Schroeder a Criança e Desenvolvimento Schoreder

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    abstract

    Neste trabalho procuramos discutir algumas questes sobre os processos

    de apropriao da msica por crianas em idade pr-escolar. Ancorados na

    concepo de desenvolvimento de Vigotski, na concepo de linguagemde Bakhtin e nos estudos de sociologia da ao e do indivduo de Lahire,

    apresentamos a anlise de alguns dados coletados numa pesquisa em

    andamento em escolas de educao infantil. Os principais tpicos em discusso

    dizem respeito diversidade de formas de resposta a enunciados musicais

    que nos atestam a diversidade dos modos como a msica se incorpora nascrianas e a possibilidades de interpretao dessas respostas. Essas anlises

    nos permitem rever alguns procedimentos e apontar direes para a educao

    musical nesses espaos escolares.PALAVRAS-CHAVE: apropriao musical, desenvolvimento musical, educao infantil

    In this work we discuss some questions about the processes of appropriationof music by children in preschool age. Anchored in Vigotskis conception of

    development, in the conception of language of Bakhtin and in the studies of

    sociology of action and the individual of Lahire, we present the analysis of data

    collected in a research that is still in progress, in schools of early childhoodeducation. The main topics in discussion are related to the diversity of reply

    forms to musical statements that certify the diversity of the ways that musicincorporates in children and the possibilities of interpretation of these answers.

    These analyses allow to review some procedures and to point directions for

    musical education in these school spaces.

    KEYWORDS:music appropriation, music development, early childhood education

    resumo

    As crianas pequenas e seusprocessos de apropriao da msica

    Small children and their processes of music appropriation

    SLVIA CORDEIRO NASSIF SCHROEDER Universidade de So Paulo (USP) [email protected]

    JORGE LUIZ SCHROEDER Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) [email protected]

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    SCHROEDER, Slvia Cordeiro Nassif; SCHROEDER, Jorge Luiz

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    introduo:

    procedimentos

    metodolgicos

    e princpiosnorteadores

    Este texto apresenta alguns resultados parciais de uma pesquisa que vem sendo desenvolvida

    no espao escolar da educao infantil. O objetivo principal dessa pesquisa entender

    como se d a apropriao da msica pelas crianas pequenas, buscando indicadores dos

    aspectos mais relevantes nesse processo. Para isso, foram feitas observaes durante o perodo

    de um ano em classes de crianas de 4 a 6 anos 1em duas escolas, uma pblica e uma privada,

    nas cidades de Campinas e Ribeiro Preto (no estado de So Paulo), respectivamente. Eram

    contextos bastante diferentes no que se refere presena da msica. A escola pblica no contava

    com professor especialista em msica, sendo que as atividades musicais eram realizadas em

    oficinas semanais por iniciativa das prprias educadoras responsveis pelas salas e, durante o

    perodo de observao, tambm por propostas dos prprios pesquisadores. Na escola privada,

    por outro lado, havia uma professora especialista, sendo que as crianas observadas tinham

    aulas semanais de msica desde os 2 anos de idade. Alm disso, trata-se de uma escola cujo

    projeto pedaggico privilegia a arte de modo geral, a qual considerada condutora do ensino na

    etapa de educao infantil, e conta tambm com professores especialistas em outras linguagens

    artsticas. Achamos importante assinalar que, dada a situao privilegiada da escola particular,podemos dizer que as cenas observadas provavelmente foram resultado de um processo

    iniciado h certo tempo. J no caso da escola pblica, esse processo anterior no foi constante,

    nem garantido, pelo menos para muitas crianas. Contudo, o fato de que ns, pesquisadores,

    pudemos propor e realizar vrias atividades musicais permitiu com que realizssemos ali tambm

    um trabalho prvio de preparo e envolvimento das crianas com as atividades sugeridas, ainda

    que de forma mais aligeirada. Isso talvez tenha mascarado um pouco diferenas provveis de

    atitudes responsivas das crianas de uma escola e de outra, certamente provindas de suas

    trajetrias socioculturais. Consideramos, contudo, irrelevante o fato de isso ter ou no ocorrido, j

    que nosso foco de ateno, nesse momento, foram as vrias formas de apropriao musical no

    ambiente escolar, ou seja, do ponto de vista das realizaes musicais, sempre uma construoartificial, tenha ela tido um perodo longo de preparo ou no.

    A opo por observar dois contextos distintos, entretanto, pareceu a mais adequada aos

    nossos pressupostos sobre o desenvolvimento humano. Partimos do princpio vigotskiano de

    que as funes psicolgicas culturais (entre as quais aquelas necessrias ao desenvolvimento

    da musicalidade) se desenvolvem de modo diferente em ambientes socioculturais diferentes2

    e das reflexes que Bernard Lahire (2002, 2004) faz sobre as disposies adquiridas (hbitos,

    valores, modos de interpretar, tendncias para agir ou para refletir, facilidades ou dificuldades,

    etc.) que so estimuladas ou suprimidas sob a influncia de ambientes ou situaes recorrentes

    especficas. Nesse sentido, considerando a importncia do ambiente escolar no desenvolvimento

    infantil, gostaramos de investigar alguns aspectos relevantes no desenvolvimento musical dascrianas principalmente em relao sua experincia musical escolar. Sabemos, obviamente,

    1. Assinala-se que, poca da observao, o ensino fundamental de 9 anos ainda estava em fase de implantao, demodo que algumas crianas de 6 anos completos permaneciam na educao infantil.

    2. De acordo com Vigotski (1998a), o ser humano possui dois tipos de funes psicolgicas: as naturais ou inferiores (que o que temos em comum com os animais) e as culturais ou superiores (especificamente humanas). As primeiras nosso dadas no nascimento pela herana gentica, mas as segundas esto ligadas s prticas sociais e sero diferentesem funo dessas prticas. Todas as formas de linguagem, incluindo a msica, esto ligadas s funes culturais.

    Assinala-se ainda que a noo de ambiente, para Vigotski, inclui tambm as relaes humanas.

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    que a escola no a nica influncia musical das crianas observadas, mas com certeza

    um local de vivncia intensiva delas, sobretudo na faixa etria abordada, e, portanto, bastante

    relevante no processo de apropriao da linguagem musical.

    Outro princpio norteador da pesquisa foi a concepo de msica como uma forma dediscurso. Ancorados na filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin (2000, 2009), entendemos a

    msica como um acontecimento vivo e dinmico, que se atualiza a cada realizao, e no como

    um sistema fechado e inerte, sujeito a regras fixas e imutveis.3Numa analogia com o enunciado

    lingustico, trabalhamos com a ideia de enunciado musical, acontecimento no qual os sentidos

    e os valores so sempre contextuais e levam em conta no apenas a materialidade sonora em

    si, mas tambm o contexto situacional. Dessa forma, uma mesma realizao musical pode ter

    significados diferentes em situaes distintas. Isso no significa, porm, que no haja pontos de

    estabilidade no discurso musical. Assim como na linguagem verbal, diferentes contextos culturais

    vo cristalizando determinadas formas de organizao sonora e dando origem ao que Bakhtin

    (2000) denomina gneros do discurso. Isso faz com que qualquer realizao lingustica (e

    musical) deva ser vista, ao mesmo tempo, como nica, irrepetvel, e filiada a um gnero discursivo

    qualquer. Como veremos mais detalhadamente nas anlises dos dados, essa forma de conceber

    a msica afeta sobremaneira a viso do que seja um processo de aprendizagem musical, pois

    obriga a que se considerem como relevantes no apenas as realizaes musicais em si, mas

    todo um movimento de aproximao em relao msica, includas a tambm as situaes

    informais nas quais a msica se faz presente ou ainda os equvocos musicais cometidos pelas

    crianas.

    Alm disso, tomar a msica como discurso coloca em primeiro plano a questo da

    significao. Aprender msica se apropriar de uma forma de linguagem, de um modo de se

    expressar, de se comunicar, de compartilhar sentidos. Pressupe, portanto, a possibilidade do que

    Bakhtin (2000) chama de compreenso ativa, o que significa que a formulao derespostasaenunciados musicais depende de (e comprova) alguma forma de entendimento do que se ouviu.

    E essasrespostaspodem ser de naturezas diversas: desde uma simples emoo, uma palavra,

    um desenho, uma brincadeira, at a criao de uma outra obra musical. Trabalhamos com a ideia

    de que as crianas pequenas no se manifestam musicalmente apenas quando esto tocando

    um instrumento ou cantando, por exemplo, mas de diversas outras formas.4Buscar onde esto e

    quais so os sentidos dessas outras formas de reao significativa msica ser nosso principal

    foco neste texto. Procuraremos ainda, na parte final, sintetizar as relaes entre as anlises

    efetuadas e algumas questes especficas de educao musical.

    3. A lngua existe no por si mesma, mas somente em conjuno com a estrutura individual de uma enunciaoconcreta. (Bakhtin, 2009, p. 160, grifo nosso).

    4. Assinala-se que muitas pesquisas sobre o desenvolvimento musical, tanto mais antigas quanto mais recentes, tmenfatizado as respostas especificamente musicais como indicadoras desse desenvolvimento, as quais, obviamente,tambm so importantes. Nessa linha, ver, por exemplo, Willems (1969), Gardner (1997, 1999), Gordon (2000), Brito(2005), Parizzi (2006), entre outros. Apenas no que tange a estudos com bebs (como em Ilari, 2002 e Beyer, 2007),tm-se prestado mais ateno a outras formas de resposta. Reforamos, porm, que nossos pressupostos sobre odesenvolvimento infantil nos levam a deslocar essa nfase, ampliando o olhar mesmo em se tratando de crianas pr-escolares.

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    A noo de discurso musical permite entender a complexidade dos aspectos envolvidosna msica, seja do ponto de vista da produo, seja da recepo. O confronto com essa forma

    simblica envolve diversos tipos de relao: com outras msicas, com outras formas simblicas

    da cultura, com as experincias vividas. As respostas (no sentido bakhtiniano de compreenso

    ativa) possveis msica, dessa forma, so quase ilimitadas. Alm disso, no caso especfico das

    crianas pequenas, acrescenta-se o sincretismo5como uma das principais caractersticas dessa

    etapa do desenvolvimento. Nesse sentido, podemos dizer que possvel observar o processo

    de apropriao da linguagem musical, nessa faixa etria, tambm, ou talvez principalmente, em

    situaes nas quais as crianas no esto propriamente fazendo msica, mas vivenciando-a

    de diversas outras formas: danando, representando, imitando, fazendo gestos, brincando.

    Vejamos algumas situaes observadas.6

    a) Brincadeiras

    a.1. Brincando de ndioAo final da aula, depois de ouvirem vrias msicas de ndios brasileiros (projeto em andamento

    na sala), a professora deixa um tempo livre para as crianas brincarem. Algumas comeam a

    danar uma suposta dana de ndio, com movimentos ritmados. Outras pegam os caxixis e

    comeam a marcar um pulso juntas. Em pouco tempo, os dois grupos se coordenam e os caxixis

    passam a marcar o pulso da dana improvisada.

    a.2. Tumbalacatumba

    Ao final da aula de msica, os alunos pedem um tempo livre para brincarem de

    Tumbalacatumba, uma brincadeira que todos conhecem e parecem gostar muito. A brincadeira

    consiste em representar gestualmente a letra de uma msica que versa sobre as atividades

    realizadas por caveiras a cada hora do dia. A msica tem o ritmo bem marcado e os gestos

    so realizados acompanhando esse ritmo. Todas as crianas, incluindo aquelas que demonstram

    alguma dificuldade em seguir um pulso regular e constante em atividades musicais direcionadas,

    realizam os movimentos com preciso rtmica.

    Percebemos, nesses episdios, que situaes musicais menos formais, como aquelas

    nas quais as crianas esto apenas preocupadas em brincar, s vezes revelam conquistas e

    diversidade

    das respostas

    das crianas

    a enunciadosmusicais: alguns

    episdios/alguns

    resultados

    5. O sincretismo considerado uma das principais caractersticas do pensamento e criao da criana pr-escolar.Diversos autores da psicologia destacam o carter confuso e global do pensamento e percepo infantis (Galvo,2000, p. 81): No sincretismo, tudo pode se ligar a tudo, as representaes do real (idias, imagens) se combinam dasformas mais variadas e inusitadas, numa dinmica que mais se aproxima das associaes livres da poesia do que dalgica formal. (Galvo, 2000, p. 81). Isso se reflete particularmente nas criaes infantis, as quais no so nitidamentediferenciadas em relao ao tipo de arte (Vigotski, 2009): uma msica se vincula a uma imagem ou movimento, umdesenho pode conter um gesto ou uma narrativa, etc.

    6. Os episdios em anlise neste texto so recortes dos registros efetuados na pesquisa (cadernos de campo efilmagens). Referem-se escola pblica os episdios b.1, c.2 e c.3, e escola particular os episdios a.1, a.2, b.2, c.1e c.4. Os nomes das crianas so todos fictcios.

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    As crianas pequenas e seus processos de apropriao da msica

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    possibilidades musicais nem sempre visveis nas situaes de aula de msica. A brincadeira a principal atividade na idade pr-escolar (Leontiev, 1998; Vigotski, 1998a). atravs delaque a criana adquire e desenvolve uma srie de funes psicolgicas, como, por exemplo,a possibilidade de se desprender da percepo imediata, da sensorialidade pura em direoa um comportamento simblico (mediado por signos), controlado e voluntrio. A brincadeirapr-escolar envolve sempre uma situao imaginria e regras ou, em outras palavras, aconcomitncia entre liberdade j que no h um nico e previamente definido resultado econtrole pois h resultados melhores e piores, mais adequados ou menos adequados (vriasbrincadeiras simplesmente se descaracterizam se certas normas previamente acordadas noforem obedecidas).

    Nos dois episdios acima, a criao de uma situao imaginria (espontnea, em a.1,e proposta pela letra da msica, em a.2) foi o ponto de partida para o desenvolvimento dabrincadeira. Entretanto, para que ela desse certo, parece ter havido uma espcie de acordo entreas crianas em relao s regras do jogo, ou ao que era ou no permitido fazer. Ao exercerem

    um controle voluntrio sobre seu comportamento (exigido pelo ato de brincar), essas crianasrevelaram que dominavam aspectos musicais nem sempre mostrados nas aulas de msica,nas atividades musicais mais especficas. Crianas incapazes de seguir uma pulsao quandotocavam instrumentos de percusso, por exemplo, mostraram, na brincadeira, pleno domnioda regularidade temporal. Em a.1, pudemos presenciar uma dupla sincronia temporal: entreos integrantes de cada grupo em separado e entre os dois grupos. E em a.2, surpreendeu acapacidade que alguns demonstraram em seguir acentos, mudanas de dinmica e aggicapresentes na msica.

    De acordo com Vigotski (1998a, p. 122), todo avano est conectado a uma mudanaacentuada nas motivaes, tendncias e incentivos. Por outro lado, o ato ldico caracteriza-se pela presena de emoes que o incentivam, ainda que no estejam conscientes para a

    criana (Pimentel, 2007), o que justifica a grande importncia da brincadeira como ativadorado desenvolvimento na idade pr-escolar. Nos episdios em foco, desse modo, podemos dizerque as emoes positivas que acompanharam as brincadeiras foram as grandes incentivadoraspara que as crianas primassem por uma realizao musicalmente bem cuidada, embora,conscientemente, isso no fosse relevante. J nos momentos das aulas (posteriores e anterioresa esses episdios) em que as crianas eram solicitadas a buscar uma regularidade temporalpela professora de msica, a forte motivao emocional no era a mesma e, como resultado,havia uma espcie de regresso musical, perdendo-se em parte as conquistas adquiridas nasbrincadeiras.

    Essa oscilao entre regularidade e irregularidade talvez seja um indcio de que essascrianas esto em uma espcie de fase de transio, pois j tm a possibilidade de, mas ainda

    no conseguem canalizar esse comportamento para situaes estritamente musicais. A msica,para a criana bem pequena,7 inicialmente parte da vida como um todo, no se diferencia de

    outras atividades por ela vivenciadas. Quando ela inicia a chamada fase do faz de conta, por

    7. importante assinalar que a psicologia vigotskiana no trabalha com a ideia de etapas/idades fixas para odesenvolvimento, j que as principais funes psicolgicas s so desenvolvidas a partir das prticas sociais. Dessaforma, dependendo dessas prticas, ou da riqueza ou pobreza de suas experincias, a criana se desenvolve numritmo diferente. Da porque preferimos sempre falar em crianas muito pequenas para uma faixa etria aproximada de0 a 3 anos e crianas pequenas, para 4 a 6 anos.

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    volta de 3 ou 4 anos, a msica comea a fazer parte desse mundo imaginrio e as realizaes

    musicais so carregadas de fantasia e ludicidade. S num terceiro momento, j prximo da idade

    escolar, a msica passa a fazer sentido como atividade quase autnoma em relao vida e ao

    jogo. Uma autonomia total da msica, porm, seria muito difcil, seno impossvel, para crianas

    em idade pr-escolar, j que exigiria, entre outras coisas, um grau elevado de abstrao da

    linguagem musical (s possvel, talvez, para os prprios msicos).

    b) Respostas corporais: movimentos, gestos e danas

    b.1. Carnaval dos Animais: o desfile

    A partir de uma montagem feita com 4 sees da pea Carnaval dos Animais, do compositor

    Saint-Sens, (que remetem aos animais: leo, galinhas, elefante e aves), proposta uma atividade

    na qual 4 grupos de crianas, cada um representando um grupo de animais, participam de um

    desfile. A cada entrada das msicas, um grupo previamente determinado de crianas imita o

    animal correspondente e desfila pela diagonal da sala, criando gestos e movimentos relativos ao

    animal e em sintonia com a msica. So feitos alguns ensaios e as crianas, atentas, rapidamente

    percebem as mudanas musicais (na montagem, as pontuaes entre os movimentos foram feitas

    usando-se cadncias harmnicas das prprias sees da pea), que determinam as entradas e

    sadas dos grupos. Chama a ateno uma criana que no apenas imita o animal, mas usa, na sua

    imitao, detalhes musicais, coordenando, por exemplo, trinados rpidos na flauta com piscadas

    de olhos.

    b.2. Dana de So Joo

    Nos minutos finais da aula, a professora coloca no toca CD uma msica junina para que

    todos possam conhec-la e danar livremente antes de aprenderem a dana da quadrilha para a

    Festa Junina. As crianas se juntam em vrios grupinhos, do as mos e comeam a danar. Um

    garoto fica sozinho, no se agrupa, e dana de modo ritmado (p direito para frente, p direito

    volta; p esquerdo para frente, p esquerdo volta). Um outro se aproxima e tenta aprender a dana,

    depois desiste. O primeiro garoto continua a sua dana solitria at que a professora prope uma

    roda de mos dadas com todas as crianas.

    Nos dois episdios acima as crianas responderam significativamente msica atravs de

    manifestaes corporais espontneas, emitindo sinais mais ou menos claros sobre os vnculos

    musicais j conquistados e em funcionamento. Em b.1, embora a proposta da brincadeira tivesse

    sido feita pelos pesquisadores, os movimentos e aes eram criados livremente pelas crianas.Em b.2, no havia nenhuma proposta de movimentos, os quais foram realizados por iniciativa

    das prprias crianas.

    De acordo com Vigotski (1998b), toda forma de percepo inicialmente ligada

    motricidade. Com o avano no desenvolvimento, a percepo vai se libertando do movimento.

    Percebe-se que as crianas observadas nessa pesquisa ainda mantm esse atrelamento de

    maneira bastante acentuada, o que permite que observemos suas formas de percepo a partir

    de suas respostas corporais.

    No episdio b.1, pudemos inferir que as crianas conseguiram efetivamente uma forma de

    apropriao do discurso, j que parecem ter identificado vrios aspectos musicais. Em primeiro

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    lugar, perceberam as pontuaes entre as sees (os finais, as passagens, os incios), as quais

    provocavam aes responsivas (entrar ou sair do desfile) rpidas na maioria dos alunos. Tambm

    captaram o carter geral de cada seo, pois os movimentos criados estavam em sintonia com a

    msica (por exemplo: movimentos lnguidos, para partes lentas; movimentos enrgicos, para as

    rpidas), alm do carter geral proposto pelo prprio animal representado. Por ltimo, para alm

    dessa percepo mais global, destacou-se no episdio em questo a percepo de um detalhe

    musical (trinados), traduzido em um gesto especfico (piscada de olhos).

    Percebe-se, dessa forma, que mesmo elementos sutis podem ser apreendidos por crianas

    pequenas, desde que inseridos em discursos musicais que sejam significativos para elas. No

    caso em questo, vnhamos trabalhando com essa msica h vrias aulas, e sempre de uma

    maneira ldica, seja atravs de dramatizaes, danas ou desenhos. As crianas criaram um

    vnculo positivo com a pea musical, ela passou a fazer parte de suas experincias de uma

    maneira natural, sem qualquer tipo de imposio de nossa parte para que reagissem desta ou

    daquela maneira. Entendemos que os processos de apropriao da linguagem musical passam

    necessariamente pela possibilidade de expresso individual da criana em diversas linguagens,no apenas na msica. Conforme j dito, a conexo com a experincia vivida parece ser a porta

    de entrada para qualquer sistema simblico.

    Em b.2, a forma de resposta das crianas msica foi a dana espontnea. Tambm aqui

    revelou-se um grau significativo de apreenso do discurso, tanto em termos do carter quanto

    em termos temporais. Chamou a ateno o menino que permaneceu por quase todo o tempo

    da msica marcando o pulso com movimentos dos ps, sem perder o ritmo e sem mostrar

    sinais de cansao. Fosse ele obrigado a marcar o pulso num instrumento de percusso, por

    exemplo, o resultado talvez no fosse o mesmo. Isso ocorre porque, numa aula de msica,

    geralmente um elemento musical apenas um elemento musical, enquanto que, nas situaes

    como as narradas, que envolvem o ldico, um elemento musical encerra todo um universo designificaes. Mesmo quando a criana est apenas marcando um ritmo com os ps, como no

    episdio acima descrito, um mundo imaginrio mobilizado e entra em funcionamento.

    Um paralelo com a aquisio da lngua materna talvez nos ajude a compreender melhor

    essa questo. De acordo com Vigotski (1998b), do ponto de vista estrutural da linguagem, a

    criana comea falando palavras isoladas, depois frases simples, frases complexas e, por ltimo,

    perodos completos. Entretanto, do ponto de vista semntico, a primeira palavra de uma criana

    corresponde a uma orao completa, ou seja, embora ela s consiga expressar palavras soltas,

    estas esto prenhes de significao. Tambm em relao msica, pensamos que o processo

    equivalente: embora a criana s seja capaz de se expressar musicalmente atravs de fragmentos

    ou de elementos discursivos meio isolados, esses fragmentos so carregados de sentido. Da

    porque muitas vezes, sobretudo nessa faixa etria, conseguimos perceber o quanto as crianas

    j absorveram da linguagem musical quando elas se expressam em outras linguagens, nas quais

    as limitaes tcnicas so de outra natureza.

    Vimos, ento, por esses episdios, que os indicadores de que est havendo um processo de

    aprendizagem da linguagem musical por parte das crianas pequenas podem ser encontrados

    em locais e formas de expresso que vo muito alm de comportamentos musicais em aulas de

    msica. Gostaramos agora de falar um pouco tambm sobre acontecimentos em situaes mais

    formais. No nos deteremos, porm, nas respostas musicais corretas, mas nos equvocos.

    Entendemos que h interessantes indcios de apropriao da linguagem musical nas respostas

    musicais nas quais as crianas cometem algum tipo de erro em relao ao que seria esperado.

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    c) Equvocos diversos

    c.1. Impreciso rtmica (acertos por falta)

    As crianas aprendem a parlenda Um, dois, feijo com arroz. A professora distribui

    instrumentos de percusso e faz com que as crianas toquem o que elas cantam, numa relaosilbica com o texto. Todos tocam e cantam juntos, mas no obedecem exatamente o ritmo

    silbico da parlenda. Ao invs de tocar:

    um dois fei jo coar roz

    tocaram:

    um dois _ jo coar roz

    c.2. Engano revelador

    Fitas coloridas foram distribudas entre as crianas: cinco cores. Escolhemos cinco

    msicas, uma para cada cor de fita. A cada escuta da msica relativa sua cor, o grupo da cor

    correspondente toma o centro da sala e move a fita como desejar, sempre ouvindo a msica.

    Ao trocar a msica, troca-se o grupo de alunos.

    Uma das msicas, a correspondente cor vermelha, possui uma marcao final feita com

    um glissando de piano. Sua estrutura repete duas vezes a mesma seo, portanto aparece o

    mesmo glissando duas vezes: no final da primeira seo e no final da msica.

    Uma das alunas percebeu essa marca na primeira vez que fizemos a atividade.

    Propusemos que as crianas repetissem novamente a atividade e nesta segunda vez a

    aluna, ao ouvir o primeiro glissando, sentou-se, terminando sua movimentao. Contudo, a

    msica comeou novamente, repetindo a primeira seo. A aluna, ento, se levantou surpresa

    e continuou a movimentao da fita at o segundo glissando, quando se sentou novamente,

    desta vez terminando os movimentos junto com a msica.

    c.3. Referncias (presena e ausncia)

    Enquanto esperam um dos pesquisadores, as educadoras propem que as crianas

    cantem algumas msicas. Comeam todos a cantar de modo bastante desafinado. O

    pesquisador chega e comea a tocar acompanhamentos no violo. O resultado melhora

    significativamente em termos de afinao.

    c.4. Referncias (estabelecida e perdida)

    A professora estava ensinando um acompanhamento rtmico, com vibrafone, para uma

    msica japonesa. O acompanhamento consistia num ritmo regular, acompanhando o pulso

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    da msica nos tempos 1 e 2 de um compasso de dois tempos (binrio simples). Uma aluna

    comeou a tocar regularmente seu vibrafone s que nos contratempos do compasso. Assim que

    a professora corrigiu o ritmo a aluna no conseguiu mais tocar com regularidade e passou a

    acompanhar visualmente o gesto de tocar da professora.

    Com esses episdios narrados acima tentamos deixar mais evidente uma questo de fundo

    que nos parece de grande importncia revisar e que diz respeito ideia da forma transmissiva

    do conhecimento, em confronto com a daapropriao (que para alguns autores chamada de

    formaparticipativa8).

    Sem pretender nos aprofundarmos nesse assunto, interessa-nos agora estabelecer uma

    diferena, que julgamos fundamental, entre, de um lado, ensinar msica ao aluno e, de outro,

    inseri-lo no universo discursivo da msica. A ideia da transmisso do conhecimento sustentada

    por uma concepo da msica como sendo um conjunto homogneo, nico, fixo e imutvel de

    informaes, conceitos, procedimentos e prticas que, exterior aos msicos ou aos praticantes,

    precisa ser ensinado, transmitido de um a outro sem alteraes. Essa viso corresponde ao

    que Bakhtin (2009), falando a respeito da linguagem verbal, chama criticamente de objetivismo

    abstrato. Segundo o autor, essa tendncia define a lngua como um sistema estvel, imutvel,

    de formas lingsticas submetidas a uma norma fornecida tal qual conscincia individual e

    peremptria para esta (Bakhtin, 2009, p. 85).

    Nesse caso, a exigncia da exatido na reproduo daquilo que ensinado (exerccios,

    trechos musicais, escalas, msicas completas) condio indispensvel para a avaliao da

    aprendizagem. Ou seja, se o aluno no tocar exatamente aquilo que seu professor ensinou, da

    mesma forma como ele ensinou, no estar se desenvolvendo musicalmente. Essa forma de

    entender o processo ensino/aprendizagem caracteriza o que se costuma denominar ensino

    tradicional. Na ideia de apropriao, ao contrrio, o conhecimento (no nosso caso, a msica)no existe como tal no mundo exterior, mas reconstri-se pouco a pouco, para cada ser

    singular, nas interaes repetidas que tem com outros atores [como Lahire chama os agentes

    sociais, no nosso caso, msicos], atravs de objetos e em situaes sociais particulares (Lahire,

    2002, p. 174).

    Podemos, assim, afirmar que, por exemplo, no episdio c.1, os alunos, ao subtrarem uma

    nota do ritmo proposto pela atividade (um, dois, jo carroz) mostraram no um erro, mas um

    indcio de que compreenderam plenamente a proposta, que era reproduzir com os instrumentos

    de percusso o ritmo silbico da letra da msica. O fato de no conseguirem executar todos

    os detalhes do ritmo pode ser consequncia, entre vrios outros motivos possveis, de alguma

    dificuldade tcnica na reproduo de notas mais rpidas, mas no invalida a resposta, no anulaa veracidade da compreenso. Assinala-se, contudo, que todos os outros aspectos indiretamente

    envolvidos nessa proposta, mas diretamente responsveis pelo seu carter musical (tais como

    a noo de ciclo regular respeitada por todos; a curva entoativa realizada nos instrumentos

    pelos alunos atravs da alternncia de intensidades; a diferenciao expressa musicalmente

    entre pergunta um, dois e resposta feijo carroz ; a regulagem coletiva e constante do

    8. Ver Pimentel (2007).

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    fluxo de andamento; o ajustamento entre os diferentes timbres dos diferentes instrumentos

    utilizados, alguns mais intensos que os outros; dentre vrios outros), foram compreendidos pelos

    alunos. Portanto, embora no tenham cumprido a determinao musical estrita do ritmo, no

    comprometeram a proposta musical.O item c.2 oferece uma outra dimenso dos papis que o erro, ou o erro saudvel,

    como talvez fosse mais adequado chamar, pode exercer nas execues musicais. A garota

    em foco apreendeu rapidamente uma caracterstica importante nas msicas que comumente

    ouvimos, algo intrnseco a certos gneros de discurso musical, que a pontuao. Um grande

    glissando feito nas teclas do piano anuncia o final da pea, tornando previsvel o momento de sua

    extino. O equvoco da aluna foi no se lembrar que a pea era tocada inteira e depois repetida

    exatamente da mesma forma. Ao mesmo tempo em que a aluna percebeu a pontuao final da

    msica, elemento importante do discurso musical, oferecendo um sinal inequvoco de sua rpida

    apropriao discursiva da pea, esqueceu-se que a msica se repetia duas vezes.

    Para Vigotski (1998b), a percepo do todo anterior percepo das partes. Mais do

    que isso, a percepo do todo o que d sentido s partes. Assim, essa criana estava um

    passo alm na apreenso da msica, pois havia percebido a posio de uma parte (o glissando

    final) em relao msica completa, e a importncia daquele signo musical no conjunto da

    pea. Entretanto, sob o ponto de vista do conhecimento transmissvel musical, todos esses

    erros podem ser considerados condenveis na execuo estrita musical. J sob o ponto de

    vista discursivo, eles indicam os variados e sutis processos de apropriao possveis de ocorrer

    com as crianas em aulas de msica.

    Nosso cuidado alertar para o fato de que, sob certas circunstncias, esses indcios

    preciosos podem ser interpretados negativamente, e associados a sanes tambm negativaspor parte dos professores (como correes, chamadas de ateno, olhares de reprovao,

    etc.), e podem ser motivo de entraves por parte das crianas, que podem ter seus respectivos

    desenvolvimentos musicais travados por confuses originadas da incompreenso de certos

    processos graduais de apropriao por parte das professoras.

    No episdio narrado em c.3, temos um outro tipo de indcio. A afinao das crianas precisou

    de uma ajuda extra: o pesquisador fornecendo com o acompanhamento do violo a referncia

    necessria. Ou seja, nesse caso constatamos a necessidade de uma regulao externa.

    Nesse exemplo em particular possvel perceber a complexidade da percepo que os alunos

    manifestaram. Ao contrrio de outros casos de desafinao, presenciados em outros momentos,

    em que a professora, a fim de corrigi-los, comea a cantar junto, fornecendo um referentedireto, aqui essa base no fornecida por um guia meldico, mas por um guia harmnico:

    o acompanhamento do violo. Os acordes do violo propem uma rea de referncias onde

    soam simultaneamente vrias notas (acordes). Assim, o instrumento estabelece um campode

    possibilidades (harmonia) atravs do qual a melodia pode se apoiar por aproximao, e no por

    imitao direta. Essa rea de referncia, por sua vez, no inclui apenas as relaes entre notas

    (que permitem a afinao relativa), mas tambm a dimenso temporal, visto que o ritmo proposto

    do acompanhamento estabelece bases convergentes tambm para a emisso rtmica mais

    precisa da melodia da cano, unificando todos os cantores numa mesma e precisa emisso.

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    Assinala-se ainda, nesse episdio, que o fato daquelas crianas serem capazes de se afinar

    sob tutela indica que essa funo psicolgica (afinao tonal), embora ainda no amadurecida,

    j estava em processo de amadurecimento, e seria uma aquisio prxima.9

    No item c.4 temos o caso da garotinha que, ao ser instruda sobre como tocar oacompanhamento da msica em seu instrumento, estabeleceu uma referncia no nos tempos

    da msica, como proposto pela professora, mas nos contratempos. Todavia a execuo da aluna,

    tirando o fato de estar posicionada no contratempo, foi regular, constante, firme e decidida at o

    momento em que a professora a corrigiu. De alguma forma, ela se posicionou, na sua resposta

    quela situao enunciativa proposta na aula, de forma compreensiva. Tanto que executava a

    sua parte de forma autnoma, tal a segurana que suas referncias lhe davam. No conjunto,

    a aluna errada instaurou uma relao de contraponto entre o que ela fazia e o que os outros

    alunos faziam (deveriam todos tocar em unssono rtmico) e se estabeleceu firmemente nesta

    posio, criando certamente um sentido coerente para o que fazia. A correo da professora

    provavelmente desestruturou toda a gama de relaes temporais e significativas que a aluna havia

    estabelecido com a situao musical, deixando-a perdida. Isso pareceu claro na medida em que,a partir da correo, ela no conseguiu mais tocar sua parte com regularidade e determinao.

    Perdeu a autonomia e precisou se apoiar visualmente sobre os movimentos dos colegas e da

    professora de baixar a baqueta ao mesmo tempo.

    Esse um dos casos em que a correo da ideia musical proposta (a fidelidade ao arranjo

    feitoa priori para o acompanhamento da msica) superou a compreenso de um processo pessoal

    de apropriao no qual a aluna havia penetrado. Ainda que este pequeno obstculo possa no

    ter prejudicado o desenvolvimento musical posterior da aluna, com certeza nos mostrou um dos

    possveis problemas que, em maior escala, podem prejudicar, at mesmo entravar, a apropriao

    da linguagem musical num processo educacional.

    So bastante perigosas as generalizaes que partem de observaes empricas como asque empreendemos nessa pesquisa. Bernard Lahire (2002, p. 208) nos alerta para o fato de que

    nenhuma teoria, nenhuma construo do objeto permitir jamais ter acesso s prticas reais,

    ao real enquanto tal. Cada vez elas nos do uma verso plausvel disto. E exatamente disso

    que se trata essa pesquisa. Pretendemos dar uma verso plausvel de alguns fatos observados

    tendo como base alguns construtos tericos que expem uma categoria ou uma classe de

    fatos scio-histricos relativamente singulares (Lahire, 2002, p. 212) aos quais recorremos para

    descrever e analisar as atividades musicais investigadas. Portanto, as questes que levantamos

    aqui no vo na direo de concluses, mas de dvidas que permanecem e que exigiroinvestigaes posteriores mais aprofundadas e mais direcionadas. Alm disso, so questes que

    9. Vigotski (1998a) estabelece dois nveis de desenvolvimento: oreal, medido pelo que a criana consegue fazer sozinha,e o potencial,determinado pelo que a criana consegue fazer sob orientao de uma pessoa mais experiente. Adistncia entre esses dois nveis denominada zona de desenvolvimento proximal. Funes psicolgicas que entramnessa zona sero as prximas aquisies da criana.

    consideraes

    finais

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    no esgotam as discusses possibilitadas pela perspectiva terica assumida. Na continuidade

    da pesquisa, outros pontos vm sendo levantados e analisados, como, por exemplo, o papel da

    mediao do professor e aspectos relativos percepo esttica infantil.

    Uma das questes mais fortes que surgiram diz respeito distino entre tomar a msicacomo objeto do conhecimento e tomar a msica como linguagem ou, melhor ainda, como

    discurso. A noo de discurso obriga a um deslocamento do ensino, antes centrado em

    objetos, em direo s prticas. Se a msica um acontecimento vivo, uma forma de compartilhar

    sentidos, aprender msica no dominar regras e sistemas, mas ser inserido na corrente da

    comunicao musical, ser capaz de fazer um uso pessoal, autoral, prprio, dos sistemas e regras

    musicais (que obviamente existem, mas no constituem a totalidade da linguagem musical).

    Como uma das revises que essa mudana de concepo musical acarreta, temos que

    o processo de apropriao no se mostra regular, nem contnuo e nem mesmo homogneo.

    Em outras palavras, as crianas deram vrios indcios de que esses processos sofrem muitas

    regresses, alm das progresses; no se do em grau igual de facilidade ou dificuldadeem todos os mbitos musicais (ritmo, afinao, memria, etc.); no mantm um ritmo de

    progresso constante e gradual, mas se movimentam s vezes bruscamente, por saltos, em

    degraus de dificuldade, s vezes em lenta progresso, s vezes estacionam por algum tempo.

    Muitas vezes algumas crianas mostram regularidade temporal em certas atividades e total

    descontrole rtmico em outras; algumas se mostram afinadas em certas msicas e desafinadas

    em outras, ou afinadas em certas execues e desafinadas em outras, da mesma msica;

    algumas compreendem bem as propostas mas as executam de forma alterada (erros), outra

    executam certinho as propostas mas em lapsos momentneos indicam total ignorncia sobre

    o significado do que esto executando. A entrada das crianas no fluxo discursivo, na cadeia

    de enunciados musicais, no se d de uma vez e nem definitivamente. Ela tem altos e baixos,

    vaivns, acontece e desaparece como que por encanto, e depois retorna. Essa complexidade

    faz com que precisemos estabelecer outros critrios de avaliao das situaes de aula, visto

    que uma mesma atividade pode ser realizada com xito algumas vezes e fracassar em outras.

    Mesmo os xitos ou fracassos constantes numa certa atividade proposta podem no advir de

    um mesmo e nico motivo a cada vez que ocorrem. Essa observao concorda com pelo menos

    dois fatores: 1) com o fato de vrios autores conceberem a aprendizagem como um processo

    contnuo e ininterrupto, desde o nascimento at a morte,10e no apenas na infncia; e 2) com

    o fato de que a situaoem que as atividades acontecem to importante (ou mais), como

    constituidora dos xitos ou fracassos, quanto as pessoas que dela participam e quanto seus

    contedos.

    Essas discusses nos levam a refletir tambm sobre o papel crucial das relaes institudas

    no processo de ensino/aprendizagem e a necessidade de que o professor se coloque na posio

    de interlocutor nesse processo, prestando ateno no apenas ao conhecimento musical a ser

    ensinado, mas sobretudo olhando para a criana, tentando fazer um esforo de interpretar suas

    10. Lahire (2002, p. 172 e ss.) fala do processo contnuo de socializao; Vigotski (1998a) fala da aprendizagem e dodesenvolvimento tambm como processos contnuos.

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    aes de uma maneira mais global. Conforme j dito, uma desateno do professor em relao

    s relaes que a criana est construindo com e atravs da msica pode levar a um desnimo

    e consequente desinteresse dela pela aula ou at pela prpria msica.

    Um ltimo ponto a ser destacado considera a importncia da integrao da msicacom outras linguagens no contexto da educao infantil. Nossas anlises vm apontando

    a necessidade de se considerarem diversos contextos, os quais incluem diversas formas de

    linguagem, no processo de apropriao da linguagem musical. As crianas no aprendem

    msica apenas em aulas de msica, mas brincando, desenhando, danando, etc. Nesse sentido,

    incluir essas outras formas de expresso no apenas um recurso de tornar mais prazerosa a

    aula, mas uma necessidade real quando se leva em conta tanto as especificidades da msica

    quanto do desenvolvimento infantil.11

    BAKHTIN, M. Esttica da criao verbal. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

    ______. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do mtodo sociolgico da linguagem.

    13. ed. So Paulo: Hucitec, 2009.

    BEYER, E. As msicas do cotidiano nos processos de educao infantil. In: ENCONTRO ANUAL DA

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE EDUCAO, 16., 2007, Campo Grande. Anais Belo Horizonte: Abem,2007. 1 CD-ROM.

    BRITO, T. A. A. Msica na educao infantil: propostas para a formao integral da criana. So Paulo:Peirpolis, 2003.

    ______. Gesto/ao/pensamento musical: o fazer musical da infncia. In: ENCONTRO ANUAL DAASSOCIAO BRASILEIRA DE EDUCAO, 14., 2005, Belo Horizonte. AnaisBelo Horizonte: Abem,

    2005. 1 CD-ROM.

    FRANA, C. C. Para fazer msica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

    GALVO, I. Henri Wallon: uma concepo dialtica do desenvolvimento infantil. 7. ed. Petrpolis: Vozes,2000.

    GARDNER, H.As artes e o desenvolvimento humano.Porto Alegre: Artes Mdicas, 1997.

    ______.Arte, mente e crebro: uma abordagem cognitiva da criatividade. Porto Alegre: Artes Mdicas Sul,1999.

    GORDON, E. E. Teoria de aprendizagem musical:competncias, contedos e padres. Lisboa: Editora daFundao Calouste Gulbeinkian, 2000.

    ILARI, B. S. Bebs tambm entendem de msica: a percepo e a cognio musical no primeiro ano devida. Revista da Abem, n. 7, p. 83-90, 2002.

    LAHIRE, B. Homem plural:os determinantes da ao. Petrpolis: Vozes, 2002.

    ______. Retratos sociolgicos: disposies e variaes individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004.

    referncias

    11. Nessa linha integradora da msica, diversas ideias e ricos materiais podem ser consultados, por exemplo, em Brito(2003), Ponso (2008), Frana (2008), entre outros.

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    Recebido em06/04/2011

    Aprovado em26/06/2011

    LEONTIEV. A. N. Os princpios psicolgicos da brincadeira pr-escolar. In: VIGOTSKII, L.. S.; LURIA, A.R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem.6. ed. So Paulo: cone; Editora daUniversidade de So Paulo, 1998. p. 119-142.

    PARIZZI, M. B. O canto espontneo da criana de zero a seis anos: dos balbucios s canes transcendentes.Revista da Abem, n. 15, p. 39-48, 2006.

    PIMENTEL, A. Vygotsky: uma abordagem histrico-cultural da educao infantil. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, J.; KISHIMOTO, T. M.; PINAZZA, M. A. (Org.). Pedagogia(s) da infncia:dialogando com opassado, construindo o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 219-248.

    PONSO, C. C. Msica em dilogo: aes interdisciplinares na educao infantil. Porto Alegre: Sulina, 2008.

    VIGOTSKI, L. S.A formao social da mente: o desenvolvimento dos processos psicolgicos superiores. 6.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998a.

    ______. O desenvolvimento psicolgico na infncia. So Paulo: Martins Fontes, 1998b.

    ______. Imaginao e criao na infncia:ensaio psicolgico: livro para professores. So Paulo: tica,2009.

    WILLEMS, E. Las bases psicolgicas de la educacin musical. 3. ed. Buenos Aires: Editora Universitaria deBuenos Aires, 1969.