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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO PARAN CENTRO DE CINCIAS JURDICAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    SAULO DE TARSO SILVESTRE SANHUEZA MANRIQUEZ

    DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E LIVRE CONCORRNCIA

    CURITIBA 2011

  • SAULO DE TARSO SILVESTRE SANHUEZA MANRIQUEZ

    DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E LIVRE CONCORRNCIA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Lus Alexandre Carta Winter.

    CURITIBA 2011

  • SAULO DE TARSO SILVESTRE SANHUEZA MANRIQUEZ

    DEMOCRACIA, DESENVOLVIMENTO E LIVRE CONCORRNCIA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, da Pontifcia Universidade Catlica do Paran, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre.

    COMISSO EXAMINADORA

    ___________________________________________

    Prof. Dr. Lus Alexandre Carta Winter Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    __________________________________________

    Prof. Dr. Fbio Tokars Centro Universitrio Curitiba

    ________________________________________

    Prof. Dr. Danielle Anne Pamplona

    Pontifcia Universidade Catlica do Paran

    Curitiba (PR), 29 de abril de 2011.

  • Dedico este trabalho minha me, Nelva Terezinha Silvestre, que todos os dias demonstra, com palavras e aes, o significado da renncia, da bondade, da pacincia e do amor incondicional.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus Pai todo poderoso e ao seu Filho e meu Senhor, Jesus Cristo, pela minha vida e por tudo que tenho; por todas as vezes que fui perdoado; e pela Graa salvadora manifesta nas turbulncias existenciais.

    Ao Santo Padre Joo Crisstomo, pelos ensinamentos que resgataram em mim a esperana e que me convidam a voltar para o caminho da Verdade.

    Ao meu professor orientador Lus Alexandre Carta Winter, pelas orientaes, pela pacincia beneditina, pela compreenso, pela amizade e por todo apoio dado a mim desde os tempos da graduao.

    minha me Nelva, pelo suporte emocional, espiritual e material aos meus estudos. professora Fabiane Bessa, pela amizade, por todo apoio e por ter me ensinado a dar

    os primeiros passos como pesquisador. Ao meu antigo orientador, Alexandre Ditzel Faraco, por ter me acompanhado durante

    parte do mestrado e pelas orientaes acadmicas e espirituais. Ao meu amigo Marcus Paulo Rycembel Boeira, pelos ensinamentos e orientaes e

    por ter me mostrado que h uma Teoria do Estado a ser resgatada. Ao meu confessor, Padre Jos Maria, pelos sbios conselhos. Aos professores Luiz Alberto Blanchet e Roberto Ferraz pelo apoio. s professoras Heline Sivini Ferreira, Cinthia Obladen de Almendra Freitas e Flavia

    Cristina Piovesan pela pacincia, pelo apoio e por terem torcido por mim. professora Marcia Carla Pereira Ribeiro pela compreenso e apoio. Ao professor Alvacir Alfredo Nicz, pelo apoio e amizade. A todos os meus amigos e colegas de mestrado que me incentivaram e apoiaram. minha namorada Ana Caroline Staben, por todo carinho e apoio. Karin Silvestre, pelas oraes. s minhas amigas Eva Curelo e Vernica Krauss, por toda ajuda, por se preocuparem

    comigo e torcerem por mim.

    Priscilla Bueno, pelos ajustes emergenciais que fez ao meu trabalho. professora Danielle Ane Pamplona e ao professor Fbio Tokars, pelos apontamentos

    feitos durante a defesa de minha dissertao e pelos conselhos que procurarei levar em conta na continuidade da minha vida acadmica.

  • Durante duzentos anos serramos, serramos e serramos o galho sobre o qual estvamos sentados. E no final, muito mais depressa do que algum jamais previra, nossos esforos foram recompensados e despencamos. Mas, infelizmente, houve um pequeno engano. O que nos aguardava l embaixo no era no final das contas, um canteiro de rosas, mas uma fossa sanitria entulhada de arame farpado.

    George Orwell

  • RESUMO

    O estudo analisa a relao entre democracia, desenvolvimento e livre concorrncia. Considerando que a democracia possui os aspectos do fundamento (voto dos cidados), do funcionamento (tipos de democracia) e da finalidade (realizao dos direitos fundamentais), busca-se trabalhar com uma definio que os albergue e permita discernir o que daquilo que no democracia. Para tanto, a anlise da democracia visa: identificar o campo semntico que a caracteriza (direitos civis e polticos; eleies livres e competitivas; pluralismo; liberdade de expresso; fontes alternativas de informao) e os elementos que a condicionam (desenvolvimento e economia de mercado); facilitar a compreenso da democracia constitucionalmente delineada; verificar as possibilidades de participao poltica para alm das eleies. Discute o desenvolvimento a partir da anlise de diversas perspectivas e adota aquelas que se complementam, apresentando-o como um processo, cuja finalidade a remoo de fontes de privao (misria; ausncia de liberdades civis e polticas e de oportunidades econmicas; precariedade nos servios pblicos). Tal processo liga o desenvolvimento democracia, pois esta permite que as pessoas sejam no apenas destinatrias, mas tambm agentes do desenvolvimento. Assim, o desenvolvimento contribui para a realizao das finalidades da democracia e esta, ao oportunizar a participao poltica, para as finalidades daquele. As perspectivas do desenvolvimento so identificadas na histria brasileira, enfatizando-se a atual situao das oportunidades econmicas para o empreendedorismo e a gerao de empregos. A partir da distino entre os modelos de sistema econmico, discute a livre concorrncia, mostrando a sua ligao com a economia de mercado, a qual importante para o desenvolvimento e uma condicionante da democracia. luz do direito brasileiro, analisa a relao da concentrao econmica com a poltica de financiamento adotada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social, os impactos desta para o desenvolvimento, para a distribuio de recursos polticos e problematiza o papel do Conselho Administrativo de Defesa Econmica (CADE) diante disso. Em seguida, aborda a predominncia da radiodifuso aberta - especialmente da televiso - como meio de informao e, analisa o caso da TV digital, problematizando, sob o prisma da democracia, o papel do governo brasileiro no tocante concentrao no setor, bem como a atuao do CADE no caso.

    Palavras-chave: Democracia. Pluralismo poltico. Participao poltica. Desenvolvimento. Oportunidades econmicas. Poltica desenvolvimentista. Recursos polticos. Competio poltica. Livre concorrncia.

  • ABSTRACT

    The study analyses the relationship between democracy, development and free competition. Considering that democracy has aspects of foundation (citizen votes), operation (types of democracy) and finality (realization of fundamental rights), we seek to work with a definition which encompasses them and allows to discern what is and isnt democracy. Thus, the analysis of the democracy aims to: identify the semantic field which characterizes it (civil and political rights; free and competitive elections; pluralism; freedom of expression; alternative sources of information) and the elements which condition it (development and market economy); facilitate the comprehension of the democracy constitutionally described; verify the possibilities of political participation beyond the elections. Discusses the development starting with the analysis of several perspectives and adopts those which complement each other, presenting it as a process with the finality of removing the sources of divestment (misery; lack of civil and political freedom and economical opportunities; precarious public services). Such process connects development to democracy because it allows people to not only be receivers, but also agents of development. Thus, the development contributes to the realization of the finalities of democracy, which makes possible the political participation for the other's finality. The perspectives of development are identified in the Brazilian history, emphasizing the current situation of the economical opportunities for entrepreneurship and work generation. From the distinction among models and economical system, we discuss free competition, showing its connection with the market economy, which is important for development and is a condition of democracy. In light of Brazilian law we analyze the relationship of economical concentration with financing policy adopted by the National Bank for Economical and Social Development, the impact this has on development, on distribution of political resources and the problem of the Administrative Council for Economical Defense (CADE) role in light of this. Following, we discuss the predominance of open broadcasting, especially in television, as means of information, and analyze the problematic of the digital TV case with a democracy perspective, the role of the Brazilian government regarding concentration in the sector as well as CADE action in the case.

    Key words: Democracy. Political pluralism. Political participation. Development. Economical opportunities. Developmental policy. Political resources. Political competition. Free competition.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ...................................................................................................................11 2 DEMOCRACIA...................................................................................................................21 2.1 ASPECTOS DA DEMOCRACIA .....................................................................................22

    2.2 CONCEITOS DE DEMOCRACIA ...................................................................................25 2.3 DEFINIO DE DEMOCRACIA ....................................................................................27 2.4 MODELOS DE DEMOCRACIA.......................................................................................31 2.4.1 Democracia direta..........................................................................................................31

    2.4.2 Democracia da civitas e repblica moderna................................................................36 2.4.3 Democracia representativa ...........................................................................................39 2.4.3.1 Democracia representativa no Estado Liberal ..............................................................41 2.4.4 Democracia semidireta..................................................................................................46 2.5 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA CONTEMPORNEA.....................................47 2.5.1 A questo da poliarquia ................................................................................................49 2.5.2 O pluralismo...................................................................................................................50 2.6 ELEMENTOS CONDICIONANTES DA DEMOCRACIA .............................................51 2.7 DEMOCRACIA E PARTICIPAO................................................................................53 2.7.1 Internet e participao ..................................................................................................58 2.8 O QUE NO DEMOCRACIA .......................................................................................62 2.8.1 Democracia consolidada e a questo do significante vazio ........................................65 2.9 A DEMOCRACIA BRASILEIRA.....................................................................................68 2.9.1 Pluralismo poltico na Constituio .............................................................................69 2.9.2 Liberdades civis e polticas ...........................................................................................71 2.9.3 Direitos sociais ...............................................................................................................74 3 DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA ....................................................................75 3.1 DESENVOLVIMENTO.....................................................................................................76 3.1.1 Breve histria da discusso sobre o desenvolvimento ................................................77 3.1.1.1 Desenvolvimento como industrializao e crescimento econmico ............................77 3.1.1.2 Teoria da dependncia ..................................................................................................79 3.1.1.3 Surgimento de novos elementos caracterizadores do desenvolvimento e do subdesenvolvimento .................................................................................................................82 3.1.1.4 O ndice de desenvolvimento humano .........................................................................84

  • 3.1.1.5 O Desenvolvimento como liberdade ............................................................................84 3.1.2 Desenvolvimento e democracia.....................................................................................89 3.1.2.1 Desenvolvimento e liberdades polticas e civis............................................................91 3.1.2.2. Desenvolvimento, pobreza, educao e democracia ...................................................92 3.1.2.3 Desenvolvimento, corrupo e democracia..................................................................95 3.1.3 Desenvolvimento no Brasil............................................................................................95 3.1.3.1 A revoluo industrial brasileira (1930-1945)..............................................................96 3.1.3.2 De 1946 a 1954.............................................................................................................98 3.1.3.3 Plano de metas ..............................................................................................................98 3.1.3.4 De 1961 a 1964...........................................................................................................102 3.1.3.5 O desenvolvimento durante o perodo ditatorial ........................................................104 3.1.3.6 De 1930 Nova Repblica.........................................................................................109 3.1.3.7 Nova Repblica ..........................................................................................................110 3.1.3.8 Direitos sociais e IDH ................................................................................................116 3.1.3.9 ndice de oportunidades humanas...............................................................................122 3.1.3.10 Oportunidades econmicas.......................................................................................124 4 LIVRE CONCORRNCIA, DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA .................129 4.1 LIVRE CONCORRNCIA..............................................................................................130 4.1.1 Sistemas econmicos....................................................................................................131 4.1.1.1 Sistema econmico tradicional...................................................................................132 4.1.1.2 Sistema de autoridade (de economia centralizada, coletivista ou planificado) ..........133 4.1.1.3 Sistema de autonomia.................................................................................................138 4.1.2 Os papis histricos do Estado para a livre concorrncia .......................................139 4.1.3 Importncia geral da livre concorrncia ...................................................................142 4.1.4 Direito concorrencial no Brasil ..................................................................................143

    4.1.4.1 A concentrao de empresas.......................................................................................145 4.1.4.1.1 Anlise dos atos de concentrao ............................................................................147 4.2 LIVRE CONCORRNCIA E DESENVOLVIMENTO..................................................149 4.2.1 Condutas.......................................................................................................................149 4.2.2 Livre concorrncia, empreendedorismo, desconcentrao e poltica desenvolvimentista................................................................................................................150 4.3 LIVRE CONCORRNCIA E DEMOCRACIA ..............................................................157 4.3.1 Livre concorrncia, meios de comunicao social e democracia ............................160 4.3.1.1 Meios de comunicao social .....................................................................................162

  • 4.3.2 Meios de comunicao social no Brasil......................................................................166 4.3.2.1 Radiodifuso...............................................................................................................166 4.3.2.2 TV por assinatura .......................................................................................................169 4.3.2.3 Meios impressos .........................................................................................................170

    4.3.2.4 Internet........................................................................................................................172 4.3.3 O CADE e a concentrao dos meios de comunicao: o caso da TV digital ........177 4.3.3.1 A TV digital e o CADE ..............................................................................................178 5 CONSIDERAES FINAIS............................................................................................187 REFERNCIAS ...................................................................................................................196

  • 11

    1 INTRODUO

    O presente estudo baseia-se na ideia de que existe uma relao entre democracia, desenvolvimento e livre concorrncia. Na abordagem de cada um desses temas possvel perceber tanto pontos de tangncia entre eles como uma dinmica de mtuo reforo. No entanto, a percepo dessa dinmica entre os temas est vinculada anlise da construo histrica dos mesmos. Compreend-los a partir da significao que vo adquirindo ao longo do tempo contribui para identificar o tipo de relao que eles mantm. De maneira isolada, os termos democracia, desenvolvimento e livre concorrncia, possuem um campo semntico que lhes peculiar, ou seja, possuem elementos que lhes do sentido. Tais elementos, paulatinamente, foram se agregando a essas palavras, dando a elas novos contornos. Ignorar ou subverter elementos do campo semntico pode alterar a compreenso das prprias palavras. Ocorre que, em seus respectivos campos semnticos, democracia, desenvolvimento e livre concorrncia, podem, conforme os arranjos polticos e institucionais de cada Estado, possuir diversos elementos que so comuns e tambm interligados. As democracias contemporneas possuem institutos e fatores subjacentes que as viabilizam. No h democracia que prescinda de liberdades civis e polticas; de direitos fundamentais formalizados ou reconhecidos pelo costume. Os direitos civis lastreiam os direitos polticos; limitam a atuao do Estado, pois se prestam a impedir o arbtrio (v.g. direito vida, legalidade, garantias processuais, proibio da tortura, etc.) e permitem a existncia de uma sociedade civil independente (v.g. direito de propriedade, o qual informa a livre iniciativa). A previso de liberdade e igualdade poltica viabiliza os processos eleitorais e permite a participao poltica para alm desses processos.

    Ocorre que a liberdade poltica s pode ser assim chamada se ela traz consigo a possibilidade de fazer escolhas entre polticas alternativas, a qual depende de instituies que assegurem o pluralismo poltico e social. Na ausncia de tal possibilidade tem-se um engodo, uma encenao plebiscitria capaz de encobrir regimes tirnicos.

    A liberdade poltica no se resume aos direitos polticos de poder votar e ser votado; abrange a possibilidade de os cidados formularem polticas e comunic-las s pessoas, o que exige as liberdades de conscincia, de crena e de expresso, bem como fontes alternativas de informao.

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    No intuito de melhor demonstrar o que aqui se est afirmando, o primeiro captulo deste estudo parte da abordagem dos trs aspectos da democracia apontados por Giovanni Sartori: fundamento, funcionamento e finalidade. O fundamento diz respeito legitimidade. H o fundamento onde h cidados livres e iguais juridicamente, aptos a participar por meio do voto na poltica. O funcionamento refere-se forma, intensidade e frequncia pela qual se arranja o fundamento, ou seja, traduz-se nos tipos de democracia (direta, semidireta ou representativa). J a finalidade abarca a realizao dos direitos fundamentais do homem, colocando o Estado a servio das pessoas. A partir da compreenso desses aspectos, o primeiro captulo procura identificar qual a definio de democracia que os alberga.

    O objetivo central de desenvolver-se um estudo partindo de uma definio estabelecer limites que permitam discernir o que e o que no democracia e tambm contribuir para esclarecer as diferenas entre definio de democracia e tipos de democracia. Para tanto, aborda-se, de forma sucinta, as experincias e os debates sobre a democracia elaborados na histria. Se as democracias contemporneas possuem os traos caractersticos que a teoria da democracia lhes confere, devido existncia de um processo histrico que as precedeu, legando a elas um arcabouo que no pode ser desconsiderado, sob pena de tornar arbitrrias todas as definies de democracia.

    Com base na distino entre os tipos de democracia, e levando em conta que a democracia deve permitir que os indivduos influam na poltica por meios que vo alm dos processos eleitorais, feita uma reflexo sobre a participao poltica nas democracias contemporneas que procura identificar as reais possibilidades abertas a ela, no a tratando, como amide se faz, como um tipo de democracia, a chamada democracia participativa, a qual pode, ao ser apresentada por meio de diversas propostas, conforme o alvitre de acadmicos e polticos, assumir contornos bastante imprecisos. Nessa reflexo, problematiza-se a participao na internet, salientando-se que, mesmo diante das novas oportunidades participativas por ela trazidas, temerrio considerar que nos complexos Estados modernos, nos quais a poltica ocupa um lugar acessrio na vida das pessoas, mormente em pases em desenvolvimento, que a internet possa ser num futuro prximo um substitutivo para a atividade congressual (na medida em que oportuniza a realizao de votaes mais constantes) ou constituir-se numa esfera pblica virtual independente da esfera pblica real.

    Vale destacar que a breve exposio sobre tipos histricos de democracia tambm visa tributar para a compreenso do modelo de democracia delineado pela Constituio de 1988. Num primeiro momento, uma abordagem nesse sentido pode parecer bvia e at mesmo dispensvel, mas no o . Tendo-se em mente que nas sutilezas da dialtica poltica, idelogos

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    de determinados tipos de democracia tentam forar uma associao artificial entre os tipos que defendem e o modelo constitucional, a compreenso do verdadeiro modelo estabelecido pela Constituio torna-se fundamental. Assim, pretende-se trazer a discusso da democracia para o plano concreto, para a realidade social, poltica e jurdica brasileira.

    A Constituio de 1988 consagra a democracia representativa e traz institutos de democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular). A presena desses institutos no modifica o modelo constitucional e, por essa razo, devem ser interpretados no conjunto do sistema representativo.

    Como uma tpica democracia contempornea, a democracia brasileira contempla direitos civis e polticos, e elege o pluralismo poltico (art.1, V da Constituio) como um de seus fundamentos. No obstante, o Estado Democrtico brasileiro prev direitos sociais que, quando promovidos, podem implicar na remoo de privaes que inibem a participao poltica.

    Compreender que o processo democrtico possibilita que as pessoas formulem polticas e comuniquem-nas, faam escolhas entre as polticas alternativas que se apresentam

    no espao pblico e que essas possibilidades podem ser garantidas ou reforadas pela promoo de direitos sociais, oportuniza a discusso sobre o desenvolvimento.

    As primeiras investigaes tericas sobre o desenvolvimento tratavam-no como um sinnimo de industrializao e de crescimento econmico (auferido por meio da distribuio de renda per capita). A partir do final da dcada de 1960, a incluso de variveis no econmicas ao tema fez com que gradativamente ele fosse entendido como um problema humano e no apenas econmico. Extenuou-se, na discusso sobre o desenvolvimento, a distino acadmica, diga-se entre fatores econmicos e no econmicos. Entre ns, Luiz Carlos Bresser Pereira, em obra publicada em 1977, j considerava o desenvolvimento como um processo que desencadeia, de forma tendentemente contnua, mudanas sociais que melhoram a qualidade de vida da populao. No entanto, mesmo com o surgimento de novas abordagens e com a insero de novas variveis caracterizadoras do desenvolvimento, o tratamento sinonmico entre este e o crescimento econmico persistiu at os anos 1990, quando ento surgiu o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organizao das Naes Unidas, que provocou uma ruptura com esse tratamento. Contudo, vale dizer, o IDH no dispensou o crescimento econmico, mas vinculou-o aos elementos da educao e da longevidade.

    Com a obra Desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen, o desenvolvimento passou a ser visto como um processo de expanso de liberdades substantivas, que envolvem

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    liberdades civis e polticas, liberdades e oportunidades econmicas, oportunidades sociais (destinadas ao combate da extrema pobreza, do analfabetismo e oferta de servios pblicos ligados seguridade social, tais como os servios mdico-hospitalares e os sistemas de amparo aos desempregados adequados). Essas liberdades so a finalidade do desenvolvimento, no entanto, elas tambm so consideradas por Sen como instrumentais, porque ao serem promovidas tornam-se tambm meios para o desenvolvimento.

    Portanto, pode-se dizer que as finalidades da democracia e do desenvolvimento so semelhantes. A democracia tem por fim promover os direitos fundamentais da pessoa, os quais podem ser arranjados numa ordem estatal de vrias maneiras: ou priorizando-se os direitos civis e polticos ou buscando, concomitantemente com estes, a ampliao e a realizao dos direitos sociais. Contudo, preciso que se aceite que os direitos civis e polticos precedem os sociais. O fito primeiro da democracia assegurar os direitos que justificam e so funcionais para a existncia dela e, por essa razo, no podem ser preteridos sob o pretexto da promoo os direitos sociais.

    Para a democracia, os direitos sociais desempenham um papel complementar. Promov-los significa retirar ou mitigar privaes materiais que afetam o funcionamento da democracia. Pessoas famintas, desnutridas ou doentes podem tornar-se apticas em relao poltica. Uma educao deficitria influi negativamente na capacidade de os indivduos formularem polticas e comunic-las e tambm prejudica a compreenso e o discernimento das informaes apresentadas pelos meios de comunicao social. O desemprego e a falta de liberdades econmicas traduzem-se em perda de autonomia e abrem espao para polticas desvirtuadas e demaggicas de seguridade social.

    Por outro lado, o adequado funcionamento das instituies democrticas possibilita que as pessoas participem do processo de desenvolvimento, no apenas como destinatrias das polticas desenvolvimentistas, mas tambm como agentes, e permite que problemas que entravam o desenvolvimento, como o caso da corrupo, sejam enfrentados. Compreende-se assim, tal como prope Sen, que a democracia um elemento que compe o campo semntico do desenvolvimento.

    Para tal compreenso, o segundo captulo procura mostrar algumas abordagens sobre o desenvolvimento, situando-as em seus respectivos momentos histricos. Embora a abordagem do desenvolvimento no tenha sido elaborada a partir de uma definio especfica tal como se fez com a democracia, vale-se de perspectivas que se complementaram ao longo do tempo. H nisso, evidentemente, uma escolha, pois so diversas as teorias sobre o desenvolvimento que sero esboadas neste estudo. A partir disso procura-se identificar quais perspectivas, a

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    despeito de certas diferenas, confluem para que o desenvolvimento se relacione positivamente com a democracia e a livre concorrncia.

    Em seguida, ainda no segundo captulo, elabora-se um breve estudo sobre o desenvolvimento no Brasil. Pela brevidade, faz-se necessrio um recorte histrico. Tal recorte baseia-se na noo de desenvolvimento proposta por Bresser Pereira. Destarte, o tema analisado no perodo que vai de 1930 at os dias atuais. Nesse nterim, possvel identificar que a despeito de algumas tentativas de inserir projetos educacionais e de erradicao de doenas tpicas do subdesenvolvimento dentro da discusso do desenvolvimento especialmente aps 1970 , prevaleceu, at o final da dcada de 1980, o entendimento de que o desenvolvimento se traduz em industrializao e crescimento econmico. Como o IDH fez com que elementos como sade e educao passassem a ser decisivos para caracterizao do desenvolvimento, procura-se mostrar o que se tem feito no Brasil para melhorar esses quesitos, bem como apresentar a evoluo do ndice no pas. E com base na concepo de desenvolvimento adotada por Sen e considerando tambm o novel ndice de Oportunidades Humanas (IOH) pelo qual se verificam as igualdades de oportunidade, que permitem que, ao menos potencialmente, as pessoas possam buscar e alcanar os seus objetivos de vida , analisam-se, alm das oportunidades educacionais e as relativas ao saneamento bsico e ao sistema de sade pblico, tambm as oportunidades econmicas.

    As oportunidades econmicas esto relacionadas com o grau de possibilidades abertas para o surgimento e para a manuteno de novos empreendimentos e para a gerao de empregos num determinado Estado. No caso especfico do Brasil, procura-se mostrar a realidade da questo no pas, utilizando-se para isso o Index of Economic Freedom, elaborado pela Heritage Foudation.

    Ao longo da histria do desenvolvimento no Brasil, verifica-se uma opo preferencial dos planos de desenvolvimento pela figura da grande empresa. Quando se analisa a referida opo sob o enfoque da finalidade do desenvolvimento e da sua relao com a democracia, surgem dvidas sobre os reais benefcios existentes nas polticas governamentais que priorizam o estmulo aos grandes empreendimentos, sobre se essa opo reverte-se em efetivas oportunidades econmicas para empreendedores e trabalhadores e se ela contribui ou prejudica o pluralismo poltico. Essas dvidas conduzem a discusso para o tema da livre concorrncia.

    A ideia de livre concorrncia aparece com o desenvolvimento da economia de mercado, tambm chamada de sistema de economia descentralizada ou, ainda, de economia capitalista.

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    Numa economia descentralizada existem diversos centros de deciso econmica. Os centros decisrios das empresas privadas convivem com o centro decisrio estatal. Em outros termos, existem diversos planos ou centros de planejamento. Ao contrrio do que ocorre com as economias de planejamento central, que subordinam toda a economia aos comandos estatais, nas economias descentralizadas a atividade planejadora do Estado no impositiva, mas apenas indicativa.

    Para que existam centros econmicos autnomos necessria a existncia de normas que garantam a ordem econmica privada em face do Estado, que impeam ou dificultem que o poder econmico, privado ou estatal, controle o poder poltico. Essas normas compem o chamado direito concorrencial ou antitruste. No Brasil, o direito antitruste representado pela Lei n 8.884 de 11 de junho de 1994. A referida lei uma conseqncia da Constituio 1988, a qual traz, dentre os fundamentos da Repblica e da ordem econmica, o valor social da livre iniciativa e diz que a livre concorrncia princpio da ordem econmica.

    O direito concorrencial ocupa-se tanto com as condutas dos agentes econmicos ou seja, com a forma pela qual os agentes relacionam-se entre si (leal ou deslealmente), com o mercado e com os consumidores , quanto com as estruturas com o tipo de oferta predominante num dado mercado, com os atos de concentrao econmica e os impactos destes sobre um determinado mercado.

    Determinadas condutas, conforme se ver, exercem um impacto negativo sobre o desenvolvimento. Assim, por exemplo, limitar ou obstar o acesso de novas empresas a determinado mercado e atrapalhar o funcionamento de outras empresas (concorrentes, fornecedoras, adquirentes ou financiadoras), novas ou no, significa desrespeitar o exerccio da liberdade econmica dos empreendedores, em prejuzo da gerao de renda tanto para os empresrios quanto para trabalhadores e potenciais trabalhadores (no caso de empresas que esto em processo de estabelecimento no mercado), atentando contra os fundamentos republicanos da livre iniciativa e do trabalho (art. 1, IV da Constituio) e, consequentemente, contra o processo de desenvolvimento. J sob o aspecto estrutural, a concentrao econmica, ou o processo que leva a ela, por se traduzir ou desencadear a existncia de um nmero reduzido de centros autnomos de deciso econmica, pode ser prejudicial tanto para o desenvolvimento quanto para a democracia. A concentrao econmica pode ter diversas causas e motivaes, tais como: a) administrao estratgica por parte do Estado de determinadores setores da economia; b) poltica estatizante; c) razes ideolgicas, no caso de economias socialistas ou de capitalismo

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    de Estado; d) necessidade de saneamento de empresa em dificuldade; e) busca por maior eficincia, produtividade e competitividade; f) necessidade de fortalecimento e ganho de competitividade por parte de pequenas e mdias empresas diante da entrada de grandes concorrentes num dado mercado; g) necessidade de atuao estatal na oferta de bens e servios quando da ausncia de um empresariado com capital e interesse para investir em uma determinada atividade; h) altos custos envolvidos para a entrada de novos concorrentes; i) eficincia empresarial que conduz a um papel central sobre um setor da economia; j) favorecimento estatal a grandes grupos econmicos. Assim, a concentrao pode: decorrer de um exerccio natural da livre iniciativa do empresariado; ser um fator alheio aos agentes que detm um maior poder no mercado (nos caso dos altos custos que impedem ou dificultam o surgimento de novos concorrentes); ser fruto da eficincia empresarial; ter por origem uma poltica estatal. A anlise da concentrao econmica deve, portanto, ser uma anlise casustica.

    Compreender que existem diversas causas, motivaes e justificativas para a concentrao econmica ajuda a afastar simplificaes que ou atribuem nica e exclusivamente ao Estado e s ideologias estatizantes a culpa pela concentrao ou buscam transmitir as ideias de que a concentrao econmica faz parte da lgica interna da economia de mercado no sendo ento uma falha e que todo empresrio um potencial monopolista. Ademais, essa compreenso que permite, por exemplo, discutir temas preteridos pelos estudiosos do direito da concorrncia, como o caso da relao entre polticas de desenvolvimento adotadas pelo Estado e a livre concorrncia, e os impactos dessa relao sobre a ordem democrtica.

    Feitas essas observaes, cumpre destacar que com relao ao desenvolvimento, a concentrao pode prejudicar o surgimento de novos negcios e a gerao e manuteno de empregos. Embora a concentrao econmica possa ser necessria ou justificada em determinados contextos econmicos tal como se verifica em naes com desenvolvimento tardio, nas quais muitas vezes o Estado ou tem de atuar diretamente na economia para suprir necessidades no atendidas pela iniciativa privada, ou tem buscar atrair grandes volumes de capital junto ao grande empresariado , ela pode se transformar num bice continuidade do processo desenvolvimentista, mormente quando se considera o desenvolvimento a partir da perspectiva mais ampla adotada por este estudo, pela qual se considera tambm a importncia da democracia.

    Na sua relao com a democracia, a concentrao significa, potencialmente, uma limitao das fontes de recursos a disposio das organizaes polticas da sociedade civil

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    (partidos polticos, sindicatos, movimentos sociais, ONGs, etc.), o que pode, tambm de forma potencial, dificultar a existncia de disputas polticas competitivas e pluralistas. Em suma: a concentrao econmica diminui as possibilidades dos indivduos e dos grupos sociais elaborarem, promoverem e comunicarem perspectivas polticas alternativas.

    Quando se entende que o processo democrtico exige a possibilidade de comunicar polticas alternativas abre-se espao para a questo dos meios de comunicao social. Pode-se dizer que a relao existente entre o pluralismo poltico e a economia de mercado traz embutida a temtica da existncia de fontes alternativas de informao, as quais so indispensveis para a competio poltica nas democracias.

    Para que existam fontes alternativas de informao necessrio que as empresas do setor de comunicao social sejam centros de deciso econmica autnomos, no sujeitos ao planejamento central do Estado. A diversidade informativa depende de um mnimo de independncia editorial e gerencial dos produtores de contedo. Na ausncia de tal independncia podem at existir fontes alternativas de informao, mas sero apenas de carter nominal. Nas economias em que o Estado controla toda economia improvvel que se encontrem meios de comunicao apartados desse controle e, por isso mesmo, no faz muito sentido discutir o pluralismo informacional nesse caso. No entanto, em economias de mercado ligadas a democracias, a questo das fontes alternativas de informao suscita debates sobre a regulao dos meios de comunicao social, sobre os reais e presumveis problemas decorrentes da concentrao desses meios para o pluralismo poltico, para a dissenso e a oposio poltica e tambm conduz a uma discusso sobre a atuao das entidades encarregadas da defesa da livre concorrncia na aplicao do direito concorrencial ao setor de comunicao social.

    Entende-se ento, que preservar o bom funcionamento de uma economia de mercado e impedir concentraes ilcitas ou jurdica, econmica e moralmente injustificveis contribui para que a democracia efetivamente tenha eleies livres, frequentes e competitivas e volte-se para a promoo do desenvolvimento e a este sirva como um elemento instrumental e simultaneamente caracterizador. O direito concorrencial, portanto, tem funes mais amplas que mera garantia da ordem econmica do sistema de livre mercado.

    luz do direito brasileiro, a defesa da livre concorrncia, princpio basilar da economia de mercado, competncia do Conselho Administrativo de Defesa Econmica (CADE), ao qual cabe apreciar os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrncia, ou resultar na dominao de mercados relevantes de bens ou servios (art. 54 da Lei n 8.884 de 1994). Sob a perspectiva estrutural

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    os atos no caso so os atos de concentrao, que envolvem processos que de fuso ou incorporao de empresas, constituio de sociedade para exercer o controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societrio (3o do art. 54 da Lei n 8.884 de 1994).

    A anlise dos atos de concentrao complexa, pois tem de levar em conta uma srie de variveis. O CADE inicia a anlise da concentrao econmica cumprindo as seguintes etapas: 1) determinao do mercado relevante; 2) verificao do grau de participao no mercado relevante; 3) identificao das possibilidades de exerccio de poder econmico que um ato de concentrao pode gerar em um mercado relevante. Pela lei concorrencial brasileira, entende-se que uma empresa que possui 20% de participao em um mercado relevante (market share) exerce uma posio dominante (art. 20, 3 da Lei n 8.884 de 1994). No entanto, por si s, a posio dominante no traz a um agente econmico uma independncia em relao ao comportamento da concorrncia, ou seja, no traz necessariamente um maior poder econmico (market power). Por essa razo, aps o cumprimento das referidas etapas, o CADE faz tambm um exame de eficincias e pondera sobre os efeitos da concentrao sobre o mercado e sobre os trabalhadores. No exame de eficincias o referido percentual de 20% pode inclusive ser alterado.

    A complexidade existente na anlise dos atos de concentrao torna complexa a relao entre defesa da concorrncia, desenvolvimento e democracia.

    No intuito de contribuir para o debate sobre a referida relao, o terceiro captulo inicia-se com a anlise da noo de livre concorrncia. Em seguida, elabora-se um esboo sobre os tipos de sistemas econmicos (tradicional, de planejamento central, de autonomia) e as diferenas existentes entre eles. A partir da distino feita entre os sistemas econmicos, procura-se situar a livre concorrncia como uma caracterstica do sistema econmico de autonomia. feita ento uma abordagem sobre os papis histricos do Estado e do direito concorrencial para a manuteno da livre concorrncia, dando-se especial nfase ao atual direito concorrencial brasileiro.

    Na segunda parte do terceiro captulo aborda-se a relao entre livre concorrncia e desenvolvimento, analisando-se o papel do direito concorrencial como um inibidor de condutas lesivas ao mercado e ao processo de desenvolvimento. Em seguida, faz-se uma anlise sobre a relao entre concentrao econmica, oportunidades econmicas e poltica desenvolvimentista, quando ento se problematiza a atual poltica de crdito adotada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES) e a atuao do CADE diante da mesma. A anlise sobre a poltica de aporte de recursos do BNDES ento analisada sobre um prisma cultural e aproximada da abordagem feita sobre os tipos de

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    sistemas econmicos, enfatizando-se a que tipo de sistema poltico a concentrao econmica pode conduzir.

    Na parte final do terceiro captulo analisa-se a relao entre livre concorrncia e democracia. Destaca-se a importncia da existncia de centros autnomos de deciso econmica para a competio, dissenso e oposio poltica em regimes democrticos.

    Considerando que a dissenso, a oposio e a competio poltica esto diretamente relacionadas com o acesso a fontes alternativas de informao, pondera-se sobre a questo da concentrao dos meios de comunicao social. Direciona-se a discusso para a realidade dos meios de comunicao social no Brasil, mostrando-se a situao da radiodifuso, da TV por assinatura, dos meios impressos e da internet no pas. A partir da constatao de que a TV por radiodifuso aberta ainda o principal meio pelo qual a populao brasileira obtm informaes e forma suas preferncias polticas, e levando em conta que h uma concentrao no setor de TV por radiodifuso, analisa-se, luz da vedao constitucional ao monoplio e ao oligoplio dos meios de comunicao social (5 do art. 220 da Constituio), o caso da TV digital, enfatizando-se o papel do Decreto n 5820/2006 na manuteno da concentrao no referido setor. Por fim, pondera-se dobre a atuao do CADE em relao concentrao dos meios de comunicao social, mostrando-se como ele poderia ter atuado no caso da TV digital.

    J nas consideraes finais apresenta-se um resumo e, de certa forma, as concluses possveis de se extrair em cada um dos captulos, estabelecendo-se as conexes existentes entre os trs temas que compem o presente estudo.

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    2 DEMOCRACIA

    Qualquer estudioso do tema democracia encontrar, desde o princpio, um enorme acervo bibliogrfico que lhe permitir, mesmo que em breve anlise, a constatao da existncia de distintas concepes acerca do que seria a democracia.

    Tericos dos mais diversos matizes ideolgicos oferecem seus conceitos de democracia e de aes e programas democrticos, o que faz surgir uma natural tentao a se dar igual valor a todas as conceituaes, como se o vocbulo fosse um significante vazio.

    Ian Shapiro observa que no mundo contemporneo praticamente ningum se ope abertamente democracia. Por essa razo, os governos buscam se cobrir com o manto da democracia1. Diversos governos se promoveram e se promovem como democrticos no mesmo instante em que eram ou so antidemocrticos (v.g. Repblica Democrtica da Coria do Norte, Repblica Democrtica Popular do Laos, Volksmeinschaft nazista, etc.), ou ento divulgam prticas antidemocrticas como expresses da mais pura democracia.

    No entanto, preciso dizer que a democracia no uma palavra qualquer que pode ser utilizada sem critrios, conforme os desejos e as aspiraes de idelogos e polticos. A democracia no um significante vazio e nem todo conceito que a ela se d merece ser valorizado; muitos conceitos no passam de opinies.

    Conceituar um processo que possibilita descrever e classificar objetos cognoscveis2. Conceitos podem corresponder mais ou menos com a realidade; podem ser mais ou menos abrangentes; podem ser trabalhados dentro de uma dialtica possvel num determinado arranjo jurdico-institucional ou podem ser meramente retricos. Amide, os conceitos de democracia no so propriamente conceitos, so descries de modelos de democracia mescladas com discursos que rompem com a cadeia de equivalncia que caracteriza a democracia. Um conceito de democracia no pode ser confundido com um tipo de democracia ou com uma proposta de democracia3.

    Diversos so os autores que apenas trazem em suas obras captulos ou tpicos sobre o conceito de democracia; mas muitos no chegam a conceitu-la. Outros, porm, preferem apenas trazer uma definio de democracia, que declare a essncia da mesma, revelando-lhe o

    1 SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da poltica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 245. Nesse mesmo sentido ver: CAVALCANTI, Temstocles Brando. Teoria do Estado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, p. 290.

    2 ABBAGNANO, Nicola; BOSI, Alfredo. Dicionrio de filosofia. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 164.

    3 No se est com isso a dizer que a democracia no traz em si ideais ou que a teoria democrtica no se constri levando tambm em conta o aspecto de dever ser da democracia.

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    sentido e a interseco entre o plano do ideal, do possvel e do identificvel na realidade. Distinguir conceito de definio parece, num primeiro momento, ser algo incuo e

    dispensvel. Entretanto, perceber a existncia de ambos possibilita separar algo que pode ser meramente retrico ou prximo da realidade, daquilo que revela a essncia de algo. Evidentemente um conceito pode descrever de tal forma uma realidade que acabe por identificar-se com a definio desta, ou traz-la embutida. De qualquer forma, a distino entre os termos salutar, principalmente quando se busca argumentar que o vocbulo democracia tem um significado atrelado a determinados condicionantes, no podendo por isso ser empregado indiscriminadamente4.

    A palavra democracia no pode ser usada para designar o seu oposto. Para que isso no acontea, alm da identificao dos elementos que caracterizam um regime democrtico preciso simultaneamente observar, ainda que de forma breve, a presena e o alcance desses mesmos elementos em regimes no democrticos, pois, conforme pontuou Robert Alan Dahl, so as diferenas, reais ou supostas, em sistemas polticos que tornam um valioso, e o outro, odioso5. Se lcito falar em regimes mais ou menos democrticos6, aceitar a ideia de que a democracia pode significar qualquer coisa impor s pessoas a obrigao de no discernir.

    2.1 ASPECTOS DA DEMOCRACIA

    Em sua obra A crise da democracia no Brasil, Cezar Saldanha Sousa Junior traz, logo no primeiro captulo, um tpico chamado Duplo aspecto da democracia, no qual se apresenta a democracia tanto como concepo filosfica quanto processo poltico:

    Enquanto filosofia, a democracia a concepo poltica que faz do Estado um meio natural e necessrio para servir a Pessoa, em sua dignidade e nos seus direitos fundamentais, realizando o bem comum. a democracia em seu aspecto substancial. Enquanto processo poltico, a democracia o princpio de organizao dos instrumentos polticos, pelo qual os cidados devem participar, pelo consentimento, do fundamento e do funcionamento do poder. O consentimento como fundamento

    4 Durante as reflexes sobre a distino entre conceito e definio cogitou-se em optar por apresentar somente uma definio de democracia, mas aps diversas leituras encontrou-se em uma obra de Pinto Ferreira, uma abordagem do conceito e da definio de democracia em captulos distintos (Cf. nesse sentido os captulos LV e LVI em FERREIRA, Pinto. Teoria Geral do Estado. So Paulo: Saraiva, 1975, p. 553-568). Essa abordagem pareceu suficiente para que neste estudo tambm se refletisse, ainda que brevemente, sobre a referida distino.

    5 DAHL, Robert Alan. A moderna anlise poltica. Rio de Janeiro: Lidador, 1966, p. 51.

    6 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de poltica, v. 1. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2008, p. 327.

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    do poder, se efetiva pelo Estado-de-direito, isto , pela adeso dos cidados Constituio que organizou o Estado e pela sujeio dos poderes constitudos ao imprio dessa Constituio. O consentimento dos cidados no funcionamento do poder se efetiva pelo exerccio dos direitos polticos. a democracia em seu aspecto instrumental7.

    O duplo aspecto da democracia apontado por Cezar Saldanha aproxima-se dos aspectos da democracia apresentados por Giovanni Sartori, a saber: o fundamento, o funcionamento e a finalidade. Como fundamento, a democracia tida como princpio de legitimidade; como funcionamento um sistema que define a forma pela qual ser exercido o poder; e, como finalidade, a democracia entendida como um ideal. O fundamento da democracia o povo, titular do poder. O funcionamento do poder deve ser pelo povo. A finalidade, o ideal, a busca do bem comum8.

    O fundamento, o funcionamento e a finalidade da democracia devem ser observados simultaneamente.

    O fundamento da democracia pressupe tanto a liberdade poltica quanto a igualdade poltica9, para um nmero significativo de membros de uma determinada sociedade. na qualidade de pessoas livres e iguais que pequenos ou grandes grupos de pessoas podem assumir a titularidade do poder. A tendncia para a democracia, para a participao, desenvolve-se a partir da lgica da igualdade10, ou seja, da lgica existente num grupo que faz com que os membros se reconheam como iguais.

    O fundamento da democracia o povo; no entanto, existem pelo menos seis interpretaes possveis do vocbulo:

    1. Povo significando literalmente todo o mundo; 2. Povo significando uma grande parte indeterminada, muitos; 3. Povo significando a classe inferior; 4. Povo enquanto uma entidade indivisvel, como um todo orgnico; 5. Povo como uma parte maior expressa por um princpio de maioria absoluta; 6. Povo como uma parte maior expressa por um princpio de maioria limitada11.

    No sentido de fundamento, o termo povo pode, excetuando-se a ideia de povo como classe inferior, ser interpretado por qualquer uma das cinco concepes restantes, as quais podem ainda combinar-se entre si.

    Onde quer que haja participao poltica h o direito de votar, mas no h como todo 7 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 21.

    8 SARTORI, Giovanni. Elementos de Teora Poltica. Madrid: Alianza Editorial, 1999, p. 29-30.

    9 BOEIRA, Marcus Paulo Rycembel. A democracia pelas cinco causas na Constituio de 1988. Dissertao (Mestrado em Direito) - Universidade de So Paulo, So Paulo, 2007, p. 35.

    10 DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2009, p. 20.

    11 SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 1. So Paulo: tica, 1994, p. 42.

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    mundo votar. Como lembra Sartori, ningum ainda conseguiu uma incluso total, sem excees; o povo so os cidados de uma democracia12. Os cidados ao decidirem algo podem chegar a um acordo unnime, mas podem, em havendo divergncias, decidir algo pelo critrio da maioria, que pode por sua vez ser orientado pelo princpio da maioria absoluta ou pelo princpio da maioria limitada. A ideia de maioria absoluta implica uma supervalorizao da maioria, a qual teria o direito ilimitado de decidir por todos; pelo princpio da maioria limitada a democracia entendida como um sistema de governo de maioria limitado pelos direitos das minorias13.

    Compreender o povo como um conjunto de cidados cujas decises so tomadas em respeito ao princpio da maioria limitada contribui para afastar o principal perigo inerente ideia de povo concebido pelo princpio da maioria absoluta: a tirania do nmero. Para Sartori, o princpio da maioria limitada como o prprio princpio democrtico e funcional da democracia, ou seja, se no for observado inviabiliza o funcionamento e o futuro da democracia14.

    Certos entendimentos acerca do que seria o povo no se adquam numa interpretao conjunta do fundamento, do funcionamento e da finalidade da democracia. Especialmente na relao com a finalidade, entender o povo como todo mundo, como um todo orgnico ou como uma maioria absoluta, traz uma srie de problemas.

    Desde que Rousseau, na obra O Contrato Social, construiu a teoria da vontade geral, constata-se uma tendncia ao absolutismo democrtico, que desconsidera o fenmeno da dissenso. A vontade geral atropela discordantes, sejam eles pessoas ou grupos sociais, visto que parte da ideia de que todos assentiram no pacto social15. Essa a externalidade da fuso entre contratualismo e titularidade popular do poder. Tendo em vista que na experincia democrtica do Estado Moderno autoridade e representao se equivalem, haja vista que o poder poltico institudo por um processo eleitoral, o chefe do Estado, por exemplo, acaba por assumir o papel de representante popular16. Tal papel seria justificado pela atuao do chefe de Estado no plano das relaes internacionais; o estadista representa a todos, representa a nao. No mbito interno, no entanto, no acontece o mesmo, pois o governo alado por uma maioria deve estar limitado pelo direito das minorias, as quais, em respeito funo de chefe de Estado, devem aceitar o exerccio da sua autoridade que esteja em

    12

    SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 1, p. 42. 13

    Idem, p. 44-45. 14

    Ibidem, p. 45. 15

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. So Paulo: Martins Fontes, 1996. 16

    SOUSA, Jos Pedro Galvo de. Poltica e teoria do Estado. So Paulo: Saraiva, 1957, p. 151.

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    conformidade com a lei sem, contudo, considerar necessariamente a pessoa que exerce a funo como seu representante17. Trata-se de um acordo, sem o qual dificilmente uma democracia pode ter futuro.

    Outro entendimento problemtico a concepo romntica do povo como um todo orgnico. Na totalidade orgnica, no povo, no h espao para os indivduos. Em nome da totalidade, lembra Sartori, um e todos podem ser esmagados a qualquer momento, da dizer o mesmo autor que o apelo a essa frmula usado para justificar o totalitarismo e no a democracia18.

    Quanto ao funcionamento da democracia, importante destacar que a expresso pelo povo comporta pelo menos trs arranjos possveis. Assim, por pelo povo pode-se entender que o poder exercido pelo prprio povo em benefcio dele mesmo, o que se convencionou chamar de democracia direta, ou que o poder exercido por representantes em prol do povo, a chamada democracia indireta ou representativa, ou ainda uma forma que combine os dois entendimentos anteriores, a democracia semidireta19.

    E quanto ao bem comum, finalidade da democracia, cabe dizer que ele deve estar ligado ao aspecto substancial da democracia: a promoo da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa.

    2.2 CONCEITOS DE DEMOCRACIA

    Alguns conceitos de democracia enfatizam essencialmente o aspecto do fundamento da democracia. Nesse sentido tem-se o conceito de Pinto Ferreira, para quem a democracia

    17

    Da a distino entre autoridade soberana e representao parlamentar. Sobre isso observou Jos Pedro Galvo de Sousa: Ao poder que atua sobre toda a sociedade poltica ou seja, sobre toda a Nao compete a soberania poltica. Em si mesmo, decorrendo de um imperativo da natureza, esse poder uma propriedade natural da sociedade. Quem o exerce, acha-se nele investido por um ttulo capaz de legitimar a sua posse, seja a sucesso hereditria ou designao popular. certo que o detentor do poder, o chefe de Estado, representa a Nao. Porm, o termo representao no aqui empregado para significar uma especial delegao de vontade. O poder princpio de unidade social e aquele que o detm agente desta unidade. O que o chefe de Estado representa no uma hipottica vontade geral, mas a unidade de toda a Nao constituda. Na representao parlamentar j diferente. Trata-se a das aspiraes e dos interesses concretos e variveis dos membros orgnicos da sociedade. L a unidade. Aqui a variedade. L a representao como smbolo. Aqui a representao como encargo ou cometimento de reivindicaes a serem satisfeitas. L a autoridade soberana a governar. Aqui as assemblias representativas a participarem da direo da cousa pblica, informando, requerendo, fiscalizando, acautelando direitos, exigindo reparaes. (SOUSA, Jos Pedro Galvo de. Poltica e teoria do Estado, p. 165)

    18 SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 1, p. 44.

    19 Cf. adiante p. 10-11 e tambm o tpico 2.4.

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    o regime de um povo, onde o poder supremo de deciso do Estado reside na totalidade livre dos cidados iguais entre si em face dos privilgios existentes na vida social20. Tambm enfatizando o fundamento da democracia, mas tendo em mente a democracia orientada pelo princpio da maioria absoluta, Thomas Jefferson disse com forte ceticismo que a democracia no nada mais do que o governo da massa, onde 51% das pessoas pode tirar os privilgios das outras 49%21.

    De forma bastante diversa, alguns autores tratam a democracia mais como um ambiente e como uma forma de vida do que como uma forma de governo22. Norberto Bobbio, por exemplo, postula uma ampliao do espao democrtico. Para ele, importa perguntar Onde se vota?, sendo que diante dessa pergunta o desenvolvimento da democracia num dado pas dever ser medido pelo direito de as pessoas participarem do maior nmero de decises que lhes dizem respeito, nos mais variados espaos23.

    H tambm quem diga que a democracia um conceito histrico. Assim o compreendem, por exemplo, Jos Afonso da Silva e Mrio Lcio Quinto Soares24. Nesse sentido, entende Jos Afonso da Silva:

    A democracia um conceito histrico. No sendo um valor-fim, mas meio e instrumento de realizao de valores essenciais de convivncia humana, que se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem, compreende-se que a historicidade destes a envolva na mesma medida, enriquecendo-lhe o contedo a cada etapa do envolver social, mantido sempre o princpio bsico de que ela revela um regime poltico em que o poder repousa na vontade do povo. Sob esse aspecto, a democracia no um mero conceito poltico abstrato e esttico, mas um processo de afirmao do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da histria25.

    Em princpio, tal abordagem no s possvel, como salienta a busca por um conceito de alcance maior. Aparentemente, esse tipo de entendimento abrange tanto a dimenso filosfica como a instrumental da democracia. Entretanto, compreender a democracia como um conceito histrico traz em si o perigo de ela acabar sendo percebida, por intrpretes mais afoitos, como um significante vazio, que comportaria tudo que venha no futuro a se concretizar pela vontade do povo.

    Apesar de Jos Afonso da Silva afirmar que a democracia um conceito histrico, ele 20

    FERREIRA, Pinto. Teoria Geral do Estado. So Paulo: Saraiva, 1975, p. 559. 21

    Conceito encontrado em: LINDBOM, Tage. O mito da democracia. So Paulo: Ibrasa, 2006, p. 19. 22

    Cf. PAUPRIO, A. Machado. Teoria democrtica do Estado. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997, p. 24-25.

    23 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 26-27.

    24 Cf. SOARES, Mrio Lcio Quinto. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da globalizao. So Paulo: Atlas, 2008, p. 219-221.

    25 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 126-127.

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    no se limita a apresent-la como uma construo histrica; ele apresenta seu prprio conceito

    a partir de uma anlise que o justifica. Para o autor, enfim, a democracia um processo de convivncia social em que o poder emana do povo, h de ser exercido, direta ou indiretamente, pelo povo e em proveito do povo26. O conceito em tela resultante de uma abordagem prvia baseada no entendimento de que a democracia um processo de realizao dos direitos fundamentais do homem (o que corresponde no conceito expresso em proveito do povo). Assim, analisando-se o contexto em que o conceito se insere, verifica-se que essa conceituao uma das poucas que abrangem os trs aspectos da democracia descritos por Sartori.

    2.3 DEFINIO DE DEMOCRACIA

    Powell Davies, nas primeiras pginas de seu opsculo Uma definio de Democracia, chama a ateno para a dificuldade de se definir a democracia27. De igual modo ao que acontece com os conceitos, existem muitas definies de democracia, entretanto, cumpre indagar, como faz Giovanni Sartori, se as definies so arbitrrias28.

    Sartori observa que h uma discusso filosfica que estabelece uma distino entre definies lxicas e definies estipulativas, sendo que as primeiras podem ser verdadeiras ou falsas e as segundas arbitrrias. Em princpio, as diversas definies lexicogrficas no seriam arbitrrias, no entanto, as definies encontradas nos dicionrios podem significar coisas diferentes e muitas vezes contraditrias para diferentes pessoas, o que as aproximam das definies estipulativas, que seriam ento aprovadas ou desaprovadas conforme a sua utilidade. Ocorre, que a reflexo sobre a utilidade de uma definio traz necessariamente a seguinte pergunta: til para quem ou para qu? Ora, se as definies so estipulaes arbitrrias sujeitas to somente a um critrio de utilidade, ento a democracia pode significar qualquer coisa que parea til do ponto de vista do estipulador. As prprias definies lexicogrficas seriam estipuladas. Diante dessas questes, chega-se concluso preliminar de que todas as definies so arbitrrias29. A democracia seria ento um significante vazio. Para ilustrar a questo, Sartori observa que se perfeitamente aceitvel chamar um cachorro de 26

    SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 127. 27

    DAVIES, A. Powell. Uma definio de democracia. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1956, p. 08-10. 28

    SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 2. So Paulo: tica, 1994, p. 7. 29

    Idem, p. 08-11.

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    gato, ou vice-versa [...] estamos legitimando e produzindo um mundo incomunicvel, e mais adiante diz que se afirmamos que qualquer um tem o direito de estipular o que bem entender; no h regras; e se no h regras, ento no podemos afirmar que a sua transgresso legtima30.

    O processo pelo qual se define um termo s til no aspecto cognitivo se passar no teste do campo semntico31. A definio de um termo implica a definio de outros termos a ele conexos. Uma definio de democracia tem de comportar a cadeia de significados que a caracterizam. Conforme for a definio de democracia, os termos e as expresses a ela associados (dissenso, liberdade de expresso, liberdade de imprensa, etc.) significaro x, y e z ou a, b e c: a definio tem um campo semntico.

    Etimologicamente, democracia nada mais que o governo do povo. O termo democracia vem do grego demokratia, a qual resulta da juno de duas palavras tambm gregas: demos, que significa "o povo", e kratein, o governo (ou "domnio")32. A origem da palavra remonta ao ano de 507 a.C, provavelmente para designar o novio sistema de governo popular que fora adotado pelos atenienses33.

    A primeira definio de democracia foi a etimolgica. O problema da definio etimolgica que ela se refere somente a um termo isolado, preterindo outros conceitos que implementam ou complementam a democracia. Se hoje as democracias ocidentais assentam-se sobre uma noo mais ou menos parecida de democracia, chegando a uma espcie de conveno sobre o que significa o vocbulo, no por uma arbitrariedade ou por um capricho, mas sim porque os termos que entraram no seu campo semntico (liberdade, legitimidade, etc.) se sedimentaram pela experincia, por meio de inmeras tentativas e erros, ganhando firmeza de significado. A partir dessas colocaes compreende-se que argumentativamente, h muitas democracias possveis, [...] mas no h muitas historicamente possveis34.

    Com base na frase historia magistra vitae (a histria a mestra da vida) de Ccero, Giovanni Sartori prope a seguinte: historia magistra definitionis, ou seja, a histria a mestra das definies. Na sequncia, Sartori cita John Stuart Mill, que afirma: a linguagem o depsito do corpo da experincia acumulada para o qual todas as geraes anteriores

    30

    SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 2, p. 11-13. 31

    Idem, p. 17. 32

    MLLER, Friedrich. Democracia e Repblica. Revista Jurdica. Presidncia da Repblica, v. 7, n. 77, fev./mar. 2006. Braslia: A Presidncia, 2006. Disponvel em: .

    33 DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2009, p. 21.

    34 SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 2, p. 18-19.

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    contriburam com sua parte35. Nesse jaez, no h que se falar em definies arbitrrias. Invocar a liberdade de definir a democracia equivale a exercer o direito de ignorar a histria.36

    Em prefcio obra A Nova Cincia da Poltica de Eric Voegelin, observou Jos Pedro Galvo de Sousa que o homem naturalmente tradicionalista:

    Vive e se aperfeioa graas educao que lhe dada e ao acervo de bens acumulados pelos seus ancestrais. Sem herana, sem tradio, no h progresso, isto , sem a entrega de um patrimnio de cultura de uma gerao a outra. Originariamente a palavra traditio significa exatamente essa transmisso ou entrega, sem a qual as sociedades se imobilizariam ou retrocederiam barbrie37.

    Assim, a definio de democracia deve necessariamente levar em considerao a experincia histrica que d significado ao prprio termo democracia e aos termos a ela conexos. A busca por uma definio de democracia coincidiu com um acrscimo histrico de sentidos que fizeram com que ela fosse vista para alm de sua concepo etimolgica, literal.

    Na tentativa de superar a limitao da definio etimolgica Thomas Cooper, em 1795, disse que a Democracia o governo do povo e para o povo38. Cumpre destacar que a definio de Cooper j estava presente naquilo que Aristteles chamava de politia, ou seja, o governo de todo povo para o interesse geral39. Essa definio, contudo, no sanava a impreciso da definio etimolgica. A definio etimolgica, embora signifique governo do povo, traz em si tambm o fundamento da democracia: o poder do povo. Como aponta Sartori, o poder exercido sobre algum, e governar pressupe a existncia de governados40, dessa forma, chega-se definio de que a democracia o governo do povo sobre o povo e para o povo.

    Tempos depois, em 1830, Daniel Webster, em discurso no Senado americano definiu a democracia como o governo do povo, feito pelo povo, para o povo e responsvel perante o povo41. Mas foi em 1863, no Discurso de Gettysburg, que Abraham Lincoln legou para posteridade a definio clssica42 de democracia: Governo do povo, pelo povo e para o

    35

    Language is the depository of the accumulated body of experience to which all former ages have contributed their part, and which is the inheritance of all yet to come. A frase citada por Sartori est no quarto captulo do Livro IV da obra System of Logic de John Stuart Mill, a qual pode ser lida na ntegra no site dos eBooks () da Universidade de Adelaide: Acesso em: 22 jan. 2011.

    36 SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 2, p. 18-19.

    37 SOUSA, Jos Pedro Galvo de. Apresentao. In: VOEGELIN, Eric. A nova cincia da poltica. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1982, p. 06.

    38 DAVIES, op. cit., p. 09.

    39 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise da democracia no Brasil, p. 13.

    40 SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada, v. 1, p. 52.

    41 DAVIES, op. cit., p. 09-10.

    42 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise da democracia no Brasil, p. 13.

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    povo (Government of the people, by the people, for the people)43. A definio de Lincoln importante porque nela possvel identificar os trs aspectos da democracia apontados por Sartori: o fundamento, o funcionamento e a finalidade.

    O governo do povo corresponde ao fundamento da democracia e no mais que isso. O povo no governa a si mesmo. Observa Cezar Saldanha que no houve mesmo na cidade-estado grega antiga nem haver povo que se governe44. Se h governo h governados, h um poder exercido sobre algum. S no h governados se no h governo, e isso se chama anarquia, a qual no o objeto do presente estudo.

    Raymond Aron chama ateno para o fato de que mesmo nas coletividades de pequenas dimenses, onde a assemblia dos cidados era efetivamente a instncia suprema, distinguia-se o detentor legtimo da soberania e aqueles que exerciam tais ou tais funes de autoridade45.

    Se mesmo na antiga democracia grega a ideia de um povo que se governa algo fictcio ou no mnimo questionvel, o que dizer das democracias modernas? Raymond Aron lembra que nas complexas sociedades modernas deve-se fazer a distino entre a origem juridicamente legtima da autoridade e o possuidor de uma autoridade de fato46: o governo do povo, pelo povo. Segundo Cezar Saldanha, por governo do povo, pelo povo, deve-se entender:

    [...] a participao, atravs do consentimento, dos cidados no governo da sociedade poltica. Essa participao deve existir, tanto em relao ao fundamento do poder estabelecido (governo do povo), quanto ao funcionamento desse poder (governo pelo povo). O consentimento dos cidados quanto ao fundamento do regime impe duas exigncias: a) a adeso da comunidade Constituio que organizou o Estado; e b) a sujeio dos poderes constitudos s normas dessa Constituio; ou seja, o Estado de Direito. O consentimento dos cidados quanto ao funcionamento do regime implica em que o governo e a linha poltica por ele adotada dependam da aprovao dos cidados47.

    J o governo para o povo traduz o aspecto teleolgico da democracia: realizar o bem comum, que consiste em proporcionar aos membros de uma comunidade poltica as condies necessrias para que tenham suas exigncias bsicas os direitos fundamentais

    43

    LINCOLN, Abraham. The Gettysburg Address (O Discurso de Gettysburg). Disponvel em: Acesso em: 23 nov. 2010. Nesse site possvel escutar o discurso completo de Lincoln narrado pelo msico Johnny Cash. Cumpre destacar que a definio de Lincoln tambm ao mesmo tempo uma exortao a Deus; Lincoln rogava a Deus para que o governo dos Estados Unidos da Amrica fosse perenemente o Governo do povo, pelo povo e para o povo.

    44 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise da democracia no Brasil, p. 13.

    45 ARON, Raymond. Democracia e totalitarismo. Lisboa: Editorial Presena, 1966, p. 57-58.

    46 Idem, p. 57.

    47 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise da democracia no Brasil, p. 14.

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    respeitadas e promovidas48. Sob esse enfoque, a democracia um regime de governo que coloca o Estado a servio do homem49.

    Uma definio no se esgota na declarao da essncia de algo; ela circunscreve uma discusso, estabelece as fronteiras que no podem ser transpostas sob pena de esvaziar a definio. Mas definir algo tambm explicar, esclarecer, elucidar. A essncia de uma definio no se confunde com a fronteira que essa estabelece. Entre a essncia e a fronteira, h o campo semntico, h o espao para a explicao, h o espao para uma dialtica possvel.

    2.4 MODELOS DE DEMOCRACIA

    A despeito da origem grega do termo, importante destacar que a democracia parece ter sido inventada mais de uma vez, em mais de um local50 e, onde ela teria sido inventada, nem sempre seu desenvolvimento se deu de forma contnua e sem alteraes de forma. Ao longo da histria, a humanidade experimentou alguns modelos de democracia e testemunhou o aparecimento de institutos democrticos que existiram com ou sem uma democracia propriamente dita.

    Tendo em vista a complexa realidade poltica brasileira, na qual se verifica uma crescente e artificial correspondncia de certas ideologias democrticas com o modelo jurdico de democracia constitucionalmente delineado, que desencadeia um processo que, no raro, por contradies irremediveis, esvazia-o, torna-se imprescindvel a apresentao de uma breve tipologia da democracia, de modo a facilitar a identificao (ou a recordao) do tipo consagrado na Constituio e profilaticamente afastar invencionices ideolgicas.

    2.4.1 Democracia direta

    Conforme fora dito, os gregos foram os primeiros a utilizar o termo democracia, e pela lavra do vocbulo, acabou-se atribuindo aos mesmos a inveno da prpria democracia.

    48

    SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A crise da democracia no Brasil, p. 14. 49

    Idem, p. 03. 50

    DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. p. 19.

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    Em seu primeiro uso a palavra correspondia ao modelo chamado de democracia direta. Uma democracia tida como direta quando no se verificam, num determinado Estado ou numa determinada cidade ou localidade, instituies representativas semelhantes s consagradas pelas modernas democracias ocidentais. Assim, aqueles que so considerados cidados participam da poltica sem intermedirios: ningum fala por eles, ningum procurador das suas vontades. A democracia direta considerada por muitos o modelo puro de democracia.

    A democracia direta foi aplicada em diversas cidades gregas, mas foi em Atenas que a participao dos cidados na vida poltica se verificou com maior intensidade51. Em Atenas, reunia-se o povo entenda-se uma minoria social de homens livres na gora para exercer de maneira direta e imediata o poder poltico. A democracia grega assentava-se sob um regime escravocrata, que permitia o privilgio de os homens livres52 dedicarem-se inteiramente vida poltica, e era viabilizada pelo campo microcsmico de atuao poltica da Cidade-Estado (a plis) e por uma homogeneidade cultural53.

    Na democracia ateniense o poder era atribudo a todos os cidados, que participavam por meio de discursos e do voto numa assembleia em que se decidiam as questes fundamentais da plis.

    Em princpio, pode-se dizer que os nicos momentos em que na Grcia se excetuava o modelo de democracia direta era quando se formavam entre as cidades gregas as alianas, as ligas e as confederaes destinadas especialmente defesa comum54. No entanto, ao tempo de Pricles, a lei no o obrigava a convocar a assembleia, podendo ele deixar de convoc-la se receasse o acirramento das paixes populares55.

    Embora seja por muitos considerado o modelo puro de democracia, seus crticos ressaltam a incompletude e o carter primrio do modelo, haja vista a indiferena para com a

    51

    DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia, p. 22. 52

    A liberdade dos gregos era bastante distinta da moderna liberdade privada, pois resumia-se na liberdade de participao direta no governo, ou seja, nos direitos polticos de votar e nomear magistrados. No existia liberdade individual. O cidado, lembra Fustel de Coulanges, estava submetido em todas as coisas e, sem qualquer reserva cidade (COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituies da Grcia e de Roma. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 207-210). Nesse mesmo sentido, lembra Jean Franois Revel que A liberdade em Atenas era considerada unicamente como a participao do indivduo na deciso poltica, mas o indivduo em si no tinha liberdade pessoal (REVEL, Jean-Franois. O Estado e o indivduo. So Paulo: Servio Social do Comrcio, 1985, p. 12).

    53 SOARES, Mrio Lcio Quinto. Teoria do Estado: novos paradigmas em face da globalizao. So Paulo: Atlas, 2008, p. 244-246.

    54 DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. p. 22.

    55 PAUPRIO, A. Machado. Teoria democrtica do Estado. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997, p. 08-09.

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    pessoa humana56.

    Apesar das crticas, o modelo de democracia ateniense vendido at hoje como um exemplo de participao poltica; um ideal de democracia participativa. Mas, como observa Manoel Gonalves Ferreira Filho, as assembleias atenienses no atraam os cidados, o que demandou a criao de um qurum mnimo para certas votaes e o estabelecimento de multas pela ausncia dos mais ricos57. Essa constatao traz problemas srios para a sustentao da democracia direta como um modelo em que o povo se governa, pois, alm de os cidados serem um nmero pequeno em relao populao total58, a pouca participao desses fazia com que apenas alguns governassem59.

    Depois de ser vivenciada na Grcia por aproximadamente dois sculos60, a democracia direta s voltaria a ser aplicada em nveis locais, como, por exemplo, entre os vikings, no perodo de 600 d.C at 1000 d.C. Nas assemblias de vikings livres eram resolvidas disputas, aprovadas ou rejeitadas leis ou propostas de mudana de religio. Estima-se que por volta de 900 d.C as assemblias vikings j eram realizadas em diversas reas da Escandinvia61.

    Robert Dahl destaca que entre os vikings livres existia uma forte idia de igualdade e para exemplificar isso menciona um evento em que um mensageiro perguntou para alguns

    vikings dinamarqueses: Qual o nome de vosso senhor?, ao que lhe responderam Nenhum. Somos todos iguais. Entretanto, assim como ocorria na Grcia Antiga, a igualdade entre os vikings s se aplicava entre os homens livres (camponeses livres, agricultores, pequenos proprietrios). Alm de os homens livres terem sido, de alguma forma, desiguais entre si por riqueza ou status, muitos deles possuam escravos. Mas a despeito de algumas limitaes igualdade, havia um nmero suficiente de homens livres capazes de influir, de forma duradoura, na poltica, mormente quando esta se distanciava das dimenses locais.62

    Tempos depois, no sculo XIII, a democracia direta seria experimentada na Sua, inicialmente nos cantes de Uri e de Schwyz, por meio da chamada Landsgemeinde (assemblia provincial)63, na qual os cidados votam ao ar livre erguendo as mos, sobre

    56

    PAUPRIO, A. Machado. Teoria democrtica do Estado..., p. 17. 57

    FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. A democracia no limiar do sculo XXI. So Paulo: Saraiva, 2001, p. 04.

    58 No perodo ureo da democracia o nmero de cidados correspondia somente a 13% da populao (Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. A democracia no limiar do sculo XXI, p. 05).

    59 O que no quer dizer que a havia uma representao no sentido moderno da palavra.

    60 DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia, p. 21.

    61 Idem, p. 28.

    62 Ibidem, p. 27-29.

    63 FOSSEDAL, Gregory A.; BERKELEY, Alfred R. Direct democracy in Switzerland. New Brunswick New Jersey: Transaction Publishers, 2005, p. 12-13. Segundo Kris Kobach, a primeira experincia da Landsgemeinde ocorreu em 1294, no canto de Schwyz: [] the first direct vote of citizens on policy being

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    assuntos cantonais64. Essa experincia foi levada para outros cantes e ainda permanece nos cantes Appenzel Innerrhoden65 e Glarus66. A partir do momento em que comeam a surgir as primeiras instituies parlamentares, o sistema da Landsgemeinde vai aos poucos sendo conjugado com formas de representao poltica.

    No plano terico, o pensamento de Jean Jacques Rousseau foi e ainda utilizado para a defesa da democracia direta. Para Rousseau:

    A soberania no pode ser representada, pela mesma razo que no pode ser alienada; ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade no se representa; ou a mesma ou outra - no existe meio-termo. Os deputados do povo no so, pois, nem podem ser seus representantes; so simples comissrios e nada podem concluir definitivamente67.

    A vontade geral para Rousseau surge pela deliberao direta de todos os cidados. Entretanto, foi o prprio Rousseau quem advertiu que o modelo de democracia por ele proposto s seria conveniente para Estados pequenos68.

    Atualmente a democracia direta exigida de forma cada vez mais enrgica. Para reivindic-la, Fbio Konder Comparato chegou a usar exclamao logo no ttulo de um de seus artigos: Democracia direta j!69. Comparato v na democracia direta um expediente capaz de remendar o sistema eleitoral e partidrio, um remdio de salvao que se apresenta democracia representativa70. O apelo retrico de Comparato pode at contribuir para lembrar que nas democracias contemporneas existem institutos, como o plebiscito e o referendo, que podem servir como corretivos democracia representativa, mas nem por isso deixa de ser uma abordagem precipitada, mormente quando se tem em mente o uso demaggico que se faz desses instrumentos na Amrica Latina71.

    Para se propor a democracia direta preciso ter cautela. O modelo ateniense

    documented in 1294 in canton of Schwyz; This ancient from of ideal democracy is traceable to the thirteenth century, the first attested meeting of a Landsgemeinde being held in Schwyz in 1294. (KOBACH, Kris W. The Referendum: direct democracy in Switzerland. Aldershot, Hants, England; Brookfield, Vt., USA: Dartmouth, 1993, p. 03 e 17).

    64 A Landsgemeinde s foi abolida no canto de Uri no ano de 1928. (The Cantons of Switzerland. Disponvel em: Acesso em: 20 nov. 2010)

    65 Cf. Site oficial do canto: KANTON APPENZELL INNERRHODEN. Disponvel em: Acesso em 20 nov. 2010.

    66 Cf. Site oficial do canto: KANTON GLARUS. Disponvel em: Acesso em 20 nov. 2010.

    67 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 114.

    68 ROUSSEAU, Jean-Jacques, op. cit. p. 96.

    69 COMPARATO, Fbio Konder. Democracia direta j! Folha de S. Paulo, 05 de agosto de 2005, p. 03.

    70 Quando Comparato fez esses apontamentos o Brasil presenciava a ecloso de diversos escndalos polticos.

    71 Por coincidncia, no mesmo ano em que Comparato escreveu o artigo em tela, realizou-se no Brasil, na linha dos regimes totalitrios, o referendo para proibir o comrcio de armas de fogo.

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    permanece vivo no imaginrio de polticos, acadmicos e engenheiros sociais, tanto em sua forma original como tambm sob novos contornos lingusticos.

    H quem proponha, revelia da advertncia de Rousseau, a substituio, mesmo para grandes Estados ou regies, da democracia representativa pela democracia direta. Nesse sentido tem-se entre ns, por exemplo, a ONG Democracia Direta, que pleiteia tornar-se um partido poltico com registro no Tribunal Superior Eleitoral. Essa organizao prope claramente a substituio da democracia representativa pela democracia direta, com uma aplicabilidade no mbito Distrital, Municipal, Estadual, Federal e Global72.

    Corrobora com esse tipo de movimento o deslumbramento de algumas pessoas com os avanos da informtica, os quais, segundo elas, abririam a possibilidade de uma democracia direta at mesmo para os grandes Estados. caso de Paulo Bonavides, que imaginando uma cyberdemocracia direta chegou a criar uma nova gerao de direitos, o direito fundamental de quarta gerao que h de ser, de necessidade, uma democracia direta73.

    Por certo, a internet traz novas possibilidades para a participao popular, pois favorece a realizao de plebiscitos e referendos, permite a construo de um espao pblico virtual de discusses capaz de romper com a alienao poltica causada pela grande mdia e facilita a articulao de movimentos democrticos (e tambm de no democrticos, diga-se). Ademais, com a internet possvel furar a filtragem exercida pelos meios de comunicao social e ter acesso a contedos gerados por fontes primrias74 (v.g. websites oficiais do governo; vdeos do Youtube, que permitem acessar entrevistas e declaraes dos agentes polticos que so preteridas nos noticirios; websites de movimentos sociais, ONGs, partidos polticos, etc.), ou seja, ter acesso direto, sem a intermediao da atividade jornalstica organizada.

    Entretanto, preciso ter cautela na defesa da democracia direta na internet. Norberto Bobbio, ao analisar a questo, a partir da observao do cenrio poltico italiano, destacou que:

    A hiptese de que a futura computadorcracia, como tem sido chamada, permita o exerccio da democracia direta, isto , d a cada cidado a possibilidade de transmitir o prprio voto a um crebro eletrnico, uma hiptese absolutamente pueril. A julgar pelas leis promulgadas a cada ano na Itlia, o bom cidado deveria ser convocado para exprimir seu prprio voto ao menos uma vez por dia75.

    72

    Disponvel em: Acesso em 15 nov. 2010. 73

    BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 571. 74

    BECKER, Maria Lcia. A incluso digital e a nova relao da periferia com a notcia. In: Revista de Estudos da Comunicao/Pontifcia Universidade Catlica do Paran, v. 7, n. 13, jan./jun. 2006. Curitiba: Champagnat, 2006, p. 60.

    75 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia..., p. 26.

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    Embora a internet contribua para a realizao de plebiscitos, difcil de visualiz-la como instrumento capaz substituir a representao poltica.

    Alm disso, a computadorcracia direta traz consigo a figura do cidado total. Ocorre, conforme observa Bobbio, que:

    O cidado total e o estado total so as duas faces da mesma moeda; consideradas uma vez do ponto de vista do povo e outra vez do ponto de vista do prncipe, tm em comum o mesmo princpio: que tudo poltica, ou seja, a reduo de todos os interesses humanos aos interesses da plis, a politizao integral do homem, a resoluo do homem no cidado, a completa eliminao da esfera privada na esfera pblica [...]76.

    A apresentao da democracia direta pela internet como uma panaceia torna-se particularmente sedutora, e por isso mesmo temerria, em Estados como o brasileiro, em o Congresso no inspira a confiana da populao77 e alvo de inmeros ataques78.

    Feitas essas observaes sobre democracia direta na internet, vale lembrar, ainda, que a democracia direta tende a ser inserida nas propostas de democracia participativa79. Existem diversas concepes de democracia participativa. Algumas se limitam a propugnar o uso frequente dos institutos de democracia direta, outras um maior engajamento poltico dos cidados ou tambm uma maior interao entre representantes e representados80. Outras81 tratam-na como um projeto social mais profundo, com transformaes nas relaes de poder.

    2.4.2 Democracia da civitas e repblica moderna

    A democracia da civitas, de modo anlogo ao modelo grego, tambm se assentava 76

    BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia..., p. 43. 77

    Cf. Igreja d salto no ranking da confiana. 17 de novembro de 2010. Estado.com.br. Disponvel em: Acesso em 30 mar. 2011.

    78 H quem inclusive sugira o fim do Congresso. Embora sejam mais comuns as propostas de fechamento do Senado (cf. nesse sentido as propostas e declaraes dos membros do Partido Socialismo e Liberdade - PSOL), Cristvam Buarque recentemente defendeu a realizao de um plebiscito para decidir se o Congresso deve ou no ser fechado. (Senador sugere plebiscito para debater fechamento do Congre