles obviamente estavam muito na pressão porque naquela época estavam tentando esconder o que estava acontecendo. Em Damasco tinha um clima de normalidade, tentavam passar um clima de normalidade, só que eles controlavam o que eu via. Aliás, fiz coisas interessantes com eles até na parte do governo, agora eu tive que driblar essa vigilância e fazer outras coisas. Não tive tanto tempo, então um dia em que eles estavam me esperando no hotel. Eu disse para eles que ia ficar lá, que não ia precisar deles naquele dia. Fui ao local em que estava tendo os protestos. Isso não agradou muito eles, obviamente porque a matéria foi publicada enquanto eu estava lá.

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l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Eles (o governo) querem designar um minder, um funcionário do Ministério das Relações Exteriores para acompanhar você o tempo inteiro, para te vigiar. Supostamente é um intérprete, um guia, mas na verdade é principalmente um espião. É uma pessoa que fica monitorando o que você faz e com quem conversa e faz relatórios diários sobre isso. Tem as limitações de língua, de ônus. Eu acho que eles não tinham minders que falavam português, então me colocaram com um que falava espanhol. Ele entendia mais ou menos o que eu falava. Quando eu entrava na Rádio Estadão ele ficava observando. Ele via as matérias que eu fazia. Entrava na internet, olhava as matérias. Entendia. Chegou a me cobrar, me dar uma

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'bronca' por causa de uma matéria que eu fiz. Eu falei para ele que ia ficar com o embaixador brasileiro, para poder me livrar dele durante um dia. Na verdade eu tinha combinado com um motorista de ir para um lugar, uma favela perto de Damasco onde tinha protestos e confrontos com o exército. Eu fiz isso e fiz essa matéria. No dia seguinte ele viu e veio reclamar porque eu não tinha dito que ia fazer isso. Então era assim.

Em Deera, eu dei uma escapada. Eu e uma jornalista austríaca escapamos enquanto a gente estava na visita. Eles nos deram meia hora porque a gente ficou reivindicando, 'Deixa a gente passear um pouco, deixa a gente andar sozinho um pouco, é muito ruim desse jeito'. Aí eles foram, discutiram entre eles, falaram ‘Tá bom, vocês têm meia hora’. Aí a gente saiu correndo e entramos no primeiro carro que apareceu na rua. Falamos 'Nós somos jornalistas e queremos conversar com as pessoas comuns'. E os caras 'Entra no carro'. Nós entramos no carro sem saber para onde estávamos indo. Fomos para um apartamento, e lá, rapidamente, pelo celular eles reuniram umas 20 pessoas em uma sala minúscula de um apartamento. Eram sunitas rebeldes, eram pessoas que se manifestavam todos os dias e enfrentavam o exército, a polícia e foi muito legal essa conversa. Em meia hora a gente teve um retrato da realidade ali. Foi bem bacana.

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s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eles (o governo) escolhem quem vai ser o seu minder. Então eu aceitei, faz parte do jogo. Só que botaram uns caras muito toscos. O cara que foi me buscar no aeroporto já cobrou o dinheiro e já me botou outro cara para andar comigo no dia seguinte. Um troço bem opressor, bem desagradável. Eles iam me jogando um para o outro e cada um queria cobrar U$ 100, U$ 200. Um troço que ficava bem chato. Você sai na rua para entrevistaralguém, tem dois caras com ‘pinta’ de gente do governo, óbvio que a pessoanão vai falar direito com você. É óbvio que fica muito 'Ah, sim, está tudobem, graças a Deus, graças ao nosso presidente, vamos derrotar oterrorismo'. Não estava rendendo nada. Era muito fake tudo o que eu tinha.Eu fiz dois, três dias e comecei a me estressar com esses minders. Dei um ‘perdido’ nesses caras. Falei 'Isso aqui está uma merda'. Os caras que o

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governo me deu eram muito despreparados, pouco úteis e muito gulosos em grana. Eu gastei muito com esses caras. Fui me irritando com esses fixers e uma hora a gente se estranhou feio, e olha que eu sou tranquilo. É muito difícil eu me irritar. Então os caras ficaram de bode de mim e eu fiquei de bode deles.

Sobre o casal: Aí fui trabalhar com um casal recomendado por uma menina do New York Times que tinha ido à Síria, que tinha feito umas boas matérias. Ela, uma senhora síria; ele, um escandinavo perdidaço. Um casal de classe média alta, sofisticados. Estavam ali na Síria, não sabiam direito como ia ficar e como falavam muito bem inglês, tinham carro e muitos contatos, começaram a ganhar dinheiro com jornalista estrangeiro. Eram muito queridos, muito gentis. Fui trabalhar com eles um primeiro dia. Ela me levou em um subúrbio, uma zona que o governo não ia gostar nem um pouco de eu estar lá mas eu já tive contato com rebeldes ali, uma coisa meio tensa, uma zona rural, longe de Damasco. Você ouvia muito tiro, era uma loucura estar ali. Só que esse casal era meio caro e aí apareceu o francês.

Sobre o francês: O francês era um cara muito esquisito, parisiense, jovem, moderno, descolado. Quando o Bashar começou a ficar amiguinho da França, do ocidente, e começou a entrar dinheiro na Síria, ele era um cara em Paris, malandrão, empresário, e se tocou para Damasco, aprendeu árabe super rápido e começou a ser uma espécie de um contato de empresários franceses que queriam investir na Síria. Ele tinha visto de residência, era muito conectado no governo, conhecia os ministros, falava um árabe desconcertante e de repente se vê em uma situação em que todos os investimentos deles iam para as cucuias, porque ele não sabia o que ia acontecer. E falou 'Olha, eu já estou fodido, fodido e meio vou ficar. Vou trabalhar com jornalistas'. E aí eu liguei para o francês. Ele falou ‘Beleza’ e eu o adorei. O casal de escandinavos eram legais, mas eram velhinhos. O francês era malandrão, topa tudo.

Com ele eu comecei a fazer coisas interessantes. O francês não fazia isso clandestinamente. Como era muito conectado no governo, quando eu dei um perdido nos meus minders malas, ele falou 'Olha, você quer fazer a sua viagem no interior? Vamos fazer, mas eu preciso avisar a Abir, a chefe do departamento de imprensa'. Ele ligou para Abir e falou 'O Sami está comigo. Relaxa, eu vou cuidar dele. Eu sei quais são os limites'.

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Eu acho que você tem que ter sorte, como tudo na vida. Você pode ter o melhor fixer, estar em uma ‘puta’ situação, mas se você não tiver sorte, as coisas não ‘rolam’. A minha sorte é ter encontrado o francês. E ele eu conheci ouvindo por acaso uma reportagem na rádio francesa, em Teerã. Eu vi uma jornalista francesa que estava em Damasco e eu estava ouvindo o fixer dela fazendo uma tradução ao vivo. O cara claramente com voz defrancês, sotaque de francês, mas falando um árabe excelente. Eu procureiessa repórter 'Oi, tudo bem, sou um jornalista brasileiro, estou indo aDamasco, você recomenda o seu fixer?'. Ela falou 'Recomendo, aqui otelefone dele'. Eu deixei o telefone de lado, mas quando uma coisadesandou, falei 'Vou ligar para o francês'. Apesar de ser quem ele era, umcara muito conectado, malandro, ele jogou limpo de dizer 'Vou contigono escritório da imprensa e a gente vai dizer 'Não vamos fazer nada ilegal'.Nesse aspecto eu tive sorte.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu falo árabe, mas é muito mais conveniente ter uma pessoa para fazer a tradução por você porque você não perde nada. O nível de árabe que eu falo eu perco muita coisa, eu não consigo me expressar tão bem, então esse profissional é essencial para a comunicação também para a segurança. Afinal, é a pessoa que sabe de fato onde você pode ir ou onde você não pode, com quem você pode falar, com quem não pode. Apesar de ser uma área “controlada” pelo governo ainda é uma área de risco. Damasco na época, em Bab Sharqi, no outro lado da cidade, com a fronteira da cidade antiga, já estavam os rebeldes. Você está em Damasco sob o controle do governo mas você ouve a cada 10 minutos um morteiro. Você ouve a artilharia a noite inteira. Um dia na cidade teve um ataque grande de morteiros e ele sabia por onde a gente podia ir que fosse seguro. A gente foi a um hospital, por exemplo, ver as vítimas, falar com as pessoas, falar com familiares. Esse tipo de coisa é difícil fazer sozinho em um país que você não conhece.

E tem, claro, a parte burocrática, porque esse visto está condicionado a que você trabalhe com alguém. Ele acaba sendo a pessoa responsável por você.

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Se você cruzar para o outro lado, se você tentar fazer uma coisa ilegal. Tem muitos repórteres nessa época que iam a Damasco e de alguma maneira cruzavam para a área de controle rebelde, que é uma coisa altamente proibida. Então no meu caso, a pessoa responsável por mim seria o tradutor. Ele acaba sendo uma espécie de tutor. Não no sentido que ele controlasse o trabalho, nem no sentido que ele fosse espião. Tem muito disso. ‘Ah, então quer dizer que você não podia fazer nada que o governo...?' Não exatamente. Claro que existem limitações. Para sair da capital você precisa de uma autorização específica. O Ministério do Interior está ciente de que você está lá. Claro, existe uma série de limitações. Mas, por exemplo, nos últimos dias, quando eu já não tinha tantas entrevistas para fazer, eu podia sentar e escrever com calma. 'Hoje à tarde eu não preciso de você, obrigado'. O cara ia embora, saía para almoçar. Eu andava sozinho na cidade, ia fazer compras. Eu não estava sob vigilância. Claro, ele perguntava depois 'O que você fez ontem? Saiu para jantar? Encontrou alguém?'. Eles sempre tentam saber porque faz parte do interesse deles. Mas não significa que eu não tivesse liberdade.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Os minders que trabalharam comigo eram pessoas muito interessantes, com uma cabeça muito aberta. Não tenho muito o que reclamar deles. É claro, estavam fazendo um trabalho de censura e de tentar evitar que eu tivesse acesso a algumas questões que seriam complexas, mas o que eu posso dizer é que foi tranquilo. Eu não tentei fazer matéria sobre as prisões ou torturas do Assad. Acho que naquele momento não cabia isso, o que cabia de verdade era tentar contar como estava vivendo a Síria naquela hora porque quase ninguém tinha ido, quase ninguém sabia o que estava acontecendo.

Eu tive contato com cinco minders para cada evento. Um que viajou comigo pelo interior, uma minder em Aleppo, uma em Homs, uma em Damasco e um minder em Damasco também. Eles me ajudavam bastante com tradução — eu não falo árabe, não falo nada de árabe, me ajudavam a conseguir as histórias, especialmente a minha minder em Damasco foi muito legal comigo, me ajudou muito. Enfim, é difícil trabalhar lá, não é fácil. Mas foi bem menos pior do que eu esperava.

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Você não paga nada para eles. O governo te oferece e você paga os custos deles. Hotel, alimentação, transporte, isso você paga. Para viajar para Aleppo, Homs, no interior, você precisa ficar em hotéis designados pelo governo que eram relativamente caros. U$ 130 para mim e para os sírios é 1/5 do valor, então eram U$ 30, mais ou menos, além do motorista que eu tinha que contratar por fora.

Por

t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012 e 2013- Aleppo (BBC e Terra)

Os fixers são repórteres locais ou são pessoas que não têm tanto o lado jornalístico mas são bem conectados. Para chegar a essas pessoas não é tão difícil assim. São pessoas que você tem contato via redes sociais, pessoas que o amigo de um amigo, amigo de um colega vai indicando. Mas a gente tem fixers bons e ruins, fixers que são para TV e outros que são suficientes para impressos. Há diferenças. O ritmo de trabalho é outro, as exigências são outras. Mas não tem muito segredo não. No Facebook, por exemplo, tem grupos que jornalistas e fixers fazem parte, então é oferta e procura. Fixers oferecem serviço, os jornalistas pedem algum fixer para uma certa cobertura, área e eles oferecem o seu serviço. Claro que quanto mais a gente trabalha, mais a gente conhece pessoas, você descobre novos fixers. Alguns são bons, alguns médios, alguns ruins. Então depende muito do teu ritmo de trabalho. Enfim, é toda uma pesquisa, uma pré-produção para você ter alguém local. Quando eu ia como repórter em algumas coberturas eu não usava fixer porque eu falo o idioma. Quando era para a escrita é muito mais fácil, você não precisa tanto a presença de um fixer se você fala o idioma. Você conhece alguém que te ajeita aqui, que é o teu amigo. Você mesmo procura ajeitar as entrevistas e tal. Mas quando é TV, às vezes, dependendo do tamanho da cobertura, você precisa de uma ajuda. Você não consegue fazer sozinho. Então precisa de alguém local, bem conectado, especialmente quando é coisa de governo. Pessoas militares daquele país, milícias, alguma coisa. A presença de um fixer sempre é necessária e ajuda muito.

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Teve um ano em que no auge dos conflitos os fixers não cobravam menos do que U$ 600, € 600 por dia, que era o mesmo valor que os cinegrafistas freelancers cobravam também. Geralmente você pega um fixer que além dos serviços disponibilize um carro que seja bom, que aguente o tranco. Que não seja qualquer carro caindo aos pedaços. Mas em geral é essa média aí: 500, 600, às vezes U$ 700 dólares ou €. Se eles sabem que é uma TV europeia eles vão cobrar em euro. Então depende muito, é uma negociação. Às vezes cobram muito caro aí você negocia 'Vamos baixar esse preço'. Às vezes você compensa na quantidade de dias. ‘Olha só, vou te pagar pouco menos, mas a gente vai trabalhar mais’. É toda uma negociação.

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m a r c e l o n i n i oCobriu em 2012 - Aleppo (Folha de S. Paulo)

Eu tinha fixer mas naquela época, em qualquer época, não tem jeito, você entra com um dos lados. Entrei com os rebeldes na época. O jogo mudou muito rápido porque não tinha o Estado Islâmico e a coisa estava se radicalizando, mas não tinha ainda essa presença. Nessa época era mais fácil e menos perigoso porque os rebeldes tinham interesse em levar jornalista para lá. Não tinha interesse como o Estado Islâmico de trocar o resgate em milhões e cortar a cabeça. Então relativamente os jornalistas tinham uma condição. Alguns ganhavam dinheiro com isso, mas os rebeldes tinham interesse, ajudavam os jornalistas. Ser brasileiro também ajuda. Então era diferente do que virou depois. Esses contatos sempre são como qualquer apuração de matéria. Você tenta pensar em alguém que pode ajudar e essa pessoa vai levar a outra pessoa e outra pessoa e outra pessoa.

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O S R E B E L D E S •

Cobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l o

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Eu ia com um fotógrafo que tinha arrumado um fixer, chegou na hora e ele tinha arrumado outro trabalho. Eu fiquei na ‘roubada’, fui sozinha. Uns jornalistas que conheci na Turquia me indicaram um cara para ser meu fixer, um cara que eu não conhecia. Me disseram que ele era sírio, de Kobani, um jornalista que já fez várias matérias sobre o Estado Islâmico. Da segunda vez eu fui com um fotógrafo, o Fábio Braga, o fixer da primeira vez e a mulher dele, que na verdade viraram a história do meu livro.

O meu fixer não era só fixer, era um ativista curdo. Era um cara que estava ali lutando para formar o país deles. Óbvio que toda a minha visão do conflito tem esse filtro dos curdos. É uma ilusão você achar que você vai fazer uma cobertura isenta ou imparcial de conflito. Por quê? Você sempre vai entrar por um dos lados. Mas eu costumo dizer que você, jornalista, sem um fixer bom, é um turista mal informado. O fixer não é só um tradutor — A gente não fala as línguas, muitos falam árabe mas a língua lá é kurmanji —, ele é seu termômetro cultural. Ele te fala assim 'Esse cara aqui está jogando uma bucha em você; esse cara aqui tem X interesses; isso aqui é tal coisa; vamos aqui e não vamos ali'. Qual o ‘downside’ disso? Você fica na mão das pessoas e na mão das agendas das pessoas, seja no Curdistão Iraquiano, seja na Síria.

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Pautas, metas e deadline

C A P Í T U L O V I I I A guerra cria histórias e elas podem se tornar pauta. Mas quem sabe que histórias são essas? Só quem pode vê- las de perto. Não à toa, na maioria dos casos, os repórteres in loco têm mais autonomia (consentida pela política da empresa) para fazer a sugestão do que deve ganhar destaque. Gatekeepers? Embora, diante das contestações, o prestígio da teoria não seja o mesmo da década de 50, na guerra da Síria fica claro que a subjetividade do jornalista é um dos portões que a notícia encara até chegar a sua publicação. Esse conceito individual carrega as marcas de crenças e valores — Tariq Saleh nasceu no Líbano, Germano Assad tem avô sírio e Samy Adghirni é filho de marroquino; a cobertura foi em um país árabe —, o conhecimento processual e até a própria função dentro da organização jornalística.

Da redação, há milhas de distância, a periodicidade, a tecnologia do produto e o tipo de contrato entre o jornalista e a empresa são determinantes para indicar as metas de produção e o deadline —freela requer pautas diferentes para

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cada cliente, por exemplo, o que requer uma rotina mais apertada. Em outros casos, a atualidade continua sendo uma qualidade do jornalismo, mas isso não quer dizer que há pressa — até por questões de segurança. A guerra não acabará em horas, é algo em processo. A viagem, sim.

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O G O V E R N O •

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g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Eu tinha uma ideia de pauta, mandava a ideia e eles aprovavam e eu fazia. Eu tentei por muito tempo um acordo de produção semanal, um contrato que me desse uma estabilidade para eu pelo menos ficar tranquilo com relação à conta básica. Eu tentei isso, era o que eu tentava com todos, mas não rolava.

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m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Sobre pautas: Eles me informavam sobre as coisas que estavam acontecendo e tal, mas também o que estava lá, o que estava acontecendo lá era um olhar, todo mundo queria saber o que tava acontecendo dentro, então eu tinha mais informação do que eles. Eles tinham informação sobre eventos diplomáticos, sei lá. Mas o mais interessante era o que estava acontecendo lá dentro. Então eu acho que eu me pautei em 90% das matérias.

Sobre metas de produção: Nessa situação de guerra? Não, eu dizia o que eu tinha. Às vezes eles sugeriam uma matéria, mas eu estava em uma situação muito extrema, então era muito difícil até de mandar matéria. Essa era uma das maiores angústias, as pessoas perguntam 'Como é cobrir a guerra?'. Pior é quando não pode mandar a matéria. Você tem bala, explosão, riscos mil.

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Mas o pior é imaginar que você fez a matéria e não consegue mandar a matéria. Eu mandei uma por mensagem de texto. Hoje em dia isso aí ficou comum, mas naquela época... Mas teve um dia que não teve mais nada, não teve mais luz, não teve mais nada em Aleppo, então o jeito foi... Foi ótimo. Não tem como mandar, relaxa. A gente jantou, ouviu música, foi ótimo. Os meninos fizeram arroz, o que tinha lá, não tinha quase nada. Era por internet que enviava. Nesse lugar que a gente ficava, que era um lugar que tinha internet. A internet era muito ruim, mas tinha. Então eu mandava pela internet. Mas não dava para ficar navegando, olhando na internet. Usava só para mandar matéria. Falava no telefone com a redação.

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l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Sobre metas de produção: A gente tem um ritmo normal de todos os dias trocar e-mails sobre o que tem para o dia e como você está em uma cobertura dessas, de um lado existe muita expectativa do jornal que você produza, mas existe também muita compressão. Então é uma cobertura difícil. Não há uma cobrança ou uma pressão para produzir. Você vai explicando a situação, mas eu conseguia mandar matéria todos os dias. Eu faço questão quando estou em cobertura assim, principalmente quando eu era um funcionário, empregado do Estadão, tinha um salário, então eu tinha um ponto de honra que era mandar matéria todos os dias independente do que acontecesse. Mas isso era mais uma posição minha. Tem o William Waack que foi meu antecessor lá nessa posição no Estadão. Ele fala que o enviado especial tem que cair de pé. No primeiro dia tem que mandar matéria e eu sou um pouco dessa linha dura. Mas aí são coisas pessoais. Pessoas que têm um ritmo mais tranquilo, que também é legítimo.

Depois de um episódio em que o meu minder reclamou da matéria que eu fiz, que eu fui numa manifestação, eu segurei várias matérias. Várias matérias eu deixei para publicar só depois que eu saí da Síria, só depois que eu voltei. Eram matérias mais comprometedores, que citavam pessoas na Síria.

Sobre pauta: O jornal pode fazer pedidos, dar sugestões porque eles estão

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acompanhando as coisas pelas agências de notícias e pelos jornais de outros países que têm uma cobertura assim. Então eles dão muitas sugestões. 'Eu vi tal coisa, você acha que daria para fazer alguma coisa nessa direção?' Mas são sempre sugestões assim, pelo menos na minha relação. É claro que depende muito da relação do repórter com o jornal. Eu tinha sido editor chefe do Estadão, então a minha relação com os editores era mais horizontal. Não era hierárquica. Eu não mandava neles e eles não mandavam em mim. É claro que sim, se houvesse um pedido da direção, mas é muito raro a direção querer intervir na cobertura, nesses detalhes do dia a dia. Porque às vezes tinha intervenção da direção no sentido 'volte' ou então 'fique mais'', coisas assim, mas não o detalhe da pauta. Isso é acertado com o chefe de reportagem da editoria internacional que chega de manhã e tal e às vezes aí no fim do dia é acertado já o tamanho, com o editor, com quem está fechando. Mas desse jeito assim. No decorrer do dia, na medida do possível a gente troca informações.

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s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

O repórter de jornal tem muito mais autonomia do que o de agência. Você pensa na pauta, executa a pauta, escreve a matéria e manda a matéria. Quando eu estava em ambientes muito difíceis, o Irã e Oriente Médio, eu digo sem falsa modéstia, o meu forte como repórter é ser o repórter de rua do Oriente Médio. Eu falo árabe. Eu aprendi um pouco de persa. Viajei muito pela região, conheço os códigos, porque eu mesmo sou muçulmano. Então eu chego mais longe que os colegas. Entendo mais rápido o que está acontecendo. Tudo isso faz com que o jornal me desse muita autonomia, decidir para onde vou, o que que faço. Em um situação dessas, um jornal brasileiro, com chefes que nunca puseram o pé ali. Eles também ficam com medo que te aconteça alguma coisa. Eles te dão carta branca, é uma coisa muito legal. Agora você tem que assumir as suas escolhas. Se der alguma coisa errada, foi você quem quis ir. Você tem ideias antes de ir. Você faz o plano de voo. Você não diz 'Eu vou para a Síria, me paga a viagem'. 'Quero ir para a Síria e meu enfoque principal é Damasco, tem saído pouco na mídia, quero dar uma olhada na economia, nas milícias de voluntários...'. Algumas

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coisas dão certo. Outras não dão certo e chegando lá você acaba fazendo coisas que você não tinha previsto. Você vê também dificuldades que você não tinha antecipado. Então você sempre está fazendo escolhas.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Sobre pautas: Geralmente o que eu faço nessas viagens? Eu faço uma série de propostas. Um cardápio, como a gente chama. 'Ah, eu estou indo para a Síria, o meu plano é este: quero fazer uma reportagem sobre a situação, eu quero fazer uma reportagem sobre o campo de refugiados de Yarmuk, eu quero entrevistar alguém do Ministério do Exterior, quero falar com a oposição'. Foram algumas das coisas que eu fiz lá. Às vezes o editor fala 'Legal, mas seria legal também você falar com um escritor; ao invés de falar com a oposição; por que você não fala com esse ativista?'. É um processo nesse sentido, mas geralmente eu faço primeiro a proposta porque são geralmente as linhas gerais do que vai acontecer. Porque, claro, sou uma pessoa que tá lá, sou uma pessoa que acompanha o tema. Acho que é um processo natural.

Sobre deadline: Nesse caso, o interesse de todo mundo é que saia logo. Imagina, é um grande tema de 2014. É um tema volátil. Coisas que você investiga em uma semana talvez não seja relevante. Sei lá, se eu tivesse feito toda a apuração, voltasse a Jerusalém e tivesse um ataque químico, todo o meu texto mudaria. Então existe uma pressa inerente mas ninguém nunca me diz em geral 'Você precisa entregar até...’. É tudo negociado. Nessa viagem em específico a gente sabia de antemão que algumas coisas não agradariam o governo. Normal, estamos cobrindo um conflito e tem o lado do governo, dos rebeldes, o lado dos ativistas, da oposição. Como é uma posição delicada, eu até preferi que a gente não publicasse nada enquanto eu estava lá. Me pareceu razoável porque eu era a pessoa que estava em contato direto com o governo, que ia pro Ministério pedir um papel; eu entrevistei o vice-chanceler pessoalmente. Então me pareceu contraprodutivo que eu publicasse um texto dizendo 'Ditadura síria mata centenas'. Eu acho que esse tipo de cobertura não tem pressa, tem que sair

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durante a sua estadia e às vezes também não convém. Eu devo ter voltado em uma segunda e publicado na quarta. Foi o tempo de voltar a Jerusalém e escrever a reportagem.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Sobre pautas: Ninguém me pautava, eu mesmo me pautava. Eu procurei algumas pessoas que eu sabia que estavam lá e eu tinha interesse em conversar. Outras ideias de pauta surgiam no meio do caminho. Então tinha de tudo um pouco. Várias pautas que eu queria fazer não funcionavam, outras que eu não esperava fazer, funcionavam muito bem.

Sobre metas de produção: Essa é uma equação super complexa, algo que eu preciso melhorar. Dependendo da matéria, posso cobrar desde U$ 500 a U$ 3 mil. Depende do nível de complexidade que ela for exigir. Mas em geral eu consigo pagar todos os custos e ter lucro. Se eu tiver na estrada sempre, eu consigo fazer grana legal. Quando eu estou no Brasil, não. Então esse é um problema. Dá para ir bem. Poderia ser mais, mas aí tem as escolhas: onde eu quero publicar, onde eu não quero publicar. Isso tudo vai influenciar na quantidade de dinheiro que você vai fazer. E também da sua capacidade de conseguir produzir, que às vezes é pequena. Tu não consegue fazer muito mais do que uma matéria para jornal e outra para TV. As matérias são diferentes, não pode fazer a mesma matéria.

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012, 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Sobre pautas: Para o Terra era eu que propunha, é escrito, então eles não tinham a cultura de cobrir toda hora, sempre. Se eu for fazer um

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pacote legal, com histórias interessantes, eles topam. A BBC, claro, pelo canal que é, tem uma necessidade de material constante porque é um canal 24h, a própria BBC Brasil que eu já aproveitava e fazia para eles porque foi onde eu comecei. A BBC como um todo sempre tem, precisa de material, precisa de coisas interessantes. Os editores muitas vezes falam 'Olha, a gente tá a fim de que vocês vão para a Síria, Iraque ou Líbia. Vê o que vocês podem conseguir aí interessante'. Aí a gente faz uma pesquisa 'Olha, tem essa história aqui, tem essa outra aqui'. Duas, três, já convencem os editores a investirem nessa viagem. Algumas vezes há situações em que os editores já sabem o que querem. Eles falam 'E se a gente fizesse uma história, uma série de histórias sobre sei lá, os refugiados que perderam as suas casas e estão ali na fronteira com a Turquia; a situação das mulheres, das crianças, dos homens que não têm como conseguir dinheiro então eles trabalham e acabam entrando para as milícias para poder ter um salário, sustentar as famílias'. Ó, já tem três histórias. Às vezes os editores já sabem. 'Vamos lá então'. Só que no meio do caminho às vezes você descobre mais uma outra coisa interessante ou às vezes fala para eles 'Essa não vai rolar, mas tem essa para substituir'. O que vocês acham?' Ah, legal, vamos lá. Então é muito relativo.

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Sobre deadline: Você vai dando retorno. 'Estou aqui, estou fazendo isso'. Inclusive por segurança, para saber se está tudo bem. Não é sempre que dava para ligar porque lá era muito complicado telefone. Tem lugares que pegavam o chip turco, outros que pegavam iraquiano. O chip sírio eu nem comprei porque estava uma 'merda'. Eu ia falando 'Agora eu tenho tal matéria para mandar' e aí eu ia avisando quando tinha alguma coisa. Claro que se acontecesse algo que fosse breaking news, eu tinha que mandar na hora. Então isso tudo depende. Sobre pautas: Eles não pautam. Você sai com algumas ideias de pauta. Eu fui para lá e a pauta que eu ia fazer era o exército feminino das curdas. Só que aconteceu tudo

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aquilo: eu fiquei sem fotografia, sem fixer, em uma roubada, e tive que mudar tudo o que eu ia fazer. Mudar a cidade, mudar tudo. Óbvio que você vai nas coisas obrigatórias — como está o conflito, como estão os civis, falta comida, vai no hospital — e vão surgindo coisas no meio do caminho. Eu tinha essa ideia da pauta das soldadas curdas que não deu para fazer, então falei 'Vou fazer a dos avós do Alan Kurdi'. E no meio do caminho surgiram várias coisas.

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Apuração

C A P Í T U L O   I X Em um território muitas vezes desconhecido, com cultura e idioma diferentes, o processo de apuração apresenta algumas dificuldades. Quando o contexto é de conflito, há ainda maisagravantes. Para alguns, a saída são osfixers, que conhecem o local e auxiliamcom fontes; para outros, há o improviso.Seja qual for o caso, não se fazjornalismo sem apuração, ainda quealgumas histórias sejam contadas porvozes unilaterais. Nem sempre épossível atravessar a fronteira paraouvir a outra versão e confrontar asideias — aos jornalistas, principalmentepor questões de segurança; ao veículo,pelo alto investimento em manter umrepórter por área. Alguns profissionais,convictos da lição ‘ouvir de todos oslados’, assumem o desafio e recorrem aotelefone, internet ou até escapadasquando não são vigiados. Outrosaceitam que estão ali para contaraquela versão que, se bem conduzida,não deixará de ser um fragmento eregistro da realidade.

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• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O G O V E R N O •

Cobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Uma parte mais fácil era contato com jovens. Era mais fácil porque eu frequentava uma universidade. Eu fui conhecendo as pessoas. Para acessar as fontes grandes, como ex-reitor da Universidade de Damasco, presidente do partido x, um advogado famoso dos direitos humanos, para chegar nessas fontes mais qualificadas e que eram mais arriscadas de se abordar, de se aproximar, porque eram conhecidamente oposição ao regime, eu tive muita ajuda, em especial de amigos estrangeiros. Em algum momento em dividi uma casa com um italiano que era um jornalista mais experiente, trabalhava para uma agência da França e ele tinha muito suporte de Beirute. Tinha um correspondente fixo em Beirute e eu comecei a acompanhá-lo. Ele tinha um roteiro de entrevistas de gente que ia acompanhar. Ele me convidou para ir junto. As primeiras fontes eu desbravei com ele, por meio desse contato. Depois eu fiquei amigo de um diplomata belga que trabalhava na embaixada e ele tinha uma lista de contatos com a oposição que era interessantíssima também. Então para ele era interessante usar porque a gente ia junto lá, fazia entrevista, eu gravava em vídeo, em áudio, disponibilizada para ele e a gente conversava, discutia. Mas cada um fazia o seu uso do material. Então foi mais ou menos assim. Fui conhecendo uma pessoa que apresentava outras pessoas. Desbravei procurando Facebook. O Skype, à época, era uma ferramenta muito importante porque você conversando com uma fonte, a fonte te adicionava em um grupo de oposição e de repente você já estava em contato com várias outras fontes. Então foram dessas formas, fui desbravando os contatos.

Por

l o u r i v a l s a n t ' a n n a

Eu falei que eu queria ouvir a oposição e aí esse meu guia, esse funcionário

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esse funcionário do governo, ele que marcou as entrevistas. Agora nos outros momentos que eu saí sozinho, eu fui em uma manifestação a favor do regime e lá eu fiquei muito tempo conversando com as pessoas em inglês mesmo. Ali eu vi um apoio legítimo ao governo que era algo que eu buscava porque é muito importante a gente conseguir falar com as pessoas que estavam do outro lado do que normalmente seria o que a gente identificava como a defesa da liberdade, da democracia. Eu sempre busco muito isso, parto do princípio de que todo mundo tem as suas razões. Não é um lado idiota e o outro lado sábio, no mundo real não é assim. No mundo real todo mundo tem as suas razões para estar em uma determinada posição. Então para mim foi reconfortante. Mas também falei com pessoas bem comuns que não estavam de lado nenhum.

Cobrir de um dos lados: Nas minhas coberturas eu sempre tento ter contato com os vários lados do que está acontecendo. Nesse caso, na Síria, eu consegui isso. Em dois dias diferentes. Em Deraa, no primeiro dia, em que eu escapei, entrei em um carro e fui para um apartamento onde reuniram os rebeldes eu os ouvi. Também no dia em que eu viajei com os observadores militares da ONU, também pude ouvir bastante, fazer um longo vídeo com a população que não gostava do regime. E no restante do tempo ouvi bastante o regime, pessoas favoráveis a ele. Acho que foi uma cobertura equilibrada. Também houve outro dia que escapei, fui para uma favela, cobri uma manifestação, vi uma pessoa que tinha acabado de sair da prisão, contou como tinha sido torturado. Ouvi bastante gente dos dois lados.

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s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Em um país como o Brasil, você cultiva fontes. Você tem as fontes do governo, da oposição, políticas, econômicas. Você está na guerra, em um país que você não conhece, ali é muito do improviso. Eu acho que além da sorte, o grande diferencial dessas coberturas é a capacidade de improvisar. Claro, você chega com ideias. Essa é uma viagem, que ao contrário de outras, foi preparado. Eu lia tudo sobre a Síria, desde artigos acadêmicos até tudo que saía na imprensa, a começar por jornalistas que tinham ido. Você tem que ter humildade e dizer 'Olha, estou indo para para um lugar

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que não conheço'. Isso vai te dando ideias também. Você vê um elemento de uma matéria que você leu na BBC e acha que aquele ponto não foi explorado suficiente e você chega lá com vontade de aprofundar. Economia, por exemplo, é um troço que até hoje nunca vi uma matéria boa sobre a economia da Síria. Como a economia da Síria está funcionando? Você pega umas matérias meio superficiais. É o que dá para fazer em uma viagem de poucos dias, em que você tem pouquíssimo acesso a dados oficiais, críveis. As suas fontes, quem são? É tudo improviso. É um pouco de cada, o seu preparo, a sua observação local, o que você quer fazer, onde você quer ir, onde dá para ir, o que o teu fixer sugere e assim você tem um bem bolado. Sendo que o tique-taque está ali contra você. É muito difícil.

Cobrir de um dos lados: É inevitável, você sempre vai contar de um lado. Não existe uma guerra você, jornalista, contar a história dos dois lados. O mesmo jornal ou TV pode se dar ao luxo de ter um em cada lado, acontece e é saudável. Eu achei muito válida a minha avaliação porque as pessoas estavam com foco mais voltado para os rebeldes, eles eram os protagonistas da história.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Mesmo que não seja em uma situação de guerra, você diz (para o fixer) 'Fulano, eu quero escrever sobre Homs, sobre política, com quem você acha que eu devo falar?'. 'Ah, eu tenho o telefone do governador'. ‘Legal, vamos marcar com ele’. Eu digo para o fixer ‘Eu li que tem esse padre que está fazendo um projeto de conciliação entre rebeldes e governo, vamos lá então. A gente procura juntos, pergunta para alguém’. Fazemos isso juntos e muitas vezes você é um estranho. Em Yarmuk a gente chegou lá, conversou com os soldados, ficou do lado de fora, encontrou palestinos. Também é uma coisa feita espontaneamente. A internet ajuda. Eu passo o tempo todo na internet nessas coberturas. No twitter, além da imprensa local, lendo o que a imprensa tem escrito sobre os mesmos assuntos. Isso é fundamental.

Cobrir de um dos lados: É um desafio manejado de diversas maneiras. Fazendo, por exemplo, algumas coisas por fora. Algumas coisas que talvez

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eu não tenha feito pessoalmente porque eu não me sentia à vontade para sair do hotel e me encontrar com o líder da oposição, uma coisa que é perigosa. Uma coisa que você pode fazer é usar o telefone. Eu conheço pessoas da oposição, eu tenho números na minha agenda então talvez tenha voltado para Beirute e telefonado para pessoas. Mas mesmo lá encontrei pessoas da oposição pessoalmente na Síria. Alguns textos era justamente 'Quem é a oposição', como eles se organizam em meio a ditadura, o que pensam do governo. É a mesma oposição armada? Claro, não é o mesmo tipo de oposição. Nesta cobertura que eu estou dentro do território sírio não é aconselhado a fazer uma entrevista pessoalmente com um soldado, com o Exército Livre Sírio, com o Estado Islâmico. Claro, existe esse tipo de restrição que é igual do outro lado. Se você está lá como a Patrícia (Campo Mello) que esteve na fronteira com a Turquia, é a visão totalmente oposta porque não teve como ter contato com o governo. São desafios, e como a gente resolve isso? Você pode ligar para uma pessoa que está do outro lado e você resolve mantendo a cobertura também. Não dá também para ver a minha cobertura isoladamente. Não foi a única coisa que eu fiz na Síria. E não foi a única coisa que o jornal fez. Então ter essa noção que eu passei lá, mas antes/depois disso conversei com a oposição; a Patrícia foi um tempo depois, o Samy (Adghirni), o Marcelo Ninio. A gente tem uma equipe de pessoas que fazem trabalhos em torno disso. Se você olhar o trabalho que a gente faz no geral, eu acho que se balanceia um pouco. Ninguém pode dizer nenhuma das duas coisas: que a Folha não ouve a oposição e ninguém pode dizer que não ouve o governo. A gente faz as duas coisas. Talvez não a mesma pessoa no mesmo lugar, por questões óbvias, mas não deixamos de fazer.

Por

y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Quando eu vou para regiões em que os lados estão muito polarizados e há uma campanha de propaganda muito forte de ambos os lados, eu evito entrevistar qualquer fonte oficial. Prefiro não fazer nenhuma entrevista com ninguém oficial, do governo ou da oposição, e foco o meu trabalho no dia a dia das pessoas. As minhas fontes são pessoas normais, gente que eu encontro no bar, na rua. Minha única fonte oficial nessa cobertura da Síria é

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o chargé d'affaires [cargo do mundo diplomático], o encarregado daembaixada brasileira, a respeito da situação dos sírios brasileiros lá.Também fiz uma entrevista oficial com Assad e não recebi (as respostas).Sobre qualquer situação eu prefiro não entrevistar ninguém que tenha umlado. Claro que todo mundo tem um lado inclusive as pessoas que estouentrevistando na rua, mas eu prefiro focar na história delas, como é o dia adia, o que faz, o que não faz, do que entrar em uma discussão política que euacho muito complexa. Inclusive na Síria que eu acho uma guerra muitomanipulada, tanto de um lado quanto de outro, que você tem que demonizaros adversários de uma forma muito agressiva. Houve uma campanha dedemonização do Assad muito grande, como houve uma campanha dedemonização dos rebeldes também. Eu prefiro fazer o micro do que o macro.Eu não me sinto confortável para assumir posições nesse sentido. Então parame resguardar disso eu procuro evitar entrevistar fontes oficiais.

Cobrir de um dos lados: Eu acho que nós jornalistas somos sempre instrumentos de propaganda, independente de qual lado você estiver. Se você estiver com os rebeldes, os rebeldes vão tentar fazer com que você seja um instrumento de propaganda interessante para eles. Eles vão deixar você ver o que eles querem que você veja, vão tentar de todas as maneiras fazer com que você replique as narrativas deles. Não há muita diferença entre governo e rebeldes. Nesse caso, é claro, você está lidando com um cara que tem aviação, com um monte de gente com pedras de tudo mais. Essa narrativa que ficou muito forte na Síria de uma população civil lutando contra um ditador sanguinário. E é verdade até certo ponto. Ela não é tão verdadeira assim porque quem era essa população civil e quão civil de fato era essa população? Quem foi que armou essa população, quem deu grana, quem deu treinamento, quem deu armas, quem eram essas pessoas? Era uma situação um pouco complexa. A minha visão eu sempre tendo a ver que a gente como jornalista sempre vão tentar usar a gente para a gente fazer propaganda para um lado. Dependendo da narrativa a gente acaba sendo seduzido. Acho que na guerra da Síria muita gente foi seduzida por essa narrativa do Davi contra Golias, que no final a gente vi que esse Davi estava sendo financiado pela Arábia Saudita porque há interesses importantes de Israel e dos Estados Unidos na queda do Assad e tudo mais. O Assad barbarizou? Claro que barbarizou. Agora se você pega como a história foi contada nos cercos de Aleppo e Mossul você vê que havia uma campanha de propaganda forte e muitos jornalistas acabaram sendo seduzidos por ela. O inimigo era o mesmo, a situação era a mesma,

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mas em Mossul era um mundo lutando contra um inimigo terrível e em Aleppo era um ditador terrível matando civis. Só que em Mossul morreram 11 mil pessoas.

Por

t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012, 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

É uma combinação: eu tenho os meus próprios contatos e peço para o fixer checar com eles a disponibilidade para entrevistar, passar todas as informações. Às vezes os fixers têm as suas fontes seguras que a gente debate, a gente faz uma série de perguntas sobre qual a credibilidade dessas pessoas. Quem são essas pessoas, qual o histórico dessas pessoas? Obviamente que eles trocam informações com outros colegas. Alguém vai dizer 'Esse cara que vocês querem é roubada'. Depende muito, mas é uma combinação de você perguntar para o fixer porque ele conhece as pessoas locais e você faz uma apuração fora, externa, e com outros colegas, com outras pessoas que conhecem essas pessoas. Uma apuração de credibilidade sempre é muito importante para a gente não entrar em uma roubada.

Cobrir de um dos lados: Pessoalmente, como jornalista, infelizmente eu não pude cobrir do outro lado porque eu estava em uma lista negra e depois me tiraram. Como jornalista, eu não tive essa oportunidade. O que eu lamento muito porque eu acho que seria importante. Eu compensava entrevistando pessoas de Beirute. Tentava fazer uma matéria mostrando o lado do governo sem estar lá, o que ajuda um pouco, mas não é o ideal. Só que como empresa, como BBC, isso não é uma preocupação porque ela tinha jornalistas do lado rebelde, como tem ainda, e tem jornalistas no lado do governo. Como empresa ela mostra os dois lados; como jornalista, eu não pude mostrar os dois lados in loco. Mas como empresa o trabalho estava sendo feito. Eu fazendo de um lado e o colega fazendo de outro lado.

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Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2012 - Aleppo (Folha de S. Paulo)

Ali a cobertura não tem muito como ouvir os dois lados. Não dá para você estar com os rebeldes, estar de um lado, cruzar o frontline e ir lá no governo e falar 'E você, o que você acha?'. Eu estou fazendo claramente um lado da história e tentando equilibrar, mostrando até nas matérias que eu estava com os rebeldes porque era a única forma de estar lá. Mas quem tem que fazer o equilíbrio é a redação. Podem fazer o outro lado, mas se você está em uma situação dessas, fazendo uma cobertura como essa, é inevitável, você faz com uma desconfiança. Por exemplo, eu estava lá com os rebeldes e estava claramente de um lado da guerra. Eles tentavam ocultar que estavam fazendo execuções lá. Eu tentei ir atrás disso. Eles estavam realmente fazendo e eu fiz uma matéria sobre isso.

Cobrir de um dos lados: Já que o equilíbrio ideal, nesse caso ouvir os dois lados, o básico do jornalismo, então o equilíbrio possível é você tentar pressionar o lado que você está cobrindo. Cobrar a eles, na medida do possível, o que o outro lado está falando. Isso você pode fazer para tentar equilibrar. Isso eu tentei fazer, mas também é interessante você ver e mostrar um lado porque se você tem essa preocupação o tempo todo de equilibrar, nesse caso eu acho que é jornalisticamente interessante você mostrar o lado, claro, criticamente o tempo todo.

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Você vai sempre em hospital para ver como está a situação; escola não funcionava na época, estava fechada; você vai em cemitério às vezes, para ver a situação humanitária, você vai na fronteira. Na fronteira com a Turquia, onde muitas pessoas estavam tentando atravessar, você fala com o cara que cuida da fronteira, você fala com os civis. É sempre importante

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você falar com uma fonte oficial e civis. Você fala com a pessoa de imprensa, no caso dos curdos, do YPD, você fala com o ministro da defesa, falei com a governadora de Kobani. O fixer não me fala com quem falar. Eu digo 'Quero falar com fulano' e ele corre atrás para marcar.

Cobrir de um dos lados: Todo mundo sempre vai cobrir a guerra de um dos lados, sempre. Você entrou por algum lado. O pessoal que foi para Mossul, eles não está do lado do Estado Islâmico. Alguém está ali entrevistando o Estado Islâmico? Não está. Então óbvio que você está de um lado. Sempre é uma visão parcial. Do mesmo jeito eu, lá na Síria. Ou você está com o Assad, ou você está com o Estado Islâmico, ou você está com a oposição radical ou você está com os curdos. De qualquer lado que você estiver, vai estar com filtro. Óbvio que daí você vai tentar ir atrás de analistas, de observadores mais independentes para equilibrar a tua cobertura. Enquanto você está no campo, é uma ilusão você achar que não vai ser influenciável por onde você está. Um lado te deu acesso. Ou, se não, você está sentado em um hotel assistindo televisão e escrevendo. Por isso acho sempre importante ouvir civil porque eles têm menos bullshit.

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(Multi) repórter

C A P Í T U L O   X O alto custo da cobertura e a dificuldade em acessar um território como a Síria muitas vezes exige que o repórter vá desacompanhado da equipe e precise ser multimídia. O termo se auto explica: as informações precisam estar de acordo com diferentes meios de comunicação. O jornalista escreve, fotografa, faz vídeos, grava off e sonora. Ainda que não esteja previsto em um contrato ou seja cobrado formalmente pelos editores, a necessidade de ser autônomo está ali e dentro deles — que têm equipamentos, dominam as plataformas e são flexíveis. Para quem é freelancer, a tecnologia também serve cada vez mais à cobertura especialmente quando o que está em jogo é a remuneração. Uma entrada de quatro minutos em uma rádio, por exemplo, pode render cerca de R$ 980.

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Por

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Cobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Com a Associated Press estava mandando mais foto, e eu nem sou fotógrafo. Estavam pegando o meu material porque não tinham opção, na verdade. Ou eles pegavam o meu material ou eles não tinham material. Colaborei com alguns insights também. Eles têm um correspondente responsável pelo Oriente Médio e que fica baseado em Ancara, na Turquia. Então o cara que coordena o que eles chamam de insighters. Que nem sempre são jornalistas, às vezes são fontes mesmo que eles têm em locais que não conseguem acessar e esse editor ele junta todo esse material e faz aquela materiazona mais completa. Então além de foto eu fazia esses insights para eles. A Rádio França eu fiz ao longo de todo o período e foi o que me salvou porque eram entradas na rádio. Eu tinha um amigo sírio que me conseguiu um chip desbloqueado, ele trabalhava na operadora. Eu fazia as entradas com esse chip que não era rastreado. O bom é porque uma entrada de 4 minutos na rádio, um bate-bola com o apresentador, me rendia € 250. Uma matéria especial para a Folha, que me dava uma semana de trabalho, me rendia R$ 100.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Não está no contrato, no contrato está material jornalístico, então isso aí é elástico. Cobravam.

Por

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Eu que tive essa iniciativa porque alguns detalhes achei interessantes, como as roupas, as casas, as ruas, tudo, o cenário todo. Então comecei a gravar também como forma de apuração. Eu gravava vídeos e ao chegar no lugar em que estava baseado, primeiro assistia, fazia as legendas dos vídeos, fazia a narração e tudo isso eu fazia por escrito. Eu mandava primeiro o vídeo porque ele demora muito para transmitir e é publicado imediatamente. Depois disso que eu ia escrever o texto. Muitas vezes eu aproveitava uma parte do texto, da narração do vídeo e das legendas que eram basicamente aspas de entrevistados e aproveitava para usar na matéria. Então esse era o meu esquema, principalmente porque eu tinha tempo. O fuso horário estava ao meu favor. Eu estava, acredito que 8h mais tarde, se não me engano. Eu chegava no fim da tarde ou à noite e tinha bastante tempo para editar o vídeo, enviar e escrever a matéria. Dava tempo. No início eu mandava bruto mas eu tinha que dar tantas instruções, escrever um script. Fui concluindo que o script tomava mais tempo e era mais chato e às vezes tinha mal entendidos, erros. Então eu editava, aprendi a editar. Era uma edição simples sem grandes recursos mas suficiente para a TV Estadão. Em 2013, no ano seguinte à minha ida à Síria, eu fiz um curso de documentário na Academia Internacional de Cinema e aperfeiçoei as minhas técnicas de edição, de filmagem, de gravação de áudio, de tudo isso.

Por

s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Hoje em dia o repórter é cobrado. Não pode mais nos contentar em trazer um texto, ‘Olha a minha ideia genial’. Tem que se virar nos 30 e trazer fotos e convém também vídeo, uma sonora bem feita. Se vira! Tem uns caras que são especialistas nisso e conseguem quase tudo. Eu faço, óbvio que não fica muito bom, e nesse contexto de guerra, tudo é mais difícil, há uma cobrança que não vem tanto do jornal mas de mim mesmo. O jornal não me cobrava, o jornal era legal em relação a isso. Traz o que dá para trazer. Mas eu colocava a barra lá em cima, eu queria trazer uma boa matéria, eu queria ser lembrado não só pelo meu texto, mas por imagens impactantes. Então eu me esforcei, mas não sou um grande cinegrafista nem um grande fotógrafo.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Em geral é uma coisa que parte de mim. Sempre perguntam 'Fez alguma fotografia dessa pessoa que você conversou?' na hora que risca a página. Acho que é normal, mas nunca é uma exigência: 'Você vai e você precisa fazer fotos'. Nesses casos em que é preciso fazer fotos, geralmente eu vou com fotógrafo. Foi o caso de uma reportagem que eu fiz recentemente em Israel, faz dois meses. Precisava de foto, vídeo e existe um profissional adequado porque a qualidade da foto que eu consigo fazer é diferente. Eu não tenho equipamento igual, não tenho treinamento. Sei fazer, posso fazer, comprei uma câmera recentemente. É uma coisa que eu faço, mas não tem igual.

Por

y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

O meu acordo com eles inclui texto e foto. Eu mando uma seleção de fotos e eles podem usar todas. Não tem rigidez de nenhum lado. Quando é vídeo, mando uma tira, uma pré-edição do que eu fiz. Ou seja, eu decupo toda a minha produção do dia, faço essa tira de vídeo, uma edição seca, escrevo o texto, gravo o off e mando para eles. Aí eles vão finalizar lá. Foto eu já mando com tratamento, com tudo.

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Eu faço algumas fotos às vezes. Já fui para Tanzânia. Levei uma câmera do jornal e fiz vídeo, ficou uma ‘merda’, mas depois da edição ficou passável. Mas eu faço foto também. Quando precisa, eu faço. Nesse caso, a menina

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(esposa do fixer) queria fazer as fotos e eu achei legal, então ela fez. Eles sempre cobram multimídia se você vai sozinho. Você ir com o fotógrafo é um luxo, nem sempre dá a grana então você tem que fazer tudo.

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Toca praguerra

C A P Í T U L O   X I Em uma cobertura como a da guerra da Síria, a logística também deve ser um fator considerado no momento do planejamento. Entrar em um táxi, abrir o mapa e apontar para onde quer ir? Não é assim que as coisas costumam funcionar. Diante do que a cobertura exige, o jornalista passa a ser também um empreendedor, afinal precisa negociar e gerir o próprio trabalho. No caso em questão, a insegurança requer um motorista que conheça o território e esteja disposto a correr riscos. É preciso, também, estar preparado para os checkpoints — independente de qual lado se está. Durante a fiscalização vale, à propósito, falar até de futebol caso haja liberdade para isso. Ronaldo, Pelé, Robinho e Neymar. Há quem diga que certos nomes servem como uma senha.

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g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Cada caso era um caso. Tinham regiões que eram tensas de acessar e com muito checkpoint. A cada local era um planejamento e uma história diferente. Eu estava querendo ir para a região de Deir ez-Zor na fronteira com o Iraque porque estava fazendo uma matéria sobre a diferença das armas que entravam na Síria via Líbia e via Iraque e queria conversar com

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um líder tribal. Fiquei muito tempo pensando no que eu falaria no checkpoint para justificar a minha ida para um lugar desses. Aí eu vi que no caminho tinham muitas piscinas. Na Síria você não tem condomínio clube, como aqui no Brasil. Então um hábito muito comum deles, é que há pequenos clubes em vários lugares, onde se paga uma diária e pode brincar na piscina, pode jogar bola, fazer o que você quiser. Então eu vi que nessa região tinha muitos pequenos clubes. Então a gente pegava uma toalha de banho, uma mochila de turista e ia. No checkpoint paravam a gente e dávamos a nossa versão. Deu certo em todas as vezes, mas em cada região era uma estratégia diferente.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Motorista era mais difícil porque tinha que ser uma pessoa disposta a correr risco. Nesse caso, não pode simplesmente ir na rua, entrar no táxi e dizer 'Toca para a guerra'. Em Damasco estavam tentando passar uma imagem de normalidade mas eu sabia que no subúrbio o 'bicho estava pegando'. Eu queria ir lá e achei um motorista curdo que estava disposto a me levar e a gente acertou o preço. Só que eu passei por várias barreiras. A primeira é um daqueles exemplos de como ser brasileiro me ajudou. O cara parou o carro, perguntou para o motorista sobre o documento e aí olhou para mim e o motorista falou 'jornalista brasileiro', sahafi brasili. A gente passou a primeira e eu falei para ele: 'Na próxima, quando o cara parar, não fala

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'sahafi', não fala 'jornalista'. Fala 'brasileiro'. Eles adoram o Brasil. Foi assim que a gente passou as barreiras. Ele falava ‘brasileiro’. O cara olhava para mim, eu fazia um ok, falava 'Ronaldo' e aí até dava o passaporte. Tinha o carimbo de jornalista, mas eles deixavam passar e eu consegui chegar até o centro dos protestos assim.

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l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Geralmente a gente pegava táxi, mas o minder estava junto. Em tese eu não poderia me transportar sem ele, mas eu fugi. Falei que ia estar com o embaixador — eu tinha combinado com o motorista do embaixador, porque ele morava em um bairro que é popular, onde eu fui e fiz uma reportagem. Eu fui com o carro dele, não era o carro do embaixador. Até porque na época nem o embaixador ficou sabendo, foi escondido até do embaixador porque não poderia fazer isso, na verdade. E na vez que fui para Deera, fui em um carro contratado. Eu fui seguindo o pessoal da ONU e aí lá no hotel onde os militares da ONU estavam hospedados havia um serviço de aluguel de carro com motorista e eu contratei um muito bom que me ajudou. Ele conhecia o pessoal da polícia secreta e me ajudou a identificá-los.

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s a m y a d g h i r n iCobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

O motorista era na verdade um amigo/assistente do francês. Então eu conversava com o francês, dizia o que eu queria e ele dizia se era possível. Ele também era cheio de ideias, então o motorista executava, seguia o apito do francês. Eu só andei de carro, era um carrinho legal. Não peguei transporte público, em Damasco não tem metrô. Não andei de mototáxi nem nada. Foi carro e andei muito a pé também.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu combinava (com o motorista). Eu pedi a ele que a gente fosse a Homs. Pegamos um autorização no Ministério das Informação. Um papel, enfim, que possibilitasse que a gente passasse pelos controles militares e a gente foi. A gente cogitou ir para Krak des Chevaliers, que é um castelo perto de Homs e tinha tido uma série de embates. Quando a gente foi a Homs, a gente conversou com as autoridades, entrevistei o governador e fiz uma parte da apuração. A gente sentou. 'Tá, a gente vai para o castelo ou não?'. Perguntamos para as pessoas qual era a situação e concluímos que a situação era ruim, que existia um risco real e decidimos não ir. Claro, eu sou responsável de alguma maneira por ele também. Se acontece alguma coisa com ele, é uma pessoa que está trabalhando para mim. Eu sempre levo em consideração em todas as coberturas que eu faço: se o tradutor acha que é perigoso, eu não vou. Eu não vou colocar uma pessoa para arriscar a própria vida. Nesse caso a gente avaliou que não era vantajoso nem para mim nem para ele.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Na Síria tem muito checkpoint. Em Damasco tem um milhão de checkpoints. Checkpoint para tudo o que é lado. Mas é natural, em qualquer área de guerra e conflito você sempre vai ter muitos. Tinha muito dentro de Damasco porque havia um temor imenso de ataques a bomba e tudo mais. Mas como eu estava com o minder do governo, com as cartas, com as autorizações, foi tranquilo. Foram checkpoints bem tranquilos na verdade. Não foi dos mais tensos do que eu tive na vida, longe disso.

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012, 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Aí que entra de novo a questão do fixer. Obviamente que todo momento que há uma cobertura a primeira coisa que faço é abrir o mapa. Eu vou estudar o mapa, onde a gente está, os pontos de saída, de fuga. O plano B e o plano C se alguma coisa dar errado. Não somente na parte de produçãomas também de logística. Se acontece alguma coisa, se há um ataqueinesperado, uma batalha inesperada e a gente tem que sair do local e aestrada pela qual a gente veio ela está interditada, bloqueada, a gente temque ter outras rotas de fuga. Tem que estudar isso. O fixer conhece a região.Ele vê que a gente estuda, a gente conversa. 'Essa estrada é segura?' 'É''Você tem certeza?' 'Tenho'. Não tem certeza, vamos checar com pessoas delá. Vamos ver com os locais, as pessoas de confiança. Então tem toda umasérie de estudos para minimizar qualquer risco.

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Você chega e tem que se dirigir a um escritório de imprensa. Você fica lá um tempão e os caras vão te dar um papel. Sem aquele papel você não vai para lugar nenhum. É alguma coisa de país em guerra. Essa ‘porra do papel’ com o carimbo. 'Você é jornalista, você pode andar, você está autorizado'. Se você não está com aquilo, você pode ser preso. Você só passa no checkpoint com esse papel e na época tinham muitos. Uma viagem de 500 quilômetros levava quase um dia inteiro, porque você fica parando, tem fila e todo o checkpoint tem um pouco de tensão. Homem bomba sempre escolhe checkpoint para se explodir.

Ele (o fixer) tinha um carro todo fodido. Os carros lá estão todos fodidos porque não entra peça. Então você vê um monte de carro encostado. Eles só

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recebem coisas ou pela Turquia ou pelo Iraque, só que os curdos do Iraque brigam com os curdos da Síria e vira e mexe eles põem embargo e aí não entram as coisas. Então é um monte de carro caindo aos pedaços e eles usam um diesel curioso. A maioria dos campos de petróleo estava no norte e oeste da Síria. Hafez, pai do Bashar, foi muito esperto e colocou as refinarias lá para baixo, perto das áreas onde são mais alauítas porque ele queria evitar a industrialização do norte. Então quando começou a guerra, os caras lá em cima ficaram sem refinaria. Eles tinham petróleo, mas não tinham como refinar. Eles fazem umas refinarias meio tabajaras: um buraco no chão e queima e é um diesel que é um ‘merda’ e o carro quebra. Então o Barzan (o fixer) tinha o carro dele, um Hyundai, com buracos de tiro, aquelas coisas. A gente foi com o carro dele. A gente andava no carro dele.

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Cama, mesa e banho

CAP Í TULO   X I I Fazer cobertura em um país que está em guerra não é sinônimo de fome, dias sem banho e espeluncas. Na Síria é possível almoçar em um restaurante giratório com vista panorâmica da cidade, dormir em travesseiros de plumas de ganso com roupa de cama lavada e, nas horas vagas, até comprar alguns regalos para a família ou ir a uma boate. Esses detalhes dependem de onde você está baseado e da sensação de normalidade que querem passar — se você estiver com visto, por exemplo, o governo não te deixará em umabodega, são eles que decidem. Do outrolado do checkpoint, há outra Síria.

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Cobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Sobre condições na prisão: Eu não tinha banho, era uma cela pequena, eu tenho 1,69 de altura. Não tinha janela, eu não tinha noção do tempo. Eu tinha noção (do tempo) pela refeição, que eles serviam duas vezes ao dia. Eu estava contando com uns pedacinhos de barbante que tinha na cela. Eu tinha noção por isso. Comida: um ovo cozido gelado e meia dúzia de azeitonas. Até que eles serviram uma sobrecoxa de frango com sêmola de trigo. E nesse dia foi tenso porque eu já tinha entrevistado tanta gente que havia sido preso e todos eles me falavam a mesma coisa, que você tinha que ter medo quando eles servissem boa refeição porque era para você aguentar a sessão de tortura que vinha a seguir. Eles te alimentam para bater. Eu fiquei mais dois dias e eles me liberaram.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Era facílimo. Damasco tem a melhor comida do mundo. E era bem mais barato do que Estados Unidos, Europa. Não tinha falta de nada. Era maravilhoso. Fiquei em hotel 5 estrelas. Banho quente, toalha perfumada, comida da boa e paranoia 5 estrelas. Eu fiz reserva em um hotel e quando cheguei lá, não tinha lugar, e acabei ficando em um hotel que eles reservaram. Hotel excelente, mas eu fiquei em uma paranoia porque não tinha ninguém. Só tinha gente da polícia no hotel.

Por

l o u r i v a l s a n t ' a n n a

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Nunca tive nenhum problema com alimentação, tenho um organismo bem resistente e tomo cuidado também. Não como frutas como maçã, que tem a casca que e a gente come e está exposta. Eu como frutas secas e castanha e não dá problema. Eu tive sorte porque às vezes as frutas secas e castanhas podem ter fungos, principalmente as castanhas. Mas só descobri isso há pouco tempo e foi uma dieta que uma nutricionista montou para mim, para essas coberturas e sabendo o que tem nesses países.

Em Damasco nunca chegou a ter problema de abastecimento, eles conseguiram garantir isso aí. Em Deera eu não comi, passei o dia sem comer, mas à noite chegava e tinha refeição. Em Damasco os hotéis tinham comida, os restaurantes é que estavam fechados, muita coisa fechada. Na verdade tinha pouco estrangeiro em Damasco naquele momento. As ruas estavam bastante desertas porque estava tendo atentados, ataques, então não tinha muito movimento. Mas esse é um hotel principal, praticamente para jornalistas, o Sham, que significa 'Levante'.

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s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Ao contrário de outras guerras, a que eu tive mais medo foi a da Síria. Eu fiquei com tanto medo que eu mandava emails muito preocupados para o jornal, quase desesperado. Eles nunca tinham me visto assim, eu me sentia muito vulnerável. O contraste — isso que é engraçado — é que eu tomava banho quente todos os dias, tinha uma cama king size maravilhosa, comia muitíssimo bem. Na Líbia, por exemplo, eu fui três vezes e eu cheguei a ficar, na última vez que fui à Líbia cinco dias sem tomar banho, sem escovar os dentes. Fedendo, calor, grudando de tão sujo, a única comida que você tem são os biscoitinhos. Você vira um bicho, mas eu me senti menos ameaçado fisicamente. Uma guerra é muito diferente da outra. Foi muito curioso.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

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Era um hotel simples, mas normal. Água quente, cama, internet, comida. Tinha café da manhã no hotel. Nada disso era um problema. Todos os dias eu jantei sozinho. A gente terminava de trabalhar às 15, 16 horas. Ele (o fixer) ia para casa e eu ficava, trabalhava no hotel, saia para dar uma volta, ia jantar sozinho. É uma cidade normal. O centro de Damasco — menos a região histórica — é uma região razoavelmente tranquila, desde então e ainda hoje. Tinha um restaurante famoso, perto do meu hotel que ele gira em cima, esses restaurantes que vão girando devagar. Eu sabia que tinha um kibe cru famoso nesse restaurante, que é uma coisa de que eu gosto. Então eu ia lá, sozinho, sentava, comia normal. Às vezes comia um churrasquinho grego na rua, um sanduíche. Não tinha nenhum tipo de obstáculo.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Minha experiência na Síria foi muito tranquila. Era um momento muito diferente dos colegas que cobriram junto com os rebeldes. Eu não considero nem cobertura de guerra. É cobertura de conflito e tal, mas não teve ação. Sem ação. O que eu estava era fazendo quase um pós-conflito. Não é um pós-conflito mas é quase. Ver como estava o país, onde o Assad controlava e tal. Foi interessante. Eu nem fui para Raqqa agora por causa disso. Porque eu queria manter aberto esse canal lá. Se você entrar ilegalmente eles te limam.

A rede hoteleira de Damasco, da Síria, é muito boa. A Síria é uma das joias do Oriente. Damasco é a cidade mais antiga do mundo, sempre atraiu muito turista e está em um país, ao contrário de outros da região, muito secular, que sempre aceitou muito bem a diversidade religiosa e de costumes, então essa visão de um país muito fechado, muito radical, é uma Síria muito mais rural, muito mais próxima daqueles que se insuflaram contra o governo Assad. É uma Síria mais sunita, principalmente, mais empobrecida, essa é uma Síria mais conservadora. A Síria dominada pelo Assad é uma Síria muito secular e muito aberta. Isso não diminui o fato do Assad ser um ditador, que reprimiu muito o povo dele para manter o poder, mas a Síria sempre foi um país muito aberto ao turismo. Então você tem

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instalações turísticas maravilhosas. Eu não sei se era 5 estrelas, mas era um hotel muito legal em uma cidade antiga, num quarteirão judaico. Era uma antiga casa otomana-judia. Lindo, maravilhoso, que estava ali se segurando para sobreviver. Esperar passar o rolo todo para conseguir ressurgir. Além disso, você não tem a opção de ficar no hotel que você quer. Você tem que ficar nos hotéis do governo, que são hotéis relativamente bons e com um nível de segurança absurdo. Eles têm muito medo de que aconteça alguma coisa, principalmente você ser sequestrado. Eles têm um controle muito rígido fora de Damasco.

Por

t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012, 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Quando você vai para uma cobertura, você tem que abrir mão de certos confortos. Às vezes nem tomar banho dá, às vezes você fica dois dias sem tomar banho ou leva água e toma banho improvisado. Às vezes você tem a casa de alguém, de um morador local que te oferece. As pessoas são muito hospitaleiras aqui na região. Às vezes é uma pessoa de confiança do fixer. 'Ele está oferecendo a casa, vocês podem tomar banho'. Às vezes oferecem a casa para dormir. Às vezes a gente dorme no carro, em um hotel que tem ali, que funciona. É tudo muito relativo. Algumas vezes você tem que fazer sacrifício. Você está ali cheirando mal, há dois dias sem tomar banho, tudo para conseguir a história. O importante é terminar o teu trabalho para poder descansar e tal. Há situações variadas: depende muito do conflito, da região, depende das circunstâncias que a gente encontra onde a gente está. Na Síria atravessamos de volta para Turquia e dormimos lá, por praticidade e segurança. Mas muitos jornalistas dormiram em lugares improvisados: bases de rebeldes, ONGs locais, população local.

Comíamos onde dava. Em um país em guerra, a última coisa que eu vou me preocupar é comer em restaurante 5 estrelas. Preocupação apenas me alimentar o suficiente. Havia vezes que a população local nos oferecia um almoço feito em casa ou um sanduíche. A gente tomava cuidado com isso

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O S R E B E L D E S •

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porque não queríamos tirar comida de quem precisa mais. Acho que é uma questão de bom senso: quando aceitar e quando recusar educadamente. Fora isso, restaurantes na estrada, biscoitos e sanduíches que trazemos desde a Turquia. Não há uma situação única.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2012 - Aleppo (Folha de S. Paulo)

Ali a cobertura não tem muito como ouvir os dois lados. Não dá para você estar com os rebeldes, estar de um lado, cruzar o frontline e ir lá no governo e falar 'E você, o que você acha?'. Eu estou fazendo claramente um lado da história e tentando equilibrar, mostrando até nas matérias que eu estava com os rebeldes porque era a única forma de estar lá. Mas quem tem que fazer o equilíbrio é a redação. Podem fazer o outro lado, mas se você está em uma situação dessas, fazendo uma cobertura como essa, é inevitável, você faz com uma desconfiança. Por exemplo, eu estava lá com os rebeldes e estava claramente de um lado da guerra. Eles tentavam ocultar que estavam fazendo execuções lá. Eu tentei ir atrás disso. Eles estavam realmente fazendo e eu fiz uma matéria sobre isso.

Cobrir de um dos lados: Já que o equilíbrio ideal, nesse caso ouvir os dois lados, o básico do jornalismo, então o equilíbrio possível é você tentar pressionar o lado que você está cobrindo. Cobrar a eles, na medida do possível, o que o outro lado está falando. Isso você pode fazer para tentar equilibrar. Isso eu tentei fazer, mas também é interessante você ver e mostrar um lado porque se você tem essa preocupação o tempo todo de equilibrar, nesse caso eu acho que é jornalisticamente interessante você mostrar o lado, claro, criticamente o tempo todo.

Cobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l o

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O S C U R D O S E Á R A B E S •

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Fiquei na casa da mãe do fixer, em Kobani. Eles estavam reconstruindo a casa porque tinha sido parcialmente destruída no cerco do Estado Islâmico, então tinha uma sala que ainda estava toda chamuscada e meio em ruínas. A gente dormia fora, no terraço, o que muitos fazem porque é mais fresco. É muito calor lá. Eu levei um sleeping bag e a gente dormia no chão. Tinha banheiro, aquele banheiro com um buraco no chão. Sobre alimentação, não tinha muita comida, mas a que tinha era ótima, super mediterrânea. Para eles, no cerco foi um horror. Eles necessitavam de ajuda humanitária, recebiam enlatados. Eu cheguei lá, não tinha mais o cerco, então eles me receberam — eles são muito hospitaleiros, tem uma coisa de querer receber, então pode estar na merda mas vai fazer uma puta comida para você. A hospitalidade é uma coisa dos sírios. Eles faziam berinjela com tomate, cebola, arroz e um dia tinha frango que era um super luxo, tinha sopa, umas coisas com iogurte. A gente se senta no chão, eles põem uma toalha de plástico e fica todo mundo sentado, você tira o sapato para entrar em casa. Quando a gente estava na casa dos pais dele, tinha chuveiro, eu tomava banho. Outros lugares onde era mais difícil, era lencinho umedecido.

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Psíquico

CAP Í TULO   X I I I Eventos traumáticos encontram um terreno fértil quando se está em um contexto de guerra. Aos jornalistas, para protegerem a saúde mental dos impactos desse tipo de cobertura, cada um recorre a uma técnica. A maioria, porém, nega ter sido acompanhado por profissionais da área, como psicólogos. Negligência ou falta de necessidade?

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Por

g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Aquela época estava tudo muito recente, adrenalina, tudo muito intenso, e achei besteira essas coisas. Mas o efeito pós-traumático bateu com força em mim com um efeito retardado. Eu fui sentir isso um ou dois anos depois. É muito louco isso. Depois eu fiz um texto, escrevi para o Repórteres sem fronteiras — Eles ficaram sabendo que eu estava lá, conseguiram o meu contato e insistiram muito em me prestar auxílio depois que eu fui preso, depois que tudo aconteceu. É engraçado como a coisa demorou para bater em mim. Tive umas três conversas longas ao telefone com uma jornalista lá do Repórteres Sem Fronteiras e foi isso. Não procurei ajuda especializada.

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m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 e 2012 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Preparo psicológico? O meu preparo é mais de informação e físico. Eu acho que você tem que estar em boa forma física em certas situações, excelente forma física para uma cobertura dessas. Psicologicamente não tem uma preparação especial não. (No pós-guerra) é barra pesada. Você na hora faz o seu trabalho, não dá para... Mas isso fica em você. Inconscientemente eutenho as minhas defesas. Tem situações que te abalam. Em Aleppo, quandoeu estava em uma casa que (locais) abrigaram a gente, foram sensacionaise fizeram comida, foram muito legais e tal, e começaram os aviões asobrevoar e a bombardear. A gente saiu fora e eles ficaram. Naquelemomento foi muito difícil para mim porque eu me senti naquela situação: euentro, faço a matéria, saio, mas os caras ficam, eles são daqui. Eu passei porsituações que me abalaram, mas eu não sei se clinicamente pode serenquadrado em stress pós-traumático. Não dá para exagerar o que a gentepassa. É muito difícil, mas comparado com o que essas pessoas vivem é... énada!

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012, 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Além da produção e da segurança, um dos fatores também muito importante é você ter um preparo psicológico. Especialmente quando você trabalha em equipes, você está trabalhando com pessoas diferentes, de personalidades diferentes. Algumas pessoas são mais fortes psicologicamente e emocionalmente. Em situações em que há muita adrenalina as pessoas têm que manter a calma, mas nem todos conseguem, então alguém vai ter que intervir e acalmar o colega. O preparo psicológico é grande, porque é uma região que você vai ver muito sofrimento, morte, pessoas feridas. Vai ver drama psicológico das pessoas. Também tem que ter o bom senso que a equipe é formada por humanos, eu tenho que cuidar também do lado psicológico. O produtor tem que ter essa preocupação de ver se está tudo bem com o cinegrafista, com o repórter, com ele mesmo. O pós-cobertura também, porque é importante depois que a cobertura é feita, quando a gente volta para casa, ter um momento de descompressão, de baixar a adrenalina. Às vezes você é obrigado a fazer duas, três coberturas na sequência, então depois você vai ter que ter um momento de folga. A BBC tem um departamento de terapia porque alguns jornalistas sofrem de stress pós-traumáticos. Têm profissionais que o jornalista vai lá, conversa com eles.

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l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Eu faço terapia. Lá na Síria eu tive uma explosão, briguei com o minder, briguei com um repórter cubano e depois quando fui para o Irã também fiz uma coisa que não deveria ter feito, fiz uma pergunta muito provocativa em uma coletiva lá no Ministério, que foi na sequência dessa cobertura. Eu percebi que as minhas reservas (emocionais) estavam acabando, então discuti isso muito na terapia para evitar essas situações. Foram bem marcantes essas duas coberturas nesse sentido. Um aprendizado sobre manter as reservas intactas. Hoje em dia eu percebo o que é que acontece.

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Você fica sozinho, longe da família, dos amigos, em um ambiente hostil e correndo riscos, então é preciso ter reservas emocionais internas para você ficar bem com você mesmo, ter um diálogo bom com você mesmo, ser uma boa companhia para você mesmo, para te apoiar como se você fosse duas pessoas. Como se você fosse o seu amigo ali. Também fui desenvolvendo técnicas de meditação, eu uso Headspace, que é um aplicativo de meditação em inglês. Depois é fazer exercícios físicos, ter uma dieta boa, fazer alongamentos. Várias coisas que mantêm a sua rotina. Você se mantém mais parecido com o que você é quando está em casa. Isso é importante porque fazendo coisas que mantém uma continuidade com quem você é. Fica mais fácil você se manter dentro da sua identidade, do seu eixo. Essas coberturas tendem a nos tirar do eixo. Conforme os dias vão passando, depois de uma semana, você vai saindo do eixo. Ou eu, pelo menos, vou saindo do eixo. Então preciso de ferramentas para me manter. Hoje eu tenho mais capacidade de resistência do que eu tinha antes, isso mudou bastante. As pessoas não dão mesmo importância. Eu fui descobrindo com o tempo que isso era um fator importante para o trabalho mesmo.

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s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu acho que quem vai muito, quem é correspondente de guerra - é uma espécie em extinção que o cara ou a cara vive de guerra em guerra — precisa de acompanhamento psicológico, sem sombra de dúvidas porque é muito pesado. Eu conheci algumas pessoas assim, que têm uma casa, vão muito pouco mas passa 150 dias em guerra. A Síria, por incrível que pareça, com as situações de medo muito intenso que eu vivi, mas não vi nenhum morto nessa guerra. É uma guerra que eu não vi nenhum cadáver. No Egito, por exemplo, você via linchamentos. A Líbia foi muito difícil. Você caminhava em corpos, via gente com tripas para fora. Via criança com queimaduras de terceiro grau. Um cara todo quebrado tendo delírios porque estava morrendo. Voltar para casa em São Paulo — e no dia que você volta você vai para o boteco com os amigos —, é meio pesado. ‘Caramba, o que foi aquilo que eu vi?’ Tem que ter estômago, não pode ser uma pessoa muito sensível. Tem que ter sangue frio. Acho que para fazer essas reportagens

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de campo que é muito perrengue, você tem que ter maior controle. Você tem que ter a capacidade de manter a racionalidade, de manter decisões racionais, saber o que você está fazendo. Eu tive uma relação mais introspectiva de questionar algumas coisas, mas não senti necessidade de pirar o cabeção.

Por

d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu conversava muito com os meus editores antes de ir para Jerusalém. Eu sentei com todos eles, com o meu chefe, diretor e eles disseram 'A gente não quer que você se arrisque, sempre que você sentir que é arriscado, não faça. Não se sinta obrigado a fazer nada'. Esse tipo de orientação é importante saber. Você ir ou não para uma situação de guerra não vai afetar a sua carreira. Esse tipo de coisa ajuda bastante para o psicológico. Você não faz uma coisa se sentindo obrigado. Você tem um chefe que diz 'Se você quer ir, se acha que vale a pena e se você está pronto. A gente está aqui para dar todo o apoio financeiro, seguro de vida, equipamento. A gente está aqui para conversar. Se você quer fazer, a gente está aqui; mas se você não quer, isso não tem nenhuma consequência'. Isso é muito importante para mim, pelo menos. Fazer as coisas que você realmente quer, fazer porque você acha que vale a pena, que rende uma investigação interessante, que você acha que o risco é manejável. Você é a pessoa que sabe. Quando você está em um lugar desses é você que tem a sensação de segurança ou não. Você que vê as coisas, ninguém em São Paulo pode decidir por você. Na volta eu saí com alguns amigos em Beirute. Cheguei, deixei a mala no hotel e fui beber um drink. Relaxar, conversar o que tinha visto, entender um pouco melhor, porque é muita coisa que você absorve.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

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Eu tenho uma relação boa com a situação e com os momentos tensos assim. Eu entendo o meu papel, eu entendo o contexto da situação. É triste e tal, mas é algo que eu consigo lidar bem, eu não fico sem dormir. Talvez tenha uma parte importante de mim, dos meus valores, das coisas que eu acredito, da minha experiência. Tudo isso acho que vai juntando em um bolo que aí você consegue lidar bem. A maior parte das pessoas trabalhando nessa área eu vejo que consegue lidar bem com essas situações. Eu acho às vezes que há um romantismo nessa coisa muito grande. Parece que a gente está o tempo todo no limite, que a gente pode morrer a qualquer momento e tudo mais. Eu acho perigoso, mas eu acho que é um pouco menos perigoso do que parece. Acho que tem um risco controlado ali que as coisas não são tão dramáticas.

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

Às vezes a gente volta e fica meio deprê, porque eu acho que quando está lá você fica em uma mega adrenalina. Você tem que se concentrar nas matérias, conseguir chegar nos lugares, conseguir falar com as pessoas. Normalmente eu chego e fico gripada, eu fico com infecção urinária. Me dá uma baixa de resistência e eu acho que tem a ver isso, deve ser um jeito de somatizar o stress que a gente passa, mas eu não tenho nenhuma preparação. Eu faço análise e levo isso para a minha análise. Não é específico por causa da cobertura de conflitos, para stress pós-traumático e esse tipo de coisa.

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Linhaeditorial

CAP Í TULO   X I V A forma como o meio de comunicação enxerga os fatos ao seu redor tem como fatores determinantes a sua política, valores e demais influências. A linha editorial, portanto, pode nortear a apuração. Mas até que ponto os jornalistas enviados para cobrir uma guerra têm a sua cobertura influenciada por isso? A maioria defende que há liberdade, mas a edição pode mudar o processo de produção da notícia na sua última fase, a de nomeação. Presidente ou ditador Bashar al-Assad? O segundo atributo, se utilizado por alguém que está em território controlado pelo governo, certamente trará problemas para o jornalista.

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• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O G O V E R N O •

g e r m a n o a s s a dCobriu em 2011 - Damasco (Freelancer)

Nunca enviesaram matéria. Tem aquela coisa assim: terminologias. Escrevo presidente e vou ler lá na matéria publicada e está escrito ditador. Eu escrevi regime e na matéria está ditadura. Enfim, essas nuances assim de terminologia. Mas eu acho que o repórter tem que estar ciente para quem está escrevendo. Agora enviesar, sugerir que eu escreva de tal forma, ou mudar o sentido de uma frase, jamais passei por isso.

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu acho que não tem uma linha editorial que cubra os assuntos internacionais, principalmente nesse caso específico. As coisas eram decididas caso a caso, não posso dizer que teve alguma coisa da linha editorial da Folha que influenciou. Talvez seja tão fácil identificar nas outras áreas, mas na área internacional, nesse caso, eu acho difícil.

Por

l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

Eu não me lembro bem qual era a linha editorial específica do Estadão em relação à Síria. Normalmente o Estadão defende a democracia, os direitos humanos, mas de fato não era importante isso para mim. Em geral, em coberturas, eu não fico lendo editorial. Eu costumo ler. Eu leio o material das agências internacionais, dos jornais que estão cobrindo bem aquilo que

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também estou cobrindo. Em geral eu não leio os jornais brasileiros. De fato, a linha editorial do jornal ou do meio para o qual eu trabalho não tem muita importância para o meu trabalho de repórter.

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s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

Eu tinha uma espécie um pré-acordo para entrevistar o Bashar. O Bashar naquele momento tinha interesse em falar com o Brasil. Na véspera do meu embarque, os sírios me avisaram 'Traz o terno'. Porra, fiquei encantado. 'Pode deixar, vou levar o meu melhor terno' [...] Então eu saí para viajar no dia em que eu publiquei a minha primeira matéria, uma geral sobre o clima em Damasco. Só que a Folha usa 'ditador'. Quando a gente fez uma pausa no caminho para a cidade do Bashar e o negócio estava rendendo, toca o telefone do francês. 'Oi, senhora Abir', ele fala. Depois se vira para mim e fica pálido. E eu 'Caralho, o que é isso?'. Na hora entendi. Foi porque saiu a matéria. O francês só ouvia. 'Tá bom, ok, sem problema'. Ele olhou para mim e falou 'Olha, eles viram a sua matéria. Eu não sei o que você escreveu mas eles estão furiosos com você. Você tem que voltar imediatamente para Damasco e a sua licença de fazer matéria fora de Damasco está cassada'. Voltamos, foi super tensa a viagem. Eu me apresentei no escritório da Abir de manhã cedo. Ouvi um monte, ela estava furiosa. ‘Você traiu a nossa confiança, como você ousa chamar o seu anfitrião de ditador?’. Hoje eu conto rindo mas eu estava apavorado. Ela falou 'Nós não vamos te expulsar porque você é brasileiro, país amigo, mas não conte para gente para nada. Esquece a entrevista com o presidente. Esquece autorização para fazer matéria no hospital militar. Esquece tudo... Você traiu a nossa confiança’. Teve um impacto muito negativo e eu deixei de entrevistar o presidente por causa desse nome. Mas fale o que quiser, a Folha — digo isso também do ponto de vista da política — não mexe em texto. Editorialmente, não.

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d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

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A gente tem que ter em mente que cobertura internacional é mais sensível do que cobertura de política nacional. A Folha não tem interesses, nenhum jornal tem interesses na Síria. Não tem nenhuma relação entre o jornal e o governo sírio. Não tem esse tipo de preocupação. O que me afeta? A Folha tem uma política clara de moralidade. Eu sei que é a minha obrigação, pelo jornal em que trabalho, de ouvir todos os lados. Não seria razoável ir à Síria e não ouvir a oposição, ouvir o governo. Enfim, nesse sentido me afeta nisso porque a Folha a gente tem o compromisso de ouvir o outro lado. Eu sei que se eu não fizer, eu vou ser cobrado depois. Nesse sentido, sim; político, não. A Folha se refere a Bashar al-Assad como ditador. É uma decisão política, então sempre que eu escrevo um texto sobre a Síria me refiro a Assad como ditador. Diferente do New York Times que chama ele de presidente.

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y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Eu tenho uma visão geopolítica um pouco distinta do que acontece no Oriente Médio da Band, talvez um pouco mais. Mas sempre foram muito respeitadores. Nunca tivemos uma questão complexa de a gente não concordar, então foi super tranquilo. Eu também nunca tentei editorializar as coisas. Pelo contrário, tentei apenas fazer relatos e mostrar o que estava acontecendo, tentando editorializar o mínimo possível. Houve um respeito mútuo.

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012, 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

A BBC tem uma linha editorial bastante forte e estrita, a apuração rigorosa. Não vou dizer que sempre funciona, já teve falhas, isso ocorre em toda empresa. Mas tem apuração mais estrita, a preocupação com a objetividade,

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O S R E B E L D E S •

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que é muito subjetiva e relativa. A questão de fazer um material não duro, não frio, mas também humano, para dar teor, mostrar o conflito, os eventos de diferentes ângulos, de diferentes perspetivas. Então o sabor é esse. No sentido de fazer o ouvinte, telespectador ou leitor sentir onde esses jornalistas estiveram, de criar uma conexão com as pessoas que estão vivendo aquele conflito, no caso da Síria. A BBC tem um livro da linha editorial que é publicado, você tem a tua bíblia de BBC que está online, você pode baixar, ou você tem ela em livro. O Terra nunca teve isso, mas eles seguem um consenso, o jornalismo básico. Ter uma certa linha editorial que acumula todo o jornalismo mundial. Tem uma variação, aí é da empresa, mas no Terra eu discutia com os editores 'Vamos fazer dessa maneira', daí o editor 'Contanto que seja assim, vamos tentar manter nessa linha', então é uma coisa muito de seguir o bom senso.

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

(Chamar Bashar al-Assad de ditador) atrapalha todas as pessoas da Folha porque a porcaria da embaixada lê e dá a maior dor de cabeça. Eles não querem dar visto de jornalista. 'Você chama o nosso presidente de ditador'. Isso com certeza não facilita a nossa vida com relação a contatos do governo sírio, mas ao mesmo tempo, o cara é um ditador. Vai escrever o quê? Não tem muito o que discutir. Sobre a linha editorial, a liberdade é 100%.

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O papelna guerra

CAP Í TULO   XV A maioria discorda que ter feito esta cobertura mudou o curso da história. Outros acreditam que o papel foi o de registro. Em todos os casos, a assimilação dos jornalistas sobre o seu papel na guerra da Síria se volta para a finalidade do jornalismo: testemunhar e compartilhar algo novo para quem está do outro lado, se agarrando muitas vezes ao seu papel social. Essa construção da identidade não surge à toa, ela vem do imaginário social, passa pela sociedade e se reflete no próprio discurso do profissional. O papel do jornalista é fazer jornalismo.

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• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O G O V E R N O •

Por

m a r c e l o n i n i oCobriu em 2011 e 2012- Damasco e Aleppo (Folha de S. Paulo)

Papel do jornalista, em qualquer situação, é mostrar o que está acontecendo. Tentar fazer o que as pessoas não podem fazer: que é ir no lugar.. E nesse caso da Primavera Árabe os jornalistas tiveram um acesso a coisas que não tinham, porque eram países muito fechados. Estar lá, entender o que está acontecendo, tentar checar com a realidade, com o olhar de quem está lá e poder contar, é muito difícil. Eu acho que seria pretensioso cumprir o papel, mas eu acho que sim, eu acho que eu fiz... É muito frustrante e muito doloroso porque você está vendo aquela destruição toda e porque é imprevisível a cobertura de guerra. Você não vai planejar o que vai fazer nos próximos dias. Não dá. Cada dia muda muito, então tem uma hora que você tem que ir embora, tem que sair e aí você não pode fazer as coisas que você gostaria de fazer.

Por

l o u r i v a l s a n t ' a n n aCobriu em 2012 - Damasco (Estadão)

O meu papel em qualquer cobertura é de o contar as histórias das pessoas, das pessoas comuns, principalmente. Chegar até as pessoas comuns, que são parecidas com as audiências dos veículos para os quais eu trabalho, nesse caso o Estadão, e tentar ser o mais fiel possível em relação à história dessas pessoas, as razões pelas quais as pessoas sentem e fazem o que fazem. Eu acho que esse é meu trabalho e às vezes de análise, de contextualização história. Eu me vejo como uma ponte entre os fatos, o que está acontecendo e a audiência. Tento interferir o mínimo possível ao contar essas histórias.

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Por

s a m y a d g h i r n i  Cobriu em 2012 - Damasco (Folha de S. Paulo)

O meu papel foi o papel de todo enviado especial que é trazer relato em primeira mão de uma situação de muita importância estratégica, importância ambiciosa. Você trabalha em um veículo que acham por bem mandar alguém para ter um olhar exclusivo, um olhar sob uma determinada história. Então você trate aí, dentro das suas limitações, muitas limitações — de orçamento, de circulação, de pressão, de acesso à informação, em um contexto muito adverso — faça o seu melhor para trazer uma matéria palatável, que valia a pena o investimento. Para o leitor ler e dizer 'Puta, que interessante essa matéria que eu vi na Folha'. Esse é o meu objetivo. Para o cara ver, nem que seja alguém que por acaso viu a TV Folha, e dizer 'Nossa, eu vi um vídeo muito doido sobre uma cidadezinha da Síria que está na divisa lá entre os rebeldes e o governo e achei muito legal'. Esse é o meu papel. Não vejo nem que outra resposta poderia dar. Mas às vezes você faz isso bem e outras fazem isso não tão bem. Eu acho que dentro da dificuldade que foi essa cobertura, muito difícil, começou mal, na primeira matéria o governo já rompeu comigo, eu acho que eu consegui trazer alguma coisa e até são matérias que trouxeram algum diferencial, até aquele momento.

Por

d i o g o b e r c i t oCobriu em 2014 - Damasco e Homs (Folha de S. Paulo)

Eu não vejo isso como uma coisa específica na Síria, acho que eu cumpri com o papel que eu cumpro diariamente com a minha função, que é contar ao leitor uma coisa que ele não sabe. O nosso leitor não vai à Síria, não tem acesso às informações, não lê os jornais sírios. Ele não tem esse detalhamento. Então eu acho que eu cumpri um papel social nesse sentido. Eu fui capaz de estar em um local que o leitor tem interesse, conversar com as pessoas — entrevistar o chanceler sírio, que é uma pessoa super importante, e ouvir dele o que está acontecendo, qual a visão do governo, o que avaliam, o que vão fazer. Acho que isso é uma informação fundamental

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para o leitor. Poder contar 'Olha, em Damasco é assim. É um lugar que você dorme com o vidro da janela tremendo, o lugar que bairros inteiros em Homs foram destruídos. É um país que para ir de um ponto A a B você precisa de uma autorização militar’. Acho que esse tipo de informação tem um papel social importantíssimo para que as pessoas entendam melhor a guerra. Se a gente consegue contar a visão do governo, das pessoas que vivem embaixo do poder do governo, a narrativa das pessoas que moram no campo de refugiados, isso não tem preço.

Por

y a n b o e c h a tCobriu em 2017 - Damasco, Aleppo e Homs (Freelancer)

Só registrei a história, não tem papel algum. Não acho que muda nada. Acho que o nosso papel como jornalista muda muito pouco a realidade das coisas. Em geral a gente só faz um registro histórico. Eu acho que essa é a nossa maior missão. Eu acho que é muito arrogante achar que a gente pode, de fato, alterar o rumo do mundo. Não tenho muita fé nisso não. Acredito que tudo isso precisa ser registrado. Precisa ser muito registrado. Nós, jornalistas, fazemos o rascunho da história. Somos as testemunhas que vão lá retratar em primeira mão o que a gente vê. E mais do que isso, retratar com os valores que nós temos. Então a visão de um brasileiro e a visão de um americano são distintas diante daquele cenário. É importante que nós também possamos relatar o nosso ponto de vista e como a gente vê o mundo, aquilo que está se passando diante da gente. Então eu acho que o meu papel, pelo menos, como eu me vejo, são duas coisas: uma, tentar mostrar para além da propaganda e além do senso comum e fazer um registro histórico disso. Eu acho que as pessoas precisam saber o que está acontecendo nesses lugares, é claro que elas precisam saber. Mas isso não significa que necessariamente esses relatos sejam capazes de alterar significativamente o curso da história. Apesar de fazerem a gente acreditar que sim, eu tenho a impressão de que não. Que o que aconteceu em Aleppo, o que aconteceu em Mossul já aconteceu em vários lugares e vai continuaracontecendo. Está acontecendo agora na Palestina. A ideia de que o mundocaminha inexoravelmente para algo mais justo, é algo que eu realmente nãoacredito.

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t a r i q s a l e hCobriu em 2011, 2012, 2013 - Aleppo (BBC e Terra)

Você viu uma revolução começar com tanta paixão, uma causa justa se você for pensar; mas a coisa se tornou muito complexa e frustrante para as pessoas de lá. E frustrante para os jornalistas porque não apenas eu, mas outros colegas, a gente parou e se deu conta 'Poxa, a gente está fazendo tanta matéria, tentando mostrar os crimes dos dois lados — porque a gente não falava só o governo sírio, mas também os rebeldes, os jihadistas, os crimes que cometiam — mas a comunidade internacional não fazia nada para resolver isso’. Então era uma frustração que veio até recentemente. Parecia que quanto mais a gente cobria, ano após ano, nada mudava. É aquela coisa 'O que eu estou fazendo? não estou ajudando em nada'. Passei por um pouquinho de stress pós-traumático e depressão no sentido de que eu não sei mais o que eu estou fazendo aqui, eu não estou ajudando as pessoas. Vendo tanta morte, vendo pessoas sofrendo. Depois me dei conta de que a melhor maneira de fazer o meu trabalho é continuar fazendo o meu trabalho. Eu não tenho como ajudar todo mundo, mas se eu conseguir ajudar uma pessoa, eu já fiz o meu trabalho, o jornalismo já se justifica. Tanto é verdade que pela TV3 a gente fez uma matéria com um rapaz sírio que estava paralisado na época que ele levou um tiro de um franco-atirador e tinha um sonho de estudar no exterior, de ter um tratamento médico no exterior. Por acaso, lendo a nossa matéria, o governo espanhol deu uma bolsa de estudos para ele e também vai oferecer tratamento médico melhor. Ali eu me dei conta que isso é o que vale do jornalismo. Talvez não tenha como ajudar a coletividade toda no sentido mais amplo, mas mesmo assim é possível no sentido de que quando você expõe as atrocidades você move os canais políticos e diplomáticos para que alguém faça alguma coisa, nem que seja um pouco. Mas do ponto de vista individual ali eu acho que eu atingi um objetivo. Mas vamos dizer assim, parte daquela frustração se foi, porque se justificou. Me dei conta de que o trabalho do jornalista ainda é muito relevante e se não fosse pelas coberturas que eu e meus colegas fazem — jornalistas em geral, tanto os estrangeiros quanto os locais, principalmente os locais, que arriscam a sua vida ainda mais — o conflito seria ainda pior.

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O S R E B E L D E S •

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tinha um brinquedinho que era assim, o avô dele dirigia um caminhão, a casa dele era assim assado, o pai dele tinha uma barbearia. Você vai prestar muito mais atenção nisso e você vai ter muito mais empatia com refugiados de entender por que cazzo que o cara está saindo e enfrentando tudo isso. Eu acho que nesse sentido, para o nosso público, eu acho que aumenta a empatia. Muito mais do que você simplesmente estar reproduzindo matéria de agência internacional — que são ótimas e que têm uma enorme experiência —, mas o fato de ir lá e conseguir contar as histórias e a cara das pessoas, eu acho que isso faz uma diferença, mas isso não vai mudar nada na guerra da Síria.

Por

p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

A nossa capacidade de influenciar alguma coisa é nula, ainda mais escrevendo em português, mesmo que eles traduzam algumas coisas, o que aumenta um pouco o alcance. Por outro lado, é aquela história que é um clichê, mas é importante: você bota a cara nas coisas. Você faz uma matéria mostrando que daqui saiu o Alan Kurdi, que ele gostava da Vila Sésamo, ele

• Á R E A C O N T R O L A D A P E L O S C U R D O S E Á R A B E S •

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A guerra nãotem voz de mulher

CAP Í TULO   XV I Ao longo das entrevistas, a voz de Patricia não destoou. Ela continuava afinada e sempre trazia semelhanças com os outros. Era uma só voz. Ao falar sobre equipamentos de segurança, porém, ela adicionou à lista o véu, que sempre leva na mala. Só aPatrícia trouxe essa questão. Foi aí quea sua voz se transformou. Entre oitoentrevistados, ela é a única mulher. Aguerra pode ter voz de mulher?

Chador

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p a t r i c i a c a m p o s m e l l oCobriu em 2015 e 2016 - Norte da Síria (Folha de S. Paulo)

A gente tem muito mais vantagem. Muito mais. Sabe por quê? A gente tem acesso a 50% da população que os homens não têm. Qual é a mulher que vai deixar você entrar na casa dela, contar a vida dela inteirinha, vai se expor em um país conservador desses? Eu fui para o Iraque fazer a matéria de escravas sexuais. Quem vai relatar uma experiência de estupro sistemático para um homem? Na Índia teve um estupro coletivo em um ônibus. Fui fazer uma matéria e falei com várias mulheres que tinham sido vítimas. Você acha que um homem faz isso? E tem outra coisa: como a gente é vista como ‘café com leite’, isso facilita a nossa vida. 'Ah, uma mulher...'. Você é vista como menos ameaçadora e você consegue se aproximar mais das pessoas. Para você entrar na vida das pessoas, conversar com elas e ganhar uma certa intimidade — Para fazer o livro (Lua de mel em Kobani) eu tive que conviver muito com a família, ficar com eles. Ser mulher tem muita vantagem porque nessas sociedades mais conservadoras as mulheres não se abrem com um homem desconhecido. Tem alguns lugares que são ruins para mulheres, não dá para dizer que não. Que não é super seguro e para mulher é menos seguro. A gente perde em movimentação externa, em alguns lugares uma mulher andando sozinha não rola, você vai precisar de algum homem para ir junto com você. É um saco! Ou às vezes você não é levada a sério. Uma vez estava no Afeganistão com soldados afegãos e só tinha eu de mulher, por acaso. Era um chá com os líderes tribais e aí o cara ia cumprimentando as pessoas. Ele chegou a mim e me pulou. É um vácuo, é uma não-pessoa. Tem lugares que o papel da mulher é totalmente diferente.

Hijab

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