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Segundo Congresso Brasileiro de Direito Comercial Grupos de Estudos Preparatórios
RELATÓRIO DO GRUPO DE DIREITO SOCIETÁRIO
Grupo de Pesquisa da Universidade de Brasília - Unb
Prof. Dra. Ana Frazão
Ana Rafaela Medeiros
Danielle Lúcia Ferreira
Eduardo Kruel Rodrigues
Giovanna Bakaj Oliveira
Lara Parreira de Faria Borges
Larissa Kawano Mori
Leonardo Cocchieri Leite Chaves
Pedro Júlio Sales D`Araújo
Victor Oliveira Fernandes
ÍNDICE APRESENTAÇÃO ..................................................................................................................... 3
(Ana Frazão e Ana Rafaela Medeiros)
I. Personalidade Jurídica: significado e importância para a atividade empresarial ........... 9
(Pedro Júlio Sales D´Araújo)
II. Mecanismos de proteção aos credores sociais ............................................................. 34
(Lara Parreira de Faria Borges)
III. Capital social: importância, normas protetivas e subcapitalização .............................. 86
(Danielle Lúcia Ferreira)
IV. As inovações do novo Código Civil referentes às sociedades limitadas .................... 113
(Victor Oliveira Fernandes)
V. Reflexões acerca do poder de controle ....................................................................... 137
(Eduardo Kruel Rodrigues)
VI. Oferta Pública de Aquisição de Ações Obrigatória (“OPA” obrigatória ou a
posteriori .................................................................................................................... 168
(Larissa Kawano Mori)
VII. Insider Trading: questões relevantes. ......................................................................... 201
(Giovanna Bakaj)
VIII. Aspectos Gerais das Operações de Fusão, Incorporação e Cisão das Sociedades..... 223
(Leonardo Cocchieri Leite Chaves)
3
APRESENTAÇÃO
Ana Frazão Ana Rafaela Medeiros
O grupo de pesquisa em Direito Societário da Faculdade de Direito da
Universidade de Brasília – Unb funciona, desde 2009, sob a orientação da professora
Dra. Ana Frazão e a colaboração da estudante de Graduação Ana Rafaela Medeiros.
Formado por alunos da graduação do curso de Direito da UnB, o grupo foi estruturado
para o estudo e a pesquisa em qualquer tema da área de Direito Empresarial que fosse
de interesse dos seus componentes.
Contudo, para ajustar-se à linha de pesquisa da professora Ana Frazão bem
como possibilitar o ingresso de mestrandos e doutorandos, as discussões vêm sendo
direcionadas para o tema “Macroempresa, ordem econômica constitucional e mercado”
e para os seguintes objetivos:
(i) analisar a macroempresa a partir de abordagem multidisciplinar, que utilize os
recentes aportes das demais áreas do saber, especialmente os vindos da economia
e da sociologia econômica;
(ii) criar aproximações entre o direito empresarial, o direito civil (especialmente
na sua abordagem “civil-constitucional”) e o direito público, especialmente o
direito constitucional e o direito da concorrência;
(iii) examinar os efeitos da dissociação entre a propriedade e o controle das
grandes companhias;
(iv) compreender as distintas manifestações do poder empresarial - tendo em vista
que a empresa é cada vez mais definida a partir dos mecanismos efetivos de
autoridade e direção - e os meios pelos quais tal poder pode ser canalizado para o
cumprimento dos princípios constitucionais da ordem econômica, especialmente o
da função social da empresa;
(v) estabelecer as relações entre o poder empresarial e as formas jurídicas pelas
quais se estrutura (sociedades empresárias, grupos empresariais, personalidade
jurídica, consórcios, contratos como joint venture, etc.);
(vi) buscar soluções para administrar a tensão entre o risco empresarial e a
responsabilidade dos empresários e entre o poder empresarial e a
responsabilidade;
4
(vii) estudar as alternativas para o fortalecimento do mercado de capitais e do
equacionamento dos conflitos que se projetam atualmente sobre a empresa. (vii)
estudar as alternativas para o fortalecimento do mercado de capitais e do
equacionamento dos conflitos que se projetam atualmente sobre a empresa.
No segundo semestre de 2011, as atividades do grupo, que, desde sua criação,
vinham sendo desenvolvidas em reuniões extracurriculares, passaram a ser realizadas
em sala de aula na disciplina “Prática e Atualização do Direito: Tópicos em Direito
Societário”, ministrada pela professora Ana Frazão.
Cada um dos alunos matriculados na disciplina desenvolveu um projeto
individual, cujo tema se insere no eixo comum de pesquisa do grupo, já mencionado
acima. Todos os projetos foram orientados pela professora Ana Frazão e debatidos em
sala de aula, de forma que refletem não apenas o esforço individual de pesquisa dos
alunos, mas um trabalho conjunto do Grupo de Direito Societário. Os melhores
trabalhos foram selecionados para compor este relatório, e cada um deles será
apresentado em capítulo apartado, com indicação expressa do autor do texto.
É importante ressaltar que a finalidade dos artigos produzidos não foi a de
meramente descrever ou explicar cada um dos temas discutidos nem, muito menos,
fazer uma compilação sobre o estado atual da doutrina ou da jurisprudência. O objetivo
foi destacar as controvérsias e questões mais relevantes, a fim de, muito mais do que
oferecer respostas, levantar perguntas, fomentando e enriquecendo os debates do
Congresso.
O primeiro artigo tem como tema a personalidade jurídica das sociedades
empresárias. Utilizando as lições da análise econômica do direito, o texto propõe uma
reflexão sobre os custos e benefícios da autonomia jurídica e patrimonial proporcionada
pela personalização. Dentre as principais questões discutidas estão: a) a relação entre a
personalidade jurídica e o desenvolvimento empresarial; b) a socialização parcial do
risco e sua repercussão sobre os pequenos credores e os credores involuntários e c) o
efeito da personalidade jurídica sobre os custos de transação.
Como assinala o trabalho, uma das consequências mais relevantes da
personalização é a limitação de responsabilidade dos sócios, atribuída à maioria das
sociedades empresárias. Embora o mecanismo seja extremamente relevante para
estimular o investimento produtivo, não pode ser utilizado de forma indevida, onerando,
desproporcionalmente, os credores sociais. Para evitar isso, há diversos mecanismos de
5
proteção a esses credores. É sobre isso que tratam o segundo e o terceiro textos que
compõem este relatório.
O primeiro deles aborda o tema de forma mais abrangente, referindo-se a
diversos mecanismos de proteção, como a publicidade obrigatória, as regras que regem
o capital social, a desconsideração da personalidade jurídica, a responsabilização direta
de administradores, controladores, auditores independentes e terceiros, sobretudo em
situações de pré-insolvência, as normas relativas aos grupos empresariais e à falência,
etc. Mais do que descrever as regras do direito societário brasileiro, o artigo analisa, de
forma crítica, as falhas e lacunas existentes e se vale das lições do direito comparado
para apontar novas soluções possíveis.
O segundo artigo sobre o tema traz uma discussão mais específica, analisando
apenas as normas atinentes ao capital social. Além de descrever suas principais funções
e princípios, o texto discute em que medida o capital social constitui uma garantia dos
credores. Dentre as perguntas levantadas, podemos destacar as seguintes: faria sentido,
exigir um capital social mínimo? Deve haver a responsabilização pela subcapitalização?
Em que hipóteses? A subcapitalização autoriza a desconsideração da personalidade
jurídica?
No direito brasileiro, ao contrário do que ocorre em diversos países, não há
previsão no Código Civil sobre o capital social mínimo. Essa, aliás, é uma das
principais críticas à disciplina das sociedades limitadas. É o que explica o quarto artigo
do relatório, que analisa a disciplina legal desse tipo societário. Longe de descrever,
exaustivamente, as inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, o artigo pretende
avaliar em que medida o novo regime supriu as lacunas e satisfez as expectativas que
justificaram a revogação do Decreto nº 3.708, além de apontar os novos problemas e
imprecisões decorrentes da atual disciplina das sociedades limitadas.
Um dos principais pontos discutidos pelo artigo refere-se à possibilidade de
regência supletiva das sociedades limitadas pelas normas que regulam as sociedades
simples ou pela Lei das S/A, a depender do que dispuser o contrato social. O assunto é,
sem dúvida, um dos mais controversos do Código Civil. As discussões referem-se não
apenas à dificuldade de interpretar o contrato social e decidir que regime deve ser
aplicado, mas à própria adequação dessas regras às sociedades limitadas. Assim, além
de destacar as principais consequências dessa subdivisão, o artigo aponta as críticas da
doutrina e reflete sobre as cautelas que devem ser adotadas ao suprir as omissões na
regulação das sociedades limitadas.
6
A ênfase maior do relatório, entretanto, está nas sociedades anônimas.
Principal forma de constituição das macroempresas e o instrumento por excelência do
capitalismo, esse tipo societário adquiriu uma conotação de interesse público a partir da
dimensão extraordinária alcançada pelas companhias e da possibilidade de captação de
recursos junto à poupança popular.
Em mercados de alta concentração acionária, como brasileiro, as discussões
mais relevantes sobre as sociedades anônimas dizem respeito ao exercício do poder de
controle. Em face disso, o quinto artigo do relatório procurou relevar as principais
questões sobre o tema. Entre outras coisas, o trabalho discute: a) a possibilidade de
abuso de controle por omissão do acionista majoritário; b) a configuração ou não de
controle quando determinado acionista, por meio de acordo, detém o poder de veto e c)
a responsabilidade do controlador externo e sua relação com aquela do controlador
interno.
O texto discute, também, se a definição de controlador da Lei das S/A se ajusta
às companhias com ações dispersas, que, embora ainda incomuns, vêm aumentando,
sobretudo no Novo Mercado. A pulverização das ações abre espaço para algumas
discussões importantes, como: a) é possível uma sociedade sem controle? b) quem deve
ser responsabilizado pelas decisões quando as ações são muito dispersas? c) o art. 116
da Lei 6.404/76 deveria ser reformulado para atender a esse novo contexto? Essas são
algumas das principais questões analisadas pelo artigo, como se verá adiante
Ainda sobre o controle, o sexto trabalho selecionado para este relatório trata da
oferta pública obrigatória por alienação de poder de controle. Intensamente discutido
pela doutrina, o tema ainda está longe de respostas definitivas. Em primeiro lugar,
subsistem inúmeras controvérsias sobre o fundamento jurídico da obrigatoriedade da
oferta pública e sobre a quem ela deve ser estendida, se apenas aos minoritários titulares
de ações da mesma espécie e classe ou a todos os acionistas, inclusive os
preferencialistas sem direito a voto. Outra questão relevante sobre o tema refere-se às
hipóteses em que a oferta é cabível: é necessário que o alienante seja titular de mais
50% das ações com direito a voto ou a alienação de controle minoritário torna a oferta
obrigatória? O acionista majoritário deve exercer efetivamente o controle quando da
alienação ou a mera transferência de mais de 50% das ações votantes já exigiria a
oferta?
Além de tratar dessas questões, o artigo analisa mecanismos alternativos de
proteção aos minoritários, discutindo, entre outras coisas, se não seria mais adequado
7
obrigar o adquirente a oferecer um prêmio de permanência aos minoritários, tornando a
oferta pública facultativa. Em favor da solução, argumenta-se que a oferta pública
obrigatória, além de ser muito onerosa, inibindo as transferências de controle, acaba por
proteger apenas o investidor de curto prazo, incentivando a saída e não a permanência
na companhia.
Outro mecanismo essencial de proteção aos minoritários é a repressão ao
insider trading. O tema é discutido no penúltimo capítulo do relatório. A primeira
controvérsia analisada refere-se aos sujeitos ativos do insider. O ponto é relevante
porque, embora o art. 155, parágrafo 4º da Lei das S/A faça menção a “qualquer
pessoa”, alguns autores vêm sustentando que, para que seja considerado insider, o
terceiro deve ter uma ligação profissional com a companhia. Assim, um terceiro que
não preenche o requisito, mas, ocasionalmente, obtém e utiliza informação relevante,
não poderia ser considerado insider, de forma que apenas o administrador responderia
por não ter mantido sigilo. A conclusão é, ainda, bastante controversa.
Igualmente complexo é determinar quando determinada informação deve ser
considerada privilegiada. Uma das discussões mais interessantes do artigo diz respeito à
teoria do mosaico. Debatida nas Cortes norte-americanas, a teoria do mosaico refere-se
às hipóteses em que o suposto insider combina informações públicas com pedaços de
informes não públicos, sendo ambos, sozinhos, irrelevantes para afetar a precificação
dos valores mobiliários. Haveria neste caso assimetria de informação, configurando
insider trading? O debate aparece de forma mais detalhada no artigo.
Outra questão tratada pelo trabalho refere-se à responsabilização por insider
trading. Entre outras coisas, o texto discute se é necessário o dolo e a obtenção de
vantagem indevida, se deve ser avaliado o comportamento anterior do insider ou se a
análise da culpa é feita em abstrato, se a culpa deve ser presumida, etc. O artigo revela
não apenas o posicionamento da doutrina, mas também como a CVM vem se
manifestando sobre os pontos mencionados.
Por fim, o último artigo trata das operações de fusão, incorporação e cisão.
Além de explicitar brevemente as principais características de cada uma dessas
reestruturações societárias, ressaltando suas semelhanças e diferenças e os direitos dos
acionistas e credores das sociedades envolvidas, o texto revela a importância de
compreender essas operações a partir da nova realidade societária, em que predominam
os grupos empresariais. No texto, discute-se, entre outras coisas, se as regras da Lei das
8
S/A não deveriam ser relativizadas quando essas reestruturações, embora desvantajosas
para alguma das sociedades envolvidas, fossem benéficas para o grupo.
O artigo propõe, ainda, uma reflexão sobre os direitos assegurados aos
minoritários e credores, avaliando se não seria mais apropriado instituir outros
mecanismos de compensação que tornassem as operações menos onerosas, sobretudo
quando se tratar de empresas plurissocietárias.
O relatório que a seguir se apresenta compõe-se dos oito artigos mencionados
acima, cujos temas são: I) Personalidade jurídica; II) Mecanismos de proteção aos
credores sociais; III) Capital Social; IV) Disciplina das sociedades limitadas no Código
Civil de 2002; V) Poder de controle; VI) Oferta Pública Obrigatória; VII) Insider
Trading; VIII) Operações de fusão, incorporação e cisão. O resultado reflete as
preocupações do grupo e o trabalho individual desenvolvido por cada membro, motivo
pelo qual, como já referido, cada um dos artigos será apresentado em capítulo próprio
com indicação de seu autor.
9
I. PERSONALIDADE JURÍDICA: Significado e importância para a atividade
empresarial
Pedro Júlio Sales D’Araújo
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. O conceito de pessoa jurídica. 3. Evolução teórica do instituto. 4.
Os Efeitos da personificação. 4.1. Benefícios. 4.2. Custo Social. 5. As Justificativas teóricas
para a existência da Pessoa Jurídica. 5.1. Richard Posner e a Livre Negociação. 5.2. Ronald
Coase e a Teoria da Firma. 6. Conclusão: Análise dos Custos vs. Benefícios. 6. Conclusão. 7.
Referências.
1. Introdução
O presente trabalho traz como proposta uma análise do instituto da pessoa
jurídica, com especial ênfase à sociedade empresária, buscando traçar seu significado e
importância para o desenvolvimento das atividades econômicas em nossos dias. O
artigo será dividido em cinco tópicos que irão abordar desde as principais características
deste que é um dos mais importantes fenômenos jurídicos da atualidade, até os
problemas gerados pelo seu mau uso.
Inicialmente, o texto irá trazer o conceito de pessoa jurídica, suas
características e o espaço que referido instituto ocupa em nosso ordenamento. Logo em
seguida, será abordada sua evolução histórica, demonstrando como tal instituto se
desenvolveu com o passar dos anos para atender os anseios da sociedade em que se
inseria.
No terceiro tópico, serão tratados os principais efeitos gerados pela
personalidade jurídica. Abordaremos como a autonomia jurídica e patrimonial conferida
às sociedades empresárias por nosso ordenamento através deste instituto jurídico é
determinantes para a existência da atual atividade empresarial. Neste ponto,
demonstraremos, também, como tais efeitos podem ser apreendidos em nossa realidade
social por meio de sua repercussão na forma de custos e benefícios.
No tópico seguinte, iremos buscar justificativas teóricas para a existência da
pessoa jurídica através dos argumentos desenvolvidos por Richard Allen Posner e
Ronald Harry Coase.
10
Por fim, no último tópico, pretenderemos demonstrar como os benefícios de
ordem global proporcionados pela existência da personalidade jurídica e seus efeitos
superam os custos sociais por ela causados. Buscar-se-á também trazer possíveis
alternativas que objetivem as reduções nesses custos, maximizando, assim, as
externalidades positivas geradas por tal instituto, sem que, no entanto, se inviabilize sua
operacionalidade.
2. O conceito de pessoa jurídica.
Em nosso ordenamento jurídico, há o reconhecimento de dois tipos básicos de
sujeitos de direito. Ao lado das pessoas naturais, podemos encontrar certas entidades,
determinados agrupamentos de pessoas ou de bens aptos a participarem de relações
jurídicas, titularizando, assim, direitos e deveres.
Tais entes são reflexo da necessidade humana de se organizar, através da
conjugação de esforços, com a finalidade de alcançarem objetivos comuns impossíveis
de serem atingidos por cada um de seus membros1. E, são a estes entes que nosso
ordenamento confere personalidade jurídica própria para atuarem como sujeitos
independentes, apartados dos demais sujeitos que o criaram.
A pessoa jurídica é, assim, caracterizada por ser um sujeito de direitos e
deveres, possuindo, portanto, capacidade de direito e de fato próprias. Sua existência
jurídica é distinta da de seus componentes, podendo se relacionar com outros sujeitos de
direito de maneira autônoma.
Por ser independente de seus integrantes, é necessário que a pessoa jurídica
seja capaz de tomar suas decisões, manifestando, com isso, seus próprios interesses.
Para tanto, possui uma estrutura organizativa artificial, responsável por estabelecer,
entre outras coisas, sua vontade própria. Pode-se dizer também que, em certa medida, a
pessoa jurídica se caracteriza pela existência de objetivos comuns de seus membros, que
se agrupam com o intuito de atingirem um mesmo fim determinado.
Tem ainda como traço distintivo a existência de um patrimônio próprio e
independente do de seus membros. Desse modo, os direitos e deveres da pessoa jurídica
não se comunicam com direitos e deveres de seus componentes, não podendo os
credores de um, via de regra, buscar a satisfação de seu crédito no patrimônio do outro.
Por fim, caracteriza-se pelo registro de seus atos constitutivos nas repartições
1 FARIAS e ROSENVALD (2006, p. 231)
11
competentes. Tal caractere confere a devida publicidade para a constituição, o objeto
social, os mecanismos de formação de vontade e a própria finalidade da entidade,
garantindo, assim, uma maior segurança e transparência às relações jurídicas2. Desta
forma, o registro da pessoa jurídica representa elemento necessário para que seja
reconhecida sua existência, permitindo que seja atribuída ao ente a devida
personalidade3.
No Brasil, o instituto só foi realmente sistematizado com o Código Civil de
1916, que reconheceu existência distinta do ente frente aos seus instituidores.
Anteriormente, a legislação pátria, por meio do Código Comercial, se restringia a
conferir limitação da responsabilidade patrimonial dos acionistas frente às dívidas da
sociedade comercial, mas sem discorrer acerca da personalidade jurídica desses mesmos
agrupamentos.
Com a criação do referido Código Civil, além da já citada autonomia jurídica,
foi reafirmada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, bem foram como
regulamentados os atos necessários para sua constituição, os mecanismos existentes
para manifestação e a validação da vontade da entidade e a maneira como deveria se
operar a sua extinção e sucessão.
No entanto, tal diploma legal não conceituou o instituto, tratamento este
repetido pelo Código Civil de 2002. Com isso, no Brasil, coube à doutrina o trabalho de
definição da pessoa jurídica, que, de um modo geral, a caracteriza como um
agrupamento de sujeitos ou de bens minimamente organizado e perseguidor de um
determinado fim4.
A importância de sua existência reside no fato de possibilitar que pessoas
naturais possam, através da combinação de recursos e esforços, realizar
empreendimentos que transcendem os limites das pessoas físicas5. Assim, ela é peça
fundamental do nosso modo de vida atual, permitindo ao homem realizar façanhas
incríveis. Motivo este que justifica o tratamento especial conferido por nosso
ordenamento jurídico ao reconhecer a tais entes a autonomia jurídica e a autonomia
patrimonial necessárias para que possam atuar na vida civil como sujeitos de direitos e
deveres.
2 FRAZÃO (2010, p. 327) 3 REQUIÃO (2007, p 396) 4 Para Francisco Amaral, pessoa jurídica pode ser encarada enquanto “um conjunto de pessoas ou de bens, dotados de personalidade jurídica” – AMARAL (2008, p. 313). Já Silvio Rodrigues afirma serem entidades a que a lei empresta personalidade, que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que as compõe, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil – RODRIGUES (2003, p. 86) 5 AMARAL (2008, p. 313)
12
3. Evolução teórica do instituto
Embora possa não parecer, o conceito de pessoa jurídica sempre foi motivo de
intensa discussão doutrinária, havendo diversas teorias que buscaram explicar a
natureza jurídica deste instituto, marcando sua evolução no decorrer dos séculos.
Cumpre resgatar este debate como forma de demonstrar como se deu a construção
jurídica do instituto e como as diversas posições teóricas produzem seus efeitos até hoje
sobre a concepção de pessoa jurídica, fazendo repercutir seus postulados na
interpretação doutrinária e jurisprudencial de tal tecnologia jurídica6.
A primeira teoria de destaque que tentou explicar a natureza jurídica da pessoa
moral surgiu por volta do século XIX e defendia que tal entidade não passava de mera
ficção jurídica. Sustentada por Savigny, esta tese afirmava que apenas as pessoas
naturais poderiam ser consideradas reais sujeitos de direitos e deveres, sendo a
personalidade jurídica concedida aos demais entes por arbítrio legislativo, como
artificialidade criada pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, refletiam-se os ideais
políticos e econômicos da época que, calcados no individualismo, valorizavam a figura
do homem como único ser titular de direitos e deveres7.
Como consequência deste posicionamento, verificava-se a aproximação do
conceito de pessoa jurídica da visão contratualista do direito societário8, a qual defende
que o interesse social da entidade deve refletir apenas o interesse de seus sócios. Tal
pensamento se justificava pelo fato de que, sendo a pessoa jurídica uma artificialidade
6 COMPARATO (2008, p. 334) 7 AMARAL (2008, p. 319) 8 Vale aqui trazer breves esclarecimentos acerca da concepção contratualista do interesse social da pessoa jurídica. Para tanto, lança-se mão da lição de SALOMÃO FILHO sobre a teoria: “O contratualismo é a concepção de interesse social que sustenta ser esse último coincidente com o interesse do grupo de sócios. Como é sabido, foi na doutrina e jurisprudência italianas que a concepção contratualista teve seu maior desenvolvimento. É necessário, no entanto, fazer uma análise separada da lei e de uma particular (e hoje majoritária) interpretação doutrinária, que veio se afirmando sobretudo a partir da metade dos anos 60, que vê na disciplina societária uma disciplina exclusivamente contratual. Deve-se, no entanto, esclarecer os sentidos que pode assumir o termo contratualismo. Pode-se dizer que o sistema italiano é tradicionalmente contratualístico na medida em que nega que o interesse social seja hierarquicamente superior ao interesse dos sócios. Trata-se, portanto, de um contratualismo definido por contraposição ao institucionalismo. Deste contratualismo por antonomásia podem-se deduzir duas vertentes diversas: segundo a primeira, o interesse social é depurado de elementos externos. Define-se o interesse social sempre como o interesse dos sócios e somente dos sócios atuais. Pela segunda vertente, incluem-se na categoria sócio não apenas os atuais, como também os futuros. A perspectiva a longo prazo do interesse social ganha importância. Obviamente, nesse caso, assume relevância também o próprio interesse à preservação da empresa, motivo pelo qual afirma-se que essa variante contratualista, na prática, aproxima-se um pouco da teoria institucionalista. Na primeira das versões acima mencionadas o interesse social é concebido como relativo apenas ao grupo de sócios atuais. Um dos principais defensores dessa tese é Jaeger. Para ele, o interesse social não constitui um conceito abstrato, mas sim algo de concreto, definível apenas quando comparado com o interesse do sócio para aplicação das regras sobre conflito de interesses. O autor chega a tal conclusão a partir de sua concepção particular de contrato de sociedade: como o contrato social é de execução continuada e o interesse do grupo de sócios, aquele interesse social pode ser constantemente revisto e eventualmente desconsiderado de modo explícito quando se trata de decisão unânime dos sócios. Mais recentemente, a segunda versão de interesse social vem prevalecendo de forma decisiva. Influenciado por concepções vindas da análise econômica do direito e pelas necessidades do mercado de capitais, passa a prevalecer entre os contratualistas concepção objetiva de maximização das ações.” COMPARATO e SALOMÃO FILHO (2008, p. 330)
13
criada pelo direito, ela não possuiria existência própria e, consequentemente, não
poderia ter um interesse distinto do interesse de seus membros9.
Entretanto, a teoria ficcionista apresentava algumas dificuldades ao tentar
classificar as pessoas jurídicas como simples abstrações jurídicas, principalmente no
que diz respeito a negar a existência às pessoas jurídicas de direito público, como o
Estado 10.
Por fim, o tecnicismo extremado desta teoria e a ausência do reconhecimento
de uma função social do instituto acabaram por proporcionar verdadeiros óbices à busca
por respostas satisfatórias aos diversos outros problemas relacionados às pessoas
jurídicas, como o desvio de finalidade e o uso abusivo da pessoa moral11.
Por essas razões, a doutrina passou a buscar alternativas à teoria da ficção.
Uma delas surgiu no início do século XX e ficou conhecida como a teoria da realidade
objetiva ou teoria orgânica, tendo em Gierke o seu maior expoente. Segundo tal
concepção, a existência das pessoas jurídicas seria independente de qualquer ficção
legal, visto que estes entes, à semelhança das pessoas físicas, teriam vida própria,
enquanto indivíduos realmente autônomos12.
Para essa teoria, por ser a pessoa jurídica uma realidade social viva e autônoma
em relação aos seus membros, ela deve ser capaz de exprimir vontade própria, motivo
pelo qual tal concepção doutrinária confere real importância para o debate acerca do
perfil interno desses agrupamentos. Questões suscitadas por essa teoria, como estrutura,
organização e a própria formação dessa vontade autônoma da sociedade, são até hoje
elementos fundamentais da teoria societária13.
Entretanto, essa teoria também sofreu severas críticas. A existência das pessoas
jurídicas enquanto realidades orgânicas similares às pessoas naturais14 e as dificuldades
apresentadas ao tentar explicar o processo de formação da vontade autônoma desses
entes15 e como se daria o reconhecimento de sua capacidade jurídica16 fizeram com que
esta teoria caísse em descrédito.
9 Assim, naquele momento, a pessoa jurídica empresária buscava apenas a maximização dos lucros de seus acionistas, sem qualquer preocupação com uma funcionalização da empresa ou com os interesses sociais envolvidos no empreendimento. Segundo FRAZÃO, “se as liberdades e os direitos subjetivos, dentro dos limites que haviam sido previamente fixados pela lei, eram considerados absolutos, não havia óbice, portanto, a que as sociedades empresárias se dedicassem às suas finalidades econômicas em toda a intensidade possível, sem que houvesse qualquer outro interesse que pudesse pautar suas condutas” – (2011, p. 65) 10 VENOSA (2003, p. 255) 11 FRAZÃO (2011, p. 119) 12 AMARAL (2008, p. 320) 13 SALOMÃO FILHO (2006, p. 183) 14 FRAZÃO (2010, p. 322) 15 Nesse sentido, Salomão Filho cita uma aproximação da realidade objetiva com a teoria do institucionalismo como uma forma de estudar e definir a vontade própria da pessoa jurídica, que não se reduziria à vontade de seus sócios. COMPARATO e SALOMÃO FILHO (2008, pág. 333). Referida teoria afirmava que o interesse da sociedade deveria abranger diversos interesses distintos
14
Tal descontentamento com a teoria da realidade objetiva levou ao surgimento
de diversos outros movimentos com o intuito de tentar explicar a natureza jurídica das
pessoas morais17. Entre as teorias de maior destaque, podemos citar a institucionalista,
de Hauriou, e a da realidade técnica, que teve em Saleilles um de seus maiores
expoentes.
Para a teoria institucionalista, a pessoa moral é encarada como uma instituição,
um grupo social autônomo e organizado, criado para a persecução de determinadas
finalidades socialmente úteis18, com existência prévia à própria pessoa jurídica em si.
Na verdade, a personalidade jurídica somente seria conferida pelo ordenamento por tais
instituições necessitarem de uma maior organização e concentração, diferentemente de
outras instituições sociais, como a família, por exemplo. 19
O grande avanço dessa concepção doutrinária foi conferir à pessoa jurídica um
fim socialmente relevante enquanto elemento agregador, em torno do qual seus diversos
membros se reúnem e criam um organismo autônomo. Assim, a organização deixa de
ser o foco da natureza jurídica da pessoa moral, como era na teoria da realidade
objetiva, passando a ser mero instrumento para a persecução do objetivo que levou à
formação daquele agrupamento social 20.
Outra teoria de grande repercussão foi a da realidade técnica, que concebia a
pessoa jurídica como uma técnica destinada a conferir a certos grupos sociais uma
existência autônoma em relação aos seus membros integrantes21. Assim, reconhecia-se a
essas entidades uma existência real, mas sua realidade só poderia ser entendida no
sentido técnico.
A justificativa dada por essa teoria para se conferir personalidade jurídica a
determinados entes sociais é que tal tecnologia seria utilizada para operacionalizar a
existência de uma organização que pudesse executar a atividade pretendida, sendo
possuidora de uma vontade própria e de uma finalidade que justificasse sua existência e
que realmente fosse por ela perseguida22. Outro fator que colaborou para a aceitação
dessa teoria está relacionado ao fato de que a pessoa jurídica ainda deveria atender a
presentes em nossa sociedade, especialmente os interesses de empregados, consumidores e credores. A sociedade deixa de ser mero instrumento criado para obtenção de lucro pelos sócios e passa a atender melhor os anseios da comunidade em que está inserida. 16 COMPARATO e SALOMÃO FILHO (2008, p. 333). 17 Observa-se, nessa época, uma infinidade de teorias que tentavam definir essa natureza jurídica. Desde um retorno ao tecnicismo da teoria ficcionista através dos estudos de Hans Kelsen, passando por uma concepção patrimonialista da pessoa jurídica defendida por Brinz e Bekker, que concebia este ente como mero patrimônio destinado a um fim, até chegar a teóricos que, mesmo discutindo tal tema, colocavam esse debate em segundo plano, como, por exemplo, Planiol e Rippert. 18 AMARAL (2008, p. 321) 19 FRAZÃO (2010, p. 324) 20 FRAZÃO (2010, p. 324) 21 AMARAL (2008, p. 320) 22 FRAZÃO (2010, p. 325)
15
uma determinada função social, perseguir um valor socialmente relevante, de maneira
que ela jamais poderia ser encarada como uma simples técnica, como pretende a teoria
ficcionista23.
Segundo a maior parte de nossa doutrina24, nosso ordenamento jurídico se filia
à teoria da realidade técnica ao prever que a existência legal das pessoas jurídicas de
direito privado se inicia com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro25.
Entretanto, há de se ressaltar a grande influência exercida ainda hoje na
interpretação do ordenamento pátrio pela teoria ficcionista26, seja pela má compreensão
da teoria da realidade técnica, que leva a um esvaziamento do conceito e consequente
redução da pessoa jurídica a mera tecnologia jurídica sem qualquer conteúdo
valorativo27, seja pela contaminação da interpretação por uma visão contratualista, que
nos remete aos postulados liberais do século XIX, e, novamente, à teoria da ficção28.
4. Os efeitos da personificação
A concessão da personalidade jurídica às sociedades empresariais e o
conseqüente reconhecimento de sua existência enquanto sujeitos de direitos permitem a
criação de variados efeitos no mundo jurídico. No que diz respeito ao desenvolvimento
da atividade empresarial, podemos agrupar tais efeitos ao redor de duas características
básicas: a autonomia jurídica e a autonomia patrimonial. O presente tópico irá analisar
os efeitos do tratamento conferido por nosso ordenamento às pessoas jurídicas, fazendo
uma digressão acerca dos reflexos sociais desse regime legal.
Como primeiro efeito da personalização, temos a autonomia jurídica da pessoa
moral. O ente passa a possuir vontade e existência próprias, desvinculadas dos demais
sujeitos que o integram. Ele passa a constituir um novo centro de imputação, como se
um novo sujeito fosse. E, seu agir é um agir independente, que não se reduz a uma soma
23 FRAZÃO (2010, p. 325) 24 AMARAL (2008, p. 321) e VENOSA (2003, p. 259) 25 Art. 45, Código Civil Brasileiro: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. 26 Nesse sentido, interessante trazer o exposto por Calixto Salomão Filho no texto de Comparato (2008, pág. 334): “Dessa relação, que se mostra historicamente necessária entre teoria da pessoa jurídica e do interesse social decorre uma conclusão muito interessante. Hoje a absoluta prevalência da teoria da ficção e de suas vertentes positivistas como a teoria normativa de Kelsen é poderoso fator em apoio da concepção contratualista da sociedade. Assim ainda que teoricamente discutível e sua prática muitas vezes superada, o contratualismo revive e predomina na interpretação doutrinária e jurisprudencial, por força de preconceitos individualistas e também de apoios inesperados, como o vindo da concepção dominante de pessoa jurídica” 27 FRAZÃO (2010, p. 326) 28 SALOMÃO FILHO (2003, p. 37 e ss)
16
dos interesses de seus membros e administradores, mas corresponde, sim, ao próprio
interesse da pessoa jurídica29.
Essa autonomia se traduz sob as premissas de que a pessoa jurídica possui
titularidade obrigacional e processual próprias30, ou seja, ela tanto assume os vínculos
obrigacionais estabelecidos com terceiros, quanto pode demandar ou ser demandada
judicialmente, possuindo, dessa forma, legitimidade para figurar em quaisquer dos pólos
processuais. E a titularidade desses direitos e deveres independe dos integrantes que
compõem referido ente.
No exercício de sua atividade econômica, por exemplo, a sociedade comercial
estabelece relações jurídicas com diversos outros sujeitos, se obrigando através de
contratos com manifestações de vontade próprias. Os outros contratantes estão se
relacionando diretamente com a pessoa jurídica, devendo esperar exclusivamente dela o
adimplemento das obrigações pactuadas.
Embora tanto a formação quanto a manifestação da vontade que vinculam a
pessoa jurídica se desenvolvam através das pessoas naturais que a integram, não
podemos confundir essa vontade com a vontade das pessoas físicas, nem se pretender
estender a estes os efeitos das relações jurídicas assumidas por ela, pois tais obrigações
devem ficar restritas, via de regra, ao âmbito da pessoa jurídica31.
Do mesmo modo, aquele que pretender demandar judicialmente em relação às
obrigações assumidas pela pessoa jurídica não poderá ingressar em juízo contra os
sócios ou administradores da entidade, salvo em determinadas situações. Enquanto ente
personalizado, a pessoa moral possui legitimidade para figurar em quaisquer dos pólos
em uma relação jurídica processual.
Assim, três consequências devem ser extraídas dessa autonomia jurídica. Ao
adquirir personalidade, aquele ente passa a ser um sujeito de direitos e deveres
independente de seus membros. Para tanto, pressupõe a existência de estruturas próprias
para a livre formação de sua vontade, que jamais deverá ser confundida com a vontade
de seus sócios. Consequentemente, enquanto sujeito autônomo e detentor de vontade
própria, a existência da pessoa jurídica pressupõe a persecução de um interesse próprio
e desvinculado do de seus sócios32.
29 DUARTE (2007, p. 50) 30 COELHO (2010, p. 14) 31 COELHO (2010, p. 14) 32 DUARTE (2007, p. 51)
17
O segundo efeito dessa personalização é a não comunicabilidade da esfera
patrimonial da pessoa jurídica com a esfera patrimonial de seus membros. Basicamente,
significa dizer que, na maioria dos casos, os sócios das pessoas jurídicas não respondem
ilimitadamente pelas obrigações delas, tendo sua responsabilidade, via de regra, restrita
ao investimento realizado para a composição do patrimônio social.
Considerada por muitos como o principal efeito da personalização33, a
limitação da responsabilidade é, historicamente, anterior à própria criação da
personalidade jurídica. Ela já vinha sendo discutida durante a Idade Média e Moderna,
como forma de incentivar investimentos em empreendimentos de alto risco, enquanto o
instituto da pessoa jurídica, durante esse mesmo período, ainda se encontrava em um
estágio embrionário34.
Assim, com a referida separação, os credores da pessoa jurídica têm sua
garantia restrita ao patrimônio desta, sendo que este, via de regra, não poderá ser usado
para saldar dívidas dos seus sócios. Da mesma forma, o patrimônio dos membros
integrantes da entidade não poderá ser usado, salvo exceções, para responder pelas
obrigações da sociedade, se traduzindo em uma verdadeira separação das esferas
patrimoniais.
Dessa forma, conforme exposto no tópico anterior, tanto a teoria
institucionalista quanto a teoria da realidade técnica buscaram na pessoa jurídica um
mecanismo que pudesse ser utilizado para sistematizar e coordenar elementos que
permitissem a existência de um sujeito de direitos, distinto de seus integrantes, e que
esse novo centro de imputações perseguisse uma finalidade socialmente útil.
Foi visto, também, que esse regime jurídico tem como característica principal a
concessão de determinados efeitos a esses novos entes, conferindo a eles a já
mencionada autonomia jurídica e patrimonial. Esses efeitos, no entanto, não ficam
restritos ao mero debate acadêmico, repercutindo em nossa realidade social, seja através
de uma série de benefícios proporcionados à comunidade em geral, seja por meio de
custos sociais refletidos entre os membros desse mesmo agrupamento político.
33 COELHO (2010, p. 15) 34 FRAZÃO (2011, p 26) faz menção a GALGANO ao afirmar que “a personalidade jurídica nunca foi o fundamento da limitação da responsabilidade, mas apenas uma justificação teórica a posteriori desta”.
18
4.1. Os Benefícios Sociais
A criação de um novo centro de imputação através da personalização das
sociedades comerciais permite ao ser humano atingir objetivos que não conseguiria
perseguir enquanto pessoa natural. Assim, é de se imaginar que toda a tecnologia
jurídica envolvida na elaboração desse instituto produza uma série de benefícios sociais.
Sem a intenção de esgotar o tema, até porque os reflexos de um instituto jurídico na
sociedade são inumeráveis, o presente tópico irá analisar estes benefícios
proporcionados pela existência da pessoa jurídica e sua importância para as atividades
empresariais. E os primeiros aspectos a serem abordados se referem à autonomia
jurídica conferida a esses entes.
Pois bem, inicialmente, a existência de uma pessoa moral enquanto um novo
sujeito de direitos e deveres possibilita reduzir a complexidade das relações jurídicas
desenvolvidas entre esse ente e terceiros, diminuindo, assim, os custos de negociação35.
Com isso, a pessoa jurídica centraliza as imputações originadas tanto de
responsabilizações extracontratuais, quanto aquelas advindas de um pacto contratual,
deixando, assim, de envolver seus membros diretamente em tais relações jurídicas.
Como consequência, observa-se uma maior agilidade e segurança nas relações travadas
entre tais entes e seus credores sociais.
Ademais, o fato de a pessoa jurídica possuir vontade autônoma confere a esse
ente a faculdade de agir juridicamente independente dos demais sujeitos que a
compõem. Essa característica facilita a imputação direta dos atos praticados à pessoa
moral, que passa a responder por todas as decisões tomadas, estando, assim,
juridicamente vinculada às suas ações, sem que seja levantada qualquer dúvida acerca
da legitimidade de presentação do órgão responsável pela deliberação36.
Outra vantagem proporcionada pelo advento da personalização é que a
desvinculação da existência da pessoa jurídica da existência física de seus membros
permite a continuidade do empreendimento desenvolvido por esse ente37. Ou seja,
35 COASE (1988, p. 39) 36 Tal aspecto, no entanto, nos remete para a questão da teoria do ultra vires, que será posta posteriormente neste trabalho. Mas desde já se mostra importante fazer uma distinção existente entre a representação e a presentação. Para tanto, remetemos aos ensinamentos de Sílvio Venosa que em seu Direito Civil expôs que “não se há de fazer, contudo, analogia entre a representação dos incapazes com a chamada representação da pessoa jurídica. Isso porque a representação dos incapazes (...) ocorre quando há incapacidade, exigindo, assim, proteção e suprimentos legais. Na chamada representação de pessoas jurídicas, o que intenta é provê-las de vozes que por elas possam falar, agir e praticar os atos da vida civil. Há, pois, na pessoa jurídica, mais propriamente uma presentação, algo de originário na atividade dos chamados representantes, do que propriamente uma ‘representação’. A pessoa jurídica presenta-se (ou se apresenta) perante os atos jurídicos, e não se representa, como ordinariamente se diz.” VENOSA (2003, p. 261). 37 VENOSA (2003, p. 250)
19
mesmo quando as pessoas físicas não mais integram o corpo da sociedade comercial,
seja porque abandonaram o empreendimento, seja porque vieram a falecer, o
desenvolvimento da atividade empresarial poderá continuar, o que acaba por conferir
um caráter duradouro à empresa, permitindo a estabilidade dos vínculos obrigacionais
estabelecidos entre a sociedade comercial e seus credores sociais.
Continuando a análise das vantagens auferidas pela criação da pessoa jurídica,
podemos constatar que a existência de tal instituto possibilita a reunião de recursos para
a realização de empreendimentos grandiosos, que transcendem a capacidade natural do
homem e dificilmente seriam obtidos sem a utilização de tal técnica jurídica. Fica
evidente, assim, desde já, o grande benefício social que a adoção deste instituto
proporciona. Tal captação de recursos se deve, em grande parte, ao fato de nosso
ordenamento conceder à pessoa jurídica essa autonomia patrimonial em face de seus
integrantes.
Essa característica faz com que se opere uma limitação da responsabilidade do
sócio da sociedade empresarial, a qual fica restrita apenas ao investimento realizado por
este. Com isso, fica limitada, também, a possibilidade de perda daqueles que buscam no
empreendimento desenvolvido pela pessoa jurídica uma forma de investimento. O
investidor não corre o risco de ter o seu patrimônio responsabilizado pelo fracasso da
atividade econômica, pois esta responsabilidade está, em regra, vinculada ao próprio
capital da pessoa jurídica38. Incentiva-se, assim, o investimento do capital, bem como o
consequente surgimento de uma variada gama de empreendimentos a serem
desenvolvidos. Tal efeito, hoje, pode ser considerado uma das bases da exploração de
qualquer atividade econômica de grande porte, pois permite uma série de
desdobramentos que serão tratados adiante.
O fato de o sócio não responder pelas dívidas da sociedade representa a
transferência do risco para o credor, através daquilo que ficou conhecido por
socialização parcial do risco. Esta tese se fundamenta no raciocínio de que, caso o
empreendimento venha a falhar e o patrimônio da sociedade não possa responder por
suas dívidas, em nome dos benefícios proporcionados pela existência da pessoa jurídica,
deverá a comunidade como um todo arcar com o prejuízo, uma vez que os credores
sociais não poderão recorrer ao patrimônio pessoal dos integrantes do ente moral39.
38 COELHO (2010, p. 16) 39 FRAZÃO (2011, p. 18)
20
Desta forma, desonera-se o capital produtivo, permitindo que se aumente o
volume de investimentos, seja nas sociedades empresariais existentes, seja na criação de
novas pessoas jurídicas com o intuito de explorar alguma atividade econômica. Essa
circulação de capital implica um benefício global através da disponibilização de um
maior número de bens e serviços, bem como o investimento em atividades consideradas
de alto risco40.
A autonomia patrimonial permite ainda a existência de diversos tipos de
investidores nas atividades desenvolvidas pelas pessoas jurídicas, uma vez que, por não
haver uma responsabilização ilimitada, o indivíduo nem sempre necessitaria demonstrar
interesse em participar das tomadas de decisão ou do destino do empreendimento41. Seu
interesse em investir em determinada sociedade pode estar limitado apenas ao retorno
de um lucro rápido, enquanto outros podem buscar um investimento a longo prazo.
Assim, os acionistas poderiam ser divididos em empresários, rendeiros e especuladores.
Tal diferenciação não seria possível caso a responsabilidade do sócio fosse
ilimitada, pois, dificilmente, alguém assumiria tal risco sem fazer um acompanhamento
de perto de todos os passos da sociedade empresária.
Esta preocupação também se refletiria na gestão da sociedade. Hoje, um dos
motivos para explicar a separação entre administrador e acionista reside nesta limitação
da responsabilidade proporcionada pela autonomia patrimonial42. Se assim não fosse,
todo e qualquer acionista, provavelmente, iria querer fazer parte da tomada de decisões,
uma vez que o seu patrimônio pessoal estaria atrelado à situação da sociedade
empresarial. Esse modelo de administração conjuntiva implicaria sérios empecilhos
para o desenvolvimento do empreendimento, uma vez que vai de encontro a toda a
agilidade que a atividade empresarial exige. Tanto é que, desde a Idade Média, já se
estudavam maneiras de pôr em prática uma administração disjuntiva, na qual a vontade
de alguns vincularia toda a sociedade43.
Dessa forma, o que se observa hoje é a, cada vez maior, separação entre esse
administrador e o acionista da sociedade empresarial, com a consequente
profissionalização das estruturas de gestão, tendo como principal efeito uma maior
eficiência e rapidez na tomada de decisões.
40 A limitação da responsabilidade foi historicamente pensada como uma forma de se superar um obstáculo existente para o desenvolvimento de certos empreendimentos de risco. Em seu livro Função Social da Empresa, Ana Frazão faz uma boa análise histórica do desenvolvimento do conceito (2011, pág.11 e ss.) 41 FRAZÃO (2011, p. 77) 42 DUARTE (2007, p. 89) 43 FRAZÃO (2011, p. 13)
21
A autonomia patrimonial cria ainda a possibilidade de se instituir um mercado
de ações em que se negocia livremente a participação societária44. Com a concessão da
limitação da responsabilidade, a participação social acaba por refletir apenas o
rendimento da sociedade, não se levando em conta a liquidez do patrimônio dos outros
sócios, já que, via de regra, isso em nada interfere no risco do investimento por aquele
que adquire o título. Por outro lado, e pelo mesmo motivo, os demais acionistas não
devem se preocupar com a saúde financeira daquele que adquire referidas participações
sociais45, uma vez que seu patrimônio pessoal não influenciará em uma futura
responsabilização da sociedade empresarial.
Entre as inúmeras vantagens desse modelo de mercado, muitas delas já
abordadas neste trabalho, podemos citar também a facilidade criada para a entrada e
saída de investidores. O acionista que inicialmente investe em determinada companhia
não necessita ficar eternamente vinculado a ela, ainda mais se ele possuir um perfil
especulativo. Ele pode simplesmente negociar sua participação, encerrando seu
relacionamento com aquela sociedade.
Outra vantagem consequente da autonomia patrimonial que merece destaque é
a diversificação dos investimentos46. O acionista não necessita restringir seu
investimento em apenas um empreendimento, com receio de que o insucesso daquela
empresa possa representar a ruína de todo o seu patrimônio pessoal. Caso queira, ele
pode estender seu capital a inúmeras atividades, de acordo com seus interesses e
rentabilidade de cada uma delas.
Todos esses benefícios citados até o momento contribuem para o grande
volume de investimentos feitos pelos cidadãos comuns nas sociedades anônimas
abertas, o que tem transformado essas entidades em verdadeiras poupanças sociais,
dando uma função de organizações quase-públicas para tais entes47. Esse importante
efeito acentua a relevância do papel dessas pessoas jurídicas em nosso cotidiano e a
crescente necessidade de se buscar mecanismos que garantam a proteção tanto da
população em geral quanto da própria sociedade empresarial.
44 DUARTE (2007, p. 92) 45 POSNER (1998, p. 432) 46 DUARTE (2007, p. 93) 47 FRAZÃO (2011, p.75)
22
4.2. Os Custos Sociais
A preocupação mencionada no tópico anterior, relacionada à necessidade de se
buscar instrumentos para proteger a população, deve-se, principalmente, à grande
influência que o instituto da pessoa jurídica exerce em nossa sociedade. Através de
grandes companhias, atividades econômicas são desenvolvidas ao redor de todo o
planeta, interferindo na vida de inúmeras pessoas.
Assim, há de se imaginar que, além dos benefícios proporcionados, a
autonomia jurídica e patrimonial do ente moral pode acarretar uma série de
externalidades negativas. Estas externalidades são traduzidas através de custos sociais
que acabam por repercutir em toda a comunidade. Analisando tal tema neste tópico,
iniciaremos nossa abordagem pelos custos gerados pela autonomia jurídica da sociedade
comercial.
Primeiramente, há de se questionar os mecanismos que permitem a formação
de vontade da pessoa jurídica enquanto vontade distinta da de seus membros e até que
ponto poderíamos considerar essa autonomia como real48. Esse questionamento deve ser
feito a partir da constatação de que, embora seja concebida como um novo centro de
imputação, ou seja, um novo sujeito de direitos, a pessoa jurídica, ainda assim, depende
da atuação de seus órgãos para formar e revelar sua vontade. Dessa forma, a atuação da
pessoa jurídica é fruto de uma espécie de heterodeterminação49, na qual diferentes
sujeitos são responsáveis pela sua manifestação de vontade, uma vez que a sua própria
subjetividade seria fruto de uma mera técnica jurídica50.
Surge, assim, o custo da pessoa jurídica passar a atuar em função exclusiva do
interesse de seus sócios, em total descompasso com os anseios da comunidade em geral.
Com isso, esse regime jurídico poderia ser completamente desvirtuado, representando
mera limitação da responsabilidade patrimonial de seus acionistas e, consequentemente,
incrementando o custo social do instituto, uma vez que os riscos do investimento para o
desenvolvimento da atividade empresarial em si não se extinguem com a criação da
pessoa jurídica, sendo apenas transferidos para seus credores sociais.
48 DUARTE (2007, p.86) 49 DUARTE (2007, p. 86) 50 Neste ponto, é importante realçar o debate que envolve a aceitação da sociedade unipessoal, enquanto estrutura societária, e de como se opera a formação e manifestação de vontade da pessoa jurídica nessa configuração societária. Como fazer com que o interesse do sócio não se confunda com o interesse da sociedade, e como inserir nesta configuração empresarial o interesse do restante da comunidade, são perguntas pertinentes a esta configuração empresarial. Seria tal sociedade usada apenas como uma forma de se limitar a responsabilidade patrimonial do sócio? SALOMÃO FILHO (2006, p. 202).
23
O ordenamento jurídico já prevê soluções para combater o desvirtuamento do
instituto, como as hipóteses de responsabilização direta de sócios e administradores e a
desconsideração da personalidade jurídica. Dessa forma, já nesse momento, não
podemos deixar de conceber esse instituto dissociado de sua função social.
Em um segundo momento, a própria manifestação de vontade da pessoa
jurídica pode se apresentar como fator de incremento do risco. Este problema se dá na
medida em que se buscou definir até que ponto a pessoa jurídica deveria estar vinculada
aos atos praticados por seus administradores. Uma vez que sua manifestação de vontade
depende da atuação de terceiros, doutrina e jurisprudência tentaram buscar meios de
evitar que tal presentação fosse desviada pelo administrador, em detrimento dos
interesses dos demais sócios investidores e da própria pessoa jurídica.
Esta preocupação se refletiu na tentativa elaborada pela doutrina britânica de
traçar um parâmetro de controle, por volta do século XIX, concebendo uma teoria que
ficou conhecida como ultra vires doctrine51. Segundo tal teoria, o administrador só
estaria autorizado a agir em nome da pessoa jurídica se aquele ato estivesse previsto em
seu objeto social. Qualquer ação que extrapolasse esse limite seria considerada nula.
O problema deste posicionamento reside no custo que a adoção de tal teoria
representa para comunidade como um todo. Em nome da defesa dos interesses dos
sócios, é criado um ônus a mais para todos aqueles que se relacionassem com
determinada sociedade comercial, pois o credor social correria o risco de não ter o
patrimônio da pessoa jurídica vinculado à obrigação estabelecida.
Em razão de tal rigor, todos aqueles que negociavam com tais sociedades
passaram a exigir a expressa inclusão do contrato no objeto social, como forma de estar
garantido que aquela obrigação não seria considerada nula. Esta exigência teve como
consequência a ampliação dos contratos sociais, de maneira a abarcar um sem número
de atividades. Como reflexo de tais complicações, observou-se a suavização da teoria ao
longo do século XX, culminando até mesmo em sua superação em certos ordenamentos,
de modo a prestigiar a boa-fé de terceiros que negociam com a pessoa jurídica, através
da adoção da chamada teoria da aparência52.
Por fim, outro efeito da personalização das sociedades comerciais que pode
representar um verdadeiro malefício para a comunidade seria a própria limitação da
responsabilidade dos sócios diante das obrigações contraídas pela sociedade. Muito
51 COELHO (2010, p. 459) 52COELHO (2010, p. 461)
24
embora ela proporcione variada gama de benefícios para a população como um todo, ela
também é responsável por uma série de externalidades negativas que merecem
destaque.
Por si só, a limitação da responsabilidade dos sócios sempre foi vista com
desconfiança pela coletividade, tanto que a evolução deste instituto dependeu em boa
parte da chancela estatal53, representando uma exceção ao sistema de responsabilização
das sociedades econômicas da época. Foi apenas com o aumento da complexidade dos
empreendimentos e a necessidade de se atrair maiores investimentos para as sociedades
empresariais que tal limitação surgiu.
No entanto, a autonomia patrimonial nunca extinguiu o perigo do insucesso
empresarial em si, representando apenas uma exteriorização do risco inerente à
atividade, transferindo-o, assim, para os credores sociais da pessoa jurídica54. Esta
consequência se fundamenta na tese, já abordada, da socialização parcial do risco da
atividade, na qual os credores sociais da sociedade empresarial devem arcar com o
prejuízo, caso o empreendimento venha a falhar e a pessoa moral não tenha recursos
suficientes para saldar suas dívidas.
Entretanto, mesmo levando em consideração o incentivo ao investimento que
essa técnica proporciona, vem à tona a questão de se definir até que ponto seria legítimo
permitir a socialização parcial do risco e como deveríamos administrar a transferência
desta externalidade à coletividade, principalmente em questões limítrofes como, por
exemplo, nas hipóteses de subcapitalização da sociedade55.
Todos aqueles que se relacionam com a sociedade empresarial acabam
assumindo um risco, relacionado ao possível insucesso da atividade e que é repassado a
eles através da limitação da responsabilidade dos integrantes da pessoa jurídica.
Tais credores sociais se dividiriam segundo a sua capacidade de negociação
com a pessoa jurídica acerca dos fatores de risco que envolvam referida relação
jurídica56, mas todos eles acabam por sofrer com os perigos do insucesso e da
insolvabilidade da sociedade empresarial. Os credores voluntários da pessoa jurídica
sofrem, de um modo geral, por não terem acesso a todas as informações necessárias
para avaliar e negociar a justa remuneração referente ao risco assumido. Já os credores
53 FRAZÃO (2011, p. 19) 54 POSNER (1998, p. 432) 55 São os casos em que o capital social da sociedade não é suficiente para o desenvolvimento normal da atividade empresarial da mesma. Nessas hipóteses, questiona-se até onde iria a responsabilidade dos acionistas pelas dívidas da pessoa jurídica, pelo simples fato deles não terem disponibilizado um aporte de capital suficiente para a sociedade empresarial. COELHO (2010, pág. 179 e ss.) 56 COELHO (2010, p. 22)
25
voluntários de menor porte ainda estão em maior desvantagem por não apresentarem
um certo poder de barganha frente à sociedade empresarial que possibilite uma livre
negociação dos fatores de risco. Enquanto isso, os credores involuntários não possuem
nem essa chance de pactuar uma remuneração pelos riscos, visto que a assunção do
risco não pode ser simplesmente evitada ou até mesmo negociada.
5. As justificativas teóricas para a existência da pessoa jurídica.
Diante de todos esses custos sociais que a personificação das sociedades
empresariais proporciona, resta a dúvida de saber se a autonomia patrimonial e jurídica
conferida por tal técnica ainda se justificariam na realidade social de hoje. Para buscar
respostas a esse questionamento, o presente tópico apresentará a contribuição de dois
teóricos de destaque na análise econômica do direito57.
5.1. Richard Posner e a Livre Negociação
Segundo esse autor, expoente da Escola de Chicago, a personificação das
sociedades comerciais, além de ser uma forma de organizar os fatores de produção
através de uma estrutura de comando, se apresenta como uma forma do empreendedor
poder captar os recursos necessários para o desenvolvimento da atividade empresarial 58. Tal captação se daria através de um incentivo dado ao investimento do capital
produtivo proporcionado pela autonomia patrimonial da pessoa jurídica59.
Entretanto, esse autor deixa claro que a limitação da responsabilidade dos
sócios não representa a eliminação dos riscos da empresa, mas tão somente a
transferência destes para os credores da sociedade empresarial60. E a justificativa para a
externalização deste risco se encontraria no poder de negociação conferido aos credores
da pessoa jurídica. Caso desejasse, o credor da entidade, ciente dos efeitos decorrentes
da personalização, poderia pactuar a concessão do crédito, condicionando-o a uma
respectiva taxa de juros ou ao aval ou fiança dos sócios61. Justamente por essa
57 Entretanto, faz-se a importante ressalva de que se compartilha dos pressupostos epistemológicos de tal teoria, a qual pretende submeter a análise do direito ao discurso econômico, reduzindo-o aquele a este. A intenção de trazer estas visões acerca do problema está na busca pela melhor compreensão deste fenômeno jurídico, sem esquecer de que o debate que o envolve deve ser feito sob a luz de diversas outras perspectivas, entre as quais se encontram, por exemplo, as dimensões política e social, como forma de melhor inserir a pessoa jurídica na realidade constitucional ora vigente. 58 POSNER (1998, p. 428) 59 POSNER (1998, p. 431) 60 POSNER (1998, p. 431) 61 POSNER (1998, p. 433)
26
possibilidade de negociação dos fatores de risco, Posner acredita que os credores
voluntários da pessoa jurídica estariam em melhores condições para suportar um
possível fracasso da empreitada62.
Consequentemente, a limitação da responsabilidade do sócio, conferida pela
técnica da personificação da sociedade empresarial, funcionaria como uma espécie de
cláusula geral de todos os contratos de crédito que envolvessem a pessoa jurídica. O
empreendedor não necessitaria renegociar através de cláusulas específicas, caso a caso,
os limites de sua responsabilização pela atividade econômica perante seus credores,
reduzindo-se, dessa forma, os custos envolvidos no desenvolvimento da atividade
empresarial. Caso não concordasse com o risco a ser assumido, o credor poderia
negociar sua remuneração correspondente.
A pessoa jurídica, assim, não representaria grandes custos sociais, uma vez que
a comunidade estaria resguardada pela possibilidade de estabelecer livres negociações
com a entidade, fixando uma justa remuneração pela assunção do risco. Para tanto, tal
teoria pressupõe o total acesso do credor às informações que envolvessem o negócio,
principalmente os relativos à própria pessoa jurídica e seu estado. Só assim, eles
estariam aptos a estabelecer uma livre negociação63.
Quanto aos credores involuntários dessa sociedade, por não terem
oportunidade de negociar referida compensação, não poderiam suportar um possível
insucesso do empreendimento. Dessa forma, a responsabilidade dos sócios por essas
obrigações não negociáveis, como a responsabilização por ilícitos, não poderia ser
afastada através da limitação da responsabilidade 64.
Com isso, não haveria custos sociais que pudessem obstaculizar a existência
destes entes morais. Na verdade, segundo o chamado princípio da eficiência, a
personalidade jurídica representaria uma maximização da riqueza global, na medida em
que permitiria uma melhor alocação de recursos na forma de capital produtivo65.
A crítica a tal teoria, muito bem exposta na obra de Calixto Salomão Filho,
reside no fato de que ela pressupõe que tanto credores sociais quanto pessoa jurídica
estariam em totais condições de estabelecerem uma livre negociação acerca da
62 Como motivos para tal constatação, ele enumera que (i) as entidades financeiras teriam maiores condições de avaliar o risco do empreendimento, fazendo tal tarefa a um custo menor que a sociedade empresarial, (ii) por possuírem um portfólio diversificado de concessão de empréstimos, elas estariam assegurados pela remuneração desses créditos, caso uma das sociedades devedoras viesse a falir, e por fim (iii) elas poderiam controlar melhor sua exposição frente ao empréstimo concedido, do que os sócios, que não teriam como quantificar o montante que é creditado à sociedade empresária. POSNER (1998, pág. 432). 63 SALOMÃO FILHO (2006, p. 239) 64 POSNER (1998, p. 435) 65 SALOMÃO FILHO (2006, p. 241)
27
remuneração ao risco de insucesso assumido por aquele que pactua com a sociedade
empresarial. Entretanto, não é o que se observa na realidade.
Primeiramente, há de se ressaltar que a obtenção de informação não é livre,
apresentando um custo econômico que a torna, muitas vezes, inacessível a maior parte
dos credores sociais. Em segundo lugar, dentro dos próprios credores voluntários, há
aqueles que não possuem poder de negociação com a pessoa jurídica simplesmente por
não terem outra opção a não ser negociar com ela, tais como pequenos fornecedores e
os empregados da sociedade empresarial66.
Superados os pressupostos da teoria de Posner, Salomão Filho critica a
justificativa fornecida pelo princípio da eficiência, que fundamenta a teoria da livre
negociação de um modo em geral67. Segundo este princípio, a eficiência de uma norma
jurídica seria medida de acordo com a maximização global das riquezas, mesmo que
isso represente prejuízo para alguns agentes econômicos68. No entanto, segundo
Salomão Filho, tal teoria não leva em consideração o fato de que, em mundo real,
marcado pela desigualdade social, a maximização das riquezas proporciona,
necessariamente, uma concentração de riqueza nos agentes econômicos com maior
poder de barganha69.
Desta forma, ainda segundo este autor, seria necessário buscar mecanismos que
permitissem conciliar a eficiência com uma maior justiça material. Tais mecanismos
deveriam ser fornecidos pelo direito, como forma de intervir na sociedade na busca por
uma maior igualdade social70.
5.2. Coase e a Teoria da Firma
Outra teoria que busca explicar a existência e crescimento das sociedades
empresariais foi elaborada por Ronald Coase. Segundo esse teórico, a firma seria uma
estrutura de comando que permite ao empreendedor organizar e coordenar os fatores de
produção utilizando-se de um mecanismo distinto do sistema de preços característico do
livre mercado.
Esta escolha se justificaria na medida em que haveria um custo ao se utilizar o
sistema de oferta e demanda como mecanismo de coordenação dos fatores de produção
66 SALOMÃO FILHO (2006, p. 240) 67 SALOMÃO FILHO (2006, p. 243) 68 SALOMÃO FILHO (2006, p. 241) 69 SALOMÃO FILHO (2006, p. 241) 70 SALOMÃO FILHO (2006, p. 243)
28
e orientador das transações comerciais71. Esse custo representaria um acréscimo ao
preço do fator de produção, encarecendo, com isso, o produto final. Segundo Coase,
entre os diversos fatores que determinariam esses custos, estariam: coleta e avaliação de
informações necessárias para se fechar um negócio, os custos que envolveriam a
elaboração do contrato em si e a intervenção estatal na economia, tendente a tributar as
transações comerciais efetuadas no mercado72.
Assim, o mercado não se orientaria apenas pela lógica da oferta e demanda,
uma vez que se observaria a existência de uma série de custos que são levados em
consideração na tomada de decisão pelos empreendedores. Estes buscam sempre
reduzir seus custos para que seu produto final seja disponibilizado em condições de
concorrer com produtos análogos lançados pelas outras sociedades empresariais.
Para Coase, as transações podem ser realizadas por diferentes formas
organizacionais, entre as quais a pessoa jurídica seria apenas mais uma delas. Os outros
métodos seriam a realização destas transações comerciais através do próprio mercado,
ou, ainda, por meio de contratos de longo prazo com um fornecedor específico.
Nesta perspectiva, a firma surgiria como instrumento de redução desses custos,
chamados pelo autor de custos de transação, permitindo a internalização destes em uma
estrutura de comando que substituiria o sistema de preços como mecanismo responsável
pelo direcionamento dos fatores de produção. A firma deixaria de ser, assim, apenas um
meio de transformação de insumos em produtos para atuar como elemento determinante
da alocação de recursos em nossa economia.
Entretanto, a estruturação da produção no interior de uma firma também
acarretaria determinados custos, que são levados em consideração pelo empreendedor
na escolha da forma mais eficiente de organizar sua empresa. Tais custos seriam
observados a partir da diminuição do retorno para o empreendedor73 e podem ser
analisados segundo o seguinte raciocínio: quanto mais a firma internalizar operações,
tendendo à diminuição dos custos de transação, maior ela se tornará. E seu crescimento
virá acompanhado de um incremento dos custos de organização e uma redução da
capacidade do empreendedor de alocar seus fatores de produção em um ponto de
máxima eficiência74.
71 COASE (1988, p. 38) 72 COASE (1998, p. 38 e ss) 73 COASE (1988, p. 44) 74 COASE (1988, p. 43 e ss.)
29
Assim, o tamanho da firma seria medido através do custo-benefício de se
organizar suas transações por meio do mecanismo de oferta e procura ou pelo
direcionamento dos fatores de produção através das decisões do empreendedor. As
firmas cresceriam, portanto, enquanto fosse mais vantajoso racionalizar os custos de
transação de um certo produto internamente do que obtê-lo diretamente no mercado.
Quando este ponto fosse atingido, passaria a ser mais lucrativo ao empreendedor lançar
mão das outras formas de organizar suas transações, seja através da negociação de um
contrato de longo prazo com outra firma, seja até mesmo por meio da aquisição daquele
produto no mercado75.
Desta forma, conclui-se que, segundo Coase, e estruturação das firmas
permitiria a organização dos fatores de produção através de uma estrutura hierárquica
que internalizaria os custos da obtenção de determinados produtos no mercado livre
dentro de sua cadeia de comando. Tais operações reduziriam os custos de produção,
refletindo no preço do produto final, beneficiando assim toda a coletividade.
Entretanto, a crítica que pode ser feita a essa teoria é a mesma discutida
anteriormente. Nos dias de hoje, não podemos simplesmente tentar reduzir a análise do
instituto da pessoa jurídica, bem como qualquer outro instituto jurídico, aos seus
aspectos econômicos, visto que existem outros fatores que regem a vida das firmas que
não são apenas custos e lucros. A personificação das sociedades empresarias não pode
ser concebida dissociada de sua função social e do papel que ela exerce em nossa
comunidade. Assim, mais do que a busca pelo lucro dos sócios, a figura de pessoa
jurídica hoje deve refletir a persecução de uma finalidade socialmente útil, conjugando,
desta forma, o interesse tanto de seus sócios quanto de toda a coletividade.
6. Conclusão
Como visto, a existência da pessoa jurídica é de suma importância para a
atividade empresarial de nossos dias. Sem as autonomias jurídica e patrimonial, que são
conferidas às sociedades empresariais pelo regime jurídico da personalização, seria
difícil ao empreendedor individual realizar e fazer prosperar as grandes empresas, como
as que podem ser vistas hoje.
Assim, pode-se dizer que os efeitos oriundos de tal instituto jurídico
proporcionam diversos benefícios, que são desfrutados por toda a coletividade. Através 75 COASE (1988, pág.44)
30
da estrutura desses entes morais, possibilita-se a aglutinação de diversas pessoas e
recursos com o intuito de perseguir um empreendimento que jamais poderia ser
suportado pelos limites físicos da pessoa natural. Ela permite a continuidade do
empreendimento, independente das pessoas físicas que a criaram. De certa forma, sua
existência reduz os preços finais dos produtos ao consumidor comum, através de uma
redução dos custos de transação. Permite a circulação do capital produtivo, através da
limitação da responsabilidade, a qual estimula o investimento, fazendo a economia girar
e gerando mais empregos e riquezas de um modo em geral. Desta maneira, por todos
esses e vários outros motivos76, é difícil de conceber nossa sociedade atual sem o
advento da personificação das sociedades empresariais.
Assim o regime jurídico da pessoa moral se apresenta, hoje, como uma escolha
racional. No entanto, não devemos fechar os olhos frente a todos os custos
proporcionados pela existência de tais entes em nossa realidade social. Enquanto custo
social, a pessoa jurídica só se justifica até o instante em que possibilitar que essas
externalidades negativas sejam reduzidas em face das externalidades positivas que
proporciona.
Porém, esse julgamento não pode ser feito através de uma análise meramente
econômica do instituto, onde os prejuízos a determinados agentes econômicos são
justificados diante de uma maximização global das riquezas. A análise do problema
deve ser muito mais profunda que isso, levando em consideração a observância dos
diversos princípios regedores de nossa realidade social atual, tais como justiça social e
função social da propriedade.
Dessa forma, o operador do direito deve pensar em maneiras de se reduzir os
custos sociais que possam ser originados a partir da existência dessa pessoa legal,
acomodando tal instituto na experiência constitucional de nossos dias. E um passo
importante para a melhor compreensão do instituto foi dado com a sua funcionalização,
inaugurada com as teorias da realidade técnica e institucionalista, que buscaram traçar a
natureza da pessoa jurídica a partir de suas finalidades socialmente úteis.
76 Ana Frazão enumera, em seu Função social da empresa, as diversas abordagens possíveis do fenômeno empresarial de nossos dias: “(i) associação entre capital e trabalho; (ii) instituição social definidora da civilização contemporânea; (iii) centro de poder, em todos os seus desdobramentos, especialmente o poder econômico e o poder político que lhe é correspondente; (iv) núcleo social que, mais do que atender às necessidades básicas do homem, tem importante papel como formador de opiniões, definindo preferências e estilos de vida; (v) organização criadora de empregos, bem estar dos trabalhadores e consumidores, riquezas e recursos para a tributação; (vi) forma de organização do risco empresarial e da atividade econômica para mercados; (vii) organização que se apresenta como alternativa às negociações de mercado na medida em que se mostra mais idônea para reduzir os custos de transação” além de ressaltar o papel de poupança popular exercido por determinados tipos societários através da chamada socialização do investimento. FRAZÃO (2011, p. 73 e ss).
31
Outra solução a ser imaginada nos remete ao problema de combater práticas da
sociedade empresária que contribuam para o incremento do risco da coletividade em se
relacionar com as pessoas jurídicas. Nesta seara, por exemplo, entraria o debate das
alternativas a serem aplicadas em resposta à subcapitalização. A partir deste problema,
por exemplo, podemos imaginar diversas indagações, tais como de que maneira
caracterizar tal situação de risco e como estabelecer parâmetros de controle, como um
capital mínimo.
Por fim, sem, no entanto, pretender esgotar tal tema, cumpre ressaltar a
necessidade de se repensar os sistemas de responsabilização dos sócios e
administradores, tais como responsabilização direta de administradores e sócios
controladores e responsabilização objetiva da pessoa jurídica, frente ao risco do
empreendimento.
Sob este enfoque, é interessante também melhorar a sistematização do instituto
da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que tal remédio jurídico
encontra-se hoje em um verdadeiro caos. A sistematização permitiria a criação de uma
maior segurança jurídica acerca das hipóteses em que poderá ser desconsiderada a
personalidade jurídica, melhorando assim a livre negociação dos fatores de risco
envolvidos entre sociedade empresarial e seus credores.
Assim, é importante que se pretenda buscar mecanismos que confiram uma
maior segurança à sociedade em geral através da redução dos custos que possam vir a
ser suportados por ela. Entretanto, um sério problema reside no fato de que estes
instrumentos de controle de custos podem produzir reflexos na própria forma da pessoa
moral administrar seus riscos, sendo necessário ter em mente que tal socialização é
necessária para o desenvolvimento da atividade econômica de nossos dias. A busca pela
redução de custos sociais poderia representar um aumento dos gastos e a consequente
inviabilização do empreendimento, fazendo com que seja necessário ao operador do
direito levar tudo isso em consideração para tomar a melhor decisão.
Fica claro, todavia, que, no nosso atual modelo de sociedade, é mais que
necessário buscar medidas que operacionalizar o instituto da pessoa jurídica a partir de
uma dimensão mais social de sua técnica jurídica, com o intuito de conciliar a busca
pelo lucro dos acionistas da sociedade empresarial com o próprio desenvolvimento
econômico e social de nossa nação.
32
7. Referências.
ACHBAR, Mark; ABBOTT, Jennifer. Documentário: The Corporation. EUA, 2003. DVD (144 min.), colorido. Didático. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª Ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BORBA, José Edwaldo Tavares. Temas de direito comercial. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. COASE, Ronald Harry. The firm, the market, and the Law. Chicago: The University of Chicago Press, 1990. COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial, vol. 2: direito de empresa. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008. DUARTE, Diogo Pereira. Aspectos do levantamento da personalidade colectiva nas sociedades em relação de domínio. Coimbra: Edições Almedina, SA, 2007. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. FRAZÃO, Ana. Função social da empresa – repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. ____________. Aspectos funcionais da personalidade jurídica de direito privado das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público. In: PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. O novo direito administrativo brasileiro, vol. 2. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, vol. 1. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983. NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, vol. 1. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 5 ed. New York: Aspen Publishers, Inc., 1998. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2001. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, vol. 1. 27 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 34 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
33
SALOMÃO FILHO, Calixto. Sociedade anônima: interesse público e privado. Belo Horizonte, n. 20, ano 5 Julho 2003 Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=50804>. Acesso em: 26 fevereiro 2010. ____________________. O novo direito societário. 3 ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros, 2006. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
34
II.
MECANISMOS JURÍDICOS DE PROTEÇÃO AOS CREDORES SOCIAIS
Lara Parreira de Faria Borges
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Quem são os credores sociais. 3. Necessidade de proteção aos
credores sociais. 4. Grupos de companhias. 5. Credores involuntários. 6. Mecanismos jurídicos
de proteção aos credores sociais. 6.1. Publicidade obrigatória. 6.2. Regras que regem o capital
legal e os grupos empresariais. 6.2.1. Limitação à distribuição e redução do capital social. 6.2.2.
Capital social mínimo. 6.2.3. Capital de manutenção. 6.2.4. O problema da subcapitalização.
6.2.5. Desconsideração da personalidade jurídica. 6.2.6. Grupos empresariais. 7. Deveres
fiduciários – estratégia de normas. 7.1. Responsabilidade dos fundadores e dos primeiros
administradores. 7.2. Responsabilidade do administrador. 7.3. Responsabilidade do auditor. 7.4.
Responsabilidade do acionista. 7.5. Desconsideração da personalidade jurídica. 7.8. Custos pela
responsabilização dos dirigentes empresariais. 7.7. Responsabilidade de terceiros. 8. Conclusão.
9. Referências.
1. Introdução
Toda organização empresarial é constituída pelo conjunto de esforços e
funções desempenhadas por diferentes agentes.
No que se refere a recursos e financiamento para desempenhar os fins
empresariais, bancos e financeiras participam do fomento sob a forma de empréstimos.
Em relação à obtenção de matérias-primas para a realização de suas atividades, a
sociedade negocia com fornecedores. Para que os objetivos planejados pelos órgãos
diretivos e financiados pelo patrimônio e demais investidores se concretizem, a
sociedade conta com a atuação de seus empregados. Por fim, os bens e serviços
produzidos pelos empregados devem ter destinatários que os consumam; entram em
cena, então, os consumidores. E não se pode esquecer de que a atuação da sociedade
sempre irá gerar externalidades no meio ambiente e na comunidade nos quais se insere.
Ao passar por todas essas etapas, que, na realidade, ocorrem simultaneamente
na vida social, percebe-se que uma sociedade gera profundos impactos na comunidade
em que atua, uma vez que se relaciona das mais diversas formas. Um aspecto
35
importante de se notar é que grande parte das relações da sociedade geram para ela a
figura de um credor social, que poderá demandar-lhe certas condutas caso sofra danos
ou prejuízos oriundos da ação ou omissão social.
No direito brasileiro, pouco se tem escrito a respeito de mecanismos capazes de
proteger os credores sociais de forma a se estabelecer um conjunto de garantias a essas
pessoas, físicas e jurídicas, que, de algum modo, se relacionam com a sociedade. Já na
literatura estrangeira referente ao direito societário, encontra-se uma preocupação em se
estabelecer critérios e mecanismos jurídicos eficazes para a proteção dos credores da
sociedade.
O presente trabalho busca, assim, fazer uma análise de direito comparado com
enfoque nos mecanismos correspondentes no direito brasileiro que demonstrem esta
aptidão de garantir a satisfação dos credores sociais. Considerando que o
desenvolvimento empresarial demonstra-se totalmente impossível sem a presença de
grande parte dos credores sociais, uma vez que estes atuam, muitas vezes, como
engrenagens do sistema empresarial, sua proteção mostra-se como medida necessária
para que se assegure o próprio desenvolvimento e as atividades da sociedade. Pode-se
dizer que os credores sociais são os responsáveis pela vitalidade de uma organização
empresarial, por isso, nada mais justo que garantir-lhes proteção.
Inicialmente, delimitar-se-á a noção de credores sociais, buscando definir
quem pode ser enquadrado nesta figura. Posteriormente, será analisada a necessidade de
proteção dos credores, vislumbrando como suporte teórico o institucionalismo
organizacional e a função social da empresa. Por fim, far-se-á uma comparação dos
mecanismos jurídicos de proteção aos credores sociais no direito comparado e no
direito brasileiro, buscando, quando possível, uma análise mais específica, atendendo às
particularidades de cada credor.
O direito societário brasileiro, durante muito tempo, se ocupou de estudar o
significado do ser empresário, bem como da necessidade de se garantir negócios
rentáveis e de se eximir os sócios da responsabilidade pessoal pelas transações da
sociedade. Cabe agora uma análise capaz de estruturar e reconhecer mecanismos
jurídicos capazes de proteger credores sociais, principalmente os credores involuntários
ou não negociais, como forma de dar efetividade à noção de função social e de ordem
econômica constitucional, garantindo dignidade e justiça social.
36
2. Quem são os credores sociais
Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, os credores sociais são todos aqueles
que não são acionistas da companhia, mas são igualmente interessados no sucesso
desta.77 Como exemplos de credores sociais podem-se citar os bancos, os “bondholders”
(investidores), os empregados, os fornecedores e toda parte que contrate com a
companhia.78
O acionista na condição de investidor na formação do capital social não será
credor da sociedade. Como bem explica Fábio Ulhoa Coelho, o acionista que investe na
companhia para formar seu capital social tem como retorno o produto do lucro
decorrente da atividade da empresa.79 Entretanto, quando a sociedade busca captar
recursos por meio de mútuos, provenientes dos acionistas, estes passam a ser credores
da companhia com direito a receber o que foi investido, independentemente do sucesso
da atividade empresarial.80 Assim, pode-se considerar que os sócios na condição de
mutuantes enquadram-se na categoria de credores sociais.
3. Necessidade de proteção aos credores sociais.
A questão da necessidade de proteção especial aos credores sociais é colocada
por Gerard Hertig e Hideki Kanda como uma garantia que deve vir não necessariamente
da lei societária, mas da própria relação entre credor e devedor e da legislação já
existente regulando tal relação, ou até mesmo das condições do mercado.81 Os autores
demonstram que a proteção aos credores sociais é aclamada por aqueles que
vislumbram nestes credores o sofrimento de um maior risco frente ao oportunismo dos
acionistas e da responsabilidade limitada destes em detrimento dos credores.82
Na visão de Gerard Hertig e Hideki Kanda, tanto os credores individuais
(aqueles que se inserem em uma relação de crédito-débito de modo individual) como os
credores sociais sofrem riscos semelhantes antes da realização do empréstimo e após
sua obtenção.83 Antes do empréstimo a sociedade ou o indivíduo irá mentir sobre seus
77HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. In: The Anatomy of Corporate Law. A comparative and functional approach. Oxford, UK: Oxford University Press, 2004, p. 71. 78Idem, ibidem. 79COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa. Volume 2. São Paulo: Editora Saraiva, 15a Edição, 2011. p. 197. 80Idem, 198. 81HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 71. 82Idem, ibidem. 83Idem, ibidem.
37
ativos para obter o financiamento de que necessita, para tanto irá distorcer os valores de
seus ativos, no caso de uma sociedade, esta poderá até colocar ativos pessoais dos
sócios como ativos da companhia.84 Após a obtenção do empréstimo, o devedor
provavelmente violará os termos do acordo, diluindo ativos disponíveis para satisfazer
credores e buscando projetos arriscados que repassem o risco de fracasso para seus
credores, com o agravante da responsabilidade limitada .85
A questão que se coloca a esta posição de Gerard Hertig e Hideki Kanda é que,
numa situação entre credores individuais, a relação é mais igualitária em termos de
poder que cada parte possui. Já a relação entre credores sociais e a companhia não pode
ser tratada genericamente de forma a se considerar que sempre será uma relação
equilibrada ou desequilibrada, uma vez que dependerá da parte que estará se
relacionado com a sociedade.
Considerando essa própria diferença entre os diversos tipos de credores, Gerard
Hertig e Hideki Kanda consideram a importância de mecanismos especializados para a
proteção dos diversos credores sociais.86
Assim, o contrato é regulado pelo Código Civil quando as partes encontram-se
em condição de igualdade para realizar a negociação. Porém, em alguns casos, uma das
partes pode encontrar-se em situação de vulnerabilidade. Nestes casos, a liberdade
contratual será limitada para que exista um equilíbrio entre as partes. É exatamente o
que ocorre em relação a trabalhadores e consumidores.
Outro exemplo é a relação entre os bancos credores e a companhia. Tais
instituições financeiras possuem elevado poder de pressão sobre as companhias de
modo a ter seus créditos satisfeitos conforme o estabelecido no contrato. Já os
empregados da companhia, também credores sociais, estão numa condição de
hipossuficiência e ínfimo poder frente à atuação da sociedade para satisfazer seu
crédito. Inclusive, é este fato que norteia todo o ordenamento jurídico-trabalhista,
garantindo maiores proteções ao trabalhador de forma a colocá-lo numa situação de
igualdade perante o empregador.
Assim, os breves exemplos sobre diferentes credores em diversas condições,
como bancos, empregados, consumidores, demonstram a dificuldade em se tratar dos
credores sociais como um bloco único merecedor de proteção jurídica uniforme,
considerando as enormes peculiaridades de cada espécie de credor.
84Idem, ibidem. 85HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. 71 e 72. 86Idem, p. 100-104.
38
Os próprios Gerard Hertig e Hideki Kanda admitem essa diferenciação de
proteção ao afirmarem que a lei das sociedades não se ajusta à proteção de cada credor
social, uma vez que não se pode aplicar uma única medida para diferentes credores que
se encontram em diversas condições.87
Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, os mecanismos rígidos de proteção
aos credores foram vistos historicamente como uma compensação pela concessão de
responsabilidade limitada aos sócios.88 Este argumento permanece até os dias atuais,
entretanto, na prática comercial, mostra-se como um argumento meramente retórico.89
Segundo tais autores, os credores dependem muito mais de contratos, agências de
crédito e outras medidas autoprotetivas, e não de proteção legal.90 Os autores acreditam
que tal intervenção só é merecida quando a lei for mais eficiente do que a proteção
pelas garantias do próprio contrato.91
Para Gerard Hertig e Hideki Kanda, a lei pode fornecer bons mecanismos de
proteção aos credores sociais em casos em que a transação for pequena se comparada ao
aporte da negociação, caso os credores estejam em condição de vulnerabilidade que não
possam proteger a si mesmos e em situações nas quais ações coletivas não sejam aptas a
produzir efeitos que beneficiem todos os credores.92
Entretanto, os autores relembram que os benefícios de proteção legal aos
credores vêm acrescidos de custos.93Na teoria, tais benefícios mostram-se como
redutores de custos, mas, na prática, eles podem aumentar custos de transação quando
tais mecanismos de proteção são superrígidos e intrusivos.94 Para a realização do
mercado, não se pode eliminar por completo o oportunismo, mas deve-se balancear seu
custo com os custos de seu controle, principalmente nos casos em que a companhia
estiver próxima da insolvência ou quando um devedor pertence a um grupo de
sociedades, e nos casos de credores involuntários.95
Em crítica à tese proposta por Gerard Hertig e Hideki Kanda, Eílis Ferran
argumenta que vários estudos demonstram o dilema entre custos impostos aos
devedores quando os acordos são obrigatórios e os benefícios oriundos de cláusulas que
87Idem, p. 72. 88Idem, ibidem. 89Idem, ibidem. 90HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 72. 91Idem, ibidem. 92Idem, ibidem. 93Idem, ibidem. 94Idem, p. 73. 95Idem, ibidem.
39
restringem a possibilidade de controladores da sociedade se comportarem de forma
oportunista às custas dos credores; e concluem que os acordos são mais caros.96
Alguns doutrinadores pensam que uma flexibilização no que tange às regras de
capital social ajudaria acordos contratuais juntamente com mecanismos do próprio
mercado a gerar mais opções para que os credores tivessem uma autoproteção.97 Um
contra argumento afirma que as regras sobre capital social imitam o que pode ser obtido
por meio de barganha contratual; assim, as normas sobre capital social reduziriam os
custos de transação com negociações, pois já fornecem a providência necessária.98
Um bom exemplo são os acordos que restringem o pagamento de dividendos,
acordos que não são comuns na Grã-Bretanha nem na Alemanha, mas o são nos
Estados Unidos. Isso se dá pois, no sistema norte-americano, os acordos com os
credores são importantes, e, para o sistema europeu, tais acordos são redundantes, uma
vez que os credores se sustentam na lei geral que os protege.99
Francesco Galgano defende que a intervenção estatal e a institucionalização
são instrumentos necessários para que o capitalismo seja preservado.100 Nesse mesmo
sentido, Frederico Simionato afirma que “se o mercado é deixado livre dentro da sua
legalidade intrínseca, ele leva em consideração somente o objeto e esquece-se da
pessoa” (grifos acrescidos).101 O autor defende que o crescimento da empresa não se dá
apenas pela atuação dos sócios, mas também por conta dos trabalhadores, acionistas
minoritários e debenturistas.102
Assim, uma não regulação da responsabilidade societária, bem como a não
criação de mecanismos capazes de proteger os credores sociais, baseada na crença de
que o próprio mercado há de se encarregar de protegê-los, acabará por desconsiderá-los
como pessoas, principalmente quando se trata de credores sociais em condições mais
vulneráveis perante a companhia controladora.
96FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. In: ECGI (University of Cambrigde, Faculty of Law; European Corporate Governance Institute). Law Working Paper. Nº 51/2005. Outubro, 2005. 97Idem, ibidem. 98FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 99Idem, ibidem. 100SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 59. 101Idem, p. 71. 102Idem, ibidem.
40
4. Grupos de companhias
Os grupos de companhias ou grupos empresariais são controlados por
poderosos “insiders”103, acionistas da companhia dominante, coalizão de acionistas,
grupo de administradores influentes.104 A estrutura do grupo empresarial afeta os
credores, uma vez que propicia menor transparência (não separando ativos e débitos de
cada membro do grupo, por exemplo).105 A estrutura do grupo também permite que
controladores estabeleçam os termos em que as transações entre seus membros dar-se-
ão, às vezes, extraindo valores de credores e acionistas minoritários de uma sociedade
empresária do grupo e transferindo para outra. Assim, credores são prejudicados pela
transferência de ativos de um membro do grupo para outro.106 Credores sociais e
acionistas minoritários encontram-se, dessa forma, em situação de maior
vulnerabilidade em grupos de companhias.107
O tratamento dos grupos empresarias varia conforme o ordenamento de cada
país. A Alemanha realiza um forte controle, em contrapartida, os EUA não exercem
nenhum controle, ignorando o arranjo de tais grupos empresariais.108 Em posição
intermediária, Grã-Bretanha, Japão e França não possuem uma legislação específica
sobre o tema, mas regulam tais grupos por meio de outros mecanismos.109 Como se
observa, não há consenso entre os ordenamentos a respeito da regulação de grupos
empresariais, mas nenhum país os proíbe totalmente.110
Os grupos empresariais piramidais são os mais problemáticos, uma vez que
são controlados por uma minoria acionária, e são permitidos, apesar de serem
funcionalmente equivalentes ao “supervotante”; a questão mais difícil está na proibição
do supervotante por quase todas as legislações.111
Na visão de Hertig e Kanda, os grupos empresarias são altamente eficientes, na
medida em que minimizam tributos, realizam uma melhor alocação e monitoramento
103A expressão “insider” é bem definida por Paulo Sandroni nos seguintes termos: “Insider. Termo aplicado, especialmente no mercado de ações, a uma pessoa que dispõe de informações privilegiadas sobre a situação de empresas que têm seus títulos cotados em Bolsa e que, fazendo uso delas (antes que as mesmas sejam acessíveis ao público), pode realizar grandes lucros comprando e/ou vendendo ações. A legislação em geral pune a ação dos insiders, embora com graus diferenciados de severidade.” In: SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia. São Paulo, Editora Best Seller, 9a Edição, 2002, p. 304. 104HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 75. 105Idem, ibidem. 106Idem, ibidem. 107Idem, p. 74. 108Idem, p. 76. 109Idem, ibidem. 110Idem, p. 75. 111Idem, p. 76.
41
dos custos dos riscos perante os credores e, assim, podem proteger transações de
investimentos específicos.112
Calixto Salomão entende que a Lei das S/A é bastante favorável às empresas
conglomeradas, gerando deficiências na proteção de interesses de terceiros.113 Inclusive,
o autor ressalta que essas facilidades dispostas às empresas conglomeradas tiveram sua
constitucionalidade questionada, por representarem um incentivo à dominação do
mercado e serem contrárias à liberdade de concorrência defendida pela Constituição de
1988 (artigo 170).114
5. Credores involuntários
Os credores involuntários são uma espécie de credores sociais que se
encontram em uma situação de maior vulnerabilidade perante o oportunismo e a
negligência da administração e dos sócios da companhia, por isso, requerem especial
proteção caso a companhia encontre-se em situação de insolvência.115 Na medida em
que a estrutura societária imuniza os acionistas da responsabilidade por atos ilícitos,
eles se sentem livres para optar por soluções “fora da lei”, desconsiderando as
externalidades negativas, como danos ao meio ambiente, entre outros ilícitos em
geral.116
Essas observações sugerem que credores involuntários merecem medidas
protetivas especiais. Entre elas, Gerard Hertig e Hideki Kanda propõem: 1) a
preferência em relação aos credores voluntários no processo de insolvência; 2)
pagamento na forma de responsabilidade civil pelos danos gerados pela companhia; 3)
responsabilização dos acionistas pelos excessos do ato ilícito proporcionalmente ou
totalmente, a depender do controle que o acionista teve sobre a decisão quanto à
atividade de risco.117
112Idem, ibidem. 113SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2a Edição, 4a Edição, revista e ampliada, 2011. p. 38. 114SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário.Op. Cit. p. 38 e 39. 115HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 76. 116Idem, ibidem. 117Idem, p. 77.
42
Apesar de todos esses mecanismos especiais de proteção aos credores
involuntários propostos por Gerard Hertig e Hideki Kanda, não há uma consolidação
destes nos ordenamentos.118
Os autores apontam, como motivos para isso, a fraqueza da distinção entre
credores voluntários e involuntários, o incipiente desenvolvimento da lei de
responsabilidade civil, a falta de corpo jurídico especializado no assunto, bem como a
ausência de organização entre as vítimas (credores involuntários) na forma de lobby
para alterar a lei (uma vez que as vítimas só se caracterizam nessa condição de credores
após o ato ilícito, e, após o fato, não pode haver alteração da lei que irá regulá-lo;
assim, as vítimas não demonstram interesse em se articularem para alterar a lei que
beneficiará outros no futuro).119
Uma questão interessante levantada por Eilís Ferran sobre a proteção dos
credores fracos e involuntários diz respeito à possibilidade de tais credores se
beneficiarem como parasitas dos contratos dos credores sofisticados, uma vez que as
restrições à autonomia gerencial impostas por via de acordos contratuais beneficiam
todos os credores.120 Porém, a própria autora levanta um argumento contra acordos que
beneficiem genericamente todos os credores, referindo-se ao caso de acordos
extremamente restritivos, que podem impedir que a sociedade opere da forma
necessária para manter sua posição financeira.121
Na visão de Eilís Ferran, o certo é que nem sempre credores fracos poderão se
beneficiar parasitando acordos, uma vez que nem toda negociação contratual terá
resultados efetivos.122 Além do mais, acordos contratuais são planejados para proteger
interesses de credores individuais e específicos, que são partes em um contrato
relevante, e não uma coletividade de interesses de todos os tipos de credores.123 Os
interesses de credores fortes e vulneráveis nem sempre serão os mesmos.124
A Segunda Diretiva de Direito Societário da União Européia orientou-se para a
proteção de credores vulneráveis e, para tanto, criou mecanismos de proteção baseados
em dispositivos coletivos.125 O principal dispositivo coletivo para proteção de credores
vulneráveis refere-se a um capital social mínimo. Entretanto, mesmo os defensores
118Idem, ibidem. 119HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 77. 120FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 121Idem, ibidem. 122Idem, ibidem. 123Idem, ibidem. 124Idem, ibidem. 125Idem, ibidem.
43
desta exigência, hoje, assumem que uma regra de capital mínimo não serve
substancialmente para os propósitos a que se designa, uma vez que nem sempre se
adapta às necessidades financeiras de uma sociedade e pode se perder durante o curso
do negócio.126
Vítimas de dano são vistas como a categoria de credores que mais necessitam
de proteção legal, mas o capital social mínimo requerido pela Segunda Diretiva de
Direito Societário da União Européia não prevê que este mínimo seja suficiente para
suprir demandas por dano.127
Os pequenos credores e os credores involuntários precisam de uma proteção
diferenciada perante a sociedade, uma vez que se encontram em situação de maior
vulnerabilidade, tendo em vista que não possuem forte poder de barganha com a
companhia a ponto de poderem assumir parte dos riscos do negócio empresarial como
os grandes credores fazem.128 Assim, a responsabilidade limitada, como mecanismo
eficiente para a redução dos custos de transação, mostra-se adequada quando o credor
assume o risco de negociar com a sociedade e pode contrabalancear tais riscos com
elevadas taxas de juros, entre outros benefícios negociáveis.129 O mesmo não se aplica
aos credores que sofrem danos por atos ilícitos dos gestores da companhia ou que se
encontram na condição de credores involuntários.130
Assim, impor as consequências da responsabilidade limitada de forma
indistinta tanto a grandes credores como a credores involuntários e pequenos credores
mostra-se uma atitude perversa quanto aos mais fracos.131 Nas palavras de Ana Frazão,
“tais constatações causam, certamente, inúmeras perplexidades, ainda mais diante de uma ordem econômica constitucional fundada na função social da empresa e que tem por objetivo o de assegurar a todos uma vida digna. No caso da responsabilidade limitada, os mais fracos são exatamente os menos protegidos”.132
A solução para tal problema não se mostra simples. O mero afastamento da
responsabilidade limitada em relação aos credores sociais transformaria a sociedade
anônima em uma sociedade em comandita por ações, apenas transformando um
126Idem, ibidem. 127FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 128FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 389. 129Idem, ibidem. 130Idem, p. 390. 131Idem, ibidem. 132Idem, ibidem.
44
problema em outros, e não propriamente solucionando a questão.133 Assim, para Ana
Frazão, a medida mais adequada para o caso é “o cumprimento do dever de diligência
por parte dos administradores, no que se refere à manutenção do patrimônio social e às
atividades tendentes ao pagamento do crédito”.134
6. Mecanismos jurídicos de proteção aos credores sociais
Mesmo considerando que cada espécie de credor possui particularidades que
requerem uma proteção específica perante a companhia, há alguns mecanismos que
podem servir para resguardar todos os credores sociais perante o oportunismo dos
sócios, bem como a atuação de todos os agentes da sociedade.135 Segundo Gerard
Hertig e Hideki Kanda, são três os mecanismos estratégicos para proteger os credores
sociais: 1) a publicidade obrigatória, 2) regras que regem o capital legal e grupos
empresariais, e 3) normas que regulamentam os deveres fiduciários.136
A seguir, cada um desses mecanismos será detalhadamente analisado,
buscando, assim, demonstrar estratégias possíveis para proteção dos credores, e, quando
possível, serão relacionados a seu grau de vulnerabilidade ou hipossuficiência perante a
companhia.
6.1. Publicidade obrigatória.
As exigências de publicidade dos atos societários de constituição e gestão da
companhia visam legalizar a pessoa jurídica, protegendo os interesses dos credores
sociais de irregularidades que o exercício social possa gerar, principalmente no que se
refere ao patrimônio social.137
A publicidade obrigatória mostra-se necessária por conta do fato de que
credores voluntários contratam considerando uma oportunidade de saída, e, neste caso,
analisando a possibilidade de ter seu crédito devidamente satisfeito na ocorrência de um
termo ou padrão significativo.138 Assim, a lei das sociedades evita estratégias de saída
em favor de estratégias de entrada de investimentos por meio de credores voluntários,
133Idem, p. 391. 134FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 391. 135HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 77. 136Idem, p. 78. 137CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 1º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 9. 138HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 79.
45
requerendo que companhias publicizem certas informações básicas antes da captação de
recursos, como publicação de registro de patentes, valor do capital legal (ou capital
social), registros contábeis.139
Assim, para que haja um interesse em investir na companhia na condição de
credor social, é necessário que a sociedade publicize seus dados, demonstrando, assim,
que é um investimento seguro e capaz de gerar resultados positivos. Desse modo, a
captação de recursos é mais eficiente.
As informações relativas ao patrimônio social das companhias abertas são
organizadas e reguladas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), como forma de
se garantir proteção à poupança privada que irá investir em tais companhias, bem como
garantir informações sobre a situação patrimonial e financeira aos credores.140 Toda
essa conjuntura demonstra uma maior regulação das sociedades de capital aberto. Como
bem descreve Fábio Ulhoa Coelho no seguinte trecho:
A lei determina o controle governamental sobre as sociedades anônimas abertas com vistas a conferir ao mercado acionário uma certa segurança. Note-se bem, o investimento em ações e demais valores mobiliários é, sempre e inevitavelmente, uma opção de risco. Quem tem dinheiro empregado nessa alternativa de investimento – ao contrario, por exemplo, de quem investe em caderneta de poupança, CDB emitido por banco sólido ou imóveis – pode simplesmente perder tudo.141
Assim, considerando os maiores riscos que o investimento em uma companhia
de capital aberto proporciona, a regulação sobre tais sociedades é proporcionalmente
maior. Nos EUA, as sociedades de capital aberto são fortemente reguladas, devendo
divulgar todo material informativo sobre os valores de condição do emitente, além do
dever de arquivar periodicamente demonstrações financeiras.142 Já o Japão e a União
Européia (à exceção da Grã-Bretanha) impõem menos regras para tais companhias.143
Em caso de sociedades de capital fechado, a situação da publicização mostra-
se mais complexa. Primeiramente, porque as empresas de capital fechado não emitem
valores mobiliários negociáveis nas bolsas de valores ou mercado de balcão.144 Nas
empresas de capital fechado, seus valores mobiliários são emitidos por elas mesmas e
não há uma divulgação muito grande sobre sua emissão como ocorre nas sociedades de
139HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 79. 140CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 10. 141COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa. Volume 2. São Paulo: Editora Saraiva, 14a Edição, 2010. p. 71. 142HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 81. 143Idem, ibidem. 144COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa. Volume 2. Op. Cit. p. 70.
46
capital aberto, em que a negociação de seus valores mobiliários “deverá aguardar uma
série de procedimentos contábeis e de avaliação de ativos, ou seja, o levantamento de
informações sobre a empresa, destinados a mensurar o valor do investimento”145.
Desse modo, considerando a diversa condição das empresas de capital fechado,
no ordenamento norte-americano, há uma redução das obrigações dessas sociedades no
que tange à apresentação de contas financeiras, uma vez que elas não se submetem à
publicidade obrigatória. Já na Europa e no Japão, há exigências de varredura das contas
e uma divulgação de suas obrigações de acordo com os padrões mínimos de
contabilidade, de forma a tornar seus dados financeiros disponíveis para a inspeção do
público interessado.146 Assim, nos sistemas europeu e japonês, são requeridas auditorias
profissionais para sociedades economicamente maiores, apesar de possuírem poucos
acionistas (como é o caso das empresas de capital fechado).147
No entendimento de Gerard Hertig e Hideki Kanda, o sistema europeu gera
menos informações para o público do que promete, uma vez que simplifica
requerimentos para pequenas companhias e permite que sociedades de capital fechado
desprezem a publicização de informações a respeito de seus negócios.148 Na visão dos
autores, instituições do próprio mercado de capitais mostram-se mais aptas a produzir a
divulgação de informações para os credores, como ocorre no sistema norte-
americano.149 Segundo os autores, empresas de capital fechado dos Estados Unidos da
America apresentam informações financeiras detalhadas para agências de avaliação de
crédito como meio para angariar recursos financeiros para seus negócios de forma mais
eficiente do que se houvesse uma regulamentação estrita.150
O modelo anglo-saxão (Grã-Bretanha e EUA) visa proteger os acionistas por
meio da exigência de descrição detalhada das finanças da companhia.151 Já a União
Européia (Europa continental) busca resguardar os credores informando-os através da
sinalização confiável dos ativos da companhia e das receitas capazes de cobrir suas
obrigações; nesse sentido, o modelo europeu confere maior segurança sobre a solvência
da sociedade.152
145Idem, p. 72. 146HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 79. 147Idem, ibidem. 148Idem, p. 80. 149Idem, ibidem. 150HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 80. 151Idem, p. 81. 152Idem, ibidem.
47
O padrão anglo-saxão é denominado de “debtor-friendly”, ao menos em
relação a empresas de capital fechado, por ter esse caráter mais voltado para os
acionistas da companhia, fornecendo mais informações sobre a contabilidade da
companhia.153 Já o modelo europeu continental é caracterizado como “creditor-
friendly”, garantindo maior segurança a respeito da solidez e solvência da companhia.154
Apesar dessa divisão em “debtor-friendly” e “creditor-friendly”, os Estados Unidos
oferecem forte proteção aos credores, assim como aos acionistas, por meio da
publicização dos dados financeiros das companhias abertas.155
No sistema brasileiro, entre as informações a serem divulgadas com
transparência e precisão estão as relativas ao capital social. Considerando que o capital
social tutela diversos interesses, entre eles a garantia dos credores sociais, é necessário
que ele corresponda ao patrimônio real da sociedade e seu valor seja divulgado com
transparência.156 Inclusive, para que a sociedade mantenha sua função social (gerando
empregos, pagando tributos, polarizando a economia, etc.), é necessário que preserve
seu capital social.157
Como ensina Alfredo Lamy Filho, o artigo 177, §1º, do Código Penal,
estabelece que condutas que buscam violar o capital social e fraudar balanços ou
prospectos, relatórios e pareceres que comuniquem ao público dados falsos
incompatíveis com a realidade econômica da sociedade são sancionados penalmente.158
Segundo Tullio Ascarelli, “o arquivamento e a publicidade do contrato
encontram a sua justificativa justamente na necessidade de tutelar terceiros, à vista da
constituição de um patrimônio separado”.159
Tratando-se de avaliação dos bens para a formação do capital social, a Lei das
S/A prevê a responsabilidade civil e penal do subscritor e dos avaliadores “pelos danos
causados aos acionistas, subscritores bem como aos terceiros”, como forma de proteger
a integridade do capital social.160
Os vícios de publicidade relativos ao arquivamento e à publicidade dos atos
constitutivos da sociedade são imprescritíveis e só podem ser supridos com a realização
das devidas formalidades; diferentemente dos vícios do contrato, que são prescritíveis e 153Idem, p. 82. 154Idem, ibidem.. 155Idem, ibidem. 156NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. In: Revista Forense. Vol. 363. Ano 98. Set./Out. 2002. p. 170 e 171. 157Idem, p. 171. 158LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Volume 1. São Paulo: Editora Forense, 1a Edição, 2009. p. 198 e 199. 159ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999. p. 519. 160NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. Op. Cit. p. 171.
48
se convalidam com a renovação ou alteração do contrato.161 Antes de cumpridas as
formalidades de publicidade da sociedade, esta não pode responder pelos atos dos
administradores em seu nome, nem mesmo perante terceiros.162 A responsabilidade será
de quem contratou diretamente com estes.163
6.2. Regras que regem o capital legal e os grupos empresariais.
Antes de analisar as regras que controlam o capital social, é de extrema
importância estabelecer algumas noções a respeito de seu conceito que servirão de
parâmetro para todo o desenvolvimento de sua regulamentação.
Segundo Fábio Ulhoa Coelho, o capital social é formado pelas ações e
representado pelo conjunto dos valores mobiliários emitidos pela sociedade.164
O conceito de capital social é bastante complexo, mas, grosso modo, trata-se de
uma referência à contribuição que os sócios dão para a sociedade desenvolver a
atividade econômica dela. Em termos didáticos, a sociedade precisa de recursos para
organizar a empresa e estes devem ser providos, primordialmente, pelos sócios. A
noção de capital social corresponde, em termos gerais, a essa provisão, inicial ou
suplementar.165
Erasmo Valladão explica a analogia de Vivante, que comparou o capital social
a um recipiente, em que o conteúdo que o preenche representa o patrimônio social, que
é a verdadeira garantia dos credores e não o recipiente em si.166
Segundo Alfredo Lamy Filho, o capital social pode ser definido da seguinte
forma: “capital social é a cifra, fixada no estatuto social, do montante das contribuições
prometidas pelos sócios para formação da companhia que a lei submete a regime
cogente, cujo fim é proteger os credores sociais”.167 Assim, na visão do autor, o capital
social tem como função ser garantia dos credores sociais.168 Para Alfredo Lamy Filho, o
capital social “representa um ‘coeficiente de liquidez’, ou uma ‘medida’ no patrimônio
social destinada a garantir prioritariamente os credores”.169
161ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999. p. 514 e 515. 162Idem, p. 515. 163Idem, p. 517. 164COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa.Volume 2. Op. Cit. p. 68. 165COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa.Volume 2. Op. Cit. p. 68 e 69. 166FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. VON ADAMEK, Marcelo Vieira. A proteção aos credores e aos acionistas no aumento de capital. In: Revista do Advogado. Ano XXVIII, nº 96, Março de 2008. p. 34. 167LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 193. 168Idem, ibidem. 169Idem, p. 199.
49
Idéia também defendida por Hertig e Kanda é a importância do capital social
encontrar-se como regulador das finanças da companhia.170 Por meio do capital social, é
possível aferir a vazão/escoamento máximo de capital admissível para que a companhia
atue fora do déficit, bem como o mínimo inicial de capital necessário para o
investimento na empresa (atividade empresarial), assim como o nível de capital que
deve ser conservado durante a vida da companhia para garantir a satisfação de suas
obrigações.171
Segundo Alfredo Lamy Filho, o capital social garante que, nas sociedades de
responsabilidade limitada, o sócio ou acionista não retire o seu investimento antes de
quitadas as dívidas com os credores sociais.172
Para que o regime de bens do capital social seja eficaz, é importante que o
capital social estabelecido no estatuto exista concretamente no patrimônio da sociedade.
Como o capital social pode ser formado por dinheiro em espécie e por bens, estes não
podem ser fictícios nem superavaliados, pois isto induziria em erro os terceiros que
contratam com a sociedade, uma vez que gera distorções na estimativa de riscos com
base no valor de capital social apresentado em relação ao verdadeiro capital social.173
Essas distorções geradas na aferição do capital social composto também por
bens levaram a doutrina estrangeira a exigir que os bens do capital social, para
cumprirem sua função, devem ter valores que possam ser realizados pelos credores em
casos de execução de seus créditos.174
Essa exigência conferia maior rigor na aceitação de bens para a composição do
capital social, bem como para a avaliação desses bens.175 O rigor quanto aos bens vem
sendo questionado a partir do conceito de capital social. Segundo Garrido de Palma,
Portale e Olivieri, “o capital passaria, assim, a ser entendido como ‘um piso de
seriedade’, uma ‘caução qualificada’ no funcionamento da sociedade, de forma a criar
uma ‘zona de segurança’ entre a crise eventual e a insolvência da empresa”.176
A avaliação dos bens que concorrem para a composição do capital social é de
competência privativa da assembleia geral da companhia.177 Para evitar abusos, a
avaliação de tais bens é feita por peritos selecionados pelos subscritores e acionistas,
170HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 83. 171Idem, ibidem. 172LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 194. 173LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 202. 174Idem, ibidem. 175Idem, ibidem. 176Idem, p. 203. 177Idem, p. 206.
50
assim, estabelece-se responsabilidade civil e penal tanto do subscritor quanto do
perito.178 A Lei das Sociedades Anônimas determina que o regramento da subscrição
visa tanto proteger os acionistas quanto garantir a realidade do capital social.179 Assim,
a ausência de publicidade nesses atos configura crime de declaração falsa em prospecto
da sociedade (artigo 177 do Código Penal).180
O subscritor ou o acionista que contribuir para o capital social com bens será
responsabilizado da mesma forma que um vendedor no que tange à evicção de bens
incorpóreos.181 Assim, o artigo 10 da Lei das Sociedades Anônimas busca garantir o
interesse dos credores sociais por meio da realidade do capital social.182 Os credores
sociais, singularmente, não poderão requerer dos acionistas as dívidas de subscrição do
capital social, já o administrador judicial poderá em caso de falência.183
No Brasil, a Lei das Sociedades Anônimas estatui o capital social como
garantia aos credores, considerando que atende melhor ao interesse destes, uma vez que
o capital social é mais eficaz para esse fim que apenas a responsabilização dos
administradores.184
Segundo Alfredo Lamy Filho, a Lei das Sociedades Anônimas
“mantém, na plenitude, a função do capital social, de garantir os credores da companhia, conciliando a responsabilidade limitada dos acionistas (indispensável para que se possam associar, na mesma empresa, centenas ou milhares de sócios) com a proteção ao crédito, necessária ao funcionamento do sistema econômico.”185
Assim, na visão do autor, a posição de Modesto Carvalhosa de que o capital
social, após ser declarado, passa a ter valor apenas nominal e, portanto, não serve como
garantia aos credores, não procede.186
No sistema norte-americano, o capital social não é visto como instrumento de
garantia aos credores sociais, por considerarem o capital social um instituto de conceito
complexo e confuso.187 Segundo o Model Business Corporation Act § 6.40, a garantia
dos credores deve ser fixada na distribuição de benefícios ou dividendos aos acionistas,
uma vez que só podem ser distribuídos tais benefícios se o teste de solvência for
178Idem, p. 206. 179Idem, p. 207. 180Idem, ibidem. 181Idem, p. 209. 182Idem, ibidem. 183CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 7. 184LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 212. 185Idem, ibidem. 186Idem, p. 213. 187Idem, p. 209.
51
aprovado. Isto significa que a companhia deve ser capaz de pagar seus débitos nos
prazos de vencimento, ou seja, ativo deve ser suficiente para arcar com o passivo.
Mesmo este modelo norte-americano não é adotado por todos os estados americanos.188
Na visão de Rubens Requião, apoiada pelos ensinamentos de Bayless Maning,
o capital social é imprestável como garantia de credores, e estes devem buscar outros
meios de garantia, as razões para tanto seriam:
a) a cifra que traduz, num balança, o lucro, é fruto de um sem-número de prévias decisões contábeis, que, se houver interesse, serão facilmente fraudadas; b) os credores não são ouvidos sobre as decisões de alterar a cifra do capital social, e esta é sempre arbitrária e irrelevante; c) não há nenhuma lógica em tomar-se um numero qualquer (o capital) e fazê-lo de medida para distribuição de dividendos e bonificações a acionistas; d) o sistema contábil não leva em conta a dimensão tempo, e não distingue entre um crédito a realizar-se em 20 anos e o realizável na próxima semana; e) uma contabilidade que pretendesse resolver esses problemas cairia em debates conceituais à pior maneira dos teólogos medievais (...).189
Segundo Eilís Ferran, o capital social ou capital legal foi orientado para a
proteção dos credores sociais contra riscos envolvidos pela responsabilidade limitada
dos membros da sociedade, noção esta que orientou a elaboração de políticas
regulatórias na Europa civil e common Law até recentemente.190
Eilís Ferran afirma que regras sobre o capital social proporcionam transações
sem custos ou até custos reduzidos.191 Considerando que credores sofisticados podem se
proteger contratualmente e a Segunda Diretiva de Direito Societário da União Européia
reproduz esse mecanismo de proteção contratual, não há razão para que se vejam
benefícios nas transações que obstruem custos.192 Assim, na visão de Eilís Ferran, o
debate deve voltar-se para os credores fracos e os involuntários para os quais a proteção
meramente contratual não é suficiente por conta de seu reduzido poder de barganha.193
As medidas da Segunda Diretiva de Direito Societário tomadas para regular a
distribuição e redução de capital mostram-se, em um primeiro momento, como
adequadas para garantir os credores coletivamente, mas algumas características das
normas mostram-se ineficazes para cumprir com tal propósito.194 Primeiramente, regras
de capital legal que restringem a distribuição de dividendos para acionistas e restringem
188Idem, p. 210. 189REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 2º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 28a Edição, 2011. p. 86. 190FERRAN, Eilís. Book Review. Legal Capital in Europe by Marcus Lutter. Berlin: De Gruyter Recht, 2006. In: Journal of Corporate Law Studies. October, 2007. p. 357. 191FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 192Idem, ibidem. 193Idem, ibidem. 194Idem, ibidem.
52
a redução do capital social não são capazes de proteger os credores sociais, uma vez
que informações sobre o balanço patrimonial da sociedade que sustentam tais credores
possuem pouca relação com a verdadeira situação financeira da companhia.195 Tais
normas não protegem os credores contra perdas que possam ocorrer de forma ordinária
durante o curso dos negócios da sociedade.196
Então, Eilís Ferran mostra que, recentemente, a doutrina inglesa vem
crescendo no sentido contrário a essa visão sobre o capital social como garantia por
excelência dos credores sociais, e a Segunda Diretiva de Direito Empresarial vem
perdendo brilho.197
Porém, o próprio Rubens Requião admite que, na Lei das S/A, venceu a tese da
intangibilidade do capital social, inclusive considerando-o como um direito dos credores
sociais.198
6.2.1. Limitação à distribuição e redução do capital social.
Nos diversos ordenamentos, as leis que regulam as sociedades anônimas
limitam a distribuição de capital na forma de dividendos e a recompra de ações (share
repurchases), como forma de evitar que os acionistas diluam o conjunto de ativos da
companhia que deveriam se vincular aos débitos dessa sociedade.199 Um exemplo de
regulação nesse sentido é uma regra que proíba o pagamento de dividendos que possam
diminuir o capital legal da companhia.200
Como garantia aos credores sociais e para cumprir suas funções, o capital
social segue os seguintes princípios: unicidade (não pode ser dividido entre as filiais e
sucursais, é uma garantia de unidade para os credores), fixidez (possui valor fixo e, por
isso, não pode ser reduzido, protegendo assim os credores contra deliberações dos
acionistas no sentido de reduzi-lo), irrevogabilidade (não pode ser desconstituído o
capital social até que todos os credores sejam devidamente pagos, em caso de
liquidação da sociedade201), realidade (correspondência entre o capital subscrito, o valor
195FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 196Idem, ibidem. 197FERRAN, Eilís. Book Review. Legal Capital in Europe by Marcus Lutter. Op. Cit. p. 357. 198REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Op. Cit. p. 86. 199HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 200Idem, ibidem. 201Ver artigos 206 a 219 da Lei das Sociedades Anônimas.
53
real das prestações a que o sócio se obrigou e a cifra), intangibilidade (como garantia
dos credores, o capital deve permanecer intangível até que estes sejam pagos).202
Na visão de Erasmo Valladão França, uma garantia legal é que o capital social
será intangível, o que gera a necessidade do capital integralizado ser utilizado na
atividade da sociedade.203 Estabelece a lei, inclusive, que os dividendos somente
poderão ser pagos em situação de lucro.204
Apesar de todas essas garantias, Erasmo Valladão França e Marcelo Vieira
Von Adamek fazem a seguinte observação:
Evidentemente, pode ocorrer que o patrimônio social, em função de sucessivos prejuízos da companhia, tenha se tornado negativo, nada restando para os credores. Mas isso é da regra do jogo. O que a lei não permite é que, sem que haja lucro (sem que os grãos excedam o “recipiente”), parcelas do patrimônio social sejam distribuídas aos acionistas antes da liquidação da sociedade, sem o prévio pagamento dos credores sociais.205
No que se refere a esta tese de que os credores sociais devem participar da
socialização do risco do insucesso da atividade empresarial, verifica-se que este
entendimento não pode ser aplicado no que se refere aos trabalhadores da sociedade
pelo simples fato de que o artigo 2º, caput, da CLT não admite tal socialização por
conta inclusive do princípio da inalterabilidade contratual lesiva.
(...) este ramo jurídico especializado coloca sob ônus do empregador os riscos do empreendimento (art. 2º, caput, CLT), independentemente do insucesso que possa se abater sobre este. As obrigações trabalhistas empresariais preservam-se intocadas ainda que a atividade econômica tenha sofrido revezes efetivos em virtude de fatos externos à atuação do empregador. Fatores relevantes como a crise econômica geral ou a crise específica de certo segmento, mudanças drásticas na política industrial do Estado ou em sua política cambial – fatores que, obviamente, afetam a atividade da empresa – não são acolhidos como excludentes ou atenuantes da responsabilidade trabalhista do empregador.206
Como ensina Mauricio Godinho Delgado, tal princípio tem previsão
constitucional pela redação do artigo 7º, inciso VI, CF/88, que proíbe modificações
contratuais lesivas ao empregado no curso da relação de emprego, salvo por meio de
negociação coletiva.207
202LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 197 e 198. 203FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. VON ADAMEK, Marcelo Vieira. A proteção aos credores e aos acionistas no aumento de capital. In: Revista do Advogado. Ano XXVIII, nº 96, Março de 2008. p. 35. 204Idem, p. 36. 205Idem, ibidem. 206DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 9a Edição, 2010. p. 189. 207Idem, p. 383.
54
Retomando o tema da redução do capital social, esta redução será possível,
segundo Rubens Requião, “se houver perda, até o montante dos prejuízos acumulados,
ou se for ele considerado excessivo”, por meio de deliberação da assembleia geral com
prévio parecer do Conselho Fiscal.208
Para o capital social ser reduzido é preciso a aprovação pela assembleia geral,
conforme determina o artigo 173 da Lei das S/A. Por ser decisão de caráter privativo da
assembleia geral, não pode a CVM, nem a Junta Comercial, nem mesmo o Judiciário
questionar o mérito da redução do capital social.209 Mas deve-se lembrar que, na
decisão por reduzir o capital social, é preciso que os direitos dos credores e dos
acionistas minoritários sejam assegurados de forma adequada.210
Segundo Nelson Eizirik, “no caso da redução nominal do capital, procedida
quando há prejuízos acumulados, como medida de saneamento financeiro, os credores
não são afetados, não lhes cabendo manifestar-se sobre a medida”211.
Caso o capital social seja reduzido por determinação legal, os credores não
podem se opor a tal redução e ficam em condição mais vulnerável.212
Outra exceção à necessidade de concordância dos credores sociais no que
tange à redução do capital da companhia, segundo Rubens Requião, dar-se-á
“nos casos em que o acionista tiver direito de se retirar da sociedade como dissidente ou quando for remisso, e quando as suas ações postas à venda, nesses casos, não encontrarem mercado, bem como quando ela decorrer de prejuízos acumulados”.213
Quando se trata do direito de reembolso do acionista que se retira é preciso
considerar também os interesses dos credores, para que estes não sejam prejudicados.214
Essa preocupação se dá principalmente se o acionista que se retira não for substituído
por outro, uma vez que gerará uma redução do capital social.215 É o que busca garantir o
artigo 107, § § 4º e 5º do Decreto Lei 2.627/76, principalmente quando a sociedade está
208REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Op. Cit. p. 98. 209EIZIRIK, Nelson. Incorporação de reserva de capital ao capital social seguida da redução do capital – legitimidade da operação. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Ano XXXVII (Nova Série), Vol. 37, nº 115, jul./setembro -1999. São Paulo: Malheiros Editores. p. 258. 210Idem, p. 259. 211Idem, p. 260. 212CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 106. 213REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Op. Cit. p. 99. 214ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999. p.579. 215Idem, ibidem.
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em situação de falência, ao garantir “ação revocatória216 para a restituição do reembolso
no interesse dos credores sociais anteriores à publicação da redução do capital”217.
Em caso de dissolução parcial, deve-se verificar se os remanescentes
viabilizarão um mínimo de atividade da companhia, mesmo que em proporções
reduzidas ao que ocorria em plena atividade.218 A dissolução total pode se dar por
motivação fraudulenta, por meio da dissolução, liquidação e extinção em ato único219.
Nestes casos de dissolução total, buscam-se evitar a decretação de falência, a
reorganização e a responsabilidade de seus sócios e administradores.220 A dissolução é
um mecanismo de proteção do interesse dos sócios.221 Já os credores sociais serão os
principais prejudicados, especialmente se estiverem em litígio judicial com a
companhia, uma vez que devem aguardar o trânsito em julgado da sentença para
obterem sua satisfação por meio da execução.222
Porém, quando ocorre redução real do capital social, atingindo assim o
patrimônio social, o direito dos credores deve ser tutelado uma vez que os acionistas
recebem de volta parte dos valores das ações pagas.223Como desdobramento da
intangibilidade do capital social na forma de garantia aos credores, o artigo 174 da Lei
das Sociedades Anônimas exige que os credores concordem com a redução do capital
social para que este possa sofrer diminuição, como condição subordinativa.224
Nesses casos, os credores sociais podem se opor à redução do capital social,
conforme prevê o artigo 174 da Lei das S/A. Os credores passam a ter poder de
intervenção sobre as deliberações da companhia, opondo-se à redução do capital social
em 60 dias a contar da publicação da ata da Assembleia tratando do assunto, contanto
que seus créditos sejam anteriores a esta publicação e a redução seja facultativa ou
voluntária.225 Em hipótese de manifestação dos credores sociais em sentido contrário à
redução, a ata da assembleia só poderá ser arquivada na Junta Comercial após
comprovação de pagamento dos credores sociais ou o depósito judicial dos valores
216Também denominada de ação pauliana. 217ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Op. Cit. p. 580. 218SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 119. 219Idem, ibidem.. 220Idem, ibidem. 221Idem, ibidem. 222Idem, p. 119 e 120. 223EIZIRIK, Nelson. Incorporação de reserva de capital ao capital social seguida da redução do capital – legitimidade da operação. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Ano XXXVII (Nova Série), Vol. 37, nº 115, jul./setembro -1999. São Paulo: Malheiros Editores. p. 260. 224LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 198. 225NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. Op. Cit. p. 175.
56
devidos.226 Essas exigências legais visam, em última instância, garantir a proteção dos
credores sociais em casos de redução real do capital.
6.2.2. Capital social mínimo
Outra estratégia relativa ao capital social usada como mecanismo de proteção
aos credores sociais é a exigência de um mínimo de capital para criação de uma
companhia (abertura de uma sociedade), correspondente a um valor mínimo que os
sócios deveriam investir para se caracterizar uma companhia.227
Há alguns exemplos quanto a parâmetros de capital mínimo para a
qualificação (caracterização, configuração) de uma sociedade. A União Européia
estabelece que deve haver um investimento inicial de ao menos 25.000 euros, mas cada
país membro pode alterar esse valor para se adequar a sua realidade.228 No Japão, o
capital mínimo varia entre U$ 30.000 a U$ 100.000, a depender do tipo de
companhia.229 Em contrapartida, os EUA não estabelecem qualquer parâmetro mínimo
de capital social para a abertura de uma companhia.230
No sistema europeu, a Segunda Diretiva do Conselho da Comunidade Européia
mantém a regulação do capital social. Na prática, muitas sociedades fixam um capital
mínimo, incompatível com o objeto social da companhia, e os sócios passam a fornecer
recursos para esta na forma de empréstimos, pois, assim, a companhia distribuirá menos
dividendos e, nos casos de falência, tais sócios concorrem com os outros credores
sociais nas mesmas condições.231 Se for verificada fraude no estabelecimento desse
capital mínimo em relação ao objeto social, pode haver correção judicial.232
No ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 5º da Lei das Sociedades
Anônimas (Lei 6.404/76) estabelece que o valor do capital social será determinado pelo
estatuto da companhia e somente poderá ser alterado com a observância desta Lei e do
estatuto social. Assim, nosso ordenamento não estabelece um capital social mínimo
para a qualificação da companhia.
226EIZIRIK, Nelson. Incorporação de reserva de capital ao capital social seguida da redução do capital – legitimidade da operação. Op. Cit. p. 260. 227HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 228HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 229HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. In: The Anatomy of Corporate Law. A comparative and functional approach. Oxford, UK: Oxford University Press, 2004, p. 84. 230Idem, ibidem. 231LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 211. 232Idem, ibidem.
57
Como bem explica Alfredo Lamy Filho, essa orientação se deu por considerar
que atuais grandes companhias só obtiveram crescimento porque quando pequenas
conseguiram através da forma anônima captar recursos para sua expansão.233 A única
exigência do ordenamento jurídico brasileiro é que o estatuto da sociedade estabeleça o
valor de seu capital social em moeda corrente nacional, formado por quantias em
dinheiro ou bens a serem avaliados e sendo de responsabilidade dos subscritores, como
forma de garantir a realidade do capital inclusive para os credores.234
Na visão de Modesto Carvalhosa, a não limitação de um capital social mínimo
para a constituição da sociedade anônima acaba por facilitar o surgimento de
companhias de fachada.235 As companhias abertas possuem seu capital social mínimo
determinado pela Comissão de Valores Mobiliários como requisito para que coloquem
seus valores mobiliários no mercado.236
Apesar desses parâmetros, permanece ainda incerto quanto de proteção essa
regra pode garantir aos credores, uma vez que o capital inicial de qualquer companhia já
terá se esgotado quando esta se encontrar em processo de falência.237
6.2.3. Capital de manutenção
Outro aspecto referente ao capital social refere-se às leis que governam a
redução do capital em companhias já estabelecidas, por meio do controle de um “capital
de manutenção”, como denominado na Europa, ou “capital imutável”, como no
Japão.238 Na Alemanha e na Suíça, há uma exigência para as companhias pequenas que
realizem reuniões com os acionistas quando o capital social estiver erodindo, com o
objetivo de avisar aos credores sobre a crise financeira; bem como há uma
determinação de que seja requerido imediatamente o arquivamento de uma petição de
insolvência nessas situações de desfazimento do capital social.239
Os benefícios que se vislumbram nesse modelo é o fato de a reunião prévia
favorecer os credores na medida em que possibilita um aporte maior de ativos a serem
divididos entre credores e acionistas.240 De semelhante modo, o arquivamento do pedido
233Idem, p. 198. 234BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. São Paulo: Editora Atlas S.A., 13a Edição, 2001. p. 101. 235CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 102. 236CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 102 e 103. 237HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 238Idem, p. 85. 239Idem, ibidem. 240Idem, ibidem.
58
de insolvência beneficiaria os credores na medida em que canalizaria o capital social
para satisfação de seus interesses.241
Entretanto, Gerard Hertig e Hideki Kanda demonstram que, na prática, quando
uma companhia está em crise financeira, o capital social já vem se exaurindo há tempo
e o processo de insolvência acompanha esse exaurimento, não restando tempo para
avisos ou encontros entre acionistas.242
O ponto positivo da manutenção de um capital social durante a vida da
companhia consiste na facilitação da abertura de um processo por credores contra a
sociedade por não ter cumprido seu dever, marcando os pontos em que os acionistas
controladores deverão liquidar ou reestruturar as sociedades em dificuldade
financeira.243
A manutenção do capital social garante a estabilidade da companhia bem como
a possibilidade de cumprimento de suas obrigações.244 O capital social representa,
assim, a medida do equilíbrio econômico-financeiro da companhia para a concretização
de seus objetivos empresariais, o equilíbrio entre os recursos próprios e os de terceiros
devidos pela companhia aos credores sociais.245 Essa medida permite que se conheça a
elasticidade operacional da companhia, possibilitando um juízo de conveniência
econômica em se contratar com a sociedade.246
A Lei das S/A estabelece algumas normas para a manutenção do capital social
durante a vida da sociedade, como a constituição da reserva legal, os dispositivos sobre
a redução do capital social, a exigência da veracidade e da publicidade dos balanços.247
Toda essa regulação sobre o capital social mostra-se necessária, tendo em vista que seu
montante indica a porção de responsabilidade de cada acionista, bem como serve de
parâmetro de cálculo das perdas e lucros, assim como direitos e deveres dos
acionistas.248
Pela análise feita, verifica-se que a solução mais efetiva para a proteção do
capital social como meio garantidor dos credores sociais é a combinação entre as regras
de capital social mínimo para a constituição da sociedade e regras de manutenção deste
capital durante a vida social. Assim, garante-se que a função do capital social seja
241Idem, ibidem. 242Idem, ibidem. 243HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 85. 244CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 107. 245Idem, ibidem. 246Idem, ibidem. 247BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. São Paulo: Editora Atlas S.A., 13a Edição, 2001. p. 97. 248Idem, ibidem.
59
cumprida de forma efetiva e adequada. Uma vez que exigir apenas um capital mínimo
não é garantia de sua manutenção durante a vida da sociedade, e regular um percentual
do capital inicial que deva ser mantido não garante, por si só, que ele será suficiente
para a satisfação dos credores em uma situação futura.
6.2.4. O problema da subcapitalização
Uma questão importante na análise sobre o capital social como garantia dos
credores sociais é a subcapitalização. A subcapitalização é o fenômeno que se constata
quando a sociedade não possui capital suficiente para a realização de suas atividades.
Essa insuficiência de capital pode ser “invocada para excluir a limitação da
responsabilidade dos acionistas pelas dívidas da sociedade”, minando inclusive o
princípio da separação patrimonial em relação ao controlador.249
A subcapitalização é verificada quando o capital social for proporcionalmente
inferior aos valores de dívidas da companhia.250 Assim, a companhia estará
subcapitalizada quando as dívidas para com os sócios forem em nível maior que o
volume de capital social. O fenômeno da subcapitalização pode ocorrer no momento da
constituição da sociedade ou posteriormente. Para cada momento há consequências
diversas como bem explica André Martins de Andrade e Vanessa Soares:
Na originária, todos os sócios serão responsáveis perante terceiros, independentemente da proporção de capital subscrita, já que tinham na oportunidade condições de velar pela adequada capitalização. Contudo, na superveniente, a responsabilidade alcança apenas os sócios que tinham a possibilidade jurídica ou fática de dissolver a sociedade.251
No caso analisado pelos autores, percebe-se que se está tratando de
sociedades limitadas, nas quais os sócios respondem limitadamente pelo valor total do
capital social subscrito, mas não integralizado de forma solidária, porém, essa
responsabilidade nesta situação mostra-se ainda mais restrita se o momento da
subcapitalização for posterior à constituição da sociedade.
249SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. In: Revista da EMERJ. Vol. 4, nº 14, 2001. p. 74. 250ANDRADE, André Martins de. SOARES, Vanessa Fernanda. O regime jurídico da subcapitalização. In: Revista Fórum de Direito Tributário RFDT. Vol. 8, nº 46, jul./ago. 2010. Belo Horizonte: Editora Fórum. p. 31. 251Idem, ibidem.
60
Questão importante colocada por Fábio Ulhoa Coelho252 refere-se à
hipótese em que, embora a companhia precise de recursos para não se subcapitalizar, o
sócio, em vez de aumentar o capital social, faz um empréstimo à companhia, agravando
sua situação. Nesse caso, poder-se-ia indagar sobre a obrigação do sócio de capitalizar a
companhia, principalmente se a sociedade entrar em processo de falência, podendo-se
inclusive garantir a preferência dos créditos dos demais credores em detrimento dos
créditos dos acionistas.253
O uso de empréstimos por parte dos sócios como mecanismo de financiamento
da sociedade é motivado por uma menor tributação quanto aos juros em relação à carga
tributária sobre os dividendos.254 Alguns doutrinadores afirmam que por conta desse
mecanismo ser desfavorável à arrecadação tributária foram criados limites legais à
subcapitalização, como a Lei 9.430/96.255
O grande problema da subcapitalização gerada pelo investimento por meio de
empréstimo é que favorece o mecanismo de implantar um capital ínfimo, garantindo o
aporte de recursos que a sociedade necessita por meio de empréstimos fornecidos pelos
sócios. Se se considerar que o capital social é uma garantia para os credores sociais, a
subcapitalização, nesses moldes, gera uma redução dessa garantia que é agravada
inclusive pelo fato de que os sócios que financiam a sociedade passam também a
concorrer com esses credores, uma vez que ao emprestarem capital também se tornam
credores sociais.
No sistema brasileiro, o ordenamento não admite a responsabilização dos
sócios pela subcapitalização da companhia, inclusive não considera abuso os contratos
de mútuo entre sócio e sociedade, permitindo que o sócio forneça capital à companhia
por meio diverso da integralização de capital.256
Assim, segundo Fábio Ulhoa Coelho, “o acionista não tem, em outros termos,
dever de capitalizar a sociedade anônima, nem mesmo na hipótese de o patrimônio
social ser insuficiente ao atendimento de indenizações por atos ilícitos”257. Porém, os
créditos dos sócios serão subquirografários quando a companhia estiver em processo de
falência.258
252Mesma posição é assinalada por Joaquim Santos. Ver: SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. Op. Cit. p. 76. 253COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa.Op. Cit. p. 198. 254ANDRADE, André Martins de. SOARES, Vanessa Fernanda. O regime jurídico da subcapitalização.Op. Cit. p. 34. 255Idem, ibidem. 256COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa.Op. Cit. p. 199 e 200. 257Idem, p. 200. 258Idem, ibidem.
61
6.2.5. Grupos empresariais
Outra questão importante relativa à proteção dos credores sociais refere-se à
sua relação com grupos empresariais ou grupos de sociedades259.
Os grupos de companhias buscam formas jurídicas para se adequarem à
realidade econômica e obterem maior crescimento econômico. Essa busca acaba se
refletindo também no âmbito tributário ora na figura da elisão fiscal (que busca utilizar
uma forma jurídica com menor carga tributária, mas de forma lícita) ora na face da
evasão fiscal.260
O grupo de sociedades formal ou contratual estabelece-se por meio de um
contrato de denominação que empodera uma companhia-mãe a instruir suas
subsidiárias a seguir os interesses do grupo em detrimento de seus interesses
particulares.261 Em compensação, a companhia-mãe deve indenizar as subsidiárias por
qualquer perda resultante de atuação no interesse do grupo.262
Entretanto, se tal mecanismo de compensação falha, no modelo alemão, os
credores sociais poderão acionar subsidiariamente a companhia-mãe; se esta alternativa
não tiver sucesso, o credor pode ainda processar os administradores da companhia-mãe
pelos danos gerados, mesmo em grupos de sociedades de fato (grupos não formais).263
No sistema alemão, até mesmo empresas de capital fechado que atuem por meio de
grupos incluem-se nesse sistema de responsabilidade por danos.264
De acordo com o modelo francês de grupo de sociedades, o controlador do
grupo não precisa pagar compensação para instruir um membro (companhia
subsidiária) quando este agir no interesse do grupo, ao invés de no seu próprio interesse,
desde que o grupo esteja numa situação estável, prosseguindo uma política de negócios
coerente e distribuindo equitativamente os gastos e receitas do grupo entre seus
membros.265
259“Grupo de Sociedade. Indica, na técnica societária, a convenção, estabelecida entre a sociedade controladora, pela qual se obrigam a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns (Lei nº 6.404/76, art. 265)”. In: DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 28a Edição, 2009. p. 668. 260MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 320. 261HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 86. 262Idem, ibidem. 263Idem, ibidem. 264Idem, ibidem. 265Idem, ibidem.
62
Como, na prática, as exigências do modelo germânico (compensação pela
companhia-mãe às companhias subsidiárias que geraram danos ao agir no interesse do
grupo) só são averiguadas quando o grupo está em estado de insolvência, momento
tardio para que a companhia-mãe possa tomar qualquer medida reparadora dos danos, o
modelo francês vem ganhando maior credibilidade e liderando um padrão europeu.266
As exigências de mínimo de capital social, capital de manutenção e articulação
de grupo de sociedades não são reguladas nos EUA.267 Em contrapartida, na Europa,
tais regras ainda encontram espaço.268
No sistema brasileiro, segundo Waldirio Bulgarelli, aplicam-se à sociedade
controladora as normas cabíveis ao acionista controlador, que estão presentes nos
artigos 116 e 117 da Lei das S/A por expressa referência ao artigo 246 da mesma lei.269
Já em relação aos administradores das sociedades coligadas, controladas ou
controladoras, cabe a estes agir no interesse da empresa e não em favor de interesses de
grupos internos.270 Assim, busca-se evitar jogos de empréstimos e cessões que esvaziem
uma das sociedades do grupo prejudicando seus credores, uma vez que os credores não
podem acionar os membros do grupo de forma solidária, pois, teoricamente, cada
sociedade mantém sua autonomia patrimonial e como companhia.271
Nesses grupos, o controle sobre o controlador é mais intenso, visando o
cumprimento da função social do comando empresarial, para evitar o abuso de poder e
o desvio de finalidade. A esse respeito, Frederico Simionato afirma que:
Com efeito, o art. 117 da Lei 6.404/76 determina a responsabilidade do controlador quando promover a liquidação, fusão ou cisão da companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o objetivo de auferir, para si ou para outrem, vantagem em prejuízo dos acionistas, dos trabalhadores e dos investidores. Essa hipótese pode ocorrer nos grupos de sociedade, quando das reorganizações societárias.272
Assim, por meio da responsabilização do controlador em holdings verifica-se
um mecanismo de proteção aos credores sociais, quando estes sofrem danos oriundos da
atuação do controlador no sentido de buscar interesse próprio ou alheio que venha a
prejudicar tanto acionistas como credores sociais. Como ensina Frederico Simionato, o
fundamento dos grupos de sociedade está na noção de controle. 266Idem, p. 87. 267Idem, ibidem. 268Idem, ibidem. 269BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. São Paulo: Editora Atlas S.A., 13a Edição, 2001. p. 301. 270Idem, p. 302. 271Idem, ibidem. 272SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 55.
63
Estabelece-se na holding o esquema de divisão de poderes que deve ser seguido nas sociedades filiadas. Nesse sistema os administradores subordinados têm conhecimento do poderio dos comandantes e seguem as ordens que lhe são transmitidas com presteza, mantendo-se os vínculos de subordinação e de poder.273
Em holdings, caso o controlador não forneça o devido capital à sociedade
controlada, gerando sua subcapitalização, pode haver desconsideração da personalidade
jurídica para se atingir o controlador e responsabilizá-lo por seus atos que causaram
danos a credores sociais.274
No caso de grupos de subordinação (nos quais há uma sociedade que comanda
os outros membros, subordinando estes às suas decisões), a controladora poderá ser
responsável por obrigações da controlada em razão de atos ilícitos próprios e até
desconsideração da personalidade jurídica.275
O controle do controlador mostra-se importante em grupos de sociedade de
fato e de direito. Primeiramente, é importante colocar que a própria Lei 6.404/76
estabelece que nos grupos de sociedades cada companhia deve preservar sua
personalidade jurídica, bem como seu patrimônio (artigo 266).276 Assim, segundo
Frederico Simionato, a lei estaria buscando evitar que a controladora seja
responsabilizada pelas dívidas da controlada, negligenciando os mecanismos de
dominação dentro dos grupos.277
Entretanto, os administradores das companhias subordinadas devem seguir as
orientações gerais determinadas pelos administradores do grupo278, o que leva ao
questionamento do dever de se responsabilizar a companhia-mãe ou os dirigentes do
grupo pelos danos ou prejuízos que as subsidiárias gerarem para seus credores no estrito
cumprimento das orientações do grupo. Como solução a este questionamento, poder-se-
ia afirmar que os administradores das sociedades filiadas só devem observar os
preceitos estabelecidos pela companhia controladora que sejam compatíveis com a Lei e
com seu estatuto, como afirma Frederico Simionato279. Nesse sentido, o autor faz as
seguintes considerações:
273SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Op. Cit. p. 55. 274SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. In: Revista da EMERJ. Vol. 4, nº 14, 2001. p. 77. 275TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2a Edição atualizada. p. 469 e 470. 276SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Op. Cit. p. 56. 277Idem, ibidem. 278SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Op. Cit.p. 56. 279Idem, ibidem.
64
O art. 245 estabelece que os administradores não podem, em prejuízo da companhia, favorecer sociedade coligada, controladora ou controlada, cumprindo-lhes zelar para que as operações entre as sociedades observem condições comutativas (igualdade), ou com pagamento compensatório adequado, respondendo por atos praticados em contrário.280
Considerando que o grupo de sociedades é uma sociedade de sociedades, no
entendimento de Frederico Simionato, a responsabilidade dos controladores deveria ser
alterada, alterando-se a noção de personalidade jurídica para esta ser entendida como
técnica empresarial, ao invés de ser simplesmente uma limitação patrimonial.281 Esta
solução mostra-se adequada, uma vez que é um descompasso ter um comando único
para o grupo e responsabilidades não compartilhadas.282
Em grupos de companhias, a manutenção da responsabilidade limitada de
membro do grupo que desconsidera a tutela aos direitos dos minoritários e credores
sociais contribui para a concentração econômica e torna ineficaz a proteção aos
credores e minoritários em grupos de fato.283 O favorecimento à concentração
econômica acaba tornando o mercado e os consumidores mais vulneráveis à vontade
dos grupos.
Na visão de Eduardo Secchi Munhoz, essa abertura à concentração oferecida
pelo direito societário exige que o direito concorrencial seja mais rigoroso no que toca à
proteção do mercado.284 O autor afirma que a questão não é inibir a formação de grupos
de companhias, mas garantir que sua constituição não impeça a tutela de outros
interesses afetados pelo desenvolvimento empresarial, uma vez que a desconsideração
dos interesses dos minoritários e dos credores acaba por prejudicar o próprio
crescimento da empresa, pois gera custos que não compensam os benefícios
produzidos.285 Assim, o direito concorrencial permite que se efetive a livre concorrência
garantida na Constituição.286
No âmbito justrabalhista, o grupo econômico é definido como “figura
resultante da vinculação justrabalhista que se forma entre dois ou mais entes
favorecidos direta ou indiretamente pelo mesmo contrato de trabalho, em decorrência de
existir entre esses entes laços de direção ou coordenação em face de atividades
280Idem, ibidem. 281Idem, p. 57. 282Idem, ibidem. 283MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 316 e 317. 284MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades.Op. Cit. p. 317. 285Idem, ibidem. 286Idem, p. 318.
65
industriais, comerciais, financeiras, agroindustriais ou de qualquer outra natureza
econômica”.287 Também encontra seu conceito lançado na Lei do Trabalho Rural (Lei
5.889/73, art. 3º, § 2º) e na CLT (art. 2º, § 2º).288
A tipificação de grupo econômico surgiu com o objetivo de “ampliar as
possibilidades de garantia do crédito trabalhista, impondo responsabilidade plena por
tais créditos às distintas empresas componentes do mesmo grupo econômico”289. Assim,
os membros do grupo possuem responsabilidade solidária por força do artigo 2º, § 2º da
CLT, artigo 3º, § 2º da Lei 5.889/73 e artigo 904 do Código Civil.290
Os referidos dispositivos legais permitem que o credor-empregado exija de
todos os membros do grupo ou de qualquer deles o pagamento por inteiro de seu
crédito, ainda que tenha trabalhado apenas para uma das pessoas jurídicas do grupo.291
A solidariedade gerou, assim, uma ampliação das garantias por créditos trabalhistas do
empregado.292
No Brasil, no que se refere a contratos entre empresas (companhias)
terceirizadas que prestam atividades em um grupo, se seus empregados, como credores,
sofrem danos com a inadimplência, adota-se a tese do grupo econômico, segundo a qual
as empresas são interdependentes e possuem responsabilidade solidária perante seus
trabalhadores, uma vez que estes podem prestar serviços a todas as empresas
pertencentes ao grupo.293
No que tange aos prejuízos e danos causados ao consumidor, a
responsabilidade do grupo será subsidiária em relação à sociedade membro que causar
o prejuízo, nos termos do artigo 28, § 2º, da Lei 8.078/90, segundo o ordenamento
jurídico brasileiro.294
Ainda se tratando de reunião de sociedades, o consórcio é regulado pelo
contrato de consórcio inclusive no que se refere às obrigações comuns dos integrantes.
Entretanto, a Lei 8.078/90, em seu artigo 28, § 3º, determina que a responsabilidade dos
integrantes do consórcio seja solidária pelos danos gerados ao consumidor.295 E as
sociedades coligadas respondem por culpa.
287DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 385. 288Idem, ibidem. 289Idem, ibidem. 290Idem, p. 386. 291Idem, ibidem. 292Idem, p. 390. 293NEVES DELGADO, Gabriela. Terceirização: paradoxo do Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Editora LTr, 2003. p. 121. 294TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. p. 470. 295Idem, p. 471.
66
Outro ponto relativo aos grupos de companhias é a hipótese de mútuo entre os
membros do grupo. Nesse caso, uma companhia membro do grupo pode dar garantias a
outra, mas a “responsabilidade pelo mútuo, ainda que a garantia provenha de outras
sociedades, será sempre da companhia emissora” de debêntures.296 Também a respeito
de garantias oferecidas por outra companhia, nada impede que uma companhia emissora
dê seu ativo como garantia geral a outra companhia, uma vez que os credores da
primeira terão preferência.297
Questiona-se a razão pela qual não se abandonam as regras que regulam a
atuação dos grupos de companhias por serem tão custosas.298 Alguns sugerem que tais
regras permanecem, pois beneficiam interesses de grupos poderosos, como os bancos,
que são os principais credores, bem como os interesses dos administradores, que
poderão agir com menor pressão, pois possuirão um amplo “amortecimento” para sua
atuação, uma verdadeira garantia de proteção em possíveis situações de crise.299
Na explicação de Hideki Kanda e Gerard Hertig, tais regras estratégicas
permanecem, pois são adequadas para um sistema financeiro conservador e centrado
nos bancos.300 As regras analisadas neste tópico sobre o capital social impedem que
companhias européias em dificuldades que desejam trocar de financiamento bancário
consigam obter condições iguais nos mercados compartilhados.301
7. Deveres fiduciários – estratégia de normas.
O dever de fidúcia surge entre parceiros profissionais da companhia, bem como
entre estes e os credores sociais. Os deveres fiduciários cabem a diretores e conselheiros
da companhia, bem como a auditores externos, acionistas controladores (principalmente
se participam ativamente da gestão da companhia) e credores favorecidos.302 Assim,
descumprindo com os deveres fiduciários, caber-lhes-á a devida responsabilização.
7.1. A Responsabilidade dos fundadores e dos primeiros administradores.
296CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 703. 297Idem, p. 704. 298HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 299Idem, ibidem. 300Idem, ibidem. 301HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 302Idem, ibidem.
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Em sua fase de constituição, a sociedade empresária não pode ser
responsabilizada, pois ainda não possui uma personalidade jurídica própria e acabada.303
Assim, apenas seus sócios e fundadores podem responder por seus próprios atos.304
Segundo Waldirio Bulgarelli, a Lei das Sociedades Anônimas estabelece a
responsabilidade dos fundadores no seu artigo 92, juntamente com a responsabilidade
das instituições financeiras que participam na fundação, respondendo pelos atos
anteriores à constituição da companhia.305 Tal responsabilidade não pode ser repassada
à companhia após a sua constituição, salvo pelos atos dos primeiros administradores
quando houver atraso no cumprimento de formalidades da constituição (Lei das S/A,
artigo 99, parágrafo único).306 Os primeiros administradores devem receber dos
fundadores toda a documentação relativa à fundação da companhia, e serão
solidariamente responsáveis perante a sociedade pela demora no cumprimento das
formalidades complementares relativas à sua constituição.307
7.2. Responsabilidade do administrador.
Todos os ordenamentos jurídicos, de certo modo, impõem o risco de
responsabilidade pessoal do administrador da companhia em certas circunstâncias,
como quando a companhia está em estado de insolvência e o risco do oportunismo do
acionista é alto, inclusive no sistema norte-americano. 308
A responsabilidade dos diretores, que serve inclusive como meio de tutelar o
capital social, funciona como mais uma garantia aos credores na sociedade em que a
responsabilidade dos sócios é limitada.309 O capital social desfalcado reduz as garantias
dos credores sociais; assim, a responsabilidade de diretores em caso de diminuição do
capital social ou da reserva legal, quando houver prejuízo a terceiros, mostra-se como
medida adequada para garantir terceiros e reconstituir o patrimônio social.310
Entretanto, isso não significa que os credores podem amplamente processar o
administrador enquanto a companhia ainda é solvente ou antes desta ingressar com
petição de insolvência.311 Salvo os ordenamentos do Japão e da Alemanha, todos os
303BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. Op. Cit. p. 82. 304Idem, ibidem. 305Idem, p. 83 e 84. 306Idem, p. 84. 307BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. Op. Cit. p. 84. 308HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 309ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Op. Cit. p. 689. 310Idem, ibidem. 311HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 89.
68
demais ordenamentos negam aos credores o direito de processar os administradores de
companhias solventes.312 Na prática, o próprio credor obterá mais sucesso acionando
diretamente a companhia solvente, ao invés de seu administrador.313
Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, o administrador de fato ou “sombra”
deve ter responsabilidade pessoal pelos danos causados aos credores resultantes de
grosseira negligência do Conselho da Companhia ou estrita busca dos interesses dos
acionistas quando a companhia estiver insolvente ou próxima da insolvência.314
A extensão dos benefícios aos credores gerados pela responsabilização do
administrador irá depender das circunstâncias em que se encontrar a companhia.315 No
caso de pequenas companhias, os administradores são os primeiros a perderem seus
bens pessoais e ativos negociais simultaneamente.316 Já grandes companhias,
normalmente, pagam um seguro-responsabilidade para os membros de seu conselho,
incluindo o administrador, protegendo este e garantindo recursos para a satisfação dos
credores lesados por sua atuação.317
Em contrapartida aos ordenamentos que permitem a responsabilização dos
administradores, existem doutrinas que encampam a tese da limitação da
responsabilidade dos administradores. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos
Estados permitem que o administrador seja responsabilizado apenas nos casos em que
houver atuado buscando vantagens pessoais ou tenha agido de má-fé, não se
considerando negligência como motivo suficiente para sua responsabilização pessoal.318
Esse posicionamento reduz indiretamente a proteção aos credores sociais, uma vez que
afeta as reivindicações que a companhia pode fazer após sua insolvência.319
Na França e na Alemanha, os administradores tornam-se negligentes per se ao
não observarem a regra de capital de manutenção, e, portanto, tornam-se
responsáveis.320 Entretanto, na prática, esse modelo tem um menor alcance devido aos
seguintes motivos: 1) não é fácil demonstrar que um conselho falhou ao agir ou que lhe
seria exigível outra conduta no momento em que a companhia perdeu metade de seu
capital social; 2) mesmo que o administrador viole seu dever de agir, estabelecer a
relação entre sua atuação e o dano sofrido pelo credor é uma questão complexa; 3) não
312Idem, ibidem. 313Idem, ibidem. 314Idem, p. 88. 315Idem, ibidem. 316HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 317Idem, ibidem. 318Idem, p. 89. 319Idem, p. 90. 320Idem, ibidem.
69
é possível a responsabilização caso a atuação do conselho ou do administrador não
tenha incrementado o risco para a ocorrência de dano ao credor, ou caso o próprio
credor tenha assumido o risco de se relacionar com uma companhia insolvente ou em
processo de insolvência.321
Na Grã-Bretanha, foi desenvolvido o “Company Directors Disqualification Act
of 1986” permitindo que as cortes desqualifiquem (no sentido de não responsabilizar)
administradores de companhias insolventes que provem por eles mesmos que são
“impróprios” para as atividades de futura gestão, independentemente se são
administradores contratuais, de fato ou “sombras”.322 Essa norma inclui a
desqualificação pelo fracasso na participação em problemas contábeis ou envolvimento
em conduta imprudente.323 Porém, essa norma ainda não tem força na Europa
continental.324
Como ensina Ana Frazão, vem crescendo o número de destinatários do dever
de diligência, principalmente por se entender que tal dever inclui o agir informado e
gera a obrigação de afastar ações vantajosas para a sociedade e os acionistas quando tais
medidas provocarem danos desproporcionais a terceiros envolvidos.325
A lei das S/A, em seu artigo 159, § 7º, prevê inclusive a ação de
responsabilidade individual para que estes terceiros possam ser ressarcidos pelos
administradores, com base nas normas de responsabilidade civil extracontratual, tendo
em vista os danos diretos sofridos.326 Uma vez que, se os danos forem sofridos de forma
indireta, a única legitimada para propor ação contra os gestores será a própria
companhia.327
Conforme explica Ana Frazão, o direito brasileiro equipara terceiros aos
acionistas para fins de responsabilidade direta dos gestores que podem causar os
seguintes danos:
“(i) informações e balanços falsos; (ii) recusa ou omissão de prestação de informação e violação dos deveres de publicidade e transparência; (iii) violação da obrigação de distribuição de dividendos ou exclusão total ou parcial de acionistas da referida distribuição; (iv) desrespeito ao direito de preferência na subscrição das ações; (v) omissão de convocação de assembléias ou de acionistas para a assembléia e (vi) vedação de participação de acionista em assembléia.”
328
321Idem, ibidem. 322Idem, p. 91. 323HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 91. 324Idem, ibidem. 325FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 361 e 363. 326Idem, p. 364. 327Idem, ibidem. 328Idem, p. 366 e 367.
70
A manipulação de balanços e a divulgação de informações contábeis falsas
gera o direito de ressarcimento tanto a acionistas como a terceiros que são atingidos por
tais resultados manipulados.329
A proteção de credores sociais vem se mostrando uma questão de relevância,
principalmente quando se trata de insolvência ou insuficiência patrimonial da
sociedade.330 Nesses casos, a responsabilidade pessoal dos gestores mostra-se como
solução para ressarcir os credores sociais que não podem contar com o patrimônio
social para a reparação dos danos sofridos.331
Entretanto, Ana Frazão, amparada na doutrina alemã, coloca que os danos
sofridos pelos credores sociais são indiretos, uma vez que a atingida diretamente é a
companhia. A autora coloca que:
“o prejuízo dos acionistas e dos credores sociais, decorrente da insolvência ou da insuficiência patrimonial, é considerado, pelo menos em princípio, uma conseqüência natural da personalidade jurídica e da sua importante função econômica de socialização parcial do risco empresarial e de redução dos custos de transação”.332
Como já analisado anteriormente, a noção de socialização dos riscos da
atividade econômica não pode ser implantada no que se refere a credores vulneráveis
por conta do próprio ordenamento jurídico brasileiro que confere proteção especial a
eles. É o que ocorre no caso dos empregados da sociedade que deverão receber as
verbas trabalhistas, uma vez que o risco do empreendimento corre por conta do
empregador segundo o artigo 2º, § 2º da CLT; bem como o consumidor deverá ser
ressarcido pelos prejuízos sofridos independentemente da situação financeira de quem
produziu e lhe forneceu o produto ou serviço.
Outro problema dessa noção de socialização do risco mostra-se principalmente
nas hipóteses em que o risco se concretiza em dano por uma atitude oportunista dos
acionistas de companhias que estão próximas da insolvência.
Quando uma companhia aproxima-se da insolvência, seus acionistas decidem
apostar em projetos de risco que tenham retorno elevado em um curto espaço de tempo.
Os ordenamentos de diversos países incentivam tais companhias a pedirem falência o
329Idem, p. 369. 330Idem, ibidem. 331FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 370. 332Idem, ibidem.
71
mais rápido possível, desde o início do processo de insolvência.333 Na Alemanha e na
Suíça, por exemplo, a Lei das Sociedades estabelece o requerimento direto para pedido
de falência; na França, tal requerimento é encontrado no Estatuto de Insolvência.334 Na
Grã-Bretanha, a responsabilidade pelos danos gerados em virtude de o administrador
não ter tomado as medidas necessárias quando instalada a situação de insolvência
caberá ao próprio administrador. Tais questões, no sistema inglês, são resolvidas muitas
vezes fora das cortes.335
Em sentido oposto encontra-se o sistema norte-americano, o qual não impõe
deveres específicos pela insolvência da companhia ao administrador.336 Entretanto,
propõe uma recompensa aos administradores, ao invés de puni-los, ao propor um plano
de recuperação. 337No Japão, a lei não força o pedido de falência, mas incentiva o gestor
a permanecer no cargo.338 Na prática, tanto os administradores americanos como
japoneses perderão seu emprego, mas tal consequência se dará de forma mais suave, e
não abrupta ou automaticamente.339
A Lei das S/A brasileira bem como a Lei de Falências não tratam
especificamente da responsabilização de administradores e gestores perante os credores
sociais, deixando espaço para que essa responsabilização se dê por via do dever de
diligência e lealdade.340 Em casos de insuficiência patrimonial decorrente de confusão
patrimonial e subcapitalização, a desconsideração da personalidade jurídica mostra-se
como mecanismo capaz de garantir os credores sociais, uma vez que tais situações
geram um risco para a autonomia patrimonial da companhia bem como colocam os
credores, principalmente os não-contratuais ou involuntários, em uma situação mais
vulnerável.341
A desconsideração da personalidade jurídica permitiria, assim, atingir os
administradores e controladores de forma pessoal nas hipóteses em que a transferência
do risco empresarial para os credores for desproporcional e incompatível com a
socialização do risco empresarial.342
Segundo Ana Frazão,
333HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 73. 334Idem, ibidem. 335HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 73. 336Idem, p. 74. 337Idem, ibidem. 338Idem, ibidem. 339Idem, ibidem. 340FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 381. 341Idem, p. 381 e 382. 342Idem, p. 382.
72
“o respeito às funções da pessoa jurídica e a observância ao dever de capitalização da empresa podem ser vistos igualmente como uma decorrência do dever de diligência perante os credores sociais que, se descumprido, pode ensejar a responsabilidade pessoal dos gestores, sob o fundamento de estarem criando riscos desproporcionais para terceiros e violando, dessa forma, a função social da empresa”.343
A responsabilidade civil dos administradores gera por parte destes uma
combinação de seguros e autosseguros como forma de reduzir o risco que sofrem por
desempenharem suas funções.344 Ana Frazão ensina que a pessoa jurídica é utilizada
contra seus fins quando gera a “socialização integral ou manifestamente
desproporcional do risco” de suas atividades. Assim, caso o capital social seja
insuficiente para o desempenho da empresa, pode-se constatar um desvio de finalidade
capaz de justificar a desconsideração da personalidade jurídica por não cumprimento do
dever de diligência e normas protetivas a terceiros.345
O próprio Código Penal contempla condutas dos administradores que violam
interesses dos credores sociais, responsabilizando, pessoalmente, estes gestores por
faltarem ao dever de diligência e prejudicarem os credores sociais, por exemplo a
compra de ações pela própria companhia, a aceitação das próprias ações como garantia
de crédito social.346 A ação de responsabilidade de gestores pode ser ajuizada antes do
processo de falência, tendo como pressuposto a insuficiência patrimonial que constitui o
interesse de agir dos credores sociais.347
Como explica Ana Frazão, o resultado desta ação deve gerar um valor
indenizatório que caberá à sociedade e à massa falida, uma vez que se fosse destinada
ao credor, autor da ação, geraria um tratamento não equitativo entre este e os demais
credores sociais, e poderia, inclusive, desrespeitar a ordem de prioridade da Lei de
Falências.348 Assim, o credor/autor atua como substituto processual da própria
companhia ao pleitear a responsabilização do administrador.349
Em contrapartida, é possível também a aplicação da business judgement rule
como mecanismo para suavizar a responsabilização dos administradores. A business
judgement rule busca impor o dever de agir informado para o administrador, como um
343FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 382. 344Idem, p. 384. 345Idem, p. 385. 346Idem, p. 386. 347Idem, p. 386 e 387. 348Idem, p. 387. 349Idem, p. 387 e 388.
73
dever de diligência de meio, e não de fim.350 Os standards procedimentais que buscam
garantir a racionalidade do processo buscando equilibrar os diversos interesses que a
sociedade deve atender são: a) o dever de transparência (disponibilização de
informações importantes para acionistas, empregados, meio ambiente); b) dever de
auditagem (auditoria social que interesse a acionistas e credores); c) dever de
justificação, consulta e negociação (no processo de tomada de decisão, orientado pela
boa-fé); d) dever de organização dos processos de controle interno (controle das
atividades internas da companhia, inclusive protegendo direitos de credores).351
Segundo Ana Frazão, o aspecto procedimental do dever de diligência deve ser
observado como um mecanismo de proporcionar transparência social e, assim,
proporcionar a concretização da função social e redução de conflitos de interesses,
principalmente interesses de terceiros.352
7.3. Responsabilidade do auditor
Auditores externos têm a função de assegurar que os resultados financeiros da
companhia enquadram-se nos padrões definidos por lei e normas contábeis. Entretanto,
os auditores buscam se eximir de qualquer dever que vá além da verificação desses
resultados financeiros.353
A responsabilização do auditor é uma criação jurisprudencial que ganhou força
pela demonstração de que os auditores realizam trabalhos dos quais os credores sociais
podem ser previsíveis usuários, e de que os auditores possuem estreita relação com a
companhia a partir do momento em que confirmam sua contabilidade.354 Como forma
de amenizar tal responsabilização criada pelas cortes, a legislação procurou produzir
mecanismos de proteção compensatórios aos auditores.355 Entretanto, após o escândalo
do caso Enron e a derrocada da firma de contabilidade Arthur Andersen, a limitação da
responsabilidade de auditores perdeu força, principalmente nos casos de
responsabilidade criminal, deixando os auditores em situação vulnerável.356
350FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 392 - 395. 351Idem, p. 402. 352Idem, p. 403. 353HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 91. 354Idem, p. 92. 355Idem, ibidem. 356Idem, ibidem.
74
7.4. Responsabilidade do acionista
Todos os ordenamentos fornecem mecanismos doutrinários para proteger os
acionistas de uma responsabilização pessoal pelos débitos decorrentes da insolvência da
companhia, embora também existam mecanismos para controlar os acionistas que
abusaram da forma societária.357
Na França, a doutrina européia de administradores de fato ou sombra determina
que, se o acionista controlador ou quem administra a gestão da companhia viola deveres
fiduciários e desvia ativos, sofrerá sanções, se a companhia entrar em falência. O
acionista controlador ou o administrador deverá indenizar os credores por suas perdas,
ou, ao menos, ingressar com um processo judicial para tentar recuperar a companhia da
insolvência. Em caso de ser devida a indenização, poderá ser desconsiderada a
personalidade jurídica da companhia para se atingir diretamente o acionista
controlador.358
Há também a doutrina que responsabiliza o acionista pela subordinação dos
débitos trazidos pelos acionistas controladores em detrimento das propriedades de suas
empresas em falência. Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, essa doutrina anda na
corda bamba entre impedir o oportunismo do acionista e permitir que o acionista
controlador realize esforços legítimos para resgatar a companhia em decadência através
de capital oriundo de nova dívida.359
Apesar da distinção entre sociedade e seus sócios, em alguns casos, a
legislação permite que o sócio seja responsabilizado pelas dívidas da sociedade.360 Já
quanto ao sócio de responsabilidade ilimitada e solidária, sempre este responderá pelas
dívidas da pessoa jurídica, como ocorre nas sociedades de fato.361
Como explica Fábio Ulhoa Coelho, “quando a autonomia patrimonial e a
limitação da responsabilidade são utilizadas para locupletamento indevido dos sócios,
não cabe impor a credores da sociedade sua parcela nas perdas”.362O sócio será
responsabilizado com base no artigo 1.080 do Código Civil se houver se manifestado
por escrito sobre a deliberação que decidir por infringir a lei ou o contrato, podendo
gerar nesse caso a desconsideração da personalidade jurídica da limitada.363
357Idem, ibidem. 358Idem, p. 93. 359HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 93. 360DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 454. 361Idem, ibidem. 362COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 107. 363Idem, p. 108.
75
Na visão do autor, quem negocia com a sociedade limitada deve considerar o
risco da negociação, uma vez que sua garantia dar-se-á apenas pelo patrimônio
social.364 Assim, uma das estratégias utilizadas é elevar as taxas remuneratórias ou até
mesmo a exigência de reforços das garantias, como aval, fiança, um exemplo são os
bancos, que, na condição de credores sociais, elevam as taxas de remuneração do
crédito concedido ou exigem garantia pessoal de algum sócio.365
Caso o credor social não considere tais reforços de garantia, poderá sofrer
futuramente na hipótese da sociedade sofrer perdas, uma vez que “a quebra da
sociedade será perda do credor” como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho.366 Essa
consequência é um expressão da socialização do risco do sucesso da atividade
empresarial.367
Os credores que possuem condições de negociar podem impor taxas de risco
nos seus preços e, assim, não sofrem com a limitação da responsabilidade dos sócios,
como ocorre no caso dos grandes credores como bancos, fornecedores, entre outros.368
Já os pequenos credores ou credores não-negociais não possuem a mesma capacidade
de negociar suas taxas de risco, e, assim, sofrem com a insolvência da sociedade e com
a limitação da responsabilidade dos sócios, como é o caso dos trabalhadores,
consumidores, credores involuntários por atos ilícitos, entre outros.369
Como meio de equilibrar a socialização dos riscos, há algumas exceções no
que tange à separação patrimonial e à limitação da responsabilidade dos sócios para se
garantir a proteção aos credores sociais, gerando a responsabilização dos sócios, é o que
ocorre com a obrigação de formação do capital social, respondendo os sócios após o
exaurimento do patrimônio social.370
Os sócios são solidariamente responsáveis até o limite do capital social
subscrito e não integralizado no que se refere às obrigações da sociedade limitada.371
Fora de tal limite, os sócios não respondem pelas obrigações sociais de natureza
negocial, assim, o que exceder ao patrimônio social sem garantia será perda dos
credores.372 Como ensina Fábio Ulhoa Coelho, a responsabilidade solidária dos sócios
364Idem, p. 5. 365Idem, ibidem. 366Idem, ibidem. 367Idem, ibidem. 368COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 5. 369Idem, p. 5 e 6. 370Idem, p. 6. 371Idem, ibidem. 372Idem, p. 7.
76
pelo capital social ainda não integralizado beneficia tanto credores negociais como
credores não-negociais.373
No ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito às sociedades
limitadas, as hipóteses de responsabilização do sócio-gerente foram ampliadas pela
jurisprudência trabalhista com base na interpretação do artigo 135 do CTN,
considerando que o crédito trabalhista ainda possui maior preferência que o tributário,
além de observar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.374 Segundo
Mauricio Godinho Delgado, assim, o sócio-gerente responderá pelas dívidas trabalhistas
da sociedade sempre que não houver bens que garantam a execução.375 A mesma
responsabilidade tem sido estendida aos demais sócios quanto se tratar de créditos
trabalhistas, mesmo que tais sócios não tenham participado da gestão da sociedade.376
Segundo jurisprudência do TRT/SP, a responsabilidade dos sócios de
sociedade limitada pelos débitos trabalhistas torna-se ilimitada e solidária.377 Quando
ocorre dissolução de fato da sociedade sem o pagamento de seu passivo e há diluição
do capital social até o sócio minoritário responde por culpa in vigilando.378
Cabe ressaltar que a responsabilização dos sócios será subsidiária e não
solidária nos casos em que houver frustração patrimonial pelo devedor principal na
execução trabalhista.379 Desse modo, o sócio, ao ser demandado, pode demandar que
primeiro sejam executados os bens da sociedade, tendo o ônus inclusive de nomear os
bens da sociedade que terão tal fim.380 E o sócio pode ser demandado sem que seu nome
tenha sido expressamente referido no título executivo judicial.381
Caso o capital social não tenha sido totalmente integralizado, os sócios da
limitada podem ser responsabilizados pelas contribuições devidas ao INSS,
independentemente da prática de qualquer irregularidade praticada pelo sócio, pelo
simples fato de ser uma garantia a um credor não negocial.382 Além desta hipótese, os
sócios também responderão por obrigações da sociedade quando praticarem ilícitos por
meio desta; isso se dá para que a limitação da responsabilidade não sirva para encobrir
ilicitudes.383
373Idem, ibidem. 374DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 454. 375Idem, ibidem. 376Idem, ibidem. 377COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 63 e 64. 378Idem, ibidem. 379DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 455. 380Idem, ibidem. 381Idem, ibidem. 382COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 106. 383Idem, p. 107.
77
É importante destacar que o sistema de responsabilização do sócio da
sociedade limitada não é o mesmo aplicável ao sócio da sociedade anônima. Maurício
Godinho Delgado ensina que isso se dá em grande medida porque o sócio da limitada
participa de uma sociedade híbrida, um modelo que transita entre a sociedade de
pessoas e a sociedade de capital; já o sócio da S/A participa de uma sociedade
estritamente de capital.384 Os gestores e controladores da S/A somente serão
responsabilizados caso seja provada a existência de uma gestão fraudulenta ou ilícita, ao
passo em que na sociedade limitada o sócio-administrador tem sua culpa presumida.385
Sempre que a sociedade anônima estiver em processo de liquidação, ela deverá
buscar assegurar o pagamento de todos os seus credores. Entretanto, caso isso não se
efetive na prática e o crédito do terceiro seja decorrente de ato doloso ou culposo do
liquidante, o credor poderá ingressar com ação de responsabilidade por ato ilícito contra
este para que seja ressarcido pelas perdas e danos que sofreu.386 Segundo Marlon
Tomazette, os credores também poderão ingressar com ação contra os acionistas de
forma individual pelo valor recebido na partilha.387 Essa possibilidade se justifica, pois
os acionistas somente deverão receber sua parcela na liquidação após a satisfação de
todos os credores sociais. O acionista que pagar ao credor poderá exercer direito de
regresso contra os demais acionistas nas devidas proporções.388
Já no que tange às sociedades simples, como ensina Marlon Tomazette, elas se
regem pelo sistema de responsabilidade subsidiária de seus sócios na proporção de sua
contribuição para o capital social, conforme estabelece o artigo 1.023 do Código Civil,
e, em princípio, não há solidariedade entre os sócios.389
7.5. Desconsideração da personalidade jurídica.
Todos os ordenamentos permitem que as Cortes desconsiderem a
personalidade jurídica em circunstâncias extremas, responsabilizando pessoalmente os
acionistas controladores ou controladores dos grupos de sociedades pelos débitos da
sociedade.390 Essa desconsideração não ocorre de forma fácil e simples.391 Em nenhum
384DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 456. 385Idem, ibidem. 386TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. P. 435. 387Idem, ibidem. 388Idem, ibidem. 389Idem, p. 120 e 121. 390HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 93. 391Idem, ibidem.
78
caso a personalidade jurídica pode ser desconsiderada diretamente contra companhias
de capital aberto ou acionistas passivos.392
Até Estados que são “debtor-friendly”, como os EUA, permitem a
desconsideração caso o acionista controlador desconsidere a integridade da companhia,
não observando as formalidades, misturando ativos pessoais com os da companhia ou
falhando na capitalização da companhia, e se há um elemento de fraude e injustiça
quando acionistas agem de forma oportunista.393
Outros ordenamentos, como o americano, o francês e o alemão, também
utilizam a desconsideração da personalidade jurídica da companhia para proteger
credores de grupos de sociedades. Apesar disso, a utilização da desconsideração é mais
comum entre companhias individuais se comparada a grupos de sociedades.
No artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, há previsão expressa de
desconsideração da personalidade jurídica da sociedade sempre que esta constituir
obstáculo para o ressarcimento do consumidor que foi lesado.394
Verifica-se que o tratamento conferido pelo CDC no que tange à
responsabilidade das sociedades é diverso daquele preconizado na Lei das Sociedades
Anônimas (Lei 6.404/76).395 Essa diferença de regime se dá por conta da mais rigorosa
proteção que deve ser conferida aos credores com pouco ou nenhum poder de
negociação, como se dá com os pequenos consumidores.396
Entretanto, na visão de Eduardo Secchi Munhoz, a legislação não fez a
diferenciação entre os diversos tipos de consumidores (pequenos e grandes), estendendo
essa tutela mais rigorosa a todo consumidor indistintamente, apenas pelo fato de ser o
destinatário final do produto, gerando inclusive insegurança jurídica ao misturar a
desconsideração da personalidade jurídica com regime especial de responsabilidade de
grupos.397
O autor explica que grandes consumidores, como pessoas jurídicas que
possuem elevado poder de negociação, recebem a mesma proteção de consumidores
que são pessoas físicas. Seria o caso de suavizar a responsabilidade do grupo quando se
392Idem, ibidem. 393Idem, p. 93 e 94. 394MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 322. 395Idem, ibidem. 396Idem, p. 323. 397Idem, ibidem.
79
tratar de consumidor com alto poder de negociação, mas manter a proteção dos
consumidores pequenos e mais vulneráveis.398
Outro ponto é que o CDC iguala os tipos de dano ao consumidor, sem
distinguir entre dano à saúde ou à vida, e um mero defeito de qualidade.399
A mesma regulação da desconsideração da personalidade jurídica descrita no
Código de Defesa do Consumidor foi transplantada para as infrações à ordem
econômica, previstas pela Lei 8.884/94.400 Caso semelhante se deu em relação às lesões
ao meio ambiente por meio da Lei 9.605/98.401 Como ensina Marlon Tomazette, a
desconsideração da personalidade jurídica ocorrerá de forma bastante semelhante nos
casos de lesão ao consumidor, ao meio ambiente e à ordem econômica.402
No entendimento de Marlon Tomazette, o artigo 2º, § 2º, da CLT não prevê a
desconsideração da personalidade jurídica, apenas estabelece a solidariedade entre os
membros de um grupo empresarial, uma vez que não há previsão no referido
dispositivo acerca de fraude ou abuso, nos grupos existem personalidades jurídicas
distintas e autônomas.403 Assim, o dispositivo busca proteger o empregado garantindo
uma responsabilidade solidária entre os membros do grupo.404
7.6. Custos pela responsabilização de dirigentes empresariais.
Gerard Hertig e Hideki Kanda defendem a tese de que garantir a
responsabilidade dos dirigentes empresariais (conselheiros/administradores, auditores,
credores internos, acionistas controladores) por participarem no oportunismo societário
na proximidade da insolvência pode beneficiar credores; entretanto, tais benefícios
trazem consigo custos.405 Assim, a garantia de responsabilidade do auditor gera um
aumento dos honorários do auditor, a responsabilidade de administradores, grandes
credores e acionistas controladores pode inclusive prejudicar credores e acionistas, uma
vez que desencoraja tais agentes de iniciar ou consentir com certos exercícios da
sociedade.406
398Idem, ibidem. 399Idem, p. 324. 400TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. P. 84 e 85. 401TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. P. 84 e 85. 402Idem, p. 84 e 85. 403Idem, ibidem. 404Idem, ibidem. 405HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 95. 406Idem, ibidem.
80
A Grã-Bretanha tem uma maior tradição em responsabilizar administradores,
já outros ordenamentos responsabilizam tanto administradores como auditores.407 Tanto
os ordenamentos “debtor-friendly” como os “creditor-friendly”, por meio de suas
legislações e cortes, tentam impor a responsabilidade do auditor. Embora essa
responsabilização possa aprimorar a proteção do credor, ela pode ser considerada muito
dispendiosa para ser praticada.408
Na Europa Continental, reluta-se para responsabilizar administradores e
auditores pelos delitos que a companhia gerou contra credores.409
Na França e na Alemanha, o caminho é para a responsabilização do acionista
controlador.410 A França protege fortemente os credores contra os acionistas
controladores de grupos de sociedades; mas sua postura não tem força na Europa
Continental.411 Acredita-se que o modelo francês não funcionaria em jurisdições com
alto número de empresas amplamente difundidas, o que explica a notoriedade da
responsabilidade do administrador, como no sistema inglês.412
7.7. Responsabilidade de terceiros.
Ainda há a possibilidade responsabilizar terceiros pelos danos que a companhia
gerar. Esses terceiros podem ser credores por si mesmos (alguns acionistas
controladores), credores externos e credores internos.413
No que toca a credores externos, estes possuem duas armas contra credores
internos. O credor externo pode processar os credores internos, como ocorre quando os
bancos intervêm na administração de companhias insolventes como parceiros ou
administradores de fato.414 No sistema inglês, qualquer pessoa que conscientemente
ingressa nos negócios de uma companhia para fraudar credores deve ser
responsabilizada se a companhia entrar em processo de liquidação.415
407Idem, p. 96. 408Idem, ibidem. 409HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 96. 410Idem, ibidem. 411Idem, ibidem. 412Idem, ibidem. 413Idem, p. 94. 414Idem, ibidem. 415Idem, ibidem.
81
Outra arma que os credores externos possuem contra os credores internos é a
ação pauliana ou ação contra transferência fraudulenta.416 Conforme explica De Plácido
e Silva, ação pauliana
“é a ação que assiste aos credores para o fim de anularem atos praticados pelo devedor, dolosamente e sob fraude, que tenham onerado ou alheado bens de sua propriedade, sendo estes os únicos que poderiam ser usados para solver seus compromissos”. 417
Nesta ação, “o credor, que se julga assim lesado, pede a reversão dos bens
fraudulentamente alienados ou a revogação do ônus dolosamente promovido, a fim de
que possa sobre eles correr a execução já iniciada ou despachada, e se possa cobrar
sobre o produto de sua venda”.418 Para ingressar com a ação pauliana é necessário
comprovar a insolvência do devedor, o intuito de fraudar o credor e o ato que provocou
prejuízo ao credor.419
Como remédio usado pelos credores externos, a ação pauliana é impetrada
contra credores que efetuaram transações que desviaram os ativos de uma companhia
insolvente afastando outros credores, para que aqueles sejam forçados a retornar os
benefícios que obtiveram para a antiga propriedade do devedor (companhia).420
8. Conclusão
Os credores sociais englobam desde bancos, financeiras e fornecedores até
empregados, consumidores, meio ambiente e demais obrigacionistas. Considerando a
diversidade de sujeitos que se enquadram na denominação de credor social, verifica-se
como é tarefa árdua estabelecer critérios e mecanismos que sirvam para a proteção do
gênero maior que engloba tantas espécies diversas e particulares. Entretanto, não há
dúvida de que os credores sociais, como agentes propulsores da atividade empresarial,
ou mesmo como vítimas de uma atuação irregular por parte da sociedade, merecem uma
proteção especial do ordenamento jurídico.
Para que a sociedade cumpra sua função social e contribua para que a ordem
econômica seja fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, bem como seja
assegurada uma existência digna a todos conforme os ditames da justiça social, segundo
416Idem, p. 95. 417DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 28a Edição, 2009. p.42. 418DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Op. Cit. p.42. 419Idem, ibidem. 420HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 95.
82
determina o artigo 170 da Constituição Federal de 1988, é preciso que os credores
tenham proteção assegurada pelo ordenamento.
A Lei das S/A, no seu artigo 116, dá abertura para o institucionalismo, levando
à necessidade de respeito e satisfação dos interesses dos empregados, consumidores e
demais sujeitos que sofrem consequências da atuação da companhia. Isso não significa
que a sociedade deva tornar-se um agente público, porém, deve cumprir com suas
obrigações e pelos danos e prejuízos que gerar.
Muitos doutrinadores importantes do direito comparado e do direito nacional
entendem que os credores devem obter garantias e podem se proteger por meio de seus
próprios contratos e através das próprias condições do mercado. Entretanto, estudiosos
como Eílis Ferran demonstram que os acordos oriundos de negociações para se garantir
a satisfação dos credores são mais custosos que dispositivos legais garantindo proteção,
uma vez que estes reduzem os custos de transação.
Quando se trata de credores involuntários ou não-negociais, a questão de
deixar que o próprio mercado os proteja se torna mais complexa, uma vez que tais
credores não escolheram conscientemente negociar com a sociedade e muitas vezes
encontram-se em posição de maior vulnerabilidade perante a companhia, não possuindo
poder de barganha para negociar cláusulas contratuais que lhes garantam proteção, não
contando sequer com um contrato. Surge então a necessidade de estabelecer
mecanismos jurídicos capazes de prover a satisfação desses credores. Situação
semelhante ocorre com credores pequenos e/ou involuntários, como os trabalhadores e
pequenos consumidores, bem como a coletividade em relação aos danos ao meio
ambiente, que se encontram mais vulneráveis, e, por isso, são amparados por
instrumentos específicos, como a CLT, o CDC, a Lei de Proteção ao Meio Ambiente.
Outra figura importante é a dos grupos de sociedades que agrava a situação de
vulnerabilidade tanto dos credores involuntários, como dos pequenos e fracos credores
sociais.
Tendo em vista todo este contexto, verifica-se a importância de se estudar
mecanismos capazes de garantir proteção aos credores de forma ampla e sempre
considerando em cada caso as particularidades presentes. Para tanto, Gerard Hertig e
Hideki Kanda propõem como mecanismos a publicidade obrigatória, as regras sobre
capital social e grupos empresariais e, por fim, normas sobre o dever fiduciário.
A publicidade obrigatória gera para a sociedade o dever de disponibilizar
informações que sejam úteis para que os sujeitos possam analisar e ponderar a vantagem
83
em se negociar com aquela, considerando sua solvabilidade e sua saúde financeira. A
publicidade demonstra que a sociedade é um investimento seguro e capaz de gerar
resultados positivos para quem com ela negocia. Além desse fator, a publicidade é
importante para regularizar a fundação da sociedade, garantindo sua regularidade
conforme o ordenamento e tipo empresarial que adota. Assim, violações a uma
publicidade conforme a realidade empresarial geram para seus administradores, gestores
e controladores responsabilização, inclusive penal (artigo 177, Código Penal), pelos
danos que causar aos credores sociais.
As regras que controlam o capital social e os grupos empresariais também
mostram-se de extrema importância para a garantia dos credores sociais. No que tange
ao capital social, no ordenamento jurídico brasileiro não há qualquer exigência de um
capital social mínimo para que uma sociedade seja constituída. Entretanto, muitos
autores, como Alfredo Lamy Filho, entendem que o capital social é uma garantia dos
credores. Outra forma de garantir o capital social como fonte de satisfação dos credores
são regras exigindo um mínimo de manutenção deste capital durante a vida social. A
Lei das S/A estabelece uma reserva legal, bem como normas determinando condições
para a redução do capital e hipóteses em que os credores podem se manifestar sobre a
decisão de reduzir, buscando assim garantir que não sejam prejudicados pela diluição
do capital social.
No que tange aos grupos empresariais, a relação de responsabilidade do grupo
e das sociedades-membro será determinada pelo tipo de credor, considerando sempre
que a atuação da sociedade controladora será regulada pelas normas aplicáveis ao
controlador da sociedade singular. Assim, em relação aos créditos trabalhistas a
responsabilidade dos membros do grupo será solidária. Já em relação aos créditos para
com os consumidores dependerá do tipo societário.
Outro mecanismo de se garantir proteção aos credores é por meio da exigência
de cumprimento dos deveres fiduciários. Por meio dos deveres fiduciários, é possível
garantir a satisfação dos credores por meio da responsabilização dos fundadores e
primeiros administradores da sociedade, bem como por meio da responsabilização do
administrador, do conselho fiscal, do auditor, dos acionistas e inclusive de terceiros.
Para atingir esta responsabilização, em alguns casos mostra-se necessária a
desconsideração da personalidade jurídica como meio para se atingir o real
descumpridor dos deveres fiduciários.
84
Por meio de uma análise integrada com o direito comparado, é possível
perceber que o ordenamento brasileiro possui mecanismos jurídicos capazes de garantir
proteção aos credores sociais de modo a efetivar a função social da empresa e cumprir a
ordem econômica baseada no fundamento constitucional da justiça social e da dignidade
de todos os que participam das atividades empresariais e sofrem com suas
externalidades.
9. Referências.
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85
FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. VON ADAMEK, Marcelo Vieira. A proteção aos credores e aos acionistas no aumento de capital. In: Revista do Advogado. Ano XXVIII, nº 96, Março de 2008. FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume III. Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Editora Saraiva, 6a Edição, 2009. HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. In: The Anatomy of Corporate Law. A comparative and functional approach. Oxford, UK: Oxford University Press, 2004. LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Volume 1. São Paulo: Editora Forense, 1a Edição, 2009. MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. In: Revista Forense. Vol. 363. Ano 98. Set./Out. 2002. NEVES DELGADO, Gabriela. Terceirização: paradoxo do Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Editora LTr, 2003. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 2º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 28a Edição, 2011. SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2a Edição, 4a Edição, revista e ampliada, 2011. SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia. São Paulo, Editora Best Seller, 9a Edição, 2002. SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. In: Revista da EMERJ. Vol. 4, nº 14, 2001. SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2a Edição atualizada, 2004.
86
III.
CAPITAL SOCIAL: importância, normas protetivas e subcapitalização
Danielle Lúcia Ferreira
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Origem e conceito de capital social. 3. Princípios orientadores do
capital social. 4. Funções do capital social. 5. O fenômeno da subcapitalização. 6. Conclusão. 7.
Referências.
1. Introdução.
Para que uma sociedade empresária dê início ao seu empreendimento, ela
precisa de recursos, tal como máquinas, tecnologia, e outros meios indispensáveis à
organização e realização da atividade. Diante disso, os sócios transferem do seu
patrimônio para o da pessoa jurídica dinheiro, bens e créditos e, em troca, recebem
ações ou quotas emitidas pela sociedade em valor correspondente. Este montante
prometido pelos sócios para a formação da sociedade é chamado de capital social
subscrito. Os recursos efetivamente transferidos para a sociedade compõem o capital
social integralizado.
Após o início das atividades, necessitando a sociedade de mais recursos, os
sócios podem, por deliberação em assembleia geral, aumentar suas contribuições,
capitalizando-a.
No entanto, a capitalização, tanto no período de formação da sociedade quanto
supervenientemente, não é a única forma de aportar recursos à sociedade, há também o
financiamento. O que diferencia um do outro é que, no caso do primeiro, a sociedade
não tem a obrigação de restituir, com acréscimos remuneratórios, os recursos nela
aportados, embora possa fazê-lo, se atendidos certos requisitos. Quando há
financiamento de terceiros, sócios ou não, a sociedade torna-se devedora, tendo a
obrigação de restituir o valor dos recursos, com acréscimos remuneratórios.
Constituindo um capital próprio da sociedade, desvinculado do patrimônio dos
sócios, o capital social vincula-se à noção moderna de limitação da responsabilidade
dos sócios em relação às obrigações assumidas pela sociedade empresária, surgindo
como instrumento de garantia aos credores sociais.
87
Na doutrina, não há um consenso quanto ao conceito, significado e
importância do capital social. Conforme será explorado neste trabalho, há vários
posicionamentos, o que interfere na atribuição ao capital social da função de garantia
aos credores sociais.
O presente trabalho tem por finalidade, a partir do estudo de seus princípios
norteadores e das funções que exerce (ou deveria exercer), revitalizar a figura do
capital social, analisando em que medida ele se mostra importante ao direito societário.
Além de buscar no direito comparado, como alternativa ao ordenamento brasileiro,
instrumentos capazes de dar efetividade a suas funções de acordo com seus princípios
orientadores.
Será, também, posto em discussão o fenômeno da subcapitalização com
enfoque na questão da responsabilização dos sócios. A partir da análise de soluções
presentes em ordenamentos estrangeiros, trazem-se aqui alternativas para a resolução do
problema no âmbito do direito societário brasileiro.
2. Origem e conceito do capital social
A exata definição do conceito e da função do capital social nas sociedades
empresárias é, hoje, algo controvertido dentro da doutrina, devido à relativização do
princípio da integridade do capital social e à ausência, no ordenamento brasileiro, de
instrumentos legais que garantam a efetiva realização de suas funções.
Quanto à sua origem, de acordo com Alfredo Lamy Filho, “o conceito de
capital social é correlato ao reconhecimento da personalidade jurídica das sociedades e
à limitação da responsabilidade de todos os sócios nas anônimas”421. O conceito de
capital social foi cristalizado apenas numa fase mais adiantada da história das
sociedades anônimas, impondo-se como instrumento de garantia dos credores em uma
sociedade empresária em que nenhum sócio respondia com seus bens pelas obrigações
sociais. No mesmo sentido, Jorge Lobo observa:
“Consagrado, depois de lenta evolução, o princípio excepcional da responsabilidade limitada dos acionistas das anônimas e admitida a constituição do patrimônio separado, consequência direta do reconhecimento da personalidade jurídica das companhias, que impede a execução dos bens dos sócios por dívidas da sociedade, foi necessário elaborar um conceito de
421 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 193.
88
capital, definir-lhe as funções e instituir normas para garantir sua integridade”.422
Ivens Hübert também salienta a relação direta entre a assimilação da noção de
autonomia patrimonial no direito moderno e a existência do capital social. Afirma o
autor:
“Por gozarem da autonomia patrimonial, ou seja, da rígida separação entre o seu patrimônio e aquele particular dos sócios, as sociedades empresárias contarão desde o início com um capital próprio, ingressado na sociedade por ação e deliberação dos sócios, mas que a eles deixa de pertencer na medida em que, como contraprestação por esse aporte, passam eles a titularizar quotas ou ações desta sociedade. É, portanto, através dessa transferência de patrimônio (dos sócios para a sociedade) que se torna possível garantir que, de um modo geral, apenas esta, e não aqueles, seja responsável pelas obrigações assumidas em decorrência da atividade empresarial”.423
Quando a responsabilidade era ilimitada e os sócios respondiam com seus
próprios bens pelas obrigações sociais (primeiras sociedades), a confusão entre o
patrimônio do sócio e o da sociedade não trazia maiores problemas aos credores. Por
outro lado, quando a responsabilidade passou a ser limitada e os sócios ficaram
liberados das obrigações sociais, havia o risco de, quando os negócios não iam bem, o
administrador tentar pagar-se com os bens sociais ou retirar o que investira na sociedade
antes de quitados os credores.424
Nessa segunda fase, na qual nenhum sócio era responsável além da quota com
que entrara para o fundo social, era imprescindível que a sociedade:
“oferecesse a seus credores uma garantia de que a sociedade cumpriria seus compromissos, e teria como fazê-lo. Para assegurá-lo reconheceu-se, desde logo, a irrevogabilidade das prestações dos sócios, ao mesmo tempo em que, mediante um sistema de publicidade obrigatória, se procurou permitir aos credores conhecimento, tão aproximado quanto possível, da situação do patrimônio social”.425
422 LOBO apud HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 52. 423 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 52. 424 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 193-194. 425 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 194.
89
Segundo Ascarelli426, no Relatório apresentado ao Congresso Internacional de
Direito Comparado em Londres em 1950, havia, ainda, dificuldades referentes a dois
riscos: que o patrimônio real fosse, no ato de constituição, inferior ao publicado; e que,
durante a vida da sociedade, tal patrimônio viesse a diminuir, desfalcando a garantia dos
credores. A solução para esses problemas foi construída através do conceito de capital
social, distinto do de patrimônio.
Vivante, por sua vez, distingue patrimônio social e capital social, na medida
em que o primeiro é essencialmente mutável, enquanto o último
“é uma cifra convencional fixa, de existência de direito, e não de fato, que os sócios são livres para acordar no momento de consituição da sociedade, ou de aumentar no curso da vida da sociedade, e que se inscreve no lado passivo do balanço patrimonial da sociedade”427.
Portanto, na concepção de Lamy Filho, o capital social corresponde:
“a uma cifra ideal que, no momento da constituição da sociedade, representa a totalidade, expressa em dinheiro, das contribuições realizadas ou ‘prometidas pelos sócios com aquela destinação’ – diz Carvalho de Mendonça – mas que, iniciada a vida da sociedade, permanece fixa, em contraposição ao patrimônio em constante flutuação. Dessa maneira, torna-se um ponto de referência permanente na vida financeira da sociedade, e, uma vez fixado, não pode ser alterado (a não ser cumpridas formalidades em hipóteses específicas), assegurando uma margem de garantia para os credores, um ‘coeficiente de liquidez’, disse De Gregorio. Ou, na expressão dos americanos, é uma vara de medir (‘measuring rod’). Trata-se, pois, de uma noção jurídica e contábil, não patrimonial, mas que deve corresponder necessariamente a valores do ativo da empresa, para garantia dos credores”.428
Para Osmar Brina Corrêa-Lima, o capital social é estático, porém não
imutável, podendo aumentar ou diminuir. O patrimônio, por outro lado, é extremamente
dinâmico, sendo “o complexo das relações jurídicas de uma pessoa, tendo estas valor
econômico, abrangendo créditos e débitos” 429.
Alfredo Lamy Filho define capital social como sendo “a cifra, fixada no
estatuto social, do montante das contribuições prometidas pelos sócios para formação
da companhia que a lei submete a regime cogente, cujo fim é proteger os credores
426 ASCARELLI apud FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 194. 427 VIVANTE apud FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 194. 428 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 195. 429 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade Anônima. 3ª ed. rev. e atual.. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 24-25.
90
sociais”430. A garantia do capital social consiste em limitar a transferência de bens para
os patrimônios dos acionistas e criar margem de segurança contra insolvência. 431
A capitalização é um modo de a sociedade obter recursos, assim como o
financiamento. No entanto, diferentemente do autofinanciamento (emissão de
debêntures ou commercial papers) ou financiamento bancário, a sociedade empresária
não tem a obrigação de restituir, com acréscimos remuneratórios, os recursos nela
aportados a título de capitalização, embora possa fazê-lo, se atendidos certos requisitos.
Nos casos de financiamento, a sociedade torna-se devedora, tendo a obrigação de
restituir o valor dos recursos, com acréscimos remuneratórios. São regimes jurídico,
econômico e contábil diferentes.432
Salienta Fabio Ulhoa Coelho433 que, para quem subscreve ações, há apenas
expectativa de retorno financeiro pelo pagamento de juros sobre o capital ou
distribuição de dividendos. Se os negócios não se desenvolverem como projetado e a
sociedade empresária não obtiver os resultados esperados, não havendo lucros, o
acionista não será titular de direito de crédito nenhum contra a companhia.
Segundo o mesmo autor, o capital social é uma medida da contribuição dos
sócios para a sociedade empresária, servindo, de certa forma, como referência de sua
força econômica. Ter um capital social elevado sugere solidez, representa “uma
companhia dotada de recursos próprios, suficientes ao atendimento de suas necessidades
de custeio” 434.
Contudo, para Fábio Ulhoa435, o fato de servir de referência à potência
econômica da empresa não atribui ao capital social a função de garantia dos credores
sociais, tal qual defendido por muitos na doutrina. É o patrimônio da sociedade que
constitui a garantia dos credores, tornando-se irrelevante o valor do capital social. Os
analistas, ao avaliarem uma companhia, prestam maior atenção a indicadores como
resultados, ativos, passivos, liquidez, etc, não dando tanta importância ao capital social
constante das demonstrações financeiras.
Quando as ações são subscritas a preço superior ao seu valor nominal, a parte
do preço que supera o valor nominal chama-se ágio, que é contabilizado como reserva
de capital, e não como capital social. Logo, o capital social não mede o total da
430 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 193. 431 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 204. 432 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 180. 433 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 190. 434 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 181. 435 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 181.
91
contribuição dos sócios. O total da contribuição dos sócios na companhia é medido pela
soma dos preços de emissão das suas ações. Ou seja, a contribuição dos sócios só
coincide com o capital social quando o preço de emissão é igual ao valor nominal das
ações, sendo maior, somente uma parte compõe o capital social. Então, a contribuição
dos sócios passa a ser a soma do capital social mais a parcela da reserva de capital
constituída pelo ágio da subscrição (se existente). Portanto, conclui Fábio Ulhoa, o
capital social é uma medida e não necessariamente a medida da contribuição dos
sócios.436
O capital social pode ainda ser aumentado por recursos provenientes de lucros
ou reservas frutos do desenvolvimento da própria empresa, deixando, com o passar do
tempo, de representar apenas a contribuição dos sócios. A equivalência entre capital
social e contribuição dos sócios, ao longo do tempo, pode se esvair e até perder sentido.
Desta forma, a definição da exata função do capital social, para Fábio Ulhoa, é de
difícil enfrentamento.437 O que, de fato, não deixa de ser, considerando todas as
problemáticas que envolvem o tema.
Segundo Modesto Carvalhosa438, o capital social, por não representar
necessariamente o valor integral das contribuições dos acionistas, teve suas funções
alteradas. O capital social não regula mais os direitos dos acionistas com base no valor
contribuído por cada um para compô-lo, uma vez que parte do valor subscrito pode não
integrá-lo. E também deixou de ser plena expressão de garantia dos credores, pois o
valor declarado na cifra pode não corresponder ao valor realmente ingressado na
sociedade empresária.
O conceito de capital social também mudou, não correspondendo mais ao valor
total das ações subscritas pelos acionistas, não expressando mais “toda a massa
patrimonial posta em função do negócio que constitui o objeto social”439. De acordo
com Carvalhosa, o capital social passou “a representar, apenas, a parcela do valor das
ações subscritas que os acionistas vinculam, na constituição e em cada aumento (arts.
13 e 14), ao negócio empresarial que constitui o objeto da companhia”440, definindo o
436 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 182. 437 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 182. 438 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 192-193. 439 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 193. 440 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 193.
92
capital social como “o valor das entradas de capital que os acionistas declaram
vinculado aos negócios que constituem o objeto social”441.
Diante de toda essa controvérsia sobre o capital social, faz-se imprescindível a
análise dos princípios que orientam a sua disciplina jurídica para um melhor
entendimento da importância do capital social e da função que exerce (ou deveria
exercer) no direito societário.
3. Princípios orientadores do capital social
Existem certos princípios que servem de base para a disciplina jurídica do
capital social, os quais, de algum modo, relacionam-se com o aspecto da integridade do
capital, conforme observa Ivens Hübert442. Segundo o autor, “a integridade constitui o
valor básico, central na noção jurídica do capital social”443.
Considerando a compreensão do capital social segundo seu aspecto bivalente
(capital nominal/capital real), no qual o capital nominal corresponde à cifra contábil e o
capital real refere-se à massa de bens concreta que compõe o valor registrado no capital
social, a integridade do capital social decorre do pressuposto de adequação do capital
nominal ao capital real, ou seja, a cifra formal e abstrata deve equivaler ao fundo
patrimonial correspondente. Postula-se, portanto, que a parcela do patrimônio
decorrente da integralização do capital social deve manter-se íntegra, podendo vir a
responder, eventualmente, pelas obrigações sociais, caso a empresa não tenha bom
desempenho.444
Segundo salienta Ives Hübert445, tal integridade deveria manter-se desde o
início da atividade social até a dissolução da sociedade. Embora não haja regras que o
assegurem, esse postulado é de grande relevância. Seria como um “sobreprincípio”, o
qual informa e orienta os demais. Os princípios do capital social são garantidores dessa
integridade.
Vale ressaltar que embora haja preocupação em manter esse princípio,
conforme salienta Modesto Carvalhosa446, ele tem sido relativizado em face de certos
441 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 193. 442 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 69. 443 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 69. 444 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 69. 445 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 70. 446 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 196.
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dispositivos da Lei n. 6.404/76, como a destinação do ágio das ações com valor nominal
à reserva de capital (art. 13), a existência de ações sem valor nominal cujo preço de
emissão pode, em parte, não integrar o capital social (art. 14) e a possibilidade de
aumento do capital social antes da completa integralização do anteriormente subscrito
(art. 170).
Nesse último aspecto as sociedades limitadas diferem das sociedades
anônimas, uma vez que o Código Civil de 2002 (art. 1.081) exige a integralização total
das quotas para que haja um novo aumento de capital. Essa exigência “fundamenta-se
na proteção ao sócio, que, apesar de dissidente, fica solidariamente responsável pela
total integralização do capital social (art. 1.052), o que não ocorre no âmbito das
sociedades anônimas”447.
Não há entre os autores um consenso quanto à conceituação e à nomenclatura
dos princípios. Ivens Henrique Hübert, por exemplo, enumera apenas três princípios: o
princípio da intangibilidade, o da congruência e o da realidade. Já Alfredo Lamy Filho,
além dos princípios da intangibilidade e da realidade, enumera também os princípios da
unidade do capital social, da fixidez do capital e da irrevogabilidade das prestações.
O princípio da intangibilidade, segundo Hübert448, consiste na imutabilidade do
capital social como cifra contábil, na sua manutenção, não podendo ser diminuído, em
virtude da devolução aos sócios de bens e valores ingressados a título de capital social,
salvo casos específicos e sob procedimento adequado. Esse princípio também garante o
respeito à separação entre o patrimônio dos sócios e o patrimônio da pessoa jurídica,
anteriormente discutido, conforme salienta o autor:
“O princípio da intangibilidade guarda relação também com a ideia de separação patrimonial entre sócios e sociedade, na medida em que eles somente poderão vir a auferir ganhos da sociedade mediante a efetiva existência de lucros. Ou seja, veda-se a confusão patrimonial entre sociedade e sócios, restringindo-se e delimitando-se as formas pelas quais os sócios podem receber parcelas do patrimônio da empresa (o que somente pode ocorrer, além das distribuições de dividendos ou juros sobre capital próprio, em decorrência da redução de capital ou liquidação da sociedade).”449
447 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. Editora Saraiva. São Paulo, 2003, p. 277. 448 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 72. 449 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 73.
94
Segundo Lamy Filho450, para a garantia dos credores esse “fundo perpétuo”
deve permanecer intangível, enquanto a sociedade continue operando e seus credores
não sejam pagos.
No entanto, o que ocorre é uma proteção relativa à manutenção do capital
social no valor inicialmente estipulado, uma vez que a intangibilidade apenas garante a
inalterabilidade da cifra contábil do capital social, enquanto o valor do patrimônio
líquido, por sua vez, pode tornar-se inferior a tal cifra. Logo, esse princípio não objetiva
“acautelar credores quanto às perdas decorrentes do normal andamento da atividade
social, mas sim impedir que, através da atribuição aos sócios de valores em prejuízo do
capital nominal, a garantia mínima que o capital social visa suprir reste prejudicada”451.
O princípio da intangibilidade destina-se a proteger credores sociais “que vêem nessa
cifra, em comparação com os lucros ou prejuízos acumulados, bem como com as
demais contas constantes do PL, a eventual robustez da sociedade”452.
A intangibilidade é contemplada, por exemplo, na previsão de prévia
concordância, tácita, dos credores para que haja a redução do capital social nas
sociedades anônimas, bem como nas limitadas por meio de publicação em meios de
comunicação e prazo para impugnação à redução.
O princípio da congruência diz respeito à correspondência entre o capital social
e a atividade explorada pela sociedade. O valor do capital social deve ser adequado ao
porte da empresa (tamanho, faturamento) e ao objeto social da sociedade. Contudo, o
direito brasileiro não possui regras que assegurem tal congruência. Inclusive no direito
comparado há poucos mecanismos que auxiliam a manutenção dessa correspondência
entre a cifra do capital social e as demandas decorrentes da realização do objeto social.
O que se observa, em alguns sistemas, são regras que objetivam a compatibilização
entre o capital social e o porte da empresa. O problema é estabelecer qual o valor
adequado para cada ramo de atividade. Desta forma, tais exigências serviriam para se
evitar os casos extremos de absoluto desrespeito ao princípio da congruência.453
Por não haver dispositivos que assegurem a concretização desse princípio,
poderia dizer-se que deixaria de possuir sua necessária eficácia. Gevaerd, no entanto,
segundo afirma Hübert, defende que o princípio da congruência “implica a adoção,
450 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 198. 451 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 73. 452 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 74. 453 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 75-76.
95
pelos fundadores ou incorporadores, de ações tendentes a manter a proporção entre
capital e dimensão da empresa”454. Para Gevaerd:
“O capital social constitui um conceito operativo essencial, que permite a comunicação e a solução de problemas concretos no âmbito da instituição empresarial societária. Sua funcionalidade, a propósito, está umbilicalmente ligada, entre outros aspectos:
(...)
(iii) à possibilidade (a) lógica, (b) física e (c) jurídica de se imputar capacidade de exercício à instituição societária, e (iv) à aferição da licitude e possibilidade jurídica da atividade institucional societária, enfocada sob o
prisma da suficiência dos meios patrimoniais incorporados vis-à-vis o atingimento do objeto social.”455
Por conta disso, o autor afirma que se faz necessário um constante
monitoramento quanto à suficiência do patrimônio incorporado. “A constatação de sua
insuficiência poderá redundar na consideração de que a sociedade é irregular, porquanto
civilmente incapaz de atuar, descaracterizando, em consequência o tipo societário”.456
Ivens Hübert457 não concorda com tal conclusão devido à insegurança jurídica que
poderia gerar, uma vez que não há regra expressa que determine a congruência entre
capital social e objeto social como condição de existência da sociedade.
Por fim, o princípio da realidade diz respeito à necessidade de os bens e
créditos prometidos a título de capital social corresponderem ao exato valor das ações
emitidas ou das quotas criadas como contraprestação. É por conta desse princípio que
há regras para a avaliação dos bens integralizados, verificando-se se correspondem ao
valor indicado no ato de subscrição, inclusive podendo haver a responsabilização do
subscritor, dos avaliadores e até dos sócios pelos prejuízos causados pela
superavaliação do bem.458
Inclusive, nas sociedades limitadas todos os sócios respondem solidariamente
pela exata estimação dos bens conferidos ao capital social (art. 1055, do Código Civil).
Ao passo que na Lei das S/As (art. 8º, § 6º), a responsabilidade solidária é estabelecida
454 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 77. 455 GEVAERD apud HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 77. 456 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 78. 457 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 78. 458 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 79.
96
apenas entre os subscritores de bens em condomínio, respondendo os avaliadores e
subscritores pelos danos que causarem por culpa ou dolo na avaliação dos bens.
No entendimento de Modesto Carvalhosa459, o Código Civil ao estabelecer a
responsabilidade solidária de todos os sócios pela integralização do capital social (o que
não ocorre nas sociedades anônimas) tem como fundamento o princípio da integridade
do capital social. O disposto no art. 1.055 vem reforçar a defesa de tal princípio, pois
quando se atribui um valor maior que o real ao bem que será integralizado, faltará para
a integridade do capital social “a diferença entre o valor do capital social, calculado com
base no valor real do bem, conferido e o valor nominal total do capital social”460.
Portanto, o princípio da realidade corrobora para a concretização do princípio da
integridade, que é, conforme anteriormente exposto, o princípio norteador de todos os
outros.
Salienta Ivens Hübert461 que esse princípio relaciona-se com o princípio da
intangibilidade, na medida em que de nada adianta o capital social ser intangível se o
real valor é muito abaixo do valor indicado na cifra. Deve haver uma correspondência
entre o capital nominal e o montante real correlato, as duas faces que compõem o capital
social.
O autor ressalta, ainda, a importância do princípio da realidade à garantia de
terceiros credores, uma vez que se procura assegurar a idoneidade dos bens
integralizados para que possam servir de forma adequada a essa garantia.
Essa realidade quanto à correspondência entre o valor efetivamente
integralizado e o capital social nominal deveria manter-se permanente durante toda a
vida da sociedade, garantindo uma relevância prática ao capital social. No entanto, o
ordenamento brasileiro não possui mecanismos que garantam essa permanência,
podendo o capital real afastar-se do valor constante em sua cifra no decurso dos
negócios.462
Lamy Filho463 enumera, ainda, três princípios: o princípio da unidade do
capital social, no qual toda sociedade deve ter apenas um capital social; o princípio da
fixidez do capital social, segundo o qual o capital social estipulado no estatuto é fixo, só
pode ser modificado com observância das normas legais, protegendo os credores sociais
459 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. Editora Saraiva. São Paulo, 2003, p. 15-16. 460 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. Editora Saraiva. São Paulo, 2003, p. 16. 461 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 79-80. 462 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 80. 463 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 197.
97
contra sua redução por deliberação dos acionistas; e o princípio da irrevogabilidade das
prestações para a constituição do capital das anônimas, constituindo o capital social,
obrigatoriamente, fundo perpétuo, que não pode ser devolvido aos sócios, total ou
parcialmente, antes de pagos todos os credores, mesmo na hipótese de liquidação da
sociedade.
4. Funções do capital social
Quanto às funções do capital social, assim quanto aos princípios, não há
convergência entre os autores. Há consenso apenas em relação às funções de garantia e
de produtividade. Ivens Hübert elenca como funções primordiais a função de avaliação
econômica da empresa, a função de medida da responsabilidade dos sócios, a função de
produtividade, a função de garantia e a função de distribuição do poder societário.464
A função de avaliação econômica da empresa estaria na possibilidade de o
capital social medir a solidez do empreendimento empresarial. “A partir do exame do
valor integralizado do capital social, pode-se verificar no patrimônio bruto da sociedade
quanto corresponde efetivamente ao capital próprio”465. Ao longo do desenvolvimento
da atividade, o sucesso ou o fracasso do empreendimento pode ser avaliado
comparando-se o patrimônio líquido com o capital social (patrimônio líquido superior
ao capital social indica obtenção de resultados positivos pela sociedade empresária).
No entanto, a realidade econômica e contábil é bem mais complexa, o que
relativiza essa função do capital social. Vale lembrar que os ativos que ingressam não
são decorrentes apenas dos aportes introduzidos pelos sócios no período de formação da
empresa; ao longo da atividade, pode haver também a capitalização de lucros. Desta
forma, “a fixidez da cifra do capital, não corrigida, desvaloriza-se em relação aos
demais ativos ingressados posteriormente”466, deixando o capital social de ser medida
da saúde econômica da sociedade empresária.
O capital social também contribui para a determinação da extensão da
responsabilidade dos sócios. Nas sociedades limitadas, segundo dispõe o art. 1.052 do
Código Civil, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas
todos respondem solidariamente pelo montante que por acaso não seja integralizado. Já
nas sociedades anônimas, a responsabilidade dos sócios ou acionistas é limitada ao
464 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 81-82. 465 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 82. 466 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 83.
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preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas (Lei 6.404/76, art. 1º), não
havendo, contudo, a responsabilidade solidária pela integralização do capital social.
A função de produtividade refere-se ao fato de o capital social corresponder ao
conjunto de valores trazidos pelos sócios à sociedade a fim de possibilitar o
desenvolvimento da atividade produtiva.
“Essa função de produção (ou de produtividade) que desempenha o capital social decorre da circunstância de o ativo correspondente à contrapartida da contribuição dos sócios poder ser amplamente utilizado na atividade produtiva da sociedade, visando à consecução de seu fim social”.467
Waldirio Bulgarelli468 também elenca a função de produtividade como uma das
três funções básicas do capital social (juntamente com a função de garantia e de
determinação da posição do sócio), e define-a como a adequação do capital social,
tendo este conteúdo tipicamente econômico, à natureza do objeto social. Alerta o autor
que, por conta dessa função, a Junta Comercial do Estado de São Paulo já chegou a
negar arquivamento a contrato social de sociedade cujo capital foi declarado
insignificante perante o objeto social.
Devido à ausência de instrumentos legais que garantam a concretização da
função de garantia aos credores, a função de produtividade tem ganhado relevo nos
estudos sobre o capital social. Assim informa Ivens Hübert citando Penteado:
“Na opinião de muitos autores, sobretudo os economistas, a significação primordial do capital social no âmbito da disciplina das companhias reside em sua vocação de, desde que devidamente estruturado, propiciar a geração de lucros segundo as metas e objetivos preestabelecidos; a sua serventia em termos de garantia para os credores, que os juristas põem em relevo ao analisá-lo, nada mais seria, segundo esta concepção, do que uma consequência da função de produtividade do capital”.469
A função de garantia do capital social revela-se “na obrigação imposta pela lei
de que o valor real dos bens e direitos que integram o patrimônio ativo da companhia
467 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 85. 468 BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 99. 469 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 85.
99
supere o total das dívidas e obrigações que o gravam, em quantia ao menos igual à que
é expressa pelo capital”470. Essa função consiste no fato de que, pelo menos
inicialmente, o capital social é a principal parcela de capital próprio da sociedade,
“constituindo assim um montante adicional de numerário ou bens que possa satisfazer
os débitos que o empresário venha a assumir perante credores”471. É uma garantia
mínima oferecida pela sociedade empresária aos seus credores. Desta forma, ressalta
Ivens Hübert472, essa função deve estar associada aos princípios da intangibilidade, da
realidade e da congruência, para que o capital real, que servirá de garantia, represente o
valor inscrito na cifra do capital social.
Acertadamente, o autor observa que o capital social não pode ser visto como a
única garantia aos credores sociais, mas como uma garantia suplementar, “atuando
como um fundo de reserva, sem contrapartida no passivo”473. A garantia resultará
“muito mais do bom desempenho da empresa, ou seja, de sua situação econômico-
financeira-patrimonial atual, do que propriamente do capital social”474.
Essa função de garantia relaciona-se com a separação patrimonial da sociedade
e com a responsabilidade limitada dos sócios. O capital social seria a parte do
patrimônio da sociedade desonerada de uma contrapartida social e adequada ao porte da
empresa. Hübert475 defende que tal tese seria pertinente se houvesse mecanismos que
mantivessem o capital real congruente ao capital nominal durante toda a existência da
sociedade.
Visando a essa função de garantia aos credores sociais é que certos
ordenamentos jurídicos possuem instrumentos que buscam assegurar a efetiva
adequação do capital nominal ao capital real tanto no momento da constituição quanto
ao longo do empreendimento empresarial, concretizando os dois vieses do princípio da
realidade. A legislação brasileira, como já dito, só possui regras quanto ao momento da
constituição, enfraquecendo essa função de garantia que deveria ser cumprida pelo
capital social.476
Hübert faz uma análise interessante entre a ausência de regras que efetivem tal
função e a imputação do risco inerente à atividade empresarial. Segundo o autor:
470 BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 99. 471 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 86. 472 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 86. 473 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 87. 474 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 91. 475 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 88. 476 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 90.
100
“Ao deixar de estabelecer regras que garantam que o capital seja não apenas uma cifra formal, mas também um valor real e congruente com o porte da atividade econômica da empresa, essa omissão acarreta o aumento do risco de terceiros credores. E quanto a eles, é preciso considerar que o risco não é transferido de igual modo a todos. Os chamados credores fortes (fornecedores, instituições financeiras ou outros financiadores) têm plenas condições de estabelecer suas próprias garantias contratuais, muito mais eficazes do que o capital social, na medida em que repercutem diretamente sobre o patrimônio da sociedade ou sobre o de outras pessoas físicas ou jurídicas vinculadas. Já os chamados credores fracos (pequenos fornecedores, trabalhadores, consumidores etc.) não possuem essa capacidade reivindicativa, pelo que são os mais afetados pela transferência de risco decorrente da ausência de formas de efetivação da função de garantia”.477
Reduzindo os riscos dos credores, a efetivação da função de garantia do capital
social conduziria também à diminuição do custo da generalidade das transações
comerciais. Os pequenos credores poderiam reduzir os preços, e os grandes credores
poderiam subtrair cláusulas de garantia na celebração de seus contratos.478
No sentido de ratificar a função de garantia aos credores do capital social,
Bulgarelli entende o capital social como limite da variação do patrimônio da sociedade
empresária para menor e acrescenta:
“Nesse sentido, é oportuno lembrar a lição de A. Brunetti, ao pôr em relevo o
aspecto contábil do conceito do capital social, acentuando que, não se constituindo por um núcleo especial de bens, mas expressando uma partida contábil, não pode representar para os credores sociais uma garantia propriamente dita. A garantia para os credores é somente indireta porque, colocando-se no balanço o capital, como um débito da sociedade, impedirá que se atribuam aos acionistas lucros sem ter em conta aquela partida do passivo; seria, pois, uma fictio juris concebida para a salvaguarda dos credores sociais”.479
O capital social também tem a função de distribuir o poder societário e
delimitar os direitos específicos de cada sócio. O poder de cada sócio corresponde ao
montante de capital que cada um integralizou ou prometeu integralizar na sociedade.
Devido à atual crise enfrentada pelas funções de produtividade e de garantia por conta
da ausência de instrumentos legais que as efetivem, a função de distribuição do poder
societário apresenta-se como justificativa à existência do capital social. Tal função
477 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 91. 478 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 92. 479 BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 96.
101
ganha relevância principalmente nas sociedades limitadas, nas quais há maior relação
entre o capital integralizado pelo sócio e o seu poder de decisão na sociedade
empresária. Também nas companhias essa função tem destaque, mas deve-se lembrar
que nas sociedades anônimas para se definir o controle e a distribuição de poderes há
diversos mecanismos além da participação no capital social.480
Há, ainda, outra função mencionada por Carvalhosa481 (considerada por ele a
nova função do capital social), a função do capital social como índice de
endividamento. Considerando que o capital social, atualmente, é um parâmetro entre o
valor dos recursos próprios da sociedade e os empréstimos empregados na atividade
empresarial, ele passa a configurar “o montante de que a companhia deve estar dotada
para poder alcançar aquele equilíbrio econômico-financeiro considerado imprescindível
para a realização dos seus objetivos empresariais”. Afirma também o autor:
“Essa nova função do capital, que interessa não só aos credores como aos próprios acionistas, serve para evidenciar se o capital próprio é sensivelmente inferior ao capital de terceiros (capital de crédito) devido pela companhia. Se houver esse desequilíbrio, ter-se-á um indício de perda de elasticidade operacional da companhia, representando um dado importante no juízo de conveniência econômica de contratar com ela ou de subscrever suas ações e demais valores de sua emissão”.482
5. O fenômeno da subcapitalização
O fenômeno da subcapitalização é uma problemática constante nas discussões
entorno do capital social. Antes de explorar seus efeitos e consequências no âmbito da
responsabilização dos sócios, faz-se necessário distinguir as espécies de
subcapitalização.
Subcapitalização formal é quando os meios necessários ao exercício da
atividade empresarial são resultantes de financiamentos de terceiros (sócios ou não) e
não da integralização de valores a título de capital social pelos sócios. Há a deturpação
da função do capital social, principalmente da função de garantia.483
480 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 92-94. 481 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 199. 482 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 199. 483 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 102.
102
O problema dessa subcapitalização é em caso de falência da sociedade. De um
lado, não há regras no direito brasileiro que proíbam os sócios de fazer empréstimos à
sociedade empresária ao invés de capitalizá-la; eles são livres para decidir quanto à
estrutura patrimonial da sociedade. Por outro lado, há o direito dos credores sociais.
Havendo o processo de falência, se os recursos provenientes de empréstimos dos sócios
tivessem constituído entradas ao capital social, esse valor não poderia ser exigido da
sociedade antes de satisfeito o passivo da sociedade, satisfazendo a função de
garantia.484
A subcapitalização material é quando a sociedade empresária não possui meios
suficientes para a realização do seu empreendimento, não havendo qualquer tipo de
financiamento por parte dos sócios.485
Essa hipótese de subcapitalização pode levar à insolvência da sociedade e,
consequentemente, à sua falência.
A subcapitalização pode ser originária ou superveniente à constituição da
sociedade. No primeiro caso, pode ser formal, quando o capital nominal é muito aquém
dos recursos necessários para realização do objeto social; ou material, quando há
supervalorização dos bens integralizados, levando a uma incongruência entre o capital
nominal e o capital social real. No segundo caso, há um aumento do empreendimento,
do objeto social da empresa, mas sem o correspondente aumento do capital social,
caracterizando-se uma subcapitalização formal; e pode haver a subcapitalização
material quando ocorrem perdas decorrentes do normal desenvolvimento da
atividade.486
Ivens Hübert487 sintetiza e esquematiza esses tipos de subcapitalização da
seguinte forma:
Subcapitalização
formal Subcapitalização material
Subcapitalização originária
Subscrição de capital social baixo e elevado endividamento, de modo que o capital social é incongruente com a dimensão da empresa.
Dentre outras possibilidades, superavaliação de bens ou direitos integralizados pelos sócios como capital social.
484 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 101. 485 DOMINGUES apud HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 103. 486 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 104. 487 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 104.
103
Subcapitalização superveniente
Crescimento da dimensão da empresa sem o correspondente aumento do capital social.
Perdas graves, que ocasionem a desconexão entre a cifra e o capital real correspondente.
O problema da subcapitalização, segundo Hübert488, se faz presente quando há
a insolvência da sociedade, comprometendo a continuidade da empresa e a garantia dos
credores.
O fenômeno da subcapitalização tem repercussões tributárias e societárias. No
âmbito tributário, a subcapitalização causa prejuízo ao Fisco, enquanto no direito
societário os prejudicados são os credores sociais, em caso de a sociedade tornar-se
insolvente.489 Embora haja essas duas vertentes, o presente trabalho concentrar-se-á
apenas no direito societário.
No direito societário, o fenômeno diz respeito à “desproporção entre capital
social, nominal ou real, e dimensão da atividade, independentemente de o capital de
terceiros provir ou não dos sócios (tanto na subcapitalização material, quanto na
formal)”490. A solução para tal problema, segundo Hübert, seria no seguinte sentido:
“garantir um quantum razoável de capital social, conforme a natureza da atividade. O capital social poderá, assim, ser legalmente fixado em determinado patamar mínimo (subcapitalização formal), ou então, mantido em função do patrimônio líquido, evitando uma situação de passivo descoberto (subcapitalização material)”.491
Primeiramente, vale lembrar que, no ordenamento pátrio, não há regras que
fixem um parâmetro para o estabelecimento de um quantum razoável de capital social
que atenda a atividade que a sociedade se propõe a desenvolver.
O que se questiona sobre o fenômeno da subcapitalização é se deve tratá-la
como fraude ou abuso ou se a opção de subscrever o valor de capital social aquém do
necessário à atividade empresarial está dentro da liberdade de que gozam os
488 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 105. 489 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 110. 490 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 110. 491 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 110.
104
empresários para a realização de suas atividades. Contrapõem-se aí dois interesses,
conforme expõe Hübert:
“Por um lado, temos que, com base no princípio da liberdade de empresa, os participantes de uma sociedade empresária são livres para decidir sobre o montante o qual estão dispostos a investir a título de capital social. Por outro, há que se considerar que uma sociedade com capital social baixo terá potencialmente menores condições de satisfazer suas obrigações, em caso de insolvência, prejudicando, dessa forma, seus credores”.492
No direito comparado, os ordenamentos jurídicos ao tratarem dessas questões
variam conforme adotem posições mais liberais ou mais intervencionistas quanto à
liberdade empresarial.493
Tanto em certos Estados norte-americanos como em alguns países europeus, a
fixação de um capital social mínimo para determinados tipos de atividade tem sido um
mecanismo para “eliminar o custo inerente ao risco empresarial ocasionado pela
subcapitalização da sociedade”494. Nos EUA, tendo a lei estabelecido capitais mínimos
para a formação da sociedade anônima, a obediência a essas normas exoneraria os
acionistas da responsabilidade, mas com ressalvas, conforme explica Fábio Ulhoa:
“considera-se que os credores negociais não têm direito de reclamar da subcapitalização da sociedade devedora porque a tomaram por suficientemente capitalizada ao fecharem o contrato. De qualquer forma, podiam não contratar. Contudo, em relação aos credores não negociais, como os titulares de direito de indenização por ato ilícito, tem-se admitido a responsabilização dos acionistas quando demonstrada a insuficiência do capital social”.495
Nesses ordenamentos, tem-se estipulado valores mínimos de capital para
sociedades anônimas e para outros tipos societários; para os últimos um montante
geralmente inferior àquele estabelecido para as SAs. Por exemplo, na Alemanha esse
montante para as sociedades anônimas é de EUR 50.000,00 e para as sociedades por
quotas é de EUR 25.000,00. Em Portugal, o valor para as sociedades anônimas também
492 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 111. 493 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 111. 494 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 114. 495 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 199.
105
é de EUR 50.000,00.496 E, até março de 2011, o valor para as sociedades por quotas era
de EUR 5.000,00. Importante lembrar que, desde 1976, a 2ª Diretiva do Conselho da
Comunidade Européia exige um montante mínimo de capital social para as sociedades
anônimas.497
Quando da criação da Lei 6.404/76, foi discutido sobre a fixação de um capital
social mínimo para as sociedades anônimas, mas o objetivo era restringir a utilização
desse tipo societário a empreendimentos de grande porte, o que não prevaleceu, tal qual
expresso na Exposição de Motivos do Projeto que a originou:
“O projeto não exige capital mínimo na constituição da companhia, porque não pretende reservar o modelo para as grandes empresas. Entende que, embora muitas das pequenas companhias existentes no País pudessem ser organizadas como sociedades por quotas de responsabilidade limitada, não há interesse em limitar arbitrariamente a utilização de forma de companhia, que oferece maior proteção ao crédito devido à publicidade dos atos societários e das demonstrações financeiras”.
Contudo, o debate sobre o estabelecimento de capital mínimo prevalece, a fim
de ampliar a proteção dos credores sociais, por parte de alguns autores. Outros criticam
tal posicionamento ou por defenderem que o patrimônio é que serve de garantia aos
credores, e não o capital social, ou por defenderem a liberdade empresarial.498
Faz-se necessário ressaltar a dificuldade em se estabelecer tal valor mínimo.
Nesse sentido alerta Ivens Hübert:
“O mero estabelecimento de um valor para cada tipo societário, como se faz em outros ordenamentos jurídicos, não deixa de ser artificial quando se tem em conta a realidade específica de cada segmento. Seria preferível, portanto, que os capitais mínimos fossem definidos não somente em função do tipo societário, mas também tendo em vista o objeto social da sociedade. Todavia, essa orientação, embora mais adequada à realidade das diferenças entre cada empresa, redundaria inevitavelmente em casuísmo de difícil solução e intrincadas consequências práticas”.499
496 Até a promulgação do Decreto-lei nº 33 de 7 março de 2011 o valor para as sociedades por quotas era de EUR 5.000,00. No entanto, tal disposição foi alterada, pondo-se fim à obrigatoriedade de um capital social mínimo, objetivando a simplificação do processo de constituição das sociedades por quotas e das sociedades unipessoais por quotas e a promoção do empreendedorismo. 497 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 114-115. 498 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 115-116. 499 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 117.
106
Segundo Fábio Ulhoa500, a questão da subcapitalização envolve o direito dos
credores da sociedade e a responsabilidade dos acionistas pelas obrigações sociais.
Se no ato da constituição, os fundadores calculam mal o capital social e
aportam recursos inferiores aos necessários, esse erro de cálculo não gera nenhuma
responsabilidade dos acionistas. Se a necessidade de recursos for suprida por terceiros,
não acionistas, mediante financiamento bancário, mútuo ou autofinanciamento, também
não se fala em eventual responsabilidade dos sócios, ainda que na hipótese de falência
da sociedade. O problema é quando a sociedade anônima necessita de recursos para
absorver perdas ou ampliar sua atividade e os sócios, em vez de capitalizar, emprestam
dinheiro para a sociedade ou subscrevem instrumentos de autofinanciamento. Nessa
situação de subcapitalização é cabível pesquisar a responsabilidade do acionista, em
especial do controlador, pela obrigações sociais, ou seja, quando os recursos
provenientes do capital social são insuficientes, ou a companhia os perde, questiona-se
se seria lícito ao sócio prestar os recursos faltantes, na condição de credor (mutuante ou
debenturista), ou se existiria algo como um dever de capitalizar a sociedade. A questão
só ganha relevo quando a sociedade tem sua falência decretada, apesar dos recursos
prestados. Havendo isso, os acionistas que financiaram (não capitalizaram) concorrem
com os demais credores pelo crédito relacionado a esse aporte. Indaga-se se não
deveriam ser responsabilizados pela subcapitalização da sociedade.501
No Brasil, o acionista não responde pela subcapitalização da companhia. A
responsabilização dos sócios é limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou
adquiridas (art. 1º da LSA), e a subcapitalização não é exceção à regra, conforme o
entendimento de Fábio Ulhoa502. Ressalta o autor que não é abuso do poder de controle
a celebração de mútuo entre controlador e sociedade nem a subscrição por ele de
debêntures, se em condições equitativas. No direito brasileiro, nada impede:
“que o acionista preste à companhia subcapitalizada os recursos de que ela necessita, para sobrevivência ou crescimento, mediante instrumento diverso da integralização de aumento do capital social. O acionista não tem, em outros termos, dever de capitalizar a sociedade anônima, nem mesmo na hipótese de o patrimônio social ser insuficiente ao atendimento de
indenizações por atos ilícitos”. 503
500 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198. 501 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198-199. 502 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 199-200. 503 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 199-200.
107
A Lei de Falências de 2005 (art. 83, VIII, b) foi que introduziu pela primeira
vez no direito brasileiro o desestímulo à subcapitalização, classificando como
subquirografário os créditos dos sócios perante a sociedade falida. A lei subordinou os
créditos dos sócios aos dos demais credores, independentemente da espécie ou da
existência de cláusulas de garantia nos contratos, ou seja, “eventuais benefícios que os
sócios pudessem usufruir sobre outros créditos na falência, em função de aportarem
valores a título de empréstimos ao invés da efetiva capitalização, deixam de existir”504.
Ivens Hubert505, pertinentemente, indaga se, diante da ausência de instrumentos
que evitem a subcapitalização no direito brasileiro, seria aplicável a regra de
desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, Código Civil) nos casos em que o
capital social é completamente desproporcional ao volume da atividade empresarial, ou
seja, em casos extremos.
O fundamento dessa hipótese de desconsideração, segundo o autor, seria o
abuso por parte dos sócios, se evidenciado o intuito deles de “beneficiar-se do
patrimônio social, deixando a sociedade propositalmente com capital próprio reduzido,
e cercando-se, por exemplo, de garantias reais para execução dos contratos de mútuo
celebrados entre eles e a sociedade”506. Desta forma, a aplicação da desconsideração da
personalidade jurídica caberia apenas para os casos de manifesto abuso e desvio de
finalidade da personalidade jurídica da empresa pelos sócios, devendo ser provado o
manifesto interesse deles “em não conferir à sociedade o capital social adequado a sua
atividade, preferindo substituí-lo por formas mais seguras de investimentos”507,
evidenciando-se o uso fraudulento da personalidade jurídica.
No entendimento de Ivens Hübert508, poderia o juiz, nesses casos,
desconsiderar as garantias pactuadas em contratos de mútuo entre a sociedade e os seus
sócios, priorizando o pagamento dos demais credores, ou, ainda, buscar “no patrimônio
dos sócios os valores necessários para garantia dos credores, até o valor que viesse a ser
considerado, pelo Juiz competente, como minimamente adequado em relação ao porte
da empresa”.
Seguindo esse mesmo caminho, Joaquim Antônio de Vizeu Penal Santos,
desembargador do TJ/RJ, também coloca a subcapitalização como uma das hipóteses de
504 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 120. 505 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 117. 506 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 118. 507 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 119. 508 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 118-119.
108
desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade, limitando-se àqueles
casos no qual:
“o capital é manifestamente insuficiente para o exercício da atividade empresarial, observada a tendência para configurar o abuso da personificação jurídica e do crédito e constituição ou fundamento da companhia com volume de capital próprio evidentemente insuficiente para os seus negócios e com grau de endividamento temerário”.509
O fundamento da exclusão da limitação da responsabilidade dos acionistas
pelas dívidas da sociedade, segundo o desembargador, está no simples fato de que,
estando defasada no seu capital (insuficiência do capital próprio), a sociedade não tem
mais condições de desenvolver a sua normal atividade empresarial.
Fábio Comparato, em sua obra O Poder de Controle na Sociedade Anônima,
diz que a jurisprudência americana, nesses casos de capitalização insuficiente,
“não tem admitido que o controlador, no caso de insolvabilidade da companhia, oponha o princípio da separação patrimonial para evitar a execução sobre seus bens, pois um dos deveres do controlador é o de prover a sociedade, adequadamente, de capital” 510.
Para Joaquim Penalva Santos,
“a responsabilidade do sócio que dotou a sua sociedade de capital próprio insuficiente surgirá somente quando os sócios deveriam ter reconhecido, se aplicada a diligência necessária aos negócios, que a sociedade estava descapitalizada e que portanto havia perigo de prejuízos para os credores”511. Percebe-se aí a necessidade de se verificar se os sócios cumpriram com seu dever de diligência.
No direito comparado encontramos diversas soluções ao problema da
subcapitalização formal. No direito alemão, por exemplo, em caso de falência, o
pagamento de empréstimos de sócios à sociedade só poderá ser efetuado depois de
satisfeito todo o passivo social. Esses empréstimos realizados em um momento em que
os sócios deveriam capitalizar são considerados como se capital fossem, não tendo
prioridade.512
509 SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 74, 2001. 510 SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 74, 2001. 511 SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 75, 2001. 512 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 121.
109
Quanto à subcapitalização material, alguns ordenamentos, como o alemão,
admitem o afastamento da responsabilidade limitada dos sócios quando ocorre tal
fenômeno de maneira facilmente perceptível. Outras legislações, como a italiana e a
portuguesa, admitem a decretação judicial de dissolução da sociedade, por
impossibilidade de cumprimento do objeto social, o que a rigor também está previsto no
art. 1.034, II do Código Civil brasileiro e no art. 206, II, “b” da Lei das SAs. Outra
solução é o estabelecimento da necessidade de congruência entre o capital social e o
porte da sociedade empresária (o problema é definir o que seria uma capitalização
adequada ao empreendimento realizado). Por fim, há a solução disciplinada no direito
belga que exige o arquivamento no registro de comércio, para avaliação a qualquer
tempo, de um plano financeiro e justificativo que apresente os critérios que levaram à
fixação daquele capital social.513
Tais soluções, no entanto, são adequadas apenas para a subcapitalização
originária. Para a subcapitalização material superveniente, a 2ª Diretiva Comunitária, de
13 de dezembro de 1976, objetivando proteger os credores, os sócios e a empresa em si,
sugeriu a adoção, pelos Estados membros, de dispositivos legais que exigissem
providências, por parte da assembleia geral da sociedade, quando constatada perda
grave de seu capital social (patrimônio líquido), tendo por finalidade tornar pública a
má situação financeira da sociedade.514
O direito português foi um pouco além e determinou, ainda, que, caso o
patrimônio líquido caia à metade do capital social, os sócios, reunidos em assembléia
geral, deverão tomar providências como, por exemplo, a dissolução da sociedade, a
redução do capital social, ou a subscrição de capital (para o fortalecimento da
empresa).515
Em relação a essa medida, Ivens Hübert assim se posiciona:
“Trata-se de medida que, além de oferecer ampla liberdade à atividade empresarial, importante para o seu estímulo, i) força a sociedade a adequar-se à realidade de suas perdas, ii) permite a dissolução, antes que as perdas sejam tamanhas que não se possa mais arcar com todo o passivo, ou iii) impulsiona novos investimentos por parte dos acionistas, se eles entenderem que o empreendimento é viável. (...) Por tratar-se de uma preocupação de ordem econômico-financeira, interessa nesse caso criar uma estrutura que permita aos credores publicidade quanto às informações sobre a situação financeira
513 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 122-123. 514 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 123. 515 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 124.
110
da sociedade, de modo a preservar a sociedade e suas relações negociais. E, nesse sentido, o dispositivo legal criado pelo direito comunitário europeu funciona como uma espécie de ‘alarme’, que obrigará os sócios a atuarem de modo a deixar claro para terceiros a situação patrimonial da sociedade e as providências aprovadas por eles para resolvê-la. Como instrumento de contenção para se evitar um estado de insolvência irreversível, trata-se de interessante solução legislativa”.516
6. Conclusão
A fim de se fazer uma ampla análise sobre a disciplina do capital social, ele
deve ser visto segundo seu caráter bivalente, na relação entre capital nominal – a cifra
contábil, formal e abstrata - e o capital real – o fundo patrimonial correspondente a
todos os bens, dinheiro e créditos integralizados.
O capital social, por si só, não constitui a garantia aos credores sociais. Na
verdade, ele é uma das garantias dos credores, na medida em que é a medida, o limite, o
valor mínimo a que pode chegar o patrimônio social. E, para que possa cumprir
plenamente essa sua função tão questionada pela doutrina, faz-se necessário a
estipulação de instrumentos legais que garantam a efetivação de seus princípios, dentre
eles, o princípio da integridade, da intangibilidade, da congruência e da realidade.
No direito societário brasileiro, há mecanismos que procuram assegurar a
devida concordância entre os bens, dinheiro e créditos prometidos à título de capital
social e o exato valor das ações emitidas ou quotas criadas como contraprestação, como
a avaliação dos bens a serem integralizados. As rigorosas regras estabelecidas para
aumento e diminuição do capital social nominal procuram garantir a intangibilidade da
cifra contábil.
No entanto, com o normal andamento da atividade empresarial, o montante
correspondente ao capital real pode se afastar do valor constante na cifra, ferindo o
princípio da realidade e da integridade. Assim como o capital social estipulado
originariamente pode não corresponder às necessidades da atividade explorada pela
sociedade, não sendo suficiente à realização de seu objeto social, violando o princípio
da congruência. Diante dessas situações, não havendo instrumentos que as regulem, tal
qual se mostra no ordenamento brasileiro, a função do capital social de garantia aos
credores fica abalada.
516 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 124-125.
111
Quanto à congruência entre o capital social e a atividade explorada, vê-se no
direito comparado a determinação de um capital mínimo para a constituição da empresa
tendo em vista seu porte. O problema é estabelecer o valor adequado a cada ramo de
atividade.
Verificada a insuficiência de capital social diante do volume de obrigações
assumidas pela sociedade empresária, tem-se o fenômeno da subcapitalização. No
direito societário brasileiro, também não há normas que regulem tal situação e que
responsabilizem os sócios e/ou controladores da empresa pela inadequada capitalização.
Há apenas um certo desestímulo à subcapitalização na Lei de Falências ao classificar
como subquirografário os créditos dos sócios perante a sociedade falida, ou seja, os
créditos dos sócios que financiaram em vez de capitalizar a sociedade são os últimos da
fila para quitação em caso de falência da sociedade.
Diante da omissão legislativa, mostra-se como alternativa para a
responsabilização dos sócios a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nos
casos em que a insuficiência de capital é flagrante, configurando abuso e desvio de
finalidade da personalidade jurídica da sociedade. Quando o sócio, tendo o dever de agir
com diligência, não o fez, permitindo a subcapitalização da empresa.
Um mecanismo interessantíssimo que se admite no direito comparado e que
poderia ser implementado no ordenamento brasileiro, evitando-se, assim, os problemas
decorrente da subcapitalização, é a exigência de que as assembleias gerais das
sociedades tomem providências quando constatada perda grave de seu capital social,
tornando-se pública a má situação financeira da empresa.
Em suma, desde que haja instrumentos legais que garantam o respeito aos
princípios norteadores da disciplina jurídica do capital social, esse terá capacidade de
exercer suas funções, entre elas a de garantia aos credores sociais.
7. Referências
BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2011. CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. São Paulo: Saraiva, 2003.
112
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CORRÊA-LIMA, Osmar Brecha. Sociedade Anônima. 3ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009. HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009. NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. In: Revista Forense, v. 98, n. 363, p. 161-177, set./out. 2002. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. V. 2. 28ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 74-77, 2001.
113
IV.
AS INOVAÇÕES DO NOVO CÓDIGO CIVIL REFERENTES ÀS SOCIEDADES LIMITADAS
Victor Oliveira Fernandes
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Reformulações Gerais. 2.1. A nova natureza jurídica. 2.2.
A responsabilidade limitada solidária. 2.3. A subdivisão das sociedades limitadas. 2.3.2.
Consequências da subdivisão. 2.4. A regência supletiva e o contrato social. 2.5. Dos
problemas decorrentes do artigo 1.053. 2.6. Dissolução parcial e retirada imotivada. 3.
Das quotas sociais. 3.1. A livre cessão de quotas. 3.2. A liquidação a pedido de
credores. 4. Tendências da administração. 4.1. A nova estrutura da administração. 4.2.
Responsabilidade de administradores. 4.3. As novas regras de controle. 4.4. O Conselho
Fiscal. 5. Assembleias e quoruns de deliberação. 5.1. As assembléias e suas
formalidades. 5.2. Novo quoruns deliberativos. 5.3. Críticas. 5.4. A legalidade do
acordo de quotistas. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. Introdução
Antes da vigência do Código Civil de 2002, as sociedades limitadas eram
regidas pelo Decreto nº 3.708 de 1919, pelo Código Comercial de 1850 (nas matérias de
constituição e dissolução) e pela Lei das Sociedades por Ações (nas omissões do
contrato social). Entretanto, a principal fonte legislativa, o Decreto de 1919, sofreu
duras críticas devido ao seu caráter atécnico517 e lacônico. De fato, o diploma legal
dispunha de somente 18 artigos, que traçavam basicamente “regras de formação do
nome empresarial, proibição de sócio de indústria, responsabilidade dos sócios pelas
obrigações sociais, responsabilidade dos sócios por deliberações contrárias à lei ou ao
contrato social e algumas outras de eficácia nenhuma518”. Por derradeiro, a principal
517“A dificuldade de determinar a natureza jurídica das sociedades limitadas] reside na disparidade e falta de normas jurídicas uniformes de vários dos seus artigos, não existindo na lei continuidade de princípios que se liguem logicamente, dando unidade ao todo que é o instituto. [...] E, acima de tudo, há uma falta absurda de detalhes que torna cansativo qualquer trabalho no sentido de conceituar esse tipo social.”(MARTINS, Fran. Sociedades por Quotas no direito estrangeiro e brasileiro – volume 1 – Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 317). 518 COELHO, Fabio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. São Paulo: 2003. p. 18.
114
omissão do decreto estava relacionada à não exigência de capital mínimo para a
formação das limitadas.
No início do século XIX, vários países519 já haviam definido um limite para a
constituição do capital destas sociedades, sob o fundamento de que não é qualquer
quantia que preenche suas finalidades econômicas de tais520. O Brasil, entretanto,
deixou esta e várias outras exigências consagradas no direito internacional ao completo
arbítrio dos sócios. Assim, o estilo lacônico da lei de 1919 permitiu que a regência legal
das sociedades limitadas se desse predominantemente por normas contratuais521. Por
isso, não é sem razão que se afirma que “a hipertrofia quantitativa das sociedades por
quotas de responsabilidade limitada no Brasil resultou muito mais das distorções que o
modelo permitiu, do que, propriamente, da adequação de suas normas à realidade
vigente.522”
Após viger por 80 anos sem passar por modificação alguma, o Decreto nº
3.708 foi completamente revogado pelo novo Código Civil. Este Código disciplinou o
tema das limitadas no Livro II, Título II, Subtítulo II, Capítulo IV (arts. 1.052 a 1.087).
Nessa transição, o Código de 2002, ao legislar sobre o tema, viu-se diante de
grandes desafios, quais sejam: a) proteger os interesses sociais e os direitos dos sócios
minoritários das limitadas sem burocratizar o funcionamento destas; b) conter os abusos
econômicos ensejados pela legislação anterior sem desestimular o investimento; c)
adotar mecanismos de controle e transparência na administração, de modo a resguardar
interesses internos e externos à sociedade; e d) assegurar que a atividade das limitadas
seja condizente com os princípios da nova ordem constitucional, valorizando a boa-fé, a
dignidade da pessoa humana, a função social da empresa e a livre iniciativa.
O objetivo do presente artigo, mais do que elencar exaustivamente as
inovações trazidas pelo novo código, é avaliar em que medida esses objetivos foram
alcançados e até que ponto a nova legislação aplicável satisfez as expectativas e supriu
as necessidades latentes no antigo modelo. Também serão avaliados quais os novos
problemas e imprecisões trazidos e quais soluções estarão aptas a contornar esses
eventuais obstáculos criados pela nova legislação.
519 Nesse sentido estão as leis alemã, portuguesa, suíça, austríaca, francesa, cubana, a lei argentina, uruguaia, luxemburguesa, mexicana, belga, suíça, boliviana, paraguaia e o Código Civil italiano. 520 Destaca Fran Martins, que “algumas leis chegam mesmo a estabelecer um máximo para o capital, argumentando a doutrina que, para suas finalidades, não deve a sociedade possuir, igualmente, capital muito elevado, como as anônimas.” (MARTINS, op. cit., 1960. p. 295). 521 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 1º Volume. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 461 522CAMPOS FILHO, Moacyr. Sociedade de Responsabilidade Limitada. In, BERALDO, Leonardo de Faria. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 46
115
Feitas estas considerações, passemos à análise das inovações da matéria.
2. Reformulações Gerais
O Código reformou algumas diretrizes gerais das limitadas. Nesse terreno, as
inovações mais importantes gravitam em torno da nova natureza jurídica do modelo e
da nova responsabilidade dos sócios na formação do capital social.
2.1. A nova natureza jurídica
Na vigência do diploma legal de 1919, havia divergência quanto à natureza
jurídica das então chamadas “sociedades por quotas de responsabilidade” limitada. A
maioria dos autores, seguindo os ensinamentos de Villemor do Amaral, considerava que
as sociedades limitadas poderiam ser civis ou comerciais, opção que dependeria
exclusivamente do objeto social indicado523. Com a vigência do novo Código, a
questão perde complexidade.
Atualmente, admite-se que as sociedades limitadas possam ser empresárias ou
simples: as primeiras desenvolvem atividades econômicas de produção ou circulação de
bens ou serviços; já as últimas exploram tais atividades sem empresarialidade524. As
empresárias são registradas na Junta Comercial, enquanto que as simples são firmadas
no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Também há de se ressaltar que, na sistemática
atual, a natureza simples ou empresária é determinada não só pelo objetivo social, mas
também pela forma de organização da sociedade525.
2.2. A responsabilidade limitada solidária
A segunda inovação geral trata do dever central dos sócios: a integralização do
capital social. O artigo 1.052 do Código Civil de 2002 reitera esta incumbência,
acrescentando, ainda, a previsão de solidariedade na integralização do capital social.
Assim, enquanto no regime anterior os sócios só respondiam pelo valor individual
523 Para Rubens Requião, porém: “Não havia como atribuir exclusividade à natureza mercantil da sociedade por quotas, mesmo quando seu objeto fosse civil. Nenhum dispositivo legal autorizava tão grave entendimento, máxime quando se atribuía a essa sociedade a classificação de sociedade intuitu personae.” (REQUIÃO, op. cit., 2003. p.487) 524COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 31. 525 De um modo geral, essa mudança na natureza jurídica é reflexo da adoção pelo novo código da Teoria da Empresa, em detrimento da Teoria dos Atos de Comércio, seguida pelo regime anterior.
116
integralizado, a nova redação faz com que cada sócio responda in totum et totaliter pelo
cumprimento da prestação, como se cada um fosse o único devedor. Assegura-se a sub-
rogação contra o sócio remisso526.
Nesta matéria, omissão relevante é o fato de o novo diploma não ter concebido
nenhum mecanismo de controle real sobre o capital das limitadas. A simples consulta ao
contrato destas não é capaz de provar a real integralização do capital social527. Assim,
eventuais fraudes só poderão ser comprovadas pela prova documental de falsidade da
cláusula528.
2.3. A Subdivisão das Sociedades Limitadas
O artigo 1.053 foi sem dúvida o que operou maiores mudanças no regime das
limitadas. Este definiu que nas omissões do capítulo do Código Civil que trata das
sociedades limitadas, estas serão reguladas pelas normas das sociedades simples ou pela
Lei das Sociedades por Ações (LSA), ficando a critério dos sócios a escolha do regime
supletivo529. A regência supletiva da LSA, porém, deve ser prevista expressamente no
contrato social (parágrafo único do art. 1.053), enquanto que a opção pelas normas das
sociedades simples será assim presumida na omissão do contrato social530. Essa
inovação acabou por criar dois subtipos de sociedades limitadas.
Segundo Fábio Ulhôa Coelho, no regime do novo código, essas sociedades se
dividem em limitadas de vínculo instável (subtipo I) e limitadas de vínculo estável
(subtipo II). A nomenclatura adotada por Coelho se baseia na principal consequência
que a dupla supletividade traz: o distinto direito de retirada em cada subtipo societário.
526 Segundo Fabio Ulhoa Coelho, essa solidariedade seria o aspecto diferencial, em termos econômicos, entre o limite da
responsabilidade dos sócios na sociedade limitada e na anônima. Enquanto que nesta última, “cada acionista responde no limite da sua parte no capital social por ele subscrita e não integralizada, na limitada os sócios são responsáveis pelo total do capital social subscrito e não integralizado” (COELHO, op. cit., 2003. p. 7).
527 A Lei das Sociedades por Ações, por outro lado, dispõe no seu artigo 95, inciso III e no artigo 98, parágrafo 2º que devem ser exibidos à Junta Comercial ou ao tabelião todos os comprovantes de depósito em nome da sociedade. Assim, a simples consulta ao contrato já é capaz de provar a integralização, o que dificulta a subcapitalização.
528 Na maioria das vezes o mecanismo utilizado para demonstrar a fraude é a perícia nos lançamentos das contas de depósitos bancários feitos em nome da sociedade.
529 Fabio Ulhoa Coelho assevera que, mesmo que o contrato social eleja a LSA como fonte de legislação supletiva ao código, “não se aplicam às sociedades limitadas as disposições da Lei das Anônimas nos aspectos sobre os quais os sócios não podem contratar” (COELHO, op. cit., 2003. p. 19). Consideramos que tal exigência de contratualidade já é de fato implícita e que seria pleonástico a destacarmos. De fato, a única consequência prática dessa exigência é que a Lei das Anônimas não pode incidir em matérias pertinentes à constituição ou dissolução total das sociedades limitadas.
530 Deve-se ressaltar que além da eleição supletiva, a Lei das Sociedades por Ações também poderá ser aplicada nos casos de omissão do Código Civil, com base na analogia, fundamentada no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.
117
2.3.2 Consequências da Subdivisão
A doutrina aponta também outras três diferenças importantes derivadas da
eleição supletiva: a) o desempate nas deliberações dos sócios; b) a destinação dos
resultados da empresa e c) a vinculação a atos divergentes do objeto social.
a) Quanto ao critério de desempate nas deliberações.
O novo Código Civil, no capítulo referente às sociedades limitadas, silenciou
sobre o exercício do direito de voto dos sócios. Por isso, esta matéria também fica
sujeita à regência supletiva.
Sobre este tema, nas normas das sociedades simples, prevê-se um critério de
desempate caso os sócios não consigam chegar a um acordo nas assembleias. O
parágrafo 2º do artigo 1.010 do Código Civil – pertencente às normas de sociedade
simples – disciplina que, caso haja algum impasse nas deliberações, “prevalece a
decisão sufragada por maior número de sócios”, e, persistindo o empate, “caberá ao juiz
decidir”. Logo, as sociedades limitadas que, expressamente ou por presunção, elegerem
as normas das sociedades simples como fonte de regência supletiva serão alcançadas
por esse critério de desempate. O mesmo não ocorre com aquelas submetidas à Lei das
SA, até porque esta lei não prevê meio de superação de empate na mesma
assembleia531.
b) A destinação dos resultados da empresa.
Nas sociedades limitadas de subtipo I, os sócios podem, por maioria, deliberar
sobre a destinação dos resultados da empresa. Tais sócios gozam, inclusive, do direito
de decidir pelo total reinvestimento dos lucros, ou seja, não há um dividendo mínimo
que obrigatoriamente deva ser repartido anualmente entre os sócios.
As limitadas que optaram no contrato social pela regência da Lei das SA, por
sua vez, não dispõem dessa liberdade. Isso porque o artigo 202 da LSA determina que
531A solução adotada na lei das sociedades anônimas vem expressa no seu artigo 129, § 2º: “no caso de empate, se o estatuto não estabelecer procedimento de arbitragem e não contiver norma diversa, a assembleia será convocada, com intervalo mínimo de 2 (dois) meses, para votar a deliberação; se permanecer o empate e os acionistas não concordarem em cometer a decisão a um terceiro, caberá ao Poder Judiciário decidir, no interesse da companhia”.
118
pelo menos metade do lucro líquido deve ser obrigatoriamente distribuído entre os
sócios na forma de dividendos. A chamada cláusula leonina, portanto, só é possível nos
contratos das sociedades limitadas reguladas pelas normas de sociedades simples.
c) A vinculação a atos estranhos ao contrato social.
Outro tema que distingue o posicionamento dos dois subtipos societários se dá
em relação à vinculação a terceiros em situações não condizentes com o contrato social.
Nas sociedades limitadas regidas integralmente pelo Código Civil (leia-se, pelo capítulo
IV e pelas normas das sociedades simples) a questão é solucionada por meio da
aplicação da Teoria do Ultra Vires, derivada do direito comercial anglo-saxão e
consagrada no nosso diploma legal no artigo 1.015, parágrafo único, III do Código.
Nas limitadas de vínculo instável, portanto, os administradores, só poderão ser
responsabilizados perante terceiros se cometerem atos evidentemente estranhos ao
contrato social.
A Lei das S/A, ao seu tempo, consagra a Teoria da Aparência, por meio da qual
as sociedades limitadas de vínculo estável ficam vinculadas aos atos praticados em seu
nome por seus administradores.
2.4. A regência supletiva e o contrato social
Sobre a matéria da regência supletiva, também é pertinente destacar a mudança
de entendimento a respeito das regras gerais de supletividade.
O decreto-lei nº 3.708, que regia as limitadas antes do novo Código Civil,
também contemplava uma previsão de supletividade em seu artigo 18. Dizia este que,
sempre que houvesse alguma omissão no contrato social, tal lacuna seria suprida pela
aplicação da Lei das Anônimas. Tal lei, portanto, completava o sentido do contrato, e,
por derradeiro, se houvesse alguma contradição entre o contrato e a lei, prevalecia
sempre aquele. Por isso nos é permitido afirmar que, no antigo regime, a Lei das SA era
supletiva em relação ao contrato social. Já a previsão do artigo 1.053 do Código Civil
de 2002 não se dá nesse sentido.
Na legislação atual, a LSA, nas sociedades que optem por sua supletividade,
“torna-se supletiva da disciplina legal das sociedades limitadas contida no Código Civil,
119
e não mais do contrato social532”. Ou seja, numa sociedade limitada de vínculo estável,
será considerada nula qualquer cláusula do contrato social que for contrária à lei
6.404/76. Esta, que era supletiva em relação à vontade das partes, no regime anterior,
passa a ser supletiva em relação à disciplina legal. É como se o Título II, capítulo IV do
Código Civil e a Lei das Anônimas se fundissem em um único diploma legal aplicável.
A consequência imediata desta mudança é que, pelo atual Código, a vontade dos sócios
passa a se submeter à Lei das SA533.
2.5. Dos problemas decorrentes do artigo 1.053
A recepção dessa nova supletividade parte do reconhecimento da pluralidade
de organizações empresárias que o instituto das limitadas abarca. De fato, hoje não há
como não reconhecer o caráter híbrido de tal modelo societário. A própria
permissividade na criação de limitadas é um dos motivos que explica a variedade de
empresas que se agrupam sob tal rótulo. Por isso, alguns autores sustentam que, diante
dessa flexibilidade, há uma série de ponderações que devem ser feitas no momento da
aplicação das regras de supletividade.
Primeiramente, deve haver certa cautela na aplicação supletiva das regras das
sociedades simples. Como bem observa Maria Helena Franco, a sociedade simples é
originalmente um modelo jurídico de sociedades de responsabilidade limitada e não de
comercial. Assim, não é sempre que suas normas serão adequadas à regência supletiva
das limitadas, que são sociedades comerciais por excelência534.
Igual destreza também é exigida na aplicação da Lei das SA. A aplicação da lei
do anonimato, aliás, traz diversas dificuldades ao julgador, já que o novo Código não
traz nenhum critério que defina que dispositivos da Lei das SA são, de fato, aplicáveis
às sociedades limitadas. Essa lacuna deixada “pode induzir ao engano de imaginar que a
Lei do Anonimato se transplantaria integralmente às omissões das regras específicas
sobre as limitadas (Capítulo IV)535”.
532 COELHO, op. cit., 2003. p. 21 533 Na mesma orientação segue José Lucena: “A nós parece não haver qualquer entre dúvida de que a supletividade se faz à lei e, por esta via, alcançando, obviamente, também o contrato social” (LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5. Ed. Atual. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2003). 20 FRANCO, Vera Helena de Melo. O triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil, Revista de Direito Mercantil, v. 123, jul-set, 2001.p. 81. 535 CARVALHOSA, Modesto. Parte Especial: direito de empresa, da sociedade personificada. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira. Comentários ao Código Civil. São Paulo, 2003, v.13, p.40.
120
Com maior razão ainda, o momento de interpretação do contrato social
também deve ser envolto de vários cuidados. Por mais que seja garantida aos sócios a
liberdade de escolher a fonte de regência supletiva, é necessário ressaltar que uma
simples cláusula contratual (ou a omissão desta) nem sempre é capaz de indicar
acertadamente a legislação supletiva aplicável. Como bem assevera Modesto
Carvalhosa:
Pode ocorrer de a limitada ter um modelo com estrutura mais próxima à da anônima [...] e, ao mesmo tempo, deixar de optar expressamente no contrato social pela adoção de regras da sociedade anônima como lei supletiva. Neste caso, ter-se-ia, pela letra do artigo 1.053, de recorrer às disposições da sociedade simples. [...] Parece-nos claro, nesses casos, que ao intérprete caberá o recurso à Lei das SA. E essa aplicação da Lei do Anonimato dar-se-á ou pelo reconhecimento de que a verdadeira intenção das partes (art. 112 do Código Civil de 2002) era optar pela regência supletiva das sociedades anônimas, formatando sua sociedade com características de uma sociedade de capitais, ou por analogia, diante da omissão da lei supletiva536.
Além deste ponto suscitado, há de se ressaltar também que os contratos sociais
não estão imunes à incidência do princípio da função social dos contratos537. Assim, a
atividade interpretativa dos mesmos deve levar em conta os interesses que gravitam em
torno da sociedade, de modo a garantir, sempre que possível, a preservação e
continuidade da mesma. Como bem adverte Sylvio Capanema, seria atentatório aos
princípios da função social que se mantivessem os contratantes (no caso, os sócios e a
sociedade) aprisionados por um vínculo contratual que os levaria à ruína, e que os
mesmos não teriam constituído, se lhes fosse possível prever o futuro538.
Ou seja, mesmo nas sociedades que expressamente adotarem determinada
supletividade, a aplicação da legislação superveniente deve sempre levar em conta a
verdadeira estrutura organizacional da sociedade, as reais intenções dos sócios
consubstanciadas no contrato social, e, por fim, os interesses externos que a mesma
congrega.
536Ibid., 2003, p. 44. 537“Integrando o próprio conceito de contrato, a função social tem um peso específico, que é o de entender-se a eventual restrição à liberdade contratual não mais como uma ´exceção´ a um direito absoluto, mas como expressão da função meta-individual que integra aquele direito. Deste modo, o princípio da função social, que proclamado na Constituição, aí poderia remanescer como `letra morta´, transforma-se, como afirmou Reale, ‘em instrumento de ação no plano da lei civil’. Há, portanto, uma (sic) valor operativo, regulador da disciplina contratual que deve ser utilizado não apenas na interpretação dos contratos, mas, por igual, na integração e na concretização das normas contratuais particularmente consideradas. Em outras palavras, a concreção especificativa da norma, ao invés de já estar pré-constituída, pré-posta pelo legislador, há de ser construída pelo julgador, a cada novo julgamento, cabendo relevantíssimo papel aos casos precedentes, que auxiliam a fixação da hipótese e à doutrina, no apontar de exemplos.” MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <www1.jus.com.br>. Acesso em 12.12.11 538 SOUZA, Sylvio Capanema de. Impacto do Novo Código Civil no Mundo dos Contratos.<http://www.universojuridico.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=1340>. Acesso em 03.12.11.
121
Esse cuidado deve ser tomado pelo julgador, pois a aplicação sumária e
irrestrita daquilo que é determinado pela letra da lei ou do contrato pode certamente
gerar decisões anômalas, contrárias ao princípio da preservação da empresa e,
portanto, nocivas aos interesses internos e externos ao empreendimento societário.
2.6. Dissolução parcial e retirada imotivada
O direito de retirada imotivada, que é o marco da separação entre os dois
subtipos de limitada, é uma inovação do novo Código que tem sua gênese na corrente
jurisprudencial consagrada como princípio da preservação da empresa. Este princípio,
portanto, delineou as formas de dissolução parcial nas sociedades limitadas.
Considerando as relevantes repercussões dessa nova previsão de dissolução no âmbito
dessas sociedades, faz-se aqui uma explicação mais esmiuçada do assunto.
A partir da década de 70, considerando o caráter plurilateral do contrato social,
a jurisprudência passou a acolher a chama dissolução parcial539. Esse método de
dissolução permite a continuidade das atividades da empresa nos casos de rompimento
do vínculo societário em relação a um dos sócios.
O novo Código disciplinou a dissolução parcial – chamada pelo diploma legal
de resolução parcial em relação a um sócio - na parte relativa às sociedades simples
(arts. 1.028 a 1.031), o que enseja a aplicação dessas normas às limitadas que decidirem
pela aplicação supletiva das normas das sociedades simples. Nesse ínterim, o art. 1.029
elenca como uma das causas de dissolução parcial a retirada imotivada dos sócios de
sociedades contratadas por prazo indeterminado. Essa possibilidade, apesar de propiciar
a continuação da sociedade mesmo com a saída de um dos sócios, pode gerar efeitos
reversos.
Em certa medida, tal arbítrio conferido ao sócio desistente é altamente
pernicioso ao desenvolvimento das limitadas, já que, em alguns casos, a retirada
imotivada de sócios se traduz num óbice enorme tanto para os sócios quanto para os
credores sociais atingidos pela retirada. Os custos advindos da saída de um dos sócios
podem, não raro, conduzir a sociedade a um processo de dissolução total. Logo,
539 “A dissolução parcial nada mais é do que a resolução, ou, mais precisamente, a resilição do contrato de sociedade com relação a um ou mais sócios, em razão da verificação de causas pessoais capazes de provocar a extinção do vínculo contratual societário que o vincula ao corpo social. E o fundamento dessa resolução parcial do contrato de sociedade é a necessidade de preservação da empresa, razão pela qual a sociedade permanece, a despeito do desligamento de um dos sócios”. (CARVALHOSA, op. Cit, 2003, p. 350).
122
dependendo da estrutura da sociedade, a retirada imotivada – inicialmente prevista
como mera causa ensejadora de dissolução parcial – pode comprometer por completo a
atividade da empresa.
Ademais, é pertinente ressaltar que o direito de recesso dos sócios deve ser
exercício dentro dos parâmetros da boa-fé objetiva, princípio plenamente aplicável às
relações societárias. Logo, nos casos de retirada imotivada, há de se proteger a legítima
expectativa que foi criada naqueles que assumiram o risco do empreendimento ao lado
do sócio que imotivadamente desiste deste540.
Alguns autores defendem a retirada imotivada com base no princípio
constitucional da livre associação – e, por conseguinte, da livre dissociação. Essa
posição é discutível, já que a possibilidade de associar-se livremente não traz exigência
de gratuidade nessas dissociações. O sócio, enquanto proprietário das suas quotas, tem o
direito de aliená-las, doá-las ou dá-las em pagamento e se retirar da sociedade. Esta, a
princípio, não tem a obrigação de lhe conferir total sucesso na empreitada empresarial,
já que o risco de desvalorização das quotas e dificuldade na venda das mesmas é
inerente à própria atividade comercial escolhida.
3. Das quotas sociais
O caráter dúplice sugerido pela nova regra de regência supletiva é, de certo
modo, constante em todas as seções do Código que regem as sociedades limitadas. A
verdade é que o novo Código ora dá primazia aos interesses dos sócios
(contratualismo), ora reconhece a existência de interesses transcendentes ao da própria
sociedade (institucionalismo). É nesse contexto de indefinição e hibridismo que emerge
a nova disciplina das quotas sociais.
3.1. A livre cessão de quotas.
O Decreto nº 3.704/19 não se manifestava sobre a cessão de quotas das
sociedades limitadas. Diante de tal omissão, a doutrina divergia acerca das diversas
540Nesse sentido, Karl Larenz entende que, considerando a boa-fé objetiva, “em certos casos há que se exigir um comportamento mais acurado, sendo mais amplos os deveres de recíproca consideração e observação da confiança nos contratos de sociedade, entre outros, mediante o qual se estabelece relação de colaboração duradoura. Desse modo, haverá obrigações adicionais e complementares decorrentes da relação societária.” (LARENZ, Karl, Derecho de Obligaciones. Revista de Derecho Privado, Madrid. Editora Madrid, 1958 Apud. Traduzido e citado por Waldirio Bulgarelli em Contratos Mercantis. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 67).
123
possibilidades. De um lado, entendia-se que era permitida aos sócios a livre alienação
de suas quotas, já que não havia nenhuma lei proibindo tal operação. Entretanto, outra
vertente da doutrina entendia que se o contrato não dispusesse a respeito, dever-se-ia
aplicar, por analogia, o artigo 334 do Código Comercial de 1850, que preceituava que
“a nenhum sócio é lícito ceder a um terceiro, que não seja sócio, a parte que tiver na
sociedade, nem fazer-se substituir no exercício das funções que nela exercer, sem
expresso consentimento de todos os outros sócios”. Assim, sendo omisso o contrato
social, a alienação de quotas dependeria da anuência de todos os sócios541.
O Código Civil de 2002 pôs fim à controvérsia determinando no seu art. 1057
que “na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a
quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não
houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social”.
Essa inovação é de suma relevância, considerando que a disposição sobre a
cessão é fator determinante para a caracterização da sociedade, já que “a pesquisa da
natureza de uma limitada, em particular, tem por objeto o contrato social, na cláusula
pertinente à matéria em que tem relevância a discussão: condições para alienação das
quotas sociais542”. Ou seja, a forma de alienação adotada indica o caráter pessoal ou
capitalista das sociedades. Nesse sentido, alguns autores sustentam que essa posição do
novo Código ressalta o caráter contratualista personalista das limitadas543. Porém, é
válido ressaltar que o Código, assim como faz no artigo 1.053, dá aos sócios a
possibilidade de, no contrato social, definir a solução mais adequada à estrutura da
sociedade. Logo, se os sócios quiserem que a cessão de quotas tenha solução idêntica à
transferência de ações, basta que assim disciplinem no contrato.
3.2. A liquidação a pedido de credores.
Ainda no tema das quotas, inovação bastante controversa do atual regime é a
possibilidade de liquidação das quotas sociais a pedido do credor de um dos sócios.
Assevera o art. 1.026 que se algum sócio contrair dívida em seu próprio nome, o credor
particular deste sócio poderá, na insuficiência de bens do devedor, fazer recair a
execução sobre o que couber a tal sócio nos lucros da sociedade, ou sobre a parte
541 Rubens Requião sustentava a aplicação do referido artigo do Código Comercial sob o fundamento de que as sociedades limitadas, no regime de 1919, eram mais próximas às sociedades intuitu personae do às de capital. Logo, justificava-se a necessária a concordância dos sócios em documento expresso. (REQUIÃO, op. cit., 2003. p.503) 542COELHO, op. cit., 2011. p. 402 543FAZZIO JUNIOR, Waldo. Sociedades Limitadas de Acordo com o Código Civil de 2002. – São Paulo: Atlas, 2003, p. 138.
124
pertencente a ele na liquidação da mesma. O parágrafo único prevê, ainda, que se a
sociedade não estiver dissolvida, o credor pode requerer a liquidação da quota do
devedor, dissolvendo-se parcialmente a sociedade. O valor será apurado com base na
situação patrimonial da empresa na data da liquidação das cotas por meio de balanço
especialmente realizado, na forma do art. 1.031. A quantia aferida deve ser depositada
em dinheiro pela pessoa jurídica no juízo da execução em até noventa dias após a
liquidação.
O primeiro problema desse instituto é que o art. 1.026 está no capítulo
referente às sociedades simples, e isso gera discussões na doutrina acerca da
aplicabilidade do dispositivo. Fabio Ulhoa Coelho, por exemplo, entende que, devido à
localização do dispositivo, o referido artigo só é aplicável às sociedades limitas regidas
supletivamente pelas normas das sociedades simples. Já José Lucena entende que “o
preceito alcança todas as sociedades limitadas, independentemente do diploma de
regência supletiva, em face da ausência de norma sobre a matéria na legislação das
sociedades por ações544”.
A redação do artigo analisado enseja também vários problemas processuais. A
lei não define, por exemplo, quem será competente para levantar o balanço especial da
sociedade. Do mesmo modo, silencia a respeito das providências cabíveis quando a
sociedade não depositar a quantia indicada, também não deixando claro a partir de que
momento começa a correr o prazo de noventa dias definido no artigo 90545. Essas são
apenas algumas das imprecisões trazidas pelo artigo 1.026, que certamente irão gerar
problemas para os processualistas e incoerências jurisprudenciais. Além desses
problemas formais, questiona-se também a própria legitimidade do instituto.
De fato, as quotas integram o patrimônio do sócio e, portanto, são garantias aos
credores com quem ele negocia, o que justifica, até certo ponto, o instituto. Além dessa
função, a solução adotada pelo Código também serve para inviabilizar que pessoas que
não participaram da criação da sociedade nela ingressem por meio de penhora ou leilão
das quotas546. Assim, a nova lei reforça o liame subjetivo que existe entre os sócios de
limitadas. Há quem sustente também que a liquidação a pedido do credor preserva a
própria intangibilidade do capital social547.
544 Trata-se de mais um dos problemas decorrentes da precária norma de supletividade adotada pelo novo Código. (2003 apud CAMPOS FILHO, op. Cit., 2007, p.51). 545 COELHO, op. cit., 2003. p. 38. 546 Na vigência do Decreto de 1919, havia divergência na doutrina quanto a penhorabilidade das quotas sociais, já que nem o decreto nem o Código Comercial versavam sobre o tema. A solução era dada, caso a caso, pela jurisprudência. 547FAZZIO JUNIOR, op. cit., 2003, p. 146
125
Por outro lado, alguns autores argumentam que a possibilidade de liquidação
das quotas a pedido do credor é absolutamente contrária aos princípios da preservação e
da função social da empresa548. Isso porque, na insuficiência de fundos para a
realização do depósito, a empresa recorrerá a empréstimo bancário ou à venda de
ativos, o que pode comprometer a continuidade das suas atividades. Ademais, deve-se
considerar que há diversos interesses em torno da sociedade – os de funcionários,
fornecedores e consumidores, por exemplo –, que poderiam ser injustamente afetados
com a dissolução da mesma. Além desses problemas, há inúmeras possibilidades de
mau uso do procedimento.
Nesse sentido, Fabio Ulhôa Coelho adverte que “a liquidação da quota a
pedido de não-sócio é uma intromissão injustificável na vida da sociedade e pode
servir, sem dificuldades, à fraude.” Exemplifica Coelho que, nos casos em que o valor
econômico da quota social é inferior ao valor patrimonial apurado – circunstância
comum em empresas tecnologicamente defasadas, por exemplo-, algum sócio pode
simular uma dívida com terceiro e se retirar da sociedade recebendo valor superior ao
preço de mercado da cota549.
4. Tendências da administração
4.1. A nova estrutura da administração.
O tema da administração foi tratado pelo novo Código nos artigos 1.060 a
1.065, que trouxeram uma estrutura mais complexa, instituindo regimes de investidura,
exercícios e prestação de contas dos administradores, a facultativa criação de um
conselho fiscal e as reuniões e as assembleias gerais de sócios. A nova lei, portanto,
restringiu a liberdade dos sócios na estruturação da administração e trouxe maior poder
de controle aos minoritários.
É obrigatória, no novo regime, a existência de um órgão de administração
formado por uma ou mais pessoas físicas550 designados como administradores551. Este
548 “O princípio da função social da empresa projeta-se igualmente sobre a manutenção e a preservação da atividade empresarial, destacando que a interrupção da mesma não pode ficar ao critério exclusivo de algum dos sócios ou credores, diante dos diversos outros interesses relevantes que justificam a continuidade de sua atividade.” (FRAZÃO, Ana. A função social da empresa na constituição de 1988. In: LIMA, Frederico. H. Viegas. Direito Civil Contemporâneo. Brasília: Obcursos, 2009. p. 35). 549COELHO, op. cit., 2003. p. 39 550 A lei proíbe que outras sociedades sejam sócias de sociedades limitadas. 551 O Código Civil de 2002 abandonou as antigas nomenclaturas de “sócio-gerente” ou “gerente”, utilizada pelo Decreto-lei de 1919. No atual regime, utiliza-se somente a expressão “administradores”.
126
órgão em muito se assemelha à diretoria das sociedades anônimas, sendo atribuídos a
ele poderes indelegáveis de representação da sociedade. Podem compor este órgão tanto
os administradores sócios quanto os não-sócios.
Uma inovação do novo Código, aliás, foi essa possibilidade da administração
da limitada ser atribuída a não-sócios, o que era proibido no regime anterior. Essa
inovação veio reconhecer a separação entre propriedade e poder, já consolidada no
direito societário. Nesse sentido, Luiz Leães assevera que, nos países de economia de
mercado, a propriedade empresarial “viu a desintegração de seus elementos tradicionais
para se consumar verdadeira cisão entre domínio e controle, atribuindo-se, por
consequência, aos titulares deste controle, papel central na sociedade empresária552”.
A única exigência feita para que se dê tal atribuição de cargo ao não-sócio é
que seja prevista no contrato social tal possibilidade. Tal permissão será implícita
quando, no próprio contrato, for feita a nomeação do administrador não-sócio, donde se
presume manifestação de vontade dos sócios em permiti-la.
A nova lei também cuida da enumeração dos quoruns de eleição e de dos
administradores. Esses quoruns variam de acordo com a qualidade do administrador e
com o instrumento utilizado. O administrador sócio será assim nomeado se contar com
o apoio dos titulares de mais de 3/4 do capital social (no caso de nomeação pelo
contrato social) ou dos titulares de mais de metade deste capital (caso de nomeação em
ato apartado)553. O administrador não-sócio também poderá ser designado no contrato
social ou em ato separado. Na primeira hipótese, o quórum exigido é igualmente de 3/4
do capital (que é, na verdade, o quorum de modificação do ato constitutivo). Já na
circunstância de nomeação em ato apartado, exige-se a anuência dos titulares de, no
mínimo, 2/3 do capital social554 para que o não-sócio seja incumbido do cargo. Se o
capital social ainda não estiver totalmente integralizado, a lei requer unanimidade na
aprovação do administrador não-sócio. Esta última exigência é justificável já que,
enquanto o capital não estiver completamente integralizado, os sócios respondem
solidariamente (artigo 1.052 do CC). Logo, é necessário que todos confiem no eleito.
Os administradores, sócios ou não, serão designados por tempo determinado
ou indeterminado. No primeiro caso, passado o período indicado, faz-se necessária a
552 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Responsabilidade dos Administradores das Sociedades por quota de responsabilidade limitada. Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico Financeiro , n. 25, ano XVI,– Nova Série. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 49-54. 553 O parágrafo único do artigo 1.060 do Código Civil inova ao definir que caso a administração seja atribuída a todos os sócios, esta não se estenderá de pleno direito àquele que ingressar posteriormente na sociedade. 554 O administrador sócio também pode ser eleito por ato separado, exigindo-se, para tanto, somente o quórum de mais da metade das quotas referentes ao capital social.
127
renovação do mandato ou a substituição do administrador. A despeito do compromisso
temporal estabelecido, os sócios podem destituir os administradores sempre que for
conveniente para a sociedade.
O quorum de destituição também é variável. Se o administrador for sócio, a
destituição exigirá quotas referentes a 2/3 do capital social; o contrato social também
pode adotar outro quorum (art. 1.063, § 1º). Já o administrador não sócio nomeado em
contrato social só será retirado do cargo por deliberação dos titulares de mais de 3/4 do
capital (arts 1.071, V e 1.076), ou por decisão dos representantes de mais de 2/3 do
capital, em caso de nomeação por ato apartado (arts 1.071, II e 1.076, II).
4.2. Responsabilidade de administradores
O capítulo do novo Código referente às limitadas é escasso em previsões de
responsabilidade. Os administradores destas sociedades ficam, por isso, sujeitos aos
deveres estabelecidos na Lei das SA e nas normas das sociedades simples.
Nesse sentido, sustenta Fabio Ulhôa Coelho que os deveres de diligência e
lealdade, embora referidos nos artigos 153 e 155 da Lei das Anônimas, podem ser vistos
como preceitos gerais, “aplicáveis a qualquer pessoa incumbida de administrar bens ou
interesses alheios555”. Também são entendidas como deveres gerais dos administradores
de limitadas as normas contidas nos arts. 1.011, 1016 e 1.017 do Código Civil
(referentes às sociedades simples)556. Esses artigos reforçam, de um modo geral, o
cuidado e a diligência do homem probo, a responsabilidade solidária dos
administradores perante terceiros prejudicados e a reponsabilidade perante a própria
sociedade.
Além das hipóteses enumeradas, aplicam-se também, mesmo aos
administradores não sócios, as previsões de responsabilização pessoal contidas nas
teorias de desconsideração da personalidade jurídica.
Ademais, como já mencionado, a vinculação dos administradores em relação
aos atos praticados em nome da sociedade depende da regência supletiva adotada. No
caso das limitadas regidas pela Lei nº 6.404, aplica-se a teoria da aparência. Já as
555COELHO, op. cit., 2003. p. 50 556 Modesto Carvalhosa acrescenta nesse conjunto o artigo 1.009 do Código Civil, que atribui responsabilidade solidária aos sócios e administradores que distribuírem culposamente lucros ilícitos ou fictícios. Segundo o autor, “ainda que eventualmente a sociedade limitada tenha optado pela regência supletiva da Lei Societária em matéria organizacional (conforme faculta o parágrafo único do art. 1053), com relação à responsabilidade dos administradores devem ser aplicadas as disposições da sociedade simples, previstas no referido art. 1.009 do Código de 2002” (CARVALHOSA, op. Cit., 2003,, p. 328).
128
limitadas de vínculo instável estão, teoricamente, submetidas ao artigo 1.015 do CC,
que consagra a teoria do ultra vires.
Ressalta-se, porém, que a aplicação do artigo 1.015 do Código deve, sempre
que possível, ser afastada por proteção ao terceiro de boa-fé. Há necessidade, portanto,
de se interpretar o referido art. 1.015 com a regra geral do art. 422 do Código Civil, que
impõe aos contratantes o dever de proteger aqueles que agirem de boa-fé na execução e
conclusão dos contratos. Assim, é possível a aplicação da teoria da aparência mesmo
em sociedades que não contemplem a LSA como fonte de regência supletiva. De fato,
essa perspectiva já vem sendo firmada na jurisprudência, que, cada vez mais, entende
que “as restrições contratuais sobre poderes de gerência não podem ser opostas a
terceiros de boa-fé”. (TJSP, RT, 643/95).557.
4.3. As novas regras de controle
O artigo 1.065 preceitua deveres de prestação de contas por parte da
administração, inexistentes no regime anterior. Aqui, nota-se a preocupação do novo
Código em proteger o direito dos sócios à informação e aos lucros da atividade
empresária.
Por força da nova lei, a administração fica incumbida de, ao fim de cada
exercício social, elaborar inventário, balanço patrimonial e balanço de resultado
econômico da empresa. Esses documentos deverão ser encaminhados à assembleia dos
sócios ou à reunião de quotista (nos casos em que aquela não for obrigatória). A
propósito, o Código define que um dos objetivos da assembleia de sócios é a tomada
das contas dos administradores e a posterior avaliação dos balanços apresentados (Art.
1.078, I).
Apesar de essa inovação ser positiva por resguardar principalmente os
interesses dos minoritários, o Código peca por não ser tão detalhado e preciso quanto à
elaboração dos documentos. Diferentemente da LSA, no diploma de 2002, não se
determina precisamente a estrutura do balanço patrimonial e do balanço de resultado
econômico, o que enseja mais uma vez a aplicação da lei 6.404/76 e todas as
controvérsias dela advindas.
557Em concordância: “A imputação de responsabilidade ao administrador de limitada, por excesso de mandato ou ato contrário ao contrato social, não exonera a sociedade do cumprimento de obrigações, contraídas perante terceiros de boa-fé” (2º TACivSP, RT, 750/309).
129
4.4. O Conselho Fiscal
O Conselho Fiscal foi originalmente criado nas sociedades anônimas, no
âmbito de grandes empresas com estruturas complexas, que demandam rígido controle
e fiscalização financeira558. O novo Código, reconhecendo o crescente caráter
capitalista das limitadas de grande porte, decidiu facultar a criação do Conselho, com o
intuito de garantir maior probidade e controle da administração559.
O Conselho é autônomo e não está subordinado nem aos administradores nem
aos sócios. É formado por, no mínimo, 3 (três) conselheiros – e seus respectivos
suplentes - eleitos em reunião ou assembleia560. O mandato dura até a próxima
deliberação em assembleia ou reunião. Os membros não precisam ser sócios e também
não é necessário conhecimento técnico em contabilidade para a investidura no cargo,
bastando que o conselheiro leigo seja auxiliado por contador legalmente habilitado. A
única exigência que o novo Código faz é que os conselheiros indicados devem residir
no país de domicílio da limitada (art. 1.066, caput).
Para garantir probidade no desempenho das funções do Conselho, o novo
diploma proíbe que membros dos demais órgãos da sociedade ou de outra por ela
controlada, os empregados de quaisquer delas ou dos respectivos administradores, o
cônjuge ou parente destes até o terceiro grau sejam indicados (art. 1.066, § 1º). Também
é vetada a indicação dos chamados inelegíveis (art. 1.011, § 1º).
Os sócios minoritários que possuem, pelo menos, um quinto do capital social
têm o direito de eleger, em ato apartado, um conselheiro e o seu respectivo suplente (art.
art. 1.066, § 2º). A respeito, sustenta Modesto Carvalhosa que a própria essência do
conselho fiscal é a proteção aos minoritários, conceituando esse órgão como “o veículo
ou instrumento institucional de exercício, pela minoria, do direito de fiscalização que
lhes cabe561”.
As competências do Conselho estão expressas no art. 1.069 e não é permitido
que o contrato social amplie ou restrinja o que foi definido neste dispositivo. Assim, os
deveres capitais dos conselheiros são: avaliar e controlar os papéis contábeis da
sociedade, bem como o estado de caixa e carteira da mesma; prestar informações à
558 CARVALHOSA, op. Cit., 2003, p. 147. 559BARBOSA, Ana Beatriz Nunes .Boa Fé nas Relações entre Sócios. Revista Forense (Impresso), v. 407, p. 73. 560 A esta também compete a fixação da remuneração dos conselheiros (art. 1.068). O instrumento de eleição é composto de dois atos unilaterais: a deliberação da assembleia ou reunião e a aceitação do conselheiro eleito. Não há o estabelecimento de um contrato. Assim, o conselheiro fica vinculado apenas ao contrato social e à lei. O documento de aceitação, ou termo de eleição, só gera efeitos se for assinado pelo eleito no prazo de 30 (trinta) após a eleição (art. 1.067, § 2º). 561 CARVALHOSA,op. Cit., p. 148.
130
assembleia anual (por meio de pareceres sobre os negócios e do balanço econômico e de
resultado social); fiscalizar e denunciar irregularidades, fraudes e crimes na
administração da sociedade; e convocar a assembleia anual, caso os sócios não a façam
em 30 (trinta) dias, ou sempre que houver casos graves e urgentes.
5. Assembleias e Quoruns de Deliberação
Quando em voga a sucinta lei de 1919, as sociedades limitadas estavam
fortemente atreladas ao contratualismo, logo todas as deliberações deveriam ser
tomadas mediante alteração do contrato social. Já o novo Código, no art. 1.010
(referente às sociedades simples), adotou expressamente o regime da comunhão, já
consagrado na lei das SA. Por esse regime, as deliberações serão tomadas por maioria
de votos (qualificada em casos específicos), contados segundo o valor das quotas de
cada um562.
O Código Civil de 2002, portanto, inovou ao disciplinar as reuniões e
assembleias de sócios no regime das limitadas. No regime anterior, não havia previsão
de qualquer órgão deliberativo ou fiscalizador. Ao instituir as assembleias, o legislador
resolveu também eleger uma série de formalidades e minúcias que conferiram notável
complexidade ao tema. Por conta disso, é sobre esse tema que recaem as mais duras
críticas ao novo regime das limitadas.
5.1. As assembleias e suas formalidades
Pelo padrão atual, há uma gama de matérias que só serão deliberadas em
assembleia regularmente convocada (art. 1.071 e nos arts 1.066, § 1º e 1.068). Essas
matérias são, a princípio, da competência privativa e irrevogável dos sócios.
A realização anual de assembleias é obrigatória sempre que o número de sócios
da limitada for maior que 10 (dez) (art. 1,072, § 1o). Se o número de sócios for menor
que o indicado, as matérias elencadas no art. 1.071 poderão ser decididas em reunião
dos sócios563.A competência para a convocação da assembleia é, a priori, dos
562 É válido relembrar que o critério de desempate nas deliberações sociais varia de acordo com a regência supletiva escolhida pela limitada. Vide item 3.2.1 deste artigo. 563 Esclarece Fabio Ulhôa Coelho que a diferença entre assembleia e reunião dos sócios é sutil e pode ser inferida de algumas passagens da nova lei: “Em dois dispositivos (art. 1.072, § 6º e 1.079) o Código Civil estabelece que as regras sobre a assembleia dos sócios aplicam-se às reuniões, nos casos de omissão do contrato social. Quer dizer, o contrato que admite deliberações em reunião pode também estabelecer regras própria sobre sua periodicidade, convocação (competências e modo), quórum de instalação, curso e registro dos trabalhos”. (ULHOA, p. 94).
131
administradores. Se estes demorarem mais de sessenta dias para convocar a assembleia
anual, qualquer sócio poderá fazê-lo. Também é conferido ao sócio ou aos sócios
titulares de mais de 20% do capital social a competência da convocação, se os
administradores, transcorridos oito dias do pedido fundamentado de realização da
assembleia, não a tiverem convocado. O Conselho Fiscal pode chamar os sócios em
assembleia em dois casos: quando houver transcorrido trinta dias do término do quarto
mês seguinte ao fim do exercício social e nenhum administrador a tiver convocado; ou,
ainda, em casos de motivo grave ou urgente (art. 7.073 e 1.069, V).
Para que sejam válidas, as assembleias devem obedecer a certas formalidades
quanto à periodicidade, publicidade, quorum de instalação, registro dos trabalhos em
ata, bem como o arquivamento dos documentos desta em órgão de registro competente.
Nas assembleias anuais (obrigatórias), os sócios têm o dever de avaliar as
constas dos administradores e designá-los, quando for o caso, além de deliberar sobre
temas da ordem do dia.
O edital de convocação da assembleia – seja ela obrigatória ou não – deve ser
publicado por três vezes, ao menos, no órgão oficial do Estado onde se situa a sede e em
um jornal de grande circulação (art. 1152,§3º). A finalidade da publicação oficial é
inibir a arguição de desconhecimento da realização do conclave por parte dos sócios. A
utilidade da publicação oficial, portanto, é que esta “permite presumir de jure que todos
os sócios estão cientes da realização da assembleia nos termos em que foi
convocada564”. Apesar dessa facilidade prevista pelo instituto, Rubens Requião critica
duramente a figura da publicação oficial nas limitadas, ressaltando que “a publicação de
editais em jornais e revistas é onerosa e de duvidosa eficácia565”. Assevera ainda o autor
que o novo Código, nesses termos, está em descompasso com as técnicas modernas de
comunicação como o correio eletrônico, o fax e o próprio telex566.
A instalação da primeira assembleia da sociedade depende da presença dos
titulares de no mínimo 3/4 do capital social (art. 1.074). As seguintes não exigem
quorum de convocação. A ata da assembleia e os eventuais instrumentos de alteração
contratual que dela resultarem devem ser arquivados na Junta Comercial no prazo de
vinte dias (art. 1.075, § 2°).
564 CARVALHOSA, op. Cit., 2003,, p. 204. 565REQUIÃO, op. cit., 2003. p.. 534 566Id.
132
5.2. Novos quoruns deliberativos
No regime anterior, em que todas as deliberações eram feitas por mudança no
contrato social, exigia-se a anuência dos titulares de mais de metade do capital social.
Prevalecia, portanto, o critério da maioria do capital para deliberar. Com a chegada do
novo Código Civil, a matéria ganha notável complexidade. São estabelecidos cinco
quoruns para as deliberações: a) unanimidade (art. 1.061); b) três quartos do capital
social (arts 1.071, V e VI, e 1.076, I); c) dois terços do capital social (arts 1.061 e
1.063,§1º);d) maioria absoluta (art. 1.071 II, III, IV, VIII e 1.076, II); e e) maioria
simples (arts. 1.071, I, VII e 1.076, III).
A inovação mais significativa foi, sem dúvida, a exigência de três quartos do
capital social para alteração do contrato social. Essa medida, além de garantir mais
estabilidade à organização da sociedade, também protege significativamente os
interesses de sócios minoritários ao impedir que os titulares de mais da metade do
capital exerçam demasiado controle sobre a limitada.
5.3. Críticas
Não só os quoruns, mas toda a estrutura deliberativa concebida no novo
Código parte da assunção de que há frágeis interesses que devem ser protegidos no
âmbito das atuais sociedades limitadas. De fato, a atuação dessas sociedades hoje é foco
de interesses que vão além dos muros da própria empresa, o que impõe a necessidade de
proteção aos sócios minoritários, credores sociais, meio ambiente e fisco, por exemplo.
Esse quadro é ainda mais evidente no campo das sociedades limitadas de capitais. Logo,
a estrutura da nova administração permite, de certo modo, maiores possibilidades de
realização da função social dessas empresas.
Por outro lado, a recepção desses órgãos deliberativos (com todas as suas
exigências) também traz alguns obstáculos à atuação das limitadas. A sofisticação
trazida pelo Código, em certa medida, contradiz a intenção original de recepção das
limitadas, qual seja, a criação de um modelo societário de responsabilidade limitada
sem a onerosidade e burocracia das sociedades anônimas567. Assim, exigências como a
567 A intenção da recepção do instituto das sociedades limitadas no direito pátrio está contida na Exposição de Motivo do Projeto do Código Comercial, de lavra de Inglês de Souza, que asseverou: “A presunção de solidariedade dos sócios nas obrigações assumidas em nome da empresa é regra predominante no assunto. [...] Este processo permite seguir a tendência que se assinala no regime das sociedades para aumentar a aplicação do princípio da comandita sob diversas formas, de modo a animar a concorrência das
133
realização anual de assembleias e a publicidade oficial podem constituir óbices à
atuação de algumas sociedades através da burocratização. Nesse sentido, assevera José
Lucena que:
Imposta a inevitável comparação entre o Decreto 3.708/19 e o novo Código, há de se concluir que, se foi aquele acoimado de atécnico e faltoso de regras indispensáveis, este, embora dotado de tecnicidade, não deixará de profigado como extremamente burocratizante da constituição e funcionamento das Sociedades Limitadas, assim eliminando uma das vantagens que levaram à criação e à ampla aceitação desse tipo societário568.
5.4. A legalidade do acordo de quotistas
Ainda no âmbito das assembleias, questão bastante controversa sobre o tema
das deliberações nas limitadas diz respeito ao acordo de quotistas. A matéria nunca foi
regulada no regime anterior e o novo Código, mais uma vez, perdeu a chance de pôr fim
ao impasse e se omitiu quanto à legalidade desses contratos parassociais.
A discussão se torna ainda mais acalorada em face do novo sistema de regência
supletiva do novo Código, já que os acordos de acionistas vêm disciplinados no art. 118
da Lei das SA e, assim, nas sociedades limitadas que expressamente adotaram a LSA
como fonte de regência supletiva, estes serão plenamente aceitos. Por outro lado, não
há nenhuma norma no Código Civil que discipline ou expressamente proíba tais
acordos. Logo, parte da doutrina defende a aplicação analógica do referido artigo da
LSA em relação às sociedades limitadas regidas supletivamente pelas normas de
sociedades simples, o que possibilitaria a realização desses contratos parassociais nas
limitadas de vínculo instável.
As discussões se dão em torno do parágrafo único do art. 997 do Código Civil,
que reproduz a parte final do art. 302, 7 (este já revogado), do Código Comercial.
Aquele artigo dispõe que “é ineficaz em relação a terceiros qualquer pacto separado,
contrário ao disposto no instrumento contratual.” Há duas interpretações desse diploma
na doutrina.
A primeira vertente defende que o acordo é inteiramente válido no âmbito das
limitadas, já que não há nenhuma lei que o proíba e, nesses casos, deve-se respeitar a
própria autonomia privada dos sócios. A aplicação da LSA poderia se dar, então, por
meio de analogia, já que nenhuma parte do Código disciplina o tema. Nessa corrente,
atividades e dos capitais ao comércio,sem ser preciso recorrer à sociedade anônima, que melhor se reservará para as grandes empresas industriais. (Projeto de Código Comercial, Pag. 24). 568 . LUCENA, op. Cit., 2003. p.31
134
estão renomados autores como Modesto Carvalhosa569, Celso Barbi Filho Bulgarelli e
Jorge Lobo, que, desde a vigência do artigo 302 do Código Comercial, já defendiam
essa postura. Por outro lado, há autores que entendem que o parágrafo único do art. 997
do Código Civil limita a liberdade dos sócios de firmar acordos entre si. Nesse sentido,
para Fabio Ulhôa Coelho, os acordos de quotistas só podem tratar de matérias não
especificadas nos incisos I a VIII do art. 997570.
6. Conclusão
Imerso num contexto de valorização de princípios, de gradual abandono do
individualismo e de funcionalização de direitos, o Código de 2002, mais do que
inovações esparsas, traz um novo paradigma ao tema das limitadas. À regulação da
matéria são postos os desafios de incentivar a atividade econômica, respeitando a livre
iniciativa, e de, ao mesmo tempo, proteger interesses sociais, realizando os preceitos da
função social da empresa e de sua preservação. Na tentativa de alcançar todos esses
propósitos, o Código concebe dispositivos que ora valorizam a liberdade de contratar,
ora impõem limites e deveres à atuação empresária, concretizando um verdadeiro
modelo híbrido e, em certos casos, bastante controverso.
O art. 1.053, talvez o mais importante do capítulo das limitadas, na tentativa de
abarcar a complexidade do modelo das limitadas, acaba gerando vários desencontros e
imprecisões, em certa medida, até piores do que os do regime anterior. Há situações em
que não fica claro quando e como devem ser aplicadas as normas de regência supletiva.
Por causa dessas imprecisões caberá aos julgadores a mestria de decidir, não só a partir
das formas preceituadas no contrato social ou na lei, mas também levando em conta as
reais intenções consubstanciadas dos sócios (art. 112 CC), bem como princípios da
função social dos contratos e da preservação da empresa.
Além das inovações, são também pertinentes as omissões do novo diploma. O
Código Civil perdeu a oportunidade de pôr fim a vários debates como o acordo de
quotistas, não disciplinou mecanismos reais de controle do capital social e, o mais
importante, reafirmou a permissividade do regime anterior, não definindo um capital
569 Carvalhosa entende que “serão amplamente aplicáveis às Sociedades Limitadas às regras da Sociedade Anônima no que respeita, sobretudo, à sua estrutura organizacional, direitos, deveres e responsabilidades dos administradores”. Logo, na opinião de Carvalhosa, serão também aplicáveis “as regras que regem os pactos parassociais, como o acordo de acionistas” (CARVALHOSA,op. Cit. 2003, p. 55).. 570 Fabio Ulhôa Coelho entende que os acordos de quotistas só podem recair sobre as chamadas cláusulas acidentais do contrato, isso é, sobre aquelas cláusulas não dispostas como obrigatórias pelo art. 997 do Código Civil. (COELHO,op. Cit. 2003. p. 35).
135
mínimo para a criação de limitadas. Todas essas lacunas, e em especial a última,
permitem abusos econômicos de todo gênero, conforme já foi observado no regime
anterior. Logo, não é descabida a afirmação de que o Código de 2002 conservou várias
distorções do antigo modelo e, assim, não foi capaz de estabelecer regras adequadas às
necessidades econômicas do país, nem tampouco incentivou um desenvolvimento
prudente das atividades empresárias.
As imprecisões e omissões do Código certamente irão gerar resultados
controversos nos tribunais, aos quais será incumbida a árdua tarefa de dar certa unidade
e integridade ao regime das limitadas. Nesse sentido, é possível asseverar que o novo
regime translada a responsabilidade de coerência do sistema aos julgadores. Como bem
afirma Gustavo Tepedino, ao apontar a crise de fontes normativas no Código de 2002,
no novo regime “caberá ao intérprete, e não ao legislador, a obra de integração do
sistema judiciário, e esta tarefa há de ser realizada em consonância com a legalidade
constitucional”. 571
7. Referências.
BARBOSA, Ana Beatriz Nunes .Boa Fé nas Relações entre Sócios. Revista Forense (Impresso), v. 407. BERALDO, Leonardo de Faria CAMPOS FILHO, Moacyr. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. CAMPOS FILHO, Moacyr. Sociedade de Responsabilidade Limitada. In, BERALDO, Leonardo de Faria. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. CARVALHOSA, Modesto. Parte Especial: direito de empresa, da sociedade personificada. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira. Comentários ao Código Civil. São Paulo, 2003. COELHO, Fabio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. São Paulo: 2003. ____________. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2011. FRANCO, Vera Helena. O triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil, Revista de Direito Mercantil, v. 123, jul-set, 2001.
571TEPEDINO, Gustavo. Introdução: Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 28.
136
FRAZÃO, ANA. A função social da empresa na constituição de 1988. In: LIMA, Frederico. H. Viegas. Direito Civil Contemporâneo. Brasília: Obcursos, 2009. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Sociedades Limitadas de Acordo com o Código Civil de 2002. – São Paulo: Atlas, 2003. LARENZ, Karl, Derecho de Obligaciones. Revista de Derecho Privado, Madrid. Editora Madrid, 1958 Apud. Traduzido e citado por Waldirio Bulgarelli em Contratos Mercantis. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000. LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Responsabilidade dos Administradores das Sociedades por quota de responsabilidade limitada. Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico Financeiro , n. 25, ano XVI,– Nova Série. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5. Ed. Atual. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <www1.jus.com.br>. Acesso em 12.12.11 MARTINS, Fran. Sociedades por Quotas no direito estrangeiro e brasileiro – volume 1 – Rio de Janeiro: Forense, 1960. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 1º Volume. São Paulo: Saraiva, 2003. ROCHA, Eduardo Augusto Franklin. Acordo de quotistas nas sociedades limitadas. In. In, BERALDO, Leonardo de Faria. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. SOUZA, Sylvio Capanema de. Impacto do Novo Código Civil no Mundo dos Contratos.<http://www.universojuridico.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=1340>. Acesso em 03.12.11. TEPEDINO, Gustavo. Introdução: Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003
137
V. REFLEXÕES ACERCA DO PODER DE CONTROLE
Eduardo Kruel Rodrigues SUMÁRIO 1. Introdução. 2. O desenvolvimento do poder de controle e suas implicações. 2.1.
A socialização do investimento e os perfis de acionistas. 2.2. A dissociação entre capital e
controle. 2.3. Superação da noção democrática na tomada de decisões. 2.4. Finalidade jurídica
na identificação do controlador. 3.5. A definição do poder de controle. 3.6. A diferenciação do
poder de controle e os níveis de poder na sociedade. 3.7. A manifestação do poder de controle
na assembleia geral. 3.8. O duplo papel de controlador-administrador. 3.9. Formas de controle.
3.10. O controle compartilhado e o direito de veto. 4. O poder de controle na Lei 6.404/76. 5.
Questões. 5.1. A responsabilização por omissão do acionista majoritário. 5.2. As repercussões
do controle externo. 5.3. A pulverização do capital social e o poder gerencial. 5.4. Análise
comparativa das formas de controle: suas vantagens e desvantagens. 6. Conclusão. 7.
Referências.
1. Introdução
O presente artigo tem por objetivo levantar alguns questionamentos
relacionados ao poder de controle nas sociedades anônimas. Grosso modo, as questões
levantadas giram em torno da identificação do poder de controle e da responsabilidade
do controlador, considerando as diversas formas de controle.
Inicia-se com uma análise do que é o poder de controle, tendo como ponto de
partida a dissociação entre capital e controle. Em seguida, é analisada uma série de
elementos afeitos ao tema: sua importância, seu desenvolvimento histórico, suas
repercussões, sua definição, sua distinção em relação aos demais níveis de poder da
sociedade e sua forma de manifestação.
Após uma exposição das formas de poder de controle (totalitário, majoritário,
minoritário, gerencial e externo) e uma breve exposição de situações de controle
compartilhado, em especial quanto à sua ocorrência em casos de acordo de acionistas
que garantam exercício de direito de veto, analisa-se o tratamento dado pelo nosso
ordenamento jurídico para a identificação da figura do controlador. Nesse sentido,
138
analisam-se os requisitos legais determinados pelo art. 116 da Lei 6.404/76 (LSA) para
a conceituação do controlador.
Em seguida, passa-se a analisar algumas questões particulares afeitas ao tema
poder de controle. De forma genérica, as questões tratam de analisar a capacidade de
nosso ordenamento jurídico, sobretudo diante de sua conceituação de controlador,
englobar, de forma completa, as distintas formas de poder controle e a sua função
social.
Assim, a primeira questão trata de situação envolvendo a omissão (não dolosa)
do acionista majoritário no direcionamento dos negócios da companhia. Trata-se de
verificar se em tais situações o acionista majoritário deveria ser identificado como
controlador e, por conseguinte, lhe ser aplicado a correspondente responsabilidade.
A próxima questão trata do poder de controle externo. Em tal ponto, buscar-se-
á verificar se nosso ordenamento é apto para captar tal forma de controle, bem como
verificar a necessidade de se efetivamente tutelar tal situação de controle.
A terceira e última questão diz respeito às situações de pulverização do
controle de uma sociedade. Após breves considerações sobre a importância do Novo
Mercado para a materialização de tal fenômeno no cenário nacional, passa-se a
perquirir a adequabilidade de nosso conceito legal para incorporar as particularidades de
tal forma de controle, sobretudo em situações de controle gerencial.
Por fim, buscar-se-á fazer uma análise comparativa entre os sistemas de
organização do poder de controle, com o fim de se analisar a pergunta que sempre está
presente quando se trata do tema: existe forma ideal de estruturação do poder de
controle?
Conforme se depreende, o presente artigo tem por escopo uma análise de
diversas manifestações do poder de controle, seja no plano puramente teórico, seja nas
implicações concretas de materialização do instituto. Assim, pretende-se não uma
exposição exaustiva do assunto, mas uma abordagem geral que permita uma análise,
ainda que simplificada, do poder de controle como um todo, em suas diversas faces.
2. O desenvolvimento do poder de controle e suas implicações
A compreensão do “poder de controle” demanda a análise de dois pontos
que se relacionam: i) a socialização do investimento, e ii) a dissociação entre capital e
controle. Trata-se de fenômenos intimamente relacionados ao desenvolvimento
139
histórico das formas societárias mundiais, sobretudo, do desenvolvimento da sociedade
anônima.
2.1. A socialização do investimento e os perfis de acionistas
A liberalização das sociedades anônimas no século XIX572 permitiu a
proliferação de uma estrutura societária (a sociedade anônima) capaz de, de forma
eficiente, cooptar recursos financeiros dos diversos segmentos da sociedade civil, seja
de outras sociedades empresárias, seja da poupança popular. Consequência dessa
socialização dos investimentos foi o crescimento significativo das bases acionárias,
representando a entrada de uma enorme massa de pessoas, na qualidade de investidores,
no seio da sociedade empresária.
Como era de se esperar, esse aglomerado de (novos) investidores não poderia,
de forma simplista, ser identificado como um corpo uno e coeso. Representando os mais
diversos segmentos da sociedade, cada acionista via e tratava seus investimentos na
sociedade empresária de forma própria, o que repercutia sobre suas relações com a
companhia. Dessas diferentes formas de relações e de interesses com a sociedade,
passou-se a identificar certos perfis gerais de acionistas: o empreendedor e o investidor.
Fazendo uso das lições de Fábio Ulhoa Coelho (2010: 282), o acionista
empreendedor é aquele com interesse na exploração de determinada atividade
econômica, ou seja, é aquele com interesse direto na própria exploração da empresa,
enquanto atividade; são aqueles que “vivenciam a experiência da empresa”. Por outro
lado, os acionistas investidores são aqueles que, ainda conforme Coelho (2010: 282),
“identificam na ação da companhia uma boa oportunidade para empregar o dinheiro que
possuem”, pelo que se debruçam, sobretudo, sobre os números da empresa. Deve-se
fazer menção a dois subperfis do acionista investidor, cada qual com suas
peculiaridades: o rendeiro e o especulador. Sinteticamente, enquanto aqueles se
norteiam sob as perspectivas de longo prazo de seus investidores, estes “buscam
otimizar ganhos imediatos, e estão atentos às cotações das bolsas no mundo todo, e
outros investimentos financeiros, procurando, a cada momento, as alternativas mais
atraentes em termos de liquidez, risco e rentabilidade.” (Coelho, 2010: 282).
Como não poderia deixar de ser, estes perfis de acionistas, representando, cada
qual, uma forma de interesse na sociedade, repercutem na participação dos acionistas
572 Conforme aponta Ana Frazão (2011: 28): “[...] o regime de autorização estatal foi sendo gradativamente substituído pelo regime da livre criação ao longo do século XIX, inclusive no Brasil. Surgiu, aí o terceiro período na história das sociedades anônimas, marcado pela livre constituição, de forma a atender aos anseios do liberalismo econômico do período.”
140
nos diversos órgãos societários, seja em órgãos da administração, seja no órgão base da
sociedade – a assembleia geral. É a consequência natural dessas diversas formas de
relações entre acionista e companhia. Enquanto aqueles acionistas empreendedores têm
uma relação mais direta e imediata com a companhia, tendo interesse em (quase) todos
os assuntos relacionados a seu desenvolvimento, acionistas investidores mantêm uma
postura mais distante para com a sociedade, visando, basicamente, à proteção de seu
investimento.
2.2. A dissociação entre capital e controle
Essa falta de relação mais direta dos acionistas investidores, sobretudo dos
especuladores, acaba por implicar seu afastamento do mecanismo societário, deixando a
cargo dos empreendedores a tarefa de gerenciar a sociedade. Assim, chega-se ao
segundo elemento importante para a compreensão do poder de controle: a dissociação
entre a titularidade do capital social e o controle da atividade empresária. Isso significa
dizer que quem determina os rumos da sociedade empresária não é o detentor de todo
aquele patrimônio nem de sua maior parte e, em alguns casos, sequer tem qualquer
forma de participação no capital social da empresa.
A dissociação entre a propriedade dos bens de produção e o seu controle foi
apontada ao menos desde a década de 1930, a partir do importante estudo de Berle e
Means, que importantes conseqüências trouxe para a estruturação e a percepção dos
centros de interesses e de poder de uma sociedade empresária. Conforme a lição dos
autores, pode-se distinguir entre três funções dentro de uma sociedade: aquela de ter
interesse na sociedade empresária; aquela de ter poder sobre ela; e, por fim, aquela de
atuar em relação à companhia.573 Nada mais são que os três níveis em que se estabelece
a estrutura de poder na sociedade anônima apontados por Comparato (Comparato;
Salomão Filho, 2008: 41) em sua clássica obra O Poder de Controle na Sociedade
Anônima: o da participação no capital ou investimento acionário; o da direção; e o
controle.
E é assim que se chega aos contornos do poder de controle. Passou-se a
constatar a existência desse centro de poder no seio da sociedade, um poder que não
necessitava estar lastreado em participação societária, ou até mesmo na ocupação de
573 Tradução livre de: “In discussing problems of enterprise it is possible to distinguish between three functions: that of having interests in an enterprise, that of having power over it, and that of acting with respect to it. A single individual may fulfill, in varying degrees, any one or more of these functions.” (Berle e Means, 2010: 112)
141
cargos de direção da sociedade. Identificou-se o poder de controle como um poder
autônomo, ainda que relacionado aos demais níveis de poder (o de direção e o domínio
sobre o capital social).
2.3. Superação da noção democrática na tomada de decisões
A identificação desse novo nível de poder foi de extrema importância para a
superação da noção de soberania da assembléia geral e da “democratização” que tal
modelo implicava574. Até então, e incluindo o Brasil no sistema vigente antes da Lei
6.404/76, prevalecia a noção de que as decisões da companhia eram tomadas
democraticamente pela comunhão dos acionistas reunidos em assembleia geral (Eizirik,
2010: 181). Tinha-se a concepção de que o poder efetivo da sociedade pertencia não a
um determinado centro putativo (o que veio a ser identificado, posteriormente, como o
controlador), mas a todos os acionistas575, o que impossibilitava a identificação dos
reais responsáveis pelo comando da sociedade.
Ao se considerar que as deliberações em assembleia geral sempre foram
tomadas com base não na quantidade de acionistas, mas na participação de cada um no
capital social (e mais grave ainda, somente aquelas ações com direito a voto) evidencia-
se o nítido caráter utópico e romantizado da perspectiva “democrática” das deliberações
da sociedade. A partir do momento em que se trouxe à tona que o resultado de uma
deliberação não poderia, indistintamente, ser atribuído a todos acionistas, mas muitas
vezes a um único acionista, evidenciou-se a tensão existente na sociedade: o conflito
entre controladores e não controladores.
Com a identificação do poder de controle, pôde-se perceber que essa
“soberania da assembleia geral”, ao qual a visão democrática se prendia, apenas
dissimulava as reais relações de poder na sociedade. Agora, com a identificação do
poder de controle, ao invés de se imputar a direção da sociedade empresária a toda a
massa de acionistas, verificou-se que seria possível (e correto) atribuí-la a um
determinado agente, o controlador.
574 Não por menos, um dos pontos que a doutrina realça na nossa Lei de Sociedades Anônimas foi o reconhecimento desse centro de poder. 575 Vide interessante passagem de Comparato (Comparato; Salomão Filho, 2008: 39): “Aliás, a definição legal dos centros de poder, no Direito atual, parece coincidir, raramente, com a realidade do poder. A declaração constitucional de que ‘todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido’, por exemplo, tem se apresentado mais como enunciado de princípio, de valor programático, do que como disposição efetivamente vinculante na prática política, onde a noção de ‘povo’ se revela excessivamente abstrata. Analogamente, na pesquisa da realidade de poder, na sociedade anônima, não nos podemos contentar com a afirmação legal de que ‘a assembléia geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da sociedade e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento’ (Lei nº 6.404, art. 121). Quem toma, de fato, as decisões em assembléia?”
142
2.4. Finalidade jurídica na identificação do controlador
Diante dessa nova figura do controlador, e de toda importância que ele
representa para o funcionamento da sociedade, restou às leis societárias atribuir-lhes
novas responsabilidades e deveres que não se aplicariam aos demais órgãos societários.
Nesse sentido, nos ensina Nelson Eizirik:
Para evitar a diluição de responsabilidade que este sistema acarretava – pois não se podia apontar o acionista efetivamente responsável pelas deliberações sociais –, a Lei 6.404/1976 definiu a figura do acionista controlador e, ao mesmo tempo, atribuiu-lhe uma série de deveres não imputáveis aos demais acionistas. (2010:181)
Entretanto, a primeira finalidade dada a esse centro de poder da sociedade (o
controlador) não foi a composição do conflito controlador/não controlador - por meio
da responsabilização e imputação de deveres àquele e de proteção a estes. O primeiro
uso que se aponta para a identificação do controlador foi como critério de identificação
da nacionalidade das companhias – o que ocorreu, sobretudo na França e Inglaterra,
durante a Primeira Guerra Mundial (Frazão, 2011:78). Percebeu-se que o critério de
localização da sede não era suficiente. Para a identificação da “companhia inimiga”,
necessário se fazia descobrir de onde se originava sua “vontade”.
Superado esse momento, a figura do controle passou a ter tratamento jurídico,
com especial finalidade para a estruturação do poder na sociedade, especificamente,
como forma de composição dos distintos interesses dos controladores e não-
controladores.
É claro que, ainda que se possa afirmar, com precisão, que existe uma tensão
inerente entre os estados de controlador e não-controlador, isso não significa que
existirá, de fato, uma situação de real conflito dentro de todas as sociedades. Pode-se
pensar em situações em que os diversos interesses se encontram em estado de
equilíbrio, propiciando o desenvolvimento da sociedade, trazendo, consequentemente,
benefícios a todos. É missão do Direito propiciar esse estado de coisas, e buscar, nas
situações em que ocorre a desarmonia social, o retorno a tal estado de equilíbrio.
Nesse aspecto, a figura do controlador ganha relevante papel. A identificação
do poder de controle surge como forma de proteção aos não controladores, pelo que se
atribui ao controlador uma série de deveres e responsabilidades. Uma maior dissociação
entre capital e controle apenas evidencia, ainda mais, a importância dessa proteção, uma
143
vez que o controlador passa a gerir uma massa patrimonial para a qual ele,
individualmente, pouco contribuiu.
De qualquer forma, deve-se destacar que não é qualquer conflito que surja
entre controladores e não-controladores que deve implicar a responsabilização daqueles.
O exercício do poder de controle é, em grande parte, derivado do exercício dos
legítimos direitos e interesses do controlador. O que o Direito deve tutelar são aquelas
situações em que o controlador, valendo-se de seu poder de mando sobre a empresa, a
direcione para atividades que visem, única e exclusivamente, a seu favorecimento em
detrimento dos demais acionistas, ou até mesmo em detrimento da própria sociedade
empresária. Ou seja, deve-se evitar situações de abuso de poder de controlador,
responsabilizando-o pelos danos causados.
Mais do que a criação desse centro de imputação e de responsabilização, a
compreensão do poder de controle traz uma série de outras repercussões jurídicas no
campo societário, que, de forma mais ou menos evidente, continuam girando em torno
da tensão controlador/não-controlador. Assim, sendo o poder de controle o poder de
dispor da atividade empresária, qualquer alteração quanto ao seu titular pode ter por
consequência uma nova forma de gestão da sociedade, representando uma nova
situação de fato da sociedade. Por óbvio, essa importante alteração pode implicar
profundas modificações para os interesses dos demais sócios, sobretudo a assunção de
novos riscos. Assim, como forma de proteção de seus interesses, desenvolveu-se uma
série de institutos que lhe garantam certa proteção contra tais mudanças. Nesse sentido,
destaca-se, dentre outras, a figura do tag along, de extensão do preço da aquisição pelas
ações do bloco de controle às demais ações – todas merecendo ser tuteladas pelo direito.
Resumindo, mais do que criar um plus de responsabilidades e deveres para o
controlador, o poder de controle também implica direitos aos não-controladores. Assim,
além de uma tutela repressiva do abuso do poder de controle (por meio da
responsabilização do controlador), o tema implica uma série de tutelas preventivas a
situações que já se identificam como potencialmente desarmônicas para os interesses
envolvidos.
2.5. A definição do poder de controle
A partir dessa contextualização do poder de controle, pode-se mais facilmente
esboçar uma definição do que vem a ser esse poder de fato dentro da sociedade
empresária. Na lição de Comparato, poder de controle é um poder soberano sobre a
144
sociedade empresária (Comparato; Salomão Filho, 2008: 135), manifestado no poder de
decidir sobre outrem ou sobre bens de outrem. O mencionado autor colaciona, ainda,
percepções acerca do poder de controle de outros autores, que, devido a sua
importância, valem ser reproduzidas. Assim, citando Champaud, “controlar uma
empresa significa poder dispor dos bens que lhe são destinados, de tal sorte que o
controlador se torna senhor de sua atividade econômica” (Comparato; Salomão Filho,
2008: 126); e citando Giuseppe Ferri, “o controle exprime uma particular situação, em
razão da qual um sujeito é capaz de marcar com a própria vontade a atividade
econômica de uma determinada sociedade” (Comparato; Salomão Filho, 2008: 125).
Modesto Carvalhosa, por sua vez, assim define o poder de controle:
Controle societário pode ser entendido como o poder de dirigir as atividades sociais. Essa noção tem um sentido material ou substancial e não apenas formal. Assim, o controle é o poder efetivo de direção dos negócios sociais. Não se trata de um poder potencial, eventual, simbólico ou diferido. É controlador aquele que exerce, na realidade, o poder. Internamente, mediante o prevalecimento dos votos. Externamente, por outros fatores extra-societários. Controlar uma companhia, portanto, é o poder de impor a vontade nos atos sociais e, via de conseqüência, de dirigir o processo empresarial, que é o seu objeto. (Carvalhosa, 2009: 489)
No mesmo sentido se encontra entendimento figurado na legislação
estrangeira. A legislação norte-americana, por exemplo, reconhece o poder de controle
em termos similares: o poder de dirigir ou de causar a direção dos negócios de uma
pessoa, seja por detenção de ações com direito a voto, por contrato, ou por qualquer
outra forma.
2.6. A diferenciação do poder de controle e os níveis de poder na sociedade
Conforme apontado anteriormente, desde Berle e Means passou-se a conceber
três níveis de poder na sociedade empresária, aos quais Comparato identificou como
sendo: o da participação no capital da sociedade; a direção; e o controle. A capacidade
de gestão da sociedade está compreendida nestes dois últimos níveis: direção e
controle. Entretanto, um não se confunde com o outro. A diferenciação entre um e o
outro evidencia-se a partir da caracterização de tais funções feita por Berle e Means:
enquanto um é o poder sobre a sociedade, o outro é poder de agir em relação à
sociedade. Comparato apresenta essa distinção a partir da diferença entre controle sobre
a sociedade (poder de controle – poder de designar os administradores) e o controle
sobre a empresa (poder de direção). Ilustração disso é que o controlador sequer precisa
pertencer à diretoria. O importante é que ele possa conduzir a atividade empresária
145
conforme sua própria vontade, impondo a sua vontade aos administradores. Veja, a
exemplo disso, que o sistema britânico identifica o controle com o poder de determinar
a composição do board of directors.
Por outro lado, o poder de controle não se confunde com a participação no
capital social da sociedade, ainda que, na maioria das vezes (ao menos aqui no Brasil),
aquele derive de participação no capital social. Trata-se daquilo que já foi apresentado a
respeito da dissociação entre capital e controle. Para compreender o que representa isso,
basta perceber que não é necessário ser detentor de todo o capital social para ser
controlador. Tal dissociação chega ao ápice quando se constata que sequer é necessário
ter uma ação da sociedade para ser seu controlador – é o ocorre na forma de controle
gerencial, que será analisada mais a frente.
2.7. A manifestação do poder de controle na Assembléia Geral
A partir da identificação desses níveis de poder, é possível verificar como este
se manifesta. Conforme lição de Comparato (Comparato; Salomão Filho, 2008: 39), o
controle se manifesta por meio dos poderes decisórios da assembleia de acionistas como
necessária legitimação de seu exercício. Entretanto, trata-se de legitimação meramente
procedimental, formal.
Assim sendo, a definição do poder de controle é feita sempre em função da
assembleia geral, que constitui a última instância societária. Não por menos, Ascarelli,
citado por Comparato, o definiu como “a possibilidade de uma ou mais pessoas
imporem a sua decisão à assembléia da sociedade.” (Comparato; Salomão Filho, 2008:
39) 576
Esse papel fundamental da assembleia geral para o exercício do poder de
controle se mostra relevante para a compreensão dos diferentes tipos de controle, o que
será feito mais a frente.
2.8. O duplo papel de controlador administrador
Conforme explica Carvalhosa (2009: 494), a cumulação das funções de
administrador e controlador é extremamente comum, “já que a tendência do acionista
ou do grupo de controle será a de assumir pessoalmente o poder no Conselho de
Administração”. Ora, sendo um dos requisitos para a identificação do controlador a
576 No mesmo sentido, vide Frazão (2011: 79): “Acresce que tal premissa está em sintonia com a atual Lei da S/A (Lei nº 6.404/76), que definiu o controlador a partir da efetividade do seu poder na assembléia geral, sem restringi-lo a parâmetros fechados, motivo pelo qual admite inclusive o controle compartilhado.”
146
predominância de votos na assembleia Geral, com a eleição da maioria dos
administradores, nada impede que o próprio controlador se eleja como administrador.
Em tais situações, o controlador-administrador estaria diante de dois regramentos
próprios de responsabilidade: a do administrador e a do controlador.
As atividades dos administradores e dos controladores acabam se
aproximando, uma vez que ambos são gestores da atividade empresarial. Entretanto,
conforme já anteriormente indicado, trata-se de figuras que não se confundem,
representando cada qual um nível distinto de poder em relação à condução dos
negócios. De qualquer forma, tendo em vista a base comum desses dois centros de
poder, a racionalidade de suas respectivas responsabilidades acaba se pautando sobre os
pressupostos semelhantes. Destarte, nada obsta a análise em conjunto das
responsabilidades do controlador e do administrador. É o que nos apresenta Frazão
(2011: 248-249), em importante obra sobre o tema:
Estão, portanto, sujeitos aos mesmos princípios da ordem econômica constitucional, que oferece os parâmetros para a delimitação dos fins e objetivos da atividade empresarial, bem como para a redefinição do interesse social das companhias. Daí a possibilidade do tratamento conjunto da responsabilidade civil de controladores e administradores, conclusão que é reforçada pelos pressupostos funcionais e pragmáticos já examinados, os quais mostram que o regime de responsabilidade civil dos gestores é arquitetado para assegurar uma boa gestão, em obediência aos interesses constitucional e legalmente protegidos, tanto do nível do controle, quanto ao nível da administração strictu sensu.
Assim, pode-se conceber que os regimes de responsabilização dos
controladores e dos administradores visam à tutela de bens jurídicos próximos e, grosso
modo, o fazem de forma similar577. O próprio regime legal de responsabilização
existente na Lei 6.404/76 mostra sinais desse paralelismo, submetendo os dois sujeitos a
semelhantes regras e cláusulas gerais (Frazão, 2011: 249) 578-579-580.
577 Frise-se que está se discutindo a responsabilização diante de situações em que controlador e administrador se confundem. Em casos em que tais posições são ocupadas por diferentes agentes, entende-se que o controlador é responsabilizado mesmo diante de situações em que o administrador já é responsabilizado. Ou seja, a responsabilização de um não exclui a do outro. (Comparato, 2008: 403) 578 A autora, exemplificando essa situação, informa da recente extensão dos deveres de informar e de sigilo ao controlador, o que, até pouco tempo, era unicamente obrigação do administrador. (Frazão, 2011: 249) 579 Fato é que a responsabilidade do administrador foi tratada, pela LSA, de maneira mais pormenorizada do que em relação à responsabilidade do controlador. Isso deve à própria construção histórica dos institutos: enquanto a importância do administrador já foi reconhecida de longa data pelo direito, apenas mais recentemente (metade do século XX) o controlador passou a ser objeto de maiores reflexões. 580 Deve-se destacar, de qualquer forma, que alguns autores entendem haver certas peculiaridades entre cada um dos regimes, como por exemplo nos deveres de lealdade e nos regramentos de conflito de interesses. Nesse sentido, sustenta-se que os deveres de administrador, por decorrerem da administração de um patrimônio alheio (ainda que não exclusivamente), seriam mais acentuados, seguindo uma hipótese de conflito formal, enquanto para os controladores seria suficiente uma regra de conflito substancial. Conforme Salomão Filho (2006: 172), o conflito formal ocorre naquelas situações em que, a priori, o agente tiver interesse direto no negócio ou no ato. Não seria necessário, portanto, a indagação de lesão ao interesse social ou à sociedade. Por outro lado, o conflito substancial se reduz a um critério de culpa, em face de certos padrões (por exemplo, a razoabilidade de mercado).
147
Entretanto, ainda que tenham raízes e propósitos semelhantes, nas situações em
que as funções de controlador e administrador se reúnem em uma mesma pessoa, os
dois sistemas de responsabilidade lhe devem ser aplicados (Carvalhosa, 2009: 494).
Trata-se de regra decorrente da própria LSA, como se depreende do art. 117, §3º.
Apenas com a utilização desses dois institutos pode-se tutelar efetivamente essas
situações em que o poder sobre a companhia se concentra, de maneira preocupante, sob
um único indivíduo.
3. Formas de controle
A doutrina identifica, tradicionalmente, cinco formas de manifestação do poder
de controle: totalitário, majoritário, minoritário, gerencial (essas quatro sendo
consideradas formas do controle interno) e externo.
As formas de controle interno significam que o seu titular (ou seja, o
controlador) atua no interior da própria sociedade, ou seja, representa um órgão na
estrutura social. Por outro lado, o controle externo é aquele em que seu titular não se
encontra no interior da sociedade, sendo, no mais das vezes, um exercício de fato que
passa à margem do direito.
Poder de controle totalitário: forma de controle exercida pelos acionistas
detentores da quase totalidade das ações com direito a voto. Pode-se falar que, em certa
medida, propriedade e controle acabariam se identificando. Entretanto, em sociedade
em que existem ações preferenciais, continua a haver essa dissociação, permanecendo,
pois, o conflito. Situação interessante que representaria tal forma de controle seria o
controle compartilhado entre todos os acionistas.
Ainda que se possa, em tal estruturação do controle, falar em inexistência de
conflitos dentro dos órgãos societários, isso não pode ser interpretado como
inexistência de conflitos derivados da atividade empresária. Em tal forma, persistem os
conflitos externos aos órgãos societários, por exemplo, entre a sociedade empresária e a
sociedade civil, os trabalhadores e os consumidores.
Poder de controle majoritário: forma de controle exercida pelo detentor da
maioria das ações com direito a voto. Lastreia-se, pois, no princípio majoritário. De
qualquer forma, deve-se frisar que essa maioria titularizada pelo controlador não
representa, necessariamente, a maior parte dos investimentos aportados à sociedade,
mas, tão somente, maior detenção de ações com direito a voto. O direito societário
148
fornece uma série de elementos que potencializam a dissociação capital – controle; de
se ver, por exemplo, as ações preferenciais sem direito a voto.
Trata-se da forma predominante no Brasil, ainda que o Novo Mercado tenha
dado indicações de um novo horizonte por vir. Dentro de tal forma de poder de controle,
o conflito que se verifica é entre o acionista controlador e o acionista não-controlador.
Poder de controle minoritário: trata-se de poder fundado em menos da
metade do capital votante. Tal forma de controle pode resultar de duas situações: (i) a
existência de um acionista majoritário que não exerce de fato o controle, sendo este
exercido por outro acionista que não o majoritário, ou (ii) o controle exercido pelo
acionista minoritário diante da dispersão das ações da companhia e de um elevado grau
de absenteísmo da grande massa de acionistas, pelo o que a ‘vontade’ do minoritário
não consegue ser suplantada pelos demais acionistas. Trata-se de forma de controle que
vem ganhando destaque diante das perspectivas do Novo Mercado da Bolsa de Valores.
As companhias listadas nesse segmento especial adotam práticas diferenciadas de
Governança Corporativa que acabam reduzindo, substancialmente, a possibilidade de
extração de benefícios do acionista controlador majoritário. Sem esse benefício, a
dispersão acionária se apresenta como interessante alternativa para o antigo acionista
majoritário.
Poder de controle gerencial: trata-se de curiosa forma de controle que não é
fundada na participação acionária, mas unicamente nas prerrogativas diretoriais. A
partir de uma extremada diluição acionária, os administradores assumem o controle
empresarial, transformando-se em órgão que se autoperpetua no poder. Explora-se o
elevado grau de absenteísmo dos acionistas por meio, sobretudo, de sistemas de
procurações (proxy machinery)581. A dissociação entre capital e controle é levada ao
extremo sob tal forma de controle. Trata-se de forma de estruturação de poder que se
manifesta, de forma geral, somente nos Estados Unidos.
Conforme aponta Comparato (Comparato; Salomão Filho, 2008: 73), tal forma
de controle representa forte argumento a favor da teoria institucional da sociedade
anônima. Uma vez que a “vontade” da sociedade transcenderia à vontade do corpo de
acionistas, impraticável à análise da sociedade por meio de critérios contratualistas.
Outra forma de manifestação do poder de controle gerencial é a de companhias
controladas por fundações, conforme apresenta Comparato (Comparato; Salomão Filho,
2008: 73), por meio do qual competirá aos curadores do patrimônio fundacional “as 581 Observa-se, pois, a manifestação desse poder na Assembléia Geral.
149
decisões concernentes à gestão e disposição dos bens da fundação”. Nesta forma de
controle, o conflito existente é aquele entre o corpo de acionistas e o corpo de
administradores – o chamado agency problem.
Por fim, o poder externo. Trata-se de forma de controle bastante peculiar,
devendo ser identificada caso a caso. Parte do conceito de influência dominante, que é
exercido por uma figura estranha à sociedade. Ainda que se possa entender o exercício
do poder de controle externo por meio de posição jurídica, grande parte de sua
manifestação é “simplesmente” uma situação de fato, passando, no mais das vezes,
despercebido pelo direito societário. Apresentam-se as seguintes situações como
configuradoras de tal forma de controle: (i) endividamento da sociedade – tendo a
possibilidade de proceder à execução forçada da sociedade, com risco de levá-la a
falência, o credor acaba dominando a atividade empresarial; (ii) empréstimo em que o
credor recebe como caução ações do bloco de controle; (iii) situações de oligopsônio ou
monopsônio.
Tais formas de controle não têm, na realidade, separação nítida, muitas vezes
sendo difícil a perfeita aplicação de uma forma de controle a uma dada situação.
Adverte-se, portanto, que figura impossível traçar uma nítida linha divisória entre esses
diferentes tipos de controle, de tal maneira que cada qual seja inteiramente excludente
dos demais (Comparato; Salomão Filho, 2008: 52).
3.10. O Controle Compartilhado e o Direito de Veto
O exercício do poder de controle pode não ser atribuído a um único
acionista, o que pode se dar em diversas situações. Por exemplo, um acionista
majoritário, de forma a atrair o investimento de determinado agente, abre mão de parte
de seu poder, concedendo a este último algumas prerrogativas, tal como direito de veto
em determinados temas, de forma a proteger o seu investimento582. Em casos como
esse, pode-se identificar estruturas de controle compartilhado, figurando-se não um
acionista controlador, mas um bloco de controle.
Entretanto, não é qualquer vínculo parassocial que implica o aparecimento
de um bloco de controle. Resta saber em que situações pode-se, efetivamente, constatar
a existência de uma estrutura de poder compartilhada (pela qual o minoritário também é
582 O mesmo princípio aqui apresentado pode ser aplicado a outras situações de poder de controle derivado de acordo de acionistas.
150
identificado como controlador), e não somente o controle simples de um único
acionista, ainda que com alguma influência relevante de um acionista minoritário.
Conforme Villas Boas (2010: 16), citando parecer da Procuradoria Federal
Especializada da CVM, somente se fala em controle compartilhado (ou controle
conjunto) quando o grupo de controle exerce as prerrogativas e as responsabilidades que
incubem ao acionista controlador de forma coletiva, quando as pessoas que constituem
tal grupo agem e respondem como se fossem uma única pessoa, sem que cada um possa,
por si só, ser considerada controlador.
Assim, a identificação de um bloco de controle não se dá de forma
automática após a constatação da existência de um acordo de acionista que garanta a
maioria das ações com direito a voto. Deve-se proceder, ainda, a uma minuciosa
análise do contexto em que os acionistas interagem ente si, de forma a tomarem suas
decisões e conduzirem os negócios da companhia (Villas Boas, 2010: 11). É necessário
que, por meio do ajuste parassocial (o acordo de acionista), o minoritário atenda aos
requisitos legais para ser identificado também como controlador; ou seja, que possa ser
identificado com detentor de poder para a condução dos negócios da companhia.
Conforme a autora (2010: 10):
Tal análise é de extrema importância posto que a ausência dos requisitos inerentes ao reconhecimento do acionista controlador farão com que não exista entre o investidor engajado e o acionista majoritário um bloco de controle, mas somente a existência de um acionista minoritário (posto que não detém a maioria das ações com direito a voto da companhia) que apresenta influência relevante nas decisões e atos societários de determinada empresa. Partindo de tal pressuposto, passará o acionista majoritário a ser também o acionista controlador da companhia, detendo o denominado controle simples.
Assim, garantido aos sócios vinculados por acordo de acionista a
predominância de votos na assembleia Geral, com a eleição da maioria dos
administradores (primeiro requisito para a identificação do poder de controle), deve-se,
no intuito de verificar se o minoritário é parte do bloco de controle, perquirir sobre
quais matérias ele tem direito a veto. Apenas nos casos em que, por meio de tal direito,
se permite ao minoritário a efetiva orientação das atividades sociais, é que se pode
constatar a existência de um controle compartilhado. Em tais situações, mais do que
simples proteção do investimento, os direitos concedidos ao minoritário investidor lhe
conferem poder para ingerir no funcionamento e manutenção da empresa.
Constatada a possibilidade de ingerência, de forma permanente, na
Assembleia geral e o poder de deliberação (ainda que por meio do exercício de veto) às
151
matérias afeitas ao gerenciamento da companhia, poder-se-ia constatar a figura de um
bloco de controle, sendo a ambos os acionistas (o majoritário e o minoritário) atribuídas
as responsabilidades de controlador.
3. O Poder de Controle na Lei 6.404/76
O reconhecimento do poder de controle é comumente apontado como um dos
grandes méritos da nossa Lei das S.A (Lei 6.404/76). Até então, fundado na noção de
soberania da assembléia geral, nosso regime jurídico se utilizava não da figura do
acionista controlador, mas de outro conceito: de acionista majoritário.
Segundo o regime anterior, em que havia uma correlação entre capital
empregado e mando, atribuía-se o voto (Carvalhosa, 2009: 476) a todos os acionistas
titulares de ações ordinárias, dando aos votos majoritários totais direitos de decisão (a
“ficção democrática”). Assim, mais encobrindo do que identificando os verdadeiros
donos do negócio, nosso ordenamento jurídico não estabelecia responsabilidades
específicas para o controlador nem trazia uma proteção extensa e sistemática aos
minoritários.
Evidencia-se, pois, o avanço implementado pela Lei 6.404/76, em que,
superando a ficção democrática, personaliza o poder de controle sobre o patrimônio
social, definindo os deveres e as responsabilidades de quem efetivamente detém o
comando no seio da companhia (Carvalhosa, 2009: 488).
Segundo a definição legal apresentada pelo art. 116 da Lei das S.A:
Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:
a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e
b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
Conforme se depreende, nosso ordenamento se centra não mais na
titularidade da maioria do capital votante, mas em função do efetivo exercício do poder
de direção. Sendo assim, para a identificação do acionista controlador, deve-se cumular
152
os seguintes elementos: (i) a predominância de votos na assembleia geral, com a eleição
da maioria dos administradores; (ii) a permanência dessa predominância; e (iii) o
efetivo uso do poder de dominação (Eizirik, 2010: 179). Destarte, o poder de controle é
o exercício real do poder, não sendo um mero poder potencial, eventual, simbólico ou
diferido, nas palavras de Carvalhosa (2009: 489).
Sendo ponto de partida necessário para a personificação do controlador e,
consequentemente, para se identificar a quem se atribui uma série de responsabilidades
específicas583, a definição legal se encontra no centro de uma série de questões
envolvendo o poder de controle. Conforme será adiante tratado, a conceituação legal
deve ser confrontada com a realidade, de forma a se perquirir sua adequabilidade para
incorporar ou abarcar as novas perspectivas do poder de controle – não só quanto à sua
forma, mas também quanto à sua função social.
4. Questões
Apresentadas, de forma geral, essas considerações acerca do poder de controle,
bem como a exposição de sua conceituação pelo nosso ordenamento jurídico, pode-se,
mais apropriadamente, abordar algumas questões afeitas ao tema. Buscar-se-á
confrontar o texto normativo em face de algumas situações peculiares decorrentes do
poder de controle. Para tanto, far-se-á uso não só do texto frio da Lei 6.404/76, mas
também das repercussões dos princípios próprios do Direito Comercial e dos ditames
constitucionais. Mais do que respostas, se busca a problematização do tema,
fomentando o debate.
4.1. A responsabilização por omissão do acionista majoritário
Deve o acionista majoritário ser responsabilizado inclusive nos casos em que
ele se abstém de exercer o poder de controle? Ou seja, basta estar na posição de
acionista majoritário para ser identificado como controlador e, consequentemente, lhe
serem atribuídos os deveres e responsabilidades correlacionados?
A questão não envolve casos de omissão dolosa do controlador, ou seja, casos
em que o acionista majoritário vem usualmente exercendo seu poder de controle, mas
que, diante de uma determinada deliberação, se abstém de exercer seu poder tendo em
vista os benefícios que poderá extrair de tal omissão.
583 Art. 117 da Lei 6404/76.
153
A questão trata daquelas situações em que um detentor da maioria das ações
usualmente se mantém inerte em relação ao controle da sociedade, cabendo este a
acionistas minoritários ou até mesmo a alguma forma de controle gerencial. Em tais
casos, para fins de responsabilização, pode o acionista majoritário ser considerado
controlador? Tal pergunta, a bem da verdade, implica outra mais genérica: o acionista
majoritário sempre será controlador?
A nossa Lei das S/A, em seu art. 116, apresenta, conforme dito anteriormente,
três elementos para a identificação do controlador: (i) a predominância de votos na
Assembléia Geral; (ii) a permanência dessa predominância; e (iii) o uso efetivo do
poder de direção tal poder. Discute-se se, de fato, exige o mencionado dispositivo esses
pré-requisitos para a qualificação do controle (Comparato; Salomão Filho, 2008: 69),
ou se, independentemente da existência do elemento ‘uso efetivo’, poder-se-ia alcançar
o acionista majoritário.
A questão parte da percepção de que o acionista majoritário estaria em uma
posição fática e jurídica capaz de alterar os rumos da sociedade pela sua própria
vontade. Diante de tal percepção, o minoritário que estivesse exercendo controle estaria
em uma situação de precariedade, uma vez que seu controle poderia ser substituído pelo
controle do majoritário, sempre que este o quisesse. Assim, poder-se-ia sustentar que
haveria a responsabilização de ambos: a do majoritário por omissão e a do minoritário
por comissão.
Tal posição é apresentada por Calixto Salomão Filho (Comparato; Salomão
Filho, 2008:69-71):
Muito discutida é a existência no referido artigo [art. 116 da Lei 6.404/76] de dois requisitos para a qualificação do controle: em primeiro lugar, a existência de direitos de sócio que assegurem, de modo permanente, a maioria de votos na Assembléia Geral. Em segundo lugar, o uso efetivo do poder para dirigir as atividades sociais. Apesar de o primeiro requisito aparentemente indicar no sentido da exigência de controle majoritário, o segundo claramente é aplicável só a casos de controle minoritário. Em caso de controle majoritário, é irrelevante o uso efetivo do poder: o acionista terá status de controlador e as responsabilidades dele decorrentes, seja por ação ou por omissão. [...] Para a aplicação da disciplina de responsabilidade, o controle minoritário é plenamente suficiente (sem afastar, é claro, a responsabilidade do majoritário por omissão) [...]
Comparato (2008: 392-393), da mesma forma, parece indicar que,
independente da previsão legal no art. 117 da LSA, que apenas elencou hipóteses
comissivas, a cláusula genérica do art. 116, parágrafo único, seria suficiente para captar
154
a ação omissiva. Apenas não fica claro se a omissão a que ele se refere é a ‘dolosa’ ou
propriamente a forma de omissão aqui sendo tratada.
Tais posições, em alguma medida, se sustentam na função social da
propriedade. Incorporado do direito alemão, o princípio de que “a propriedade obriga”
faria surgir um dever do acionista majoritário no sentido de dar um destino social à sua
propriedade – o bloco de controle –; criando, pois, um dever de se evitar o mau uso da
sociedade empresária. Consequência desses deveres seria a sua responsabilização por
omissão.
Em que pese a força de tal princípio, inclusive elencado na Constituição como
princípio ordenador da ordem econômica, há bons elementos para que ele tenha uma
interpretação temperada para o direito comercial.
Ora, seria implausível se cogitar de que um “simples” investimento (capaz de
assegurar uma posição de acionista majoritário) já não representaria uma função social
em si mesmo?
O investimento não deve ser tutelado unicamente em vista dos interesses
individuais do investidor; não se pode afastar a repercussão social do investimento na
sociedade civil, seja na criação de empregos, tributos, oferta de novos produtos,
desenvolvimento tecnológico... Assim, a lei, ao proteger o investimento, está
necessariamente resguardando interesses que não se reduzem aos do investidor (Coelho,
2012: 33). Como ensina Fábio Ulhoa Coelho (2012: 21) “a chave é demonstrar como
aproveita aos interesses metaindividuais de todos os brasileiros a proteção jurídica
liberada ao investimento”.
Deve-se, portanto, afastar uma visão reducionista quanto à função social do
“simples” investimento. Incrementar o “custo” do investimento (responsabilizando o
investidor por omissão) pode trazer nefastas consequências para a economia nacional,
podendo, inclusive, afastar investimento no país. A situação se agrava ainda mais ao se
considerar que, atualmente, a partir do fenômeno da globalização, os investimentos
competem em uma base global584.
Não se pode esquecer deque uma não responsabilização do acionista
majoritário não deixaria, por si só, ao desamparo a sociedade civil ou demais indivíduos
com interesses na sociedade empresária. Persistiria ainda a responsabilização daquele
que, no caso, foi a origem dos prejuízos causados: o minoritário.
584 Vide, nesse sentido, artigo de Fábio Ulhoa Coelho: “Democratização” das Relações entre os Acionistas.
155
Destarte, deve-se sopesar até que ponto uma maior responsabilização do
acionista majoritário deva ir, tendo em vista outros aspectos relevantes de seu
investimento. Por outro lado, a flexibilização demasiada do conceito legal
(inexigibilidade do requisito ‘uso efetivo’) poderia implicar um desvirtuamento do
sistema normativo: em última análise, poderia significar um retorno ao sistema
majoritário vigente pré-LSA.
4.2. As repercussões do poder de controle externo
O poder de controle externo é envolto de elevado grau de obscuridade do ponto de
vista jurídico-societário. Tal característica advém de sua própria essência em que,
prescindindo de estruturas jurídicas, se passa – em várias situações – no plano
puramente fático. Basta lembrar da situação de companhia em situação de monopsônio.
Não por menos, acaba se utilizando uma terminologia distinta para o poder de controle,
preferindo-se a utilização do termo “influência dominante” (Comparato, Salomão Filho,
2008: 89).
A análise da influência dominante tem terreno fértil na área do direito antitruste,
em que, acima da independência societária, deve-se atentar para independência
econômica dos agentes. Entretanto, no campo societário, a discussão é marginalizada,
sobretudo porque tal ramo do direito tem escopo distinto. Como bem coloca Salomão
Filho (Comparato; Salomão Filho, 2008: 90):
No direito societário, a mesma preocupação com a realidade das formas, portanto com o poder de disposição sobre unidades juridicamente autônomas mas economicamente dependentes, tem escopos diversos. A preocupação é com a determinação por interesses estranhos aos interesses da sociedade dos destinos do patrimônio social [...] Daí porque a idéia de influência dominante no direito societário é de pouco valor explicativo.
Diante de tal grau de indeterminação do poder de controle externo, em que a
análise de sua ocorrência acaba se dando caso a caso, poucas análises têm sido feitas
quanto à responsabilização de seu titular. Exceção pode ser apontada para aqueles casos
em que o exercício de controle externo é decorrência de dispositivos legais próprios,
como é o caso da intervenção administrativa ou judicial. Em casos como esse, pouco se
duvida quanto à responsabilização civil do Estado pela gestão empresarial (Comparato,
2008: 101). Entretanto, mesmo diante de tais casos de responsabilização do Estado,
utiliza-se não propriamente o instituto da responsabilização do controlador, mas de
156
institutos muitas vezes alheios ao direito societário. Assim, o poder de controle externo
se mostra terreno fértil para novas reflexões.
Em tal âmbito, poder-se-ia levantar uma série de questões: Pode-se conceber a
responsabilização do controlador externo em face de seus atos prejudiciais à sociedade?
Todas as formas de controle externo poderiam ser abarcadas nessa responsabilização?
Como se daria a responsabilidade dos órgãos societários, sobretudo dos acionistas, que
seguiram tal influência determinante?
Diante de uma análise mais moderna do direito civil, sobretudo quanto à
função social dos contratos, supera-se o antigo caráter relativo da força vinculante dos
contratos (“o contrato é lei entre as partes”), e passa-se a cogitar de uma obrigação
erga omnes no sentido de se respeitar e não interferir negativamente nos negócios
jurídicos de terceiros. Seria implausível buscar uma incorporação de tal funcionalização
dos direitos obrigacionais (uma das principais formas das quais deriva o poder de
controle externo) pelo direito societário585? A discussão enseja, assim, a questão de se
seria factível conceber alguma espécie de dever fiduciário do agente externo – elemento
orientador da responsabilização do controlador. Com isso, buscar-se-ia afastar o
argumento de que um credor (na qualidade de controlador externo), não sendo membro
de qualquer órgão social, não teria obrigações para com a sociedade, pelo que não lhe
seria possível a aplicação da legislação societária para fins de responsabilização.
A situação ganha especial relevância quando, por exemplo, se considera a
caução das ações do bloco de controle, sobretudo em situação em que se determina a
estipulação do consentimento do credor para deliberar certas matérias. Diante de tal
situação, evidente fica o impacto direto (seja prejudicial ou não) à sociedade decorrente
de tais estipulações. Nessa situação em que o próprio exercício do voto é condicionado
ao consentimento do credor (controlador externo), pouco plausível o argumento de que
este se mantém figura estranha à sociedade.
Outra questão correlacionada é quanto à responsabilização do detentor do
bloco de controle por meio do qual se exerceu o controle. Seria ela concorrente à do
controlador externo? Subsidiária? Ou mesmo, a depender da situação, até mesmo
excluída?
Conforme afirma Carvalhosa (2009: 196), pela sistemática da LSA o
controlador externo é irresponsável perante a companhia, seus acionistas ou terceiros
585 Em uma situação como essa acaba se evidenciando a teoria contratualista das sociedades. Não obstante, o argumento pode ser adaptado para a incorporação à teoria institucionalista.
157
pela direção da sociedade. O diploma legal não previu a responsabilidade do
controlador externo, cabendo unicamente aos controladores internos essa
responsabilidade quando se prestam a formalmente exprimir a vontade dos
controladores externos. Observa-se, pois, que o controle externo acaba escapando de
nosso sistema legal.
O mesmo não ocorre com o ordenamento jurídico estrangeiro que, quer se
utilizando de um conceito legal de controle mais amplo, quer prevendo expressamente a
existência do controle externo, acaba por tutelar os interesses sociais em face do
controle externo. Nesse sentido, pode-se fazer menção ao regramento norte-americano,
para o qual controle significa detenção de poder para dirigir direta ou indiretamente a
administração e as atividades de uma companhia, quer mediante a propriedade de ações
com direito de voto, quer por contrato, ou por qualquer outra forma (Carvalhosa, 2009:
497). O direito alemão, por sua vez, previu expressamente a figura do controlador
externo e sua consequente responsabilização. Diante do ‘aproveitamento de influência
sobre a sociedade’, que seria o ato de induzir, dolosamente, um administrador,
procurador ou representante a agir em detrimento da sociedade, mediante abuso de
influência:
O aproveitador é obrigado a ressarcir à companhia e aos acionistas os danos causados aos patrimônios respectivos. Com ele respondem, também, os administradores, procuradores ou representantes que se submeteram a essa influência abusiva. Deixou, no entanto, o legislador de prever a hipótese, nada improvável, do abuso de influência sobre o acionista controlador. (Comparato, 2008: 94)
A análise das repercussões do poder de controle externo deve ser feita com
extrema cautela. Primeiramente, não se pode, na tentativa de buscar uma
responsabilização do agente externo, uma elasticidade conceitual que põe em risco a
própria integridade do instituto. Diante de uma situação como essa, em benefício da
coerência do ordenamento como um todo, melhor seria deixar a responsabilização do
controlador externo a cabo de outros mecanismos fora do direito societário. Outra
questão diz respeito às repercussões que tal forma de responsabilização teria, sobretudo
no que diz respeito às relações creditícias. Um excesso de responsabilização por parte
do credor pode significar o encarecimento (por meio de juros mais elevados) do crédito.
De qualquer forma, constatada a necessidade de incorporar as situações de poder de
controle externo à tutela legal, deve-se proceder a um aperfeiçoamento da conceituação
legal de controle. Centrado na figura do acionista, nosso ordenamento deixa escapar,
158
por completo, tal forma de controle. Em seguida, será necessário estabelecer as
responsabilidades do controlador externo, de forma a se cooptar as especificidades e
peculiaridades de tal forma de controle. Como e em que medida se deverá materializar
essa responsabilização é tema que tem muito ainda a ser explorado.
4.3.A pulverização do capital social e o Poder Gerencial
Diante da ineficácia de nossa lei societária em atrair investimentos (sobretudo a
poupança popular) para as bolsas de valores586, e, consequentemente, em tornar o
mercado acionário uma opção relevante como fonte de capital para as companhias,
percebeu-se a necessidade de um aperfeiçoamento às nossas formas de organização
societárias. Como tentativa (contratual) de solucionar alguns desses problemas
societários brasileiros, criou-se o Novo Mercado, segmento especial de listagem de
companhias que se utilizam de níveis diferenciados de governança corporativa. Trata-se
da implementação, nos moldes de uma autorregulação, de regras que visem a tornar
menos vantajoso o controle concentrado, seja a partir da redução dos benefícios que
possam ser extraídos de tal forma de controle, seja tornando mais custosa a
manutenção/aquisição dessa forma de controle587.
Conforme aponta Salomão Filho (2006, pp. 57-58), a solução se alicerça sobre
três bases. Duas delas seguem a tendência da lei societária, e são: (i) o acesso a
informações completas e (ii) o reforço a garantias patrimoniais dos minoritários no
momento da saída da sociedade. A terceira base, que é o ponto original da solução (e a
que nos interessa neste momento), diz respeito justamente ao poder de controle.
Conforme aponta o professor:
Trata-se das chamadas proteções estruturais, por modificar a própria conformação interna das sociedades. Não são diretamente inspirados pelo princípio cooperativo, mas sem dúvida ajudam a persegui-lo ao enfraquecer ou permitir o enfraquecimento do poder do controlador. (2006: 58)
Assim, a partir do desenvolvimento do Novo Mercado da Bolsa de Valores,
o tema poder de controle assumiu novos contornos. A implicação para o tema que mais
se destaca foi a maior pulverização do capital das companhias, modificando o perfil de
586 “Nesses 30 anos de vigência da lei societária foi e tem sido impossível atrair poupança popular para as Bolsas brasileiras. O mercado de capitais brasileiro viveu, nos últimos anos, de investimentos especulativos específicos e de investidores dispostas a entrar e sair rapidamente das empresas – o contrário, portanto, dois países que conseguiram organizar seus mercados de capitais.” (Salomão Filho, 2006: 56) 587 Novaes (2011: 06) apresenta as seguintes inovações do Novo Mercado: (i) emissão apenas de ações ordinárias (uma ação, um voto); (ii) tag along de 100% para todos acionistas em caso de alienação do controle da companhia; (iii) apresentação das demonstrações financeiras em padrão internacional; (iv) divulgação de informação sobre transações com partes relacionadas e de negociação de valores mobiliários pelos administradores; (v) mandato uniforme e eleição na mesma data dos membros do conselho de administração que deve contar com pelo menos 20% de conselheiros independentes; e (vi) adesão à Câmara de Arbitragem da Bolsa para dirimir disputas entre acionistas.
159
controle das sociedades, de uma forma predominantemente majoritária, para novas
realidades, como controle minoritário e, até mesmo, formas sem a presença de
acionistas controladores. É justamente no Novo Mercado que se observam os menores
níveis de concentração de controle. Segundo apontamentos de Novaes (2011:06), em
2010, 41 das 106 companhias listadas nesse segmento especial não tinham acionista ou
grupo de acionistas que detinham mais de 50% das ações. Dados de Bortolon e Leal
(2008: 02) referentes a 2008 indicam que, enquanto no segmento tradicional o maior
acionista detém uma participação média de 65,5%, no Novo Mercado essa participação
foi de apenas 36,39%.
Assim, a discussão em torno do poder de controle é reavivada diante dessa
nova experiência que materializa novas formas de controle, até então pouco conhecidas
no cenário nacional. A partir de incentivos para a diluição acionária, novas implicações
do poder de controle ganham corpo e as normas e regulamentos jurídicos devem ser
confrontados com essa nova realidade decorrente da dispersão acionária, catalisada pelo
Novo Mercado. Deve-se inquirir se os institutos tradicionais, criados e desenvolvidos
para atender às necessidades de um sistema focado na figura de um acionista
majoritário controlador, estão aptos para normatizarem a nova realidade que se faz
presente, ou se, pelo contrário, nova regulamentação e normatização se fazem
necessários.
Nesse sentido, o poder gerencial, destoando das tradicionais formas de
controle das sociedades brasileiras, se mostra o grande desafio. Conforme dito
anteriormente, o controle gerencial é a forma de controle em que a dissociação entre
capital e controle é levada ao extremo. Diante de uma extrema pulverização do capital
social, nenhum acionista é capaz de, isoladamente, fazer prevalecer sua vontade sobre a
companhia (Garcia, 2008: 120). Da mesma forma, diante da extrema dispersão
acionária, a possibilidade de os acionistas se agruparem, via acordo de acionistas ou
outras formas de coordenação, se torna impraticável, tendo em vista os enormes custos
que tal procedimento demandaria588. Assim,
em decorrência da impossibilidade de se configurar uma situação de controle pelo próprio acionista [...] há o deslocamento do centro decisório que passa a ser ocupado por aqueles que, em razão do cargo que ocupam na companhia, possuem entre as suas atribuições o poder de dirigir os negócios sociais: os administradores. (Garcia, 2008: 120)
588 A coordenação de milhares de acionistas se torna inviável.
160
Assim, já podemos analisar uma primeira questão: nosso ordenamento jurídico
se mostra, atualmente, apto a identificar e regular o poder de controle gerencial?
A conceituação legal de controlador, dada pelo art. 116 da LSA, centra-se na
figura de um acionista (titular de direitos de sócios)589 e no seu poder de eleger os
administradores. Assim, observa-se que o conceito de controlador não alcança, ao
menos em princípio, a figura do controle gerencial, por este não se fundar na
possibilidade de eleger os administradores.
Diante da limitação da conceituação atual de controlador, deixar-se-ia de
responsabilizar aquele que efetivamente dirige os negócios da companhia (o
administrador). Em tal situação, o ordenamento jurídico deixaria de tutelar o agency
problem decorrente do poder de controle; situação essa, por óbvio, indesejada.
Verifica-se, pois, a necessidade de um aperfeiçoamento do conceito legal de
controlador, de forma a se abarcar o controle gerencial. Para tanto, o conceito de
controlador deve-se focar na sua capacidade de orientação dos negócios da companhia,
e não em características específicas de determinada forma de controle (ser titular de
direitos de sócios, ter o poder de nomear os administradores, etc.).
Até que tal flexibilização conceitual seja feita, estaremos diante de situação
peculiar, em que poderíamos afirmar que uma sociedade não teria um controlador (ou
ao menos um controlador juridicamente reconhecido). Em tais casos, o instituto da
responsabilização do controlador perderia sua eficácia, vez que não se identificaria um
controlador a quem responsabilizar. É claro que ao administrador-controlador seriam
ainda aplicáveis as regras de responsabilidade dos administradores, que, conforme dito
anteriormente, apresentam racionalidade semelhante a dos dispositivos referentes à
responsabilidade do controlador. Assim, o controle gerencial não ficaria inteiramente
desregulado, apenas não seria tutelado da forma mais adequada. Para uma tutela mais
eficiente, seria imprescindível que se aplicasse ao administrador-controlador os
dispositivos da responsabilidade do controlador, o que, conforme foi dito, só seria
possível após a flexibilização conceitual do controlador, de forma a se reconhecer a
figura do controle gerencial.
De qualquer forma, deixando de lado essa posição conservadora, que não
reconhece a possibilidade de o controle gerencial ser abarcado pela redação do art. 116
da LSA, pode-se cogitar de um exercício interessante para enquadrar o controle
gerencial na conceituação do art. 116 da LSA, a partir do instrumento que viabiliza sua 589 Destaca-se ainda que o texto normativo sempre faz referência a acionista controlador.
161
ocorrência. Conforme dito anteriormente, o controle gerencial, aproveitando o
absenteísmo dos acionistas marcante em sociedades de capital pulverizado, utiliza-se de
mecanismos de procuração (proxy machinery). Tal mecanismo consiste na captação, em
larga escala, de procurações outorgadas pelos acionistas aos administradores, com
poderes de representação nas assembléias-gerais da companhia (Garcia, 2008: 132).
Assim, uma vez que o poder gerencial, para a sua concretização, necessita da utilização
de direitos de sócios (estes transmitidos aos administradores por procuração), poder-se
ia cogitar de enxergar, em tal caso, a existência de uma efetiva capacidade de o
administrador se valer de direitos de sócios (ainda que simplesmente como procurador)
para obter a predominância na Assembléia Geral, com a eleição dos administradores
(no caso, a sua própria manutenção na posição de administrador). Assim, a partir de um
exercício hermenêutico, poder-se-ia entender que o controle gerencial atende sim aos
requisitos da conceituação legal de controlador, pelo que se tornaria desnecessário o
aperfeiçoamento do conceito legal590. Trata-se de proposta que necessita ser melhor
analisada de forma a se perquirir se não implicaria alguma desestabilização dos
institutos jurídicos correlacionados.
Seja qual for o caminho escolhido (uma interpretação mais flexível do art. 116,
ou uma interpretação mais conservadora), fato é que para o devido reconhecimento do
controle gerencial como efetiva forma de poder de controle por nosso ordenamento
jurídico, os intérpretes do Direito deverão se debruçar sobre o tema: seja para a
elaboração de um novo conceito legal de controle, seja para clarificar o caminho
argumentativo que possibilite a captação do controle gerencial pela atual redação do art.
116 da LSA. Apenas após tal construção, normativa e/ou argumentativa, poder-se-á
garantir um mínimo de segurança jurídica ao tema, essencial para o desenvolvimento
das atividades econômicas do país.
590 É claro que, superada a questão da predominância sobre a Assembléia Geral, restaria ainda a necessidade de identificar o segundo requisito: a permanência. Diante da relativa precariedade da posição do administrador controlador (caso este não mais consiga obter número suficiente de procurações – o que, conforme demonstra as chamadas proxy fights, é algo crível) poderia se argumentar que este não consegue exercer de forma permanente o controle. Entretanto, pode se dar uma interpretação que flexibilize tal requisito. Ao invés de se pensar de forma prospectiva o requisito da permanência, ou seja, voltada para o futuro, pode-se cogitar de uma percepção retrospectiva de tal requisito, pelo o que se poderia verificar o atendimento do quesito permanência. Trata-se de orientação semelhante àquela dada pela Resolução n. 401/76 pelo Banco Central. Em casos em que não houvesse um acionista majoritário que, por conseguinte, resolvesse automaticamente a questão da permanência, tal requisito, conforme a referida Resolução, seria virtualmente suprimido diante da verificação do acionista que nas últimas três assembléias gerais tivesse sido titular de ações que lhe asseguraram a maioria absoluta dos votos.
162
5. Análise comparativa das formas de controle: suas vantagens e desvantagens
Muito comum é, após o estudo das diversas formas de controle, o
questionamento de se uma delas é a “melhor” forma de organização do poder. Tal
questionamento enfrenta, de imediato, uma série de outras questões: o que significa ser
uma melhor forma de controle? Qual seria o parâmetro? Para quem a forma de controle
deve ser melhor? Para o controlador? Para o minoritário? Para terceiros?591
Grande parte da literatura utiliza como critério de avaliação dos sistemas de
controle o valor de mercado da companhia (reflexo do preço das ações). Trata-se de
parâmetro proveniente dos Estados Unidos, a partir de uma definição neoclássica de
desempenho (Salomão Filho, 2006: 65).
Conforme Salomão Filho nos informa (2006: 67), estudos recentes
demonstram que existe uma relação inversa entre grande concentração e o valor de
mercado da companhia. Assim, uma maior pulverização do controle se mostraria uma
forma mais eficiente de se organizar uma sociedade. Conforme expõe o autor “a
diluição de controle, como toda diluição de poder, acaba por permitir um melhor
equilíbrio entre os vários interesses envolvidos pelas grandes companhias”.
Entretanto, como o mesmo autor reconhece (2006: 65), ainda que haja uma
preferência pelos sistemas de controle diluído por parte da literatura, a questão ainda
traz enormes incertezas.
Tais dúvidas já se tornam evidentes ao se constatar a existência de uma série de
outros fatores determinantes para a estrutura de controle de uma empresa, que não se
resumem unicamente a uma forma genérica e abstrata de controle concentrado ou
diluído. Conforme apontam Canellas e Leal (2009: 05-06), são fatores determinantes
para a estrutura de controle de uma empresa: o seu tamanho (empresas maiores
tenderiam a ter o capital mais disperso); o potencial de interferência do controlador
sobre os resultados da empresa (em ambientes de maior instabilidade, em que é
necessário mais mudanças de rumo – interferência do controlador –, haveria um
favorecimento do controle concentrado); a regulação jurídica (em casos em que já se
oferece maiores garantias aos minoritários, favorecer-se-ia o controle diluído). Além
desses, os autores apresentam uma série de outros fatores. Interessante exemplo é no
tocante ao valor não material do controle: nesse caso “empresas de mídia e esportes, por
exemplo, trazem outros benefícios para seus controladores como o status social e a 591 Para fins da presente questão, ao invés de se analisar cada forma individualmente, será feito uma análise dos dois grandes sistemas de controle: o concentrado e o diluído.
163
gratificação emocional e, por isso, favorecem a concentração de controle”. Assim,
diante de tantas variáveis, até mesmo subjetivas, torna-se difícil formular, genérica e
abstratamente, uma estrutura de poder de controle ideal e universal.
Por tais razões, ao invés da análise de qual sistema de controle seria ideal, se
mostra mais profícua a análise das vantagens e desvantagens que cada sistema de
controle apresenta. Assim, pode-se ter uma concepção geral das questões a serem
enfrentadas por cada forma de controle.
O controle concentrado, por envolver uma estrutura mais simples, permite uma
maior agilidade da companhia diante de novos desafios ou instabilidades no ambiente
em que se insere. Da mesma forma, o controle concentrado, por corresponder, em
algum grau, a uma maior associação entre propriedade e controle592, aumenta o
interesse de quem efetivamente detém o poder de mando da companhia no sucesso da
sociedade. Assim, uma vez que o insucesso da atividade empresarial implicará, de
maneira mais intensa, prejuízos ao controlador, que contribui em grande parte para a
formação do patrimônio da companhia, este tem total interesse em orientar de maneira
eficiente as atividades empresárias. Entretanto, tal associação entre propriedade e
controle também implica uma grande desvantagem de tal sistema: o controle
concentrado permite a extração, por parte do controlador, de benefícios privados da
companhia, em prejuízo dos demais acionistas. Ainda que o ordenamento jurídico possa
minimizar a potencialidade de extração desses benefícios particulares, aumentando o
poder de monitoramento dos demais acionistas, isso, por si só, não implica
necessariamente uma maior atuação dos minoritários. Conforme expõe La Rocque e
Sarno (2010:04), a participação pouco expressiva de tais acionistas nas assembleias
gerais pode ser atribuída aos custos associados a essa maior intervenção, que se
relacionam, principalmente, aos custos associados à assimetria de informações.593
Ainda segundo as autoras, “os benefícios gerados, quando comparados a tais custos,
podem ser incertos e irrelevante. Isto porque, isoladamente, os acionistas minoritários
tendem a duvidar de sua capacidade de interferir no rumo das decisões deliberadas em
Assembléia.”
Quanto a estruturas de controle pulverizado, ao se acentuar a dissociação entre
capital e controle, reduz-se a chance de extração de benefícios privados por parte dos
592 Tais situações podem ser bruscamente alteradas se utilizando de formas de controle piramidal ou de ações preferenciais, em que diminui o capital investido do controlador na sociedade. 593 Ainda segundo as autoras, a regulação busca mitigar tais custos, como, por exemplo, ao exigir a divulgação de um conjunto de informações previamente à assembléia, mas, ainda assim, há uma série de custos associados: expertise e tempo necessários para o processamento de informações, necessidade de solicitar informações adicionais, custos relacionados ao comparecimento ao evento.
164
acionistas. Ao mesmo tempo, entretanto, reduzindo os incentivos individuais para que
os acionistas exerçam plenamente seus direitos, intensifica-se, ainda mais, o fenômeno
do absenteísmo. Em tais situações, conforme explicado anteriormente, o poder pode ser
assumido pelos administradores. Diante do absenteísmo dos acionistas, aqueles deixam
de ser fiscalizados de forma efetiva, ocasionando o conflito entre administrador e
acionista, o típico agency problem norte-americano. Em tais situações, os
administradores podem atuar, ao invés de no interesse da companhia, segundo seus
próprios interesses, sobretudo de forma a se perpetuarem no poder. Tal situação é bem
exemplificada em caso de oferta de aquisição de controle de sociedade controlada por
administradores: na falta de maior vigilância e responsabilização do administrador,
estes podem tomar medidas defensivas em face da proposta que poderia corresponder, a
bem da verdade, aos melhores interesses da companhia, unicamente com o propósito de
se perpetuarem na gestão da sociedade.
Assim, verifica-se, como dito anteriormente, a complexidade da questão de se
determinar a melhor forma de estruturação do poder na sociedade. Primeiramente,
sendo resultado de uma série de fatores determinantes variáveis, não se pode concluir
por uma forma ideal de estruturação do poder de controle, aplicável a todas as
sociedades de todos os tipos, tamanhos, objetos, situadas em todos os lugares do mundo
e em qualquer momento. Em segundo lugar, cada sistema tem suas próprias vantagens e
desvantagens, que, a depender da regulação jurídica e dos interesses do conjunto de
acionistas, pode atender de maneira mais eficiente a uma dada situação fática. Voltando
a citar Salomão Filho (2006: 65): “não se chega a respostas conclusivas, entre outras
razões, por ser difícil ligar o desempenho única e exclusivamente à questão da
existência ou não de controle. Daí as enormes incertezas dogmáticas que existem na
matéria [...]”.
6. Conclusão
Tema central dentro do direito societário, o poder de controle ainda passa por
uma fase de (re)conhecimento, sendo, aos poucos, apreendidas suas múltiplas
repercussões. Assim, é essencial o trabalho de estudiosos, não só juristas, mas também
economistas e administradores, que se debruçam sobre o assunto. Nesse sentido, o Novo
Mercado, materializando novas perspectivas e cenários, inova no tema, demandando do
sistema legal e do operador do direito uma postura ativa para a devida compreensão e
165
regulação das novas atividades. Não por menos, em muitos momentos, mais do que
conclusões, buscou-se, no presente trabalho, apenas o levantamento de algumas
questões que mereciam ser melhor debatidas.
As profundas sofisticações que o direito tem vivido (com foco no direito
privado), especialmente decorridas da funcionalização e concreção de determinantes
constitucionais, demandam uma postura mais ativa do operador do direito, que busque
sempre uma nova interpretação a partir de velhos institutos. Não se pode, sob pena de
fazer o direito perder toda a dinamicidade que lhe é essencial, se ater a velhos dogmas e
adotar postura reacionária a demandas provenientes não só de nossa Carta Maior, mas
de nossa própria sociedade.
A evolução do direito tem levado a fenômenos novos, tal como a publicização
do direito privado, em que superando o tradicional egoísmo individualista, busca
colocar o ser humano dentro de seu contexto social, dentro de uma relação com outros
indivíduos.
Especificamente quanto ao tema aqui tratado, não se pode olvidar da
importância que foi a identificação e a incorporação pelo direito de tal centro de poder,
deixando de lado certas ficções para abarcar situações reais de poder. Entretanto, para
não deixar escapar a importância do que ele representa, deve-se, reiteradamente, fazer
nova leitura de seus pressupostos e consequências. Apenas assim o instituto poderá
manter-se coerente com os anseios principiológicos e sociais.
166
7. Referências
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COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa. Volume 2. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
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SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 3ª ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros, 2006.
VILLAS BOAS, Silvia Carolina. Acordo de acionistas, celebrado entre acionista majoritário e investidor engajado, conferindo a este último o direito de veto, implica no surgimento de um bloco de controle? Artigo Científico – Programa de Educação Continuada e Especialização GVLAW da Direito GV. São Paulo, 2010.
168
VI.
OFERTA PÚBLICA DE AQUISIÇÃO DE AÇÕES OBRIGATÓRIA
(“OPA” Obrigatória ou a posteriori)
Larissa Kawano Mori
SUMÁRIO. Introdução 1. Alienação do poder de controle 1.1. Poder de Controle. 1.1.1. Formas
de aquisição do poder de controle de companhia aberta. 2. Evolução da regulação das
transferências de controle societário. 2.1. Evolução histórica da OPA obrigatória no direito
comparado. 2.2. Evolução histórica da OPA obrigatória no Brasil. 3. Regime da OPA
Obrigatória na Lei nº 6.404/1976. 3.1. OPA voluntária ou a priori X OPA obrigatória ou a
posteriori. 3.2. O art. 254-A da Lei das Sociedades Anônimas de 1976. 3.3. A Alienação de
controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976. 3.4. A competência da Comissão de Valores
Mobiliários (“CVM”). 3.5. Poder de controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976. 3.6.
Penalidades previstas ao não cumprimento das regras do art. 254-A da Lei das Sociedades
Anônimas de 1976. 3.7. O entendimento da CVM quanto à alienação de controle para
incidência da OPA obrigatória. 4. Questões referentes à OPA obrigatória ou a posteriori. 4.1.
Qual são os fundamentos da OPA obrigatória? Qual a sua finalidade? Ela é alcançada?. 4.2.
Qual a natureza do ágio? A quem pertence o prêmio de controle? Em que consiste o tratamento
igualitário entre os acionistas? 4.3. A OPA obrigatória deve ser estendida aos minoritários
titulares de ações preferenciais?4.4. A OPA obrigatória deve ser estendida às companhias
fechadas? 4.5. Na realidade brasileira, os controladores devem ser remunerados por possuírem
responsabilidades e deveres especiais? 4.6. A possibilidade de incidência da OPA obrigatória
nos casos de alienação de poder de controle minoritário. A transferência de controle minoritário
na LSA de 1976. 4.7. Quais seriam as alterações caso se alterasse o foco da OPA obrigatória da
alienação do controle para a aquisição do controle? 4.8. A obrigatoriedade da oferta pública de
aquisição de ações obrigatória ou a posteriori poderia ser substituída pela obrigatoriedade de se
atribuir o prêmio de permanência previsto no art. 254, § 4º? 5. Conclusão. 6. Referências.
Introdução.
A oferta pública de aquisição de ações obrigatória ou a posteriori (OPA
obrigatória ou a posteriori) é um importante instrumento para a proteção dos acionistas
minoritários nos casos de transferência de controle. Sua relevância decorre de promover
tratamento igualitário aos minoritários na repartição do prêmio de controle e também
169
conferir o direito de saída em face da alteração na orientação dos negócios da
companhia. No Brasil, a OPA obrigatória está prevista no art. 254-A da Lei das
Sociedades Anônimas de 1976, com redação dada pela da Lei nº 10.303/2001.
Para uma análise adequada do tema, faremos uma breve introdução sobre a
definição do poder de controle, suas formas de aquisição e as doutrinas relativas à
regulação das transferências de controle no direito comparado e no direito nacional. A
seguir, analisaremos o desenvolvimento da oferta pública obrigatória, com atenção a
sua evolução histórica no Brasil e a sua regulação no regime jurídico atual. Por fim,
apresentaremos algumas das principais questões que circundam a oferta pública
obrigatória, oferecendo alguns parâmetros dados pela doutrina e jurisprudência
brasileiras.
Portanto, o objetivo do trabalho é justamente oferecer elementos para uma
compreensão inicial da OPA obrigatória, de seu desenvolvimento histórico, de suas
finalidades e funções, de modo a permitir adentrar no âmbito da sua complexidade e da
diversidade das questões associadas a esse tema de tamanha importância, especialmente
por sua função social de tutela dos acionistas minoritários nos mercados de capitais.
Não se pretende oferecer todas as respostas e soluções, mas expor ideias e argumentos
da mais ampla gama de perspectivas possível, a fim de promover o debate sobre o tema.
1. Alienação do poder de controle
1.1. Poder de Controle
O poder de controle é um tema, em si, bastante amplo e complexo. Para efeito
de análise no âmbito societário, a doutrina estrangeira propõe uma classificação geral
quanto às formas de exercício do controle: interna e externamente. O controle interno é
aquele fundado na titularidade de ações com direito a voto que garantam a direção dos
negócios da companhia. Por sua vez, o poder externo é aquele exercido por agente não
titular de ações que, por determinadas circunstâncias, exerce influência dominante nos
negócios da companhia. Caracteriza-se como um poder de fato, uma vez que não tem
amparo legal.
Em face dos propósitos da oferta pública obrigatória ou a posteriori, o poder de
controle interno apresenta maior relevância. 594 Desta forma, para os fins da OPA
594TESTA, 2006. P. 7
170
obrigatória, podemos ressaltar três classificações básicas para o poder de controle
interno:
(i) o poder de fato;
(ii) o denominado “presumed control”; e
(iii) o controle majoritário.
O poder de fato pertence aos acionistas que representarem a maioria dos votos
durante um período determinado de tempo, conduzindo a atividade da companhia.
Busca-se identificar o efetivo exercício do poder de controle, baseando-se em uma
análise concreta e factual.595O Brasil adotou esse critério durante um período, quando
da vigência da Resolução nº 401/1976 do Conselho Monetário Nacional (“CMN”), para
caracterizar a alienação de controle minoritário. Em face dessa resolução, a efetividade
do controle minoritário deveria ser, via de regra, demonstrada por meio das três últimas
atas das assembléias gerais da companhia. Tal resolução era muito questionável, porque
ampliava a interpretação do então vigente art. 254 da LSA de 1976, sendo controversa
ainda a competência do CMN para fazê-lo. Além disso, tratava-se de critério bastante
suscetível a fraudes. 596 Por tais razões, o conceito de poder de fato foi revogado do
regime jurídico brasileiro.
Diante das dificuldades em se determinar o poder de fato, várias jurisdições
passaram a adotar o denominado “presumed control”. A definição de poder de controle
afasta-se, portanto, da identificação do seu efetivo exercício, para se focar apenas na
titularidade de determinada quantidade de ações. Nesse conceito, a partir do momento
em que um acionista atinge uma porcentagem estabelecida de ações com direito a voto,
presume-se que tenha adquirido o controle da companhia. Portanto, não é necessário o
efetivo exercício de direito de voto associado a tais ações, pois se trata de um requisito
de mera propriedade, sendo presumido que os detentores dessa porcentagem mínima
podem controlar a companhia.597 O patamar a ser estabelecido, em regra, varia de forma
diretamente proporcional em relação ao nível de concentração acionária.
As duas classificações acima são muito mais recorrentes em mercados em que
há alta dispersão acionária. O “presumed control”, por exemplo, é um mecanismo
alternativo para se aferir o poder de controle quando não é possível identificar um
controle majoritário dos votos. Foi inclusive adotado pela União Européia, por meio do
“European Takeover Directive”, deixando livre para cada Estado membro adotar o seu
595TESTA, 2006. P. 11 596PRADO, 2005. P.138 597TESTA, 2006. P. 12
171
próprio parâmetro porcentual, em face das especificidades de mercado e da legislação
de cada país.598
Por fim, o controle majoritário é atingido com a titularidade de 50% mais um
do total das ações com direito a voto emitidas. Tem sido o critério mais amplamente
utilizado no Brasil, tendo em vista que, em face da alta concentração acionária dos
mercados brasileiros, não há dificuldades em se obter a maioria de votos. Tais
características explicam a prevalência das cessões privadas de controle, em detrimento
das demais formas de aquisição de companhia no país. Nesse sentido, a oferta pública
obrigatória também apresenta grande relevância na realidade brasileira, como
mecanismo para se evitar abusos em negociações privadas de controle, como se verá
mais adiante.
1.1.1 Formas de aquisição do poder de controle de companhia aberta
Os principais mecanismos de transferência de controle em que terceira pessoa,
alheia ao controle interno de determinada companhia aberta, adquire-o voluntária e
onerosamente são:
(i) oferta pública de tomada hostil de controle (OPA voluntária ou a priori),
regulada pelo art. 257 e seguintes da LSA de 1976;
(ii) escalada em bolsa de valores; e
(iii) cessão privada de controle.
A oferta pública de tomada hostil de controle ocorre quando a pessoa, física ou
jurídica, fundo ou universalidade de direitos, em conjunto ou individualmente, dirige-se
ao mercado e realiza oferta pública para adquirir o controle de determinada companhia.
Não há uma negociação privada entre os ofertantes e os controladores efetivos.
É o mecanismo adotado pela legislação norte-americana, que estabelece os
aspectos contratuais e procedimentais que o ofertante deve seguir, assim como regras de
ampla divulgação das informações. No Brasil, está prevista no art. 257 e seguintes da
LSA de 1976, nos mesmos moldes do takeover bid norte-americano. Porém, tal
mecanismo, na prática, só é possível em mercados em que haja dispersão acionária;
sendo muito rara sua aplicação em mercados altamente concentrados como o brasileiro.
Conforme indica Roberta Nioac Prado, “tal tomada de controle só será eficiente se
inexistir controle majoritário efetivamente exercido” 599.
598TESTA, 2006. P. 13 599PRADO, 2005. P. 69.
172
O segundo mecanismo, a escalada em bolsa de valores, também é característico
de mercados com maior dispersão acionária. Ele ocorre com a aquisição progressiva de
ações com direito a voto na bolsa de valores e também por meio de contratação privada
com os acionistas minoritários, de modo a atingir um número suficiente de ações que
assegurem o controle da companhia. Esse mecanismo apresenta uma série de
desvantagens tanto para o adquirente, quanto para os acionistas minoritários, em termos
de tempo e previsão dos gastos. Pelas dificuldades e inseguranças que esse mecanismo
acarreta, ele vem sendo pouco utilizado tanto no Brasil quanto em outros países.
Conforme Calixto Salomão Filho e Fábio Konder Comparato, “(e)ssa realidade é
marginal no Brasil, onde é ainda extremamente elevado o grau de concentração
acionária das empresas”. 600
A cessão privada de controle é o mecanismo que resulta de uma negociação
privada entre o acionista controlador e o adquirente do controle, que estabelecem
contratualmente a quantidade e o valor das ações alienadas. Nessa operação, incide o
art. 254-A da LSA de 1976, que prevê a obrigatoriedade da OPA a posteriori, para
garantir aos minoritários a participação no prêmio de controle e o recebimento de
tratamento igualitário. Trata-se da forma mais usual de transferência de controle no
Brasil, em face da concentração acionária característica do mercado de capitais
brasileiro.
2. Evolução da regulação das transferências de controle societário
2.1. Evolução histórica da OPA obrigatória no direito comparado
A partir da evolução dos mercados e do surgimento de tomadas hostis de
controle de companhias abertas, a partir dos anos 60, nos Estados Unidos e no Reino
Unido, houve o aparecimento de um “mercado de controle acionário”, em paralelo aos
mercados primário (de capitalização das companhias) e secundário (de negociação de
valores mobiliários em bolsa de valores e mercados de balcão).
Até então, não havia nenhuma norma, quer legal ou regulamentar, em relação
à transferência do controle societário de companhia aberta.601 De acordo com H. G.
Manne, a importância jurídica e econômica atribuída a esse “mercado de controle
acionário” era devida, principalmente, por possibilitar a substituição de administradores
600 SALOMAO FILHO; COMPARATO, 2008. P. 239 601PRADO, 2005. P. 45
173
ineficientes por outros mais eficientes e permitir um melhor aproveitamento de recursos
sociais. 602
Existem, atualmente, três correntes na doutrina estrangeira acerca da
necessidade ou não de regulação do mercado de controle societário603:
(i) a mais liberal, defendida por Manne, EasterBrook, Fischel e
Posner, parte do pressuposto de que as trocas de controle (privadas ou por
tomada hostil) são sempre benéficas e não propõe nenhum mecanismo de
regulação que restrinja a liberdade do mercado;
(ii) uma corrente intermediária, defendida por Jennings, Marsh e
Coffe, entende que as tomadas de controle (privadas ou por tomada hostil)
podem ou não prejudicar os acionistas minoritários e propõe uma regulação
apenas procedimental, por meio de ampla, correta e honesta divulgação das
informações da companhia (full and fair disclosure) e a realização da OPA
voluntária ou a priori;
(iii) a última, mais conservadora, entende que as cessões privadas
de controle são sempre prejudiciais aos acionistas minoritários, que ficam
alheios a essas transferências. Dessa forma, propõe uma regulação material e a
imposição de OPA obrigatória ou a posteriori.
Dessa última corrente doutrinária mais conservadora, decorrem três
entendimentos. O primeiro é a teoria do “corporate asset”, de Berle e Means604, de que
o valor do controle é um ativo social e, portanto, pertence ao patrimônio da companhia.
O segundo, defendido por Bayne, funda-se em um dever de fidúcia do acionista
controlador para com os acionistas minoritários. Em ambos, entende-se que o prêmio de
alienação de controle é ilegal per se605 e a solução é que o controlador devolva a quantia
recebida pelo valor do controle à companhia ou que a divida proporcionalmente com
todos os minoritários.
O terceiro entendimento, dentro dessa corrente mais conservadora, foi proposto
por William Andrews 606, segundo o qual, todos os acionistas detentores de ações da
mesma espécie e classe deveriam possuir a mesma oportunidade de aliená-las em
eventual transferência. Segundo ele, deveria haver uma regulação material e imposição
602PRADO, 2005. P. 46 603PRADO, 2005. P. 50 604BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner Coit. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 335 p. : (Os economistas) 605 Partem do pressuposto que as transferências de controle sempre prejudicam os minoritários, assim como os prêmios de controle dela advindos. 606 The stockholder’s right to equal opportunity in the sale of shares. In: Harvard Law Review, Volume 78, 1965. P. 505-563
174
legal de um mecanismo de tratamento igualitário a todos os acionistas da companhia,
que foi o embrião para o desenvolvimento da OPA obrigatória ou a posteriori.
2.2. Evolução histórica da OPA obrigatória no Brasil
Ao longo do seu desenvolvimento, a regulação da OPA obrigatória sofreu
influências político-governamentais e a sua condução ficou ao sabor de políticas
macroeconômicas implantadas pelo governo, em detrimento dos interesses dos
acionistas minoritários. Desde o início, a tramitação no Poder legislativo foi conturbada
e tumultuada, em face dos vários interesses que estavam envolvidos. Isso resultou em
grande incerteza e insegurança jurídica na aplicação do instituto.
A regulação das alienações privadas de controle por meio da OPA obrigatória
apresenta três momentos principais:
(i) a sua previsão pelo art. 254 na LSA de 1976;
(ii) a sua revogação em 1997, pela Lei nº 9.457; e
(iii) sua posterior reintrodução em 2001 pela Lei nº 10.303, atualmente prevista
pelo art. 254-A da LSA de 1976.
Antes da Lei das Sociedades Anônimas de 1976, as sociedades por ações eram
reguladas pelo Decreto-lei nº 2.627/1940, que permaneceu vigor até 15.12.1976 e não
previa nenhuma espécie de regulação das cessões ou tomadas de controle das
companhias abertas.
A primeira inserção do mecanismo de oferta pública de aquisição de ações
ocorreu com o art. 254607 da Lei nº 6.404 (LSA de 1976), que previa tratamento
igualitário a todos os acionistas detentores da mesma classe e espécie de ações emitidas
por companhia aberta em uma alienação de controle. Impunha-se ao adquirente a
obrigação de realizar oferta pública de aquisição de ações aos acionistas minoritários e
de oferecer o mesmo preço pago ao alienante do bloco de ações que lhe assegurava o
poder de controle.
Conforme se observa, a redação desse artigo deixava margem a interpretações
quanto à extensão ou não aos minoritários titulares de ações preferenciais. Tal questão
607Art. 254. A alienação do controle da companhia aberta dependerá de prévia autorização da Comissão de Valores Imobiliários.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997) § 1º A Comissão de Valores Mobiliários deve zelar para que seja assegurado tratamento igualitário aos acionistas minoritários, mediante simultânea oferta pública para aquisição de ações.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997) § 2º Se o número de ações ofertadas, incluindo as dos controladores ou majoritários, ultrapassar o máximo previsto na oferta, será obrigatório o rateio, na forma prevista no instrumento da oferta pública.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997) § 3º Compete ao Conselho Monetário Nacional estabelecer normas a serem observadas na oferta pública relativa à alienação do controle de companhia aberta.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997)
175
foi prontamente resolvida com a Resolução nº 401 do Banco Central, de 22 de
dezembro de 1976, ao estabelecer que os “acionistas minoritários” eram aqueles
titulares de ações com direito a voto.608 Além disso, o art. 255 dessa mesma lei visava a
impedir que o acionista controlador se apropriasse do valor dos intangíveis nos casos de
alienações de instituições financeiras.
Em um segundo momento, os artigos que previam a OPA obrigatória foram
revogados pela Lei nº 9.457, de 5.5.1997. Por conveniência aos interesses do governo, a
revogação da OPA obrigatória ocorreu na ocasião da implantação da política
macroeconômica do governo FHC. O objetivo era viabilizar os programas de
privatização de companhias estatais e sociedades de economia mista e reduzir os custos
na transferência do controle. Ademais, os prêmios de controle foram integralmente
apropriados pelo Governo Federal nessa época.
Durante esse intervalo de não-regulação por meio da OPA obrigatória, foram
vários os abusos praticados pelos controladores e adquirentes do poder de controle,
notadamente o fechamento branco de capital, a aplicação de preços díspares e de ágios
astronômicos, sem nenhuma consideração em proteger os interesses dos acionistas
minoritários.
Com o fim do período das privatizações, não havia interesse governamental em
manter a ausência de previsão da OPA obrigatória. Portanto, em um contexto político e
econômico diferente, mas, com trâmite não menos complicado, a OPA obrigatória foi
reintroduzida no regime jurídico brasileiro em 2001, com a promulgação da Lei nº
10.303.
O art. 254-A da Lei nº 6.404 passou a prever, quando da alienação do controle
de companhia aberta, a obrigatoriedade de realização de oferta pública de aquisição das
ações com direito a voto, devendo o adquirente oferecer aos titulares de tais ações no
mínimo 80% do valor pago por ação integrante do bloco de controle. Isso foi um
retrocesso quanto à função protetiva dos minoritários em relação à redação originária
do art. 254 da LSA de 1976, que previa a extensão de 100% do valor pago por cada
ação alienada no bloco de controle. Conforme bem observa Nelson Eizirik,
“Assim, não se restaura o princípio do tratamento igualitário contido originalmente no art. 254 da Lei 6.404/76; ao contrário, consagra-se, expressamente, o princípio do valor diferenciado de ações da mesma
608 I - A alienação do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer, nos termos desta Resolução, oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar tratamento igualitário ao do acionista controlador.
176
espécie: as ações ordinárias integrantes do bloco de controle, detidas pelos acionistas controladores, valem mais do que as não integrantes, detidas pelos acionistas minoritários.” 609
Em nenhuma das previsões da lei societária, entretanto, houve a possibilidade
de extensão desse tratamento aos minoritários titulares de ações preferenciais, sendo
destinatários da oferta pública apenas os titulares de ações com direito a voto que não
integram o bloco de controle.
3. Regime da OPA Obrigatória na Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas
de 1976)
3.1. OPA voluntária ou a priori X OPA obrigatória ou a posteriori;
Inicialmente, é importante delimitar os contornos das modalidades de oferta
pública de aquisição de ações (“OPA”). A lei nº 6.404/76 (“LSA de 1976”), que trata
das sociedades anônimas, prevê duas modalidades de oferta pública de aquisição de
ações, nos casos de transferência de controle:
(i) a OPA voluntária ou a priori, de tomada hostil de controle societário; e
(ii) a OPA obrigatória ou a posteriori, decorrente de alienação de controle de
companhia aberta.
A OPA voluntária, que também pode ser denominada “OPA a priori”, está
prevista no art. 257 e seguintes da LSA de 1976. Como já explicado, trata-se de um dos
instrumentos utilizados para a aquisição do controle de determinada companhia.
Portanto, ocorre em momento anterior à alienação do poder de controle e caracteriza-se
pela voluntariedade.
Por sua vez, a OPA obrigatória, prevista no art. 254-A e objeto deste estudo,
ocorre após e como condição de eficácia de cessões privadas do poder de controle. Por
ser uma conseqüência da alienação privada de controle, essa modalidade também é
denominada “OPA a posteriori”.Nesse sentido, não se trata de uma alternativa que o
adquirente do poder de controle possui, mas consiste na obrigatoriedade de realizar a
oferta pública de aquisição de ações como forma de tutela dos interesses dos acionistas
minoritários.
609EIZIRIK, 2010.P. 74.
177
O elemento por trás da necessidade de realização da OPA obrigatória é que nas
alienações privadas do controle, além do próprio valor que as ações pertencentes ao
bloco de controle recebem por seu valor individual, existe um ágio (prêmio de controle)
acrescido a tais ações. Isso ocorre pelo fato de tais ações juntas representarem o poder
de controle da companhia e a possibilidade de dirigir a organização empresarial.
Segundo Calixto Salomão Filho e Fábio Comparato, “(a) cessão de 51% das
ações votantes de uma companhia difere da cessão de 49% dessas ações, não apenas por
razões de ordem quantitativa, mas sobretudo pela diversidade qualitativa do
objeto.”610O fundamento é que, se essa transferência de controle não é regulada, há
grande tentação por parte dos controladores e dos adquirentes de extraírem benefícios
em interesse próprio, que não o da companhia e em detrimento dos acionistas
minoritários.
Embora ambas sejam denominadas oferta pública de aquisição de ações,
diferindo apenas na qualificação, como obrigatória ou voluntária, é importante ressaltar
que elas são aplicadas em momentos completamente distintos e não podem ser
consideradas duas faces de uma mesma moeda. São mecanismos de natureza distinta.
As diferenças são várias, a começar pelo próprio fundamento para a sua
realização. A principal está na forma de aquisição do controle societário: enquanto a
OPA voluntária é, em si, um instrumento para a aquisição do controle (a priori), mais
recorrente nos mercados de capitais com dispersão acionariam, a OPA obrigatória tem o
fundamento de proteção aos minoritários após uma alienação privada do poder de
controle (a posteriori), de modo a evitar possíveis abusos e apropriações indevidas por
parte do controlador alienante e do terceiro adquirente.
A LSA de 1976 ainda prevê duas outras modalidades de oferta pública, que
não se referem à transferência de poder de controle, quais sejam: a OPA obrigatória
para cancelamento de registro de companhia aberta (art. 4º, § 4º) e a OPA obrigatória
para aumento de participação de acionista controlador (art. 4º, § 6º), que não serão
objeto deste estudo.
610COMPARATO, 2008, p. 268.
178
3.2.O art. 254-A da Lei das Sociedades Anônimas de 1976
Atualmente, a OPA obrigatória está prevista no art. 254-A da Lei nº 6.404 de
1976, com redação dada pela Lei nº 10.303/2001. A regulação é feita pela Instrução
Normativa n. 361 da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”).
Assim dispõe o art. 254-A:
“Art. 254-A.A alienação, direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
Pela leitura do artigo acima transcrito, é possível depreender os elementos
principais da oferta pública de aquisição de ações obrigatória: (i) decorre da alienação,
direta ou indireta, do controle de companhia aberta; (ii) sua realização consiste em
condição, suspensiva ou resolutiva; (iii) deve ser estendida às ações com direito a voto;
(iv) o valor ofertado por cada ação deve ser no mínimo igual a 80% (oitenta por cento)
do valor pago por ação com direito a voto integrante do bloco de controle.
A OPA obrigatória consiste em condição de eficácia para a operação de
transferência de controle. Isso significa que, até a sua realização, os efeitos da operação
de alienação de controle ficarão suspensos (cláusula suspensiva), ou garantirão o
exercício do poder de controle (cláusula resolutiva). No caso da sua não realização, a
operação será revogada. Os demais elementos referentes à alienação do poder do
controle e a extensão da OPA obrigatória (quanto aos beneficiários e ao valor pago),
serão analisados ao longo deste trabalho.
3.3. A Alienação de controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976
Para efeitos da OPA obrigatória, o art. 254-A, §1º da LSA de 1976, define a
alienação de controle:
§ 1o Entende-se como alienação de controle a transferência, de forma direta ou indireta, de ações integrantes do bloco de controle, de ações vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a
179
resultar na alienação de controle acionário da sociedade. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
O art. 254-A contempla uma ampla acepção para a expressão “alienação do
controle acionário”, englobando tanto os casos de alienação direta do bloco de controle,
como os casos em que há alienação indireta e alienação em etapas. 611
Por ser o substrato da norma a transferência onerosa do poder de controle, o
art. 29, § 5º, da Instrução da CVM nº 361, dispõe a possibilidade de uma análise
casuística por parte da CVM em relação a cada caso concreto, de maneira a impor a
realização de OPA obrigatória, caso verifique ter ocorrido alienação onerosa do
controle de companhia aberta.
Art. 29. A OPA por alienação de controle de companhia aberta será obrigatória, na forma do art. 254-A da Lei 6.404/76, sempre que houver alienação, de forma direta ou indireta, do controle de companhia aberta, e terá por objeto todas as ações de emissão da companhia às quais seja atribuído o pleno e permanente direito de voto, por disposição legal ou estatutária. § 5º Sem prejuízo da definição constante do parágrafo anterior, a CVM poderá impor a realização de OPA por alienação de controle sempre que verificar ter ocorrido a alienação onerosa do controle de companhia aberta.
3.4. A competência da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”)
No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários é o órgão competente para
regular, fiscalizar e punir os agentes do mercado de valores mobiliários. Quanto à OPA
obrigatória, sua competência vem estabelecida no art. 254-A, §§ 2º e 3º da Lei n.
6.404/76. Cabe a ela autorizar a alienação do controle desde que verificado que as
condições da oferta pública atendem aos requisitos legais e estabelecer normas a serem
observadas na oferta pública obrigatória.
§ 2º A Comissão de Valores Mobiliários autorizará a alienação de controle de que trata o caput, desde que verificado que as condições da oferta pública atendem aos requisitos legais. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) § 3º Compete à Comissão de Valores Mobiliários estabelecer normas a serem observadas na oferta pública de que trata o caput. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
Da mesma forma como ocorria no regime anterior, de 1976, o poder da CVM
de autorizar a alienação de controle é vinculado, não lhe cabendo qualquer juízo de
mérito ou oportunidade da alienação, mas apenas verificar se a oferta pública de
aquisição de ações atende aos requisitos legais.
611ELZIRIK, Nelson. P. 77.
180
Também faz parte da competência da CVM regulamentar a oferta pública,
conforme previsto no §3º desse mesmo artigo, por meio de Instrução Normativa para
disciplinar os elementos que deverão constar em seu instrumento: “preço e condições de
pagamento; prazo de validade da oferta; procedimento a ser adotado pelos destinatários
para manifestar sua aceitação e efetivar a transferência das ações; participação
obrigatória ou facultativa de instituição financeira, assim como as garantias a serem por
elas prestadas.” 612
Ademais, a Instrução Normativa deve estabelecer as regras para a prestação de
informações ao mercado, o prazo para a realização da oferta pública, a oferta de
pagamento de prêmio para que os acionistas permaneçam na companhia, assim como os
prazos para a aprovação do instrumento de oferta pública pela CVM.613 Tais condições
estão atualmente reguladas pela Instrução normativa n. 361/2002 editada pela Comissão
de Valores Mobiliários.
3.5. Poder de controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976
Para a incidência da OPA obrigatória, deve haver uma cessão onerosa do poder
de controle, o qual deve ser interno e efetivo.
Conforme disposto no art. 116 da LSA de 1976,
Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
Isso significa que o poder de controle deve ser exercido por titulares de ações
da companhia, ou seja, interno (exclui-se tanto o controle externo, quanto o controle
gerencial614); e essa titularidade deve ser efetivamente exercida nas assembleias gerais e
na escolha dos administradores. Outra característica fundamental é que, como se
612EIZIRIK, 2010.P. 85. 613EIZIRIK, 2010.P. 85. 614EIZIRIK, 2010.P. 75.
181
depreende do art. 116 da LSA de 1976, o poder de controle pertence a quem seja titular
de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria de votos na
assembléia-geral. No Brasil, esse critério foi adotado em face da elevada concentração
acionária e do poder de controle concentrado nas mãos de famílias ou bancos.
Entretanto, a maior parte da doutrina também entende que a LSA de 1976
reconhece, ainda que implicitamente, a existência de controle minoritário. O poder de
controle minoritário é aquele exercido pelo titular de menos de 50% das ações com
direito a voto da companhia. Isso geralmente é possível quando não há um acionista
controlador majoritário, ou no caso em que, havendo tal titular, ele não exerça
efetivamente o seu controle.
Como objeto da alienação que enseja a oferta pública obrigatória, o poder de
controle adquire sentido diferente daquele atribuído pelo art. 116 da LSA de 1976.
Dessa forma, o critério para se determinar o acionista controlador é aquele que possuir
50% dos direitos de voto mais um. Além disso, a hipótese de mera alienação de ações
que representem a maioria dos votos, por si só, não desencadeia a OPA obrigatória,
caso o controle não seja efetivamente exercido.
Por sua vez, o controle minoritário não vem previsto expressamente pelo art.
254-A da Lei n. 6.404/76, nem pela Instrução n. 361 da CVM. Diante disso, resta a
dificuldade de se aplicar a OPA obrigatória nos casos em que houver alienação de
controle minoritário, tendo em vista que a identificação do poder de controle nesses
casos tem passado pela existência de um controle majoritário, ou seja, a titularidade da
maioria dos votos da companhia. Tal questão apresenta grande relevância e será
discutida mais adiante.
3.6. Penalidades previstas ao não cumprimento das regras do art. 254-A da Lei
das Sociedades Anônimas de 1976
O art. 254-A da LSA de 1976 é a norma que busca assegurar aos minoritários
titulares de ações ordinárias a possibilidade de receberem por suas ações ao menos 80%
do preço das ações do bloco de controle, por meio da oferta pública de aquisição de
ações. No caso de esta não ser realizada, resulta na nulidade do contrato, não havendo
como convalidar ou refazer o ato.
182
A CVM deverá determinar que a operação seja refeita, mas não tem
competência para declarar a nulidade do contrato. Tal declaração só poderá ser feita
pelo Poder Judiciário, mediante requerimento da parte prejudicada.
Enquanto não houver manifestação do Judiciário, a CVM poderá instaurar
inquérito administrativo, conforme previsto no art. 11 da Lei n. 6.385/1976. Entretanto,
a competência da CVM se restringe ao mercado de capitais, conforme o art. 9º, V, da
Lei do Mercado de Capitais. A partir desse instrumento, o adquirente do controle pode
ser responsabilizado, pois compete a ele a obrigação de realizar a oferta pública;
restando ainda o problema de responsabilização do ex-controlador, que, muitas vezes,
pode ter saído do mercado, e somente pode ser responsabilizado até o momento em que
o nome do novo controlador seja devidamente inserido no livro de registro de ações
nominativas.
As medidas de fiscalização e penalização aplicáveis à não realização de oferta
pública prevista no art. 254-A são brandas e, muitas vezes, ineficazes. Por depender da
atuação do Judiciário, a nulidade dos contratos pode demorar anos para ser declarada, o
que contribui para agravar a situação das partes prejudicadas.
3.7. O entendimento da CVM quanto à alienação de controle para incidência da
OPA obrigatória
A Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) é a responsável por regular,
fiscalizar e punir os agentes do mercado de valores mobiliários, conforme mencionado
anteriormente. Suas competências no que tange a OPA obrigatória vêm estabelecidas no
art. 254-A, §§ 2º e 3º, da Lei n. 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas de 1976).
Para se analisar o conceito de alienação de controle segundo o entendimento da
CVM, é necessário entender como que conceito de controle vem sendo adotado em suas
decisões. Segundo a autarquia, deve haver um controle majoritário (acionista ou grupo
de acionistas com titularidade de mais de 50% do total das ações emitidas com direito a
voto); ou um controle minoritário (acionistas ou grupo de acionistas com titularidade de
menos de 50% das ações com direito a voto, mas com efetivo poder de dirigir a
companhia, em função de dispersão acionária ou da não atuação do sócio detentor da
maioria dos votos,confere), hipótese em que há um controle de fato.
Há posicionamentos da CVM quanto ao requisito de permanência no exercício
desse controle como uma questão fática. Dessa forma, maiorias eventuais também não
183
são suficientes, tendo em vista que se exige um poder permanente de direção dos
negócios. Nesse sentido, manifesta-se o Diretor Octavio Yazbeck, como relator no
processo administrativo CVM RJ nº 2009/0471:
“O art. 116 da Lei no 6.404/76, ao caracterizar a figura do acionista controlador, remete não apenas a capacidade de influenciar de forma determinante, a tomada de decisões na companhia, mas também a uma consistência temporal no exercício de tal capacidade. Não é por outro motivo que a alínea “a”do citado artigo fala em direitos de sócio que assegurem “de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia”. No próprio texto trazido pelo recorrente, Konder Comparato realça a importância dessa permanência.”
Passando ao conceito de alienação de controle, é pacificado o entendimento
sobre a necessidade da presença de um controlador alienando seu poder de controle a
terceiro adquirente. Nesse sentido, o entendimento da CVM é que a figura de um
controlador já deve existir para que haja a incidência de OPA obrigatória, tendo em
vista a sua necessidade para caracterizar a alienação de controle. Essa questão foi
abordada pelo Diretor Marcelo Trindade no julgamento do processo CVM RJ nº
2007/7230:“O art. 254-A é explícito ao condicionar a OPA à ocorrência de uma
alienação de controle, e, passe o truísmo, somente controladores podem alienar o
controle”.
No que trata da alienação de bloco de controle para configurar a incidência da
OPA obrigatória pelo art. 254-A da LSA, não há discussão. As questões principais se
referem à alienação de partes integrantes do acordo de acionistas. Tais possibilidades
podem decorrer da alienação das ações de (i) integrante não preponderante no acordo de
acionistas a terceiro não integrante; (ii) integrante não preponderante no acordo de
acionistas a outro integrante do acordo, que passa a deter sozinho o controle da
companhia; e (iii) integrante preponderante no acordo de acionistas a terceiro não
integrante.
No entendimento da CVM, nos dois primeiros casos não há alienação de
controle e não deve incidir a OPA obrigatória nesses casos. Trata-se de decorrência da
necessidade de haver a figura do controlador para caracterizar a alienação de controle.
A última questão ainda não foi analisada pela CVM, tendo em vista não ter sido
apresentado nenhum caso com situação semelhante.
184
Nas duas primeiras situações, o integrante não preponderante no acordo de
acionistas não detém o poder de controle, uma vez que este pertence em conjunto ao
grupo que constitui o acordo de acionistas. Nesse sentido, a CVM vem decidindo pela
não aplicação da OPA obrigatória nos casos em que membro não preponderante no
acordo de acionistas aliena suas ações a terceiro ou a membro do acordo de acionistas,
ainda que este consolide sozinho o poder de controle da sociedade. Conforme se
manifestou o Diretor Marcelo Trindade no processo CVM RJ nº 2007/7230:
“Mas o fato é que, de lege lata, estou de acordo com a conclusão do voto do Diretor Relator, pela inexistência de alienação de controle, que só pode ser alienado por quem o detenha, o que, em casos de acordo de acionistas, significa o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, como diz o art. 116 da Lei das S.A., e não um membro desse grupo que detenha menos que a maioria das ações.”
4. Questões referentes à OPA obrigatória ou a posteriori
4.2.Qual são os fundamentos da OPA obrigatória? Qual a sua finalidade? Ela
é alcançada?
Não há dúvidas de que o fundamento da OPA obrigatória é servir como
mecanismo de proteção aos interesses dos acionistas minoritários. Nesse sentido, na
realização da OPA a posteriori, existe uma constante tensão entre o princípio do livre
mercado das transferências de controle e o princípio de tratamento igualitário entre os
acionistas. O grande desafio que se propõe é equilibrar seus efeitos, em uma análise de
custos e benefícios.
Essencialmente, uma das consequências da tutela dos acionistas minoritários é
conferir mais segurança aos mercados de capitais, resultando em maior aporte de
recursos, na redução dos custos de financiamento das companhias; e, em última análise,
no pleno desenvolvimento do mercado de capitais.
Por outro lado, não se pode onerar demasiadamente as partes (tanto
controladores alienantes, como terceiros adquirentes) nas transferências de controle, de
modo a provocar interferências na dinâmica dos mercados. Tais interferências podem
ser prejudiciais na medida em que dificultem ou evitem operações que seriam benéficas
e, muitas vezes necessárias, para o melhor desenvolvimento das companhias.
185
Além disso, surge a questão de como essa proteção aos minoritários se
concretiza. De que maneira a oferta pública é eficaz em oferecer um tratamento
igualitário aos acionistas minoritários? Embora não haja controvérsia quanto ao
fundamento da oferta pública como mecanismo de proteção dos acionistas minoritários,
ainda há divergências quanto os interesses que estão sendo efetivamente protegidos: se
(i) o recebimento de mesmo tratamento no caso de uma transferência de controle e
participação no prêmio de controle; e/ou (ii) o direito de saída no evento de uma
mudança de controle. É claro que há outros interesses tutelados, mas esses são os que
aparecem com mais relevância e são os mais determinantes para se resolver questões
que circundam o tema da OPA obrigatória, como veremos mais adiante.
4.3.Qual a natureza do ágio? A quem pertence o prêmio de controle? O que
consiste o tratamento igualitário entre os acionistas?
Tanto na doutrina estrangeira, como na brasileira, há diversos posicionamentos
e justificativas quanto à natureza do ágio e a quem deveria ser estendido o valor do
prêmio de controle. A depender da solução adotada para essa questão, altera-se a
percepção do princípio de tratamento igualitário dos acionistas minoritários, por se
tratar de questões que caminham interligadas. De uma maneira geral, podemos
identificar três entendimentos principais, em relação aos titulares do prêmio de controle:
(i) Exclusivamente os acionistas controladores;
(ii) Todos os acionistas que participam do capital social;
(iii) Apenas o controlador e os acionistas minoritários ordinaristas.
O primeiro entendimento corresponde, na doutrina estrangeira, à posição mais
liberal adotada por Manne, Easterbrook, Fischel e Posner. Tais autores, que defendem a
liberdade de mercado e seu desenvolvimento, entendem que o prêmio de controle
pertence ao acionista controlador e que não há qualquer ilegalidade na sua apropriação.
Na doutrina brasileira, tal posicionamento é adotado por Bulhões e Lamy, que o
justificam pelo fato de o acionista ter responsabilidades e deveres próprios definidos na
lei.
De acordo com o segundo entendimento, defendido por Berle e Means, o
controle é um ativo social da companhia, e, portanto, integra o seu patrimônio. Nesse
sentido, apenas a companhia poderia extrair benefícios do controle, inclusive do prêmio
186
de controle. 615 Conclusão: o prêmio de controle deve ser dividido entre todos os
acionistas da companhia que participam do capital social. Na doutrina brasileira, essa
posição é defendida por Calixto Salomão Filho, Nélson Cândido Motta e Norma
Parente616, embora baseados em justificativas diferentes.
A posição mais interessante é a de Calixto Salomão Filho de que o prêmio de
controle deve ser estendido a todos os acionistas sempre que o prêmio de controle for
atribuído com base na perspectiva da rentabilidade.617 Em outras palavras, sendo o
controle considerado no cálculo dos intangíveis da companhia, a OPA deve ser
estendida tanto aos minoritários ordinaristas, quanto aos preferencialistas.
Como desencadeamento do entendimento anterior, William Andrews sustenta
que os acionistas controladores podem alienar suas ações no momento e pelo preço que
considerarem razoáveis, desde que os titulares de ações de mesma espécie e classe
recebam o mesmo tratamento. Dessa forma, haverá ilegalidade apenas se não for
utilizado o mecanismo de tratamento igualitário a todos os acionistas da companhia.
Acompanham tal doutrina, Fábio Konder Comparato e Alexandre de Mendonça
Wald,618 que entendem que a minoria no direito societário é sempre em relação aos
acionistas com direito a voto.
O legislador brasileiro, no art. 254-A da Lei n. 6.404/76, optou expressamente
por estender a oferta pública de aquisição de ações apenas aos minoritários titulares de
ações com direito a voto. Tal opção legislativa parte do entendimento de que o prêmio
deve ser dividido entre todos os titulares de mesma espécie e classe. Entretanto, fica
mitigado o princípio de tratamento igualitário, na medida em que o legislador optou por
estender apenas 80% do valor de controle a tais acionistas, de modo que os 20%
restantes ainda podem ser totalmente apropriados pelo controlador alienante.
4.4.A OPA obrigatória deve ser estendida aos minoritários titulares de ações
preferenciais?
Como visto anteriormente, o legislador excluiu os minoritários
preferencialistas do benefício de alienarem suas ações por no mínimo 80% do valor
615 TESTA, 2006. P. 20. 616PRADO, 2005, P. 331. 617PRADO, 2005, P. 331. 618PRADO, 2005, P.334
187
pago pelas ações do acionista controlador, sendo destinatários da OPA obrigatória
apenas os minoritários ordinaristas.
Entretanto, a diversidade de correntes doutrinárias sobre a natureza do prêmio
de controle e sobre a quem este deve ser estendido apontam que tal assunto está longe
de estar pacificado. O uso extenso de ações sem direito a voto no Brasil gera reflexos na
noção do tratamento igualitário entre acionistas minoritários. Em face das
configurações do mercado de capitais brasileiro, em que a maioria das ações negociadas
são preferenciais, não seria adequado estender os direitos da OPA obrigatória aos
acionistas minoritários sem direito a voto, como adequação às peculiaridades da
realidade brasileira?
Até 2001, as sociedades anônimas podiam emitir a quantidade de ações
preferenciais em até 2/3 do total de ações emitidas. Com a nova redação dada ao art.
15, §2º, pela Lei nº 10.303/2001, tal porcentagem foi reduzida para 50%. Ainda assim,
as ações preferenciais constituem a maior parte das ações em circulação.
Por essa razão, sustenta-se que não contemplá-las seria restringir em larga
escala a aplicação da OPA obrigatória. Haveria, assim, maior coerência com as
características do mercado local, na realização de uma proteção mais abrangente aos
minoritários nos casos de alienação do controle de companhia aberta.
Por outro lado, a desvantagem é que a extensão à totalidade das ações oneraria,
talvez excessivamente, o custo da transferência do controle societário. A
obrigatoriedade de estender a oferta pública a todas as ações da companhia exigiria um
aporte de recursos bastante elevado do interessado em adquirir o controle. Como
conseqüência, teríamos o aumento dos custos e a redução da ocorrência de
transferências de controle, que muitas vezes, poderiam ser benéficas e necessárias para
o desenvolvimento da companhia.
Ademais, a OPA nesses moldes poderia provocar uma grande perda de liquidez
das ações, tendo em vista que se estenderia a todas as ações da companhia. Considere-se
a hipótese factível em que praticamente todos os acionistas tenham interesse em aderir à
oferta e alienar suas ações (por interesse econômico, potencial perda liquidez, etc.),
haveria perda completa da liquidez das ações. O “Novo Mercado” da Bovespa prevê o
mecanismo do “free float” para corrigir as distorções nesses casos, de modo que, após a
alienação do controle, o adquirente deve tomar medidas para restabelecer o percentual
mínimo de ações em circulação durante um prazo determinado.
188
Nesse sentido, um aspecto muito controverso é que, da mesma forma que a
OPA obrigatória constitui um instrumento para conferir liquidez às ações em uma
situação de alienação de controle, como mecanismo de proteção aos minoritários, o seu
resultado é a própria perda de liquidez para os acionistas que decidem permanecer na
companhia.
Portanto, a OPA obrigatória é um mecanismo que garante a proteção dos
acionistas minoritários a partir da sua saída da empresa, sem maiores incentivos aos que
permanecem. Nesse sentido, a oferta pública afeta artificialmente a dinâmica dos
mercados, gerando várias distorções em seu funcionamento, como a saída de vários
acionistas minoritários, que, muitas vezes, continuariam na companhia, caso houvesse
mecanismos diferentes de proteção os que decidem permanecer.
4.5.A OPA obrigatória deve ser estendida às companhias fechadas?
O mercado de capitais brasileiro ainda é muito incipiente, de modo que o
número de companhias abertas é ínfimo se comparado ao número total de sociedades
anônimas existentes, entre abertas e fechadas. Dessa maneira, como forma de tornar
mais efetivo o mecanismo da OPA obrigatória, no sentido de proteger os interesses dos
minoritários em face das peculiaridades do mercado brasileiro, coloca-se a possibilidade
de estender também esse direito aos minoritários em companhias fechadas.
Por um lado, entende-se que, não havendo regulação nem fiscalização pela
CVM, por não serem sociedades que captam recursos no mercado, não haveria
racionalidade para interferir na condução dos seus negócios impondo tal obrigação. Nas
companhias fechadas, as relações seriam travadas direta e contratualmente por pessoas
que se conhecem e decidem juntar recursos na consecução de objetivos comuns. Assim,
os sócios poderiam regular privadamente suas relações, não havendo necessidade de
regulações externas.
Por outro lado, ocorre que tais regras só podem ser decididas no momento da
fundação, no ingresso voluntário, ou no planejamento sucessório feito pelo acionista
controlador. Para serem alteradas, dependem da anuência dos outros sócios. Isso
dificulta a situação daquele que ingressa na sociedade por sucessão hereditária ou
189
testamentária, por adquirir a participação societária nas condições deixadas pelo de
cujus.619
Nesse âmbito, adquire relevância a faculdade de a OPA obrigatória, mais do
que garantir um tratamento igualitário aos acionistas, proporcionar um direito de saída
do minoritário ante uma transferência de controle. Isso ocorre, principalmente, em razão
de as ações de companhias fechadas possuírem baixíssima liquidez se comparadas à
liquidez de ações de companhias abertas, por não serem publicamente ofertadas em
bolsa de valores ou mercados balcão. Por esse motivo, a saída do minoritário por meio
da alienação de ações é bastante dificultada nas companhias fechadas.
Assim, estender a oferta pública abriria a possibilidade de o minoritário de
companhia fechada retirar-se da sociedade, sem ter que depender também da ocorrência
de uma das hipóteses de direito de recesso previstas na lei, ou de provar judicialmente
que não há affectio societatis, questão ainda bastante controvertida no direito brasileiro.
Esses processos podem durar anos, tendo em vista a mora do judiciário. Nesse sentido,
a aplicação da OPA obrigatória às companhias fechadas atingiria uma finalidade
próxima a do mecanismo de direito de recesso. Cabe questionar se não haveria uma
sobreposição de funções.
Sendo assim, a tutela ao minoritário com a extensão da oferta pública seria
mais focada na possibilidade de oferecer uma saída ao sócio que, por conta da alienação
do controle, não quer se manter em determinada companhia, mas que, por força das
condições do mercado, não conseguiria aliená-las em função da baixa liquidez das
ações. Essa finalidade da OPA obrigatória adquire mais destaque quando analisada
nesse contexto das companhias fechadas, muito embora não se descarte a proteção
econômica da possibilidade de alienar as ações por valor próximo ao conferido às ações
do bloco de controle.
Portanto, voltamos mais uma vez à questão fundamental sobre que pilares
sustentam a proteção dos minoritários pela OPA obrigatória. Se se considera necessária
a realização de oferta pública nas companhias fechadas, pende-se a balança para a
garantia de uma saída justa e digna aos minoritários como sua finalidade, mais do que
proporcionar um tratamento igualitário entre os acionistas.
Ademais, para que isso fosse possível, seria necessário alterar a redação do art.
254-A para prever a incidência da OPA obrigatória também aos minoritários de
companhias fechadas. Seria o caso também de se considerar a possibilidade de criação 619 PRADO, 2005. P. 260.
190
de outro mecanismo, com características semelhantes, para se garantir a proteção dos
acionistas minoritários de companhias fechadas. Afinal, estender a oferta pública
obrigatória nesses casos poderia significar o afastamento dos seus escopos iniciais. A
começar pelo seu nome, tendo em vista que a oferta é denominada “pública” pelo fato
das ações das companhias abertas serem negociadas livremente, surgindo daí a
necessidade de a oferta ser oferecida publicamente no mercado.
4.6.Na realidade brasileira, os controladores devem ser remunerados por
possuírem responsabilidades e deveres especiais?
O legislador brasileiro optou por conferir remuneração aos acionistas
controladores no valor de 20% do prêmio de controle. O art. 254-A estendeu apenas
80% do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. Isso
constitui uma afronta ao princípio que rege a OPA obrigatória de proporcionar
tratamento igualitário aos acionistas minoritários.
A remuneração dos controladores estaria justificada pela realidade brasileira de
alta concentração acionária, em que os controladores atuam intensa e decisivamente na
direção dos negócios da companhia, assumindo responsabilidades e deveres que os
outros acionistas não possuem?
Há que se notar a constante influência de interesses político-econômicos na
tramitação da lei das sociedades anônimas, tendo sido conturbada e sujeita a muitas
discussões. Como já exposto, na redação original do art. 254 em 1976, o valor a ser
estendido aos minoritários consistia em 100% do valor do prêmio pago ao controlador.
Houve a revogação do instituto em 1997 e sua reinserção em 2001, porém com a
menção expressa de que a OPA obrigatória somente se aplicaria aos minoritários com
direito a voto e com a extensão de apenas 80% do valor do ágio pago ao controlador
alienante.
Em face do histórico da redação da lei das sociedades anônimas, tem-se que
não se pode obter uma justificativa apenas econômica para a opção legislativa quanto
ao valor estendido aos minoritários. Deve-se também levar em conta o contexto
macroeconômico das políticas do governo e interesses que estiveram envolvidos na
tramitação da lei.
Tal previsão legislativa pode ser vista como uma tentativa de conciliar
interesses opostos; aos minoritários, previu-se o mecanismo da OPA obrigatória,
191
enquanto, aos controladores, garantiu-se uma porcentagem mínima de remuneração
(20%).
Importante analisar também a eficácia desse mecanismo nos moldes adotados,
pois, como bem observa Roberta Nioac Prado, “(...) a obrigatoriedade de estender no
mínimo 80% do preço pago ao acionista controlador, pelas ações integrantes do bloco
de controle, não fará sentido econômico sempre que o prêmio pago ao pelo controle for
inferior a 25% do preço das ações do mercado.”
Em vista do exposto, a reflexão sobre a adequada e justa remuneração aos
acionistas controladores se mostra de grande relevância, tanto em relação à realidade
dos nossos mercados quanto à realização dos objetivos a que se propõe a OPA
obrigatória.
4.7.A possibilidade de incidência da OPA obrigatória nos casos de alienação de
poder de controle minoritário. A transferência de controle minoritário na
LSA de 1976.
O controle minoritário é aquele exercido por menos de 50% das ações com
direito a voto de uma companhia. A possibilidade de incidência da OPA obrigatória nos
casos de alienação do poder de controle minoritário é um tema dos mais controversos
na atualidade, e o seu possível enquadramento na legislação atual ainda é bastante
discutido.
Atualmente, o controle minoritário não vem contemplado expressamente pelo
art. 254-A da Lei n. 6.404/76, nem pela Instrução n. 361 da CVM. Conforme exposto
anteriormente, tal regulação era feita pelo item IV da já revogada Resolução n. 401 da
CVM620, que qualificava o controlador minoritário como a pessoa titular de ações que
lhe assegurasse a maioria dos votos dos acionistas presentes nas três últimas
assembléias gerais da companhia.
Para justificar a incidência da OPA obrigatória nos casos de alienação de
controle minoritário, Erik Oioli recorre a uma análise do art. 116 da LSA de 1976621.
620IV - Na companhia cujo controle é exercido por pessoa, ou grupo de pessoas, que não é titular de ações que asseguram a maioria absoluta dos votos do capital social, considera-se acionista controlador, para os efeitos desta Resolução, a pessoa, ou o grupo de pessoas vinculados por acordo de acionistas, ou sob controle comum, que é o titular de ações que lhe asseguram a maioria absoluta dos votos dos acionistas presentes nas três últimas Assembléias Gerais da companhia. 621 Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.
192
Graças à diluição do capital, como também ao fenômeno do absenteísmo do titular de
ações que garantam maioria de votos nas assembléias gerais, o acionista que não detém
maioria dos votos poderia ser considerado o acionista controlador, conforme dispõe o
referido artigo.622.
Para justificar a incidência da OPA a posteriori nos casos de alienação de
controle minoritário, Oioli afasta-se da doutrina dominante, que entende que o poder de
controle efetivamente se realiza com a obtenção da maioria de votos (50%+1).
Flexibiliza esse conceito ao determinar a possibilidade de o acionista minoritário obter a
maioria de votos na assembléia geral, ainda que não detenha titularidade da maioria das
ações na acepção clássica. Segundo Oioli, “apesar de exercido com menos da metade
das ações com direito a voto (...) - tal controle só existe porque seu detentor, ainda que
com tal posição acionária, possui posição majoritária nas assembléias da companhia”. 623
Tal entendimento vem associado à obra clássica de Berle e Means624, que
ressaltam a possibilidade de segregação entre propriedade e controle. Nesse sentido,
não haveria razão para se afastar a incidência do art. 254-A, tendo em vista que o
controle ao qual faz menção é exatamente manifestação do poder de controle do
acionista controlador.
Conforme Roberta Nioac Prado, a aplicação da OPA a posteriori também
poderia ser feita sobre uma base casuística, em face da abertura conferida pelo art. 29,
par. 5º, da Instrução n. 361. 625
No ano de 2009, em análise inédita de operação em que não havia um controle
majoritário (ou seja, não havia participação superior a 50% do capital votante), no caso
da aquisição da companhia Olimpia pela Telco626, a CVM entendeu pela inexigibilidade
da OPA obrigatória no caso concreto. Porém, cabe notar que as posições dos diretores
foram diversas, tendo cada um embasado seu voto em argumentos distintos.
Conforme indicado pelos advogados Carlos Lobo, Felipe Boechem e João
Lemos
622OIOLI, 2011.P. 319. 623OIOLI, 2011.P. 319. 624BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner Coit. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 335 p. : (Os economistas) 625Art. 29. A OPA por alienação de controle de companhia aberta será obrigatória, na forma do art. 254-A da Lei 6.404/76, sempre que houver alienação, de forma direta ou indireta, do controle de companhia aberta, e terá por objeto todas as ações de emissão da companhia às quais seja atribuído o pleno e permanente direito de voto, por disposição legal ou estatutária. § 5º Sem prejuízo da definição constante do parágrafo anterior, a CVM poderá impor a realização de OPA por alienação de controle sempre que verificar ter ocorrido a alienação onerosa do controle de companhia aberta. 626Disponível em www.cvm.org.br.
193
“(a)pesar do resultado final, no caso em análise, ter sido a inexigibilidade da OPA prevista no artigo 254-A da LSA em função da transferência de uma participação minoritária relevante, a análise pormenorizada de cada um dos votos proferidos pelos Diretores da CVM evidencia a ausência de consenso sobre a matéria e nos leva a acreditar que não pode ser descartada a possibilidade da atual composição do Colegiado, ao apreciar uma nova operação de alienação de controle de fato, vir a adotar posicionamento diverso.” 627
Como se pode observar, em face da característica de alta concentração
acionária, alienações de poder de controle minoritário não são muito recorrentes na
realidade brasileira. Porém, diante de fenômenos de maior dispersão acionária, com o
desenvolvimento dos mercados e o aumento de complexidade, a análise de tais
estruturas se faz necessária. Longe de haver um entendimento pacífico, observa-se que
há um grande campo a ser ainda explorado pela doutrina e pela jurisprudência.
4.8.Quais seriam as alterações caso se alterasse o foco da OPA obrigatória da
alienação do controle para a aquisição do controle?
Segundo o art. 254-A da Lei n. 6.404/76, a alienação de controle de companhia
aberta resulta na obrigação de realizar a oferta pública. Disso se depreende que, no
Brasil, a regra se foca em identificar a alienação, e não a aquisição do poder de
controle.
Entretanto, na maioria dos outros países, a regra se foca na aquisição do
controle, sem maiores considerações sobre se esta vem acompanhada da transferência
de controle a partir de um acionista controlador já existente; ou sobre o método
utilizado para a aquisição (como bloco de controle, conjunto de operações), etc. 628
Nessa perspectiva, a aquisição de controle é identificada em todas as
circunstâncias em que determinada pessoa se torna o controlador da companhia629,
independentemente de como tal situação de controle foi atingida (aquisição do bloco de
controle, escalada acionária, acordos de acionistas).
No Brasil, pelo critério ser a transferência do poder de controle, realiza-se um
teste subjetivo para avaliar se o acionista controlador realmente alienou o controle da
companhia ao adquirente. Isso traz complicações na identificação das operações que
resultam na transferência de controle, exigindo adentrar, muitas vezes, nas
complexidades envolvidas na própria operação para se verificar ou não a alienação do
627 Edição extraordinária, disponível em http://www.ibri.com.br/download/espaco_juridico/Anexo_18.pdf. 628TESTA, 2006. P. 15 629TESTA, 2006. P. 16
194
poder de controle. De acordo com Pedro Testa, “a adoção do foco na “alienação do
controle” pelo direito societário brasileiro tem causado dificuldades para agentes de
mercado, advogados e autoridades reguladoras”.630
Desse critério, resulta, por um lado, que um adquirente do poder de controle
não tenha a obrigatoriedade de realizar oferta pública, desde que ninguém a ele tenha
vendido. Exemplo disso pode ser observado nas companhias em que não haja controle
majoritário, de modo que seria possível a uma pessoa atingir a titularidade de 70% das
ações, em uma hipótese de aquisição ordinária, e ainda assim não ter a obrigação de
realizar oferta pública às demais ações.631 Por outro lado, tal critério traz outras
questões referentes à análise de operações de alienação de controle, mas que não
resultam na aquisição do poder de controle da companhia.
No entendimento de Modesto Carvalhosa, o poder de controle deve ser
encarado do ponto de vista do adquirente, e não do alienante. Segundo ele, “pode
ocorrer que o acionista alienante detenha a maioria absoluta do capital votante sem ter
jamais ou, então, ultimamente, exercido o poder de direção das atividades sociais, nem
orientado a política da administração da companhia”. 632 Exemplifica com os casos de
sucessão do acionista controlador por seus herdeiros, de legado de ações de controle a
instituição filantrópica, como o acionista majoritário que nunca se interessou pelo
exercício do controle, confiando a outro grupo tal atribuição.
De todas as formas, confere-se ao adquirente a potencialidade de exercício
imediato do controle, de forma que a efetividade do controle deve ser presumida na
figura do adquirente das ações, “já que estas lhe darão esse atributo, e não na figura do
acionista alienante que, como vimos, pode, por diversas razões, nunca tê-lo exercido.” 633
A transferência de controle, vista pela perspectiva da aquisição, poderia
inclusive comportar soluções para a complicada análise da incidência da oferta pública
nos casos de alienação do poder de controle minoritário, em que não se identifica uma
clara alienação do poder. Tais dificuldades decorrem do foco do evento desencadeador
da OPA obrigatória e a definição de poder de controle adotado hoje.
Não se pretende defender tal possibilidade nesse estudo, até porque exigiria um
espaço muito mais amplo de análise, mas apenas propor mais uma questão que pode ser
630TESTA, 2006. P. 16 631TESTA, 2006. P. 16 632CARVALHOSA, 1979. P. 145. 633CARVALHOSA, 1979. P. 145.
195
importante ao melhor desenvolvimento do mecanismo da oferta pública
obrigatória.Conforme Pedro Testa, “à primeira vista, tais questões podem parecer
simples e sobrepostas, mas não são, especialmente quando tais definições são o gatilho
para a custosa obrigação aos novos acionistas controladores: a oferta pública
obrigatória.” 634
4.9.A obrigatoriedade da oferta pública de aquisição de ações obrigatória ou a
posteriori poderia ser substituída pela obrigatoriedade de se atribuir o
prêmio de permanência previsto no art. 254, § 4º?
A OPA obrigatória surge como o mecanismo desenvolvido para se realizar a
proteção dos acionistas minoritários quanto aos abusos e expropriações indevidas por
parte dos controladores nas transferências de controle. Entretanto, pelos vários motivos
elencados, essa solução apresenta vários problemas a serem solucionados e efeitos
colaterais a serem controlados.
Portanto, é possível ainda questionar se tal mecanismo seria realmente o mais
efetivo para o alcance de tais finalidades. Nesse ponto, surge a possibilidade teórica de
analisarmos as conseqüências caso, no lugar da obrigatoriedade da OPA a posteriori,
aplicássemos a obrigatoriedade do prêmio de permanência, previsto no art. 254, §4º.
Assim dispõe o referido artigo:
Art. 254-A. A alienação, direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de fazer oferta pública de aquisição das ações com direito a voto que o adquirente se obrigue a de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. § 4o O adquirente do controle acionário de companhia aberta poderá oferecer aos acionistas minoritários a opção de permanecer na companhia, mediante o pagamento de um prêmio equivalente à diferença entre o valor de mercado das ações e o valor pago por ação integrante do bloco de controle. (grifos nossos)
Atualmente, a oferta do prêmio de permanência não apresenta incentivos
econômicos ao adquirente do controle, tendo em vista que, além dos custos com a
realização da oferta pública, em face da sua obrigatoriedade, teria que arcar com custos
extras referentes ao prêmio. Em outras palavras, ao optar por oferecer aos acionistas
minoritários a opção de permanecer na companhia mediante o pagamento de um
634TESTA, 2006.P. 16
196
prêmio, o adquirente se compromete não só a contemplar os acionistas que decidem sair
da companhia (aderem à OPA obrigatória), como também aos que ficam (prêmio de
permanência).
Tal condição está bem explicitada no art. 30, da Instrução normativa n. 361 da
CVM, como se observa a seguir:
Art. 30 - Na forma do § 4º do art. 254-A da Lei 6.404/76, o adquirente do controle acionário poderá oferecer aos acionistas minoritários destinatários da OPA um prêmio no mínimo equivalente à diferença entre o valor de mercado das ações e o valor pago por ação integrante do bloco de controle. § 1º Oferecida tal faculdade, os acionistas poderão manifestar, no leilão da OPA, sua opção por receber o prêmio, ao invés de aceitar a OPA, entendendo-se que todos os acionistas que não se manifestarem aceitam e fazem jus ao prêmio. (grifos nossos)
O prêmio de permanência encontra-se hoje ofuscado pela obrigatoriedade da
OPA a posteriori, tendo em vista que ao conferir tal prêmio o adquirente aumenta
consideravelmente seus custos, sem obter relevantes benefícios em troca. Entretanto,
caso a ordem da obrigatoriedade fosse invertida, tornando o prêmio de permanência
obrigatório e a OPA a posteriori facultativa, afigura-se um cenário interessante a ser
estudado.
A vantagem mais evidente para o adquirente do controle seria não ter que
adquirir, além das ações que lhe conferem o controle, também as ações dos
minoritários. Nesse caso, o custo se limitaria à diferença relativa a preço de mercado
das ações e o valor pago ao controlador. No lado dos minoritários, o prêmio
representaria um incentivo para permanecerem na companhia, favorecendo o
minoritário investidor, que é aquele “interessado na manutenção de sua posição
acionária e nos dividendos que a sociedade pode lhe proporcionar a longo prazo” 635. O
interesse do minoritário investidor aproxima-se dos interesses dos trabalhadores, quais
sejam, a manutenção da empresa e do investimento produtivo.
O ponto de divergência reflete o entendimento adotado quanto à finalidade da
OPA obrigatória como mecanismo de proteção dos acionistas minoritários. Se se
entende que a sua função é prioritariamente oferecer tratamento igualitário aos
acionistas minoritários, com a repartição do prêmio de controle, não há obstáculos para
a sua substituição pelo prêmio de permanência.
Por outro lado, caso se entenda que deve a OPA obrigatória oferecer também a
possibilidade de saída ao minoritário quando o controle for alterado, em função de
635SALOMÃO FILHO; COMPARATO, 2008. P. 263-264.
197
alteração nos rumos da companhia, apenas o prêmio de permanência não é suficiente
para garantir tal tutela aos minoritários. Embora o minoritário, após receber o prêmio de
permanência, ainda tenha a opção de saída pela bolsa de valores ou pelos mercados de
balcão, não se garante que, no momento da alienação, receberá o mesmo valor aferido
no momento do pagamento do prêmio, em função das possíveis flutuações do valor das
ações no mercado. Porém, isso fica a depender das especificidades e das circunstâncias
de cada caso concreto.
A aplicação da obrigatoriedade do prêmio de permanência solucionaria os
problemas relativos aos consideráveis aumentos de custos ao adquirente, da mesma
forma que as ações da companhia não perderiam liquidez. Entretanto, não se perde de
vista o fato de que tal mecanismo, apesar de resolver alguns problemas decorrentes da
OPA obrigatória, pode gerar outros. Ocorre que tal possibilidade ainda não foi
aprofundadamente estudada pela doutrina, de modo que os prós e contras advindos de
uma alteração como esta ainda são abstratos, mas merecem ser objeto de estudo, por
aparentar ser uma alternativa razoável para se tutelar os mesmos direitos com
consequências menos drásticas. Porém, como já mencionado, depende antes da
abordagem adotada quanto à finalidade da OPA obrigatória, pois se se entender que o
objetivo da oferta pública obrigatória é somente conferir uma saída ao minoritário
quando da mudança de direção dos negócios da companhia, o prêmio de permanência
não alcança a mesma finalidade.
5. Conclusão
Diante de todo o exposto, é evidente que a oferta pública obrigatória ou a
posteriori é um tema que merece ser explorado, pela diversidade e complexidade de
questões que apresenta. O objetivo desse artigo foi justamente oferecer uma introdução
básica para sua fundamentação, tanto na doutrina estrangeira como brasileira, sua
previsão na legislação atual e analisar algumas das questões que circundam esse
mecanismo tão importante para a proteção dos acionistas minoritários e, em última
instância, para o desenvolvimento dos próprios mercados de capitais.
Como visto, existe uma grande perplexidade diante da oferta pública, sobre o
que ela representa e seus fundamentos. Se seus objetivos são atingidos ou não,
permanece a questão. Porém, pela experiência brasileira, em face da revogação do
instituto em 1997, a sua importância se tornou cristalina.
198
Atualmente, a OPA obrigatória é um mecanismo necessário para corrigir
distorções de liquidez, de eficiência de mercado e de proteção jurídica dos acionistas
minoritários. Entretanto, paradoxalmente, ela mesma consiste em um mecanismo de
distorção do livre funcionamento dos mercados, inclusive por seu resultado ser a
própria perda de liquidez de ações da companhia, em face da alienação de ações dos
acionistas minoritários ao novo controlador.
Ademais, a OPA a posteriori onera artificialmente a operação de transferência
de controle, exigindo aos adquirentes aportar recursos correspondentes não só à
quantidade de ações necessárias para garantirem o controle, mas também devem
considerar a possibilidade de aderência dos acionistas minoritários aos quais se destina
a oferta, atualmente, os minoritários titulares de ações com direito a voto. O aumento de
custos tem reflexos na própria frequência de alienações de controle, que, muitas vezes,
podem ser benéficas e necessárias na troca de administradores ineficientes e na melhor
utilização dos ativos sociais. Nesse sentido, é necessário buscar o equilíbrio entre a
proteção de minorias de um lado, e a promoção de trocas de controle por outro lado,
tendo em vista a importância de ambos para um desenvolvimento saudável dos
mercados de capitais.
Dessa forma, se se parte do pressuposto que o objetivo da regulação dos
mercados (e o que justifica essa interferência em relação ao princípio do livre mercado)
é primordialmente o próprio desenvolvimento de tais mercados, a importância e a
eficácia da OPA obrigatória deve ser analisada em função do seu impacto na proteção
dos minoritários e na garantia de maior segurança jurídica. Conforme analisado
anteriormente, embora não haja controvérsia quanto ao fundamento da oferta pública
como mecanismo de proteção dos acionistas minoritários, ainda há divergências quanto
os interesses que estão sendo efetivamente protegidos, quais sejam, oferecer tratamento
igualitário aos acionistas e/ou garantir o direito de saída, em face de uma alteração na
orientação na condução dos negócios da companhia.
No entanto, seja interesse fundamental ou não, é importante notar que a
retirada do acionista minoritário da companhia não deixa de ser uma condição para que
a oferta pública obrigatória se realize como mecanismo de tratamento igualitário aos
minoritários. Por sua vez, a garantia de tratamento igualitário confere mais segurança
jurídica aos acionistas minoritários, de modo a atrair mais investidores ao mercado de
capitais, ou seja, maior aporte de recursos para o financiamento das empresas, o que
199
resulta no desenvolvimento do mercado como um todo. Porém, não favorece a
permanência dos acionistas minoritários na companhia.
Tendo isso em vista, questiona-se se o desenvolvimento dos capitais é atingido
com a permanência dos minoritários na companhia ou com a sua saída, a partir do
recebimento de tratamento igualitário. Isso não significa que tais premissas se excluam,
mas, para efeitos da OPA obrigatória, oferecer um tratamento igualitário aos acionistas
minoritários só é possível mediante a sua retirada da companhia.
Diante de todo o exposto, conclui-se que a OPA obrigatória é adotada hoje, no
Brasil, como o mecanismo de proteção aos acionistas minoritários quando das
transferências do controle societário. O grande desafio que se propõe é equilibrar seus
efeitos, em uma análise de custos e benefícios. Tendo em vista os altos custos de
implantação e os efeitos colaterais consideráveis, há que se questionar ainda se os
benefícios realmente superam os custos de se proteger os minoritários, no que tange ao
desenvolvimento dos mercados de capitais. Há que se questionar ainda se a OPA a
posteriori ainda é o meio mais efetivo para alcançar tais objetivos, ou se haveria
mecanismos alternativos, com medidas menos drásticas, que pudessem atingir os
mesmos resultados.
Diante de tamanha complexidade, há que se notar que a origem provém,
entretanto, da própria complexidade e da dinâmica dos mercados de capitais. Nesse
sentido, observamos duas realidades que caminham em paralelo. De um lado, a
realidade do “dever ser” do âmbito jurídico e da regulação legal para correção e
reparação de eventuais desvios dos institutos do mercado. De outro lado, a realidade do
“ser” de aspecto econômico, da dinâmica livre das relações societárias e do mercado
financeiro.
Caso os mercados funcionassem perfeitamente conforme as regras da lealdade
e a alocação eficiente e diligente de recursos, não haveria a necessidade de
interferência. Entretanto, a realidade mostra que tal intervenção das ferramentas legais
do “dever ser” jurídico não só é desejada, como necessária. A fiscalização e a regulação
dos mercados, assim como a punição dos agentes que violem as regras, ainda se
mostram imperativas para controlar eventuais abusos e desvios. Para se obter um
mecanismo realmente eficiente para o desenvolvimento do mercado, é importante que
esteja em conformidade com estes dois mundos. As realidades do “ser” e do “dever ser”
não devem andar em paralelo e surdas entre si, sob pena das intervenções jurídicas
serem excessivamente penosas à dinâmica de “ser” dos mercados. Tais realidades
200
devem ser costuradas, para, assim, interagirem e conjuntamente desenvolverem
mecanismos que protejam os acionistas minoritários, mas, ao mesmo tempo, sejam
condizentes com a funcionalidade econômica dos mercados.
Referências.
ANDREWS, William. The stockholder’s right to equal opportunity in the sale of shares. In: Harvard Law Review, Volume 78, 1965. P. 505-563 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner Coit. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. Saopaulo: Abril Cultural, 1984. 335 p. : (Os economistas) CARVALHOSA, Modesto. Oferta pública de aquisições de ações. Rio de janeiro: IBMEC, 1979. 211 p. COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro : Forense, 2008. EIZIRIK, Nelson. Oferta pública de aquisição na alienação do controle de companhia aberta. In: Revista jurídica empresarial, v. 3, n. 14, p. 11-26, maio/jun. 2010. LOBO, Carlos Alexandre et al. CVM se pronuncia sobre a incidência de OPA em caso de alienação de controle de fato. Disponível em: http://www.ibri.com.br/download/espaco_juridico/Anexo_18.pdf. OIOLI, Erik F. Obrigatoriedade do Tag Along na Aquisição do Controle Diluído. In: ADAMEK, Marcelo Vieira Von. (Org.). Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. 1a ed. São Paulo: Malheiros, 2011, v. 1. PRADO, Roberta Nioac. Oferta pública de ações obrigatória nas S.A. Tag Along. São Paulo: Quartier Latin, 2005. TESTA, Pedro. The Mandatory Bid Rule in the European Community and in Brazil: A Critical View (August 2006). Disponível em: http://ssrn.com/abstract=943089
201
VII.
INSIDER TRADING: QUESTÕES RELEVANTES
Giovanna Bakaj Rezende Oliveira
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Considerações iniciais sobre o mercado de capitais e o insider
trading. 3. Legislação: considerações históricas. 4. Informação relevante: conceito. 5. Dever de
diligência e dever de lealdade. 6. Dever de informar. 7. Sujeitos ativos: insider trading. 8.
Presunção de culpa. 9. Jurisprudência Administrativa. 10. Criminalização. 11. Insider trading e
seus benefícios? 12. Chinese Wall. 13. Conclusão. 14. Referências.
1. Introdução
O mercado de capitais tem a função social de propiciar uma menor
concentração de renda e riqueza, tendo em vista que aproxima o poupador do
investidor. O poupador é o sujeito que disponibiliza fundos que serão alocados e
transformados em investimentos, proporcionando o funcionamento da economia. Tais
investimentos constituem pressuposto do crescimento econômico do país, o qual é mais
expressivo, usualmente, onde o mercado de capitais é bem estruturado.
No ambiente do mercado de capitais, se preza, portanto, por uma maior
transparência de informações com o escopo de auxiliar os investidores na tomada de
decisões, bem como contribuir para aplicação e aproveitamento ótimo dos recursos
econômico-financeiros, sempre escassos.
Para que haja eficiência econômica do mercado, o preço dos valores
mobiliários tem de refletir as informações disponíveis acerca das companhias cujos
títulos são negociados. E, para tanto, a transparência das informações apresentadas aos
diversos atores do mercado é primordial.
A legislação brasileira tem como objetivo proporcionar simetria das
informações aos agentes econômicos e, como meio para alcançá-lo, combate o insider
trading. A repreensão a tal conduta é relativamente recente em nosso país, contudo, já
existem discussões relevantes acerca do tema. No presente trabalho, buscou-se ressaltar
202
pontos de conflito e questionamentos que não possuem, até o momento, uma solução
definitiva.
2. Considerações iniciais sobre o mercado de capitais e o insider trading
A expressão insider trading é originária do direito norte-americano e refere-se
às transações desleais que ocorrem no mercado de valores mobiliários e acarretam
lesões aos direitos dos investidores. A compreensão do âmbito no qual se concretiza a
conduta é essencial, pois “não se pode estudar um instituto jurídico, sem conhecer a sua
realidade“, conforme já ensinava o Prof. Karl Hauser, catedrático de economia da
Universidade de Frankfurt.636
Partindo dos ensinamentos do mencionado professor, define-se o mercado de
capitais como ambiente em que há oferta e demanda de dinheiro passível de
investimento monetário e real, incluindo direitos negociáveis, tais como títulos e ações
e com função precípua de formação de capitais.637
Tem o mercado de capitais uma função de transformação que atrai os
investidores, pois é um ambiente em que se faz possível a conversão de ativos líquidos
em investimentos fixos e a transformação de prazos dos investimentos, da magnitude do
capital e, ainda, dos riscos. Contudo, para que o investimento se concretize, devem os
poupadores estar seguros de que existe transparência de informações e que o preço dos
valores mobiliários é reflexo das informações disponíveis acerca das companhias cujos
títulos são negociados.
O mercado, portanto, tem de estar livre de indivíduos que se utilizam
indevidamente de informações relevantes ainda não divulgadas ao mercado de que
tenham conhecimento e devam manter sigilo, ou seja, livre de indivíduos que pratiquem
o insider trading. E, destaque-se que, para a configuração da conduta de insider trading,
tal informação deve ser capaz de propiciar vantagem indevida para si ou para outrem na
negociação de valores mobiliários.
Com o objetivo de dissuadir os detentores das informações privilegiadas de
usá-las de maneira indevida e prejudicar a confiabilidade no mercado de capitais,
implementaram-se diversos mecanismos jurídicos em nossa legislação.
636PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 72. 637PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 72.
203
As normas repressivas são aquelas que proíbem ações que caracterizem a
conduta de insider trading e visam à punição com sanções administrativas, civis
(reparação do dano) e criminais. As normas preventivas advêm do princípio da
transparência, segundo o qual se deve dar visibilidade às operações do mercado
acionário e exigir do potencial insider a prestação contínua de informações sobre os
valores mobiliários por ele negociados. Constituem, portanto, normas voltadas à
garantia da simetria de informações no âmbito do mercado de capitais.
O agente ao qual se imputa a conduta de uso indevido de informação
privilegiada não pode ser confundido com o agente especulador. O especulador não
manipula preços e tampouco mercados, condutas essas coibidas e punidas. Ele se utiliza
de informações públicas e de sua capacidade de análise para realizar investimentos de
alto risco que, quando bem sucedidos, geram retorno acima da média.
O mercado de capitais é, portanto, o ambiente no qual se dá a conduta de
insider trading e é distinto do mercado financeiro, conforme explica a Comissão de
Valores Mobiliários (CVM):
Mercado de capitais é aquele no qual as operações são normalmente efetuadas diretamente entre poupadores e empresas, ou por meio de intermediários financeiros não-bancários, diferenciando-se, do mercado financeiro, no qual os bancos atuam como parte na intermediação, interpondo-se entre aqueles que dispõem de recursos e aqueles que necessitam de crédito.638
Dentre os princípios orientadores do mercado financeiro e de capitais estão,
segundo o jurista Roberto Quiroga Mosquera, os de proteção da mobilização da
poupança nacional, proteção da economia popular, proteção da estabilidade da entidade
financeira e, por fim, o da proteção da transparência de informações, essencial à
compreensão do instituto jurídico ora sob análise.639
O princípio por último mencionado dispõe que todos aqueles que têm interesse
em realizar investimentos no mercado de capitais devem dispor das mesmas
informações para se evitar que haja benefícios de determinados agentes em detrimento
de outros.
A economia deve estar calcada em estabilidade monetária, bem como
confiabilidade institucional em relação à atividade econômica em geral. Tendo em vista
638ANDREZO, Andrea Fernandes. A necessidade de maior transparência das informações e orientação dos investidores para o desenvolvimento do mercado de valores mobiliários. 1999. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/port/Public/publ/1monografia.asp. Acesso em: 20.10.2011. 639ANDREZO, Andrea Fernandes. A necessidade de maior transparência das informações e orientação dos investidores para o desenvolvimento do mercado de valores mobiliários. 1999. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/port/Public/publ/1monografia.asp. Acesso em: 20.10.2011.
204
a importância dessa confiabilidade institucional, criou-se, no âmbito da Bolsa de
Valores Mobiliários de São Paulo, o Novo Mercado, o qual constitui uma seção
especial reservada à negociação de ações emitidas por empresas que voluntariamente se
comprometeram à adoção de melhores práticas de governança corporativa, além de
disclosure adicional comparativamente ao exigido pela legislação. Trata-se de um
ambiente que proporciona maior segurança aos investidores e reduz os custos de
captação de recursos, refletindo beneficamente na valorização e liquidez das ações.
3. Legislação: considerações históricas
A legislação referente às atividades no mercado de valores mobiliários vem
sofrendo diversas mudanças, as quais têm como finalidade precípua incentivar o
mercado de capitais por meio de condições seguras e adequadas à capitalização das
empresas, de maneira a gerar maior confiança e proteção ao futuro investidor.
A legislação brasileira é notável, pois determina: “informe, seja transparente,
mas se, por qualquer motivo não for possível informar, abstenha-se de negociar no
mercado de capitais“640. Impasse existe na definição do quanto é necessário informar
cabendo isso à regulação.
A lei deve tutelar os investidores perante a possibilidade de atuações
prejudiciais de outros participantes do mercado; deve buscar suprimir desigualdades.
Entre 1940 e 1976, as companhias abertas eram regidas pelo Decreto-lei
2.627/40. Havia menção à prestação de informações de maneira singela. A preocupação
limitava-se ao registro e autorização de funcionamento de sociedades empresárias
estrangeiras.
Em seguida, veio a Lei do Mercado de Capitais, a Lei 4.728/65, que passou ao
Banco Central (BACEN) a incumbência de empreender a fiscalização da utilização, em
benefício próprio ou de terceiros, de informações não divulgadas ao público por
acionistas ou pessoas que, em virtude do cargo exercido, a elas tivessem acesso.
Determinava, ainda, a aplicação de sanções previstas na Lei Bancária (Lei 4.595/64), o
que era por completo inapropriado.641
640PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 136. 641PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 275.
205
Segundo Fábio Konder Comparato, tal texto não era suficiente para refrear a
prática do insider trading, tampouco para orientar a criação de estruturas fiscalizadoras
de tal conduta.642
A Resolução 88 de 1968 do Banco Central procurou complementar o
dispositivo lacunoso da produção legislativa anterior, exigindo das companhias o
compromisso formal de revelar, de forma ágil, as decisões da diretoria e assembleia
geral relativas a dividendos, direitos de subscrição ou outras relevantes que
influenciassem, principalmente, nas decisões dos investidores.
Nasce, nesse momento, o comando de disclosure, o fato relevante. Não
encerra, contudo, a proibição da utilização das informações antes de revelá-las ao
público.
A Resolução 39 de 1960 do Banco Central, anterior portanto a 1988,
incriminava a manipulação fraudulenta dos preços (art. 89, II), além de disciplinar a
constituição, organização e funcionamento das bolsas.
A Lei 6.404/76 introduz uma regulação mais taxativa do insider trading, tanto
em moldes preventivos como repressivos. A lei insere o princípio do dever de informar
em seu art. 157. Não soluciona, contudo, todas as lacunas, pois, por exemplo, refere-se
à responsabilidade no âmbito administrativo e civil, sem a previsão de sanções penais.
Foi responsável, ainda, pela restrição da imputação da conduta aos administradores,
seus subordinados e terceiros de sua confiança.
A Lei 10.303/2001 introduziu alterações na LSA, solucionando algumas de
suas falhas. Atribuiu à CVM poderes para exigir informações imediatas a respeito de
qualquer alteração de posição acionária dos administradores da companhia, enfatizando
um procedimento que viabiliza ou, ao menos, facilita a identificação de eventual
conduta ilícita de insider trading. Introduziu, sobretudo, o §4º do art. 155.
4. Informação relevante: conceito
A Instrução CVM 358 de 3 de janeiro de 2002 dispõe:
sobre a divulgação e uso de informações sobre ato ou fato relevante relativo às companhias abertas, disciplina a divulgação de informações na negociação de valores mobiliários e na aquisição de lote significativo de ações de emissão da companhia aberta, estabelece vedações e condições para a
642COMPARATO, Fábio Konder. Insider Trading - Sugestões para a moralização do mercado de capitais. Revista de Direito Mercantil. São Paulo, n. 3, 1971.
206
negociação de ações de companhia aberta na pendência de fato relevante não divulgado ao mercado, revoga a Instrução CVM nº 31, de 8 de fevereiro de 1984, a Instrução CVM nº 69, de 8 de setembro de 1987, o art. 3° da Instrução CVM n° 229, de 16 de janeiro de 1995, o parágrafo único do art. 13 da Instrução CVM 202, de 6 de dezembro de 1993, e os arts. 3o a 11 da Instrução CVM no 299, de 9 de fevereiro de 1999.643
Em seu art. 2º, caput a Instrução define o ato ou fato relevante como as
decisões do acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de
administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-
administrativo, técnico, negocial, ou econômico-financeiro. Realiza uma enumeração
que estabelece um rol exemplificativo.
A instrução cataloga, ainda, os titulares do dever de divulgação de ato ou fato
relevante (art. 3º)644. Para se eximir de responsabilidade relativamente à omissão do
Diretor de Relações com Investidores, as pessoas apresentadas no rol do art. 3º devem
imediatamente cientificar a CVM da ocorrência.
O ato ou fato relevante deve ser divulgado pelo Diretor de Relações com
Investidores mediante publicação em jornais de grande circulação, e, sempre que
possível, antes do início ou após o encerramento dos negócios nas bolsas de valores e
entidades do mercado de balcão organizado onde os títulos de emissão da companhia
sejam admitidos à negociação.
A Instrução também foi responsável pela ampliação substancial do rol
daqueles que têm o dever de guardar sigilo, conforme dispõe o art. 8º:
Art. 8º - Cumpre aos acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, e empregados da companhia, guardar sigilo das informações relativas a ato ou fato relevante às quais tenham acesso privilegiado em razão do cargo ou posição que ocupam, até sua divulgação ao mercado, bem como zelar para que subordinados e terceiros de sua confiança também o façam, respondendo solidariamente com estes na hipótese de descumprimento.645
643Instrução CVM nº 358, de 3 de janeiro de 2002. 644Art. 3º - Cumpre ao Diretor de Relações com Investidores divulgar e comunicar à CVM e, se for o caso, à bolsa de valores e entidade do mercado de balcão organizado em que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação, qualquer ato ou fato relevante ocorrido ou relacionado aos seus negócios, bem como zelar por sua ampla e imediata disseminação, simultaneamente em todos os mercados em que tais valores mobiliários sejam admitidos à negociação. § 1º Os acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, deverão comunicar qualquer ato ou fato relevante de que tenham conhecimento ao Diretor de Relações com Investidores, que promoverá sua divulgação. (...) 645Instrução CVM nº 358, de 3 de janeiro de 2002.
207
Ary Oswaldo Mattos Filho afirma que, apesar das modificações essenciais na
Lei da CVM, o campo ainda ficou extremamente amplo e não mapeado, devido a duas
principais mudanças.646
A primeira diz respeito a que a função de normatização, fiscalização e punição
de todos os contratos de investimentos passou a ser competência da Comissão de
Valores Mobiliários (CVM). Significa que o modelo brasileiro se descolou do
americano, em que há divisão de tarefas entre a Securities and Exchange Comission
(SEC), responsável por alguns poucos tipos de valores mobiliários, e a Commodity
Futures Trading Comission (CFTC), responsável pelos mercados futuros de
commodities agrícolas, financeiros, etc. Tudo que se refere a contrato de investimento
passou para o âmbito da competência da CVM. Para a CFTC, não há insider em
commodities. No Brasil, passou a ser possível a caracterização da conduta de insider em
todos os contratos negociados na BM&F ou outras bolsas similares.647
A segunda refere-se à inclusão do art. 27-D na Lei 6.385/76, dispositivo
responsável pela ampliação da definição da prática do insider trading, conforme se
vislumbra no texto que criminaliza a conduta:
Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)
Afirmou o Professor Ary Oswaldo Mattos Filho que haverá um árduo trabalho
de interpretação, pois o campo ficou extremamente amplo. O insider trading deixou de
ser apenas o que está na LSA e passou a ser definido, também, pelo art. 27-D da Lei
6.385/76. Um dos problemas residiria, por exemplo, no verbo utilizar. Seria necessário
um ato de vontade? Outra questão estaria relacionada à definição de quais valores
mobiliários. Seriam apenas os contratos de investimento?
5. Dever de Diligência e Dever de Lealdade
646PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852. 647PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852, p. 23-24.
208
O dever de diligência encontra-se previsto no art. 153 da LSA e consiste em
uma obrigação de meio, segundo enuncia o doutrinador Fábio Ulhoa Coelho.648
Corresponde ao dever de atuar com cuidado e diligência na administração dos negócios
sociais, como se fossem negócios seus649, ou seja, ao administrador é atribuída a tarefa
de ter todo o cuidado na gestão dos negócios sociais.
A legislação brasileira incorporou o duty of care do direito norte-americano
com a ideia fundamental de que o administrador deve conduzir-se pela boa-fé, atuando
como uma pessoa prudente agiria em situações semelhantes, com a finalidade precípua
de atender aos interesses da companhia.
O dever de lealdade, concretizado no art. 155 da LSA, corresponde à noção de
que o administrador deve servir à companhia e não se servir dela, ou seja, não pode
sobrepor os seus interesses aos da sociedade.650 O dispositivo legal visa, portanto,
proibir o administrador de auferir vantagens pessoais ou para terceiros, a partir de
oportunidades comerciais que lhe aparecem em função do cargo ocupado.
O administrador tem a obrigação de proteger a função social da sociedade
empresária, cujo fundamento está no caráter fiduciário de sua função. Importante
destacar, ainda, que o dever é para com a companhia e não para com os acionistas,
conforme leciona Modesto Carvalhosa.651
Com o aperfeiçoamento dos mandamentos éticos, chegou-se ao dever de
disclosure, essencial à manutenção de um ambiente propício ao desenvolvimento
econômico e social do país.
6. Dever de Informar
O dever de informar encontra fundamento no princípio da transparência.
Constitui um mecanismo para assegurar a simetria das informações no âmbito do
mercado de capitais, ensejando a toda a comunidade de investidores o acesso aos dados
das companhias.
O mencionado dever provém do princípio da função social da propriedade
elencado no art. 170, III de nossa Carta Magna. Para a sua melhor compreensão, deve-
648COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v.2, p. 244. 649TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário. 3a Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 538. 650TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário. 3a Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 539. 651CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 302.
209
se analisar o art. 157 da Lei das Sociedades Anônimas (LSA). Determina-se no §4º do
mencionado dispositivo que os administradores de companhias abertas estão obrigados
à pronta e eficaz divulgação dos fatos relevantes acerca da situação da sociedade,
garantindo o equilíbrio das posições dos agentes do mercado, sobretudo a isonomia, de
forma a obstaculizar a utilização desleal das informações.652
Ainda no contexto da LSA, importante é o art. 155 que dispõe sobre o dever de
lealdade do administrador.653. Tendo em vista o alcance limitado do §1º, destinado
somente aos administradores das companhias abertas, incluiu-se o § 4º. Passou-se,
assim, a proibir a utilização, por qualquer pessoa, de informação relevante ainda não
divulgada com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de
valores mobiliários.
O §6º do art. 157 da LSA fez com que o dever de informar passasse a ser mais
contundente, tendo em vista que obriga os administradores da companhia a comunicar,
imediatamente, à CVM, às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão
organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam
admitidos à negociação, alterações em suas posições acionárias na companhia. O
dispositivo reflete a importância de que toda informação essencial seja divulgada
imediatamente ao mercado, seja pelas bolsas, CVM ou por publicação em jornais e
revistas.
O dever de informar é essencial para fomentar a maior liquidez no mercado,
reduzir a concentração da titularidade das ações, enfim, democratizar o mercado de
capitais. Tem como finalidade, sobretudo, prevenir a prática do insider trading.
Para melhor compreensão do dever de informar, apontaremos a forma de
classificação das informações. Elas encontram-se divididas em básicas, “fatos
relevantes“, informações privilegiadas e informações de mercado. As básicas são
aquelas informações fundamentais ao mercado, tais com as que tratam da situação
652Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular. (…) § 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia. (...) § 6º Os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, nos termos e na forma determinados pela Comissão de Valores Mobiliários, a esta e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as modificações em suas posições acionárias na companhia. 653Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado: (...) § 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários. (...) § 4º É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)
210
econômico-financeira da companhia, estatuto social, organização societária, balancetes
contábeis, dentre outras. Os “fatos relevantes“ dizem respeito aos acontecimentos
capazes de mudar, imediatamente, o julgamento dos investidores em relação a um certo
ativo.
As informações privilegiadas são aquelas relativas a matérias relevantes, caso
contrário, não seria considerado privilégio acessá-las, e, ademais, caso publicadas
antecipadamente, são capazes de induzir os investidores em erro. Caracterizam-se,
ainda, pelo fato dos administradores diretos da empresa serem os primeiros a manuseá-
las. Posteriormente, terceiros também podem vir a tomar conhecimento das mesmas em
virtude do exercício de profissão ou por meios obscuros.
O fundamento da não divulgação de determinadas circunstâncias societárias,
previsto no art. 155 da LSA, provém do dever de lealdade, dever esse inerente à função
dos administradores e que se impõe tanto para atuação junto à sociedade empresária
quanto junto aos acionistas, aos empregados, ao mercado de capitais e à própria
comunidade.
Os deveres de lealdade, diligência e de informar decorrem da posição
privilegiada em que se encontram os administradores, face, essencialmente, ao acesso às
informações da companhia, as quais, constantemente, não são de conhecimento público.
Podem-se vislumbrar dois mandamentos imperativos básicos no dever de
lealdade e na proteção do mercado de capitais e de seus agentes. Primeiro, a proibição
de qualquer pessoa detentora de informações privilegiadas de realizar negociações em
seu nome ou de terceiros com os valores mobiliários da companhia, a fim de não restar
configurado o delito de insider trading. Proibição, portanto, que visa impedir que um
sujeito aufira lucros valendo-se de situação vantajosa em relação ao investidor comum.
Um segundo mandamento relaciona-se à obrigação de divulgação, exposto no
art. 157, §§ 5º e 6º da LSA. Confere à CVM poderes de exigir informação, ainda que
sigilosa, podendo, a seu critério, noticiá-la ao mercado. Em alguns casos, a quebra do
sigilo corresponde ao cumprimento do dever de lealdade.
Por fim, as informações de mercado correspondem àquelas obtidas por meio de
pesquisa própria e apurada. No âmbito de tais informações aflora a discussão existente
nas cortes americanas acerca da teoria do mosaico, segundo a qual um analista talentoso
e perceptivo combina informações públicas com pedaços de informes não públicos
irrelevantes para se alcançar uma conclusão importante que altere precificação de um
determinado ativo e acarrete vantagem.
211
Nos Estados Unidos, tem-se decidido que, no caso de aplicação da teoria do
mosaico, para que a conduta de insider trading não reste configurada, devem os
analistas apresentar os detalhes das informações, bem como a metodologia utilizada
para alcançar a conclusão que motivou a realização da transação no mercado. Ou seja,
caso seja possível verificar que não houve uso indevido de informação privilegiada, não
se pune o analista.
O autor José Marcelo Martins Proença argumenta que, de qualquer forma,
gera-se assimetria de informações, a menos que a conjugação das informações pelos
analistas corresponda, apenas, à maior diligência no atendimento aos clientes.654
Interessante consideração é a realizada por Ilene Patrícia Noronha Najjaria,
procuradora federal da Comissão de Valores Mobiliários (CVM):
Como saber quando eu devo guardar sigilo e quando eu devo informar? Isso é uma linha tênue e é difícil para o empresário, os players e todos os que estão em uma operação raciocinar assim. Eu sempre falo que é um exercício de meditação do ser humano. O ser humano tem que meditar. É pensar: essa decisão, essa operação que está ocorrendo, influenciaria no meu íntimo, na minha decisão de comprar ou vender esse papel? Se, lá no seu íntimo, vier sim, influenciaria na minha decisão de comprar ou vender esse papel, aí você tem um dever de divulgar, de consultar a autarquia, de verificar melhor.655
Deve-se observar que a teoria do mosaico ainda acarreta muitas discussões e
difícil faz-se chegar a uma conclusão definitiva sobre se deveria haver a punição de tal
prática por corresponder a uma forma de insider trading ou se não se deveria puni-la,
tendo em vista que a decisão decorre de uma cuidadosa análise do mercado, fruto da
bagagem intelectual do analista.
Deve-se questionar, por exemplo, se seria um caso de assimetria de informação
resultado de não publicação de fatos relevantes ou se, ao contrário, pela análise da
metodologia utilizada pelo analista pode-se perceber que a decisão decorreu de know-
how sobre o funcionamento do mercado e, portanto, não se tratou de utilização indevida
de informação ainda não divulgada ao mercado. A verificação da ocorrência do insider
trading decorrerá, portanto, da análise do caso concreto.
654 PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 655PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852, p. 18.
212
6. Sujeitos Ativos: insider trading
Dúvida reside em saber a quem se pode imputar a conduta insider trading.
Trata-se de discussão amplamente difundida na doutrina. Segundo a tese de José
Marcelo Martins Proença, pode-se imputá-la a qualquer pessoa, seja ela administradora
ou não da companhia, desde que utilize informação ainda não pública para negociar no
mercado de capitais auferindo vantagens, em regra, a custo de prejuízo alheio.656
Conforme já explicado, a prática do insider trading pode resultar de conduta
dos administradores das companhias abertas ou de outros indivíduos que tenham acesso
às aludidas informações, quer pela função, quer por qualquer outro meio.
A LSA supriu uma lacuna até então existente na legislação ao inserir o §4º no
art. 155 trazendo a expressão “qualquer pessoa“. Insider, portanto, é qualquer pessoa
que tenha acesso a informações capazes de influenciar na cotação de valores
mobiliários de emissão da companhia.
Segundo Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik a Lei 10.303/2001 pressupôs
que o administrador representa o tipper, que transmite ao tippee a informação não
divulgada, ou seja, existiria sempre uma correlação entre o administrador e o terceiro.
Logo, tendo em vista o §4º, o insider será a pessoa que, em conluio ou mesmo por
negligência do administrador, efetivamente se aproveita das informações privilegiadas
para obter ganhos ou evitar prejuízos. Além do administrador, poderia ser qualquer
pessoa que, em decorrência do exercício de funções na sociedade ou no mercado, ou por
circunstâncias especiais de acesso à administração da companhia, viesse a deter
informações relevantes relativas aos negócios e estado da companhia.657
Para os mesmos autores, existe limitação ao termo “qualquer pessoa“, pois,
para que terceiros possam ser tippees, deve haver nexo profissional entre eles e o
administrador (tipper). Ademais, se a informação relevante vazar além dos
controladores e dos profissionalmente envolvidos com ela, os terceiros ocasionalmente
informados não poderiam ser considerados insiders. O administrador deveria ser o
responsabilizado por não ter mantido a reserva necessária sobre o fato relevante.
José Marcelo Martins Proença, contudo, contestando os argumentos
mencionados, afirma que a introdução do novo parágrafo visou vedar a “qualquer
656PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 657 PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 291-293.
213
pessoa“, sem qualquer limitação, a utilização de informações privilegiadas no mercado
de capitais.658
O §2º do art. 155 aplicava a proibição de prática de insider trading apenas aos
subordinados ou terceiros da confiança do administrador. Antes da inserção do §4º,
houve decisão no sentido de proibição ao acionista controlador também.
Segundo a Lei 6.385/1976, que criou a CVM, os insiders poderão ser os
administradores da companhia (art. 145), os membros de quaisquer órgãos criados pelo
estatuto da cia com funções técnicas ou destinadas a aconselhar os administradores (art.
160), os membros do conselho fiscal (art. 165), as pessoas autônomas que prestam
serviços profissionais à companhia, aquelas com relação de subordinação ou, ainda, que
tenham acesso às informações privilegiadas, ademais dos controladores com acesso às
informações privilegiadas da administração da companhia (art. 116 e 117), os
intermediários do mercado de capitais, como as instituições componentes do Sistema de
Distribuição de Valores Mobiliarios, bem como as pessoas físicas que as administram,
nelas trabalham ou delas são agentes autônomos, os investidores ou participantes do
mercado, na qualidade de compradores e vendedores de valores mobiliários ali
negociados. Todas essas pessoas físicas ou jurídicas que, originariamente, ou, por
vazamento, estejam de posse de informações privilegiadas, são obrigadas a se absterem
de negociar com valores mobiliários da companhia no mercado de capitais.
7. Presunção de culpa
A LSA adota o critério analítico ao enumerar os deveres de lealdade e de
informação dos administradores, de forma a facilitar a configuração da falta e a
determinação de responsabilidade. O legislador ampliou, portanto, as hipóteses de
presunção de culpa, facilitando a prova.
A responsabilidade civil dos administradores pelos prejuízos ocasionados,
dentro da órbita de suas atribuições ou poderes decorre, segundo a lei, de culpa ou dolo
com que tenham atuado. Logo, considera Luis Gastão Paes de Barros que a culpa dos
administradores em sentido lato ou estrito deve ser provada pelo lesado, bem como deve
ser comprovado o prejuízo resultante e o nexo causal entre o ato e o fato ilícito.
658PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 293.
214
Todavia, quando os prejuízos resultarem de atos praticados pelos administradores com
violação à lei ou aos estatutos, a lei presume culpa, havendo a inversão do ônus da
prova.659
Em geral, a responsabilidade administrativa dos indiciados em inquérito
administrativo da CVM deveria reger-se pelos princípios da responsabilidade subjetiva.
Em alguns casos, todavia, como o do insider trading seria admitida a inversão do ônus
da prova em matéria, o que não significa aceitação da responsabilidade objetiva, a qual
deve originar-se de disposição legal expressa, não cabendo, por conseguinte, em
matéria de aplicação de medidas punitivas.
Em relação ao insider trading, cabe à CVM comprovar a existência do dano e
que decorreu de conduta ilegal do insider, pela utilização de informação da companhia
em proveito próprio. Quando for insider administrador ou acionista controlador
presume-se que, devido ao cargo, teve acesso à informação relevante.
No caso do insider trading, em que há violação a deveres legalmente
estabelecidos ao administrador da companhia, possível faz-se, segundo Eizirik, uma
apuração objetiva da infração, a qual se caracterizaria independentemente do elemento
intencional. Tais casos de responsabilidade civil e administrativa decorreriam da
infração à lei, sendo possível a aplicação de sanções disciplinares sem a comprovação
da intenção de lesar, do dolo, bastando a configuração da culpa em sentido estrito.
Modesto Carvalhosa660 assume o posicionamento de que deve haver a
responsabilidade objetiva daquele que pratica o insider trading, estendendo-se a mesma
aos controladores e aos terceiros que se beneficiaram do vazamento das informações. A
responsabilidade decorreria diretamente da ação ou omissão do administrador (tipper).
Segundo o autor, trata-se de quebra do dever de lealdade com a companhia, os demais
acionistas e o mercado de ações e, nesse caso específico, dispensa-se o nexo entre a
ação ou a omissão e o prejuízo ou dano sofrido pela companhia, segundo prescreve o
art. 158, I ao vedar ao administrador o uso das oportunidades “com ou sem prejuízo
para a companhia“. O dever de lealdade estaria embasado não no dano, mas, sim, no
caráter fiduciário das funções de administrador. Seria, assim, um ilícito formal.
A intenção, segundo Modesto Carvalhosa, estaria dispensada, pois a fraude
seria objetiva. Segundo o doutrinador, tratar-se-ia do mesmo princípio contido no art.
659PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 280. 660 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 303-304.
215
129 da Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101/2005), o qual nega
efeito aos negócios jurídicos praticados pelo devedor antes da falência,
independentemente da intenção de fraudar os credores. O termo legal da falência
constituiria elemento necessário e suficiente à decretação da ineficácia dos atos
jurídicos praticados no período.
No caso do insider trading, dever-se-ia utilizar o mesmo critério. Considera
Modesto Carvalhosa que a fraude decorreria objetivamente de qualquer negócio com
valores mobiliários emitidos pela companhia praticados pelos administradores e demais
agentes durante o período em que possuíssem informações relevantes com relação aos
negócios e ao estado da companhia.
9. Jurisprudência Administrativa 661
No âmbito da Comissão de Valores Mobiliários diversas questões já foram
analisadas e discutidas. Trazemos agora alguns posicionamentos interessantes da
autarquia.
Nos Processos Administrativos (PA) nº 01/78 e 28/88 concluiu-se pela
desnecessidade de caracterização do dolo do insider, sendo suficiente a existência da
negociação sem que a outra parte conheça a informação privilegiada.
No PA 04/86, determinou-se que um prejuízo considerável constitui
informação relevante. Considerou-se prática de insider trading as transações efetuadas
pelos administradores, antes da publicação das demonstrações desses prejuízos
No âmbito dos Processos Administrativos 02/79 e 04/85, discutiu-se acerca do
conceito de vantagem auferida. No PA 02/79, entendeu-se que no conceito estava
incluída não apenas a vantagem real, mas também a vantagem potencial. No PA 04/85,
concluiu-se que o conceito de vantagem abrangia, além do lucro obtido, o prejuízo
evitado.
No PA 07/91, caso em que se discutiu acerca do conceito de vantagem
auferida, entendeu-se que o conceito envolvia, além da vantagem real, a vantagem
potencial.
Nos PAs 02/85 e 13/00 houve presunção de conhecimento de informação por
administrador, mas, de outro lado, não houve consenso quanto à aplicação de
661Os casos tratados foram selecionados na obra de PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 299-306.
216
penalidade ao diretor financeiro, que, supostamente, teria conhecimento da proposta de
pagamento de dividendos antes da deliberação do Conselho e que negociou com valores
mobiliários antes dessa decisão. Segundo o Relator (voto vencedor), o elemento
essencial à configuração do insider trading é a utilização pelo insider de informação
confidencial sobre fato relevante. Sendo o insider administrador ou acionista
controlador da companhia, haveria presunção de que teve acesso à informação relevante
em decorrência de seu cargo. No caso de um insider de mercado ou tippee, não
ocorreria tal presunção, cabendo à CVM provar o seu acesso à informação. O voto
divergente propugnou que, por ser da área financeira e participar do Conselho de
Administração, o diretor financeiro não poderia ter efetuado as negociações que
realizou, pois possuía as condições privilegiadas para, além de supor, propor e participar
da decisão em relação ao pagamento de dividendo intercalar.
No PA 05/83, afirmou-se que o dever genérico de informar deve suplantar o
dever de sigilo. Todavia, quando a divulgação pudesse acarretar desordens e tumultos
no mercado, seria aceita a manutenção do sigilo no caso de intenções de negócios, a
menos que houvesse vazamento ou rumores, situação em que passaria a ser obrigatória
a divulgação.
Acima foram, portanto, apresentados algumas das discussões já ocorridas no
âmbito da CVM. Vê-se que são casos específicos, os quais devem ser minuciosamente
analisados para se tentar coibir tal prática que lesa, sobretudo, o interesse público.
10. Criminalização
Importante ressaltar, inicialmente, que a lei que instituiu a criminalização da prática
do insider trading é complementada pela Lei das S/A, bem como pelas Instruções
emitidas pela CVM. Apenas em 2001, alguns ilícitos administrativos ganharam a tutela
do direito penal e foram, portanto, acolhidos por seara que não o direito societário.
Os delitos financeiros, resumidamente, destinam-se a punir as condutas intoleráveis,
que importem em manobras lucrativas e em prejuízo geral, mediante o aproveitamento
da estrutura e organização do sistema financeiro. Assim sendo, os mencionados delitos
expressam uma disfunção do sistema financeiro e o seu conteúdo está limitado pelo
bem jurídico a ser protegido.
A tipificação de infrações contra o mercado de capitais, sobretudo o uso de
informação privilegiada, só se torna viável diante de um mercado de caráter liberal, mas
217
sobre o qual se faça marcante a presença do Estado, regulamentando e fiscalizando o
seu funcionamento.
A LSA e a LVM, além das instruções normativas da CVM, impõem aos
administradores das sociedades anônimas, deveres e responsabilidades perfeitamente
afinados com os rígidos princípios conformadores da atividade do administrador
público (art. 37 CF). Deve-se analisar para tanto os arts. 153 a 160 da LSA.
A nossa ordem econômica constitucionalmente estabelecida confere ao mercado o
título de patrimônio nacional e à empresa uma função social. O administrador de
sociedades anônimas desempenha atribuições legais e estatutárias, não só no interesse
da empresa, mas do público em geral e, como tal, há de adotar um comportamento
similar ao do administrador público.
A LVM, antes mesmo das alterações introduzidas pela Lei 10.303/2001, já firmara a
presença do Estado no nosso mercado de valores mobiliários. À CVM atribuiu-se
competência para, além de regulamentar, fiscalizar as atividades e os serviços do
aludido mercado, apurando infrações e aplicando penalidades de natureza administrativa
por ela estatuídas.
O art. 27-D, da Lei 10.303/2001 intensificou a penalização da prática do insider
trading ao criminalizar a conduta, a qual passou a constituir violação simultânea dos
preceitos legais pertinentes ao dever de informar e de tornar públicos fatos hábeis para
influir na decisão de compra e venda de títulos por parte dos investidores (art. 157,
paragrafo 4º LSA), além da transparência e da ética essenciais ao bom funcionamento
de nosso mercado de capitais.
Viola, ainda, o dever de lealdade, transgredindo a disposição do art. 155, §1º da
LSA. A norma tutela, também, a eficiência do mercado para cuja garantia a lei institui o
dever de informar.
Trata-se de norma penal em branco, pois sua exequibilidade depende de conceitos
trazidos pela LSA e pelas instruções CVM. Constitui crime próprio, tendo em vista que
só pode cometê-lo aqueles aos quais a lei imponha o sigilo acerca da informação usada
para a negociação. É crime formal, considerando-se que o legislador não cogitou, para
sua consumação, da efetiva obtenção da vantagem almejada pelo autor. Importante
ressaltar que a informação tem de ser capaz de propiciar vantagem a quem dela se
utiliza.
218
O núcleo do tipo consiste em negociar com valores mobiliários valendo-se de
informação não divulgada ao mercado. Distingue-se do delito material, portanto, o qual
prevê o dano.
Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik suscitam a discussão acerca da definição
como crime formal ou material. Afirmam que a pena aplicável parece caracterizar o
delito como material, pois cumula a reclusão com multa calculada em função da
vantagem obtida.
Conforme já mencionado o insider trading corresponde ao uso de informações
privilegiadas no mercado de capitais. A legislação, portanto, tem como finalidade evitar
uma assimetria informacional no mercado de valores mobiliários.
À conduta deve-se atribuir o status de ilícito, tendo em vista que se faz necessário
que o nosso mercado de capitais tenha credibilidade para que possa constituir um dos
pilares de nosso desenvolvimento econômico e, consequentemente, social.
11. Insider trading e seus benefícios?
Existem teorias que afirmam ser a prática de insider trading benéfica ao
mercado por ser eficiente do ponto de vista econômico. Três são as principais vertentes
defensoras de tal entendimento.662
A primeira, baseada na agency theory, enxerga na conduta do insider uma
fórmula para compensar os administradores por incrementar os ganhos dos mesmos e,
consequentemente, reduzir os conflitos com os acionistas. A prática do insider seria
hábil para melhor remunerar e, portanto, incentivar os administradores quando, a
despeito de normalmente avessos aos riscos, os assumem em patamares elevados ao
ocuparem a direção de uma companhia. E, em contraprestação aos maiores riscos dos
administradores, a remuneração seria incrementada, atribuindo-lhes a faculdade de
negociarem no mercado de capitais, munidos de informações privilegiadas, detidas em
razão de seus cargos. Em suma, tal vertente argumenta que o maior apetite dos
administradores para o risco também favoreceria os investidores, os acionistas e os
titulares do equivalente a uma opção sobre os bens da empresa.
Uma segunda vertente, que tem como principal expoente Richard Posner,
suscita para legitimá-la, os altos custos de sua punição ou identificação. Estabelecida
662 PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 330-333.
219
essa relação custo-beneficio, fica legitimada a ação dos insiders, bem como explicado o
motivo pelos quais as companhias não se esforçam para penalizá-los. Para Posner,
inclusive, a repressão eficaz dessa espécie de conduta implicaria proibir os prováveis
insiders e suas famílias de negociarem quaisquer valores mobiliários, o que entendia ser
um exagero despropositado.
A terceira teoria ultrapassa o âmbito da relação administrador-acionista,
advogando que similar prática teria a capacidade de fazer os preços das ações
refletirem, ágil e completamente, as informações relevantes pertinentes. A atuação dos
insiders configuraria um instrumento para a rápida canalização e divulgação das
informações no mercado, não obstante o eventual ganho dos administradores. Para os
defensores dessa teoria, portanto, tão logo se verifica o movimento dos insiders, o
mercado os acompanha.
Interessantes são tais posicionamentos vistos da perspectiva atual em que não
se cogita de que qualquer benefício seja proveniente de tal ação. Todavia, importante
destacar a existência de tais teorias.
12. Chinese Wall
Define-se o Chinese Wall como:
conjunto de regras e procedimentos definidos em política interna adotada pelas companhias de mercado e instituições financeiras com o fim de promover e manter a segregação de informações a que tem acesso os diversos departamentos da organização administrativa de tais sociedades, cujos objetivos podem eventualmente se revelar conflitantes. 663
Antes de tecer considerações, importante distinguir insider primário e
secundário. Insider primário é aquele que é administrador ou membro de órgão
deliberativo da sociedade e, secundário, o profissional que tem contato com
informações exclusivas e privilegiadas sobre a mesma pelo exercício concreto de atos
profissionais diretamente ligados à sociedade.
Apesar de a CVM não prover um elenco de procedimentos para implantação e
manutenção do Chinese wall nas instituições financeiras e companhias abertas, ela não
desconhece a prática e a recomenda, como se depreende do art. 7º da Instrução 306 de
663LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. A adoção do Chinese wall e a repressão ao insider trading. In: Revista do Direito Bancário e do Mercado de Capitais – RBD 47. Ano 13, n. 47, jan-mar/2010, p. 229.
220
05.05.1999. A autarquia pode, no exercício de suas funções, avaliar a coerência e a
viabilidade das normas implantadas voluntariamente nas companhias, bem como o
cumprimento pelos empregados e administradores das mesmas.
O Banco Central, por meio das resoluções CMN 2.451, de 27.11.1997 e CMN
2.486, de 30.04.1998, dispôs, expressamente, acerca da necessidade de segregação, nas
instituições bancárias, da administração de recursos de terceiros das demais atividades
por elas desenvolvidas. O Conselho Monetário Nacional estabeleceu nessas resoluções
que as instituições em apreço não podem atuar na contraparte, direta ou indiretamente,
em operações de carteiras de títulos e valores mobiliários, por elas administradas,
exceto quando, embora formalmente contratadas como administradoras das mesmas,
não tenham conhecimento prévio das operações e não detenham o poder discricionário
sobre as referidas carteiras por terem delegado a empresas especializadas a prestação de
serviços de gestão.
A muralha chinesa gera restrição ao fluxo de informações dentro da empresa,
todavia, não determina, necessariamente, a proibição da atuação com determinados
papéis. Constitui, sobretudo, um processo de sinalização, o qual sujeita as operações a
uma análise que poderá redundar em proibição das transações.
13. Conclusão
O insider trading consiste no uso indevido de informação privilegiada e traduz
um comportamento nocivo ao bom funcionamento de nosso mercado de capitais. Como
crime, portanto, pode-se afirmar que lesa interesse da coletividade.
O presente artigo buscou gravitar em torno de questionamentos essenciais ao
desenvolvimento do tema. Três foram as questões inspiradoras. A primeira corresponde
à discussão acerca do sujeito ativo da conduta, a segunda acerca da responsabilização
do administrador e uma terceira da aplicação da teoria do mosaico.
Inicialmente, alguns comentários serão realizados acerca da aplicação da teoria
do mosaico. Não foi possível chegar a uma conclusão definitiva sobre se tal viés da
conduta configura insider trading. A favor da punibilidade, há o argumento de que o
analista utiliza informação privilegiada. Sopesa-se, contudo, o fato de que as
informações não seriam, por assim dizer, úteis, caso não houvesse know-how acerca do
funcionamento do mercado por parte de quem a utiliza. Não há, portanto, uma solução
221
aplicável genericamente. Necessária é a análise casuística e verificação da ilicitude da
conduta.
Em relação ao sujeito ativo, ainda existe dissensão doutrinária, conforme
demonstrado ao longo do texto. Todavia, o rol daqueles aos quais se pode imputar a
conduta sofreu ampliação considerável em decorrência de modificação legislativa.
Passou-se de uma legislação que buscava proteger apenas o “ambiente companhia” para
uma que zela pelo mercado de capitais e seus múltiplos agentes.
A expressão “qualquer pessoa“, de fato, deve abranger todos, sejam ou não
administradores da companhia e punir pela negociação vantajosa a custa de prejuízo
alheio. Em posicionamento destoante do sustentado por Modesto Carvalhosa, nem
sempre se pode assumir uma correlação entre o administrador e o terceiro, ou qualquer
violação pelo administrador ao dever de reserva sobre o fato relevante.
A discussão que, todavia, considera-se mais relevante diz respeito à
responsabilização do insider. Segundo Modesto Carvalhosa, deveria ser objetiva.
Considerando-se tal posicionamento, severas considerações devem ser tecidas e ampla
discussão deve ser realizada. A responsabilidade tem, necessariamente, de ser subjetiva,
pois a responsabilidade objetiva encontra-se adstrita aos casos assim previstos em lei. O
argumento de que se trata de ilícito formal não sustenta de maneira sólida tal
entendimento. Deve haver, ao menos, a análise de culpa em sentido estrito.
Por fim, após a apresentação dos principais pontos discorridos ao longo do
trabalho, vê-se que constitui um campo fértil e deficitário, que ainda requer muita
análise. Diversas dificuldades se colocam, inclusive pela pouca discussão acerca do
assunto. Logo, devem-se empreender pesquisas mais aprofundadas acerca do tema e
apresentar-se soluções que podem beneficiar, inclusive, o desenvolvimento econômico
do país ao atrair mais investidores a nosso mercado de capitais.
14. Referências
ANDREZO, Andrea Fernandes. A necessidade de maior transparência das informações e orientação dos investidores para o desenvolvimento do mercado de valores mobiliários. 1999. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/port/Public/publ/1monografia.asp. Acesso em: 20.10.2011. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.
222
EIZIRIK, Nelson. Aspectos Modernos do Direito Societário. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1992. LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. A adoção do Chinese wall e a repressão ao insider trading. In: Revista do Direito Bancário e do Mercado de Capitais – RBD 47. Ano 13, n. 47, jan-mar/2010 LUCCHESI, Guilherme Brenner. O objeto de tutela penal no delito de insider trading. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 90, Ano 19, maio-junho, 2011. POSER, Norman S. Book review: insider trading and the stock Market. Disponível em: https://www.copyright.com/ccc/basicSearch.do?&operation=go&searchType=0&lastSearch=simple&all=on&titleOrStdNo=0042-6601 PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852. PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005. PROENÇA, José Marcelo Martins. Violação ao dever de informar no mercado de capitais – a manipulação de mercado e a prática do insider trading. Revista de Direito Mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo, volume 144, outubro-dezembro, 2006. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário. 3a Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2011. WALD, Arnoldo (Org.). A evolução conjuntural e regulatória das sociedades anônimas e do mercado de valores mobiliários na última década. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Ano 11, n. 41, jul-set, 2008.
223
VIII.
ASPECTOS GERAIS DAS OPERAÇÕES DE FUSÃO, INCORPORAÇÃO E
CISÃO DE SOCIEDADES
Leonardo Cocchieri Leite Chaves
SUMÁRIO. Introdução. 1. As operações societárias no ordenamento jurídico brasileiro. O
Código Civil e a Lei das S.A. 2. As operações societárias de fusão e incorporação e suas
características fundamentais 3. As diferenças entre as operações de fusão e incorporação de
sociedades 4. A operação de cisão de sociedades e suas características fundamentais 5. As
operações societárias e a formação de capital 6. Procedimento 7. Os direitos dos sócios e
acionistas nas operações societárias 8. O direito dos credores nas operações societárias 9. Fusão,
Incorporação e Cisão e os Grupos de Sociedades 10. Questões relevantes e conclusões.
Referências.
Introdução
As fusões, incorporações e cisões de sociedades representam instrumentos
jurídicos que possibilitam a concentração societária. Esses três institutos possuem
consequências relevantes em diversas esferas, não só no âmbito jurídico, mas também
nos campos da contabilidade, das finanças e da economia. Mesmo no universo do
direito, abrangem diferentes áreas, cada qual com preocupações e finalidades próprias.
No direito societário, percebe-se uma clara intenção do legislador em definir
expressamente os direitos de credores, sócios e acionistas em face das referidas
operações. Assim, buscou-se, no presente trabalho, uma análise detalhada dos
mecanismos de proteção a tais direitos.
Ademais, também serão tratados os aspectos procedimentais gerais das
operações de fusão, incorporação e cisão, bem como a formação de capital das
sociedades resultantes de determinada operação.
Por fim, buscou-se também relacionar as operações societárias em questão
com o fenômeno da consolidação dos grupos de sociedades, a fim de evidenciar a
importância do estudo das fusões, incorporações e cisões nessa nova realidade
empresarial.
224
1. As operações societárias no ordenamento jurídico brasileiro. O Código Civil e a
Lei das S.A.
As operações de incorporação, fusão e cisão societárias são reguladas, no
ordenamento jurídico brasileiro, por dois diplomas normativos. O Código Civil, em seus
artigos 1.116 a 1.122, estabelece o regime jurídico geral incidente sobre operações dessa
espécie. A Lei 6.404/76 (LSA), por sua vez, define diretrizes específicas a serem
observadas em operações envolvendo sociedades por ações.
Grande parte da doutrina defende a aplicação subsidiária da LSA às demais
sociedades no que se refere às operações de incorporação, fusão e cisão, tendo em vista
a total omissão do legislador, no Código Civil, no tocante a aspectos societários
essenciais relacionados à matéria. Exemplo mais relevante dessa omissão é a ausência
completa de regulamentação da cisão de sociedades no âmbito das disposições
civilistas. Assim, defende a doutrina que essa lacuna deve ser suprida pelo tratamento
específico dado ao tema pela LSA.
O aludido posicionamento de regulação subsidiária pela LSA se respalda
principalmente no fato deste diploma ter regido as operações societárias em questão
antes da promulgação do novo Código Civil, e por possuir dispositivos que, de forma
expressa, transcendem a esfera das sociedades por ações. Partindo de tal concepção, é
possível compreender o sistema normativo incidente nas operações societárias do
seguinte modo: i) O Código Civil estabelece as disposições gerais atinentes às
operações de fusão e incorporação de sociedades, as quais podem ser complementadas,
eventualmente, pela LSA; ii) A operação de cisão de sociedades é regulamentada pela
LSA em relação a quaisquer tipos de sociedade; iii) A LSA estabelece a
regulamentação específica em operações que envolvam sociedades por ações.
Confira-se o entendimento de Ian Muniz, em importante obra sobre o tema:
“Uma leitura cuidadosa dos artigos seguintes da Lei das S.A. revela que ela regulamentava tais operações (societárias) de forma abrangente, não cuidando apenas das operações pertinentes às sociedades anônimas. (...) Considerando que a regulamentação da matéria pelo Código Civil é falha e incompleta em muitos aspectos, como, por exemplo, quando silencia quanto às cisões, os dispositivos da Lei das S.A. continuarão sendo aplicáveis de forma supletiva, complementar e extensiva, naquilo que não conflitarem com as normas do Código Civil, inclusive quanto às sociedades simples.”664
664 MUNIZ, Ian. Fusões e Aquisições – Aspectos Fiscais e Societários. 2ª ed. Ed. Quartier Latin. 2011, p. 92.
225
2. As operações societárias de fusão e incorporação e suas características fundamentais
As operações de fusão e incorporação de sociedades têm, como finalidade
precípua, a compenetração societária. Em outros termos, é possível perceber que, em
todas elas, está manifesto o fenômeno da concentração empresarial, por meio do qual
uma ou mais sociedades transferem seu patrimônio, ou parte dele, a outra sociedade.
Esta, por sua vez, sucede aquela ou aquelas em todos os direitos e obrigações.
No entanto, não são todas as formas de compenetração societária que se
enquadram nos conceitos de fusão e incorporação. Waldirio Bulgarelli define as
referidas operações societárias como “institutos de direito societário, pelos quais, duas
ou mais sociedades -, uma das quais pelo menos se extinguindo - unificam seus
patrimônios na titularidade de um único sujeito coletivo que agrupa os sócios das
respectivas sociedades.” 665
A partir da concepção de Bulgarelli, é possível identificar as três características
fundamentais das fusões e incorporações. São elas: i) a transmissão patrimonial; ii) o
ingresso dos sócios das sociedades dissolvidas, diretamente, em nova sociedade ou na
sociedade subsistente; iii) a extinção de ao menos uma das participantes.
A transmissão patrimonial verificada nas operações societárias de fusão e
incorporação é completa. Uma vez consumadas, levam à sucessão universal da
sociedade extinta pela sociedade sucessora em todos os direitos e obrigações.
Premissa essencial de tais operações é a ausência do processo de liquidação
antes que haja a transferência efetiva do acervo líquido da sociedade extinta à sociedade
sucessora. A extinção da sociedade incorporada ou fundida não se dá por sua
dissolução, ou seja, não há partilha de seus ativos entre os sócios. Tais ativos se
transferem integralmente à incorporadora ou à sociedade resultante da fusão. Ademais,
não há liquidação de obrigações e de débitos previamente à extinção, pois as
obrigações da sociedade sucedida passam à sucessora no estado contratual e
extracontratual em que se encontravam no momento da consumação do negócio.666
O principal efeito relacionado à transmissão patrimonial, portanto, é o aumento
de capital da sociedade sucessora, nos casos de incorporação, e a constituição do
patrimônio da nova sociedade, no que se refere às operações de fusão.
665 BULGARELLI, Waldirio. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. p. 52 666 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 4. Tomo I. p. 252
226
Além da transmissão patrimonial, outra característica essencial das fusões e
incorporações é a integração dos antigos sócios da sociedade extinta na sociedade
sucessora. Quando realizadas as operações em questão, não há a prévia repartição do
patrimônio da sociedade extinta entre seus sócios, nos termos dos artigos 206 e
seguintes da LSA (processo de liquidação). Há, na verdade, uma partilha indireta desse
patrimônio líquido em favor destes sócios. Explica-se.
A extinção da sociedade incorporada ou fundida tem como conseqüência a
entrega de seus ativos à sociedade sucessora em face da subscrição de ações desta em
favor dos sócios e acionistas daquela. Desse modo, eles passam a integrar o quadro
acionário da incorporadora ou da sociedade resultante da fusão, na proporção de sua
participação na sociedade extinta. Não se trata, portanto, de compra e venda ou de
cessão de direitos. Conceitualmente, trata-se de ato de contribuição para o capital
social.
Nesse sentido, Modesto Carvalhosa, no tocante às incorporações societárias,
assevera que:
“Ocorre que a incorporação, que se efetiva com a subscrição do capital da incorporadora com o patrimônio líquido da incorporada, não constitui nem compra e venda, nem alienação sui generis. Isto porque a transferência do patrimônio de uma para outra sociedade dá-se à título de pagamento das ações subscritas pela incorporada a favor de seus sócios ou acionistas. E, com efeito, a vontade da sociedade que será incorporada não é de alienar, permutar ou vender o seu patrimônio, mas de subscrever com ele o capital de outra sociedade.” 667
E, nessa mesma linha, identifica que ocorre o mesmo nas operações de fusão:
“A transferência dos patrimônios das sociedades fundidas dá-se a título de pagamento das ações subscritas pelos sócios ou acionistas daquelas. A vontade das sociedades fundidas não é de alienar, permutar, ou vender o seu patrimônio, mas de extinguir-se, fazendo com que seus sócios ou acionistas subscrevam com esse patrimônio o capital da nova sociedade. A entrega do patrimônio das sociedades fundidas, como forma de pagamento da subscrição feita pelos seus sócios ou acionistas na sociedade agora constituída, tem como efeito a transferência de propriedade sobre tal patrimônio, no valor correspondente ao da subscrição.” 668
Analisando conjuntamente as duas características até aqui expostas, tem-se que
a fusão e a incorporação configuram a “transmissão do patrimônio de uma sociedade a
667 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 257. 668 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 275
227
outra, mediante a aquisição da qualidade de sócio na sociedade que recebe o
patrimônio, dos sócios da sociedade que o transmite” 669
A última característica fundamental associada às operações em questão é a
necessária extinção de ao menos uma das sociedades nelas envolvidas. A própria
legislação estabelece, como modalidades de extinção societária direta, as fusões e
incorporações (art. 219, inciso II da LSA).
Conforme mencionado anteriormente, a extinção da sociedade incorporada ou
fundida não implica a liquidação. Assim, a ordem de fases verificada na incorporação e
fusão é a seguinte: i) a transmissão do patrimônio da sociedade sucedida para a
sociedade sucessora; a passagem dos sócios e acionistas de uma para outra sociedade; e,
somente então, iii) a extinção da sociedade transmitente.670
À luz das três características fundamentais comuns às fusões e incorporações, a
doutrina identifica hipóteses em que, por mais que haja concentração de sociedades ou
atuação concertada entre estas, não se evidencia, sob um prisma técnico, a ocorrência de
tais operações. São alguns exemplos:
1. A compra de uma sociedade por outra, sem que haja a extinção da primeira.
Ambas permanecem juridicamente independentes. Nesse caso, trata-se de fusão
(incorporação) econômica, mas não jurídica.
2. A aquisição do patrimônio de sociedades dissolvidas, como resultado da
liquidação delas. Isso porque os sócios da ou das sociedades dissolvidas receberão o
preço pago como quota de liquidação, mas não tomarão parte na sociedade compradora.
3. A não transmissão global do patrimônio das sociedades fundidas ou
incorporadas, mas somente seu ativo, total ou parcial.
Percebe-se que, em cada uma dessas hipóteses, está ausente ao menos uma das
características fundamentais das operações de fusão e incorporação. A doutrina é
uníssona no sentido de somente reconhecer essas últimas quando for possível aferir,
concretamente, a transmissão patrimonial completa, a integração dos sócios da
sociedade sucedida na sociedade sucessora e a extinção das sociedades fundidas e
incorporadas. Confira-se o entendimento de Bulgarelli a respeito:
“Os três elementos aqui apontados, ou seja, a transferência global do patrimônio, com sucessão universal, a congeminação direta dos acionistas das extintas em nova ou na que permanece, e a extinção de ao menos uma das sociedades participantes, considerando como essenciais, integram o conceito,
669 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit., p. 52 670 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., 252.
228
configurando o instituto em suas linhas básicas. Admitindo-se a falta de qualquer deles, ocorrerá a existência de uma figura afim, porém, não exatamente fusão ou incorporação, pois descaracterizada o instituto como construção unitária, de elaboração completa, alterando também as formalidades e atos que implicam e que justificam a sua existência.” 671
3. As diferenças entre as operações de fusão e incorporação de sociedades
Não obstante possuam características fundamentais comuns e a mesma
finalidade (a compenetração societária), as fusões e incorporações de sociedades
possuem estruturas jurídicas diversas. A incorporação consiste na operação pela qual
uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos
e obrigações (Art. 1.116 do CC e art. 227 da LSA). A fusão, por seu turno, se
consubstancia na operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar
sociedade nova, que, de igual modo, as sucederá nos direitos e obrigações (Art. 1.119
do CC e art. 228 da LSA).
Evidencia-se que a grande distinção entre as operações em questão reside no
fato de que, na fusão, o acervo líquido das sociedades fundidas constitui o capital de
uma nova sociedade, enquanto que, na incorporação, o patrimônio da(s) sociedade(s)
incorporada(s) será agregado, integralmente, ao capital da incorporadora. É nesse
aspecto, inclusive, que a incorporação, do ponto de vista operacional, se mostra mais
vantajosa do que a fusão. Tendo em vista que a lei estabelece que a sociedade resultante
da fusão deve ser uma nova pessoa jurídica, esta tem de ser regularizada perante a Junta
Comercial e aos diversos cadastros fiscais, o que demanda tempo, durante o qual a nova
sociedade não pode realizar nenhum negócio regular. Ademais, como as sociedades
participantes da fusão deixam de existir, a empresa fica simplesmente paralisada. Por
esse motivo, é muito rara a ocorrência de operações de fusão no mundo empresarial.
Outra grande diferença entre fusões e incorporações relaciona-se às partes
envolvidas na operação. Na incorporação, são partes a sociedade que houver de ser
incorporada e a incorporadora. Quem subscreve o aumento do capital dessa última é a
própria sociedade cujo patrimônio líquido será incorporado.672 Já na fusão, as partes
são sucessivas. Inicialmente, as sociedades que serão fundidas pactuam acerca das
condições da operação e dispõem expressamente que com seus patrimônios líquidos
constituirão nova sociedade. Superada essa fase preliminar, os sócios ou acionistas das
671 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit. p. 67 672 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 270.
229
sociedades extintas tornam-se partes sucessoras destas e, com o acervo líquido de cada
uma delas, constituem a sociedade resultante da fusão. Explica Modesto Carvalhosa:
“Há, portanto, uma inversão na estrutura do negócio jurídico, se comparado à incorporação, de um lado, e à fusão de outro. Na incorporação, a sociedade que houver de ser incorporada subscreve o capital da incorporadora em nome próprio, mas em favor dos seus sócios ou acionistas. Na fusão, os sócios ou acionistas constituem diretamente a nova sociedade, subscrevendo o respectivo capital com os bens e direitos da sociedade de que eram sócios. Assim, na incorporação, a pessoa jurídica da incorporada atua em benefício de outras pessoas jurídicas ou físicas, que serão titulares de seu capital. Na fusão, as pessoas titulares do capital das sociedades envolvidas atuam em benefício próprio, com a aferição ao capital da nova sociedade do patrimônio líquido da sociedade de cujo capital participavam.” 673
Em síntese, nas operações de incorporação, é em nome e por meio da própria
sociedade incorporada que ocorre a subscrição de ações da sociedade incorporadora,
cujo pagamento se dá pela transferência do patrimônio daquela para esta. Nas fusões, o
que se observa é a subscrição das ações da nova sociedade pelos próprios sócios ou
acionistas das sociedades fundidas. Após a aprovação da operação de fusão pela
assembléia de cada uma das sociedades participantes, eles as sucedem com a finalidade
de constituírem a nova pessoa jurídica. Em ambos os casos, há “uma transferência de
caráter real, embora indireta, do patrimônio das sociedades envolvidas a favor de seus
sócios e acionistas.” 674
Apesar das diferenças entre fusão e incorporação de sociedades, resta nítido
que ambas as operações estão vinculadas a um mesmo objetivo, que é a concentração
empresarial. As cisões de sociedades também engendram concentração societária, mas
sob um prisma diferente das operações até aqui analisadas, como se verá a seguir.
4. A operação de cisão de sociedades e suas características fundamentais
Prescreve o artigo 229 da LSA que a cisão é “a operação pela qual a
companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades,
constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se
houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a
versão.” Percebe-se, pela própria definição legal, que as operações de cisão societária
configuram fusões ou incorporações do ponto de vista inverso. A sociedade cindida tem
o seu capital fracionado, e não somado como nas fusões, para a constituição de duas ou
673 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 271. 674 Idem
230
mais sociedades. Em outros termos, desdobra-se o capital da cindida para a formação ou
o aumento do capital de sociedade nova ou existente.
Assim como nas operações de fusão e incorporação, na cisão de sociedades a
transferência de parcelas do patrimônio da sociedade cindida para sociedades novas ou
já existentes dá-se a título de pagamento das ações ou das quotas subscritas por seus
sócios ou acionistas.
No entanto, a peculiaridade que envolve as operações de cisão societária reside
no fato de que a sociedade cindida pode ou não se extinguir após a transferência de
patrimônio à sociedade ou às sociedades sucessoras. Isso porque essa transferência
pode ser completa, caso em que, de fato, se extingue, ou parcial, quando se observa
apenas a transmissão de parcela do seu patrimônio. Desse modo, são duas as espécies
de cisão de sociedades, quais sejam, a cisão total e a cisão parcial.
Na cisão total, ocorre a transferência de todo o patrimônio da sociedade
cindida para duas ou mais sociedades, já existentes ou constituídas para esse fim.
Ressalte-se, portanto, que para ocorrer essa espécie de cisão, deve haver,
necessariamente, duas ou mais sociedades beneficiárias da transmissão patrimonial.
Como o próprio nome do instituto já diz, a cisão pressupõe divisão do patrimônio da
sociedade cindida. Tendo em vista que, em face da transferência completa de capital,
essa última deixa de existir, tem de haver no mínimo duas sociedades a que se destinam
as parcelas desse capital. Tais sociedades, por sua vez, podem ser já existentes ou
constituídas a partir do patrimônio recebido na operação.
Já na cisão parcial, a transmissão patrimonial decorrente da operação tem
como requisito a existência de ao menos uma sociedade sucessora. Nessa espécie de
cisão, a sociedade cindida não se extingue, haja vista que transfere apenas parcela de
seu acervo líquido. E é justamente essa possibilidade de permanência da sociedade
cindida que diferencia a estrutura da cisão das demais modalidades de operação
societária. A cisão parcial tornou-se um instrumento de organização e reestruturação
muito vantajoso do ponto de vista operacional. O desmembramento de capital de uma
determinada sociedade para a criação de outras sociedades possibilita maior
especialização das atividades empresariais por parte dessas últimas, sem que haja a
perda do controle acionário da sociedade “mãe” sobre elas. Inclusive, é esta uma das
formas de se alcançar a formação de holdings.
Bulgarelli, com base na obra de Champaud, analisa do seguinte modo as
possibilidades de cisão societária:
231
“a) A cisão que considera o tipo mais simples e puro de divisão de sociedades, aquele que resulta na constituição de duas ou mais sociedades novas, pela divisão do ativo de uma sociedade preexistente – havendo, portanto, sempre no mínimo três participantes – e se extingue. b) A cisão-absorção, em que uma sociedade, repartindo o seu patrimônio entre duas ou mais sociedades preexistentes, desaparece. c) “falsa cisão”, ou o “apport partiel d’actif”, também chamada de cisão parcial ou fusão parcial, em que a sociedade transfere uma parte do seu ativo ou patrimônio a outra, permanecendo. Estaria, neste caso, a “scission-holding”, decorrente da repartição de seus bens, por uma sociedade, entre duas ou mais sociedades constituídas por ela para esse fim, subsistindo como sociedade “holding”.” 675
Preceitua o § 3º do artigo 229 da LSA: “A cisão com versão de parcela de
patrimônio em sociedade já existente obedecerá às disposições sobre incorporação
(art. 227).”
Conforme antes mencionado, a cisão constitui uma incorporação às avessas.
Desse modo, quando há a transferência de parcela do patrimônio da sociedade cindida a
sociedades já existentes, ocorre a agregação desses ativos ao capital dessas últimas,
assim como se dá nas incorporações societárias. É por essa razão, portanto, que o
legislador, corretamente, determinou a aplicação dos dispositivos relativos à
incorporação às cisões com versão patrimonial a sociedades já existentes.
Percebe-se, então, que a cisão possui grande semelhança com as operações de
fusão e incorporação em muitos aspectos. No entanto, difere justamente por se tratar de
um desmembramento ou desagregação de patrimônio, ao invés de soma ou agregação
deste, e por possibilitar a transmissão parcial do acervo líquido da sociedade cindida, a
qual não deve, necessariamente, se extinguir.
Destarte, são três as fases até a consumação das operações de cisão societária:
a transmissão de parcelas de patrimônio da sociedade cindida a favor de sociedades
novas ou existentes; a migração de todos os sócios ou acionistas da sociedade cindida
para as sociedades beneficiárias, sem embargo de se manterem também sócios ou
acionistas naquela sociedade cindida que permanecer com parte de seu patrimônio após
a cisão; e, finalmente a extinção ou não da sociedade cindida.676
5. As operações societárias e a formação de capital
675 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit. p. 58 676 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 288
232
Como visto anteriormente, característica fundamental das operações de fusão,
incorporação e cisão é a transferência de capital da sociedade sucedida à sociedade
sucessora. Desse modo, tais operações, em regra, têm como conseqüência o aumento de
capital social da pessoa jurídica receptora do capital transferido. Esta, por sua vez, como
contrapartida a este aumento de capital, emite ações ou quotas em favor dos sócios ou
acionistas da sociedade fundida, incorporada ou cindida, em substituição à participação
societária extinta pela redução ou perda completa do patrimônio da sociedade sucedida.
Ressalte-se que “o número de ações do acervo líquido fundido, incorporado ou
cindido a ser recebido pelos sócios ou acionistas da sociedade receptora deverá
obedecer a uma relação de troca, de forma que o percentual de cada acionista ou
quotista na sucessora guarde proporção com o patrimônio contribuído.” 677
À luz desses conceitos basilares, é possível compreender a determinação
constante do artigo 226 da LSA, o qual preceitua que as operações societárias somente
poderão ser efetivadas nas condições em que foram negociadas e aprovadas em
assembléia se os peritos reconhecerem que o valor do patrimônio líquido a ser vertido
para a formação de capital social é, ao menos, igual ao montante do capital a realizar.
Com esse dispositivo, o legislador busca evitar que o patrimônio líquido
fundido, incorporado ou cindido seja objeto de realização como capital social por valor
superior ao real, prejudicando assim credores legítimos. Isso porque estes têm, no
próprio patrimônio da sociedade, a garantia de seus créditos, principalmente quando os
sócios ou acionistas desta possuírem responsabilidade limitada. Desse modo, verifica-se
que o incremento patrimonial verificado deve, necessariamente, ser integralizado por
meio da transferência à sociedade sucessora do capital da sociedade sucedida.
Os parágrafos 1º e 2º do referido artigo 226, por seu turno, tratam de hipóteses
em que uma das sociedades envolvidas na operação detenha a totalidade das ações ou
quotas das demais sociedades.
6. Procedimento
O procedimento a ser adotado nas operações societárias depende do tipo de
sociedade ou de sociedades envolvidas. Como implicam a alteração da própria estrutura
societária, as incorporações, fusões e cisões devem ser aprovadas, em regra, pelas
assembléias das respectivas sociedades.
677 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 98
233
Nas sociedades anônimas, quaisquer das operações societárias devem ser
aprovadas por quorum especial, constaste do artigo 136 da LSA. Já nas sociedades
limitadas, essa aprovação deve se dar em assembleia, nos termos do artigo 1.072 do CC.
O protocolo é o instrumento firmado pelos órgãos de administração ou pelos
sócios da sociedade interessada em que constam, de forma ampla e detalhada, as
condições das operações societárias a serem submetidas à aprovação da assembléia. O
artigo 224 da LSA traz, em seus incisos, todos os aspectos que devem ser tratados na
redação do protocolo. De forma geral, este trata das três características fundamentais
inerentes às operações societárias, quais sejam, a transmissão patrimonial (a dimensão
do aumento ou redução de capital), a participação dos sócios na sociedade sucessora
(novo regime acionário, valor das ações, etc.) e a eventual extinção da sociedade
sucedida.
A doutrina discute a possibilidade de equiparação do protocolo à figura do
contrato preliminar, previsto no art. 462 do CC. O entendimento predominante é de que
esta não prevalece, tendo em vista que o contrato preliminar pressupõe que as
obrigações ali assumidas sejam eficazes e exigíveis, enquanto que o protocolo é
destituído de qualquer eficácia jurídica, salvo a obrigação de a administração
encaminhar o documento para a apreciação dos sócios ou acionistas das sociedades
interessadas.678
A justificação é o segundo instrumento que deve ser aprovado pelas
assembléias das sociedades envolvidas na operação para que esta se concretize. Tal
instrumento deverá expor, nos termos do artigo 225 da LSA, os motivos ou fins da
operação, e os interesses da companhia na sua realização. Ademais, deixará claro quais
serão os valores de reembolso das ações nos casos de direito de retirada, qual será a
composição societária na sociedade sucessora, quais as ações que os acionistas
preferenciais receberão e as eventuais razões para a modificação de seus direitos.
Assim, “ao passo que o protocolo constitui um documento de natureza mais técnica,
que visa a detalhar com maior riqueza de informações a operação de reorganização, a
justificação é uma espécie de exposição de motivos a ser apresentada pelos órgãos de
administração aos sócios ou acionistas.” 679
Importante aspecto procedimental relacionado a quaisquer das operações
societárias é a auditoria (due diligence). Esta compreende o dever do administrador ou
678 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 137 679 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 161
234
controlador da sociedade em realizar as análises e atos necessários para a verificação
das da regularidade e veracidade das demonstrações contábeis e investigação dos
passivos das demais sociedades envolvidas na operação. O administrador de uma
sociedade empresária que leva adiante qualquer operação societária sem a devida
verificação da regularidade da outra sociedade envolvida não cumpre seu dever de
diligência e, e responde, assim, pelos prejuízos causados aos sócios e/ou acionistas. 680
7. Os direitos dos sócios e acionistas nas operações societárias
As operações societárias afetam substancialmente a estrutura jurídica da
sociedade, assim como as relações entre ela e seus sócios. Com efeito, a característica
essencial dessas espécies de operação “não é o de criar um vínculo jurídico entre as
sociedades e terceiros ou entre sociedades, mas de determinar uma nova estrutura
interna do ente ou nos entes que participam, um novo modo de ser da corporação. E o
efeito do negócio jurídico corporativo não se produz sobre as relações externas do
ente, mas forma-se e reage sobre a sua estrutura.”681
Após as operações de fusão, incorporação ou cisão, a sociedade sucedida é
extinta ou tem sua estrutura modificada pela perda de capital. Nas sociedades
sucessoras, é possível observar mudanças de diversas ordens em relação ao ambiente
societário anterior. É provável que haja alterações no risco do negócio, na composição
de participação entre os sócios ou acionistas e na expectativa de fluxo de dividendos.
Assim, é plenamente possível que os sócios ou acionistas da sociedade a ser
incorporada, fundida ou cindida não concordem com os padrões e as condições das
operações em curso.
Em outras hipóteses, ainda, pode-se evidenciar o caráter abusivo e fraudulento
das operações societárias conduzidas pelo controlador da sociedade. Nesses casos, não
há somente discordância em relação às operações, mas ocorre lesão direta aos direitos
dos acionistas e sócios.
Em face de tais circunstâncias, a lei estabelece expressamente os direitos dos
acionistas e sócios (principalmente minoritários) no tocante às operações societárias. É
possível dividi-los em dois grupos: i) o direito de recesso (retirada); e ii) o direito de
anulação da operação societária e responsabilização do controlador.
680 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Empresarial. V. 2., p. 681 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit. p. 89
235
7.1 O direito de recesso
As disposições normativas relativas ao direito de recesso nos casos de
operações societárias encontram-se nos artigos 137 e 223, § 4º, da LSA, e artigo 1.077
do CC. Cada um desses dispositivos trata de hipóteses particulares de direito de recesso,
entendendo este como o direito de reembolso do valor das ações aos acionistas
dissidentes de deliberação da assembléia geral (art. 45 da LSA).
Primeiramente, vejamos o § 4º do artigo 223 da LSA, in verbis:
“Art. 223. A incorporação, fusão ou cisão podem ser operadas entre sociedades de tipos iguais ou diferentes e deverão ser deliberadas na forma prevista para a alteração dos respectivos estatutos ou contratos sociais.
§ 3º Se a incorporação, fusão ou cisão envolverem companhia aberta, as sociedades que a sucederem serão também abertas, devendo obter o respectivo registro e, se for o caso, promover a admissão de negociação das novas ações no mercado secundário, no prazo máximo de cento e vinte dias, contados da data da assembléia geral que aprovou a operação, observando as normas pertinentes baixadas pela Comissão de Valores Mobiliários.
§ 4º O descumprimento do previsto no parágrafo anterior dará ao
acionista direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor
das suas ações (art. 45), nos trinta dias seguintes ao término do prazo nele
referido, observado o disposto nos §§ 1º e 4º do art. 137.”
Nos casos abarcados por esse dispositivo, o exercício do direito de recesso não
dependerá de qualquer outro requisito que não o da manifestação do sócio ou acionista
no prazo de trinta dias, contados da aprovação da publicação da ata que aprovar o
protocolo ou justificação. Isso porque a causa da retirada, em tal hipótese, não é a
incorporação, fusão ou cisão, mas o fato de a sociedade sucessora não ser companhia
aberta. Trata-se, portanto, de direito pré-constituído, desde o momento da própria
aprovação das condições protocolares, onde já se encontra expressa a conversão da
companhia aberta em outra forma societária.
As demais possibilidades legais de direito de recesso no âmbito das operações
societárias têm sede no artigo 137 da LSA. Confira-se a redação deste dispositivo:
“Art. 137. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor das suas ações (art. 45), observadas as seguintes normas: II - nos casos dos incisos IV e V do art. 136, não terá direito de retirada o titular de ação de espécie ou classe que tenha liquidez e dispersão no mercado, considerando-se haver:
236
a) liquidez, quando a espécie ou classe de ação, ou certificado que a represente, integre índice geral representativo de carteira de valores mobiliários admitido à negociação no mercado de valores mobiliários, no Brasil ou no exterior, definido pela Comissão de Valores Mobiliários; e b) dispersão, quando o acionista controlador, a sociedade controladora ou outras sociedades sob seu controle detiverem menos da metade da espécie ou classe de ação; III - no caso do inciso IX do art. 136, somente haverá direito de retirada se a cisão implicar: a) mudança do objeto social, salvo quando o patrimônio cindido for vertido para sociedade cuja atividade preponderante coincida com a decorrente do objeto social da sociedade cindida;” b) redução do dividendo obrigatório; ou c) participação em grupo de sociedades;”
Evidencia-se, a partir das disposições legais acima transcritas, que o legislador
estabeleceu diferenciação expressa entre o direito de retirada dos sócios e acionistas nos
casos de incorporação e fusão, de um lado, e de cisão, de outro.
Nos casos envolvendo operações de fusão e incorporação, o direito de retirada
dos sócios ou acionistas dissidentes é garantido, salvo as hipóteses em que haja,
cumulativamente, liquidez e dispersão das ações no mercado.
Interessante é a posição adotada pelo legislador, uma vez que concilia os
direitos dos acionistas e sócios com os interesses da sociedade. Ao impedir que o sócio
dissidente retire o capital por ele investido da sociedade nas hipóteses acima, minimiza-
se o risco de insucesso da operação, que poderia ocorrer se houvesse retirada de capital
em massa por estes sócios e acionistas. Ao mesmo tempo, não fere o direito de recesso,
haja vista que o garante, salvo em situações em que os seus titulares possam, facilmente,
recuperar seu investimento com a venda de suas ações no mercado.
Já nas cisões, o direito de recesso é mais restrito. Este só tem fundamento legal
nos casos de mudança de objeto social, redução do dividendo obrigatório e participação
em grupo de sociedades.
Questão controversa na doutrina diz respeito à aplicação às cisões das regras
relativas ao direito de recesso na esfera da incorporação quando aquelas engendrarem
versão de parcela de patrimônio em sociedade já existente, nos termos do § 3º do artigo
229 da LSA. De um lado, a doutrina se posiciona pela impossibilidade de tal aplicação,
tendo em vista o caráter restritivo das hipóteses elencadas no inciso III do art. 137 da
LSA. No entanto, esse posicionamento dá abertura para condutas abusivas por parte do
controlador. Ressalte-se a hipótese aventada por Ian Muniz:
237
“Imaginemos que um empresário pretenda que a sua controlada seja incorporada por um concorrente, em um processo de casamento empresarial, mas tema o exercício do recesso pelos minoritários da controlada. Suponhamos, ainda, que essa controlada, além dos ativos operacionais que são absorvidos pelo concorrente, possua uns poucos ativos (por exemplo, uma fazenda leiteira) que não são objeto do casamento. Poderia, então, tal empresário simplesmente cindir 98% do seu acervo líquido, que será absorvido pela empresa concorrente, enquanto permaneceria a fazenda leiteira equivalente a 2% do seu patrimônio, caracterizando-se, assim, uma operação que ninguém poderá dizer que é abusiva, mas que substancialmente nega aos minoritários um direito de recesso que estaria presente caso fosse uma incorporação pura.”682
Nessa perspectiva, Muniz entende que equiparação legal feita pelo § 3º do
artigo 229 é no sentido de que todas as conseqüências aplicáveis à incorporação
também alcancem as cisões em que há transferência patrimonial a sociedades já
existentes, tendo em vista a necessária proteção aos sócios e acionistas minoritários. A
doutrina majoritária tem adotado esse mesmo entendimento.
Quanto à legitimidade subjetiva, os parágrafos 1º e 2º do art. 137 esclarecem
que o direito de recesso pode ser exercido por qualquer acionista dissidente, ainda que
seja portador de ações preferenciais sem direito voto ou que não tenha comparecido à
assembléia que deliberou a operação de fusão, incorporação ou cisão. O prazo para o
exercício de tal direito é de trinta dias, sob pena de decadência (art. 137, § 4º, da LSA).
À luz da análise dos dispositivos legais que garantem e condicionam o direito
de retirada, impende ressaltar que, assim como qualquer outro direito, ele não é
absoluto. No que se refere às operações societárias, o exercício de tal direito pode
severamente limitar a capacidade do acionista controlador de deliberar sobre fusões,
incorporações ou cisões, visto que a obrigação de reembolsar o minoritário que resolva
se retirar pode inviabilizar financeiramente a sociedade.
Em face disso, a doutrina tem sido favorável à tese de que não pode o acionista
dissidente exercer o direito de recesso indiscriminadamente. Deve demonstrar,
motivadamente, que de alguma forma a deliberação da assembléia contraria seus
interesses legítimos. Nesse sentido, confira-se o entendimento de Wilson Campos
Batalha:
“Não basta ser dissidente. É mister provar legítimo interesse e o prejuízo resultante da deliberação assemblear. Não pode o preceito, norteado pelos propósitos mais elevados de proteger as minorias
682 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 314
238
contra as arbitrariedades da maioria, constituir-se em fonte de abusos e locupletamentos.” 683
7.1 O direito de anulação de deliberação abusiva acerca das operações societárias
As deliberações da assembléia que aprovaram operações societárias podem ser
anuladas pelos sócios ou acionistas quando houver abuso de poder pelo(s) acionista(s)
controlador(es). Além disso, uma vez comprovada a conduta abusiva, podem os sócios
ou acionistas prejudicados pleitear a responsabilização do controlador por seus atos. É o
que preceituam os artigos 117 e 286, sendo que o primeiro deles estabelece
expressamente que “a incorporação, fusão ou cisão de companhia, com o fim de obter,
para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas”
configura exercício abusivo de poder.
Destarte, também é um direito dos acionistas dissidentes nas operações
societárias a anulação destas, bem como o ressarcimento, pelo controlador, dos
prejuízos a eles causados em decorrência da incorporação, cisão ou fusão. Não é
necessário que haja violação do estatuto para que reste configurada a deliberação
abusiva. São passíveis de anulação todas as deliberações dos órgãos da sociedade que
não forem tomadas no interesse desta, mas no interesse pessoal ou exclusivo de
determinados sócios ou acionistas. No entanto, para que reste nítido o abuso, é
necessário que haja dolo, ou seja, que o controlador tenha praticado o ato
conscientemente com o objetivo de obter uma vantagem indevida para si.
8. O direito dos credores nas operações societárias
Questão de extrema relevância no tocante à extensão e às condições das
operações societárias diz respeito aos direitos dos credores das sociedades a serem
incorporadas, fundidas ou cindidas. Qual seria a melhor forma de garantir esses direitos
em face da profunda mudança de estrutura pela qual passam tais sociedades? Seria
razoável condicionar a realização de qualquer operação societária ao prévio
consentimento dos credores?
Com efeito, diante da concentração patrimonial decorrente das operações de
fusão e incorporação, poderia ocorrer que uma sociedade saudável e geradora de caixa
seja absorvida por uma sociedade doente, decadente e geradora de prejuízos, de tal
forma que, eventualmente, a junção das duas poderia acarretar uma “contaminação” da 683 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: Ed. Forense. Vol. 2. p. 263. 1977.
239
saúde da sociedade lucrativa.684 Por outro lado, nos casos de cisão, existe um
desmembramento do patrimônio líquido, o que, em certas hipóteses, poderia engendrar
prejuízos para os credores da sociedade.685
O legislador pátrio não condicionou a realização das operações societárias ao
prévio consentimento dos credores, mas concedeu a estes a faculdade de pleitear
judicialmente a anulação das referidas operações nos casos em que houver efetivo
prejuízo ao seu crédito ou às garantias a ele inerentes. É o que preceitua o artigo 1.222
do CC, sendo esta a regra para as sociedades em geral, exceto as sociedades por ações.
A LSA, também no tocante a essa temática, estabeleceu disposições
normativas diferentes em relação às incorporações e fusões, de um lado, e às cisões de
outro.
No tocante às operações de fusão e incorporação, a redação do artigo 232 da
LSA, que disciplina a matéria, é basicamente a mesma da do artigo 1.222 do CC,
facultando ao credor prejudicado pela operação o ingresso em juízo para anulá-la. Não
obstante, tanto no âmbito da LSA quanto no do CC, “será necessária a produção de
prova do prejuízo. O juiz deverá exercer prudente juízo em analisar os motivos do
credor descontente, de forma a definir se procede ou não o pedido de anulação da
operação de fusão ou cisão.” 686 Desse modo, “somente poderá o credor argüir prejuízo
quando há um dano por ele sofrido em seu direito de crédito, seja pela sua não
recepção integral pela incorporadora ou pela resultante da fusão, seja pela alteração
da natureza jurídica de tais créditos, seja ainda, e principalmente, pela alteração das
garantias sem o seu expresso consentimento.” 687
Destarte, o dano ou prejuízo, resta configurado pela possível ou concreta
diminuição do patrimônio do devedor representado pelo crédito agora junto à sociedade
sucessora. Esse é o entendimento de Modesto Carvalhosa. Segundo o autor, esse dano
pode ser efetivo ou potencial. Será efetivo quando a incorporadora ou fusionada não
reconhece o crédito, altera-lhe a categoria ou o seu valor, juros incidentes, prazo ou
modalidade de resgate. Será potencial quando altera as garantias que lastreiam o
crédito.688
Uma vez presente e comprovado o dano, e se o credor ingressou
tempestivamente em juízo, deverá o juiz declarar a anulação da operação societária. Os
684 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 177 685 Idem 686 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 179 687 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 313 688 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 314
240
efeitos de tal anulação compreendem o restabelecimento do status quo ante, ou seja, a
reposição da pessoa jurídica que contraiu dívida com o credor, não prevalecendo a
sucessão oriunda da operação anulada.
Importante consignar também que a anulação do negócio reorganizativo não
inibe o direito do credor de pleitear perdas e danos em face de eventual ilicitude
manifesta pela alteração das cláusulas ou das garantias de seu crédito.
Os parágrafos dos artigos 1.222 do CC e 232 da LSA dispõem sobre a
consignação da importância relativa aos créditos, sobre a iliquidez da dívida, e sobre a
eventual falência da sociedade sucessora.
Consignando-se a importância relativa ao crédito, aos juros incidentes e ás
custas processuais, restará prejudicada a anulação da operação pleiteada em juízo (§ 1º).
Sendo ilíquida a dívida, será facultado à sociedade sucessora garantir-lhe a execução, o
que suspenderá o processo de anulação (§ 2º). E, por fim, ocorrendo a falência da
sociedade sucessora, qualquer credor anterior à operação terá o direito de pedir a
separação dos patrimônios, de forma que haja duas ou mais massas falidas, cada uma
delas respondendo separadamente pelos créditos existentes anteriormente à publicação
da assembléia geral que deliberou sobre a operação (§ 3º).
As operações de cisão, por sua vez, possuem dois regimes legais distintos no
que se refere aos direitos dos credores. Em relação às sociedades em geral, aplica-se o
artigo 1.222 do CC, equiparando-se às fusões e incorporações. No entanto, quando as
sociedades cindidas forem sociedades por ações, aplica-se a norma especial constante
do artigo 233 da LSA.
O referido dispositivo estabelece a responsabilidade solidária de todas as
sociedades envolvidas na operação pelas obrigações e dívidas da sociedade cindida. Em
suma,
“o credor anterior à data de publicação da assembléia ou contrato social que deliberou a cisão poderá livremente escolher qual, dentre as sociedades envolvidas no processo de cisão, irá quitar o passivo, seja a sociedade cindida, sejam quaisquer das sociedades sucessoras.” 689
Entretanto, o parágrafo único do art. 233 da LSA prescreve que, nos atos de
cisão parcial, as assembléias poderão deliberar que as sociedades que absorverem
parcelas do patrimônio da companhia cindida serão responsáveis apenas pelas
obrigações que lhes forem transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia
689 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 182
241
cindida. Nesses casos, o legislador resguarda o direito dos credores de se opor a tal
estipulação, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de
noventa dias a contar da data da publicação dos atos de cisão.
Cumpre ressaltar que a oposição de que trata o parágrafo único do artigo 233
da LSA não equivale à possibilidade de anulação judicial da operação constante do
artigo 232 do mesmo diploma. A diferença reside no fato de que, nos casos de
incorporação ou fusão, a oposição do credor resulta em desfazimento da operação,
enquanto que, na cisão, apenas na manutenção da cláusula de solidariedade.
Questão que desafia a doutrina é a possibilidade de aplicação do artigo 232 da
LSA às cisões em que haja versão parcial do patrimônio em sociedade já existente, as
quais a própria legislação equipara às operações de fusão, nos termos do § 3º do artigo
229 dessa lei. Ressalte-se o entendimento de Ian Muniz acerca do tema:
“Talvez a única forma de reconciliar essa questão seria interpretar que a regra de proteção ao credor mediante solidariedade, prevista no art. 233 da Lei das S.A., somente vale quando a sociedade que absorver os créditos da sociedade cindida for uma sociedade nova, ao passo que, na hipótese em que a sociedade absorvedora do acervo líquido for uma sociedade preexistente, estaria havendo uma cisão seguida de incorporação e, nessa hipótese, prevaleceriam as regras aplicáveis às hipóteses de incorporação (art. 232 da Lei das S.A.).” 690
9. Fusão, Incorporação e Cisão e os Grupos de Sociedades
O fenômeno concentracionista, entendido como processo de redução dos
agentes econômicos em face da concentração empresarial, intensificou-se, em grande
escala, no século XX. A doutrina explica essa tendência com base em motivos diversos.
No entanto, é possível constatar como fatores determinantes desse processo a formação
de grandes blocos econômicos, a criação de institutos que visam a harmonizar o sistema
financeiro internacional (ex. FMI e Banco Mundial), e a globalização, por meio da qual
a circulação de bens, serviços, capitais e tecnologias alcançou dimensão mundial.
Do ponto de vista organizacional, verifica-se que somente as sociedades
empresárias que possuem formas estruturais dinâmicas e cada vez mais especializadas
são capazes de se sobressair num mercado extremamente integrado, tanto técnica
quanto geograficamente. Nesse sentido, se destacam as grandes empresas com
estruturas organizacionais maleáveis, sendo capazes de responder prontamente às
mudanças e vicissitudes do mercado globalizado.
690 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 184
242
A doutrina divide o fenômeno concentracionista em duas fases, quais sejam, a
fase primária e a fase secundária.
A fase primária é caracterizada pelo crescimento interno das sociedades
empresárias. Nesse tipo de concentração, a sociedade utiliza suas próprias capacidades
financeiras, técnicas e comerciais para se expandir. Os instrumentos típicos dessa
modalidade de concentração são justamente as operações societárias, pelas quais são
absorvidas unidades empresariais, que perdem suas individualidades econômicas e
jurídicas.691 A partir desse modelo concentracionista foram constituídas as grandes
empresas monolíticas, que representavam verdadeiros impérios empresarias, como a
Standard Oil Company e a US Steel Corporation.692
Já a fase secundária está em plena consolidação. Ela é marcada pela superação
do modelo tradicional de organização empresarial. O crescimento interno excessivo das
sociedades, fator caracterizador da fase primária, chegou a um ponto tal que passou a
ser extremamente oneroso, tanto do ponto de vista organizacional, quanto operacional.
Eduardo Secchi Munhoz, com base na obra de Engrácia Antunes identifica três
espécies de limites ao crescimento interno das sociedades: i) limites financeiros; ii)
limites organizativos; e iii) limites legais. Os limites financeiros são decorrentes do
crescimento em grande escala de uma só pessoa jurídica, ou seja, expressam a
dificuldade em continuar a atividade lucrativa de forma eficiente em razão do vasto
incremento no volume de capital. Os limites organizativos dizem respeito à perda de
eficiência na gestão interna, pela grande dimensão da sociedade. Os limites jurídicos,
por fim, estão relacionados principalmente á legislação de defesa da concorrência, a
qual impede o crescimento empresarial desmedido, na medida em que este engendra a
possibilidade de abusos do poder econômico.
Os grupos de sociedades surgem como a principal alternativa para superar os
limites ao crescimento societário interno. Fator fundamental para o sucesso desse novo
modelo de organização empresarial foi o reconhecimento, pela ordem jurídica, da
possibilidade de participação de uma sociedade no capital de outra. Por meio desse tipo
de participação societária, não há mais a necessidade de as sociedades se incorporarem
ou se fundirem para poderem controlar ou influenciar as decisões estratégicas de outra
pessoa jurídica. Nesse sentido, a doutrina especializada identifica que:
691 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Contemporânea e Direito Societário. p. 90 692 Idem
243
“Opera-se, assim, em fins do século XIX, com a admissão da participação de uma sociedade no capital de outra, uma mudança da disciplina jurídica que revolucionaria o direito das sociedades. Embora haja outros tipos de vínculos entre sociedades, não há dúvida de que a participação no capital continua a ser o principal deles, tendo sido fundamental para o surgimento e expansão dos grupos, transformando-os na principal técnica jurídica de organização da empresa contemporânea.” 693
A partir dessa perspectiva, é possível evidenciar diversas vantagens do modelo
de grupos de sociedades em relação ao modelo de organização societária tradicional,
tanto do ponto de vista econômico quanto jurídico.
As vantagens econômicas decorrem, basicamente, da possibilidade de reunir
numa esfera empresarial vasta, com políticas comerciais, financeiras e administrativas
comuns, diversas unidades, que mantêm sua própria individualidade. Assim, tornam-se
mais viáveis econômica e operacionalmente as integrações, verticais e horizontais,
possibilitando maiores ganhos em economia de escala e escopo.
Do ponto de vista jurídico, a formação de grupos societários reduz o risco
empresarial à esfera de cada uma das sociedades integrantes, na medida em que estas
preservam sua autonomia jurídica e patrimonial. Em outros termos, diante da
preservação da personalidade jurídica de tais sociedades, eventuais problemas
financeiros ou econômicos envolvendo quaisquer delas não afetam diretamente o grupo
como um todo.
O que caracteriza os grupos de sociedades, portanto, é a diversidade jurídica e
a unidade econômica. Diversidade jurídica porque as sociedades que fazem parte dos
grupos societários preservam sua individualidade, e unidade econômica, na medida em
que essas sociedades estão sujeitas a uma mesma direção, que as vincula a um interesse
comum.
Destarte, tendo em vista a consolidação dos grupos societários como principal
técnica jurídica de organização da atividade empresarial contemporânea, não é possível
continuar compreendendo as operações societárias de fusão, incorporação e cisão como
meros instrumentos propiciadores de crescimento interno das sociedades. É necessário
que o estudo desses institutos societários tenha como pano de fundo essa nova realidade
empresarial, no sentido de readequar a esta as suas finalidades e os direitos por eles
protegidos.
A consolidação dos grupos de sociedades redefiniu a própria concepção de
empresa. A atividade empresarial desenvolvida em torno de uma sociedade monolítica
693 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Contemporânea e Direito Societário. p. 107.
244
foi superada pelo modelo de empresa plurissocietária. Desse modo, o universo em que
ocorrem quaisquer transações empresariais, incluindo-se aqui as operações societárias,
tornou-se mais amplo e extremamente mais complexo. Assim, as preocupações com a
transparência e com a regularidade de tais operações, a fim de que sejam protegidos os
direitos de sócios, acionistas e credores, devem ser ampliadas para alcançar não só as
pessoas jurídicas por elas afetadas direitamente, mas também os grupos de sociedades
de que fazem parte.
Nessa perspectiva, os mecanismos legais que garantem a responsabilidade dos
administradores/controladores e a possibilidade de anulação judicial de determinada
operação, bem como as exigências de publicidade e justificação dos negócios
reorganizativos, devem ser vistos e entendidos a partir do amplo espectro de sociedades
abarcado pelos grupos. Assim, a aferição da legitimidade e da legalidade das operações
societárias deve passar necessariamente pela análise das relações entre as sociedades
envolvidas na operação com os respectivos grupos que estas integram.
10. Questões relevantes e conclusões
Ao final de todas as análises feitas anteriormente, surgem alguns
questionamentos fundamentais: i) Garantindo-se o direito de recesso amplo, tanto aos
sócios da incorporadora quanto aos da incorporada, não se estará impedindo a própria
operação, pela possibilidade de uma retirada em massa?; ii) Garantindo-se o direito de
oposição aos credores, de forma ampla e abrangente, não se estará dificultado
excessivamente a efetivação das operações?; iii) Em que medida o estudo das operações
societárias pode contribuir para melhor compreender o fenômeno concentracionista,
numa realidade econômica marcada pela consolidação dos grupos societários?
Todas essas questões são muito discutidas pela doutrina, e as respostas
dependem da postura que se adote diante da extensão das garantias e direitos de sócios,
acionistas e credores em face de quaisquer das operações societárias. Além disso, diante
da nova realidade econômica relacionada à emergência e consolidação dos grupos de
sociedade, a compreensão de tais direitos e garantias deve ser ampliada para além da
mera análise das operações societárias em si, a fim de alcançar aspectos relacionados ao
poder de controle e à participação de sociedades no capital de outras pessoas jurídicas.
Não obstante, não é possível conceber os direitos e garantias de sócios,
acionistas e credores de forma tão ampla que gere uma insegurança tal que inviabilize a
concretização das operações societárias, haja vista que estas constituem importante
245
meio de fortalecimento da atividade empresarial e engendram inúmeras eficiências para
economia como um todo.
A complexidade das questões envolvendo as operações societárias foi
intensificada com a criação dos mecanismos legais que permitem a participação de
pessoas jurídicas no capital de outras instituições personificadas. Se por um lado essa
nova possibilidade de participação societária substituiu as operações de fusão, cisão e
incorporação em muitos casos, em outros ela pode gerar problemas de diversas ordens.
Quando os sócios de determinada sociedade também são pessoas jurídicas,
quaisquer processos de reorganização societária por que ela passe serão mais
complexos, tendo em vista os procedimentos de formação de vontade de tais pessoas
jurídicas e as eventuais oposições de interesse no âmbito destas. Nessas hipóteses, os
negócios reorganizativos, por envolverem uma vasta gama de agentes econômicos com
interesses diversos, devem ser conduzidos, ainda de forma mais contundente, com
transparência e observância estrita da “due diligence”.
Assim, questão fundamental ao estudo hodierno das operações societárias diz
respeito ao interesse social dos grupos de sociedade. O controle de uma sociedade por
outra leva a relevantes questionamentos. Há espaço para divergência de interesses entre
controladoras e controladas? Até que ponto o interesse da controladora deve
condicionar o interesse da controlada? Como é possível adaptar as teorias do interesse
social à nova realidade dos grupos societários?
As respostas a questões como essas ainda são objetos dissenso na comunidade
jurídica internacional. No entanto, o posicionamento que defende a sobreposição do
interesse do interesse da sociedade controlada ao interesse da sociedade controladora e
do respectivo grupo de sociedades de que fazem parte, garantindo-se aos acionistas
minoritários formas de compensação, tem ganhando mais força. Nesse sentido, ressalte-
se o entendimento do professor português José Estaca, citado por Pedro Ivan Hollanda:
“O Código de Sociedades Comerciais veio permitir, contudo, a sobreposição do interesse de grupo, dum grupo de sociedade, definido pela entidade dominante de grupo, ao interesse da sociedade subordinada, conforme dispõe o art. 503º. Este estatui que a sociedade directora tem o direito de dar à administração da sociedade subordinada instruções vinculantes (n. 1) e que tais instruções possam ser desvantajosas para esta, desde que sirvam os interesses da sociedade directora ou das outras sociedades do mesmo grupo (n.º 2), desde que sejam lícitas em si mesmas. Passando a sociedade subordinada a poder estar ao serviço do interesse da sociedade directora, e, indirectamente dos sócios desta, tal pode acarretar importantes conseqüências para os credores, administradores e restantes sócios da sociedade subordinada. Esta norma constitui uma importante excepção à regra geral de
246
que cada sociedade deve prosseguir o seu interesse próprio, uma vez que se admite que a sociedade dominante ou até outra sociedade (arts. 491º e 493° do C.S.C.) imponha à sociedade subordinada a prossecução do interesse daquela. O interesse da sociedade pode não coincidir com o interesse do grupo, quando este prevalecer sobre aquele, deve existir uma contrapartida que reponha um certo equilíbrio”.694
Aplicando esse entendimento ao âmbito das operações societárias, é possível
que determinada sociedade seja fundida, incorporada ou cindida, mesmo em situações a
ela desvantajosas, caso seja esse o interesse da sociedade controladora ou de seu grupo
societário. Em contextos como esse, os legisladores de alguns países estabeleceram
medidas de compensação aos sócios e acionistas minoritários pelos eventuais prejuízos,
sendo esse um meio de grande eficácia para conciliar interesses no âmbito dos grupos
de sociedades.
No Brasil, contudo, não existem previsões legais que garantam a referida
compensação. Esse, inclusive, consiste num dos fatores que inibem a consolidação dos
grupos no ambiente empresarial brasileiro. Desse modo, considerando o caráter de
proteção do direito societário em relação aos direitos dos sócios e acionistas
minoritários, especialmente no que se refere às operações societárias, seria de grande
relevância a incorporação no direito brasileiro das referidas medidas compensatórias,
não só para aumentar a segurança dos minoritários, mas também para melhor adequar
os interesses na esfera dos grupos de sociedades.
Destarte, ao final de toda a análise feita anteriormente, resta nítido que o
grande desafio do direito societário em face das fusões, incorporações e cisões de
sociedades reside na busca em conciliar a eficácia de tais operações com a proteção,
legítima e razoável, dos direitos dos respectivos sócios, acionistas e credores das
sociedades envolvidas.
Referências.
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: Ed. Forense. Vol. 2. 1977.
694 HOLLANDA. Pedro Ivan Vasconcelos. Os grupos societários como superação do modelo tradicional da sociedade comercial autônoma, independente e dotada de responsabilidade limitada. Tese (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná – Curitiba. 2008. p. 65.
247
BULGARELLI, Waldirio. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. 5ª ed. São Paulo: Ed. Atlas. 2000. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 4. Tomo I. Ed. Saraiva. 1998. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Empresarial. V. 2, 15ª Ed. São Paulo: Ed. Saraiva. 2011. MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Contemporânea e Direito Societário. 1ª ed. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira. 2002. MUNIZ, Ian. Fusões e Aquisições – Aspectos Fiscais e Societários. 2ª ed. Ed. Quartier Latin. 2011. HOLLANDA. Pedro Ivan Vasconcelos. Os grupos societários como superação do modelo tradicional da sociedade comercial autônoma, independente e dotada de responsabilidade limitada. Tese (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2008.