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Segundo Congresso Brasileiro de Direito Comercial Grupos de Estudos Preparatórios RELATÓRIO DO GRUPO DE DIREITO SOCIETÁRIO Grupo de Pesquisa da Universidade de Brasília - Unb Prof. Dra. Ana Frazão Ana Rafaela Medeiros Danielle Lúcia Ferreira Eduardo Kruel Rodrigues Giovanna Bakaj Oliveira Lara Parreira de Faria Borges Larissa Kawano Mori Leonardo Cocchieri Leite Chaves Pedro Júlio Sales D`Araújo Victor Oliveira Fernandes

Segundo Congresso Brasileiro de Direito Comercial Grupos ... · para o estudo e a pesquisa em qualquer tema da área de Direito Empresarial que fosse de interesse dos seus componentes

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Segundo Congresso Brasileiro de Direito Comercial Grupos de Estudos Preparatórios

RELATÓRIO DO GRUPO DE DIREITO SOCIETÁRIO

Grupo de Pesquisa da Universidade de Brasília - Unb

Prof. Dra. Ana Frazão

Ana Rafaela Medeiros

Danielle Lúcia Ferreira

Eduardo Kruel Rodrigues

Giovanna Bakaj Oliveira

Lara Parreira de Faria Borges

Larissa Kawano Mori

Leonardo Cocchieri Leite Chaves

Pedro Júlio Sales D`Araújo

Victor Oliveira Fernandes

ÍNDICE APRESENTAÇÃO ..................................................................................................................... 3

(Ana Frazão e Ana Rafaela Medeiros)

I. Personalidade Jurídica: significado e importância para a atividade empresarial ........... 9

(Pedro Júlio Sales D´Araújo)

II. Mecanismos de proteção aos credores sociais ............................................................. 34

(Lara Parreira de Faria Borges)

III. Capital social: importância, normas protetivas e subcapitalização .............................. 86

(Danielle Lúcia Ferreira)

IV. As inovações do novo Código Civil referentes às sociedades limitadas .................... 113

(Victor Oliveira Fernandes)

V. Reflexões acerca do poder de controle ....................................................................... 137

(Eduardo Kruel Rodrigues)

VI. Oferta Pública de Aquisição de Ações Obrigatória (“OPA” obrigatória ou a

posteriori .................................................................................................................... 168

(Larissa Kawano Mori)

VII. Insider Trading: questões relevantes. ......................................................................... 201

(Giovanna Bakaj)

VIII. Aspectos Gerais das Operações de Fusão, Incorporação e Cisão das Sociedades..... 223

(Leonardo Cocchieri Leite Chaves)

3

APRESENTAÇÃO

Ana Frazão Ana Rafaela Medeiros

O grupo de pesquisa em Direito Societário da Faculdade de Direito da

Universidade de Brasília – Unb funciona, desde 2009, sob a orientação da professora

Dra. Ana Frazão e a colaboração da estudante de Graduação Ana Rafaela Medeiros.

Formado por alunos da graduação do curso de Direito da UnB, o grupo foi estruturado

para o estudo e a pesquisa em qualquer tema da área de Direito Empresarial que fosse

de interesse dos seus componentes.

Contudo, para ajustar-se à linha de pesquisa da professora Ana Frazão bem

como possibilitar o ingresso de mestrandos e doutorandos, as discussões vêm sendo

direcionadas para o tema “Macroempresa, ordem econômica constitucional e mercado”

e para os seguintes objetivos:

(i) analisar a macroempresa a partir de abordagem multidisciplinar, que utilize os

recentes aportes das demais áreas do saber, especialmente os vindos da economia

e da sociologia econômica;

(ii) criar aproximações entre o direito empresarial, o direito civil (especialmente

na sua abordagem “civil-constitucional”) e o direito público, especialmente o

direito constitucional e o direito da concorrência;

(iii) examinar os efeitos da dissociação entre a propriedade e o controle das

grandes companhias;

(iv) compreender as distintas manifestações do poder empresarial - tendo em vista

que a empresa é cada vez mais definida a partir dos mecanismos efetivos de

autoridade e direção - e os meios pelos quais tal poder pode ser canalizado para o

cumprimento dos princípios constitucionais da ordem econômica, especialmente o

da função social da empresa;

(v) estabelecer as relações entre o poder empresarial e as formas jurídicas pelas

quais se estrutura (sociedades empresárias, grupos empresariais, personalidade

jurídica, consórcios, contratos como joint venture, etc.);

(vi) buscar soluções para administrar a tensão entre o risco empresarial e a

responsabilidade dos empresários e entre o poder empresarial e a

responsabilidade;

4

(vii) estudar as alternativas para o fortalecimento do mercado de capitais e do

equacionamento dos conflitos que se projetam atualmente sobre a empresa. (vii)

estudar as alternativas para o fortalecimento do mercado de capitais e do

equacionamento dos conflitos que se projetam atualmente sobre a empresa.

No segundo semestre de 2011, as atividades do grupo, que, desde sua criação,

vinham sendo desenvolvidas em reuniões extracurriculares, passaram a ser realizadas

em sala de aula na disciplina “Prática e Atualização do Direito: Tópicos em Direito

Societário”, ministrada pela professora Ana Frazão.

Cada um dos alunos matriculados na disciplina desenvolveu um projeto

individual, cujo tema se insere no eixo comum de pesquisa do grupo, já mencionado

acima. Todos os projetos foram orientados pela professora Ana Frazão e debatidos em

sala de aula, de forma que refletem não apenas o esforço individual de pesquisa dos

alunos, mas um trabalho conjunto do Grupo de Direito Societário. Os melhores

trabalhos foram selecionados para compor este relatório, e cada um deles será

apresentado em capítulo apartado, com indicação expressa do autor do texto.

É importante ressaltar que a finalidade dos artigos produzidos não foi a de

meramente descrever ou explicar cada um dos temas discutidos nem, muito menos,

fazer uma compilação sobre o estado atual da doutrina ou da jurisprudência. O objetivo

foi destacar as controvérsias e questões mais relevantes, a fim de, muito mais do que

oferecer respostas, levantar perguntas, fomentando e enriquecendo os debates do

Congresso.

O primeiro artigo tem como tema a personalidade jurídica das sociedades

empresárias. Utilizando as lições da análise econômica do direito, o texto propõe uma

reflexão sobre os custos e benefícios da autonomia jurídica e patrimonial proporcionada

pela personalização. Dentre as principais questões discutidas estão: a) a relação entre a

personalidade jurídica e o desenvolvimento empresarial; b) a socialização parcial do

risco e sua repercussão sobre os pequenos credores e os credores involuntários e c) o

efeito da personalidade jurídica sobre os custos de transação.

Como assinala o trabalho, uma das consequências mais relevantes da

personalização é a limitação de responsabilidade dos sócios, atribuída à maioria das

sociedades empresárias. Embora o mecanismo seja extremamente relevante para

estimular o investimento produtivo, não pode ser utilizado de forma indevida, onerando,

desproporcionalmente, os credores sociais. Para evitar isso, há diversos mecanismos de

5

proteção a esses credores. É sobre isso que tratam o segundo e o terceiro textos que

compõem este relatório.

O primeiro deles aborda o tema de forma mais abrangente, referindo-se a

diversos mecanismos de proteção, como a publicidade obrigatória, as regras que regem

o capital social, a desconsideração da personalidade jurídica, a responsabilização direta

de administradores, controladores, auditores independentes e terceiros, sobretudo em

situações de pré-insolvência, as normas relativas aos grupos empresariais e à falência,

etc. Mais do que descrever as regras do direito societário brasileiro, o artigo analisa, de

forma crítica, as falhas e lacunas existentes e se vale das lições do direito comparado

para apontar novas soluções possíveis.

O segundo artigo sobre o tema traz uma discussão mais específica, analisando

apenas as normas atinentes ao capital social. Além de descrever suas principais funções

e princípios, o texto discute em que medida o capital social constitui uma garantia dos

credores. Dentre as perguntas levantadas, podemos destacar as seguintes: faria sentido,

exigir um capital social mínimo? Deve haver a responsabilização pela subcapitalização?

Em que hipóteses? A subcapitalização autoriza a desconsideração da personalidade

jurídica?

No direito brasileiro, ao contrário do que ocorre em diversos países, não há

previsão no Código Civil sobre o capital social mínimo. Essa, aliás, é uma das

principais críticas à disciplina das sociedades limitadas. É o que explica o quarto artigo

do relatório, que analisa a disciplina legal desse tipo societário. Longe de descrever,

exaustivamente, as inovações trazidas pelo Código Civil de 2002, o artigo pretende

avaliar em que medida o novo regime supriu as lacunas e satisfez as expectativas que

justificaram a revogação do Decreto nº 3.708, além de apontar os novos problemas e

imprecisões decorrentes da atual disciplina das sociedades limitadas.

Um dos principais pontos discutidos pelo artigo refere-se à possibilidade de

regência supletiva das sociedades limitadas pelas normas que regulam as sociedades

simples ou pela Lei das S/A, a depender do que dispuser o contrato social. O assunto é,

sem dúvida, um dos mais controversos do Código Civil. As discussões referem-se não

apenas à dificuldade de interpretar o contrato social e decidir que regime deve ser

aplicado, mas à própria adequação dessas regras às sociedades limitadas. Assim, além

de destacar as principais consequências dessa subdivisão, o artigo aponta as críticas da

doutrina e reflete sobre as cautelas que devem ser adotadas ao suprir as omissões na

regulação das sociedades limitadas.

6

A ênfase maior do relatório, entretanto, está nas sociedades anônimas.

Principal forma de constituição das macroempresas e o instrumento por excelência do

capitalismo, esse tipo societário adquiriu uma conotação de interesse público a partir da

dimensão extraordinária alcançada pelas companhias e da possibilidade de captação de

recursos junto à poupança popular.

Em mercados de alta concentração acionária, como brasileiro, as discussões

mais relevantes sobre as sociedades anônimas dizem respeito ao exercício do poder de

controle. Em face disso, o quinto artigo do relatório procurou relevar as principais

questões sobre o tema. Entre outras coisas, o trabalho discute: a) a possibilidade de

abuso de controle por omissão do acionista majoritário; b) a configuração ou não de

controle quando determinado acionista, por meio de acordo, detém o poder de veto e c)

a responsabilidade do controlador externo e sua relação com aquela do controlador

interno.

O texto discute, também, se a definição de controlador da Lei das S/A se ajusta

às companhias com ações dispersas, que, embora ainda incomuns, vêm aumentando,

sobretudo no Novo Mercado. A pulverização das ações abre espaço para algumas

discussões importantes, como: a) é possível uma sociedade sem controle? b) quem deve

ser responsabilizado pelas decisões quando as ações são muito dispersas? c) o art. 116

da Lei 6.404/76 deveria ser reformulado para atender a esse novo contexto? Essas são

algumas das principais questões analisadas pelo artigo, como se verá adiante

Ainda sobre o controle, o sexto trabalho selecionado para este relatório trata da

oferta pública obrigatória por alienação de poder de controle. Intensamente discutido

pela doutrina, o tema ainda está longe de respostas definitivas. Em primeiro lugar,

subsistem inúmeras controvérsias sobre o fundamento jurídico da obrigatoriedade da

oferta pública e sobre a quem ela deve ser estendida, se apenas aos minoritários titulares

de ações da mesma espécie e classe ou a todos os acionistas, inclusive os

preferencialistas sem direito a voto. Outra questão relevante sobre o tema refere-se às

hipóteses em que a oferta é cabível: é necessário que o alienante seja titular de mais

50% das ações com direito a voto ou a alienação de controle minoritário torna a oferta

obrigatória? O acionista majoritário deve exercer efetivamente o controle quando da

alienação ou a mera transferência de mais de 50% das ações votantes já exigiria a

oferta?

Além de tratar dessas questões, o artigo analisa mecanismos alternativos de

proteção aos minoritários, discutindo, entre outras coisas, se não seria mais adequado

7

obrigar o adquirente a oferecer um prêmio de permanência aos minoritários, tornando a

oferta pública facultativa. Em favor da solução, argumenta-se que a oferta pública

obrigatória, além de ser muito onerosa, inibindo as transferências de controle, acaba por

proteger apenas o investidor de curto prazo, incentivando a saída e não a permanência

na companhia.

Outro mecanismo essencial de proteção aos minoritários é a repressão ao

insider trading. O tema é discutido no penúltimo capítulo do relatório. A primeira

controvérsia analisada refere-se aos sujeitos ativos do insider. O ponto é relevante

porque, embora o art. 155, parágrafo 4º da Lei das S/A faça menção a “qualquer

pessoa”, alguns autores vêm sustentando que, para que seja considerado insider, o

terceiro deve ter uma ligação profissional com a companhia. Assim, um terceiro que

não preenche o requisito, mas, ocasionalmente, obtém e utiliza informação relevante,

não poderia ser considerado insider, de forma que apenas o administrador responderia

por não ter mantido sigilo. A conclusão é, ainda, bastante controversa.

Igualmente complexo é determinar quando determinada informação deve ser

considerada privilegiada. Uma das discussões mais interessantes do artigo diz respeito à

teoria do mosaico. Debatida nas Cortes norte-americanas, a teoria do mosaico refere-se

às hipóteses em que o suposto insider combina informações públicas com pedaços de

informes não públicos, sendo ambos, sozinhos, irrelevantes para afetar a precificação

dos valores mobiliários. Haveria neste caso assimetria de informação, configurando

insider trading? O debate aparece de forma mais detalhada no artigo.

Outra questão tratada pelo trabalho refere-se à responsabilização por insider

trading. Entre outras coisas, o texto discute se é necessário o dolo e a obtenção de

vantagem indevida, se deve ser avaliado o comportamento anterior do insider ou se a

análise da culpa é feita em abstrato, se a culpa deve ser presumida, etc. O artigo revela

não apenas o posicionamento da doutrina, mas também como a CVM vem se

manifestando sobre os pontos mencionados.

Por fim, o último artigo trata das operações de fusão, incorporação e cisão.

Além de explicitar brevemente as principais características de cada uma dessas

reestruturações societárias, ressaltando suas semelhanças e diferenças e os direitos dos

acionistas e credores das sociedades envolvidas, o texto revela a importância de

compreender essas operações a partir da nova realidade societária, em que predominam

os grupos empresariais. No texto, discute-se, entre outras coisas, se as regras da Lei das

8

S/A não deveriam ser relativizadas quando essas reestruturações, embora desvantajosas

para alguma das sociedades envolvidas, fossem benéficas para o grupo.

O artigo propõe, ainda, uma reflexão sobre os direitos assegurados aos

minoritários e credores, avaliando se não seria mais apropriado instituir outros

mecanismos de compensação que tornassem as operações menos onerosas, sobretudo

quando se tratar de empresas plurissocietárias.

O relatório que a seguir se apresenta compõe-se dos oito artigos mencionados

acima, cujos temas são: I) Personalidade jurídica; II) Mecanismos de proteção aos

credores sociais; III) Capital Social; IV) Disciplina das sociedades limitadas no Código

Civil de 2002; V) Poder de controle; VI) Oferta Pública Obrigatória; VII) Insider

Trading; VIII) Operações de fusão, incorporação e cisão. O resultado reflete as

preocupações do grupo e o trabalho individual desenvolvido por cada membro, motivo

pelo qual, como já referido, cada um dos artigos será apresentado em capítulo próprio

com indicação de seu autor.

9

I. PERSONALIDADE JURÍDICA: Significado e importância para a atividade

empresarial

Pedro Júlio Sales D’Araújo

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. O conceito de pessoa jurídica. 3. Evolução teórica do instituto. 4.

Os Efeitos da personificação. 4.1. Benefícios. 4.2. Custo Social. 5. As Justificativas teóricas

para a existência da Pessoa Jurídica. 5.1. Richard Posner e a Livre Negociação. 5.2. Ronald

Coase e a Teoria da Firma. 6. Conclusão: Análise dos Custos vs. Benefícios. 6. Conclusão. 7.

Referências.

1. Introdução

O presente trabalho traz como proposta uma análise do instituto da pessoa

jurídica, com especial ênfase à sociedade empresária, buscando traçar seu significado e

importância para o desenvolvimento das atividades econômicas em nossos dias. O

artigo será dividido em cinco tópicos que irão abordar desde as principais características

deste que é um dos mais importantes fenômenos jurídicos da atualidade, até os

problemas gerados pelo seu mau uso.

Inicialmente, o texto irá trazer o conceito de pessoa jurídica, suas

características e o espaço que referido instituto ocupa em nosso ordenamento. Logo em

seguida, será abordada sua evolução histórica, demonstrando como tal instituto se

desenvolveu com o passar dos anos para atender os anseios da sociedade em que se

inseria.

No terceiro tópico, serão tratados os principais efeitos gerados pela

personalidade jurídica. Abordaremos como a autonomia jurídica e patrimonial conferida

às sociedades empresárias por nosso ordenamento através deste instituto jurídico é

determinantes para a existência da atual atividade empresarial. Neste ponto,

demonstraremos, também, como tais efeitos podem ser apreendidos em nossa realidade

social por meio de sua repercussão na forma de custos e benefícios.

No tópico seguinte, iremos buscar justificativas teóricas para a existência da

pessoa jurídica através dos argumentos desenvolvidos por Richard Allen Posner e

Ronald Harry Coase.

10

Por fim, no último tópico, pretenderemos demonstrar como os benefícios de

ordem global proporcionados pela existência da personalidade jurídica e seus efeitos

superam os custos sociais por ela causados. Buscar-se-á também trazer possíveis

alternativas que objetivem as reduções nesses custos, maximizando, assim, as

externalidades positivas geradas por tal instituto, sem que, no entanto, se inviabilize sua

operacionalidade.

2. O conceito de pessoa jurídica.

Em nosso ordenamento jurídico, há o reconhecimento de dois tipos básicos de

sujeitos de direito. Ao lado das pessoas naturais, podemos encontrar certas entidades,

determinados agrupamentos de pessoas ou de bens aptos a participarem de relações

jurídicas, titularizando, assim, direitos e deveres.

Tais entes são reflexo da necessidade humana de se organizar, através da

conjugação de esforços, com a finalidade de alcançarem objetivos comuns impossíveis

de serem atingidos por cada um de seus membros1. E, são a estes entes que nosso

ordenamento confere personalidade jurídica própria para atuarem como sujeitos

independentes, apartados dos demais sujeitos que o criaram.

A pessoa jurídica é, assim, caracterizada por ser um sujeito de direitos e

deveres, possuindo, portanto, capacidade de direito e de fato próprias. Sua existência

jurídica é distinta da de seus componentes, podendo se relacionar com outros sujeitos de

direito de maneira autônoma.

Por ser independente de seus integrantes, é necessário que a pessoa jurídica

seja capaz de tomar suas decisões, manifestando, com isso, seus próprios interesses.

Para tanto, possui uma estrutura organizativa artificial, responsável por estabelecer,

entre outras coisas, sua vontade própria. Pode-se dizer também que, em certa medida, a

pessoa jurídica se caracteriza pela existência de objetivos comuns de seus membros, que

se agrupam com o intuito de atingirem um mesmo fim determinado.

Tem ainda como traço distintivo a existência de um patrimônio próprio e

independente do de seus membros. Desse modo, os direitos e deveres da pessoa jurídica

não se comunicam com direitos e deveres de seus componentes, não podendo os

credores de um, via de regra, buscar a satisfação de seu crédito no patrimônio do outro.

Por fim, caracteriza-se pelo registro de seus atos constitutivos nas repartições

1 FARIAS e ROSENVALD (2006, p. 231)

11

competentes. Tal caractere confere a devida publicidade para a constituição, o objeto

social, os mecanismos de formação de vontade e a própria finalidade da entidade,

garantindo, assim, uma maior segurança e transparência às relações jurídicas2. Desta

forma, o registro da pessoa jurídica representa elemento necessário para que seja

reconhecida sua existência, permitindo que seja atribuída ao ente a devida

personalidade3.

No Brasil, o instituto só foi realmente sistematizado com o Código Civil de

1916, que reconheceu existência distinta do ente frente aos seus instituidores.

Anteriormente, a legislação pátria, por meio do Código Comercial, se restringia a

conferir limitação da responsabilidade patrimonial dos acionistas frente às dívidas da

sociedade comercial, mas sem discorrer acerca da personalidade jurídica desses mesmos

agrupamentos.

Com a criação do referido Código Civil, além da já citada autonomia jurídica,

foi reafirmada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, bem foram como

regulamentados os atos necessários para sua constituição, os mecanismos existentes

para manifestação e a validação da vontade da entidade e a maneira como deveria se

operar a sua extinção e sucessão.

No entanto, tal diploma legal não conceituou o instituto, tratamento este

repetido pelo Código Civil de 2002. Com isso, no Brasil, coube à doutrina o trabalho de

definição da pessoa jurídica, que, de um modo geral, a caracteriza como um

agrupamento de sujeitos ou de bens minimamente organizado e perseguidor de um

determinado fim4.

A importância de sua existência reside no fato de possibilitar que pessoas

naturais possam, através da combinação de recursos e esforços, realizar

empreendimentos que transcendem os limites das pessoas físicas5. Assim, ela é peça

fundamental do nosso modo de vida atual, permitindo ao homem realizar façanhas

incríveis. Motivo este que justifica o tratamento especial conferido por nosso

ordenamento jurídico ao reconhecer a tais entes a autonomia jurídica e a autonomia

patrimonial necessárias para que possam atuar na vida civil como sujeitos de direitos e

deveres.

2 FRAZÃO (2010, p. 327) 3 REQUIÃO (2007, p 396) 4 Para Francisco Amaral, pessoa jurídica pode ser encarada enquanto “um conjunto de pessoas ou de bens, dotados de personalidade jurídica” – AMARAL (2008, p. 313). Já Silvio Rodrigues afirma serem entidades a que a lei empresta personalidade, que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa da dos indivíduos que as compõe, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil – RODRIGUES (2003, p. 86) 5 AMARAL (2008, p. 313)

12

3. Evolução teórica do instituto

Embora possa não parecer, o conceito de pessoa jurídica sempre foi motivo de

intensa discussão doutrinária, havendo diversas teorias que buscaram explicar a

natureza jurídica deste instituto, marcando sua evolução no decorrer dos séculos.

Cumpre resgatar este debate como forma de demonstrar como se deu a construção

jurídica do instituto e como as diversas posições teóricas produzem seus efeitos até hoje

sobre a concepção de pessoa jurídica, fazendo repercutir seus postulados na

interpretação doutrinária e jurisprudencial de tal tecnologia jurídica6.

A primeira teoria de destaque que tentou explicar a natureza jurídica da pessoa

moral surgiu por volta do século XIX e defendia que tal entidade não passava de mera

ficção jurídica. Sustentada por Savigny, esta tese afirmava que apenas as pessoas

naturais poderiam ser consideradas reais sujeitos de direitos e deveres, sendo a

personalidade jurídica concedida aos demais entes por arbítrio legislativo, como

artificialidade criada pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, refletiam-se os ideais

políticos e econômicos da época que, calcados no individualismo, valorizavam a figura

do homem como único ser titular de direitos e deveres7.

Como consequência deste posicionamento, verificava-se a aproximação do

conceito de pessoa jurídica da visão contratualista do direito societário8, a qual defende

que o interesse social da entidade deve refletir apenas o interesse de seus sócios. Tal

pensamento se justificava pelo fato de que, sendo a pessoa jurídica uma artificialidade

6 COMPARATO (2008, p. 334) 7 AMARAL (2008, p. 319) 8 Vale aqui trazer breves esclarecimentos acerca da concepção contratualista do interesse social da pessoa jurídica. Para tanto, lança-se mão da lição de SALOMÃO FILHO sobre a teoria: “O contratualismo é a concepção de interesse social que sustenta ser esse último coincidente com o interesse do grupo de sócios. Como é sabido, foi na doutrina e jurisprudência italianas que a concepção contratualista teve seu maior desenvolvimento. É necessário, no entanto, fazer uma análise separada da lei e de uma particular (e hoje majoritária) interpretação doutrinária, que veio se afirmando sobretudo a partir da metade dos anos 60, que vê na disciplina societária uma disciplina exclusivamente contratual. Deve-se, no entanto, esclarecer os sentidos que pode assumir o termo contratualismo. Pode-se dizer que o sistema italiano é tradicionalmente contratualístico na medida em que nega que o interesse social seja hierarquicamente superior ao interesse dos sócios. Trata-se, portanto, de um contratualismo definido por contraposição ao institucionalismo. Deste contratualismo por antonomásia podem-se deduzir duas vertentes diversas: segundo a primeira, o interesse social é depurado de elementos externos. Define-se o interesse social sempre como o interesse dos sócios e somente dos sócios atuais. Pela segunda vertente, incluem-se na categoria sócio não apenas os atuais, como também os futuros. A perspectiva a longo prazo do interesse social ganha importância. Obviamente, nesse caso, assume relevância também o próprio interesse à preservação da empresa, motivo pelo qual afirma-se que essa variante contratualista, na prática, aproxima-se um pouco da teoria institucionalista. Na primeira das versões acima mencionadas o interesse social é concebido como relativo apenas ao grupo de sócios atuais. Um dos principais defensores dessa tese é Jaeger. Para ele, o interesse social não constitui um conceito abstrato, mas sim algo de concreto, definível apenas quando comparado com o interesse do sócio para aplicação das regras sobre conflito de interesses. O autor chega a tal conclusão a partir de sua concepção particular de contrato de sociedade: como o contrato social é de execução continuada e o interesse do grupo de sócios, aquele interesse social pode ser constantemente revisto e eventualmente desconsiderado de modo explícito quando se trata de decisão unânime dos sócios. Mais recentemente, a segunda versão de interesse social vem prevalecendo de forma decisiva. Influenciado por concepções vindas da análise econômica do direito e pelas necessidades do mercado de capitais, passa a prevalecer entre os contratualistas concepção objetiva de maximização das ações.” COMPARATO e SALOMÃO FILHO (2008, p. 330)

13

criada pelo direito, ela não possuiria existência própria e, consequentemente, não

poderia ter um interesse distinto do interesse de seus membros9.

Entretanto, a teoria ficcionista apresentava algumas dificuldades ao tentar

classificar as pessoas jurídicas como simples abstrações jurídicas, principalmente no

que diz respeito a negar a existência às pessoas jurídicas de direito público, como o

Estado 10.

Por fim, o tecnicismo extremado desta teoria e a ausência do reconhecimento

de uma função social do instituto acabaram por proporcionar verdadeiros óbices à busca

por respostas satisfatórias aos diversos outros problemas relacionados às pessoas

jurídicas, como o desvio de finalidade e o uso abusivo da pessoa moral11.

Por essas razões, a doutrina passou a buscar alternativas à teoria da ficção.

Uma delas surgiu no início do século XX e ficou conhecida como a teoria da realidade

objetiva ou teoria orgânica, tendo em Gierke o seu maior expoente. Segundo tal

concepção, a existência das pessoas jurídicas seria independente de qualquer ficção

legal, visto que estes entes, à semelhança das pessoas físicas, teriam vida própria,

enquanto indivíduos realmente autônomos12.

Para essa teoria, por ser a pessoa jurídica uma realidade social viva e autônoma

em relação aos seus membros, ela deve ser capaz de exprimir vontade própria, motivo

pelo qual tal concepção doutrinária confere real importância para o debate acerca do

perfil interno desses agrupamentos. Questões suscitadas por essa teoria, como estrutura,

organização e a própria formação dessa vontade autônoma da sociedade, são até hoje

elementos fundamentais da teoria societária13.

Entretanto, essa teoria também sofreu severas críticas. A existência das pessoas

jurídicas enquanto realidades orgânicas similares às pessoas naturais14 e as dificuldades

apresentadas ao tentar explicar o processo de formação da vontade autônoma desses

entes15 e como se daria o reconhecimento de sua capacidade jurídica16 fizeram com que

esta teoria caísse em descrédito.

9 Assim, naquele momento, a pessoa jurídica empresária buscava apenas a maximização dos lucros de seus acionistas, sem qualquer preocupação com uma funcionalização da empresa ou com os interesses sociais envolvidos no empreendimento. Segundo FRAZÃO, “se as liberdades e os direitos subjetivos, dentro dos limites que haviam sido previamente fixados pela lei, eram considerados absolutos, não havia óbice, portanto, a que as sociedades empresárias se dedicassem às suas finalidades econômicas em toda a intensidade possível, sem que houvesse qualquer outro interesse que pudesse pautar suas condutas” – (2011, p. 65) 10 VENOSA (2003, p. 255) 11 FRAZÃO (2011, p. 119) 12 AMARAL (2008, p. 320) 13 SALOMÃO FILHO (2006, p. 183) 14 FRAZÃO (2010, p. 322) 15 Nesse sentido, Salomão Filho cita uma aproximação da realidade objetiva com a teoria do institucionalismo como uma forma de estudar e definir a vontade própria da pessoa jurídica, que não se reduziria à vontade de seus sócios. COMPARATO e SALOMÃO FILHO (2008, pág. 333). Referida teoria afirmava que o interesse da sociedade deveria abranger diversos interesses distintos

14

Tal descontentamento com a teoria da realidade objetiva levou ao surgimento

de diversos outros movimentos com o intuito de tentar explicar a natureza jurídica das

pessoas morais17. Entre as teorias de maior destaque, podemos citar a institucionalista,

de Hauriou, e a da realidade técnica, que teve em Saleilles um de seus maiores

expoentes.

Para a teoria institucionalista, a pessoa moral é encarada como uma instituição,

um grupo social autônomo e organizado, criado para a persecução de determinadas

finalidades socialmente úteis18, com existência prévia à própria pessoa jurídica em si.

Na verdade, a personalidade jurídica somente seria conferida pelo ordenamento por tais

instituições necessitarem de uma maior organização e concentração, diferentemente de

outras instituições sociais, como a família, por exemplo. 19

O grande avanço dessa concepção doutrinária foi conferir à pessoa jurídica um

fim socialmente relevante enquanto elemento agregador, em torno do qual seus diversos

membros se reúnem e criam um organismo autônomo. Assim, a organização deixa de

ser o foco da natureza jurídica da pessoa moral, como era na teoria da realidade

objetiva, passando a ser mero instrumento para a persecução do objetivo que levou à

formação daquele agrupamento social 20.

Outra teoria de grande repercussão foi a da realidade técnica, que concebia a

pessoa jurídica como uma técnica destinada a conferir a certos grupos sociais uma

existência autônoma em relação aos seus membros integrantes21. Assim, reconhecia-se a

essas entidades uma existência real, mas sua realidade só poderia ser entendida no

sentido técnico.

A justificativa dada por essa teoria para se conferir personalidade jurídica a

determinados entes sociais é que tal tecnologia seria utilizada para operacionalizar a

existência de uma organização que pudesse executar a atividade pretendida, sendo

possuidora de uma vontade própria e de uma finalidade que justificasse sua existência e

que realmente fosse por ela perseguida22. Outro fator que colaborou para a aceitação

dessa teoria está relacionado ao fato de que a pessoa jurídica ainda deveria atender a

presentes em nossa sociedade, especialmente os interesses de empregados, consumidores e credores. A sociedade deixa de ser mero instrumento criado para obtenção de lucro pelos sócios e passa a atender melhor os anseios da comunidade em que está inserida. 16 COMPARATO e SALOMÃO FILHO (2008, p. 333). 17 Observa-se, nessa época, uma infinidade de teorias que tentavam definir essa natureza jurídica. Desde um retorno ao tecnicismo da teoria ficcionista através dos estudos de Hans Kelsen, passando por uma concepção patrimonialista da pessoa jurídica defendida por Brinz e Bekker, que concebia este ente como mero patrimônio destinado a um fim, até chegar a teóricos que, mesmo discutindo tal tema, colocavam esse debate em segundo plano, como, por exemplo, Planiol e Rippert. 18 AMARAL (2008, p. 321) 19 FRAZÃO (2010, p. 324) 20 FRAZÃO (2010, p. 324) 21 AMARAL (2008, p. 320) 22 FRAZÃO (2010, p. 325)

15

uma determinada função social, perseguir um valor socialmente relevante, de maneira

que ela jamais poderia ser encarada como uma simples técnica, como pretende a teoria

ficcionista23.

Segundo a maior parte de nossa doutrina24, nosso ordenamento jurídico se filia

à teoria da realidade técnica ao prever que a existência legal das pessoas jurídicas de

direito privado se inicia com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro25.

Entretanto, há de se ressaltar a grande influência exercida ainda hoje na

interpretação do ordenamento pátrio pela teoria ficcionista26, seja pela má compreensão

da teoria da realidade técnica, que leva a um esvaziamento do conceito e consequente

redução da pessoa jurídica a mera tecnologia jurídica sem qualquer conteúdo

valorativo27, seja pela contaminação da interpretação por uma visão contratualista, que

nos remete aos postulados liberais do século XIX, e, novamente, à teoria da ficção28.

4. Os efeitos da personificação

A concessão da personalidade jurídica às sociedades empresariais e o

conseqüente reconhecimento de sua existência enquanto sujeitos de direitos permitem a

criação de variados efeitos no mundo jurídico. No que diz respeito ao desenvolvimento

da atividade empresarial, podemos agrupar tais efeitos ao redor de duas características

básicas: a autonomia jurídica e a autonomia patrimonial. O presente tópico irá analisar

os efeitos do tratamento conferido por nosso ordenamento às pessoas jurídicas, fazendo

uma digressão acerca dos reflexos sociais desse regime legal.

Como primeiro efeito da personalização, temos a autonomia jurídica da pessoa

moral. O ente passa a possuir vontade e existência próprias, desvinculadas dos demais

sujeitos que o integram. Ele passa a constituir um novo centro de imputação, como se

um novo sujeito fosse. E, seu agir é um agir independente, que não se reduz a uma soma

23 FRAZÃO (2010, p. 325) 24 AMARAL (2008, p. 321) e VENOSA (2003, p. 259) 25 Art. 45, Código Civil Brasileiro: “Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. 26 Nesse sentido, interessante trazer o exposto por Calixto Salomão Filho no texto de Comparato (2008, pág. 334): “Dessa relação, que se mostra historicamente necessária entre teoria da pessoa jurídica e do interesse social decorre uma conclusão muito interessante. Hoje a absoluta prevalência da teoria da ficção e de suas vertentes positivistas como a teoria normativa de Kelsen é poderoso fator em apoio da concepção contratualista da sociedade. Assim ainda que teoricamente discutível e sua prática muitas vezes superada, o contratualismo revive e predomina na interpretação doutrinária e jurisprudencial, por força de preconceitos individualistas e também de apoios inesperados, como o vindo da concepção dominante de pessoa jurídica” 27 FRAZÃO (2010, p. 326) 28 SALOMÃO FILHO (2003, p. 37 e ss)

16

dos interesses de seus membros e administradores, mas corresponde, sim, ao próprio

interesse da pessoa jurídica29.

Essa autonomia se traduz sob as premissas de que a pessoa jurídica possui

titularidade obrigacional e processual próprias30, ou seja, ela tanto assume os vínculos

obrigacionais estabelecidos com terceiros, quanto pode demandar ou ser demandada

judicialmente, possuindo, dessa forma, legitimidade para figurar em quaisquer dos pólos

processuais. E a titularidade desses direitos e deveres independe dos integrantes que

compõem referido ente.

No exercício de sua atividade econômica, por exemplo, a sociedade comercial

estabelece relações jurídicas com diversos outros sujeitos, se obrigando através de

contratos com manifestações de vontade próprias. Os outros contratantes estão se

relacionando diretamente com a pessoa jurídica, devendo esperar exclusivamente dela o

adimplemento das obrigações pactuadas.

Embora tanto a formação quanto a manifestação da vontade que vinculam a

pessoa jurídica se desenvolvam através das pessoas naturais que a integram, não

podemos confundir essa vontade com a vontade das pessoas físicas, nem se pretender

estender a estes os efeitos das relações jurídicas assumidas por ela, pois tais obrigações

devem ficar restritas, via de regra, ao âmbito da pessoa jurídica31.

Do mesmo modo, aquele que pretender demandar judicialmente em relação às

obrigações assumidas pela pessoa jurídica não poderá ingressar em juízo contra os

sócios ou administradores da entidade, salvo em determinadas situações. Enquanto ente

personalizado, a pessoa moral possui legitimidade para figurar em quaisquer dos pólos

em uma relação jurídica processual.

Assim, três consequências devem ser extraídas dessa autonomia jurídica. Ao

adquirir personalidade, aquele ente passa a ser um sujeito de direitos e deveres

independente de seus membros. Para tanto, pressupõe a existência de estruturas próprias

para a livre formação de sua vontade, que jamais deverá ser confundida com a vontade

de seus sócios. Consequentemente, enquanto sujeito autônomo e detentor de vontade

própria, a existência da pessoa jurídica pressupõe a persecução de um interesse próprio

e desvinculado do de seus sócios32.

29 DUARTE (2007, p. 50) 30 COELHO (2010, p. 14) 31 COELHO (2010, p. 14) 32 DUARTE (2007, p. 51)

17

O segundo efeito dessa personalização é a não comunicabilidade da esfera

patrimonial da pessoa jurídica com a esfera patrimonial de seus membros. Basicamente,

significa dizer que, na maioria dos casos, os sócios das pessoas jurídicas não respondem

ilimitadamente pelas obrigações delas, tendo sua responsabilidade, via de regra, restrita

ao investimento realizado para a composição do patrimônio social.

Considerada por muitos como o principal efeito da personalização33, a

limitação da responsabilidade é, historicamente, anterior à própria criação da

personalidade jurídica. Ela já vinha sendo discutida durante a Idade Média e Moderna,

como forma de incentivar investimentos em empreendimentos de alto risco, enquanto o

instituto da pessoa jurídica, durante esse mesmo período, ainda se encontrava em um

estágio embrionário34.

Assim, com a referida separação, os credores da pessoa jurídica têm sua

garantia restrita ao patrimônio desta, sendo que este, via de regra, não poderá ser usado

para saldar dívidas dos seus sócios. Da mesma forma, o patrimônio dos membros

integrantes da entidade não poderá ser usado, salvo exceções, para responder pelas

obrigações da sociedade, se traduzindo em uma verdadeira separação das esferas

patrimoniais.

Dessa forma, conforme exposto no tópico anterior, tanto a teoria

institucionalista quanto a teoria da realidade técnica buscaram na pessoa jurídica um

mecanismo que pudesse ser utilizado para sistematizar e coordenar elementos que

permitissem a existência de um sujeito de direitos, distinto de seus integrantes, e que

esse novo centro de imputações perseguisse uma finalidade socialmente útil.

Foi visto, também, que esse regime jurídico tem como característica principal a

concessão de determinados efeitos a esses novos entes, conferindo a eles a já

mencionada autonomia jurídica e patrimonial. Esses efeitos, no entanto, não ficam

restritos ao mero debate acadêmico, repercutindo em nossa realidade social, seja através

de uma série de benefícios proporcionados à comunidade em geral, seja por meio de

custos sociais refletidos entre os membros desse mesmo agrupamento político.

33 COELHO (2010, p. 15) 34 FRAZÃO (2011, p 26) faz menção a GALGANO ao afirmar que “a personalidade jurídica nunca foi o fundamento da limitação da responsabilidade, mas apenas uma justificação teórica a posteriori desta”.

18

4.1. Os Benefícios Sociais

A criação de um novo centro de imputação através da personalização das

sociedades comerciais permite ao ser humano atingir objetivos que não conseguiria

perseguir enquanto pessoa natural. Assim, é de se imaginar que toda a tecnologia

jurídica envolvida na elaboração desse instituto produza uma série de benefícios sociais.

Sem a intenção de esgotar o tema, até porque os reflexos de um instituto jurídico na

sociedade são inumeráveis, o presente tópico irá analisar estes benefícios

proporcionados pela existência da pessoa jurídica e sua importância para as atividades

empresariais. E os primeiros aspectos a serem abordados se referem à autonomia

jurídica conferida a esses entes.

Pois bem, inicialmente, a existência de uma pessoa moral enquanto um novo

sujeito de direitos e deveres possibilita reduzir a complexidade das relações jurídicas

desenvolvidas entre esse ente e terceiros, diminuindo, assim, os custos de negociação35.

Com isso, a pessoa jurídica centraliza as imputações originadas tanto de

responsabilizações extracontratuais, quanto aquelas advindas de um pacto contratual,

deixando, assim, de envolver seus membros diretamente em tais relações jurídicas.

Como consequência, observa-se uma maior agilidade e segurança nas relações travadas

entre tais entes e seus credores sociais.

Ademais, o fato de a pessoa jurídica possuir vontade autônoma confere a esse

ente a faculdade de agir juridicamente independente dos demais sujeitos que a

compõem. Essa característica facilita a imputação direta dos atos praticados à pessoa

moral, que passa a responder por todas as decisões tomadas, estando, assim,

juridicamente vinculada às suas ações, sem que seja levantada qualquer dúvida acerca

da legitimidade de presentação do órgão responsável pela deliberação36.

Outra vantagem proporcionada pelo advento da personalização é que a

desvinculação da existência da pessoa jurídica da existência física de seus membros

permite a continuidade do empreendimento desenvolvido por esse ente37. Ou seja,

35 COASE (1988, p. 39) 36 Tal aspecto, no entanto, nos remete para a questão da teoria do ultra vires, que será posta posteriormente neste trabalho. Mas desde já se mostra importante fazer uma distinção existente entre a representação e a presentação. Para tanto, remetemos aos ensinamentos de Sílvio Venosa que em seu Direito Civil expôs que “não se há de fazer, contudo, analogia entre a representação dos incapazes com a chamada representação da pessoa jurídica. Isso porque a representação dos incapazes (...) ocorre quando há incapacidade, exigindo, assim, proteção e suprimentos legais. Na chamada representação de pessoas jurídicas, o que intenta é provê-las de vozes que por elas possam falar, agir e praticar os atos da vida civil. Há, pois, na pessoa jurídica, mais propriamente uma presentação, algo de originário na atividade dos chamados representantes, do que propriamente uma ‘representação’. A pessoa jurídica presenta-se (ou se apresenta) perante os atos jurídicos, e não se representa, como ordinariamente se diz.” VENOSA (2003, p. 261). 37 VENOSA (2003, p. 250)

19

mesmo quando as pessoas físicas não mais integram o corpo da sociedade comercial,

seja porque abandonaram o empreendimento, seja porque vieram a falecer, o

desenvolvimento da atividade empresarial poderá continuar, o que acaba por conferir

um caráter duradouro à empresa, permitindo a estabilidade dos vínculos obrigacionais

estabelecidos entre a sociedade comercial e seus credores sociais.

Continuando a análise das vantagens auferidas pela criação da pessoa jurídica,

podemos constatar que a existência de tal instituto possibilita a reunião de recursos para

a realização de empreendimentos grandiosos, que transcendem a capacidade natural do

homem e dificilmente seriam obtidos sem a utilização de tal técnica jurídica. Fica

evidente, assim, desde já, o grande benefício social que a adoção deste instituto

proporciona. Tal captação de recursos se deve, em grande parte, ao fato de nosso

ordenamento conceder à pessoa jurídica essa autonomia patrimonial em face de seus

integrantes.

Essa característica faz com que se opere uma limitação da responsabilidade do

sócio da sociedade empresarial, a qual fica restrita apenas ao investimento realizado por

este. Com isso, fica limitada, também, a possibilidade de perda daqueles que buscam no

empreendimento desenvolvido pela pessoa jurídica uma forma de investimento. O

investidor não corre o risco de ter o seu patrimônio responsabilizado pelo fracasso da

atividade econômica, pois esta responsabilidade está, em regra, vinculada ao próprio

capital da pessoa jurídica38. Incentiva-se, assim, o investimento do capital, bem como o

consequente surgimento de uma variada gama de empreendimentos a serem

desenvolvidos. Tal efeito, hoje, pode ser considerado uma das bases da exploração de

qualquer atividade econômica de grande porte, pois permite uma série de

desdobramentos que serão tratados adiante.

O fato de o sócio não responder pelas dívidas da sociedade representa a

transferência do risco para o credor, através daquilo que ficou conhecido por

socialização parcial do risco. Esta tese se fundamenta no raciocínio de que, caso o

empreendimento venha a falhar e o patrimônio da sociedade não possa responder por

suas dívidas, em nome dos benefícios proporcionados pela existência da pessoa jurídica,

deverá a comunidade como um todo arcar com o prejuízo, uma vez que os credores

sociais não poderão recorrer ao patrimônio pessoal dos integrantes do ente moral39.

38 COELHO (2010, p. 16) 39 FRAZÃO (2011, p. 18)

20

Desta forma, desonera-se o capital produtivo, permitindo que se aumente o

volume de investimentos, seja nas sociedades empresariais existentes, seja na criação de

novas pessoas jurídicas com o intuito de explorar alguma atividade econômica. Essa

circulação de capital implica um benefício global através da disponibilização de um

maior número de bens e serviços, bem como o investimento em atividades consideradas

de alto risco40.

A autonomia patrimonial permite ainda a existência de diversos tipos de

investidores nas atividades desenvolvidas pelas pessoas jurídicas, uma vez que, por não

haver uma responsabilização ilimitada, o indivíduo nem sempre necessitaria demonstrar

interesse em participar das tomadas de decisão ou do destino do empreendimento41. Seu

interesse em investir em determinada sociedade pode estar limitado apenas ao retorno

de um lucro rápido, enquanto outros podem buscar um investimento a longo prazo.

Assim, os acionistas poderiam ser divididos em empresários, rendeiros e especuladores.

Tal diferenciação não seria possível caso a responsabilidade do sócio fosse

ilimitada, pois, dificilmente, alguém assumiria tal risco sem fazer um acompanhamento

de perto de todos os passos da sociedade empresária.

Esta preocupação também se refletiria na gestão da sociedade. Hoje, um dos

motivos para explicar a separação entre administrador e acionista reside nesta limitação

da responsabilidade proporcionada pela autonomia patrimonial42. Se assim não fosse,

todo e qualquer acionista, provavelmente, iria querer fazer parte da tomada de decisões,

uma vez que o seu patrimônio pessoal estaria atrelado à situação da sociedade

empresarial. Esse modelo de administração conjuntiva implicaria sérios empecilhos

para o desenvolvimento do empreendimento, uma vez que vai de encontro a toda a

agilidade que a atividade empresarial exige. Tanto é que, desde a Idade Média, já se

estudavam maneiras de pôr em prática uma administração disjuntiva, na qual a vontade

de alguns vincularia toda a sociedade43.

Dessa forma, o que se observa hoje é a, cada vez maior, separação entre esse

administrador e o acionista da sociedade empresarial, com a consequente

profissionalização das estruturas de gestão, tendo como principal efeito uma maior

eficiência e rapidez na tomada de decisões.

40 A limitação da responsabilidade foi historicamente pensada como uma forma de se superar um obstáculo existente para o desenvolvimento de certos empreendimentos de risco. Em seu livro Função Social da Empresa, Ana Frazão faz uma boa análise histórica do desenvolvimento do conceito (2011, pág.11 e ss.) 41 FRAZÃO (2011, p. 77) 42 DUARTE (2007, p. 89) 43 FRAZÃO (2011, p. 13)

21

A autonomia patrimonial cria ainda a possibilidade de se instituir um mercado

de ações em que se negocia livremente a participação societária44. Com a concessão da

limitação da responsabilidade, a participação social acaba por refletir apenas o

rendimento da sociedade, não se levando em conta a liquidez do patrimônio dos outros

sócios, já que, via de regra, isso em nada interfere no risco do investimento por aquele

que adquire o título. Por outro lado, e pelo mesmo motivo, os demais acionistas não

devem se preocupar com a saúde financeira daquele que adquire referidas participações

sociais45, uma vez que seu patrimônio pessoal não influenciará em uma futura

responsabilização da sociedade empresarial.

Entre as inúmeras vantagens desse modelo de mercado, muitas delas já

abordadas neste trabalho, podemos citar também a facilidade criada para a entrada e

saída de investidores. O acionista que inicialmente investe em determinada companhia

não necessita ficar eternamente vinculado a ela, ainda mais se ele possuir um perfil

especulativo. Ele pode simplesmente negociar sua participação, encerrando seu

relacionamento com aquela sociedade.

Outra vantagem consequente da autonomia patrimonial que merece destaque é

a diversificação dos investimentos46. O acionista não necessita restringir seu

investimento em apenas um empreendimento, com receio de que o insucesso daquela

empresa possa representar a ruína de todo o seu patrimônio pessoal. Caso queira, ele

pode estender seu capital a inúmeras atividades, de acordo com seus interesses e

rentabilidade de cada uma delas.

Todos esses benefícios citados até o momento contribuem para o grande

volume de investimentos feitos pelos cidadãos comuns nas sociedades anônimas

abertas, o que tem transformado essas entidades em verdadeiras poupanças sociais,

dando uma função de organizações quase-públicas para tais entes47. Esse importante

efeito acentua a relevância do papel dessas pessoas jurídicas em nosso cotidiano e a

crescente necessidade de se buscar mecanismos que garantam a proteção tanto da

população em geral quanto da própria sociedade empresarial.

44 DUARTE (2007, p. 92) 45 POSNER (1998, p. 432) 46 DUARTE (2007, p. 93) 47 FRAZÃO (2011, p.75)

22

4.2. Os Custos Sociais

A preocupação mencionada no tópico anterior, relacionada à necessidade de se

buscar instrumentos para proteger a população, deve-se, principalmente, à grande

influência que o instituto da pessoa jurídica exerce em nossa sociedade. Através de

grandes companhias, atividades econômicas são desenvolvidas ao redor de todo o

planeta, interferindo na vida de inúmeras pessoas.

Assim, há de se imaginar que, além dos benefícios proporcionados, a

autonomia jurídica e patrimonial do ente moral pode acarretar uma série de

externalidades negativas. Estas externalidades são traduzidas através de custos sociais

que acabam por repercutir em toda a comunidade. Analisando tal tema neste tópico,

iniciaremos nossa abordagem pelos custos gerados pela autonomia jurídica da sociedade

comercial.

Primeiramente, há de se questionar os mecanismos que permitem a formação

de vontade da pessoa jurídica enquanto vontade distinta da de seus membros e até que

ponto poderíamos considerar essa autonomia como real48. Esse questionamento deve ser

feito a partir da constatação de que, embora seja concebida como um novo centro de

imputação, ou seja, um novo sujeito de direitos, a pessoa jurídica, ainda assim, depende

da atuação de seus órgãos para formar e revelar sua vontade. Dessa forma, a atuação da

pessoa jurídica é fruto de uma espécie de heterodeterminação49, na qual diferentes

sujeitos são responsáveis pela sua manifestação de vontade, uma vez que a sua própria

subjetividade seria fruto de uma mera técnica jurídica50.

Surge, assim, o custo da pessoa jurídica passar a atuar em função exclusiva do

interesse de seus sócios, em total descompasso com os anseios da comunidade em geral.

Com isso, esse regime jurídico poderia ser completamente desvirtuado, representando

mera limitação da responsabilidade patrimonial de seus acionistas e, consequentemente,

incrementando o custo social do instituto, uma vez que os riscos do investimento para o

desenvolvimento da atividade empresarial em si não se extinguem com a criação da

pessoa jurídica, sendo apenas transferidos para seus credores sociais.

48 DUARTE (2007, p.86) 49 DUARTE (2007, p. 86) 50 Neste ponto, é importante realçar o debate que envolve a aceitação da sociedade unipessoal, enquanto estrutura societária, e de como se opera a formação e manifestação de vontade da pessoa jurídica nessa configuração societária. Como fazer com que o interesse do sócio não se confunda com o interesse da sociedade, e como inserir nesta configuração empresarial o interesse do restante da comunidade, são perguntas pertinentes a esta configuração empresarial. Seria tal sociedade usada apenas como uma forma de se limitar a responsabilidade patrimonial do sócio? SALOMÃO FILHO (2006, p. 202).

23

O ordenamento jurídico já prevê soluções para combater o desvirtuamento do

instituto, como as hipóteses de responsabilização direta de sócios e administradores e a

desconsideração da personalidade jurídica. Dessa forma, já nesse momento, não

podemos deixar de conceber esse instituto dissociado de sua função social.

Em um segundo momento, a própria manifestação de vontade da pessoa

jurídica pode se apresentar como fator de incremento do risco. Este problema se dá na

medida em que se buscou definir até que ponto a pessoa jurídica deveria estar vinculada

aos atos praticados por seus administradores. Uma vez que sua manifestação de vontade

depende da atuação de terceiros, doutrina e jurisprudência tentaram buscar meios de

evitar que tal presentação fosse desviada pelo administrador, em detrimento dos

interesses dos demais sócios investidores e da própria pessoa jurídica.

Esta preocupação se refletiu na tentativa elaborada pela doutrina britânica de

traçar um parâmetro de controle, por volta do século XIX, concebendo uma teoria que

ficou conhecida como ultra vires doctrine51. Segundo tal teoria, o administrador só

estaria autorizado a agir em nome da pessoa jurídica se aquele ato estivesse previsto em

seu objeto social. Qualquer ação que extrapolasse esse limite seria considerada nula.

O problema deste posicionamento reside no custo que a adoção de tal teoria

representa para comunidade como um todo. Em nome da defesa dos interesses dos

sócios, é criado um ônus a mais para todos aqueles que se relacionassem com

determinada sociedade comercial, pois o credor social correria o risco de não ter o

patrimônio da pessoa jurídica vinculado à obrigação estabelecida.

Em razão de tal rigor, todos aqueles que negociavam com tais sociedades

passaram a exigir a expressa inclusão do contrato no objeto social, como forma de estar

garantido que aquela obrigação não seria considerada nula. Esta exigência teve como

consequência a ampliação dos contratos sociais, de maneira a abarcar um sem número

de atividades. Como reflexo de tais complicações, observou-se a suavização da teoria ao

longo do século XX, culminando até mesmo em sua superação em certos ordenamentos,

de modo a prestigiar a boa-fé de terceiros que negociam com a pessoa jurídica, através

da adoção da chamada teoria da aparência52.

Por fim, outro efeito da personalização das sociedades comerciais que pode

representar um verdadeiro malefício para a comunidade seria a própria limitação da

responsabilidade dos sócios diante das obrigações contraídas pela sociedade. Muito

51 COELHO (2010, p. 459) 52COELHO (2010, p. 461)

24

embora ela proporcione variada gama de benefícios para a população como um todo, ela

também é responsável por uma série de externalidades negativas que merecem

destaque.

Por si só, a limitação da responsabilidade dos sócios sempre foi vista com

desconfiança pela coletividade, tanto que a evolução deste instituto dependeu em boa

parte da chancela estatal53, representando uma exceção ao sistema de responsabilização

das sociedades econômicas da época. Foi apenas com o aumento da complexidade dos

empreendimentos e a necessidade de se atrair maiores investimentos para as sociedades

empresariais que tal limitação surgiu.

No entanto, a autonomia patrimonial nunca extinguiu o perigo do insucesso

empresarial em si, representando apenas uma exteriorização do risco inerente à

atividade, transferindo-o, assim, para os credores sociais da pessoa jurídica54. Esta

consequência se fundamenta na tese, já abordada, da socialização parcial do risco da

atividade, na qual os credores sociais da sociedade empresarial devem arcar com o

prejuízo, caso o empreendimento venha a falhar e a pessoa moral não tenha recursos

suficientes para saldar suas dívidas.

Entretanto, mesmo levando em consideração o incentivo ao investimento que

essa técnica proporciona, vem à tona a questão de se definir até que ponto seria legítimo

permitir a socialização parcial do risco e como deveríamos administrar a transferência

desta externalidade à coletividade, principalmente em questões limítrofes como, por

exemplo, nas hipóteses de subcapitalização da sociedade55.

Todos aqueles que se relacionam com a sociedade empresarial acabam

assumindo um risco, relacionado ao possível insucesso da atividade e que é repassado a

eles através da limitação da responsabilidade dos integrantes da pessoa jurídica.

Tais credores sociais se dividiriam segundo a sua capacidade de negociação

com a pessoa jurídica acerca dos fatores de risco que envolvam referida relação

jurídica56, mas todos eles acabam por sofrer com os perigos do insucesso e da

insolvabilidade da sociedade empresarial. Os credores voluntários da pessoa jurídica

sofrem, de um modo geral, por não terem acesso a todas as informações necessárias

para avaliar e negociar a justa remuneração referente ao risco assumido. Já os credores

53 FRAZÃO (2011, p. 19) 54 POSNER (1998, p. 432) 55 São os casos em que o capital social da sociedade não é suficiente para o desenvolvimento normal da atividade empresarial da mesma. Nessas hipóteses, questiona-se até onde iria a responsabilidade dos acionistas pelas dívidas da pessoa jurídica, pelo simples fato deles não terem disponibilizado um aporte de capital suficiente para a sociedade empresarial. COELHO (2010, pág. 179 e ss.) 56 COELHO (2010, p. 22)

25

voluntários de menor porte ainda estão em maior desvantagem por não apresentarem

um certo poder de barganha frente à sociedade empresarial que possibilite uma livre

negociação dos fatores de risco. Enquanto isso, os credores involuntários não possuem

nem essa chance de pactuar uma remuneração pelos riscos, visto que a assunção do

risco não pode ser simplesmente evitada ou até mesmo negociada.

5. As justificativas teóricas para a existência da pessoa jurídica.

Diante de todos esses custos sociais que a personificação das sociedades

empresariais proporciona, resta a dúvida de saber se a autonomia patrimonial e jurídica

conferida por tal técnica ainda se justificariam na realidade social de hoje. Para buscar

respostas a esse questionamento, o presente tópico apresentará a contribuição de dois

teóricos de destaque na análise econômica do direito57.

5.1. Richard Posner e a Livre Negociação

Segundo esse autor, expoente da Escola de Chicago, a personificação das

sociedades comerciais, além de ser uma forma de organizar os fatores de produção

através de uma estrutura de comando, se apresenta como uma forma do empreendedor

poder captar os recursos necessários para o desenvolvimento da atividade empresarial 58. Tal captação se daria através de um incentivo dado ao investimento do capital

produtivo proporcionado pela autonomia patrimonial da pessoa jurídica59.

Entretanto, esse autor deixa claro que a limitação da responsabilidade dos

sócios não representa a eliminação dos riscos da empresa, mas tão somente a

transferência destes para os credores da sociedade empresarial60. E a justificativa para a

externalização deste risco se encontraria no poder de negociação conferido aos credores

da pessoa jurídica. Caso desejasse, o credor da entidade, ciente dos efeitos decorrentes

da personalização, poderia pactuar a concessão do crédito, condicionando-o a uma

respectiva taxa de juros ou ao aval ou fiança dos sócios61. Justamente por essa

57 Entretanto, faz-se a importante ressalva de que se compartilha dos pressupostos epistemológicos de tal teoria, a qual pretende submeter a análise do direito ao discurso econômico, reduzindo-o aquele a este. A intenção de trazer estas visões acerca do problema está na busca pela melhor compreensão deste fenômeno jurídico, sem esquecer de que o debate que o envolve deve ser feito sob a luz de diversas outras perspectivas, entre as quais se encontram, por exemplo, as dimensões política e social, como forma de melhor inserir a pessoa jurídica na realidade constitucional ora vigente. 58 POSNER (1998, p. 428) 59 POSNER (1998, p. 431) 60 POSNER (1998, p. 431) 61 POSNER (1998, p. 433)

26

possibilidade de negociação dos fatores de risco, Posner acredita que os credores

voluntários da pessoa jurídica estariam em melhores condições para suportar um

possível fracasso da empreitada62.

Consequentemente, a limitação da responsabilidade do sócio, conferida pela

técnica da personificação da sociedade empresarial, funcionaria como uma espécie de

cláusula geral de todos os contratos de crédito que envolvessem a pessoa jurídica. O

empreendedor não necessitaria renegociar através de cláusulas específicas, caso a caso,

os limites de sua responsabilização pela atividade econômica perante seus credores,

reduzindo-se, dessa forma, os custos envolvidos no desenvolvimento da atividade

empresarial. Caso não concordasse com o risco a ser assumido, o credor poderia

negociar sua remuneração correspondente.

A pessoa jurídica, assim, não representaria grandes custos sociais, uma vez que

a comunidade estaria resguardada pela possibilidade de estabelecer livres negociações

com a entidade, fixando uma justa remuneração pela assunção do risco. Para tanto, tal

teoria pressupõe o total acesso do credor às informações que envolvessem o negócio,

principalmente os relativos à própria pessoa jurídica e seu estado. Só assim, eles

estariam aptos a estabelecer uma livre negociação63.

Quanto aos credores involuntários dessa sociedade, por não terem

oportunidade de negociar referida compensação, não poderiam suportar um possível

insucesso do empreendimento. Dessa forma, a responsabilidade dos sócios por essas

obrigações não negociáveis, como a responsabilização por ilícitos, não poderia ser

afastada através da limitação da responsabilidade 64.

Com isso, não haveria custos sociais que pudessem obstaculizar a existência

destes entes morais. Na verdade, segundo o chamado princípio da eficiência, a

personalidade jurídica representaria uma maximização da riqueza global, na medida em

que permitiria uma melhor alocação de recursos na forma de capital produtivo65.

A crítica a tal teoria, muito bem exposta na obra de Calixto Salomão Filho,

reside no fato de que ela pressupõe que tanto credores sociais quanto pessoa jurídica

estariam em totais condições de estabelecerem uma livre negociação acerca da

62 Como motivos para tal constatação, ele enumera que (i) as entidades financeiras teriam maiores condições de avaliar o risco do empreendimento, fazendo tal tarefa a um custo menor que a sociedade empresarial, (ii) por possuírem um portfólio diversificado de concessão de empréstimos, elas estariam assegurados pela remuneração desses créditos, caso uma das sociedades devedoras viesse a falir, e por fim (iii) elas poderiam controlar melhor sua exposição frente ao empréstimo concedido, do que os sócios, que não teriam como quantificar o montante que é creditado à sociedade empresária. POSNER (1998, pág. 432). 63 SALOMÃO FILHO (2006, p. 239) 64 POSNER (1998, p. 435) 65 SALOMÃO FILHO (2006, p. 241)

27

remuneração ao risco de insucesso assumido por aquele que pactua com a sociedade

empresarial. Entretanto, não é o que se observa na realidade.

Primeiramente, há de se ressaltar que a obtenção de informação não é livre,

apresentando um custo econômico que a torna, muitas vezes, inacessível a maior parte

dos credores sociais. Em segundo lugar, dentro dos próprios credores voluntários, há

aqueles que não possuem poder de negociação com a pessoa jurídica simplesmente por

não terem outra opção a não ser negociar com ela, tais como pequenos fornecedores e

os empregados da sociedade empresarial66.

Superados os pressupostos da teoria de Posner, Salomão Filho critica a

justificativa fornecida pelo princípio da eficiência, que fundamenta a teoria da livre

negociação de um modo em geral67. Segundo este princípio, a eficiência de uma norma

jurídica seria medida de acordo com a maximização global das riquezas, mesmo que

isso represente prejuízo para alguns agentes econômicos68. No entanto, segundo

Salomão Filho, tal teoria não leva em consideração o fato de que, em mundo real,

marcado pela desigualdade social, a maximização das riquezas proporciona,

necessariamente, uma concentração de riqueza nos agentes econômicos com maior

poder de barganha69.

Desta forma, ainda segundo este autor, seria necessário buscar mecanismos que

permitissem conciliar a eficiência com uma maior justiça material. Tais mecanismos

deveriam ser fornecidos pelo direito, como forma de intervir na sociedade na busca por

uma maior igualdade social70.

5.2. Coase e a Teoria da Firma

Outra teoria que busca explicar a existência e crescimento das sociedades

empresariais foi elaborada por Ronald Coase. Segundo esse teórico, a firma seria uma

estrutura de comando que permite ao empreendedor organizar e coordenar os fatores de

produção utilizando-se de um mecanismo distinto do sistema de preços característico do

livre mercado.

Esta escolha se justificaria na medida em que haveria um custo ao se utilizar o

sistema de oferta e demanda como mecanismo de coordenação dos fatores de produção

66 SALOMÃO FILHO (2006, p. 240) 67 SALOMÃO FILHO (2006, p. 243) 68 SALOMÃO FILHO (2006, p. 241) 69 SALOMÃO FILHO (2006, p. 241) 70 SALOMÃO FILHO (2006, p. 243)

28

e orientador das transações comerciais71. Esse custo representaria um acréscimo ao

preço do fator de produção, encarecendo, com isso, o produto final. Segundo Coase,

entre os diversos fatores que determinariam esses custos, estariam: coleta e avaliação de

informações necessárias para se fechar um negócio, os custos que envolveriam a

elaboração do contrato em si e a intervenção estatal na economia, tendente a tributar as

transações comerciais efetuadas no mercado72.

Assim, o mercado não se orientaria apenas pela lógica da oferta e demanda,

uma vez que se observaria a existência de uma série de custos que são levados em

consideração na tomada de decisão pelos empreendedores. Estes buscam sempre

reduzir seus custos para que seu produto final seja disponibilizado em condições de

concorrer com produtos análogos lançados pelas outras sociedades empresariais.

Para Coase, as transações podem ser realizadas por diferentes formas

organizacionais, entre as quais a pessoa jurídica seria apenas mais uma delas. Os outros

métodos seriam a realização destas transações comerciais através do próprio mercado,

ou, ainda, por meio de contratos de longo prazo com um fornecedor específico.

Nesta perspectiva, a firma surgiria como instrumento de redução desses custos,

chamados pelo autor de custos de transação, permitindo a internalização destes em uma

estrutura de comando que substituiria o sistema de preços como mecanismo responsável

pelo direcionamento dos fatores de produção. A firma deixaria de ser, assim, apenas um

meio de transformação de insumos em produtos para atuar como elemento determinante

da alocação de recursos em nossa economia.

Entretanto, a estruturação da produção no interior de uma firma também

acarretaria determinados custos, que são levados em consideração pelo empreendedor

na escolha da forma mais eficiente de organizar sua empresa. Tais custos seriam

observados a partir da diminuição do retorno para o empreendedor73 e podem ser

analisados segundo o seguinte raciocínio: quanto mais a firma internalizar operações,

tendendo à diminuição dos custos de transação, maior ela se tornará. E seu crescimento

virá acompanhado de um incremento dos custos de organização e uma redução da

capacidade do empreendedor de alocar seus fatores de produção em um ponto de

máxima eficiência74.

71 COASE (1988, p. 38) 72 COASE (1998, p. 38 e ss) 73 COASE (1988, p. 44) 74 COASE (1988, p. 43 e ss.)

29

Assim, o tamanho da firma seria medido através do custo-benefício de se

organizar suas transações por meio do mecanismo de oferta e procura ou pelo

direcionamento dos fatores de produção através das decisões do empreendedor. As

firmas cresceriam, portanto, enquanto fosse mais vantajoso racionalizar os custos de

transação de um certo produto internamente do que obtê-lo diretamente no mercado.

Quando este ponto fosse atingido, passaria a ser mais lucrativo ao empreendedor lançar

mão das outras formas de organizar suas transações, seja através da negociação de um

contrato de longo prazo com outra firma, seja até mesmo por meio da aquisição daquele

produto no mercado75.

Desta forma, conclui-se que, segundo Coase, e estruturação das firmas

permitiria a organização dos fatores de produção através de uma estrutura hierárquica

que internalizaria os custos da obtenção de determinados produtos no mercado livre

dentro de sua cadeia de comando. Tais operações reduziriam os custos de produção,

refletindo no preço do produto final, beneficiando assim toda a coletividade.

Entretanto, a crítica que pode ser feita a essa teoria é a mesma discutida

anteriormente. Nos dias de hoje, não podemos simplesmente tentar reduzir a análise do

instituto da pessoa jurídica, bem como qualquer outro instituto jurídico, aos seus

aspectos econômicos, visto que existem outros fatores que regem a vida das firmas que

não são apenas custos e lucros. A personificação das sociedades empresarias não pode

ser concebida dissociada de sua função social e do papel que ela exerce em nossa

comunidade. Assim, mais do que a busca pelo lucro dos sócios, a figura de pessoa

jurídica hoje deve refletir a persecução de uma finalidade socialmente útil, conjugando,

desta forma, o interesse tanto de seus sócios quanto de toda a coletividade.

6. Conclusão

Como visto, a existência da pessoa jurídica é de suma importância para a

atividade empresarial de nossos dias. Sem as autonomias jurídica e patrimonial, que são

conferidas às sociedades empresariais pelo regime jurídico da personalização, seria

difícil ao empreendedor individual realizar e fazer prosperar as grandes empresas, como

as que podem ser vistas hoje.

Assim, pode-se dizer que os efeitos oriundos de tal instituto jurídico

proporcionam diversos benefícios, que são desfrutados por toda a coletividade. Através 75 COASE (1988, pág.44)

30

da estrutura desses entes morais, possibilita-se a aglutinação de diversas pessoas e

recursos com o intuito de perseguir um empreendimento que jamais poderia ser

suportado pelos limites físicos da pessoa natural. Ela permite a continuidade do

empreendimento, independente das pessoas físicas que a criaram. De certa forma, sua

existência reduz os preços finais dos produtos ao consumidor comum, através de uma

redução dos custos de transação. Permite a circulação do capital produtivo, através da

limitação da responsabilidade, a qual estimula o investimento, fazendo a economia girar

e gerando mais empregos e riquezas de um modo em geral. Desta maneira, por todos

esses e vários outros motivos76, é difícil de conceber nossa sociedade atual sem o

advento da personificação das sociedades empresariais.

Assim o regime jurídico da pessoa moral se apresenta, hoje, como uma escolha

racional. No entanto, não devemos fechar os olhos frente a todos os custos

proporcionados pela existência de tais entes em nossa realidade social. Enquanto custo

social, a pessoa jurídica só se justifica até o instante em que possibilitar que essas

externalidades negativas sejam reduzidas em face das externalidades positivas que

proporciona.

Porém, esse julgamento não pode ser feito através de uma análise meramente

econômica do instituto, onde os prejuízos a determinados agentes econômicos são

justificados diante de uma maximização global das riquezas. A análise do problema

deve ser muito mais profunda que isso, levando em consideração a observância dos

diversos princípios regedores de nossa realidade social atual, tais como justiça social e

função social da propriedade.

Dessa forma, o operador do direito deve pensar em maneiras de se reduzir os

custos sociais que possam ser originados a partir da existência dessa pessoa legal,

acomodando tal instituto na experiência constitucional de nossos dias. E um passo

importante para a melhor compreensão do instituto foi dado com a sua funcionalização,

inaugurada com as teorias da realidade técnica e institucionalista, que buscaram traçar a

natureza da pessoa jurídica a partir de suas finalidades socialmente úteis.

76 Ana Frazão enumera, em seu Função social da empresa, as diversas abordagens possíveis do fenômeno empresarial de nossos dias: “(i) associação entre capital e trabalho; (ii) instituição social definidora da civilização contemporânea; (iii) centro de poder, em todos os seus desdobramentos, especialmente o poder econômico e o poder político que lhe é correspondente; (iv) núcleo social que, mais do que atender às necessidades básicas do homem, tem importante papel como formador de opiniões, definindo preferências e estilos de vida; (v) organização criadora de empregos, bem estar dos trabalhadores e consumidores, riquezas e recursos para a tributação; (vi) forma de organização do risco empresarial e da atividade econômica para mercados; (vii) organização que se apresenta como alternativa às negociações de mercado na medida em que se mostra mais idônea para reduzir os custos de transação” além de ressaltar o papel de poupança popular exercido por determinados tipos societários através da chamada socialização do investimento. FRAZÃO (2011, p. 73 e ss).

31

Outra solução a ser imaginada nos remete ao problema de combater práticas da

sociedade empresária que contribuam para o incremento do risco da coletividade em se

relacionar com as pessoas jurídicas. Nesta seara, por exemplo, entraria o debate das

alternativas a serem aplicadas em resposta à subcapitalização. A partir deste problema,

por exemplo, podemos imaginar diversas indagações, tais como de que maneira

caracterizar tal situação de risco e como estabelecer parâmetros de controle, como um

capital mínimo.

Por fim, sem, no entanto, pretender esgotar tal tema, cumpre ressaltar a

necessidade de se repensar os sistemas de responsabilização dos sócios e

administradores, tais como responsabilização direta de administradores e sócios

controladores e responsabilização objetiva da pessoa jurídica, frente ao risco do

empreendimento.

Sob este enfoque, é interessante também melhorar a sistematização do instituto

da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que tal remédio jurídico

encontra-se hoje em um verdadeiro caos. A sistematização permitiria a criação de uma

maior segurança jurídica acerca das hipóteses em que poderá ser desconsiderada a

personalidade jurídica, melhorando assim a livre negociação dos fatores de risco

envolvidos entre sociedade empresarial e seus credores.

Assim, é importante que se pretenda buscar mecanismos que confiram uma

maior segurança à sociedade em geral através da redução dos custos que possam vir a

ser suportados por ela. Entretanto, um sério problema reside no fato de que estes

instrumentos de controle de custos podem produzir reflexos na própria forma da pessoa

moral administrar seus riscos, sendo necessário ter em mente que tal socialização é

necessária para o desenvolvimento da atividade econômica de nossos dias. A busca pela

redução de custos sociais poderia representar um aumento dos gastos e a consequente

inviabilização do empreendimento, fazendo com que seja necessário ao operador do

direito levar tudo isso em consideração para tomar a melhor decisão.

Fica claro, todavia, que, no nosso atual modelo de sociedade, é mais que

necessário buscar medidas que operacionalizar o instituto da pessoa jurídica a partir de

uma dimensão mais social de sua técnica jurídica, com o intuito de conciliar a busca

pelo lucro dos acionistas da sociedade empresarial com o próprio desenvolvimento

econômico e social de nossa nação.

32

7. Referências.

ACHBAR, Mark; ABBOTT, Jennifer. Documentário: The Corporation. EUA, 2003. DVD (144 min.), colorido. Didático. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7ª Ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. BORBA, José Edwaldo Tavares. Temas de direito comercial. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. COASE, Ronald Harry. The firm, the market, and the Law. Chicago: The University of Chicago Press, 1990. COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial, vol. 2: direito de empresa. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2008. DUARTE, Diogo Pereira. Aspectos do levantamento da personalidade colectiva nas sociedades em relação de domínio. Coimbra: Edições Almedina, SA, 2007. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006. FRAZÃO, Ana. Função social da empresa – repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. ____________. Aspectos funcionais da personalidade jurídica de direito privado das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público. In: PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. O novo direito administrativo brasileiro, vol. 2. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado, vol. 1. 4. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1983. NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, vol. 1. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2005. POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 5 ed. New York: Aspen Publishers, Inc., 1998. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2001. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, vol. 1. 27 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 34 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

33

SALOMÃO FILHO, Calixto. Sociedade anônima: interesse público e privado. Belo Horizonte, n. 20, ano 5 Julho 2003 Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br/bid/bidConteudoShow.aspx?idConteudo=50804>. Acesso em: 26 fevereiro 2010. ____________________. O novo direito societário. 3 ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros, 2006. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003.

34

II.

MECANISMOS JURÍDICOS DE PROTEÇÃO AOS CREDORES SOCIAIS

Lara Parreira de Faria Borges

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Quem são os credores sociais. 3. Necessidade de proteção aos

credores sociais. 4. Grupos de companhias. 5. Credores involuntários. 6. Mecanismos jurídicos

de proteção aos credores sociais. 6.1. Publicidade obrigatória. 6.2. Regras que regem o capital

legal e os grupos empresariais. 6.2.1. Limitação à distribuição e redução do capital social. 6.2.2.

Capital social mínimo. 6.2.3. Capital de manutenção. 6.2.4. O problema da subcapitalização.

6.2.5. Desconsideração da personalidade jurídica. 6.2.6. Grupos empresariais. 7. Deveres

fiduciários – estratégia de normas. 7.1. Responsabilidade dos fundadores e dos primeiros

administradores. 7.2. Responsabilidade do administrador. 7.3. Responsabilidade do auditor. 7.4.

Responsabilidade do acionista. 7.5. Desconsideração da personalidade jurídica. 7.8. Custos pela

responsabilização dos dirigentes empresariais. 7.7. Responsabilidade de terceiros. 8. Conclusão.

9. Referências.

1. Introdução

Toda organização empresarial é constituída pelo conjunto de esforços e

funções desempenhadas por diferentes agentes.

No que se refere a recursos e financiamento para desempenhar os fins

empresariais, bancos e financeiras participam do fomento sob a forma de empréstimos.

Em relação à obtenção de matérias-primas para a realização de suas atividades, a

sociedade negocia com fornecedores. Para que os objetivos planejados pelos órgãos

diretivos e financiados pelo patrimônio e demais investidores se concretizem, a

sociedade conta com a atuação de seus empregados. Por fim, os bens e serviços

produzidos pelos empregados devem ter destinatários que os consumam; entram em

cena, então, os consumidores. E não se pode esquecer de que a atuação da sociedade

sempre irá gerar externalidades no meio ambiente e na comunidade nos quais se insere.

Ao passar por todas essas etapas, que, na realidade, ocorrem simultaneamente

na vida social, percebe-se que uma sociedade gera profundos impactos na comunidade

em que atua, uma vez que se relaciona das mais diversas formas. Um aspecto

35

importante de se notar é que grande parte das relações da sociedade geram para ela a

figura de um credor social, que poderá demandar-lhe certas condutas caso sofra danos

ou prejuízos oriundos da ação ou omissão social.

No direito brasileiro, pouco se tem escrito a respeito de mecanismos capazes de

proteger os credores sociais de forma a se estabelecer um conjunto de garantias a essas

pessoas, físicas e jurídicas, que, de algum modo, se relacionam com a sociedade. Já na

literatura estrangeira referente ao direito societário, encontra-se uma preocupação em se

estabelecer critérios e mecanismos jurídicos eficazes para a proteção dos credores da

sociedade.

O presente trabalho busca, assim, fazer uma análise de direito comparado com

enfoque nos mecanismos correspondentes no direito brasileiro que demonstrem esta

aptidão de garantir a satisfação dos credores sociais. Considerando que o

desenvolvimento empresarial demonstra-se totalmente impossível sem a presença de

grande parte dos credores sociais, uma vez que estes atuam, muitas vezes, como

engrenagens do sistema empresarial, sua proteção mostra-se como medida necessária

para que se assegure o próprio desenvolvimento e as atividades da sociedade. Pode-se

dizer que os credores sociais são os responsáveis pela vitalidade de uma organização

empresarial, por isso, nada mais justo que garantir-lhes proteção.

Inicialmente, delimitar-se-á a noção de credores sociais, buscando definir

quem pode ser enquadrado nesta figura. Posteriormente, será analisada a necessidade de

proteção dos credores, vislumbrando como suporte teórico o institucionalismo

organizacional e a função social da empresa. Por fim, far-se-á uma comparação dos

mecanismos jurídicos de proteção aos credores sociais no direito comparado e no

direito brasileiro, buscando, quando possível, uma análise mais específica, atendendo às

particularidades de cada credor.

O direito societário brasileiro, durante muito tempo, se ocupou de estudar o

significado do ser empresário, bem como da necessidade de se garantir negócios

rentáveis e de se eximir os sócios da responsabilidade pessoal pelas transações da

sociedade. Cabe agora uma análise capaz de estruturar e reconhecer mecanismos

jurídicos capazes de proteger credores sociais, principalmente os credores involuntários

ou não negociais, como forma de dar efetividade à noção de função social e de ordem

econômica constitucional, garantindo dignidade e justiça social.

36

2. Quem são os credores sociais

Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, os credores sociais são todos aqueles

que não são acionistas da companhia, mas são igualmente interessados no sucesso

desta.77 Como exemplos de credores sociais podem-se citar os bancos, os “bondholders”

(investidores), os empregados, os fornecedores e toda parte que contrate com a

companhia.78

O acionista na condição de investidor na formação do capital social não será

credor da sociedade. Como bem explica Fábio Ulhoa Coelho, o acionista que investe na

companhia para formar seu capital social tem como retorno o produto do lucro

decorrente da atividade da empresa.79 Entretanto, quando a sociedade busca captar

recursos por meio de mútuos, provenientes dos acionistas, estes passam a ser credores

da companhia com direito a receber o que foi investido, independentemente do sucesso

da atividade empresarial.80 Assim, pode-se considerar que os sócios na condição de

mutuantes enquadram-se na categoria de credores sociais.

3. Necessidade de proteção aos credores sociais.

A questão da necessidade de proteção especial aos credores sociais é colocada

por Gerard Hertig e Hideki Kanda como uma garantia que deve vir não necessariamente

da lei societária, mas da própria relação entre credor e devedor e da legislação já

existente regulando tal relação, ou até mesmo das condições do mercado.81 Os autores

demonstram que a proteção aos credores sociais é aclamada por aqueles que

vislumbram nestes credores o sofrimento de um maior risco frente ao oportunismo dos

acionistas e da responsabilidade limitada destes em detrimento dos credores.82

Na visão de Gerard Hertig e Hideki Kanda, tanto os credores individuais

(aqueles que se inserem em uma relação de crédito-débito de modo individual) como os

credores sociais sofrem riscos semelhantes antes da realização do empréstimo e após

sua obtenção.83 Antes do empréstimo a sociedade ou o indivíduo irá mentir sobre seus

77HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. In: The Anatomy of Corporate Law. A comparative and functional approach. Oxford, UK: Oxford University Press, 2004, p. 71. 78Idem, ibidem. 79COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa. Volume 2. São Paulo: Editora Saraiva, 15a Edição, 2011. p. 197. 80Idem, 198. 81HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 71. 82Idem, ibidem. 83Idem, ibidem.

37

ativos para obter o financiamento de que necessita, para tanto irá distorcer os valores de

seus ativos, no caso de uma sociedade, esta poderá até colocar ativos pessoais dos

sócios como ativos da companhia.84 Após a obtenção do empréstimo, o devedor

provavelmente violará os termos do acordo, diluindo ativos disponíveis para satisfazer

credores e buscando projetos arriscados que repassem o risco de fracasso para seus

credores, com o agravante da responsabilidade limitada .85

A questão que se coloca a esta posição de Gerard Hertig e Hideki Kanda é que,

numa situação entre credores individuais, a relação é mais igualitária em termos de

poder que cada parte possui. Já a relação entre credores sociais e a companhia não pode

ser tratada genericamente de forma a se considerar que sempre será uma relação

equilibrada ou desequilibrada, uma vez que dependerá da parte que estará se

relacionado com a sociedade.

Considerando essa própria diferença entre os diversos tipos de credores, Gerard

Hertig e Hideki Kanda consideram a importância de mecanismos especializados para a

proteção dos diversos credores sociais.86

Assim, o contrato é regulado pelo Código Civil quando as partes encontram-se

em condição de igualdade para realizar a negociação. Porém, em alguns casos, uma das

partes pode encontrar-se em situação de vulnerabilidade. Nestes casos, a liberdade

contratual será limitada para que exista um equilíbrio entre as partes. É exatamente o

que ocorre em relação a trabalhadores e consumidores.

Outro exemplo é a relação entre os bancos credores e a companhia. Tais

instituições financeiras possuem elevado poder de pressão sobre as companhias de

modo a ter seus créditos satisfeitos conforme o estabelecido no contrato. Já os

empregados da companhia, também credores sociais, estão numa condição de

hipossuficiência e ínfimo poder frente à atuação da sociedade para satisfazer seu

crédito. Inclusive, é este fato que norteia todo o ordenamento jurídico-trabalhista,

garantindo maiores proteções ao trabalhador de forma a colocá-lo numa situação de

igualdade perante o empregador.

Assim, os breves exemplos sobre diferentes credores em diversas condições,

como bancos, empregados, consumidores, demonstram a dificuldade em se tratar dos

credores sociais como um bloco único merecedor de proteção jurídica uniforme,

considerando as enormes peculiaridades de cada espécie de credor.

84Idem, ibidem. 85HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. 71 e 72. 86Idem, p. 100-104.

38

Os próprios Gerard Hertig e Hideki Kanda admitem essa diferenciação de

proteção ao afirmarem que a lei das sociedades não se ajusta à proteção de cada credor

social, uma vez que não se pode aplicar uma única medida para diferentes credores que

se encontram em diversas condições.87

Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, os mecanismos rígidos de proteção

aos credores foram vistos historicamente como uma compensação pela concessão de

responsabilidade limitada aos sócios.88 Este argumento permanece até os dias atuais,

entretanto, na prática comercial, mostra-se como um argumento meramente retórico.89

Segundo tais autores, os credores dependem muito mais de contratos, agências de

crédito e outras medidas autoprotetivas, e não de proteção legal.90 Os autores acreditam

que tal intervenção só é merecida quando a lei for mais eficiente do que a proteção

pelas garantias do próprio contrato.91

Para Gerard Hertig e Hideki Kanda, a lei pode fornecer bons mecanismos de

proteção aos credores sociais em casos em que a transação for pequena se comparada ao

aporte da negociação, caso os credores estejam em condição de vulnerabilidade que não

possam proteger a si mesmos e em situações nas quais ações coletivas não sejam aptas a

produzir efeitos que beneficiem todos os credores.92

Entretanto, os autores relembram que os benefícios de proteção legal aos

credores vêm acrescidos de custos.93Na teoria, tais benefícios mostram-se como

redutores de custos, mas, na prática, eles podem aumentar custos de transação quando

tais mecanismos de proteção são superrígidos e intrusivos.94 Para a realização do

mercado, não se pode eliminar por completo o oportunismo, mas deve-se balancear seu

custo com os custos de seu controle, principalmente nos casos em que a companhia

estiver próxima da insolvência ou quando um devedor pertence a um grupo de

sociedades, e nos casos de credores involuntários.95

Em crítica à tese proposta por Gerard Hertig e Hideki Kanda, Eílis Ferran

argumenta que vários estudos demonstram o dilema entre custos impostos aos

devedores quando os acordos são obrigatórios e os benefícios oriundos de cláusulas que

87Idem, p. 72. 88Idem, ibidem. 89Idem, ibidem. 90HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 72. 91Idem, ibidem. 92Idem, ibidem. 93Idem, ibidem. 94Idem, p. 73. 95Idem, ibidem.

39

restringem a possibilidade de controladores da sociedade se comportarem de forma

oportunista às custas dos credores; e concluem que os acordos são mais caros.96

Alguns doutrinadores pensam que uma flexibilização no que tange às regras de

capital social ajudaria acordos contratuais juntamente com mecanismos do próprio

mercado a gerar mais opções para que os credores tivessem uma autoproteção.97 Um

contra argumento afirma que as regras sobre capital social imitam o que pode ser obtido

por meio de barganha contratual; assim, as normas sobre capital social reduziriam os

custos de transação com negociações, pois já fornecem a providência necessária.98

Um bom exemplo são os acordos que restringem o pagamento de dividendos,

acordos que não são comuns na Grã-Bretanha nem na Alemanha, mas o são nos

Estados Unidos. Isso se dá pois, no sistema norte-americano, os acordos com os

credores são importantes, e, para o sistema europeu, tais acordos são redundantes, uma

vez que os credores se sustentam na lei geral que os protege.99

Francesco Galgano defende que a intervenção estatal e a institucionalização

são instrumentos necessários para que o capitalismo seja preservado.100 Nesse mesmo

sentido, Frederico Simionato afirma que “se o mercado é deixado livre dentro da sua

legalidade intrínseca, ele leva em consideração somente o objeto e esquece-se da

pessoa” (grifos acrescidos).101 O autor defende que o crescimento da empresa não se dá

apenas pela atuação dos sócios, mas também por conta dos trabalhadores, acionistas

minoritários e debenturistas.102

Assim, uma não regulação da responsabilidade societária, bem como a não

criação de mecanismos capazes de proteger os credores sociais, baseada na crença de

que o próprio mercado há de se encarregar de protegê-los, acabará por desconsiderá-los

como pessoas, principalmente quando se trata de credores sociais em condições mais

vulneráveis perante a companhia controladora.

96FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. In: ECGI (University of Cambrigde, Faculty of Law; European Corporate Governance Institute). Law Working Paper. Nº 51/2005. Outubro, 2005. 97Idem, ibidem. 98FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 99Idem, ibidem. 100SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 59. 101Idem, p. 71. 102Idem, ibidem.

40

4. Grupos de companhias

Os grupos de companhias ou grupos empresariais são controlados por

poderosos “insiders”103, acionistas da companhia dominante, coalizão de acionistas,

grupo de administradores influentes.104 A estrutura do grupo empresarial afeta os

credores, uma vez que propicia menor transparência (não separando ativos e débitos de

cada membro do grupo, por exemplo).105 A estrutura do grupo também permite que

controladores estabeleçam os termos em que as transações entre seus membros dar-se-

ão, às vezes, extraindo valores de credores e acionistas minoritários de uma sociedade

empresária do grupo e transferindo para outra. Assim, credores são prejudicados pela

transferência de ativos de um membro do grupo para outro.106 Credores sociais e

acionistas minoritários encontram-se, dessa forma, em situação de maior

vulnerabilidade em grupos de companhias.107

O tratamento dos grupos empresarias varia conforme o ordenamento de cada

país. A Alemanha realiza um forte controle, em contrapartida, os EUA não exercem

nenhum controle, ignorando o arranjo de tais grupos empresariais.108 Em posição

intermediária, Grã-Bretanha, Japão e França não possuem uma legislação específica

sobre o tema, mas regulam tais grupos por meio de outros mecanismos.109 Como se

observa, não há consenso entre os ordenamentos a respeito da regulação de grupos

empresariais, mas nenhum país os proíbe totalmente.110

Os grupos empresariais piramidais são os mais problemáticos, uma vez que

são controlados por uma minoria acionária, e são permitidos, apesar de serem

funcionalmente equivalentes ao “supervotante”; a questão mais difícil está na proibição

do supervotante por quase todas as legislações.111

Na visão de Hertig e Kanda, os grupos empresarias são altamente eficientes, na

medida em que minimizam tributos, realizam uma melhor alocação e monitoramento

103A expressão “insider” é bem definida por Paulo Sandroni nos seguintes termos: “Insider. Termo aplicado, especialmente no mercado de ações, a uma pessoa que dispõe de informações privilegiadas sobre a situação de empresas que têm seus títulos cotados em Bolsa e que, fazendo uso delas (antes que as mesmas sejam acessíveis ao público), pode realizar grandes lucros comprando e/ou vendendo ações. A legislação em geral pune a ação dos insiders, embora com graus diferenciados de severidade.” In: SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia. São Paulo, Editora Best Seller, 9a Edição, 2002, p. 304. 104HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 75. 105Idem, ibidem. 106Idem, ibidem. 107Idem, p. 74. 108Idem, p. 76. 109Idem, ibidem. 110Idem, p. 75. 111Idem, p. 76.

41

dos custos dos riscos perante os credores e, assim, podem proteger transações de

investimentos específicos.112

Calixto Salomão entende que a Lei das S/A é bastante favorável às empresas

conglomeradas, gerando deficiências na proteção de interesses de terceiros.113 Inclusive,

o autor ressalta que essas facilidades dispostas às empresas conglomeradas tiveram sua

constitucionalidade questionada, por representarem um incentivo à dominação do

mercado e serem contrárias à liberdade de concorrência defendida pela Constituição de

1988 (artigo 170).114

5. Credores involuntários

Os credores involuntários são uma espécie de credores sociais que se

encontram em uma situação de maior vulnerabilidade perante o oportunismo e a

negligência da administração e dos sócios da companhia, por isso, requerem especial

proteção caso a companhia encontre-se em situação de insolvência.115 Na medida em

que a estrutura societária imuniza os acionistas da responsabilidade por atos ilícitos,

eles se sentem livres para optar por soluções “fora da lei”, desconsiderando as

externalidades negativas, como danos ao meio ambiente, entre outros ilícitos em

geral.116

Essas observações sugerem que credores involuntários merecem medidas

protetivas especiais. Entre elas, Gerard Hertig e Hideki Kanda propõem: 1) a

preferência em relação aos credores voluntários no processo de insolvência; 2)

pagamento na forma de responsabilidade civil pelos danos gerados pela companhia; 3)

responsabilização dos acionistas pelos excessos do ato ilícito proporcionalmente ou

totalmente, a depender do controle que o acionista teve sobre a decisão quanto à

atividade de risco.117

112Idem, ibidem. 113SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2a Edição, 4a Edição, revista e ampliada, 2011. p. 38. 114SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário.Op. Cit. p. 38 e 39. 115HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 76. 116Idem, ibidem. 117Idem, p. 77.

42

Apesar de todos esses mecanismos especiais de proteção aos credores

involuntários propostos por Gerard Hertig e Hideki Kanda, não há uma consolidação

destes nos ordenamentos.118

Os autores apontam, como motivos para isso, a fraqueza da distinção entre

credores voluntários e involuntários, o incipiente desenvolvimento da lei de

responsabilidade civil, a falta de corpo jurídico especializado no assunto, bem como a

ausência de organização entre as vítimas (credores involuntários) na forma de lobby

para alterar a lei (uma vez que as vítimas só se caracterizam nessa condição de credores

após o ato ilícito, e, após o fato, não pode haver alteração da lei que irá regulá-lo;

assim, as vítimas não demonstram interesse em se articularem para alterar a lei que

beneficiará outros no futuro).119

Uma questão interessante levantada por Eilís Ferran sobre a proteção dos

credores fracos e involuntários diz respeito à possibilidade de tais credores se

beneficiarem como parasitas dos contratos dos credores sofisticados, uma vez que as

restrições à autonomia gerencial impostas por via de acordos contratuais beneficiam

todos os credores.120 Porém, a própria autora levanta um argumento contra acordos que

beneficiem genericamente todos os credores, referindo-se ao caso de acordos

extremamente restritivos, que podem impedir que a sociedade opere da forma

necessária para manter sua posição financeira.121

Na visão de Eilís Ferran, o certo é que nem sempre credores fracos poderão se

beneficiar parasitando acordos, uma vez que nem toda negociação contratual terá

resultados efetivos.122 Além do mais, acordos contratuais são planejados para proteger

interesses de credores individuais e específicos, que são partes em um contrato

relevante, e não uma coletividade de interesses de todos os tipos de credores.123 Os

interesses de credores fortes e vulneráveis nem sempre serão os mesmos.124

A Segunda Diretiva de Direito Societário da União Européia orientou-se para a

proteção de credores vulneráveis e, para tanto, criou mecanismos de proteção baseados

em dispositivos coletivos.125 O principal dispositivo coletivo para proteção de credores

vulneráveis refere-se a um capital social mínimo. Entretanto, mesmo os defensores

118Idem, ibidem. 119HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 77. 120FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 121Idem, ibidem. 122Idem, ibidem. 123Idem, ibidem. 124Idem, ibidem. 125Idem, ibidem.

43

desta exigência, hoje, assumem que uma regra de capital mínimo não serve

substancialmente para os propósitos a que se designa, uma vez que nem sempre se

adapta às necessidades financeiras de uma sociedade e pode se perder durante o curso

do negócio.126

Vítimas de dano são vistas como a categoria de credores que mais necessitam

de proteção legal, mas o capital social mínimo requerido pela Segunda Diretiva de

Direito Societário da União Européia não prevê que este mínimo seja suficiente para

suprir demandas por dano.127

Os pequenos credores e os credores involuntários precisam de uma proteção

diferenciada perante a sociedade, uma vez que se encontram em situação de maior

vulnerabilidade, tendo em vista que não possuem forte poder de barganha com a

companhia a ponto de poderem assumir parte dos riscos do negócio empresarial como

os grandes credores fazem.128 Assim, a responsabilidade limitada, como mecanismo

eficiente para a redução dos custos de transação, mostra-se adequada quando o credor

assume o risco de negociar com a sociedade e pode contrabalancear tais riscos com

elevadas taxas de juros, entre outros benefícios negociáveis.129 O mesmo não se aplica

aos credores que sofrem danos por atos ilícitos dos gestores da companhia ou que se

encontram na condição de credores involuntários.130

Assim, impor as consequências da responsabilidade limitada de forma

indistinta tanto a grandes credores como a credores involuntários e pequenos credores

mostra-se uma atitude perversa quanto aos mais fracos.131 Nas palavras de Ana Frazão,

“tais constatações causam, certamente, inúmeras perplexidades, ainda mais diante de uma ordem econômica constitucional fundada na função social da empresa e que tem por objetivo o de assegurar a todos uma vida digna. No caso da responsabilidade limitada, os mais fracos são exatamente os menos protegidos”.132

A solução para tal problema não se mostra simples. O mero afastamento da

responsabilidade limitada em relação aos credores sociais transformaria a sociedade

anônima em uma sociedade em comandita por ações, apenas transformando um

126Idem, ibidem. 127FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 128FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. p. 389. 129Idem, ibidem. 130Idem, p. 390. 131Idem, ibidem. 132Idem, ibidem.

44

problema em outros, e não propriamente solucionando a questão.133 Assim, para Ana

Frazão, a medida mais adequada para o caso é “o cumprimento do dever de diligência

por parte dos administradores, no que se refere à manutenção do patrimônio social e às

atividades tendentes ao pagamento do crédito”.134

6. Mecanismos jurídicos de proteção aos credores sociais

Mesmo considerando que cada espécie de credor possui particularidades que

requerem uma proteção específica perante a companhia, há alguns mecanismos que

podem servir para resguardar todos os credores sociais perante o oportunismo dos

sócios, bem como a atuação de todos os agentes da sociedade.135 Segundo Gerard

Hertig e Hideki Kanda, são três os mecanismos estratégicos para proteger os credores

sociais: 1) a publicidade obrigatória, 2) regras que regem o capital legal e grupos

empresariais, e 3) normas que regulamentam os deveres fiduciários.136

A seguir, cada um desses mecanismos será detalhadamente analisado,

buscando, assim, demonstrar estratégias possíveis para proteção dos credores, e, quando

possível, serão relacionados a seu grau de vulnerabilidade ou hipossuficiência perante a

companhia.

6.1. Publicidade obrigatória.

As exigências de publicidade dos atos societários de constituição e gestão da

companhia visam legalizar a pessoa jurídica, protegendo os interesses dos credores

sociais de irregularidades que o exercício social possa gerar, principalmente no que se

refere ao patrimônio social.137

A publicidade obrigatória mostra-se necessária por conta do fato de que

credores voluntários contratam considerando uma oportunidade de saída, e, neste caso,

analisando a possibilidade de ter seu crédito devidamente satisfeito na ocorrência de um

termo ou padrão significativo.138 Assim, a lei das sociedades evita estratégias de saída

em favor de estratégias de entrada de investimentos por meio de credores voluntários,

133Idem, p. 391. 134FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 391. 135HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 77. 136Idem, p. 78. 137CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 1º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 9. 138HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 79.

45

requerendo que companhias publicizem certas informações básicas antes da captação de

recursos, como publicação de registro de patentes, valor do capital legal (ou capital

social), registros contábeis.139

Assim, para que haja um interesse em investir na companhia na condição de

credor social, é necessário que a sociedade publicize seus dados, demonstrando, assim,

que é um investimento seguro e capaz de gerar resultados positivos. Desse modo, a

captação de recursos é mais eficiente.

As informações relativas ao patrimônio social das companhias abertas são

organizadas e reguladas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), como forma de

se garantir proteção à poupança privada que irá investir em tais companhias, bem como

garantir informações sobre a situação patrimonial e financeira aos credores.140 Toda

essa conjuntura demonstra uma maior regulação das sociedades de capital aberto. Como

bem descreve Fábio Ulhoa Coelho no seguinte trecho:

A lei determina o controle governamental sobre as sociedades anônimas abertas com vistas a conferir ao mercado acionário uma certa segurança. Note-se bem, o investimento em ações e demais valores mobiliários é, sempre e inevitavelmente, uma opção de risco. Quem tem dinheiro empregado nessa alternativa de investimento – ao contrario, por exemplo, de quem investe em caderneta de poupança, CDB emitido por banco sólido ou imóveis – pode simplesmente perder tudo.141

Assim, considerando os maiores riscos que o investimento em uma companhia

de capital aberto proporciona, a regulação sobre tais sociedades é proporcionalmente

maior. Nos EUA, as sociedades de capital aberto são fortemente reguladas, devendo

divulgar todo material informativo sobre os valores de condição do emitente, além do

dever de arquivar periodicamente demonstrações financeiras.142 Já o Japão e a União

Européia (à exceção da Grã-Bretanha) impõem menos regras para tais companhias.143

Em caso de sociedades de capital fechado, a situação da publicização mostra-

se mais complexa. Primeiramente, porque as empresas de capital fechado não emitem

valores mobiliários negociáveis nas bolsas de valores ou mercado de balcão.144 Nas

empresas de capital fechado, seus valores mobiliários são emitidos por elas mesmas e

não há uma divulgação muito grande sobre sua emissão como ocorre nas sociedades de

139HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 79. 140CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 10. 141COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa. Volume 2. São Paulo: Editora Saraiva, 14a Edição, 2010. p. 71. 142HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 81. 143Idem, ibidem. 144COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa. Volume 2. Op. Cit. p. 70.

46

capital aberto, em que a negociação de seus valores mobiliários “deverá aguardar uma

série de procedimentos contábeis e de avaliação de ativos, ou seja, o levantamento de

informações sobre a empresa, destinados a mensurar o valor do investimento”145.

Desse modo, considerando a diversa condição das empresas de capital fechado,

no ordenamento norte-americano, há uma redução das obrigações dessas sociedades no

que tange à apresentação de contas financeiras, uma vez que elas não se submetem à

publicidade obrigatória. Já na Europa e no Japão, há exigências de varredura das contas

e uma divulgação de suas obrigações de acordo com os padrões mínimos de

contabilidade, de forma a tornar seus dados financeiros disponíveis para a inspeção do

público interessado.146 Assim, nos sistemas europeu e japonês, são requeridas auditorias

profissionais para sociedades economicamente maiores, apesar de possuírem poucos

acionistas (como é o caso das empresas de capital fechado).147

No entendimento de Gerard Hertig e Hideki Kanda, o sistema europeu gera

menos informações para o público do que promete, uma vez que simplifica

requerimentos para pequenas companhias e permite que sociedades de capital fechado

desprezem a publicização de informações a respeito de seus negócios.148 Na visão dos

autores, instituições do próprio mercado de capitais mostram-se mais aptas a produzir a

divulgação de informações para os credores, como ocorre no sistema norte-

americano.149 Segundo os autores, empresas de capital fechado dos Estados Unidos da

America apresentam informações financeiras detalhadas para agências de avaliação de

crédito como meio para angariar recursos financeiros para seus negócios de forma mais

eficiente do que se houvesse uma regulamentação estrita.150

O modelo anglo-saxão (Grã-Bretanha e EUA) visa proteger os acionistas por

meio da exigência de descrição detalhada das finanças da companhia.151 Já a União

Européia (Europa continental) busca resguardar os credores informando-os através da

sinalização confiável dos ativos da companhia e das receitas capazes de cobrir suas

obrigações; nesse sentido, o modelo europeu confere maior segurança sobre a solvência

da sociedade.152

145Idem, p. 72. 146HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 79. 147Idem, ibidem. 148Idem, p. 80. 149Idem, ibidem. 150HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 80. 151Idem, p. 81. 152Idem, ibidem.

47

O padrão anglo-saxão é denominado de “debtor-friendly”, ao menos em

relação a empresas de capital fechado, por ter esse caráter mais voltado para os

acionistas da companhia, fornecendo mais informações sobre a contabilidade da

companhia.153 Já o modelo europeu continental é caracterizado como “creditor-

friendly”, garantindo maior segurança a respeito da solidez e solvência da companhia.154

Apesar dessa divisão em “debtor-friendly” e “creditor-friendly”, os Estados Unidos

oferecem forte proteção aos credores, assim como aos acionistas, por meio da

publicização dos dados financeiros das companhias abertas.155

No sistema brasileiro, entre as informações a serem divulgadas com

transparência e precisão estão as relativas ao capital social. Considerando que o capital

social tutela diversos interesses, entre eles a garantia dos credores sociais, é necessário

que ele corresponda ao patrimônio real da sociedade e seu valor seja divulgado com

transparência.156 Inclusive, para que a sociedade mantenha sua função social (gerando

empregos, pagando tributos, polarizando a economia, etc.), é necessário que preserve

seu capital social.157

Como ensina Alfredo Lamy Filho, o artigo 177, §1º, do Código Penal,

estabelece que condutas que buscam violar o capital social e fraudar balanços ou

prospectos, relatórios e pareceres que comuniquem ao público dados falsos

incompatíveis com a realidade econômica da sociedade são sancionados penalmente.158

Segundo Tullio Ascarelli, “o arquivamento e a publicidade do contrato

encontram a sua justificativa justamente na necessidade de tutelar terceiros, à vista da

constituição de um patrimônio separado”.159

Tratando-se de avaliação dos bens para a formação do capital social, a Lei das

S/A prevê a responsabilidade civil e penal do subscritor e dos avaliadores “pelos danos

causados aos acionistas, subscritores bem como aos terceiros”, como forma de proteger

a integridade do capital social.160

Os vícios de publicidade relativos ao arquivamento e à publicidade dos atos

constitutivos da sociedade são imprescritíveis e só podem ser supridos com a realização

das devidas formalidades; diferentemente dos vícios do contrato, que são prescritíveis e 153Idem, p. 82. 154Idem, ibidem.. 155Idem, ibidem. 156NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. In: Revista Forense. Vol. 363. Ano 98. Set./Out. 2002. p. 170 e 171. 157Idem, p. 171. 158LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Volume 1. São Paulo: Editora Forense, 1a Edição, 2009. p. 198 e 199. 159ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999. p. 519. 160NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. Op. Cit. p. 171.

48

se convalidam com a renovação ou alteração do contrato.161 Antes de cumpridas as

formalidades de publicidade da sociedade, esta não pode responder pelos atos dos

administradores em seu nome, nem mesmo perante terceiros.162 A responsabilidade será

de quem contratou diretamente com estes.163

6.2. Regras que regem o capital legal e os grupos empresariais.

Antes de analisar as regras que controlam o capital social, é de extrema

importância estabelecer algumas noções a respeito de seu conceito que servirão de

parâmetro para todo o desenvolvimento de sua regulamentação.

Segundo Fábio Ulhoa Coelho, o capital social é formado pelas ações e

representado pelo conjunto dos valores mobiliários emitidos pela sociedade.164

O conceito de capital social é bastante complexo, mas, grosso modo, trata-se de

uma referência à contribuição que os sócios dão para a sociedade desenvolver a

atividade econômica dela. Em termos didáticos, a sociedade precisa de recursos para

organizar a empresa e estes devem ser providos, primordialmente, pelos sócios. A

noção de capital social corresponde, em termos gerais, a essa provisão, inicial ou

suplementar.165

Erasmo Valladão explica a analogia de Vivante, que comparou o capital social

a um recipiente, em que o conteúdo que o preenche representa o patrimônio social, que

é a verdadeira garantia dos credores e não o recipiente em si.166

Segundo Alfredo Lamy Filho, o capital social pode ser definido da seguinte

forma: “capital social é a cifra, fixada no estatuto social, do montante das contribuições

prometidas pelos sócios para formação da companhia que a lei submete a regime

cogente, cujo fim é proteger os credores sociais”.167 Assim, na visão do autor, o capital

social tem como função ser garantia dos credores sociais.168 Para Alfredo Lamy Filho, o

capital social “representa um ‘coeficiente de liquidez’, ou uma ‘medida’ no patrimônio

social destinada a garantir prioritariamente os credores”.169

161ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999. p. 514 e 515. 162Idem, p. 515. 163Idem, p. 517. 164COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa.Volume 2. Op. Cit. p. 68. 165COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa.Volume 2. Op. Cit. p. 68 e 69. 166FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. VON ADAMEK, Marcelo Vieira. A proteção aos credores e aos acionistas no aumento de capital. In: Revista do Advogado. Ano XXVIII, nº 96, Março de 2008. p. 34. 167LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 193. 168Idem, ibidem. 169Idem, p. 199.

49

Idéia também defendida por Hertig e Kanda é a importância do capital social

encontrar-se como regulador das finanças da companhia.170 Por meio do capital social, é

possível aferir a vazão/escoamento máximo de capital admissível para que a companhia

atue fora do déficit, bem como o mínimo inicial de capital necessário para o

investimento na empresa (atividade empresarial), assim como o nível de capital que

deve ser conservado durante a vida da companhia para garantir a satisfação de suas

obrigações.171

Segundo Alfredo Lamy Filho, o capital social garante que, nas sociedades de

responsabilidade limitada, o sócio ou acionista não retire o seu investimento antes de

quitadas as dívidas com os credores sociais.172

Para que o regime de bens do capital social seja eficaz, é importante que o

capital social estabelecido no estatuto exista concretamente no patrimônio da sociedade.

Como o capital social pode ser formado por dinheiro em espécie e por bens, estes não

podem ser fictícios nem superavaliados, pois isto induziria em erro os terceiros que

contratam com a sociedade, uma vez que gera distorções na estimativa de riscos com

base no valor de capital social apresentado em relação ao verdadeiro capital social.173

Essas distorções geradas na aferição do capital social composto também por

bens levaram a doutrina estrangeira a exigir que os bens do capital social, para

cumprirem sua função, devem ter valores que possam ser realizados pelos credores em

casos de execução de seus créditos.174

Essa exigência conferia maior rigor na aceitação de bens para a composição do

capital social, bem como para a avaliação desses bens.175 O rigor quanto aos bens vem

sendo questionado a partir do conceito de capital social. Segundo Garrido de Palma,

Portale e Olivieri, “o capital passaria, assim, a ser entendido como ‘um piso de

seriedade’, uma ‘caução qualificada’ no funcionamento da sociedade, de forma a criar

uma ‘zona de segurança’ entre a crise eventual e a insolvência da empresa”.176

A avaliação dos bens que concorrem para a composição do capital social é de

competência privativa da assembleia geral da companhia.177 Para evitar abusos, a

avaliação de tais bens é feita por peritos selecionados pelos subscritores e acionistas,

170HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 83. 171Idem, ibidem. 172LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 194. 173LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 202. 174Idem, ibidem. 175Idem, ibidem. 176Idem, p. 203. 177Idem, p. 206.

50

assim, estabelece-se responsabilidade civil e penal tanto do subscritor quanto do

perito.178 A Lei das Sociedades Anônimas determina que o regramento da subscrição

visa tanto proteger os acionistas quanto garantir a realidade do capital social.179 Assim,

a ausência de publicidade nesses atos configura crime de declaração falsa em prospecto

da sociedade (artigo 177 do Código Penal).180

O subscritor ou o acionista que contribuir para o capital social com bens será

responsabilizado da mesma forma que um vendedor no que tange à evicção de bens

incorpóreos.181 Assim, o artigo 10 da Lei das Sociedades Anônimas busca garantir o

interesse dos credores sociais por meio da realidade do capital social.182 Os credores

sociais, singularmente, não poderão requerer dos acionistas as dívidas de subscrição do

capital social, já o administrador judicial poderá em caso de falência.183

No Brasil, a Lei das Sociedades Anônimas estatui o capital social como

garantia aos credores, considerando que atende melhor ao interesse destes, uma vez que

o capital social é mais eficaz para esse fim que apenas a responsabilização dos

administradores.184

Segundo Alfredo Lamy Filho, a Lei das Sociedades Anônimas

“mantém, na plenitude, a função do capital social, de garantir os credores da companhia, conciliando a responsabilidade limitada dos acionistas (indispensável para que se possam associar, na mesma empresa, centenas ou milhares de sócios) com a proteção ao crédito, necessária ao funcionamento do sistema econômico.”185

Assim, na visão do autor, a posição de Modesto Carvalhosa de que o capital

social, após ser declarado, passa a ter valor apenas nominal e, portanto, não serve como

garantia aos credores, não procede.186

No sistema norte-americano, o capital social não é visto como instrumento de

garantia aos credores sociais, por considerarem o capital social um instituto de conceito

complexo e confuso.187 Segundo o Model Business Corporation Act § 6.40, a garantia

dos credores deve ser fixada na distribuição de benefícios ou dividendos aos acionistas,

uma vez que só podem ser distribuídos tais benefícios se o teste de solvência for

178Idem, p. 206. 179Idem, p. 207. 180Idem, ibidem. 181Idem, p. 209. 182Idem, ibidem. 183CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 7. 184LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 212. 185Idem, ibidem. 186Idem, p. 213. 187Idem, p. 209.

51

aprovado. Isto significa que a companhia deve ser capaz de pagar seus débitos nos

prazos de vencimento, ou seja, ativo deve ser suficiente para arcar com o passivo.

Mesmo este modelo norte-americano não é adotado por todos os estados americanos.188

Na visão de Rubens Requião, apoiada pelos ensinamentos de Bayless Maning,

o capital social é imprestável como garantia de credores, e estes devem buscar outros

meios de garantia, as razões para tanto seriam:

a) a cifra que traduz, num balança, o lucro, é fruto de um sem-número de prévias decisões contábeis, que, se houver interesse, serão facilmente fraudadas; b) os credores não são ouvidos sobre as decisões de alterar a cifra do capital social, e esta é sempre arbitrária e irrelevante; c) não há nenhuma lógica em tomar-se um numero qualquer (o capital) e fazê-lo de medida para distribuição de dividendos e bonificações a acionistas; d) o sistema contábil não leva em conta a dimensão tempo, e não distingue entre um crédito a realizar-se em 20 anos e o realizável na próxima semana; e) uma contabilidade que pretendesse resolver esses problemas cairia em debates conceituais à pior maneira dos teólogos medievais (...).189

Segundo Eilís Ferran, o capital social ou capital legal foi orientado para a

proteção dos credores sociais contra riscos envolvidos pela responsabilidade limitada

dos membros da sociedade, noção esta que orientou a elaboração de políticas

regulatórias na Europa civil e common Law até recentemente.190

Eilís Ferran afirma que regras sobre o capital social proporcionam transações

sem custos ou até custos reduzidos.191 Considerando que credores sofisticados podem se

proteger contratualmente e a Segunda Diretiva de Direito Societário da União Européia

reproduz esse mecanismo de proteção contratual, não há razão para que se vejam

benefícios nas transações que obstruem custos.192 Assim, na visão de Eilís Ferran, o

debate deve voltar-se para os credores fracos e os involuntários para os quais a proteção

meramente contratual não é suficiente por conta de seu reduzido poder de barganha.193

As medidas da Segunda Diretiva de Direito Societário tomadas para regular a

distribuição e redução de capital mostram-se, em um primeiro momento, como

adequadas para garantir os credores coletivamente, mas algumas características das

normas mostram-se ineficazes para cumprir com tal propósito.194 Primeiramente, regras

de capital legal que restringem a distribuição de dividendos para acionistas e restringem

188Idem, p. 210. 189REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 2º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 28a Edição, 2011. p. 86. 190FERRAN, Eilís. Book Review. Legal Capital in Europe by Marcus Lutter. Berlin: De Gruyter Recht, 2006. In: Journal of Corporate Law Studies. October, 2007. p. 357. 191FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 192Idem, ibidem. 193Idem, ibidem. 194Idem, ibidem.

52

a redução do capital social não são capazes de proteger os credores sociais, uma vez

que informações sobre o balanço patrimonial da sociedade que sustentam tais credores

possuem pouca relação com a verdadeira situação financeira da companhia.195 Tais

normas não protegem os credores contra perdas que possam ocorrer de forma ordinária

durante o curso dos negócios da sociedade.196

Então, Eilís Ferran mostra que, recentemente, a doutrina inglesa vem

crescendo no sentido contrário a essa visão sobre o capital social como garantia por

excelência dos credores sociais, e a Segunda Diretiva de Direito Empresarial vem

perdendo brilho.197

Porém, o próprio Rubens Requião admite que, na Lei das S/A, venceu a tese da

intangibilidade do capital social, inclusive considerando-o como um direito dos credores

sociais.198

6.2.1. Limitação à distribuição e redução do capital social.

Nos diversos ordenamentos, as leis que regulam as sociedades anônimas

limitam a distribuição de capital na forma de dividendos e a recompra de ações (share

repurchases), como forma de evitar que os acionistas diluam o conjunto de ativos da

companhia que deveriam se vincular aos débitos dessa sociedade.199 Um exemplo de

regulação nesse sentido é uma regra que proíba o pagamento de dividendos que possam

diminuir o capital legal da companhia.200

Como garantia aos credores sociais e para cumprir suas funções, o capital

social segue os seguintes princípios: unicidade (não pode ser dividido entre as filiais e

sucursais, é uma garantia de unidade para os credores), fixidez (possui valor fixo e, por

isso, não pode ser reduzido, protegendo assim os credores contra deliberações dos

acionistas no sentido de reduzi-lo), irrevogabilidade (não pode ser desconstituído o

capital social até que todos os credores sejam devidamente pagos, em caso de

liquidação da sociedade201), realidade (correspondência entre o capital subscrito, o valor

195FERRAN, Eilís. The Place for Creditor Protection on the Agenda for Modernisation of Company Law in the European Union. Op. Cit. 196Idem, ibidem. 197FERRAN, Eilís. Book Review. Legal Capital in Europe by Marcus Lutter. Op. Cit. p. 357. 198REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Op. Cit. p. 86. 199HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 200Idem, ibidem. 201Ver artigos 206 a 219 da Lei das Sociedades Anônimas.

53

real das prestações a que o sócio se obrigou e a cifra), intangibilidade (como garantia

dos credores, o capital deve permanecer intangível até que estes sejam pagos).202

Na visão de Erasmo Valladão França, uma garantia legal é que o capital social

será intangível, o que gera a necessidade do capital integralizado ser utilizado na

atividade da sociedade.203 Estabelece a lei, inclusive, que os dividendos somente

poderão ser pagos em situação de lucro.204

Apesar de todas essas garantias, Erasmo Valladão França e Marcelo Vieira

Von Adamek fazem a seguinte observação:

Evidentemente, pode ocorrer que o patrimônio social, em função de sucessivos prejuízos da companhia, tenha se tornado negativo, nada restando para os credores. Mas isso é da regra do jogo. O que a lei não permite é que, sem que haja lucro (sem que os grãos excedam o “recipiente”), parcelas do patrimônio social sejam distribuídas aos acionistas antes da liquidação da sociedade, sem o prévio pagamento dos credores sociais.205

No que se refere a esta tese de que os credores sociais devem participar da

socialização do risco do insucesso da atividade empresarial, verifica-se que este

entendimento não pode ser aplicado no que se refere aos trabalhadores da sociedade

pelo simples fato de que o artigo 2º, caput, da CLT não admite tal socialização por

conta inclusive do princípio da inalterabilidade contratual lesiva.

(...) este ramo jurídico especializado coloca sob ônus do empregador os riscos do empreendimento (art. 2º, caput, CLT), independentemente do insucesso que possa se abater sobre este. As obrigações trabalhistas empresariais preservam-se intocadas ainda que a atividade econômica tenha sofrido revezes efetivos em virtude de fatos externos à atuação do empregador. Fatores relevantes como a crise econômica geral ou a crise específica de certo segmento, mudanças drásticas na política industrial do Estado ou em sua política cambial – fatores que, obviamente, afetam a atividade da empresa – não são acolhidos como excludentes ou atenuantes da responsabilidade trabalhista do empregador.206

Como ensina Mauricio Godinho Delgado, tal princípio tem previsão

constitucional pela redação do artigo 7º, inciso VI, CF/88, que proíbe modificações

contratuais lesivas ao empregado no curso da relação de emprego, salvo por meio de

negociação coletiva.207

202LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 197 e 198. 203FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. VON ADAMEK, Marcelo Vieira. A proteção aos credores e aos acionistas no aumento de capital. In: Revista do Advogado. Ano XXVIII, nº 96, Março de 2008. p. 35. 204Idem, p. 36. 205Idem, ibidem. 206DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Editora LTr, 9a Edição, 2010. p. 189. 207Idem, p. 383.

54

Retomando o tema da redução do capital social, esta redução será possível,

segundo Rubens Requião, “se houver perda, até o montante dos prejuízos acumulados,

ou se for ele considerado excessivo”, por meio de deliberação da assembleia geral com

prévio parecer do Conselho Fiscal.208

Para o capital social ser reduzido é preciso a aprovação pela assembleia geral,

conforme determina o artigo 173 da Lei das S/A. Por ser decisão de caráter privativo da

assembleia geral, não pode a CVM, nem a Junta Comercial, nem mesmo o Judiciário

questionar o mérito da redução do capital social.209 Mas deve-se lembrar que, na

decisão por reduzir o capital social, é preciso que os direitos dos credores e dos

acionistas minoritários sejam assegurados de forma adequada.210

Segundo Nelson Eizirik, “no caso da redução nominal do capital, procedida

quando há prejuízos acumulados, como medida de saneamento financeiro, os credores

não são afetados, não lhes cabendo manifestar-se sobre a medida”211.

Caso o capital social seja reduzido por determinação legal, os credores não

podem se opor a tal redução e ficam em condição mais vulnerável.212

Outra exceção à necessidade de concordância dos credores sociais no que

tange à redução do capital da companhia, segundo Rubens Requião, dar-se-á

“nos casos em que o acionista tiver direito de se retirar da sociedade como dissidente ou quando for remisso, e quando as suas ações postas à venda, nesses casos, não encontrarem mercado, bem como quando ela decorrer de prejuízos acumulados”.213

Quando se trata do direito de reembolso do acionista que se retira é preciso

considerar também os interesses dos credores, para que estes não sejam prejudicados.214

Essa preocupação se dá principalmente se o acionista que se retira não for substituído

por outro, uma vez que gerará uma redução do capital social.215 É o que busca garantir o

artigo 107, § § 4º e 5º do Decreto Lei 2.627/76, principalmente quando a sociedade está

208REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Op. Cit. p. 98. 209EIZIRIK, Nelson. Incorporação de reserva de capital ao capital social seguida da redução do capital – legitimidade da operação. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Ano XXXVII (Nova Série), Vol. 37, nº 115, jul./setembro -1999. São Paulo: Malheiros Editores. p. 258. 210Idem, p. 259. 211Idem, p. 260. 212CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 106. 213REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Op. Cit. p. 99. 214ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 1999. p.579. 215Idem, ibidem.

55

em situação de falência, ao garantir “ação revocatória216 para a restituição do reembolso

no interesse dos credores sociais anteriores à publicação da redução do capital”217.

Em caso de dissolução parcial, deve-se verificar se os remanescentes

viabilizarão um mínimo de atividade da companhia, mesmo que em proporções

reduzidas ao que ocorria em plena atividade.218 A dissolução total pode se dar por

motivação fraudulenta, por meio da dissolução, liquidação e extinção em ato único219.

Nestes casos de dissolução total, buscam-se evitar a decretação de falência, a

reorganização e a responsabilidade de seus sócios e administradores.220 A dissolução é

um mecanismo de proteção do interesse dos sócios.221 Já os credores sociais serão os

principais prejudicados, especialmente se estiverem em litígio judicial com a

companhia, uma vez que devem aguardar o trânsito em julgado da sentença para

obterem sua satisfação por meio da execução.222

Porém, quando ocorre redução real do capital social, atingindo assim o

patrimônio social, o direito dos credores deve ser tutelado uma vez que os acionistas

recebem de volta parte dos valores das ações pagas.223Como desdobramento da

intangibilidade do capital social na forma de garantia aos credores, o artigo 174 da Lei

das Sociedades Anônimas exige que os credores concordem com a redução do capital

social para que este possa sofrer diminuição, como condição subordinativa.224

Nesses casos, os credores sociais podem se opor à redução do capital social,

conforme prevê o artigo 174 da Lei das S/A. Os credores passam a ter poder de

intervenção sobre as deliberações da companhia, opondo-se à redução do capital social

em 60 dias a contar da publicação da ata da Assembleia tratando do assunto, contanto

que seus créditos sejam anteriores a esta publicação e a redução seja facultativa ou

voluntária.225 Em hipótese de manifestação dos credores sociais em sentido contrário à

redução, a ata da assembleia só poderá ser arquivada na Junta Comercial após

comprovação de pagamento dos credores sociais ou o depósito judicial dos valores

216Também denominada de ação pauliana. 217ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Op. Cit. p. 580. 218SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 119. 219Idem, ibidem.. 220Idem, ibidem. 221Idem, ibidem. 222Idem, p. 119 e 120. 223EIZIRIK, Nelson. Incorporação de reserva de capital ao capital social seguida da redução do capital – legitimidade da operação. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Ano XXXVII (Nova Série), Vol. 37, nº 115, jul./setembro -1999. São Paulo: Malheiros Editores. p. 260. 224LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 198. 225NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. Op. Cit. p. 175.

56

devidos.226 Essas exigências legais visam, em última instância, garantir a proteção dos

credores sociais em casos de redução real do capital.

6.2.2. Capital social mínimo

Outra estratégia relativa ao capital social usada como mecanismo de proteção

aos credores sociais é a exigência de um mínimo de capital para criação de uma

companhia (abertura de uma sociedade), correspondente a um valor mínimo que os

sócios deveriam investir para se caracterizar uma companhia.227

Há alguns exemplos quanto a parâmetros de capital mínimo para a

qualificação (caracterização, configuração) de uma sociedade. A União Européia

estabelece que deve haver um investimento inicial de ao menos 25.000 euros, mas cada

país membro pode alterar esse valor para se adequar a sua realidade.228 No Japão, o

capital mínimo varia entre U$ 30.000 a U$ 100.000, a depender do tipo de

companhia.229 Em contrapartida, os EUA não estabelecem qualquer parâmetro mínimo

de capital social para a abertura de uma companhia.230

No sistema europeu, a Segunda Diretiva do Conselho da Comunidade Européia

mantém a regulação do capital social. Na prática, muitas sociedades fixam um capital

mínimo, incompatível com o objeto social da companhia, e os sócios passam a fornecer

recursos para esta na forma de empréstimos, pois, assim, a companhia distribuirá menos

dividendos e, nos casos de falência, tais sócios concorrem com os outros credores

sociais nas mesmas condições.231 Se for verificada fraude no estabelecimento desse

capital mínimo em relação ao objeto social, pode haver correção judicial.232

No ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 5º da Lei das Sociedades

Anônimas (Lei 6.404/76) estabelece que o valor do capital social será determinado pelo

estatuto da companhia e somente poderá ser alterado com a observância desta Lei e do

estatuto social. Assim, nosso ordenamento não estabelece um capital social mínimo

para a qualificação da companhia.

226EIZIRIK, Nelson. Incorporação de reserva de capital ao capital social seguida da redução do capital – legitimidade da operação. Op. Cit. p. 260. 227HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 228HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 229HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. In: The Anatomy of Corporate Law. A comparative and functional approach. Oxford, UK: Oxford University Press, 2004, p. 84. 230Idem, ibidem. 231LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Op. Cit. p. 211. 232Idem, ibidem.

57

Como bem explica Alfredo Lamy Filho, essa orientação se deu por considerar

que atuais grandes companhias só obtiveram crescimento porque quando pequenas

conseguiram através da forma anônima captar recursos para sua expansão.233 A única

exigência do ordenamento jurídico brasileiro é que o estatuto da sociedade estabeleça o

valor de seu capital social em moeda corrente nacional, formado por quantias em

dinheiro ou bens a serem avaliados e sendo de responsabilidade dos subscritores, como

forma de garantir a realidade do capital inclusive para os credores.234

Na visão de Modesto Carvalhosa, a não limitação de um capital social mínimo

para a constituição da sociedade anônima acaba por facilitar o surgimento de

companhias de fachada.235 As companhias abertas possuem seu capital social mínimo

determinado pela Comissão de Valores Mobiliários como requisito para que coloquem

seus valores mobiliários no mercado.236

Apesar desses parâmetros, permanece ainda incerto quanto de proteção essa

regra pode garantir aos credores, uma vez que o capital inicial de qualquer companhia já

terá se esgotado quando esta se encontrar em processo de falência.237

6.2.3. Capital de manutenção

Outro aspecto referente ao capital social refere-se às leis que governam a

redução do capital em companhias já estabelecidas, por meio do controle de um “capital

de manutenção”, como denominado na Europa, ou “capital imutável”, como no

Japão.238 Na Alemanha e na Suíça, há uma exigência para as companhias pequenas que

realizem reuniões com os acionistas quando o capital social estiver erodindo, com o

objetivo de avisar aos credores sobre a crise financeira; bem como há uma

determinação de que seja requerido imediatamente o arquivamento de uma petição de

insolvência nessas situações de desfazimento do capital social.239

Os benefícios que se vislumbram nesse modelo é o fato de a reunião prévia

favorecer os credores na medida em que possibilita um aporte maior de ativos a serem

divididos entre credores e acionistas.240 De semelhante modo, o arquivamento do pedido

233Idem, p. 198. 234BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. São Paulo: Editora Atlas S.A., 13a Edição, 2001. p. 101. 235CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 102. 236CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 102 e 103. 237HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 84. 238Idem, p. 85. 239Idem, ibidem. 240Idem, ibidem.

58

de insolvência beneficiaria os credores na medida em que canalizaria o capital social

para satisfação de seus interesses.241

Entretanto, Gerard Hertig e Hideki Kanda demonstram que, na prática, quando

uma companhia está em crise financeira, o capital social já vem se exaurindo há tempo

e o processo de insolvência acompanha esse exaurimento, não restando tempo para

avisos ou encontros entre acionistas.242

O ponto positivo da manutenção de um capital social durante a vida da

companhia consiste na facilitação da abertura de um processo por credores contra a

sociedade por não ter cumprido seu dever, marcando os pontos em que os acionistas

controladores deverão liquidar ou reestruturar as sociedades em dificuldade

financeira.243

A manutenção do capital social garante a estabilidade da companhia bem como

a possibilidade de cumprimento de suas obrigações.244 O capital social representa,

assim, a medida do equilíbrio econômico-financeiro da companhia para a concretização

de seus objetivos empresariais, o equilíbrio entre os recursos próprios e os de terceiros

devidos pela companhia aos credores sociais.245 Essa medida permite que se conheça a

elasticidade operacional da companhia, possibilitando um juízo de conveniência

econômica em se contratar com a sociedade.246

A Lei das S/A estabelece algumas normas para a manutenção do capital social

durante a vida da sociedade, como a constituição da reserva legal, os dispositivos sobre

a redução do capital social, a exigência da veracidade e da publicidade dos balanços.247

Toda essa regulação sobre o capital social mostra-se necessária, tendo em vista que seu

montante indica a porção de responsabilidade de cada acionista, bem como serve de

parâmetro de cálculo das perdas e lucros, assim como direitos e deveres dos

acionistas.248

Pela análise feita, verifica-se que a solução mais efetiva para a proteção do

capital social como meio garantidor dos credores sociais é a combinação entre as regras

de capital social mínimo para a constituição da sociedade e regras de manutenção deste

capital durante a vida social. Assim, garante-se que a função do capital social seja

241Idem, ibidem. 242Idem, ibidem. 243HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 85. 244CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 107. 245Idem, ibidem. 246Idem, ibidem. 247BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. São Paulo: Editora Atlas S.A., 13a Edição, 2001. p. 97. 248Idem, ibidem.

59

cumprida de forma efetiva e adequada. Uma vez que exigir apenas um capital mínimo

não é garantia de sua manutenção durante a vida da sociedade, e regular um percentual

do capital inicial que deva ser mantido não garante, por si só, que ele será suficiente

para a satisfação dos credores em uma situação futura.

6.2.4. O problema da subcapitalização

Uma questão importante na análise sobre o capital social como garantia dos

credores sociais é a subcapitalização. A subcapitalização é o fenômeno que se constata

quando a sociedade não possui capital suficiente para a realização de suas atividades.

Essa insuficiência de capital pode ser “invocada para excluir a limitação da

responsabilidade dos acionistas pelas dívidas da sociedade”, minando inclusive o

princípio da separação patrimonial em relação ao controlador.249

A subcapitalização é verificada quando o capital social for proporcionalmente

inferior aos valores de dívidas da companhia.250 Assim, a companhia estará

subcapitalizada quando as dívidas para com os sócios forem em nível maior que o

volume de capital social. O fenômeno da subcapitalização pode ocorrer no momento da

constituição da sociedade ou posteriormente. Para cada momento há consequências

diversas como bem explica André Martins de Andrade e Vanessa Soares:

Na originária, todos os sócios serão responsáveis perante terceiros, independentemente da proporção de capital subscrita, já que tinham na oportunidade condições de velar pela adequada capitalização. Contudo, na superveniente, a responsabilidade alcança apenas os sócios que tinham a possibilidade jurídica ou fática de dissolver a sociedade.251

No caso analisado pelos autores, percebe-se que se está tratando de

sociedades limitadas, nas quais os sócios respondem limitadamente pelo valor total do

capital social subscrito, mas não integralizado de forma solidária, porém, essa

responsabilidade nesta situação mostra-se ainda mais restrita se o momento da

subcapitalização for posterior à constituição da sociedade.

249SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. In: Revista da EMERJ. Vol. 4, nº 14, 2001. p. 74. 250ANDRADE, André Martins de. SOARES, Vanessa Fernanda. O regime jurídico da subcapitalização. In: Revista Fórum de Direito Tributário RFDT. Vol. 8, nº 46, jul./ago. 2010. Belo Horizonte: Editora Fórum. p. 31. 251Idem, ibidem.

60

Questão importante colocada por Fábio Ulhoa Coelho252 refere-se à

hipótese em que, embora a companhia precise de recursos para não se subcapitalizar, o

sócio, em vez de aumentar o capital social, faz um empréstimo à companhia, agravando

sua situação. Nesse caso, poder-se-ia indagar sobre a obrigação do sócio de capitalizar a

companhia, principalmente se a sociedade entrar em processo de falência, podendo-se

inclusive garantir a preferência dos créditos dos demais credores em detrimento dos

créditos dos acionistas.253

O uso de empréstimos por parte dos sócios como mecanismo de financiamento

da sociedade é motivado por uma menor tributação quanto aos juros em relação à carga

tributária sobre os dividendos.254 Alguns doutrinadores afirmam que por conta desse

mecanismo ser desfavorável à arrecadação tributária foram criados limites legais à

subcapitalização, como a Lei 9.430/96.255

O grande problema da subcapitalização gerada pelo investimento por meio de

empréstimo é que favorece o mecanismo de implantar um capital ínfimo, garantindo o

aporte de recursos que a sociedade necessita por meio de empréstimos fornecidos pelos

sócios. Se se considerar que o capital social é uma garantia para os credores sociais, a

subcapitalização, nesses moldes, gera uma redução dessa garantia que é agravada

inclusive pelo fato de que os sócios que financiam a sociedade passam também a

concorrer com esses credores, uma vez que ao emprestarem capital também se tornam

credores sociais.

No sistema brasileiro, o ordenamento não admite a responsabilização dos

sócios pela subcapitalização da companhia, inclusive não considera abuso os contratos

de mútuo entre sócio e sociedade, permitindo que o sócio forneça capital à companhia

por meio diverso da integralização de capital.256

Assim, segundo Fábio Ulhoa Coelho, “o acionista não tem, em outros termos,

dever de capitalizar a sociedade anônima, nem mesmo na hipótese de o patrimônio

social ser insuficiente ao atendimento de indenizações por atos ilícitos”257. Porém, os

créditos dos sócios serão subquirografários quando a companhia estiver em processo de

falência.258

252Mesma posição é assinalada por Joaquim Santos. Ver: SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. Op. Cit. p. 76. 253COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa.Op. Cit. p. 198. 254ANDRADE, André Martins de. SOARES, Vanessa Fernanda. O regime jurídico da subcapitalização.Op. Cit. p. 34. 255Idem, ibidem. 256COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de Empresa.Op. Cit. p. 199 e 200. 257Idem, p. 200. 258Idem, ibidem.

61

6.2.5. Grupos empresariais

Outra questão importante relativa à proteção dos credores sociais refere-se à

sua relação com grupos empresariais ou grupos de sociedades259.

Os grupos de companhias buscam formas jurídicas para se adequarem à

realidade econômica e obterem maior crescimento econômico. Essa busca acaba se

refletindo também no âmbito tributário ora na figura da elisão fiscal (que busca utilizar

uma forma jurídica com menor carga tributária, mas de forma lícita) ora na face da

evasão fiscal.260

O grupo de sociedades formal ou contratual estabelece-se por meio de um

contrato de denominação que empodera uma companhia-mãe a instruir suas

subsidiárias a seguir os interesses do grupo em detrimento de seus interesses

particulares.261 Em compensação, a companhia-mãe deve indenizar as subsidiárias por

qualquer perda resultante de atuação no interesse do grupo.262

Entretanto, se tal mecanismo de compensação falha, no modelo alemão, os

credores sociais poderão acionar subsidiariamente a companhia-mãe; se esta alternativa

não tiver sucesso, o credor pode ainda processar os administradores da companhia-mãe

pelos danos gerados, mesmo em grupos de sociedades de fato (grupos não formais).263

No sistema alemão, até mesmo empresas de capital fechado que atuem por meio de

grupos incluem-se nesse sistema de responsabilidade por danos.264

De acordo com o modelo francês de grupo de sociedades, o controlador do

grupo não precisa pagar compensação para instruir um membro (companhia

subsidiária) quando este agir no interesse do grupo, ao invés de no seu próprio interesse,

desde que o grupo esteja numa situação estável, prosseguindo uma política de negócios

coerente e distribuindo equitativamente os gastos e receitas do grupo entre seus

membros.265

259“Grupo de Sociedade. Indica, na técnica societária, a convenção, estabelecida entre a sociedade controladora, pela qual se obrigam a combinar recursos ou esforços para a realização dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou empreendimentos comuns (Lei nº 6.404/76, art. 265)”. In: DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 28a Edição, 2009. p. 668. 260MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 320. 261HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 86. 262Idem, ibidem. 263Idem, ibidem. 264Idem, ibidem. 265Idem, ibidem.

62

Como, na prática, as exigências do modelo germânico (compensação pela

companhia-mãe às companhias subsidiárias que geraram danos ao agir no interesse do

grupo) só são averiguadas quando o grupo está em estado de insolvência, momento

tardio para que a companhia-mãe possa tomar qualquer medida reparadora dos danos, o

modelo francês vem ganhando maior credibilidade e liderando um padrão europeu.266

As exigências de mínimo de capital social, capital de manutenção e articulação

de grupo de sociedades não são reguladas nos EUA.267 Em contrapartida, na Europa,

tais regras ainda encontram espaço.268

No sistema brasileiro, segundo Waldirio Bulgarelli, aplicam-se à sociedade

controladora as normas cabíveis ao acionista controlador, que estão presentes nos

artigos 116 e 117 da Lei das S/A por expressa referência ao artigo 246 da mesma lei.269

Já em relação aos administradores das sociedades coligadas, controladas ou

controladoras, cabe a estes agir no interesse da empresa e não em favor de interesses de

grupos internos.270 Assim, busca-se evitar jogos de empréstimos e cessões que esvaziem

uma das sociedades do grupo prejudicando seus credores, uma vez que os credores não

podem acionar os membros do grupo de forma solidária, pois, teoricamente, cada

sociedade mantém sua autonomia patrimonial e como companhia.271

Nesses grupos, o controle sobre o controlador é mais intenso, visando o

cumprimento da função social do comando empresarial, para evitar o abuso de poder e

o desvio de finalidade. A esse respeito, Frederico Simionato afirma que:

Com efeito, o art. 117 da Lei 6.404/76 determina a responsabilidade do controlador quando promover a liquidação, fusão ou cisão da companhia próspera, ou a transformação, incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o objetivo de auferir, para si ou para outrem, vantagem em prejuízo dos acionistas, dos trabalhadores e dos investidores. Essa hipótese pode ocorrer nos grupos de sociedade, quando das reorganizações societárias.272

Assim, por meio da responsabilização do controlador em holdings verifica-se

um mecanismo de proteção aos credores sociais, quando estes sofrem danos oriundos da

atuação do controlador no sentido de buscar interesse próprio ou alheio que venha a

prejudicar tanto acionistas como credores sociais. Como ensina Frederico Simionato, o

fundamento dos grupos de sociedade está na noção de controle. 266Idem, p. 87. 267Idem, ibidem. 268Idem, ibidem. 269BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. São Paulo: Editora Atlas S.A., 13a Edição, 2001. p. 301. 270Idem, p. 302. 271Idem, ibidem. 272SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 55.

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Estabelece-se na holding o esquema de divisão de poderes que deve ser seguido nas sociedades filiadas. Nesse sistema os administradores subordinados têm conhecimento do poderio dos comandantes e seguem as ordens que lhe são transmitidas com presteza, mantendo-se os vínculos de subordinação e de poder.273

Em holdings, caso o controlador não forneça o devido capital à sociedade

controlada, gerando sua subcapitalização, pode haver desconsideração da personalidade

jurídica para se atingir o controlador e responsabilizá-lo por seus atos que causaram

danos a credores sociais.274

No caso de grupos de subordinação (nos quais há uma sociedade que comanda

os outros membros, subordinando estes às suas decisões), a controladora poderá ser

responsável por obrigações da controlada em razão de atos ilícitos próprios e até

desconsideração da personalidade jurídica.275

O controle do controlador mostra-se importante em grupos de sociedade de

fato e de direito. Primeiramente, é importante colocar que a própria Lei 6.404/76

estabelece que nos grupos de sociedades cada companhia deve preservar sua

personalidade jurídica, bem como seu patrimônio (artigo 266).276 Assim, segundo

Frederico Simionato, a lei estaria buscando evitar que a controladora seja

responsabilizada pelas dívidas da controlada, negligenciando os mecanismos de

dominação dentro dos grupos.277

Entretanto, os administradores das companhias subordinadas devem seguir as

orientações gerais determinadas pelos administradores do grupo278, o que leva ao

questionamento do dever de se responsabilizar a companhia-mãe ou os dirigentes do

grupo pelos danos ou prejuízos que as subsidiárias gerarem para seus credores no estrito

cumprimento das orientações do grupo. Como solução a este questionamento, poder-se-

ia afirmar que os administradores das sociedades filiadas só devem observar os

preceitos estabelecidos pela companhia controladora que sejam compatíveis com a Lei e

com seu estatuto, como afirma Frederico Simionato279. Nesse sentido, o autor faz as

seguintes considerações:

273SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Op. Cit. p. 55. 274SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. In: Revista da EMERJ. Vol. 4, nº 14, 2001. p. 77. 275TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2a Edição atualizada. p. 469 e 470. 276SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Op. Cit. p. 56. 277Idem, ibidem. 278SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Op. Cit.p. 56. 279Idem, ibidem.

64

O art. 245 estabelece que os administradores não podem, em prejuízo da companhia, favorecer sociedade coligada, controladora ou controlada, cumprindo-lhes zelar para que as operações entre as sociedades observem condições comutativas (igualdade), ou com pagamento compensatório adequado, respondendo por atos praticados em contrário.280

Considerando que o grupo de sociedades é uma sociedade de sociedades, no

entendimento de Frederico Simionato, a responsabilidade dos controladores deveria ser

alterada, alterando-se a noção de personalidade jurídica para esta ser entendida como

técnica empresarial, ao invés de ser simplesmente uma limitação patrimonial.281 Esta

solução mostra-se adequada, uma vez que é um descompasso ter um comando único

para o grupo e responsabilidades não compartilhadas.282

Em grupos de companhias, a manutenção da responsabilidade limitada de

membro do grupo que desconsidera a tutela aos direitos dos minoritários e credores

sociais contribui para a concentração econômica e torna ineficaz a proteção aos

credores e minoritários em grupos de fato.283 O favorecimento à concentração

econômica acaba tornando o mercado e os consumidores mais vulneráveis à vontade

dos grupos.

Na visão de Eduardo Secchi Munhoz, essa abertura à concentração oferecida

pelo direito societário exige que o direito concorrencial seja mais rigoroso no que toca à

proteção do mercado.284 O autor afirma que a questão não é inibir a formação de grupos

de companhias, mas garantir que sua constituição não impeça a tutela de outros

interesses afetados pelo desenvolvimento empresarial, uma vez que a desconsideração

dos interesses dos minoritários e dos credores acaba por prejudicar o próprio

crescimento da empresa, pois gera custos que não compensam os benefícios

produzidos.285 Assim, o direito concorrencial permite que se efetive a livre concorrência

garantida na Constituição.286

No âmbito justrabalhista, o grupo econômico é definido como “figura

resultante da vinculação justrabalhista que se forma entre dois ou mais entes

favorecidos direta ou indiretamente pelo mesmo contrato de trabalho, em decorrência de

existir entre esses entes laços de direção ou coordenação em face de atividades

280Idem, ibidem. 281Idem, p. 57. 282Idem, ibidem. 283MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 316 e 317. 284MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades.Op. Cit. p. 317. 285Idem, ibidem. 286Idem, p. 318.

65

industriais, comerciais, financeiras, agroindustriais ou de qualquer outra natureza

econômica”.287 Também encontra seu conceito lançado na Lei do Trabalho Rural (Lei

5.889/73, art. 3º, § 2º) e na CLT (art. 2º, § 2º).288

A tipificação de grupo econômico surgiu com o objetivo de “ampliar as

possibilidades de garantia do crédito trabalhista, impondo responsabilidade plena por

tais créditos às distintas empresas componentes do mesmo grupo econômico”289. Assim,

os membros do grupo possuem responsabilidade solidária por força do artigo 2º, § 2º da

CLT, artigo 3º, § 2º da Lei 5.889/73 e artigo 904 do Código Civil.290

Os referidos dispositivos legais permitem que o credor-empregado exija de

todos os membros do grupo ou de qualquer deles o pagamento por inteiro de seu

crédito, ainda que tenha trabalhado apenas para uma das pessoas jurídicas do grupo.291

A solidariedade gerou, assim, uma ampliação das garantias por créditos trabalhistas do

empregado.292

No Brasil, no que se refere a contratos entre empresas (companhias)

terceirizadas que prestam atividades em um grupo, se seus empregados, como credores,

sofrem danos com a inadimplência, adota-se a tese do grupo econômico, segundo a qual

as empresas são interdependentes e possuem responsabilidade solidária perante seus

trabalhadores, uma vez que estes podem prestar serviços a todas as empresas

pertencentes ao grupo.293

No que tange aos prejuízos e danos causados ao consumidor, a

responsabilidade do grupo será subsidiária em relação à sociedade membro que causar

o prejuízo, nos termos do artigo 28, § 2º, da Lei 8.078/90, segundo o ordenamento

jurídico brasileiro.294

Ainda se tratando de reunião de sociedades, o consórcio é regulado pelo

contrato de consórcio inclusive no que se refere às obrigações comuns dos integrantes.

Entretanto, a Lei 8.078/90, em seu artigo 28, § 3º, determina que a responsabilidade dos

integrantes do consórcio seja solidária pelos danos gerados ao consumidor.295 E as

sociedades coligadas respondem por culpa.

287DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 385. 288Idem, ibidem. 289Idem, ibidem. 290Idem, p. 386. 291Idem, ibidem. 292Idem, p. 390. 293NEVES DELGADO, Gabriela. Terceirização: paradoxo do Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Editora LTr, 2003. p. 121. 294TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. p. 470. 295Idem, p. 471.

66

Outro ponto relativo aos grupos de companhias é a hipótese de mútuo entre os

membros do grupo. Nesse caso, uma companhia membro do grupo pode dar garantias a

outra, mas a “responsabilidade pelo mútuo, ainda que a garantia provenha de outras

sociedades, será sempre da companhia emissora” de debêntures.296 Também a respeito

de garantias oferecidas por outra companhia, nada impede que uma companhia emissora

dê seu ativo como garantia geral a outra companhia, uma vez que os credores da

primeira terão preferência.297

Questiona-se a razão pela qual não se abandonam as regras que regulam a

atuação dos grupos de companhias por serem tão custosas.298 Alguns sugerem que tais

regras permanecem, pois beneficiam interesses de grupos poderosos, como os bancos,

que são os principais credores, bem como os interesses dos administradores, que

poderão agir com menor pressão, pois possuirão um amplo “amortecimento” para sua

atuação, uma verdadeira garantia de proteção em possíveis situações de crise.299

Na explicação de Hideki Kanda e Gerard Hertig, tais regras estratégicas

permanecem, pois são adequadas para um sistema financeiro conservador e centrado

nos bancos.300 As regras analisadas neste tópico sobre o capital social impedem que

companhias européias em dificuldades que desejam trocar de financiamento bancário

consigam obter condições iguais nos mercados compartilhados.301

7. Deveres fiduciários – estratégia de normas.

O dever de fidúcia surge entre parceiros profissionais da companhia, bem como

entre estes e os credores sociais. Os deveres fiduciários cabem a diretores e conselheiros

da companhia, bem como a auditores externos, acionistas controladores (principalmente

se participam ativamente da gestão da companhia) e credores favorecidos.302 Assim,

descumprindo com os deveres fiduciários, caber-lhes-á a devida responsabilização.

7.1. A Responsabilidade dos fundadores e dos primeiros administradores.

296CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. Op. Cit. p. 703. 297Idem, p. 704. 298HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 299Idem, ibidem. 300Idem, ibidem. 301HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 302Idem, ibidem.

67

Em sua fase de constituição, a sociedade empresária não pode ser

responsabilizada, pois ainda não possui uma personalidade jurídica própria e acabada.303

Assim, apenas seus sócios e fundadores podem responder por seus próprios atos.304

Segundo Waldirio Bulgarelli, a Lei das Sociedades Anônimas estabelece a

responsabilidade dos fundadores no seu artigo 92, juntamente com a responsabilidade

das instituições financeiras que participam na fundação, respondendo pelos atos

anteriores à constituição da companhia.305 Tal responsabilidade não pode ser repassada

à companhia após a sua constituição, salvo pelos atos dos primeiros administradores

quando houver atraso no cumprimento de formalidades da constituição (Lei das S/A,

artigo 99, parágrafo único).306 Os primeiros administradores devem receber dos

fundadores toda a documentação relativa à fundação da companhia, e serão

solidariamente responsáveis perante a sociedade pela demora no cumprimento das

formalidades complementares relativas à sua constituição.307

7.2. Responsabilidade do administrador.

Todos os ordenamentos jurídicos, de certo modo, impõem o risco de

responsabilidade pessoal do administrador da companhia em certas circunstâncias,

como quando a companhia está em estado de insolvência e o risco do oportunismo do

acionista é alto, inclusive no sistema norte-americano. 308

A responsabilidade dos diretores, que serve inclusive como meio de tutelar o

capital social, funciona como mais uma garantia aos credores na sociedade em que a

responsabilidade dos sócios é limitada.309 O capital social desfalcado reduz as garantias

dos credores sociais; assim, a responsabilidade de diretores em caso de diminuição do

capital social ou da reserva legal, quando houver prejuízo a terceiros, mostra-se como

medida adequada para garantir terceiros e reconstituir o patrimônio social.310

Entretanto, isso não significa que os credores podem amplamente processar o

administrador enquanto a companhia ainda é solvente ou antes desta ingressar com

petição de insolvência.311 Salvo os ordenamentos do Japão e da Alemanha, todos os

303BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. Op. Cit. p. 82. 304Idem, ibidem. 305Idem, p. 83 e 84. 306Idem, p. 84. 307BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. Op. Cit. p. 84. 308HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 309ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Op. Cit. p. 689. 310Idem, ibidem. 311HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 89.

68

demais ordenamentos negam aos credores o direito de processar os administradores de

companhias solventes.312 Na prática, o próprio credor obterá mais sucesso acionando

diretamente a companhia solvente, ao invés de seu administrador.313

Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, o administrador de fato ou “sombra”

deve ter responsabilidade pessoal pelos danos causados aos credores resultantes de

grosseira negligência do Conselho da Companhia ou estrita busca dos interesses dos

acionistas quando a companhia estiver insolvente ou próxima da insolvência.314

A extensão dos benefícios aos credores gerados pela responsabilização do

administrador irá depender das circunstâncias em que se encontrar a companhia.315 No

caso de pequenas companhias, os administradores são os primeiros a perderem seus

bens pessoais e ativos negociais simultaneamente.316 Já grandes companhias,

normalmente, pagam um seguro-responsabilidade para os membros de seu conselho,

incluindo o administrador, protegendo este e garantindo recursos para a satisfação dos

credores lesados por sua atuação.317

Em contrapartida aos ordenamentos que permitem a responsabilização dos

administradores, existem doutrinas que encampam a tese da limitação da

responsabilidade dos administradores. Nos Estados Unidos, por exemplo, muitos

Estados permitem que o administrador seja responsabilizado apenas nos casos em que

houver atuado buscando vantagens pessoais ou tenha agido de má-fé, não se

considerando negligência como motivo suficiente para sua responsabilização pessoal.318

Esse posicionamento reduz indiretamente a proteção aos credores sociais, uma vez que

afeta as reivindicações que a companhia pode fazer após sua insolvência.319

Na França e na Alemanha, os administradores tornam-se negligentes per se ao

não observarem a regra de capital de manutenção, e, portanto, tornam-se

responsáveis.320 Entretanto, na prática, esse modelo tem um menor alcance devido aos

seguintes motivos: 1) não é fácil demonstrar que um conselho falhou ao agir ou que lhe

seria exigível outra conduta no momento em que a companhia perdeu metade de seu

capital social; 2) mesmo que o administrador viole seu dever de agir, estabelecer a

relação entre sua atuação e o dano sofrido pelo credor é uma questão complexa; 3) não

312Idem, ibidem. 313Idem, ibidem. 314Idem, p. 88. 315Idem, ibidem. 316HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 88. 317Idem, ibidem. 318Idem, p. 89. 319Idem, p. 90. 320Idem, ibidem.

69

é possível a responsabilização caso a atuação do conselho ou do administrador não

tenha incrementado o risco para a ocorrência de dano ao credor, ou caso o próprio

credor tenha assumido o risco de se relacionar com uma companhia insolvente ou em

processo de insolvência.321

Na Grã-Bretanha, foi desenvolvido o “Company Directors Disqualification Act

of 1986” permitindo que as cortes desqualifiquem (no sentido de não responsabilizar)

administradores de companhias insolventes que provem por eles mesmos que são

“impróprios” para as atividades de futura gestão, independentemente se são

administradores contratuais, de fato ou “sombras”.322 Essa norma inclui a

desqualificação pelo fracasso na participação em problemas contábeis ou envolvimento

em conduta imprudente.323 Porém, essa norma ainda não tem força na Europa

continental.324

Como ensina Ana Frazão, vem crescendo o número de destinatários do dever

de diligência, principalmente por se entender que tal dever inclui o agir informado e

gera a obrigação de afastar ações vantajosas para a sociedade e os acionistas quando tais

medidas provocarem danos desproporcionais a terceiros envolvidos.325

A lei das S/A, em seu artigo 159, § 7º, prevê inclusive a ação de

responsabilidade individual para que estes terceiros possam ser ressarcidos pelos

administradores, com base nas normas de responsabilidade civil extracontratual, tendo

em vista os danos diretos sofridos.326 Uma vez que, se os danos forem sofridos de forma

indireta, a única legitimada para propor ação contra os gestores será a própria

companhia.327

Conforme explica Ana Frazão, o direito brasileiro equipara terceiros aos

acionistas para fins de responsabilidade direta dos gestores que podem causar os

seguintes danos:

“(i) informações e balanços falsos; (ii) recusa ou omissão de prestação de informação e violação dos deveres de publicidade e transparência; (iii) violação da obrigação de distribuição de dividendos ou exclusão total ou parcial de acionistas da referida distribuição; (iv) desrespeito ao direito de preferência na subscrição das ações; (v) omissão de convocação de assembléias ou de acionistas para a assembléia e (vi) vedação de participação de acionista em assembléia.”

328

321Idem, ibidem. 322Idem, p. 91. 323HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 91. 324Idem, ibidem. 325FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 361 e 363. 326Idem, p. 364. 327Idem, ibidem. 328Idem, p. 366 e 367.

70

A manipulação de balanços e a divulgação de informações contábeis falsas

gera o direito de ressarcimento tanto a acionistas como a terceiros que são atingidos por

tais resultados manipulados.329

A proteção de credores sociais vem se mostrando uma questão de relevância,

principalmente quando se trata de insolvência ou insuficiência patrimonial da

sociedade.330 Nesses casos, a responsabilidade pessoal dos gestores mostra-se como

solução para ressarcir os credores sociais que não podem contar com o patrimônio

social para a reparação dos danos sofridos.331

Entretanto, Ana Frazão, amparada na doutrina alemã, coloca que os danos

sofridos pelos credores sociais são indiretos, uma vez que a atingida diretamente é a

companhia. A autora coloca que:

“o prejuízo dos acionistas e dos credores sociais, decorrente da insolvência ou da insuficiência patrimonial, é considerado, pelo menos em princípio, uma conseqüência natural da personalidade jurídica e da sua importante função econômica de socialização parcial do risco empresarial e de redução dos custos de transação”.332

Como já analisado anteriormente, a noção de socialização dos riscos da

atividade econômica não pode ser implantada no que se refere a credores vulneráveis

por conta do próprio ordenamento jurídico brasileiro que confere proteção especial a

eles. É o que ocorre no caso dos empregados da sociedade que deverão receber as

verbas trabalhistas, uma vez que o risco do empreendimento corre por conta do

empregador segundo o artigo 2º, § 2º da CLT; bem como o consumidor deverá ser

ressarcido pelos prejuízos sofridos independentemente da situação financeira de quem

produziu e lhe forneceu o produto ou serviço.

Outro problema dessa noção de socialização do risco mostra-se principalmente

nas hipóteses em que o risco se concretiza em dano por uma atitude oportunista dos

acionistas de companhias que estão próximas da insolvência.

Quando uma companhia aproxima-se da insolvência, seus acionistas decidem

apostar em projetos de risco que tenham retorno elevado em um curto espaço de tempo.

Os ordenamentos de diversos países incentivam tais companhias a pedirem falência o

329Idem, p. 369. 330Idem, ibidem. 331FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 370. 332Idem, ibidem.

71

mais rápido possível, desde o início do processo de insolvência.333 Na Alemanha e na

Suíça, por exemplo, a Lei das Sociedades estabelece o requerimento direto para pedido

de falência; na França, tal requerimento é encontrado no Estatuto de Insolvência.334 Na

Grã-Bretanha, a responsabilidade pelos danos gerados em virtude de o administrador

não ter tomado as medidas necessárias quando instalada a situação de insolvência

caberá ao próprio administrador. Tais questões, no sistema inglês, são resolvidas muitas

vezes fora das cortes.335

Em sentido oposto encontra-se o sistema norte-americano, o qual não impõe

deveres específicos pela insolvência da companhia ao administrador.336 Entretanto,

propõe uma recompensa aos administradores, ao invés de puni-los, ao propor um plano

de recuperação. 337No Japão, a lei não força o pedido de falência, mas incentiva o gestor

a permanecer no cargo.338 Na prática, tanto os administradores americanos como

japoneses perderão seu emprego, mas tal consequência se dará de forma mais suave, e

não abrupta ou automaticamente.339

A Lei das S/A brasileira bem como a Lei de Falências não tratam

especificamente da responsabilização de administradores e gestores perante os credores

sociais, deixando espaço para que essa responsabilização se dê por via do dever de

diligência e lealdade.340 Em casos de insuficiência patrimonial decorrente de confusão

patrimonial e subcapitalização, a desconsideração da personalidade jurídica mostra-se

como mecanismo capaz de garantir os credores sociais, uma vez que tais situações

geram um risco para a autonomia patrimonial da companhia bem como colocam os

credores, principalmente os não-contratuais ou involuntários, em uma situação mais

vulnerável.341

A desconsideração da personalidade jurídica permitiria, assim, atingir os

administradores e controladores de forma pessoal nas hipóteses em que a transferência

do risco empresarial para os credores for desproporcional e incompatível com a

socialização do risco empresarial.342

Segundo Ana Frazão,

333HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 73. 334Idem, ibidem. 335HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 73. 336Idem, p. 74. 337Idem, ibidem. 338Idem, ibidem. 339Idem, ibidem. 340FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 381. 341Idem, p. 381 e 382. 342Idem, p. 382.

72

“o respeito às funções da pessoa jurídica e a observância ao dever de capitalização da empresa podem ser vistos igualmente como uma decorrência do dever de diligência perante os credores sociais que, se descumprido, pode ensejar a responsabilidade pessoal dos gestores, sob o fundamento de estarem criando riscos desproporcionais para terceiros e violando, dessa forma, a função social da empresa”.343

A responsabilidade civil dos administradores gera por parte destes uma

combinação de seguros e autosseguros como forma de reduzir o risco que sofrem por

desempenharem suas funções.344 Ana Frazão ensina que a pessoa jurídica é utilizada

contra seus fins quando gera a “socialização integral ou manifestamente

desproporcional do risco” de suas atividades. Assim, caso o capital social seja

insuficiente para o desempenho da empresa, pode-se constatar um desvio de finalidade

capaz de justificar a desconsideração da personalidade jurídica por não cumprimento do

dever de diligência e normas protetivas a terceiros.345

O próprio Código Penal contempla condutas dos administradores que violam

interesses dos credores sociais, responsabilizando, pessoalmente, estes gestores por

faltarem ao dever de diligência e prejudicarem os credores sociais, por exemplo a

compra de ações pela própria companhia, a aceitação das próprias ações como garantia

de crédito social.346 A ação de responsabilidade de gestores pode ser ajuizada antes do

processo de falência, tendo como pressuposto a insuficiência patrimonial que constitui o

interesse de agir dos credores sociais.347

Como explica Ana Frazão, o resultado desta ação deve gerar um valor

indenizatório que caberá à sociedade e à massa falida, uma vez que se fosse destinada

ao credor, autor da ação, geraria um tratamento não equitativo entre este e os demais

credores sociais, e poderia, inclusive, desrespeitar a ordem de prioridade da Lei de

Falências.348 Assim, o credor/autor atua como substituto processual da própria

companhia ao pleitear a responsabilização do administrador.349

Em contrapartida, é possível também a aplicação da business judgement rule

como mecanismo para suavizar a responsabilização dos administradores. A business

judgement rule busca impor o dever de agir informado para o administrador, como um

343FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 382. 344Idem, p. 384. 345Idem, p. 385. 346Idem, p. 386. 347Idem, p. 386 e 387. 348Idem, p. 387. 349Idem, p. 387 e 388.

73

dever de diligência de meio, e não de fim.350 Os standards procedimentais que buscam

garantir a racionalidade do processo buscando equilibrar os diversos interesses que a

sociedade deve atender são: a) o dever de transparência (disponibilização de

informações importantes para acionistas, empregados, meio ambiente); b) dever de

auditagem (auditoria social que interesse a acionistas e credores); c) dever de

justificação, consulta e negociação (no processo de tomada de decisão, orientado pela

boa-fé); d) dever de organização dos processos de controle interno (controle das

atividades internas da companhia, inclusive protegendo direitos de credores).351

Segundo Ana Frazão, o aspecto procedimental do dever de diligência deve ser

observado como um mecanismo de proporcionar transparência social e, assim,

proporcionar a concretização da função social e redução de conflitos de interesses,

principalmente interesses de terceiros.352

7.3. Responsabilidade do auditor

Auditores externos têm a função de assegurar que os resultados financeiros da

companhia enquadram-se nos padrões definidos por lei e normas contábeis. Entretanto,

os auditores buscam se eximir de qualquer dever que vá além da verificação desses

resultados financeiros.353

A responsabilização do auditor é uma criação jurisprudencial que ganhou força

pela demonstração de que os auditores realizam trabalhos dos quais os credores sociais

podem ser previsíveis usuários, e de que os auditores possuem estreita relação com a

companhia a partir do momento em que confirmam sua contabilidade.354 Como forma

de amenizar tal responsabilização criada pelas cortes, a legislação procurou produzir

mecanismos de proteção compensatórios aos auditores.355 Entretanto, após o escândalo

do caso Enron e a derrocada da firma de contabilidade Arthur Andersen, a limitação da

responsabilidade de auditores perdeu força, principalmente nos casos de

responsabilidade criminal, deixando os auditores em situação vulnerável.356

350FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As.Op. Cit. p. 392 - 395. 351Idem, p. 402. 352Idem, p. 403. 353HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 91. 354Idem, p. 92. 355Idem, ibidem. 356Idem, ibidem.

74

7.4. Responsabilidade do acionista

Todos os ordenamentos fornecem mecanismos doutrinários para proteger os

acionistas de uma responsabilização pessoal pelos débitos decorrentes da insolvência da

companhia, embora também existam mecanismos para controlar os acionistas que

abusaram da forma societária.357

Na França, a doutrina européia de administradores de fato ou sombra determina

que, se o acionista controlador ou quem administra a gestão da companhia viola deveres

fiduciários e desvia ativos, sofrerá sanções, se a companhia entrar em falência. O

acionista controlador ou o administrador deverá indenizar os credores por suas perdas,

ou, ao menos, ingressar com um processo judicial para tentar recuperar a companhia da

insolvência. Em caso de ser devida a indenização, poderá ser desconsiderada a

personalidade jurídica da companhia para se atingir diretamente o acionista

controlador.358

Há também a doutrina que responsabiliza o acionista pela subordinação dos

débitos trazidos pelos acionistas controladores em detrimento das propriedades de suas

empresas em falência. Segundo Gerard Hertig e Hideki Kanda, essa doutrina anda na

corda bamba entre impedir o oportunismo do acionista e permitir que o acionista

controlador realize esforços legítimos para resgatar a companhia em decadência através

de capital oriundo de nova dívida.359

Apesar da distinção entre sociedade e seus sócios, em alguns casos, a

legislação permite que o sócio seja responsabilizado pelas dívidas da sociedade.360 Já

quanto ao sócio de responsabilidade ilimitada e solidária, sempre este responderá pelas

dívidas da pessoa jurídica, como ocorre nas sociedades de fato.361

Como explica Fábio Ulhoa Coelho, “quando a autonomia patrimonial e a

limitação da responsabilidade são utilizadas para locupletamento indevido dos sócios,

não cabe impor a credores da sociedade sua parcela nas perdas”.362O sócio será

responsabilizado com base no artigo 1.080 do Código Civil se houver se manifestado

por escrito sobre a deliberação que decidir por infringir a lei ou o contrato, podendo

gerar nesse caso a desconsideração da personalidade jurídica da limitada.363

357Idem, ibidem. 358Idem, p. 93. 359HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 93. 360DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 454. 361Idem, ibidem. 362COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 107. 363Idem, p. 108.

75

Na visão do autor, quem negocia com a sociedade limitada deve considerar o

risco da negociação, uma vez que sua garantia dar-se-á apenas pelo patrimônio

social.364 Assim, uma das estratégias utilizadas é elevar as taxas remuneratórias ou até

mesmo a exigência de reforços das garantias, como aval, fiança, um exemplo são os

bancos, que, na condição de credores sociais, elevam as taxas de remuneração do

crédito concedido ou exigem garantia pessoal de algum sócio.365

Caso o credor social não considere tais reforços de garantia, poderá sofrer

futuramente na hipótese da sociedade sofrer perdas, uma vez que “a quebra da

sociedade será perda do credor” como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho.366 Essa

consequência é um expressão da socialização do risco do sucesso da atividade

empresarial.367

Os credores que possuem condições de negociar podem impor taxas de risco

nos seus preços e, assim, não sofrem com a limitação da responsabilidade dos sócios,

como ocorre no caso dos grandes credores como bancos, fornecedores, entre outros.368

Já os pequenos credores ou credores não-negociais não possuem a mesma capacidade

de negociar suas taxas de risco, e, assim, sofrem com a insolvência da sociedade e com

a limitação da responsabilidade dos sócios, como é o caso dos trabalhadores,

consumidores, credores involuntários por atos ilícitos, entre outros.369

Como meio de equilibrar a socialização dos riscos, há algumas exceções no

que tange à separação patrimonial e à limitação da responsabilidade dos sócios para se

garantir a proteção aos credores sociais, gerando a responsabilização dos sócios, é o que

ocorre com a obrigação de formação do capital social, respondendo os sócios após o

exaurimento do patrimônio social.370

Os sócios são solidariamente responsáveis até o limite do capital social

subscrito e não integralizado no que se refere às obrigações da sociedade limitada.371

Fora de tal limite, os sócios não respondem pelas obrigações sociais de natureza

negocial, assim, o que exceder ao patrimônio social sem garantia será perda dos

credores.372 Como ensina Fábio Ulhoa Coelho, a responsabilidade solidária dos sócios

364Idem, p. 5. 365Idem, ibidem. 366Idem, ibidem. 367Idem, ibidem. 368COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 5. 369Idem, p. 5 e 6. 370Idem, p. 6. 371Idem, ibidem. 372Idem, p. 7.

76

pelo capital social ainda não integralizado beneficia tanto credores negociais como

credores não-negociais.373

No ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito às sociedades

limitadas, as hipóteses de responsabilização do sócio-gerente foram ampliadas pela

jurisprudência trabalhista com base na interpretação do artigo 135 do CTN,

considerando que o crédito trabalhista ainda possui maior preferência que o tributário,

além de observar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica.374 Segundo

Mauricio Godinho Delgado, assim, o sócio-gerente responderá pelas dívidas trabalhistas

da sociedade sempre que não houver bens que garantam a execução.375 A mesma

responsabilidade tem sido estendida aos demais sócios quanto se tratar de créditos

trabalhistas, mesmo que tais sócios não tenham participado da gestão da sociedade.376

Segundo jurisprudência do TRT/SP, a responsabilidade dos sócios de

sociedade limitada pelos débitos trabalhistas torna-se ilimitada e solidária.377 Quando

ocorre dissolução de fato da sociedade sem o pagamento de seu passivo e há diluição

do capital social até o sócio minoritário responde por culpa in vigilando.378

Cabe ressaltar que a responsabilização dos sócios será subsidiária e não

solidária nos casos em que houver frustração patrimonial pelo devedor principal na

execução trabalhista.379 Desse modo, o sócio, ao ser demandado, pode demandar que

primeiro sejam executados os bens da sociedade, tendo o ônus inclusive de nomear os

bens da sociedade que terão tal fim.380 E o sócio pode ser demandado sem que seu nome

tenha sido expressamente referido no título executivo judicial.381

Caso o capital social não tenha sido totalmente integralizado, os sócios da

limitada podem ser responsabilizados pelas contribuições devidas ao INSS,

independentemente da prática de qualquer irregularidade praticada pelo sócio, pelo

simples fato de ser uma garantia a um credor não negocial.382 Além desta hipótese, os

sócios também responderão por obrigações da sociedade quando praticarem ilícitos por

meio desta; isso se dá para que a limitação da responsabilidade não sirva para encobrir

ilicitudes.383

373Idem, ibidem. 374DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 454. 375Idem, ibidem. 376Idem, ibidem. 377COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 63 e 64. 378Idem, ibidem. 379DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 455. 380Idem, ibidem. 381Idem, ibidem. 382COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. Op. Cit. p. 106. 383Idem, p. 107.

77

É importante destacar que o sistema de responsabilização do sócio da

sociedade limitada não é o mesmo aplicável ao sócio da sociedade anônima. Maurício

Godinho Delgado ensina que isso se dá em grande medida porque o sócio da limitada

participa de uma sociedade híbrida, um modelo que transita entre a sociedade de

pessoas e a sociedade de capital; já o sócio da S/A participa de uma sociedade

estritamente de capital.384 Os gestores e controladores da S/A somente serão

responsabilizados caso seja provada a existência de uma gestão fraudulenta ou ilícita, ao

passo em que na sociedade limitada o sócio-administrador tem sua culpa presumida.385

Sempre que a sociedade anônima estiver em processo de liquidação, ela deverá

buscar assegurar o pagamento de todos os seus credores. Entretanto, caso isso não se

efetive na prática e o crédito do terceiro seja decorrente de ato doloso ou culposo do

liquidante, o credor poderá ingressar com ação de responsabilidade por ato ilícito contra

este para que seja ressarcido pelas perdas e danos que sofreu.386 Segundo Marlon

Tomazette, os credores também poderão ingressar com ação contra os acionistas de

forma individual pelo valor recebido na partilha.387 Essa possibilidade se justifica, pois

os acionistas somente deverão receber sua parcela na liquidação após a satisfação de

todos os credores sociais. O acionista que pagar ao credor poderá exercer direito de

regresso contra os demais acionistas nas devidas proporções.388

Já no que tange às sociedades simples, como ensina Marlon Tomazette, elas se

regem pelo sistema de responsabilidade subsidiária de seus sócios na proporção de sua

contribuição para o capital social, conforme estabelece o artigo 1.023 do Código Civil,

e, em princípio, não há solidariedade entre os sócios.389

7.5. Desconsideração da personalidade jurídica.

Todos os ordenamentos permitem que as Cortes desconsiderem a

personalidade jurídica em circunstâncias extremas, responsabilizando pessoalmente os

acionistas controladores ou controladores dos grupos de sociedades pelos débitos da

sociedade.390 Essa desconsideração não ocorre de forma fácil e simples.391 Em nenhum

384DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Op. Cit. p. 456. 385Idem, ibidem. 386TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. P. 435. 387Idem, ibidem. 388Idem, ibidem. 389Idem, p. 120 e 121. 390HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 93. 391Idem, ibidem.

78

caso a personalidade jurídica pode ser desconsiderada diretamente contra companhias

de capital aberto ou acionistas passivos.392

Até Estados que são “debtor-friendly”, como os EUA, permitem a

desconsideração caso o acionista controlador desconsidere a integridade da companhia,

não observando as formalidades, misturando ativos pessoais com os da companhia ou

falhando na capitalização da companhia, e se há um elemento de fraude e injustiça

quando acionistas agem de forma oportunista.393

Outros ordenamentos, como o americano, o francês e o alemão, também

utilizam a desconsideração da personalidade jurídica da companhia para proteger

credores de grupos de sociedades. Apesar disso, a utilização da desconsideração é mais

comum entre companhias individuais se comparada a grupos de sociedades.

No artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, há previsão expressa de

desconsideração da personalidade jurídica da sociedade sempre que esta constituir

obstáculo para o ressarcimento do consumidor que foi lesado.394

Verifica-se que o tratamento conferido pelo CDC no que tange à

responsabilidade das sociedades é diverso daquele preconizado na Lei das Sociedades

Anônimas (Lei 6.404/76).395 Essa diferença de regime se dá por conta da mais rigorosa

proteção que deve ser conferida aos credores com pouco ou nenhum poder de

negociação, como se dá com os pequenos consumidores.396

Entretanto, na visão de Eduardo Secchi Munhoz, a legislação não fez a

diferenciação entre os diversos tipos de consumidores (pequenos e grandes), estendendo

essa tutela mais rigorosa a todo consumidor indistintamente, apenas pelo fato de ser o

destinatário final do produto, gerando inclusive insegurança jurídica ao misturar a

desconsideração da personalidade jurídica com regime especial de responsabilidade de

grupos.397

O autor explica que grandes consumidores, como pessoas jurídicas que

possuem elevado poder de negociação, recebem a mesma proteção de consumidores

que são pessoas físicas. Seria o caso de suavizar a responsabilidade do grupo quando se

392Idem, ibidem. 393Idem, p. 93 e 94. 394MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 322. 395Idem, ibidem. 396Idem, p. 323. 397Idem, ibidem.

79

tratar de consumidor com alto poder de negociação, mas manter a proteção dos

consumidores pequenos e mais vulneráveis.398

Outro ponto é que o CDC iguala os tipos de dano ao consumidor, sem

distinguir entre dano à saúde ou à vida, e um mero defeito de qualidade.399

A mesma regulação da desconsideração da personalidade jurídica descrita no

Código de Defesa do Consumidor foi transplantada para as infrações à ordem

econômica, previstas pela Lei 8.884/94.400 Caso semelhante se deu em relação às lesões

ao meio ambiente por meio da Lei 9.605/98.401 Como ensina Marlon Tomazette, a

desconsideração da personalidade jurídica ocorrerá de forma bastante semelhante nos

casos de lesão ao consumidor, ao meio ambiente e à ordem econômica.402

No entendimento de Marlon Tomazette, o artigo 2º, § 2º, da CLT não prevê a

desconsideração da personalidade jurídica, apenas estabelece a solidariedade entre os

membros de um grupo empresarial, uma vez que não há previsão no referido

dispositivo acerca de fraude ou abuso, nos grupos existem personalidades jurídicas

distintas e autônomas.403 Assim, o dispositivo busca proteger o empregado garantindo

uma responsabilidade solidária entre os membros do grupo.404

7.6. Custos pela responsabilização de dirigentes empresariais.

Gerard Hertig e Hideki Kanda defendem a tese de que garantir a

responsabilidade dos dirigentes empresariais (conselheiros/administradores, auditores,

credores internos, acionistas controladores) por participarem no oportunismo societário

na proximidade da insolvência pode beneficiar credores; entretanto, tais benefícios

trazem consigo custos.405 Assim, a garantia de responsabilidade do auditor gera um

aumento dos honorários do auditor, a responsabilidade de administradores, grandes

credores e acionistas controladores pode inclusive prejudicar credores e acionistas, uma

vez que desencoraja tais agentes de iniciar ou consentir com certos exercícios da

sociedade.406

398Idem, ibidem. 399Idem, p. 324. 400TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. P. 84 e 85. 401TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. Op. Cit. P. 84 e 85. 402Idem, p. 84 e 85. 403Idem, ibidem. 404Idem, ibidem. 405HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 95. 406Idem, ibidem.

80

A Grã-Bretanha tem uma maior tradição em responsabilizar administradores,

já outros ordenamentos responsabilizam tanto administradores como auditores.407 Tanto

os ordenamentos “debtor-friendly” como os “creditor-friendly”, por meio de suas

legislações e cortes, tentam impor a responsabilidade do auditor. Embora essa

responsabilização possa aprimorar a proteção do credor, ela pode ser considerada muito

dispendiosa para ser praticada.408

Na Europa Continental, reluta-se para responsabilizar administradores e

auditores pelos delitos que a companhia gerou contra credores.409

Na França e na Alemanha, o caminho é para a responsabilização do acionista

controlador.410 A França protege fortemente os credores contra os acionistas

controladores de grupos de sociedades; mas sua postura não tem força na Europa

Continental.411 Acredita-se que o modelo francês não funcionaria em jurisdições com

alto número de empresas amplamente difundidas, o que explica a notoriedade da

responsabilidade do administrador, como no sistema inglês.412

7.7. Responsabilidade de terceiros.

Ainda há a possibilidade responsabilizar terceiros pelos danos que a companhia

gerar. Esses terceiros podem ser credores por si mesmos (alguns acionistas

controladores), credores externos e credores internos.413

No que toca a credores externos, estes possuem duas armas contra credores

internos. O credor externo pode processar os credores internos, como ocorre quando os

bancos intervêm na administração de companhias insolventes como parceiros ou

administradores de fato.414 No sistema inglês, qualquer pessoa que conscientemente

ingressa nos negócios de uma companhia para fraudar credores deve ser

responsabilizada se a companhia entrar em processo de liquidação.415

407Idem, p. 96. 408Idem, ibidem. 409HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 96. 410Idem, ibidem. 411Idem, ibidem. 412Idem, ibidem. 413Idem, p. 94. 414Idem, ibidem. 415Idem, ibidem.

81

Outra arma que os credores externos possuem contra os credores internos é a

ação pauliana ou ação contra transferência fraudulenta.416 Conforme explica De Plácido

e Silva, ação pauliana

“é a ação que assiste aos credores para o fim de anularem atos praticados pelo devedor, dolosamente e sob fraude, que tenham onerado ou alheado bens de sua propriedade, sendo estes os únicos que poderiam ser usados para solver seus compromissos”. 417

Nesta ação, “o credor, que se julga assim lesado, pede a reversão dos bens

fraudulentamente alienados ou a revogação do ônus dolosamente promovido, a fim de

que possa sobre eles correr a execução já iniciada ou despachada, e se possa cobrar

sobre o produto de sua venda”.418 Para ingressar com a ação pauliana é necessário

comprovar a insolvência do devedor, o intuito de fraudar o credor e o ato que provocou

prejuízo ao credor.419

Como remédio usado pelos credores externos, a ação pauliana é impetrada

contra credores que efetuaram transações que desviaram os ativos de uma companhia

insolvente afastando outros credores, para que aqueles sejam forçados a retornar os

benefícios que obtiveram para a antiga propriedade do devedor (companhia).420

8. Conclusão

Os credores sociais englobam desde bancos, financeiras e fornecedores até

empregados, consumidores, meio ambiente e demais obrigacionistas. Considerando a

diversidade de sujeitos que se enquadram na denominação de credor social, verifica-se

como é tarefa árdua estabelecer critérios e mecanismos que sirvam para a proteção do

gênero maior que engloba tantas espécies diversas e particulares. Entretanto, não há

dúvida de que os credores sociais, como agentes propulsores da atividade empresarial,

ou mesmo como vítimas de uma atuação irregular por parte da sociedade, merecem uma

proteção especial do ordenamento jurídico.

Para que a sociedade cumpra sua função social e contribua para que a ordem

econômica seja fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, bem como seja

assegurada uma existência digna a todos conforme os ditames da justiça social, segundo

416Idem, p. 95. 417DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 28a Edição, 2009. p.42. 418DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico. Op. Cit. p.42. 419Idem, ibidem. 420HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. Op. Cit. p. 95.

82

determina o artigo 170 da Constituição Federal de 1988, é preciso que os credores

tenham proteção assegurada pelo ordenamento.

A Lei das S/A, no seu artigo 116, dá abertura para o institucionalismo, levando

à necessidade de respeito e satisfação dos interesses dos empregados, consumidores e

demais sujeitos que sofrem consequências da atuação da companhia. Isso não significa

que a sociedade deva tornar-se um agente público, porém, deve cumprir com suas

obrigações e pelos danos e prejuízos que gerar.

Muitos doutrinadores importantes do direito comparado e do direito nacional

entendem que os credores devem obter garantias e podem se proteger por meio de seus

próprios contratos e através das próprias condições do mercado. Entretanto, estudiosos

como Eílis Ferran demonstram que os acordos oriundos de negociações para se garantir

a satisfação dos credores são mais custosos que dispositivos legais garantindo proteção,

uma vez que estes reduzem os custos de transação.

Quando se trata de credores involuntários ou não-negociais, a questão de

deixar que o próprio mercado os proteja se torna mais complexa, uma vez que tais

credores não escolheram conscientemente negociar com a sociedade e muitas vezes

encontram-se em posição de maior vulnerabilidade perante a companhia, não possuindo

poder de barganha para negociar cláusulas contratuais que lhes garantam proteção, não

contando sequer com um contrato. Surge então a necessidade de estabelecer

mecanismos jurídicos capazes de prover a satisfação desses credores. Situação

semelhante ocorre com credores pequenos e/ou involuntários, como os trabalhadores e

pequenos consumidores, bem como a coletividade em relação aos danos ao meio

ambiente, que se encontram mais vulneráveis, e, por isso, são amparados por

instrumentos específicos, como a CLT, o CDC, a Lei de Proteção ao Meio Ambiente.

Outra figura importante é a dos grupos de sociedades que agrava a situação de

vulnerabilidade tanto dos credores involuntários, como dos pequenos e fracos credores

sociais.

Tendo em vista todo este contexto, verifica-se a importância de se estudar

mecanismos capazes de garantir proteção aos credores de forma ampla e sempre

considerando em cada caso as particularidades presentes. Para tanto, Gerard Hertig e

Hideki Kanda propõem como mecanismos a publicidade obrigatória, as regras sobre

capital social e grupos empresariais e, por fim, normas sobre o dever fiduciário.

A publicidade obrigatória gera para a sociedade o dever de disponibilizar

informações que sejam úteis para que os sujeitos possam analisar e ponderar a vantagem

83

em se negociar com aquela, considerando sua solvabilidade e sua saúde financeira. A

publicidade demonstra que a sociedade é um investimento seguro e capaz de gerar

resultados positivos para quem com ela negocia. Além desse fator, a publicidade é

importante para regularizar a fundação da sociedade, garantindo sua regularidade

conforme o ordenamento e tipo empresarial que adota. Assim, violações a uma

publicidade conforme a realidade empresarial geram para seus administradores, gestores

e controladores responsabilização, inclusive penal (artigo 177, Código Penal), pelos

danos que causar aos credores sociais.

As regras que controlam o capital social e os grupos empresariais também

mostram-se de extrema importância para a garantia dos credores sociais. No que tange

ao capital social, no ordenamento jurídico brasileiro não há qualquer exigência de um

capital social mínimo para que uma sociedade seja constituída. Entretanto, muitos

autores, como Alfredo Lamy Filho, entendem que o capital social é uma garantia dos

credores. Outra forma de garantir o capital social como fonte de satisfação dos credores

são regras exigindo um mínimo de manutenção deste capital durante a vida social. A

Lei das S/A estabelece uma reserva legal, bem como normas determinando condições

para a redução do capital e hipóteses em que os credores podem se manifestar sobre a

decisão de reduzir, buscando assim garantir que não sejam prejudicados pela diluição

do capital social.

No que tange aos grupos empresariais, a relação de responsabilidade do grupo

e das sociedades-membro será determinada pelo tipo de credor, considerando sempre

que a atuação da sociedade controladora será regulada pelas normas aplicáveis ao

controlador da sociedade singular. Assim, em relação aos créditos trabalhistas a

responsabilidade dos membros do grupo será solidária. Já em relação aos créditos para

com os consumidores dependerá do tipo societário.

Outro mecanismo de se garantir proteção aos credores é por meio da exigência

de cumprimento dos deveres fiduciários. Por meio dos deveres fiduciários, é possível

garantir a satisfação dos credores por meio da responsabilização dos fundadores e

primeiros administradores da sociedade, bem como por meio da responsabilização do

administrador, do conselho fiscal, do auditor, dos acionistas e inclusive de terceiros.

Para atingir esta responsabilização, em alguns casos mostra-se necessária a

desconsideração da personalidade jurídica como meio para se atingir o real

descumpridor dos deveres fiduciários.

84

Por meio de uma análise integrada com o direito comparado, é possível

perceber que o ordenamento brasileiro possui mecanismos jurídicos capazes de garantir

proteção aos credores sociais de modo a efetivar a função social da empresa e cumprir a

ordem econômica baseada no fundamento constitucional da justiça social e da dignidade

de todos os que participam das atividades empresariais e sofrem com suas

externalidades.

9. Referências.

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85

FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. VON ADAMEK, Marcelo Vieira. A proteção aos credores e aos acionistas no aumento de capital. In: Revista do Advogado. Ano XXVIII, nº 96, Março de 2008. FRAZÃO, Ana. Função social da empresa. Repercussões sobre a responsabilidade civil de controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume III. Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Editora Saraiva, 6a Edição, 2009. HERTIG, Gerard. KANDA, Hideki. Creditor Protection. In: The Anatomy of Corporate Law. A comparative and functional approach. Oxford, UK: Oxford University Press, 2004. LAMY FILHO, Alfredo. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Volume 1. São Paulo: Editora Forense, 1a Edição, 2009. MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário. Poder de controle e grupos de Sociedades. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. In: Revista Forense. Vol. 363. Ano 98. Set./Out. 2002. NEVES DELGADO, Gabriela. Terceirização: paradoxo do Direito do Trabalho Contemporâneo. São Paulo: Editora LTr, 2003. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 2º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 28a Edição, 2011. SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2a Edição, 4a Edição, revista e ampliada, 2011. SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia. São Paulo, Editora Best Seller, 9a Edição, 2002. SANTOS, Joaquim Antonio de Vizeu Penalva. Sociedade Anônima, Subcapitalização, Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Anônima. In: Revista da EMERJ. Vol. 4, nº 14, 2001. SIMIONATO, Frederico Augusto Monte. Sociedades Anônimas & Interesse Social. Curitiba: Juruá Editora, 2004. TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2a Edição atualizada, 2004.

86

III.

CAPITAL SOCIAL: importância, normas protetivas e subcapitalização

Danielle Lúcia Ferreira

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Origem e conceito de capital social. 3. Princípios orientadores do

capital social. 4. Funções do capital social. 5. O fenômeno da subcapitalização. 6. Conclusão. 7.

Referências.

1. Introdução.

Para que uma sociedade empresária dê início ao seu empreendimento, ela

precisa de recursos, tal como máquinas, tecnologia, e outros meios indispensáveis à

organização e realização da atividade. Diante disso, os sócios transferem do seu

patrimônio para o da pessoa jurídica dinheiro, bens e créditos e, em troca, recebem

ações ou quotas emitidas pela sociedade em valor correspondente. Este montante

prometido pelos sócios para a formação da sociedade é chamado de capital social

subscrito. Os recursos efetivamente transferidos para a sociedade compõem o capital

social integralizado.

Após o início das atividades, necessitando a sociedade de mais recursos, os

sócios podem, por deliberação em assembleia geral, aumentar suas contribuições,

capitalizando-a.

No entanto, a capitalização, tanto no período de formação da sociedade quanto

supervenientemente, não é a única forma de aportar recursos à sociedade, há também o

financiamento. O que diferencia um do outro é que, no caso do primeiro, a sociedade

não tem a obrigação de restituir, com acréscimos remuneratórios, os recursos nela

aportados, embora possa fazê-lo, se atendidos certos requisitos. Quando há

financiamento de terceiros, sócios ou não, a sociedade torna-se devedora, tendo a

obrigação de restituir o valor dos recursos, com acréscimos remuneratórios.

Constituindo um capital próprio da sociedade, desvinculado do patrimônio dos

sócios, o capital social vincula-se à noção moderna de limitação da responsabilidade

dos sócios em relação às obrigações assumidas pela sociedade empresária, surgindo

como instrumento de garantia aos credores sociais.

87

Na doutrina, não há um consenso quanto ao conceito, significado e

importância do capital social. Conforme será explorado neste trabalho, há vários

posicionamentos, o que interfere na atribuição ao capital social da função de garantia

aos credores sociais.

O presente trabalho tem por finalidade, a partir do estudo de seus princípios

norteadores e das funções que exerce (ou deveria exercer), revitalizar a figura do

capital social, analisando em que medida ele se mostra importante ao direito societário.

Além de buscar no direito comparado, como alternativa ao ordenamento brasileiro,

instrumentos capazes de dar efetividade a suas funções de acordo com seus princípios

orientadores.

Será, também, posto em discussão o fenômeno da subcapitalização com

enfoque na questão da responsabilização dos sócios. A partir da análise de soluções

presentes em ordenamentos estrangeiros, trazem-se aqui alternativas para a resolução do

problema no âmbito do direito societário brasileiro.

2. Origem e conceito do capital social

A exata definição do conceito e da função do capital social nas sociedades

empresárias é, hoje, algo controvertido dentro da doutrina, devido à relativização do

princípio da integridade do capital social e à ausência, no ordenamento brasileiro, de

instrumentos legais que garantam a efetiva realização de suas funções.

Quanto à sua origem, de acordo com Alfredo Lamy Filho, “o conceito de

capital social é correlato ao reconhecimento da personalidade jurídica das sociedades e

à limitação da responsabilidade de todos os sócios nas anônimas”421. O conceito de

capital social foi cristalizado apenas numa fase mais adiantada da história das

sociedades anônimas, impondo-se como instrumento de garantia dos credores em uma

sociedade empresária em que nenhum sócio respondia com seus bens pelas obrigações

sociais. No mesmo sentido, Jorge Lobo observa:

“Consagrado, depois de lenta evolução, o princípio excepcional da responsabilidade limitada dos acionistas das anônimas e admitida a constituição do patrimônio separado, consequência direta do reconhecimento da personalidade jurídica das companhias, que impede a execução dos bens dos sócios por dívidas da sociedade, foi necessário elaborar um conceito de

421 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 193.

88

capital, definir-lhe as funções e instituir normas para garantir sua integridade”.422

Ivens Hübert também salienta a relação direta entre a assimilação da noção de

autonomia patrimonial no direito moderno e a existência do capital social. Afirma o

autor:

“Por gozarem da autonomia patrimonial, ou seja, da rígida separação entre o seu patrimônio e aquele particular dos sócios, as sociedades empresárias contarão desde o início com um capital próprio, ingressado na sociedade por ação e deliberação dos sócios, mas que a eles deixa de pertencer na medida em que, como contraprestação por esse aporte, passam eles a titularizar quotas ou ações desta sociedade. É, portanto, através dessa transferência de patrimônio (dos sócios para a sociedade) que se torna possível garantir que, de um modo geral, apenas esta, e não aqueles, seja responsável pelas obrigações assumidas em decorrência da atividade empresarial”.423

Quando a responsabilidade era ilimitada e os sócios respondiam com seus

próprios bens pelas obrigações sociais (primeiras sociedades), a confusão entre o

patrimônio do sócio e o da sociedade não trazia maiores problemas aos credores. Por

outro lado, quando a responsabilidade passou a ser limitada e os sócios ficaram

liberados das obrigações sociais, havia o risco de, quando os negócios não iam bem, o

administrador tentar pagar-se com os bens sociais ou retirar o que investira na sociedade

antes de quitados os credores.424

Nessa segunda fase, na qual nenhum sócio era responsável além da quota com

que entrara para o fundo social, era imprescindível que a sociedade:

“oferecesse a seus credores uma garantia de que a sociedade cumpriria seus compromissos, e teria como fazê-lo. Para assegurá-lo reconheceu-se, desde logo, a irrevogabilidade das prestações dos sócios, ao mesmo tempo em que, mediante um sistema de publicidade obrigatória, se procurou permitir aos credores conhecimento, tão aproximado quanto possível, da situação do patrimônio social”.425

422 LOBO apud HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 52. 423 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 52. 424 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 193-194. 425 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 194.

89

Segundo Ascarelli426, no Relatório apresentado ao Congresso Internacional de

Direito Comparado em Londres em 1950, havia, ainda, dificuldades referentes a dois

riscos: que o patrimônio real fosse, no ato de constituição, inferior ao publicado; e que,

durante a vida da sociedade, tal patrimônio viesse a diminuir, desfalcando a garantia dos

credores. A solução para esses problemas foi construída através do conceito de capital

social, distinto do de patrimônio.

Vivante, por sua vez, distingue patrimônio social e capital social, na medida

em que o primeiro é essencialmente mutável, enquanto o último

“é uma cifra convencional fixa, de existência de direito, e não de fato, que os sócios são livres para acordar no momento de consituição da sociedade, ou de aumentar no curso da vida da sociedade, e que se inscreve no lado passivo do balanço patrimonial da sociedade”427.

Portanto, na concepção de Lamy Filho, o capital social corresponde:

“a uma cifra ideal que, no momento da constituição da sociedade, representa a totalidade, expressa em dinheiro, das contribuições realizadas ou ‘prometidas pelos sócios com aquela destinação’ – diz Carvalho de Mendonça – mas que, iniciada a vida da sociedade, permanece fixa, em contraposição ao patrimônio em constante flutuação. Dessa maneira, torna-se um ponto de referência permanente na vida financeira da sociedade, e, uma vez fixado, não pode ser alterado (a não ser cumpridas formalidades em hipóteses específicas), assegurando uma margem de garantia para os credores, um ‘coeficiente de liquidez’, disse De Gregorio. Ou, na expressão dos americanos, é uma vara de medir (‘measuring rod’). Trata-se, pois, de uma noção jurídica e contábil, não patrimonial, mas que deve corresponder necessariamente a valores do ativo da empresa, para garantia dos credores”.428

Para Osmar Brina Corrêa-Lima, o capital social é estático, porém não

imutável, podendo aumentar ou diminuir. O patrimônio, por outro lado, é extremamente

dinâmico, sendo “o complexo das relações jurídicas de uma pessoa, tendo estas valor

econômico, abrangendo créditos e débitos” 429.

Alfredo Lamy Filho define capital social como sendo “a cifra, fixada no

estatuto social, do montante das contribuições prometidas pelos sócios para formação

da companhia que a lei submete a regime cogente, cujo fim é proteger os credores

426 ASCARELLI apud FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 194. 427 VIVANTE apud FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 194. 428 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 195. 429 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Sociedade Anônima. 3ª ed. rev. e atual.. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 24-25.

90

sociais”430. A garantia do capital social consiste em limitar a transferência de bens para

os patrimônios dos acionistas e criar margem de segurança contra insolvência. 431

A capitalização é um modo de a sociedade obter recursos, assim como o

financiamento. No entanto, diferentemente do autofinanciamento (emissão de

debêntures ou commercial papers) ou financiamento bancário, a sociedade empresária

não tem a obrigação de restituir, com acréscimos remuneratórios, os recursos nela

aportados a título de capitalização, embora possa fazê-lo, se atendidos certos requisitos.

Nos casos de financiamento, a sociedade torna-se devedora, tendo a obrigação de

restituir o valor dos recursos, com acréscimos remuneratórios. São regimes jurídico,

econômico e contábil diferentes.432

Salienta Fabio Ulhoa Coelho433 que, para quem subscreve ações, há apenas

expectativa de retorno financeiro pelo pagamento de juros sobre o capital ou

distribuição de dividendos. Se os negócios não se desenvolverem como projetado e a

sociedade empresária não obtiver os resultados esperados, não havendo lucros, o

acionista não será titular de direito de crédito nenhum contra a companhia.

Segundo o mesmo autor, o capital social é uma medida da contribuição dos

sócios para a sociedade empresária, servindo, de certa forma, como referência de sua

força econômica. Ter um capital social elevado sugere solidez, representa “uma

companhia dotada de recursos próprios, suficientes ao atendimento de suas necessidades

de custeio” 434.

Contudo, para Fábio Ulhoa435, o fato de servir de referência à potência

econômica da empresa não atribui ao capital social a função de garantia dos credores

sociais, tal qual defendido por muitos na doutrina. É o patrimônio da sociedade que

constitui a garantia dos credores, tornando-se irrelevante o valor do capital social. Os

analistas, ao avaliarem uma companhia, prestam maior atenção a indicadores como

resultados, ativos, passivos, liquidez, etc, não dando tanta importância ao capital social

constante das demonstrações financeiras.

Quando as ações são subscritas a preço superior ao seu valor nominal, a parte

do preço que supera o valor nominal chama-se ágio, que é contabilizado como reserva

de capital, e não como capital social. Logo, o capital social não mede o total da

430 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 193. 431 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 204. 432 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 180. 433 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 190. 434 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 181. 435 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 181.

91

contribuição dos sócios. O total da contribuição dos sócios na companhia é medido pela

soma dos preços de emissão das suas ações. Ou seja, a contribuição dos sócios só

coincide com o capital social quando o preço de emissão é igual ao valor nominal das

ações, sendo maior, somente uma parte compõe o capital social. Então, a contribuição

dos sócios passa a ser a soma do capital social mais a parcela da reserva de capital

constituída pelo ágio da subscrição (se existente). Portanto, conclui Fábio Ulhoa, o

capital social é uma medida e não necessariamente a medida da contribuição dos

sócios.436

O capital social pode ainda ser aumentado por recursos provenientes de lucros

ou reservas frutos do desenvolvimento da própria empresa, deixando, com o passar do

tempo, de representar apenas a contribuição dos sócios. A equivalência entre capital

social e contribuição dos sócios, ao longo do tempo, pode se esvair e até perder sentido.

Desta forma, a definição da exata função do capital social, para Fábio Ulhoa, é de

difícil enfrentamento.437 O que, de fato, não deixa de ser, considerando todas as

problemáticas que envolvem o tema.

Segundo Modesto Carvalhosa438, o capital social, por não representar

necessariamente o valor integral das contribuições dos acionistas, teve suas funções

alteradas. O capital social não regula mais os direitos dos acionistas com base no valor

contribuído por cada um para compô-lo, uma vez que parte do valor subscrito pode não

integrá-lo. E também deixou de ser plena expressão de garantia dos credores, pois o

valor declarado na cifra pode não corresponder ao valor realmente ingressado na

sociedade empresária.

O conceito de capital social também mudou, não correspondendo mais ao valor

total das ações subscritas pelos acionistas, não expressando mais “toda a massa

patrimonial posta em função do negócio que constitui o objeto social”439. De acordo

com Carvalhosa, o capital social passou “a representar, apenas, a parcela do valor das

ações subscritas que os acionistas vinculam, na constituição e em cada aumento (arts.

13 e 14), ao negócio empresarial que constitui o objeto da companhia”440, definindo o

436 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 182. 437 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 182. 438 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 192-193. 439 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 193. 440 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 193.

92

capital social como “o valor das entradas de capital que os acionistas declaram

vinculado aos negócios que constituem o objeto social”441.

Diante de toda essa controvérsia sobre o capital social, faz-se imprescindível a

análise dos princípios que orientam a sua disciplina jurídica para um melhor

entendimento da importância do capital social e da função que exerce (ou deveria

exercer) no direito societário.

3. Princípios orientadores do capital social

Existem certos princípios que servem de base para a disciplina jurídica do

capital social, os quais, de algum modo, relacionam-se com o aspecto da integridade do

capital, conforme observa Ivens Hübert442. Segundo o autor, “a integridade constitui o

valor básico, central na noção jurídica do capital social”443.

Considerando a compreensão do capital social segundo seu aspecto bivalente

(capital nominal/capital real), no qual o capital nominal corresponde à cifra contábil e o

capital real refere-se à massa de bens concreta que compõe o valor registrado no capital

social, a integridade do capital social decorre do pressuposto de adequação do capital

nominal ao capital real, ou seja, a cifra formal e abstrata deve equivaler ao fundo

patrimonial correspondente. Postula-se, portanto, que a parcela do patrimônio

decorrente da integralização do capital social deve manter-se íntegra, podendo vir a

responder, eventualmente, pelas obrigações sociais, caso a empresa não tenha bom

desempenho.444

Segundo salienta Ives Hübert445, tal integridade deveria manter-se desde o

início da atividade social até a dissolução da sociedade. Embora não haja regras que o

assegurem, esse postulado é de grande relevância. Seria como um “sobreprincípio”, o

qual informa e orienta os demais. Os princípios do capital social são garantidores dessa

integridade.

Vale ressaltar que embora haja preocupação em manter esse princípio,

conforme salienta Modesto Carvalhosa446, ele tem sido relativizado em face de certos

441 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 193. 442 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 69. 443 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 69. 444 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 69. 445 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 70. 446 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 196.

93

dispositivos da Lei n. 6.404/76, como a destinação do ágio das ações com valor nominal

à reserva de capital (art. 13), a existência de ações sem valor nominal cujo preço de

emissão pode, em parte, não integrar o capital social (art. 14) e a possibilidade de

aumento do capital social antes da completa integralização do anteriormente subscrito

(art. 170).

Nesse último aspecto as sociedades limitadas diferem das sociedades

anônimas, uma vez que o Código Civil de 2002 (art. 1.081) exige a integralização total

das quotas para que haja um novo aumento de capital. Essa exigência “fundamenta-se

na proteção ao sócio, que, apesar de dissidente, fica solidariamente responsável pela

total integralização do capital social (art. 1.052), o que não ocorre no âmbito das

sociedades anônimas”447.

Não há entre os autores um consenso quanto à conceituação e à nomenclatura

dos princípios. Ivens Henrique Hübert, por exemplo, enumera apenas três princípios: o

princípio da intangibilidade, o da congruência e o da realidade. Já Alfredo Lamy Filho,

além dos princípios da intangibilidade e da realidade, enumera também os princípios da

unidade do capital social, da fixidez do capital e da irrevogabilidade das prestações.

O princípio da intangibilidade, segundo Hübert448, consiste na imutabilidade do

capital social como cifra contábil, na sua manutenção, não podendo ser diminuído, em

virtude da devolução aos sócios de bens e valores ingressados a título de capital social,

salvo casos específicos e sob procedimento adequado. Esse princípio também garante o

respeito à separação entre o patrimônio dos sócios e o patrimônio da pessoa jurídica,

anteriormente discutido, conforme salienta o autor:

“O princípio da intangibilidade guarda relação também com a ideia de separação patrimonial entre sócios e sociedade, na medida em que eles somente poderão vir a auferir ganhos da sociedade mediante a efetiva existência de lucros. Ou seja, veda-se a confusão patrimonial entre sociedade e sócios, restringindo-se e delimitando-se as formas pelas quais os sócios podem receber parcelas do patrimônio da empresa (o que somente pode ocorrer, além das distribuições de dividendos ou juros sobre capital próprio, em decorrência da redução de capital ou liquidação da sociedade).”449

447 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. Editora Saraiva. São Paulo, 2003, p. 277. 448 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 72. 449 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 73.

94

Segundo Lamy Filho450, para a garantia dos credores esse “fundo perpétuo”

deve permanecer intangível, enquanto a sociedade continue operando e seus credores

não sejam pagos.

No entanto, o que ocorre é uma proteção relativa à manutenção do capital

social no valor inicialmente estipulado, uma vez que a intangibilidade apenas garante a

inalterabilidade da cifra contábil do capital social, enquanto o valor do patrimônio

líquido, por sua vez, pode tornar-se inferior a tal cifra. Logo, esse princípio não objetiva

“acautelar credores quanto às perdas decorrentes do normal andamento da atividade

social, mas sim impedir que, através da atribuição aos sócios de valores em prejuízo do

capital nominal, a garantia mínima que o capital social visa suprir reste prejudicada”451.

O princípio da intangibilidade destina-se a proteger credores sociais “que vêem nessa

cifra, em comparação com os lucros ou prejuízos acumulados, bem como com as

demais contas constantes do PL, a eventual robustez da sociedade”452.

A intangibilidade é contemplada, por exemplo, na previsão de prévia

concordância, tácita, dos credores para que haja a redução do capital social nas

sociedades anônimas, bem como nas limitadas por meio de publicação em meios de

comunicação e prazo para impugnação à redução.

O princípio da congruência diz respeito à correspondência entre o capital social

e a atividade explorada pela sociedade. O valor do capital social deve ser adequado ao

porte da empresa (tamanho, faturamento) e ao objeto social da sociedade. Contudo, o

direito brasileiro não possui regras que assegurem tal congruência. Inclusive no direito

comparado há poucos mecanismos que auxiliam a manutenção dessa correspondência

entre a cifra do capital social e as demandas decorrentes da realização do objeto social.

O que se observa, em alguns sistemas, são regras que objetivam a compatibilização

entre o capital social e o porte da empresa. O problema é estabelecer qual o valor

adequado para cada ramo de atividade. Desta forma, tais exigências serviriam para se

evitar os casos extremos de absoluto desrespeito ao princípio da congruência.453

Por não haver dispositivos que assegurem a concretização desse princípio,

poderia dizer-se que deixaria de possuir sua necessária eficácia. Gevaerd, no entanto,

segundo afirma Hübert, defende que o princípio da congruência “implica a adoção,

450 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 198. 451 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 73. 452 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 74. 453 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 75-76.

95

pelos fundadores ou incorporadores, de ações tendentes a manter a proporção entre

capital e dimensão da empresa”454. Para Gevaerd:

“O capital social constitui um conceito operativo essencial, que permite a comunicação e a solução de problemas concretos no âmbito da instituição empresarial societária. Sua funcionalidade, a propósito, está umbilicalmente ligada, entre outros aspectos:

(...)

(iii) à possibilidade (a) lógica, (b) física e (c) jurídica de se imputar capacidade de exercício à instituição societária, e (iv) à aferição da licitude e possibilidade jurídica da atividade institucional societária, enfocada sob o

prisma da suficiência dos meios patrimoniais incorporados vis-à-vis o atingimento do objeto social.”455

Por conta disso, o autor afirma que se faz necessário um constante

monitoramento quanto à suficiência do patrimônio incorporado. “A constatação de sua

insuficiência poderá redundar na consideração de que a sociedade é irregular, porquanto

civilmente incapaz de atuar, descaracterizando, em consequência o tipo societário”.456

Ivens Hübert457 não concorda com tal conclusão devido à insegurança jurídica que

poderia gerar, uma vez que não há regra expressa que determine a congruência entre

capital social e objeto social como condição de existência da sociedade.

Por fim, o princípio da realidade diz respeito à necessidade de os bens e

créditos prometidos a título de capital social corresponderem ao exato valor das ações

emitidas ou das quotas criadas como contraprestação. É por conta desse princípio que

há regras para a avaliação dos bens integralizados, verificando-se se correspondem ao

valor indicado no ato de subscrição, inclusive podendo haver a responsabilização do

subscritor, dos avaliadores e até dos sócios pelos prejuízos causados pela

superavaliação do bem.458

Inclusive, nas sociedades limitadas todos os sócios respondem solidariamente

pela exata estimação dos bens conferidos ao capital social (art. 1055, do Código Civil).

Ao passo que na Lei das S/As (art. 8º, § 6º), a responsabilidade solidária é estabelecida

454 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 77. 455 GEVAERD apud HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 77. 456 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 78. 457 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 78. 458 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 79.

96

apenas entre os subscritores de bens em condomínio, respondendo os avaliadores e

subscritores pelos danos que causarem por culpa ou dolo na avaliação dos bens.

No entendimento de Modesto Carvalhosa459, o Código Civil ao estabelecer a

responsabilidade solidária de todos os sócios pela integralização do capital social (o que

não ocorre nas sociedades anônimas) tem como fundamento o princípio da integridade

do capital social. O disposto no art. 1.055 vem reforçar a defesa de tal princípio, pois

quando se atribui um valor maior que o real ao bem que será integralizado, faltará para

a integridade do capital social “a diferença entre o valor do capital social, calculado com

base no valor real do bem, conferido e o valor nominal total do capital social”460.

Portanto, o princípio da realidade corrobora para a concretização do princípio da

integridade, que é, conforme anteriormente exposto, o princípio norteador de todos os

outros.

Salienta Ivens Hübert461 que esse princípio relaciona-se com o princípio da

intangibilidade, na medida em que de nada adianta o capital social ser intangível se o

real valor é muito abaixo do valor indicado na cifra. Deve haver uma correspondência

entre o capital nominal e o montante real correlato, as duas faces que compõem o capital

social.

O autor ressalta, ainda, a importância do princípio da realidade à garantia de

terceiros credores, uma vez que se procura assegurar a idoneidade dos bens

integralizados para que possam servir de forma adequada a essa garantia.

Essa realidade quanto à correspondência entre o valor efetivamente

integralizado e o capital social nominal deveria manter-se permanente durante toda a

vida da sociedade, garantindo uma relevância prática ao capital social. No entanto, o

ordenamento brasileiro não possui mecanismos que garantam essa permanência,

podendo o capital real afastar-se do valor constante em sua cifra no decurso dos

negócios.462

Lamy Filho463 enumera, ainda, três princípios: o princípio da unidade do

capital social, no qual toda sociedade deve ter apenas um capital social; o princípio da

fixidez do capital social, segundo o qual o capital social estipulado no estatuto é fixo, só

pode ser modificado com observância das normas legais, protegendo os credores sociais

459 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. Editora Saraiva. São Paulo, 2003, p. 15-16. 460 CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. Editora Saraiva. São Paulo, 2003, p. 16. 461 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 79-80. 462 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 80. 463 FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 197.

97

contra sua redução por deliberação dos acionistas; e o princípio da irrevogabilidade das

prestações para a constituição do capital das anônimas, constituindo o capital social,

obrigatoriamente, fundo perpétuo, que não pode ser devolvido aos sócios, total ou

parcialmente, antes de pagos todos os credores, mesmo na hipótese de liquidação da

sociedade.

4. Funções do capital social

Quanto às funções do capital social, assim quanto aos princípios, não há

convergência entre os autores. Há consenso apenas em relação às funções de garantia e

de produtividade. Ivens Hübert elenca como funções primordiais a função de avaliação

econômica da empresa, a função de medida da responsabilidade dos sócios, a função de

produtividade, a função de garantia e a função de distribuição do poder societário.464

A função de avaliação econômica da empresa estaria na possibilidade de o

capital social medir a solidez do empreendimento empresarial. “A partir do exame do

valor integralizado do capital social, pode-se verificar no patrimônio bruto da sociedade

quanto corresponde efetivamente ao capital próprio”465. Ao longo do desenvolvimento

da atividade, o sucesso ou o fracasso do empreendimento pode ser avaliado

comparando-se o patrimônio líquido com o capital social (patrimônio líquido superior

ao capital social indica obtenção de resultados positivos pela sociedade empresária).

No entanto, a realidade econômica e contábil é bem mais complexa, o que

relativiza essa função do capital social. Vale lembrar que os ativos que ingressam não

são decorrentes apenas dos aportes introduzidos pelos sócios no período de formação da

empresa; ao longo da atividade, pode haver também a capitalização de lucros. Desta

forma, “a fixidez da cifra do capital, não corrigida, desvaloriza-se em relação aos

demais ativos ingressados posteriormente”466, deixando o capital social de ser medida

da saúde econômica da sociedade empresária.

O capital social também contribui para a determinação da extensão da

responsabilidade dos sócios. Nas sociedades limitadas, segundo dispõe o art. 1.052 do

Código Civil, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas

todos respondem solidariamente pelo montante que por acaso não seja integralizado. Já

nas sociedades anônimas, a responsabilidade dos sócios ou acionistas é limitada ao

464 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 81-82. 465 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 82. 466 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 83.

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preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas (Lei 6.404/76, art. 1º), não

havendo, contudo, a responsabilidade solidária pela integralização do capital social.

A função de produtividade refere-se ao fato de o capital social corresponder ao

conjunto de valores trazidos pelos sócios à sociedade a fim de possibilitar o

desenvolvimento da atividade produtiva.

“Essa função de produção (ou de produtividade) que desempenha o capital social decorre da circunstância de o ativo correspondente à contrapartida da contribuição dos sócios poder ser amplamente utilizado na atividade produtiva da sociedade, visando à consecução de seu fim social”.467

Waldirio Bulgarelli468 também elenca a função de produtividade como uma das

três funções básicas do capital social (juntamente com a função de garantia e de

determinação da posição do sócio), e define-a como a adequação do capital social,

tendo este conteúdo tipicamente econômico, à natureza do objeto social. Alerta o autor

que, por conta dessa função, a Junta Comercial do Estado de São Paulo já chegou a

negar arquivamento a contrato social de sociedade cujo capital foi declarado

insignificante perante o objeto social.

Devido à ausência de instrumentos legais que garantam a concretização da

função de garantia aos credores, a função de produtividade tem ganhado relevo nos

estudos sobre o capital social. Assim informa Ivens Hübert citando Penteado:

“Na opinião de muitos autores, sobretudo os economistas, a significação primordial do capital social no âmbito da disciplina das companhias reside em sua vocação de, desde que devidamente estruturado, propiciar a geração de lucros segundo as metas e objetivos preestabelecidos; a sua serventia em termos de garantia para os credores, que os juristas põem em relevo ao analisá-lo, nada mais seria, segundo esta concepção, do que uma consequência da função de produtividade do capital”.469

A função de garantia do capital social revela-se “na obrigação imposta pela lei

de que o valor real dos bens e direitos que integram o patrimônio ativo da companhia

467 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 85. 468 BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 99. 469 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 85.

99

supere o total das dívidas e obrigações que o gravam, em quantia ao menos igual à que

é expressa pelo capital”470. Essa função consiste no fato de que, pelo menos

inicialmente, o capital social é a principal parcela de capital próprio da sociedade,

“constituindo assim um montante adicional de numerário ou bens que possa satisfazer

os débitos que o empresário venha a assumir perante credores”471. É uma garantia

mínima oferecida pela sociedade empresária aos seus credores. Desta forma, ressalta

Ivens Hübert472, essa função deve estar associada aos princípios da intangibilidade, da

realidade e da congruência, para que o capital real, que servirá de garantia, represente o

valor inscrito na cifra do capital social.

Acertadamente, o autor observa que o capital social não pode ser visto como a

única garantia aos credores sociais, mas como uma garantia suplementar, “atuando

como um fundo de reserva, sem contrapartida no passivo”473. A garantia resultará

“muito mais do bom desempenho da empresa, ou seja, de sua situação econômico-

financeira-patrimonial atual, do que propriamente do capital social”474.

Essa função de garantia relaciona-se com a separação patrimonial da sociedade

e com a responsabilidade limitada dos sócios. O capital social seria a parte do

patrimônio da sociedade desonerada de uma contrapartida social e adequada ao porte da

empresa. Hübert475 defende que tal tese seria pertinente se houvesse mecanismos que

mantivessem o capital real congruente ao capital nominal durante toda a existência da

sociedade.

Visando a essa função de garantia aos credores sociais é que certos

ordenamentos jurídicos possuem instrumentos que buscam assegurar a efetiva

adequação do capital nominal ao capital real tanto no momento da constituição quanto

ao longo do empreendimento empresarial, concretizando os dois vieses do princípio da

realidade. A legislação brasileira, como já dito, só possui regras quanto ao momento da

constituição, enfraquecendo essa função de garantia que deveria ser cumprida pelo

capital social.476

Hübert faz uma análise interessante entre a ausência de regras que efetivem tal

função e a imputação do risco inerente à atividade empresarial. Segundo o autor:

470 BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 99. 471 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 86. 472 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 86. 473 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 87. 474 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 91. 475 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 88. 476 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 90.

100

“Ao deixar de estabelecer regras que garantam que o capital seja não apenas uma cifra formal, mas também um valor real e congruente com o porte da atividade econômica da empresa, essa omissão acarreta o aumento do risco de terceiros credores. E quanto a eles, é preciso considerar que o risco não é transferido de igual modo a todos. Os chamados credores fortes (fornecedores, instituições financeiras ou outros financiadores) têm plenas condições de estabelecer suas próprias garantias contratuais, muito mais eficazes do que o capital social, na medida em que repercutem diretamente sobre o patrimônio da sociedade ou sobre o de outras pessoas físicas ou jurídicas vinculadas. Já os chamados credores fracos (pequenos fornecedores, trabalhadores, consumidores etc.) não possuem essa capacidade reivindicativa, pelo que são os mais afetados pela transferência de risco decorrente da ausência de formas de efetivação da função de garantia”.477

Reduzindo os riscos dos credores, a efetivação da função de garantia do capital

social conduziria também à diminuição do custo da generalidade das transações

comerciais. Os pequenos credores poderiam reduzir os preços, e os grandes credores

poderiam subtrair cláusulas de garantia na celebração de seus contratos.478

No sentido de ratificar a função de garantia aos credores do capital social,

Bulgarelli entende o capital social como limite da variação do patrimônio da sociedade

empresária para menor e acrescenta:

“Nesse sentido, é oportuno lembrar a lição de A. Brunetti, ao pôr em relevo o

aspecto contábil do conceito do capital social, acentuando que, não se constituindo por um núcleo especial de bens, mas expressando uma partida contábil, não pode representar para os credores sociais uma garantia propriamente dita. A garantia para os credores é somente indireta porque, colocando-se no balanço o capital, como um débito da sociedade, impedirá que se atribuam aos acionistas lucros sem ter em conta aquela partida do passivo; seria, pois, uma fictio juris concebida para a salvaguarda dos credores sociais”.479

O capital social também tem a função de distribuir o poder societário e

delimitar os direitos específicos de cada sócio. O poder de cada sócio corresponde ao

montante de capital que cada um integralizou ou prometeu integralizar na sociedade.

Devido à atual crise enfrentada pelas funções de produtividade e de garantia por conta

da ausência de instrumentos legais que as efetivem, a função de distribuição do poder

societário apresenta-se como justificativa à existência do capital social. Tal função

477 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 91. 478 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 92. 479 BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 96.

101

ganha relevância principalmente nas sociedades limitadas, nas quais há maior relação

entre o capital integralizado pelo sócio e o seu poder de decisão na sociedade

empresária. Também nas companhias essa função tem destaque, mas deve-se lembrar

que nas sociedades anônimas para se definir o controle e a distribuição de poderes há

diversos mecanismos além da participação no capital social.480

Há, ainda, outra função mencionada por Carvalhosa481 (considerada por ele a

nova função do capital social), a função do capital social como índice de

endividamento. Considerando que o capital social, atualmente, é um parâmetro entre o

valor dos recursos próprios da sociedade e os empréstimos empregados na atividade

empresarial, ele passa a configurar “o montante de que a companhia deve estar dotada

para poder alcançar aquele equilíbrio econômico-financeiro considerado imprescindível

para a realização dos seus objetivos empresariais”. Afirma também o autor:

“Essa nova função do capital, que interessa não só aos credores como aos próprios acionistas, serve para evidenciar se o capital próprio é sensivelmente inferior ao capital de terceiros (capital de crédito) devido pela companhia. Se houver esse desequilíbrio, ter-se-á um indício de perda de elasticidade operacional da companhia, representando um dado importante no juízo de conveniência econômica de contratar com ela ou de subscrever suas ações e demais valores de sua emissão”.482

5. O fenômeno da subcapitalização

O fenômeno da subcapitalização é uma problemática constante nas discussões

entorno do capital social. Antes de explorar seus efeitos e consequências no âmbito da

responsabilização dos sócios, faz-se necessário distinguir as espécies de

subcapitalização.

Subcapitalização formal é quando os meios necessários ao exercício da

atividade empresarial são resultantes de financiamentos de terceiros (sócios ou não) e

não da integralização de valores a título de capital social pelos sócios. Há a deturpação

da função do capital social, principalmente da função de garantia.483

480 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 92-94. 481 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 199. 482 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. Editora Saraiva. São Paulo, 2011, p. 199. 483 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 102.

102

O problema dessa subcapitalização é em caso de falência da sociedade. De um

lado, não há regras no direito brasileiro que proíbam os sócios de fazer empréstimos à

sociedade empresária ao invés de capitalizá-la; eles são livres para decidir quanto à

estrutura patrimonial da sociedade. Por outro lado, há o direito dos credores sociais.

Havendo o processo de falência, se os recursos provenientes de empréstimos dos sócios

tivessem constituído entradas ao capital social, esse valor não poderia ser exigido da

sociedade antes de satisfeito o passivo da sociedade, satisfazendo a função de

garantia.484

A subcapitalização material é quando a sociedade empresária não possui meios

suficientes para a realização do seu empreendimento, não havendo qualquer tipo de

financiamento por parte dos sócios.485

Essa hipótese de subcapitalização pode levar à insolvência da sociedade e,

consequentemente, à sua falência.

A subcapitalização pode ser originária ou superveniente à constituição da

sociedade. No primeiro caso, pode ser formal, quando o capital nominal é muito aquém

dos recursos necessários para realização do objeto social; ou material, quando há

supervalorização dos bens integralizados, levando a uma incongruência entre o capital

nominal e o capital social real. No segundo caso, há um aumento do empreendimento,

do objeto social da empresa, mas sem o correspondente aumento do capital social,

caracterizando-se uma subcapitalização formal; e pode haver a subcapitalização

material quando ocorrem perdas decorrentes do normal desenvolvimento da

atividade.486

Ivens Hübert487 sintetiza e esquematiza esses tipos de subcapitalização da

seguinte forma:

Subcapitalização

formal Subcapitalização material

Subcapitalização originária

Subscrição de capital social baixo e elevado endividamento, de modo que o capital social é incongruente com a dimensão da empresa.

Dentre outras possibilidades, superavaliação de bens ou direitos integralizados pelos sócios como capital social.

484 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 101. 485 DOMINGUES apud HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 103. 486 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 104. 487 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 104.

103

Subcapitalização superveniente

Crescimento da dimensão da empresa sem o correspondente aumento do capital social.

Perdas graves, que ocasionem a desconexão entre a cifra e o capital real correspondente.

O problema da subcapitalização, segundo Hübert488, se faz presente quando há

a insolvência da sociedade, comprometendo a continuidade da empresa e a garantia dos

credores.

O fenômeno da subcapitalização tem repercussões tributárias e societárias. No

âmbito tributário, a subcapitalização causa prejuízo ao Fisco, enquanto no direito

societário os prejudicados são os credores sociais, em caso de a sociedade tornar-se

insolvente.489 Embora haja essas duas vertentes, o presente trabalho concentrar-se-á

apenas no direito societário.

No direito societário, o fenômeno diz respeito à “desproporção entre capital

social, nominal ou real, e dimensão da atividade, independentemente de o capital de

terceiros provir ou não dos sócios (tanto na subcapitalização material, quanto na

formal)”490. A solução para tal problema, segundo Hübert, seria no seguinte sentido:

“garantir um quantum razoável de capital social, conforme a natureza da atividade. O capital social poderá, assim, ser legalmente fixado em determinado patamar mínimo (subcapitalização formal), ou então, mantido em função do patrimônio líquido, evitando uma situação de passivo descoberto (subcapitalização material)”.491

Primeiramente, vale lembrar que, no ordenamento pátrio, não há regras que

fixem um parâmetro para o estabelecimento de um quantum razoável de capital social

que atenda a atividade que a sociedade se propõe a desenvolver.

O que se questiona sobre o fenômeno da subcapitalização é se deve tratá-la

como fraude ou abuso ou se a opção de subscrever o valor de capital social aquém do

necessário à atividade empresarial está dentro da liberdade de que gozam os

488 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 105. 489 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 110. 490 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 110. 491 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 110.

104

empresários para a realização de suas atividades. Contrapõem-se aí dois interesses,

conforme expõe Hübert:

“Por um lado, temos que, com base no princípio da liberdade de empresa, os participantes de uma sociedade empresária são livres para decidir sobre o montante o qual estão dispostos a investir a título de capital social. Por outro, há que se considerar que uma sociedade com capital social baixo terá potencialmente menores condições de satisfazer suas obrigações, em caso de insolvência, prejudicando, dessa forma, seus credores”.492

No direito comparado, os ordenamentos jurídicos ao tratarem dessas questões

variam conforme adotem posições mais liberais ou mais intervencionistas quanto à

liberdade empresarial.493

Tanto em certos Estados norte-americanos como em alguns países europeus, a

fixação de um capital social mínimo para determinados tipos de atividade tem sido um

mecanismo para “eliminar o custo inerente ao risco empresarial ocasionado pela

subcapitalização da sociedade”494. Nos EUA, tendo a lei estabelecido capitais mínimos

para a formação da sociedade anônima, a obediência a essas normas exoneraria os

acionistas da responsabilidade, mas com ressalvas, conforme explica Fábio Ulhoa:

“considera-se que os credores negociais não têm direito de reclamar da subcapitalização da sociedade devedora porque a tomaram por suficientemente capitalizada ao fecharem o contrato. De qualquer forma, podiam não contratar. Contudo, em relação aos credores não negociais, como os titulares de direito de indenização por ato ilícito, tem-se admitido a responsabilização dos acionistas quando demonstrada a insuficiência do capital social”.495

Nesses ordenamentos, tem-se estipulado valores mínimos de capital para

sociedades anônimas e para outros tipos societários; para os últimos um montante

geralmente inferior àquele estabelecido para as SAs. Por exemplo, na Alemanha esse

montante para as sociedades anônimas é de EUR 50.000,00 e para as sociedades por

quotas é de EUR 25.000,00. Em Portugal, o valor para as sociedades anônimas também

492 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 111. 493 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 111. 494 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 114. 495 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 199.

105

é de EUR 50.000,00.496 E, até março de 2011, o valor para as sociedades por quotas era

de EUR 5.000,00. Importante lembrar que, desde 1976, a 2ª Diretiva do Conselho da

Comunidade Européia exige um montante mínimo de capital social para as sociedades

anônimas.497

Quando da criação da Lei 6.404/76, foi discutido sobre a fixação de um capital

social mínimo para as sociedades anônimas, mas o objetivo era restringir a utilização

desse tipo societário a empreendimentos de grande porte, o que não prevaleceu, tal qual

expresso na Exposição de Motivos do Projeto que a originou:

“O projeto não exige capital mínimo na constituição da companhia, porque não pretende reservar o modelo para as grandes empresas. Entende que, embora muitas das pequenas companhias existentes no País pudessem ser organizadas como sociedades por quotas de responsabilidade limitada, não há interesse em limitar arbitrariamente a utilização de forma de companhia, que oferece maior proteção ao crédito devido à publicidade dos atos societários e das demonstrações financeiras”.

Contudo, o debate sobre o estabelecimento de capital mínimo prevalece, a fim

de ampliar a proteção dos credores sociais, por parte de alguns autores. Outros criticam

tal posicionamento ou por defenderem que o patrimônio é que serve de garantia aos

credores, e não o capital social, ou por defenderem a liberdade empresarial.498

Faz-se necessário ressaltar a dificuldade em se estabelecer tal valor mínimo.

Nesse sentido alerta Ivens Hübert:

“O mero estabelecimento de um valor para cada tipo societário, como se faz em outros ordenamentos jurídicos, não deixa de ser artificial quando se tem em conta a realidade específica de cada segmento. Seria preferível, portanto, que os capitais mínimos fossem definidos não somente em função do tipo societário, mas também tendo em vista o objeto social da sociedade. Todavia, essa orientação, embora mais adequada à realidade das diferenças entre cada empresa, redundaria inevitavelmente em casuísmo de difícil solução e intrincadas consequências práticas”.499

496 Até a promulgação do Decreto-lei nº 33 de 7 março de 2011 o valor para as sociedades por quotas era de EUR 5.000,00. No entanto, tal disposição foi alterada, pondo-se fim à obrigatoriedade de um capital social mínimo, objetivando a simplificação do processo de constituição das sociedades por quotas e das sociedades unipessoais por quotas e a promoção do empreendedorismo. 497 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 114-115. 498 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 115-116. 499 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 117.

106

Segundo Fábio Ulhoa500, a questão da subcapitalização envolve o direito dos

credores da sociedade e a responsabilidade dos acionistas pelas obrigações sociais.

Se no ato da constituição, os fundadores calculam mal o capital social e

aportam recursos inferiores aos necessários, esse erro de cálculo não gera nenhuma

responsabilidade dos acionistas. Se a necessidade de recursos for suprida por terceiros,

não acionistas, mediante financiamento bancário, mútuo ou autofinanciamento, também

não se fala em eventual responsabilidade dos sócios, ainda que na hipótese de falência

da sociedade. O problema é quando a sociedade anônima necessita de recursos para

absorver perdas ou ampliar sua atividade e os sócios, em vez de capitalizar, emprestam

dinheiro para a sociedade ou subscrevem instrumentos de autofinanciamento. Nessa

situação de subcapitalização é cabível pesquisar a responsabilidade do acionista, em

especial do controlador, pela obrigações sociais, ou seja, quando os recursos

provenientes do capital social são insuficientes, ou a companhia os perde, questiona-se

se seria lícito ao sócio prestar os recursos faltantes, na condição de credor (mutuante ou

debenturista), ou se existiria algo como um dever de capitalizar a sociedade. A questão

só ganha relevo quando a sociedade tem sua falência decretada, apesar dos recursos

prestados. Havendo isso, os acionistas que financiaram (não capitalizaram) concorrem

com os demais credores pelo crédito relacionado a esse aporte. Indaga-se se não

deveriam ser responsabilizados pela subcapitalização da sociedade.501

No Brasil, o acionista não responde pela subcapitalização da companhia. A

responsabilização dos sócios é limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou

adquiridas (art. 1º da LSA), e a subcapitalização não é exceção à regra, conforme o

entendimento de Fábio Ulhoa502. Ressalta o autor que não é abuso do poder de controle

a celebração de mútuo entre controlador e sociedade nem a subscrição por ele de

debêntures, se em condições equitativas. No direito brasileiro, nada impede:

“que o acionista preste à companhia subcapitalizada os recursos de que ela necessita, para sobrevivência ou crescimento, mediante instrumento diverso da integralização de aumento do capital social. O acionista não tem, em outros termos, dever de capitalizar a sociedade anônima, nem mesmo na hipótese de o patrimônio social ser insuficiente ao atendimento de

indenizações por atos ilícitos”. 503

500 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198. 501 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198-199. 502 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 199-200. 503 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 199-200.

107

A Lei de Falências de 2005 (art. 83, VIII, b) foi que introduziu pela primeira

vez no direito brasileiro o desestímulo à subcapitalização, classificando como

subquirografário os créditos dos sócios perante a sociedade falida. A lei subordinou os

créditos dos sócios aos dos demais credores, independentemente da espécie ou da

existência de cláusulas de garantia nos contratos, ou seja, “eventuais benefícios que os

sócios pudessem usufruir sobre outros créditos na falência, em função de aportarem

valores a título de empréstimos ao invés da efetiva capitalização, deixam de existir”504.

Ivens Hubert505, pertinentemente, indaga se, diante da ausência de instrumentos

que evitem a subcapitalização no direito brasileiro, seria aplicável a regra de

desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, Código Civil) nos casos em que o

capital social é completamente desproporcional ao volume da atividade empresarial, ou

seja, em casos extremos.

O fundamento dessa hipótese de desconsideração, segundo o autor, seria o

abuso por parte dos sócios, se evidenciado o intuito deles de “beneficiar-se do

patrimônio social, deixando a sociedade propositalmente com capital próprio reduzido,

e cercando-se, por exemplo, de garantias reais para execução dos contratos de mútuo

celebrados entre eles e a sociedade”506. Desta forma, a aplicação da desconsideração da

personalidade jurídica caberia apenas para os casos de manifesto abuso e desvio de

finalidade da personalidade jurídica da empresa pelos sócios, devendo ser provado o

manifesto interesse deles “em não conferir à sociedade o capital social adequado a sua

atividade, preferindo substituí-lo por formas mais seguras de investimentos”507,

evidenciando-se o uso fraudulento da personalidade jurídica.

No entendimento de Ivens Hübert508, poderia o juiz, nesses casos,

desconsiderar as garantias pactuadas em contratos de mútuo entre a sociedade e os seus

sócios, priorizando o pagamento dos demais credores, ou, ainda, buscar “no patrimônio

dos sócios os valores necessários para garantia dos credores, até o valor que viesse a ser

considerado, pelo Juiz competente, como minimamente adequado em relação ao porte

da empresa”.

Seguindo esse mesmo caminho, Joaquim Antônio de Vizeu Penal Santos,

desembargador do TJ/RJ, também coloca a subcapitalização como uma das hipóteses de

504 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 120. 505 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 117. 506 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 118. 507 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 119. 508 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 118-119.

108

desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade, limitando-se àqueles

casos no qual:

“o capital é manifestamente insuficiente para o exercício da atividade empresarial, observada a tendência para configurar o abuso da personificação jurídica e do crédito e constituição ou fundamento da companhia com volume de capital próprio evidentemente insuficiente para os seus negócios e com grau de endividamento temerário”.509

O fundamento da exclusão da limitação da responsabilidade dos acionistas

pelas dívidas da sociedade, segundo o desembargador, está no simples fato de que,

estando defasada no seu capital (insuficiência do capital próprio), a sociedade não tem

mais condições de desenvolver a sua normal atividade empresarial.

Fábio Comparato, em sua obra O Poder de Controle na Sociedade Anônima,

diz que a jurisprudência americana, nesses casos de capitalização insuficiente,

“não tem admitido que o controlador, no caso de insolvabilidade da companhia, oponha o princípio da separação patrimonial para evitar a execução sobre seus bens, pois um dos deveres do controlador é o de prover a sociedade, adequadamente, de capital” 510.

Para Joaquim Penalva Santos,

“a responsabilidade do sócio que dotou a sua sociedade de capital próprio insuficiente surgirá somente quando os sócios deveriam ter reconhecido, se aplicada a diligência necessária aos negócios, que a sociedade estava descapitalizada e que portanto havia perigo de prejuízos para os credores”511. Percebe-se aí a necessidade de se verificar se os sócios cumpriram com seu dever de diligência.

No direito comparado encontramos diversas soluções ao problema da

subcapitalização formal. No direito alemão, por exemplo, em caso de falência, o

pagamento de empréstimos de sócios à sociedade só poderá ser efetuado depois de

satisfeito todo o passivo social. Esses empréstimos realizados em um momento em que

os sócios deveriam capitalizar são considerados como se capital fossem, não tendo

prioridade.512

509 SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 74, 2001. 510 SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 74, 2001. 511 SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 75, 2001. 512 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 121.

109

Quanto à subcapitalização material, alguns ordenamentos, como o alemão,

admitem o afastamento da responsabilidade limitada dos sócios quando ocorre tal

fenômeno de maneira facilmente perceptível. Outras legislações, como a italiana e a

portuguesa, admitem a decretação judicial de dissolução da sociedade, por

impossibilidade de cumprimento do objeto social, o que a rigor também está previsto no

art. 1.034, II do Código Civil brasileiro e no art. 206, II, “b” da Lei das SAs. Outra

solução é o estabelecimento da necessidade de congruência entre o capital social e o

porte da sociedade empresária (o problema é definir o que seria uma capitalização

adequada ao empreendimento realizado). Por fim, há a solução disciplinada no direito

belga que exige o arquivamento no registro de comércio, para avaliação a qualquer

tempo, de um plano financeiro e justificativo que apresente os critérios que levaram à

fixação daquele capital social.513

Tais soluções, no entanto, são adequadas apenas para a subcapitalização

originária. Para a subcapitalização material superveniente, a 2ª Diretiva Comunitária, de

13 de dezembro de 1976, objetivando proteger os credores, os sócios e a empresa em si,

sugeriu a adoção, pelos Estados membros, de dispositivos legais que exigissem

providências, por parte da assembleia geral da sociedade, quando constatada perda

grave de seu capital social (patrimônio líquido), tendo por finalidade tornar pública a

má situação financeira da sociedade.514

O direito português foi um pouco além e determinou, ainda, que, caso o

patrimônio líquido caia à metade do capital social, os sócios, reunidos em assembléia

geral, deverão tomar providências como, por exemplo, a dissolução da sociedade, a

redução do capital social, ou a subscrição de capital (para o fortalecimento da

empresa).515

Em relação a essa medida, Ivens Hübert assim se posiciona:

“Trata-se de medida que, além de oferecer ampla liberdade à atividade empresarial, importante para o seu estímulo, i) força a sociedade a adequar-se à realidade de suas perdas, ii) permite a dissolução, antes que as perdas sejam tamanhas que não se possa mais arcar com todo o passivo, ou iii) impulsiona novos investimentos por parte dos acionistas, se eles entenderem que o empreendimento é viável. (...) Por tratar-se de uma preocupação de ordem econômico-financeira, interessa nesse caso criar uma estrutura que permita aos credores publicidade quanto às informações sobre a situação financeira

513 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 122-123. 514 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 123. 515 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 124.

110

da sociedade, de modo a preservar a sociedade e suas relações negociais. E, nesse sentido, o dispositivo legal criado pelo direito comunitário europeu funciona como uma espécie de ‘alarme’, que obrigará os sócios a atuarem de modo a deixar claro para terceiros a situação patrimonial da sociedade e as providências aprovadas por eles para resolvê-la. Como instrumento de contenção para se evitar um estado de insolvência irreversível, trata-se de interessante solução legislativa”.516

6. Conclusão

A fim de se fazer uma ampla análise sobre a disciplina do capital social, ele

deve ser visto segundo seu caráter bivalente, na relação entre capital nominal – a cifra

contábil, formal e abstrata - e o capital real – o fundo patrimonial correspondente a

todos os bens, dinheiro e créditos integralizados.

O capital social, por si só, não constitui a garantia aos credores sociais. Na

verdade, ele é uma das garantias dos credores, na medida em que é a medida, o limite, o

valor mínimo a que pode chegar o patrimônio social. E, para que possa cumprir

plenamente essa sua função tão questionada pela doutrina, faz-se necessário a

estipulação de instrumentos legais que garantam a efetivação de seus princípios, dentre

eles, o princípio da integridade, da intangibilidade, da congruência e da realidade.

No direito societário brasileiro, há mecanismos que procuram assegurar a

devida concordância entre os bens, dinheiro e créditos prometidos à título de capital

social e o exato valor das ações emitidas ou quotas criadas como contraprestação, como

a avaliação dos bens a serem integralizados. As rigorosas regras estabelecidas para

aumento e diminuição do capital social nominal procuram garantir a intangibilidade da

cifra contábil.

No entanto, com o normal andamento da atividade empresarial, o montante

correspondente ao capital real pode se afastar do valor constante na cifra, ferindo o

princípio da realidade e da integridade. Assim como o capital social estipulado

originariamente pode não corresponder às necessidades da atividade explorada pela

sociedade, não sendo suficiente à realização de seu objeto social, violando o princípio

da congruência. Diante dessas situações, não havendo instrumentos que as regulem, tal

qual se mostra no ordenamento brasileiro, a função do capital social de garantia aos

credores fica abalada.

516 HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009, p. 124-125.

111

Quanto à congruência entre o capital social e a atividade explorada, vê-se no

direito comparado a determinação de um capital mínimo para a constituição da empresa

tendo em vista seu porte. O problema é estabelecer o valor adequado a cada ramo de

atividade.

Verificada a insuficiência de capital social diante do volume de obrigações

assumidas pela sociedade empresária, tem-se o fenômeno da subcapitalização. No

direito societário brasileiro, também não há normas que regulem tal situação e que

responsabilizem os sócios e/ou controladores da empresa pela inadequada capitalização.

Há apenas um certo desestímulo à subcapitalização na Lei de Falências ao classificar

como subquirografário os créditos dos sócios perante a sociedade falida, ou seja, os

créditos dos sócios que financiaram em vez de capitalizar a sociedade são os últimos da

fila para quitação em caso de falência da sociedade.

Diante da omissão legislativa, mostra-se como alternativa para a

responsabilização dos sócios a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, nos

casos em que a insuficiência de capital é flagrante, configurando abuso e desvio de

finalidade da personalidade jurídica da sociedade. Quando o sócio, tendo o dever de agir

com diligência, não o fez, permitindo a subcapitalização da empresa.

Um mecanismo interessantíssimo que se admite no direito comparado e que

poderia ser implementado no ordenamento brasileiro, evitando-se, assim, os problemas

decorrente da subcapitalização, é a exigência de que as assembleias gerais das

sociedades tomem providências quando constatada perda grave de seu capital social,

tornando-se pública a má situação financeira da empresa.

Em suma, desde que haja instrumentos legais que garantam o respeito aos

princípios norteadores da disciplina jurídica do capital social, esse terá capacidade de

exercer suas funções, entre elas a de garantia aos credores sociais.

7. Referências

BULGARELLI, Waldirio. Manual das Sociedades Anônimas. 13ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2001. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 1º volume. 6ª ed. rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2011. CARVALHOSA, Modesto. Comentários ao Código Civil. Volume 13. São Paulo: Saraiva, 2003.

112

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. Vol.2 . 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CORRÊA-LIMA, Osmar Brecha. Sociedade Anônima. 3ª ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. FILHO, Alfredo Lamy. PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009. HÜBERT, Ivens Henrique. Sociedade empresária & capital social. Curitiba: Juruá Editora, 2009. NEVES, Rodrigo Santos. O princípio da intangibilidade do capital social. In: Revista Forense, v. 98, n. 363, p. 161-177, set./out. 2002. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. V. 2. 28ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. SANTOS, J. A. Penalva. Sociedade anônima, subcapitalização, desconsideração da personalidade jurídica da sociedade anônima. In: Revista da EMERJ, v. 4, n. 14, p. 74-77, 2001.

113

IV.

AS INOVAÇÕES DO NOVO CÓDIGO CIVIL REFERENTES ÀS SOCIEDADES LIMITADAS

Victor Oliveira Fernandes

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Reformulações Gerais. 2.1. A nova natureza jurídica. 2.2.

A responsabilidade limitada solidária. 2.3. A subdivisão das sociedades limitadas. 2.3.2.

Consequências da subdivisão. 2.4. A regência supletiva e o contrato social. 2.5. Dos

problemas decorrentes do artigo 1.053. 2.6. Dissolução parcial e retirada imotivada. 3.

Das quotas sociais. 3.1. A livre cessão de quotas. 3.2. A liquidação a pedido de

credores. 4. Tendências da administração. 4.1. A nova estrutura da administração. 4.2.

Responsabilidade de administradores. 4.3. As novas regras de controle. 4.4. O Conselho

Fiscal. 5. Assembleias e quoruns de deliberação. 5.1. As assembléias e suas

formalidades. 5.2. Novo quoruns deliberativos. 5.3. Críticas. 5.4. A legalidade do

acordo de quotistas. 6. Conclusão. 7. Referências.

1. Introdução

Antes da vigência do Código Civil de 2002, as sociedades limitadas eram

regidas pelo Decreto nº 3.708 de 1919, pelo Código Comercial de 1850 (nas matérias de

constituição e dissolução) e pela Lei das Sociedades por Ações (nas omissões do

contrato social). Entretanto, a principal fonte legislativa, o Decreto de 1919, sofreu

duras críticas devido ao seu caráter atécnico517 e lacônico. De fato, o diploma legal

dispunha de somente 18 artigos, que traçavam basicamente “regras de formação do

nome empresarial, proibição de sócio de indústria, responsabilidade dos sócios pelas

obrigações sociais, responsabilidade dos sócios por deliberações contrárias à lei ou ao

contrato social e algumas outras de eficácia nenhuma518”. Por derradeiro, a principal

517“A dificuldade de determinar a natureza jurídica das sociedades limitadas] reside na disparidade e falta de normas jurídicas uniformes de vários dos seus artigos, não existindo na lei continuidade de princípios que se liguem logicamente, dando unidade ao todo que é o instituto. [...] E, acima de tudo, há uma falta absurda de detalhes que torna cansativo qualquer trabalho no sentido de conceituar esse tipo social.”(MARTINS, Fran. Sociedades por Quotas no direito estrangeiro e brasileiro – volume 1 – Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 317). 518 COELHO, Fabio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. São Paulo: 2003. p. 18.

114

omissão do decreto estava relacionada à não exigência de capital mínimo para a

formação das limitadas.

No início do século XIX, vários países519 já haviam definido um limite para a

constituição do capital destas sociedades, sob o fundamento de que não é qualquer

quantia que preenche suas finalidades econômicas de tais520. O Brasil, entretanto,

deixou esta e várias outras exigências consagradas no direito internacional ao completo

arbítrio dos sócios. Assim, o estilo lacônico da lei de 1919 permitiu que a regência legal

das sociedades limitadas se desse predominantemente por normas contratuais521. Por

isso, não é sem razão que se afirma que “a hipertrofia quantitativa das sociedades por

quotas de responsabilidade limitada no Brasil resultou muito mais das distorções que o

modelo permitiu, do que, propriamente, da adequação de suas normas à realidade

vigente.522”

Após viger por 80 anos sem passar por modificação alguma, o Decreto nº

3.708 foi completamente revogado pelo novo Código Civil. Este Código disciplinou o

tema das limitadas no Livro II, Título II, Subtítulo II, Capítulo IV (arts. 1.052 a 1.087).

Nessa transição, o Código de 2002, ao legislar sobre o tema, viu-se diante de

grandes desafios, quais sejam: a) proteger os interesses sociais e os direitos dos sócios

minoritários das limitadas sem burocratizar o funcionamento destas; b) conter os abusos

econômicos ensejados pela legislação anterior sem desestimular o investimento; c)

adotar mecanismos de controle e transparência na administração, de modo a resguardar

interesses internos e externos à sociedade; e d) assegurar que a atividade das limitadas

seja condizente com os princípios da nova ordem constitucional, valorizando a boa-fé, a

dignidade da pessoa humana, a função social da empresa e a livre iniciativa.

O objetivo do presente artigo, mais do que elencar exaustivamente as

inovações trazidas pelo novo código, é avaliar em que medida esses objetivos foram

alcançados e até que ponto a nova legislação aplicável satisfez as expectativas e supriu

as necessidades latentes no antigo modelo. Também serão avaliados quais os novos

problemas e imprecisões trazidos e quais soluções estarão aptas a contornar esses

eventuais obstáculos criados pela nova legislação.

519 Nesse sentido estão as leis alemã, portuguesa, suíça, austríaca, francesa, cubana, a lei argentina, uruguaia, luxemburguesa, mexicana, belga, suíça, boliviana, paraguaia e o Código Civil italiano. 520 Destaca Fran Martins, que “algumas leis chegam mesmo a estabelecer um máximo para o capital, argumentando a doutrina que, para suas finalidades, não deve a sociedade possuir, igualmente, capital muito elevado, como as anônimas.” (MARTINS, op. cit., 1960. p. 295). 521 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 1º Volume. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 461 522CAMPOS FILHO, Moacyr. Sociedade de Responsabilidade Limitada. In, BERALDO, Leonardo de Faria. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 46

115

Feitas estas considerações, passemos à análise das inovações da matéria.

2. Reformulações Gerais

O Código reformou algumas diretrizes gerais das limitadas. Nesse terreno, as

inovações mais importantes gravitam em torno da nova natureza jurídica do modelo e

da nova responsabilidade dos sócios na formação do capital social.

2.1. A nova natureza jurídica

Na vigência do diploma legal de 1919, havia divergência quanto à natureza

jurídica das então chamadas “sociedades por quotas de responsabilidade” limitada. A

maioria dos autores, seguindo os ensinamentos de Villemor do Amaral, considerava que

as sociedades limitadas poderiam ser civis ou comerciais, opção que dependeria

exclusivamente do objeto social indicado523. Com a vigência do novo Código, a

questão perde complexidade.

Atualmente, admite-se que as sociedades limitadas possam ser empresárias ou

simples: as primeiras desenvolvem atividades econômicas de produção ou circulação de

bens ou serviços; já as últimas exploram tais atividades sem empresarialidade524. As

empresárias são registradas na Junta Comercial, enquanto que as simples são firmadas

no Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Também há de se ressaltar que, na sistemática

atual, a natureza simples ou empresária é determinada não só pelo objetivo social, mas

também pela forma de organização da sociedade525.

2.2. A responsabilidade limitada solidária

A segunda inovação geral trata do dever central dos sócios: a integralização do

capital social. O artigo 1.052 do Código Civil de 2002 reitera esta incumbência,

acrescentando, ainda, a previsão de solidariedade na integralização do capital social.

Assim, enquanto no regime anterior os sócios só respondiam pelo valor individual

523 Para Rubens Requião, porém: “Não havia como atribuir exclusividade à natureza mercantil da sociedade por quotas, mesmo quando seu objeto fosse civil. Nenhum dispositivo legal autorizava tão grave entendimento, máxime quando se atribuía a essa sociedade a classificação de sociedade intuitu personae.” (REQUIÃO, op. cit., 2003. p.487) 524COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 31. 525 De um modo geral, essa mudança na natureza jurídica é reflexo da adoção pelo novo código da Teoria da Empresa, em detrimento da Teoria dos Atos de Comércio, seguida pelo regime anterior.

116

integralizado, a nova redação faz com que cada sócio responda in totum et totaliter pelo

cumprimento da prestação, como se cada um fosse o único devedor. Assegura-se a sub-

rogação contra o sócio remisso526.

Nesta matéria, omissão relevante é o fato de o novo diploma não ter concebido

nenhum mecanismo de controle real sobre o capital das limitadas. A simples consulta ao

contrato destas não é capaz de provar a real integralização do capital social527. Assim,

eventuais fraudes só poderão ser comprovadas pela prova documental de falsidade da

cláusula528.

2.3. A Subdivisão das Sociedades Limitadas

O artigo 1.053 foi sem dúvida o que operou maiores mudanças no regime das

limitadas. Este definiu que nas omissões do capítulo do Código Civil que trata das

sociedades limitadas, estas serão reguladas pelas normas das sociedades simples ou pela

Lei das Sociedades por Ações (LSA), ficando a critério dos sócios a escolha do regime

supletivo529. A regência supletiva da LSA, porém, deve ser prevista expressamente no

contrato social (parágrafo único do art. 1.053), enquanto que a opção pelas normas das

sociedades simples será assim presumida na omissão do contrato social530. Essa

inovação acabou por criar dois subtipos de sociedades limitadas.

Segundo Fábio Ulhôa Coelho, no regime do novo código, essas sociedades se

dividem em limitadas de vínculo instável (subtipo I) e limitadas de vínculo estável

(subtipo II). A nomenclatura adotada por Coelho se baseia na principal consequência

que a dupla supletividade traz: o distinto direito de retirada em cada subtipo societário.

526 Segundo Fabio Ulhoa Coelho, essa solidariedade seria o aspecto diferencial, em termos econômicos, entre o limite da

responsabilidade dos sócios na sociedade limitada e na anônima. Enquanto que nesta última, “cada acionista responde no limite da sua parte no capital social por ele subscrita e não integralizada, na limitada os sócios são responsáveis pelo total do capital social subscrito e não integralizado” (COELHO, op. cit., 2003. p. 7).

527 A Lei das Sociedades por Ações, por outro lado, dispõe no seu artigo 95, inciso III e no artigo 98, parágrafo 2º que devem ser exibidos à Junta Comercial ou ao tabelião todos os comprovantes de depósito em nome da sociedade. Assim, a simples consulta ao contrato já é capaz de provar a integralização, o que dificulta a subcapitalização.

528 Na maioria das vezes o mecanismo utilizado para demonstrar a fraude é a perícia nos lançamentos das contas de depósitos bancários feitos em nome da sociedade.

529 Fabio Ulhoa Coelho assevera que, mesmo que o contrato social eleja a LSA como fonte de legislação supletiva ao código, “não se aplicam às sociedades limitadas as disposições da Lei das Anônimas nos aspectos sobre os quais os sócios não podem contratar” (COELHO, op. cit., 2003. p. 19). Consideramos que tal exigência de contratualidade já é de fato implícita e que seria pleonástico a destacarmos. De fato, a única consequência prática dessa exigência é que a Lei das Anônimas não pode incidir em matérias pertinentes à constituição ou dissolução total das sociedades limitadas.

530 Deve-se ressaltar que além da eleição supletiva, a Lei das Sociedades por Ações também poderá ser aplicada nos casos de omissão do Código Civil, com base na analogia, fundamentada no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil.

117

2.3.2 Consequências da Subdivisão

A doutrina aponta também outras três diferenças importantes derivadas da

eleição supletiva: a) o desempate nas deliberações dos sócios; b) a destinação dos

resultados da empresa e c) a vinculação a atos divergentes do objeto social.

a) Quanto ao critério de desempate nas deliberações.

O novo Código Civil, no capítulo referente às sociedades limitadas, silenciou

sobre o exercício do direito de voto dos sócios. Por isso, esta matéria também fica

sujeita à regência supletiva.

Sobre este tema, nas normas das sociedades simples, prevê-se um critério de

desempate caso os sócios não consigam chegar a um acordo nas assembleias. O

parágrafo 2º do artigo 1.010 do Código Civil – pertencente às normas de sociedade

simples – disciplina que, caso haja algum impasse nas deliberações, “prevalece a

decisão sufragada por maior número de sócios”, e, persistindo o empate, “caberá ao juiz

decidir”. Logo, as sociedades limitadas que, expressamente ou por presunção, elegerem

as normas das sociedades simples como fonte de regência supletiva serão alcançadas

por esse critério de desempate. O mesmo não ocorre com aquelas submetidas à Lei das

SA, até porque esta lei não prevê meio de superação de empate na mesma

assembleia531.

b) A destinação dos resultados da empresa.

Nas sociedades limitadas de subtipo I, os sócios podem, por maioria, deliberar

sobre a destinação dos resultados da empresa. Tais sócios gozam, inclusive, do direito

de decidir pelo total reinvestimento dos lucros, ou seja, não há um dividendo mínimo

que obrigatoriamente deva ser repartido anualmente entre os sócios.

As limitadas que optaram no contrato social pela regência da Lei das SA, por

sua vez, não dispõem dessa liberdade. Isso porque o artigo 202 da LSA determina que

531A solução adotada na lei das sociedades anônimas vem expressa no seu artigo 129, § 2º: “no caso de empate, se o estatuto não estabelecer procedimento de arbitragem e não contiver norma diversa, a assembleia será convocada, com intervalo mínimo de 2 (dois) meses, para votar a deliberação; se permanecer o empate e os acionistas não concordarem em cometer a decisão a um terceiro, caberá ao Poder Judiciário decidir, no interesse da companhia”.

118

pelo menos metade do lucro líquido deve ser obrigatoriamente distribuído entre os

sócios na forma de dividendos. A chamada cláusula leonina, portanto, só é possível nos

contratos das sociedades limitadas reguladas pelas normas de sociedades simples.

c) A vinculação a atos estranhos ao contrato social.

Outro tema que distingue o posicionamento dos dois subtipos societários se dá

em relação à vinculação a terceiros em situações não condizentes com o contrato social.

Nas sociedades limitadas regidas integralmente pelo Código Civil (leia-se, pelo capítulo

IV e pelas normas das sociedades simples) a questão é solucionada por meio da

aplicação da Teoria do Ultra Vires, derivada do direito comercial anglo-saxão e

consagrada no nosso diploma legal no artigo 1.015, parágrafo único, III do Código.

Nas limitadas de vínculo instável, portanto, os administradores, só poderão ser

responsabilizados perante terceiros se cometerem atos evidentemente estranhos ao

contrato social.

A Lei das S/A, ao seu tempo, consagra a Teoria da Aparência, por meio da qual

as sociedades limitadas de vínculo estável ficam vinculadas aos atos praticados em seu

nome por seus administradores.

2.4. A regência supletiva e o contrato social

Sobre a matéria da regência supletiva, também é pertinente destacar a mudança

de entendimento a respeito das regras gerais de supletividade.

O decreto-lei nº 3.708, que regia as limitadas antes do novo Código Civil,

também contemplava uma previsão de supletividade em seu artigo 18. Dizia este que,

sempre que houvesse alguma omissão no contrato social, tal lacuna seria suprida pela

aplicação da Lei das Anônimas. Tal lei, portanto, completava o sentido do contrato, e,

por derradeiro, se houvesse alguma contradição entre o contrato e a lei, prevalecia

sempre aquele. Por isso nos é permitido afirmar que, no antigo regime, a Lei das SA era

supletiva em relação ao contrato social. Já a previsão do artigo 1.053 do Código Civil

de 2002 não se dá nesse sentido.

Na legislação atual, a LSA, nas sociedades que optem por sua supletividade,

“torna-se supletiva da disciplina legal das sociedades limitadas contida no Código Civil,

119

e não mais do contrato social532”. Ou seja, numa sociedade limitada de vínculo estável,

será considerada nula qualquer cláusula do contrato social que for contrária à lei

6.404/76. Esta, que era supletiva em relação à vontade das partes, no regime anterior,

passa a ser supletiva em relação à disciplina legal. É como se o Título II, capítulo IV do

Código Civil e a Lei das Anônimas se fundissem em um único diploma legal aplicável.

A consequência imediata desta mudança é que, pelo atual Código, a vontade dos sócios

passa a se submeter à Lei das SA533.

2.5. Dos problemas decorrentes do artigo 1.053

A recepção dessa nova supletividade parte do reconhecimento da pluralidade

de organizações empresárias que o instituto das limitadas abarca. De fato, hoje não há

como não reconhecer o caráter híbrido de tal modelo societário. A própria

permissividade na criação de limitadas é um dos motivos que explica a variedade de

empresas que se agrupam sob tal rótulo. Por isso, alguns autores sustentam que, diante

dessa flexibilidade, há uma série de ponderações que devem ser feitas no momento da

aplicação das regras de supletividade.

Primeiramente, deve haver certa cautela na aplicação supletiva das regras das

sociedades simples. Como bem observa Maria Helena Franco, a sociedade simples é

originalmente um modelo jurídico de sociedades de responsabilidade limitada e não de

comercial. Assim, não é sempre que suas normas serão adequadas à regência supletiva

das limitadas, que são sociedades comerciais por excelência534.

Igual destreza também é exigida na aplicação da Lei das SA. A aplicação da lei

do anonimato, aliás, traz diversas dificuldades ao julgador, já que o novo Código não

traz nenhum critério que defina que dispositivos da Lei das SA são, de fato, aplicáveis

às sociedades limitadas. Essa lacuna deixada “pode induzir ao engano de imaginar que a

Lei do Anonimato se transplantaria integralmente às omissões das regras específicas

sobre as limitadas (Capítulo IV)535”.

532 COELHO, op. cit., 2003. p. 21 533 Na mesma orientação segue José Lucena: “A nós parece não haver qualquer entre dúvida de que a supletividade se faz à lei e, por esta via, alcançando, obviamente, também o contrato social” (LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5. Ed. Atual. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2003). 20 FRANCO, Vera Helena de Melo. O triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil, Revista de Direito Mercantil, v. 123, jul-set, 2001.p. 81. 535 CARVALHOSA, Modesto. Parte Especial: direito de empresa, da sociedade personificada. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira. Comentários ao Código Civil. São Paulo, 2003, v.13, p.40.

120

Com maior razão ainda, o momento de interpretação do contrato social

também deve ser envolto de vários cuidados. Por mais que seja garantida aos sócios a

liberdade de escolher a fonte de regência supletiva, é necessário ressaltar que uma

simples cláusula contratual (ou a omissão desta) nem sempre é capaz de indicar

acertadamente a legislação supletiva aplicável. Como bem assevera Modesto

Carvalhosa:

Pode ocorrer de a limitada ter um modelo com estrutura mais próxima à da anônima [...] e, ao mesmo tempo, deixar de optar expressamente no contrato social pela adoção de regras da sociedade anônima como lei supletiva. Neste caso, ter-se-ia, pela letra do artigo 1.053, de recorrer às disposições da sociedade simples. [...] Parece-nos claro, nesses casos, que ao intérprete caberá o recurso à Lei das SA. E essa aplicação da Lei do Anonimato dar-se-á ou pelo reconhecimento de que a verdadeira intenção das partes (art. 112 do Código Civil de 2002) era optar pela regência supletiva das sociedades anônimas, formatando sua sociedade com características de uma sociedade de capitais, ou por analogia, diante da omissão da lei supletiva536.

Além deste ponto suscitado, há de se ressaltar também que os contratos sociais

não estão imunes à incidência do princípio da função social dos contratos537. Assim, a

atividade interpretativa dos mesmos deve levar em conta os interesses que gravitam em

torno da sociedade, de modo a garantir, sempre que possível, a preservação e

continuidade da mesma. Como bem adverte Sylvio Capanema, seria atentatório aos

princípios da função social que se mantivessem os contratantes (no caso, os sócios e a

sociedade) aprisionados por um vínculo contratual que os levaria à ruína, e que os

mesmos não teriam constituído, se lhes fosse possível prever o futuro538.

Ou seja, mesmo nas sociedades que expressamente adotarem determinada

supletividade, a aplicação da legislação superveniente deve sempre levar em conta a

verdadeira estrutura organizacional da sociedade, as reais intenções dos sócios

consubstanciadas no contrato social, e, por fim, os interesses externos que a mesma

congrega.

536Ibid., 2003, p. 44. 537“Integrando o próprio conceito de contrato, a função social tem um peso específico, que é o de entender-se a eventual restrição à liberdade contratual não mais como uma ´exceção´ a um direito absoluto, mas como expressão da função meta-individual que integra aquele direito. Deste modo, o princípio da função social, que proclamado na Constituição, aí poderia remanescer como `letra morta´, transforma-se, como afirmou Reale, ‘em instrumento de ação no plano da lei civil’. Há, portanto, uma (sic) valor operativo, regulador da disciplina contratual que deve ser utilizado não apenas na interpretação dos contratos, mas, por igual, na integração e na concretização das normas contratuais particularmente consideradas. Em outras palavras, a concreção especificativa da norma, ao invés de já estar pré-constituída, pré-posta pelo legislador, há de ser construída pelo julgador, a cada novo julgamento, cabendo relevantíssimo papel aos casos precedentes, que auxiliam a fixação da hipótese e à doutrina, no apontar de exemplos.” MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <www1.jus.com.br>. Acesso em 12.12.11 538 SOUZA, Sylvio Capanema de. Impacto do Novo Código Civil no Mundo dos Contratos.<http://www.universojuridico.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=1340>. Acesso em 03.12.11.

121

Esse cuidado deve ser tomado pelo julgador, pois a aplicação sumária e

irrestrita daquilo que é determinado pela letra da lei ou do contrato pode certamente

gerar decisões anômalas, contrárias ao princípio da preservação da empresa e,

portanto, nocivas aos interesses internos e externos ao empreendimento societário.

2.6. Dissolução parcial e retirada imotivada

O direito de retirada imotivada, que é o marco da separação entre os dois

subtipos de limitada, é uma inovação do novo Código que tem sua gênese na corrente

jurisprudencial consagrada como princípio da preservação da empresa. Este princípio,

portanto, delineou as formas de dissolução parcial nas sociedades limitadas.

Considerando as relevantes repercussões dessa nova previsão de dissolução no âmbito

dessas sociedades, faz-se aqui uma explicação mais esmiuçada do assunto.

A partir da década de 70, considerando o caráter plurilateral do contrato social,

a jurisprudência passou a acolher a chama dissolução parcial539. Esse método de

dissolução permite a continuidade das atividades da empresa nos casos de rompimento

do vínculo societário em relação a um dos sócios.

O novo Código disciplinou a dissolução parcial – chamada pelo diploma legal

de resolução parcial em relação a um sócio - na parte relativa às sociedades simples

(arts. 1.028 a 1.031), o que enseja a aplicação dessas normas às limitadas que decidirem

pela aplicação supletiva das normas das sociedades simples. Nesse ínterim, o art. 1.029

elenca como uma das causas de dissolução parcial a retirada imotivada dos sócios de

sociedades contratadas por prazo indeterminado. Essa possibilidade, apesar de propiciar

a continuação da sociedade mesmo com a saída de um dos sócios, pode gerar efeitos

reversos.

Em certa medida, tal arbítrio conferido ao sócio desistente é altamente

pernicioso ao desenvolvimento das limitadas, já que, em alguns casos, a retirada

imotivada de sócios se traduz num óbice enorme tanto para os sócios quanto para os

credores sociais atingidos pela retirada. Os custos advindos da saída de um dos sócios

podem, não raro, conduzir a sociedade a um processo de dissolução total. Logo,

539 “A dissolução parcial nada mais é do que a resolução, ou, mais precisamente, a resilição do contrato de sociedade com relação a um ou mais sócios, em razão da verificação de causas pessoais capazes de provocar a extinção do vínculo contratual societário que o vincula ao corpo social. E o fundamento dessa resolução parcial do contrato de sociedade é a necessidade de preservação da empresa, razão pela qual a sociedade permanece, a despeito do desligamento de um dos sócios”. (CARVALHOSA, op. Cit, 2003, p. 350).

122

dependendo da estrutura da sociedade, a retirada imotivada – inicialmente prevista

como mera causa ensejadora de dissolução parcial – pode comprometer por completo a

atividade da empresa.

Ademais, é pertinente ressaltar que o direito de recesso dos sócios deve ser

exercício dentro dos parâmetros da boa-fé objetiva, princípio plenamente aplicável às

relações societárias. Logo, nos casos de retirada imotivada, há de se proteger a legítima

expectativa que foi criada naqueles que assumiram o risco do empreendimento ao lado

do sócio que imotivadamente desiste deste540.

Alguns autores defendem a retirada imotivada com base no princípio

constitucional da livre associação – e, por conseguinte, da livre dissociação. Essa

posição é discutível, já que a possibilidade de associar-se livremente não traz exigência

de gratuidade nessas dissociações. O sócio, enquanto proprietário das suas quotas, tem o

direito de aliená-las, doá-las ou dá-las em pagamento e se retirar da sociedade. Esta, a

princípio, não tem a obrigação de lhe conferir total sucesso na empreitada empresarial,

já que o risco de desvalorização das quotas e dificuldade na venda das mesmas é

inerente à própria atividade comercial escolhida.

3. Das quotas sociais

O caráter dúplice sugerido pela nova regra de regência supletiva é, de certo

modo, constante em todas as seções do Código que regem as sociedades limitadas. A

verdade é que o novo Código ora dá primazia aos interesses dos sócios

(contratualismo), ora reconhece a existência de interesses transcendentes ao da própria

sociedade (institucionalismo). É nesse contexto de indefinição e hibridismo que emerge

a nova disciplina das quotas sociais.

3.1. A livre cessão de quotas.

O Decreto nº 3.704/19 não se manifestava sobre a cessão de quotas das

sociedades limitadas. Diante de tal omissão, a doutrina divergia acerca das diversas

540Nesse sentido, Karl Larenz entende que, considerando a boa-fé objetiva, “em certos casos há que se exigir um comportamento mais acurado, sendo mais amplos os deveres de recíproca consideração e observação da confiança nos contratos de sociedade, entre outros, mediante o qual se estabelece relação de colaboração duradoura. Desse modo, haverá obrigações adicionais e complementares decorrentes da relação societária.” (LARENZ, Karl, Derecho de Obligaciones. Revista de Derecho Privado, Madrid. Editora Madrid, 1958 Apud. Traduzido e citado por Waldirio Bulgarelli em Contratos Mercantis. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 67).

123

possibilidades. De um lado, entendia-se que era permitida aos sócios a livre alienação

de suas quotas, já que não havia nenhuma lei proibindo tal operação. Entretanto, outra

vertente da doutrina entendia que se o contrato não dispusesse a respeito, dever-se-ia

aplicar, por analogia, o artigo 334 do Código Comercial de 1850, que preceituava que

“a nenhum sócio é lícito ceder a um terceiro, que não seja sócio, a parte que tiver na

sociedade, nem fazer-se substituir no exercício das funções que nela exercer, sem

expresso consentimento de todos os outros sócios”. Assim, sendo omisso o contrato

social, a alienação de quotas dependeria da anuência de todos os sócios541.

O Código Civil de 2002 pôs fim à controvérsia determinando no seu art. 1057

que “na omissão do contrato, o sócio pode ceder sua quota, total ou parcialmente, a

quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranho, se não

houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social”.

Essa inovação é de suma relevância, considerando que a disposição sobre a

cessão é fator determinante para a caracterização da sociedade, já que “a pesquisa da

natureza de uma limitada, em particular, tem por objeto o contrato social, na cláusula

pertinente à matéria em que tem relevância a discussão: condições para alienação das

quotas sociais542”. Ou seja, a forma de alienação adotada indica o caráter pessoal ou

capitalista das sociedades. Nesse sentido, alguns autores sustentam que essa posição do

novo Código ressalta o caráter contratualista personalista das limitadas543. Porém, é

válido ressaltar que o Código, assim como faz no artigo 1.053, dá aos sócios a

possibilidade de, no contrato social, definir a solução mais adequada à estrutura da

sociedade. Logo, se os sócios quiserem que a cessão de quotas tenha solução idêntica à

transferência de ações, basta que assim disciplinem no contrato.

3.2. A liquidação a pedido de credores.

Ainda no tema das quotas, inovação bastante controversa do atual regime é a

possibilidade de liquidação das quotas sociais a pedido do credor de um dos sócios.

Assevera o art. 1.026 que se algum sócio contrair dívida em seu próprio nome, o credor

particular deste sócio poderá, na insuficiência de bens do devedor, fazer recair a

execução sobre o que couber a tal sócio nos lucros da sociedade, ou sobre a parte

541 Rubens Requião sustentava a aplicação do referido artigo do Código Comercial sob o fundamento de que as sociedades limitadas, no regime de 1919, eram mais próximas às sociedades intuitu personae do às de capital. Logo, justificava-se a necessária a concordância dos sócios em documento expresso. (REQUIÃO, op. cit., 2003. p.503) 542COELHO, op. cit., 2011. p. 402 543FAZZIO JUNIOR, Waldo. Sociedades Limitadas de Acordo com o Código Civil de 2002. – São Paulo: Atlas, 2003, p. 138.

124

pertencente a ele na liquidação da mesma. O parágrafo único prevê, ainda, que se a

sociedade não estiver dissolvida, o credor pode requerer a liquidação da quota do

devedor, dissolvendo-se parcialmente a sociedade. O valor será apurado com base na

situação patrimonial da empresa na data da liquidação das cotas por meio de balanço

especialmente realizado, na forma do art. 1.031. A quantia aferida deve ser depositada

em dinheiro pela pessoa jurídica no juízo da execução em até noventa dias após a

liquidação.

O primeiro problema desse instituto é que o art. 1.026 está no capítulo

referente às sociedades simples, e isso gera discussões na doutrina acerca da

aplicabilidade do dispositivo. Fabio Ulhoa Coelho, por exemplo, entende que, devido à

localização do dispositivo, o referido artigo só é aplicável às sociedades limitas regidas

supletivamente pelas normas das sociedades simples. Já José Lucena entende que “o

preceito alcança todas as sociedades limitadas, independentemente do diploma de

regência supletiva, em face da ausência de norma sobre a matéria na legislação das

sociedades por ações544”.

A redação do artigo analisado enseja também vários problemas processuais. A

lei não define, por exemplo, quem será competente para levantar o balanço especial da

sociedade. Do mesmo modo, silencia a respeito das providências cabíveis quando a

sociedade não depositar a quantia indicada, também não deixando claro a partir de que

momento começa a correr o prazo de noventa dias definido no artigo 90545. Essas são

apenas algumas das imprecisões trazidas pelo artigo 1.026, que certamente irão gerar

problemas para os processualistas e incoerências jurisprudenciais. Além desses

problemas formais, questiona-se também a própria legitimidade do instituto.

De fato, as quotas integram o patrimônio do sócio e, portanto, são garantias aos

credores com quem ele negocia, o que justifica, até certo ponto, o instituto. Além dessa

função, a solução adotada pelo Código também serve para inviabilizar que pessoas que

não participaram da criação da sociedade nela ingressem por meio de penhora ou leilão

das quotas546. Assim, a nova lei reforça o liame subjetivo que existe entre os sócios de

limitadas. Há quem sustente também que a liquidação a pedido do credor preserva a

própria intangibilidade do capital social547.

544 Trata-se de mais um dos problemas decorrentes da precária norma de supletividade adotada pelo novo Código. (2003 apud CAMPOS FILHO, op. Cit., 2007, p.51). 545 COELHO, op. cit., 2003. p. 38. 546 Na vigência do Decreto de 1919, havia divergência na doutrina quanto a penhorabilidade das quotas sociais, já que nem o decreto nem o Código Comercial versavam sobre o tema. A solução era dada, caso a caso, pela jurisprudência. 547FAZZIO JUNIOR, op. cit., 2003, p. 146

125

Por outro lado, alguns autores argumentam que a possibilidade de liquidação

das quotas a pedido do credor é absolutamente contrária aos princípios da preservação e

da função social da empresa548. Isso porque, na insuficiência de fundos para a

realização do depósito, a empresa recorrerá a empréstimo bancário ou à venda de

ativos, o que pode comprometer a continuidade das suas atividades. Ademais, deve-se

considerar que há diversos interesses em torno da sociedade – os de funcionários,

fornecedores e consumidores, por exemplo –, que poderiam ser injustamente afetados

com a dissolução da mesma. Além desses problemas, há inúmeras possibilidades de

mau uso do procedimento.

Nesse sentido, Fabio Ulhôa Coelho adverte que “a liquidação da quota a

pedido de não-sócio é uma intromissão injustificável na vida da sociedade e pode

servir, sem dificuldades, à fraude.” Exemplifica Coelho que, nos casos em que o valor

econômico da quota social é inferior ao valor patrimonial apurado – circunstância

comum em empresas tecnologicamente defasadas, por exemplo-, algum sócio pode

simular uma dívida com terceiro e se retirar da sociedade recebendo valor superior ao

preço de mercado da cota549.

4. Tendências da administração

4.1. A nova estrutura da administração.

O tema da administração foi tratado pelo novo Código nos artigos 1.060 a

1.065, que trouxeram uma estrutura mais complexa, instituindo regimes de investidura,

exercícios e prestação de contas dos administradores, a facultativa criação de um

conselho fiscal e as reuniões e as assembleias gerais de sócios. A nova lei, portanto,

restringiu a liberdade dos sócios na estruturação da administração e trouxe maior poder

de controle aos minoritários.

É obrigatória, no novo regime, a existência de um órgão de administração

formado por uma ou mais pessoas físicas550 designados como administradores551. Este

548 “O princípio da função social da empresa projeta-se igualmente sobre a manutenção e a preservação da atividade empresarial, destacando que a interrupção da mesma não pode ficar ao critério exclusivo de algum dos sócios ou credores, diante dos diversos outros interesses relevantes que justificam a continuidade de sua atividade.” (FRAZÃO, Ana. A função social da empresa na constituição de 1988. In: LIMA, Frederico. H. Viegas. Direito Civil Contemporâneo. Brasília: Obcursos, 2009. p. 35). 549COELHO, op. cit., 2003. p. 39 550 A lei proíbe que outras sociedades sejam sócias de sociedades limitadas. 551 O Código Civil de 2002 abandonou as antigas nomenclaturas de “sócio-gerente” ou “gerente”, utilizada pelo Decreto-lei de 1919. No atual regime, utiliza-se somente a expressão “administradores”.

126

órgão em muito se assemelha à diretoria das sociedades anônimas, sendo atribuídos a

ele poderes indelegáveis de representação da sociedade. Podem compor este órgão tanto

os administradores sócios quanto os não-sócios.

Uma inovação do novo Código, aliás, foi essa possibilidade da administração

da limitada ser atribuída a não-sócios, o que era proibido no regime anterior. Essa

inovação veio reconhecer a separação entre propriedade e poder, já consolidada no

direito societário. Nesse sentido, Luiz Leães assevera que, nos países de economia de

mercado, a propriedade empresarial “viu a desintegração de seus elementos tradicionais

para se consumar verdadeira cisão entre domínio e controle, atribuindo-se, por

consequência, aos titulares deste controle, papel central na sociedade empresária552”.

A única exigência feita para que se dê tal atribuição de cargo ao não-sócio é

que seja prevista no contrato social tal possibilidade. Tal permissão será implícita

quando, no próprio contrato, for feita a nomeação do administrador não-sócio, donde se

presume manifestação de vontade dos sócios em permiti-la.

A nova lei também cuida da enumeração dos quoruns de eleição e de dos

administradores. Esses quoruns variam de acordo com a qualidade do administrador e

com o instrumento utilizado. O administrador sócio será assim nomeado se contar com

o apoio dos titulares de mais de 3/4 do capital social (no caso de nomeação pelo

contrato social) ou dos titulares de mais de metade deste capital (caso de nomeação em

ato apartado)553. O administrador não-sócio também poderá ser designado no contrato

social ou em ato separado. Na primeira hipótese, o quórum exigido é igualmente de 3/4

do capital (que é, na verdade, o quorum de modificação do ato constitutivo). Já na

circunstância de nomeação em ato apartado, exige-se a anuência dos titulares de, no

mínimo, 2/3 do capital social554 para que o não-sócio seja incumbido do cargo. Se o

capital social ainda não estiver totalmente integralizado, a lei requer unanimidade na

aprovação do administrador não-sócio. Esta última exigência é justificável já que,

enquanto o capital não estiver completamente integralizado, os sócios respondem

solidariamente (artigo 1.052 do CC). Logo, é necessário que todos confiem no eleito.

Os administradores, sócios ou não, serão designados por tempo determinado

ou indeterminado. No primeiro caso, passado o período indicado, faz-se necessária a

552 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Responsabilidade dos Administradores das Sociedades por quota de responsabilidade limitada. Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico Financeiro , n. 25, ano XVI,– Nova Série. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 49-54. 553 O parágrafo único do artigo 1.060 do Código Civil inova ao definir que caso a administração seja atribuída a todos os sócios, esta não se estenderá de pleno direito àquele que ingressar posteriormente na sociedade. 554 O administrador sócio também pode ser eleito por ato separado, exigindo-se, para tanto, somente o quórum de mais da metade das quotas referentes ao capital social.

127

renovação do mandato ou a substituição do administrador. A despeito do compromisso

temporal estabelecido, os sócios podem destituir os administradores sempre que for

conveniente para a sociedade.

O quorum de destituição também é variável. Se o administrador for sócio, a

destituição exigirá quotas referentes a 2/3 do capital social; o contrato social também

pode adotar outro quorum (art. 1.063, § 1º). Já o administrador não sócio nomeado em

contrato social só será retirado do cargo por deliberação dos titulares de mais de 3/4 do

capital (arts 1.071, V e 1.076), ou por decisão dos representantes de mais de 2/3 do

capital, em caso de nomeação por ato apartado (arts 1.071, II e 1.076, II).

4.2. Responsabilidade de administradores

O capítulo do novo Código referente às limitadas é escasso em previsões de

responsabilidade. Os administradores destas sociedades ficam, por isso, sujeitos aos

deveres estabelecidos na Lei das SA e nas normas das sociedades simples.

Nesse sentido, sustenta Fabio Ulhôa Coelho que os deveres de diligência e

lealdade, embora referidos nos artigos 153 e 155 da Lei das Anônimas, podem ser vistos

como preceitos gerais, “aplicáveis a qualquer pessoa incumbida de administrar bens ou

interesses alheios555”. Também são entendidas como deveres gerais dos administradores

de limitadas as normas contidas nos arts. 1.011, 1016 e 1.017 do Código Civil

(referentes às sociedades simples)556. Esses artigos reforçam, de um modo geral, o

cuidado e a diligência do homem probo, a responsabilidade solidária dos

administradores perante terceiros prejudicados e a reponsabilidade perante a própria

sociedade.

Além das hipóteses enumeradas, aplicam-se também, mesmo aos

administradores não sócios, as previsões de responsabilização pessoal contidas nas

teorias de desconsideração da personalidade jurídica.

Ademais, como já mencionado, a vinculação dos administradores em relação

aos atos praticados em nome da sociedade depende da regência supletiva adotada. No

caso das limitadas regidas pela Lei nº 6.404, aplica-se a teoria da aparência. Já as

555COELHO, op. cit., 2003. p. 50 556 Modesto Carvalhosa acrescenta nesse conjunto o artigo 1.009 do Código Civil, que atribui responsabilidade solidária aos sócios e administradores que distribuírem culposamente lucros ilícitos ou fictícios. Segundo o autor, “ainda que eventualmente a sociedade limitada tenha optado pela regência supletiva da Lei Societária em matéria organizacional (conforme faculta o parágrafo único do art. 1053), com relação à responsabilidade dos administradores devem ser aplicadas as disposições da sociedade simples, previstas no referido art. 1.009 do Código de 2002” (CARVALHOSA, op. Cit., 2003,, p. 328).

128

limitadas de vínculo instável estão, teoricamente, submetidas ao artigo 1.015 do CC,

que consagra a teoria do ultra vires.

Ressalta-se, porém, que a aplicação do artigo 1.015 do Código deve, sempre

que possível, ser afastada por proteção ao terceiro de boa-fé. Há necessidade, portanto,

de se interpretar o referido art. 1.015 com a regra geral do art. 422 do Código Civil, que

impõe aos contratantes o dever de proteger aqueles que agirem de boa-fé na execução e

conclusão dos contratos. Assim, é possível a aplicação da teoria da aparência mesmo

em sociedades que não contemplem a LSA como fonte de regência supletiva. De fato,

essa perspectiva já vem sendo firmada na jurisprudência, que, cada vez mais, entende

que “as restrições contratuais sobre poderes de gerência não podem ser opostas a

terceiros de boa-fé”. (TJSP, RT, 643/95).557.

4.3. As novas regras de controle

O artigo 1.065 preceitua deveres de prestação de contas por parte da

administração, inexistentes no regime anterior. Aqui, nota-se a preocupação do novo

Código em proteger o direito dos sócios à informação e aos lucros da atividade

empresária.

Por força da nova lei, a administração fica incumbida de, ao fim de cada

exercício social, elaborar inventário, balanço patrimonial e balanço de resultado

econômico da empresa. Esses documentos deverão ser encaminhados à assembleia dos

sócios ou à reunião de quotista (nos casos em que aquela não for obrigatória). A

propósito, o Código define que um dos objetivos da assembleia de sócios é a tomada

das contas dos administradores e a posterior avaliação dos balanços apresentados (Art.

1.078, I).

Apesar de essa inovação ser positiva por resguardar principalmente os

interesses dos minoritários, o Código peca por não ser tão detalhado e preciso quanto à

elaboração dos documentos. Diferentemente da LSA, no diploma de 2002, não se

determina precisamente a estrutura do balanço patrimonial e do balanço de resultado

econômico, o que enseja mais uma vez a aplicação da lei 6.404/76 e todas as

controvérsias dela advindas.

557Em concordância: “A imputação de responsabilidade ao administrador de limitada, por excesso de mandato ou ato contrário ao contrato social, não exonera a sociedade do cumprimento de obrigações, contraídas perante terceiros de boa-fé” (2º TACivSP, RT, 750/309).

129

4.4. O Conselho Fiscal

O Conselho Fiscal foi originalmente criado nas sociedades anônimas, no

âmbito de grandes empresas com estruturas complexas, que demandam rígido controle

e fiscalização financeira558. O novo Código, reconhecendo o crescente caráter

capitalista das limitadas de grande porte, decidiu facultar a criação do Conselho, com o

intuito de garantir maior probidade e controle da administração559.

O Conselho é autônomo e não está subordinado nem aos administradores nem

aos sócios. É formado por, no mínimo, 3 (três) conselheiros – e seus respectivos

suplentes - eleitos em reunião ou assembleia560. O mandato dura até a próxima

deliberação em assembleia ou reunião. Os membros não precisam ser sócios e também

não é necessário conhecimento técnico em contabilidade para a investidura no cargo,

bastando que o conselheiro leigo seja auxiliado por contador legalmente habilitado. A

única exigência que o novo Código faz é que os conselheiros indicados devem residir

no país de domicílio da limitada (art. 1.066, caput).

Para garantir probidade no desempenho das funções do Conselho, o novo

diploma proíbe que membros dos demais órgãos da sociedade ou de outra por ela

controlada, os empregados de quaisquer delas ou dos respectivos administradores, o

cônjuge ou parente destes até o terceiro grau sejam indicados (art. 1.066, § 1º). Também

é vetada a indicação dos chamados inelegíveis (art. 1.011, § 1º).

Os sócios minoritários que possuem, pelo menos, um quinto do capital social

têm o direito de eleger, em ato apartado, um conselheiro e o seu respectivo suplente (art.

art. 1.066, § 2º). A respeito, sustenta Modesto Carvalhosa que a própria essência do

conselho fiscal é a proteção aos minoritários, conceituando esse órgão como “o veículo

ou instrumento institucional de exercício, pela minoria, do direito de fiscalização que

lhes cabe561”.

As competências do Conselho estão expressas no art. 1.069 e não é permitido

que o contrato social amplie ou restrinja o que foi definido neste dispositivo. Assim, os

deveres capitais dos conselheiros são: avaliar e controlar os papéis contábeis da

sociedade, bem como o estado de caixa e carteira da mesma; prestar informações à

558 CARVALHOSA, op. Cit., 2003, p. 147. 559BARBOSA, Ana Beatriz Nunes .Boa Fé nas Relações entre Sócios. Revista Forense (Impresso), v. 407, p. 73. 560 A esta também compete a fixação da remuneração dos conselheiros (art. 1.068). O instrumento de eleição é composto de dois atos unilaterais: a deliberação da assembleia ou reunião e a aceitação do conselheiro eleito. Não há o estabelecimento de um contrato. Assim, o conselheiro fica vinculado apenas ao contrato social e à lei. O documento de aceitação, ou termo de eleição, só gera efeitos se for assinado pelo eleito no prazo de 30 (trinta) após a eleição (art. 1.067, § 2º). 561 CARVALHOSA,op. Cit., p. 148.

130

assembleia anual (por meio de pareceres sobre os negócios e do balanço econômico e de

resultado social); fiscalizar e denunciar irregularidades, fraudes e crimes na

administração da sociedade; e convocar a assembleia anual, caso os sócios não a façam

em 30 (trinta) dias, ou sempre que houver casos graves e urgentes.

5. Assembleias e Quoruns de Deliberação

Quando em voga a sucinta lei de 1919, as sociedades limitadas estavam

fortemente atreladas ao contratualismo, logo todas as deliberações deveriam ser

tomadas mediante alteração do contrato social. Já o novo Código, no art. 1.010

(referente às sociedades simples), adotou expressamente o regime da comunhão, já

consagrado na lei das SA. Por esse regime, as deliberações serão tomadas por maioria

de votos (qualificada em casos específicos), contados segundo o valor das quotas de

cada um562.

O Código Civil de 2002, portanto, inovou ao disciplinar as reuniões e

assembleias de sócios no regime das limitadas. No regime anterior, não havia previsão

de qualquer órgão deliberativo ou fiscalizador. Ao instituir as assembleias, o legislador

resolveu também eleger uma série de formalidades e minúcias que conferiram notável

complexidade ao tema. Por conta disso, é sobre esse tema que recaem as mais duras

críticas ao novo regime das limitadas.

5.1. As assembleias e suas formalidades

Pelo padrão atual, há uma gama de matérias que só serão deliberadas em

assembleia regularmente convocada (art. 1.071 e nos arts 1.066, § 1º e 1.068). Essas

matérias são, a princípio, da competência privativa e irrevogável dos sócios.

A realização anual de assembleias é obrigatória sempre que o número de sócios

da limitada for maior que 10 (dez) (art. 1,072, § 1o). Se o número de sócios for menor

que o indicado, as matérias elencadas no art. 1.071 poderão ser decididas em reunião

dos sócios563.A competência para a convocação da assembleia é, a priori, dos

562 É válido relembrar que o critério de desempate nas deliberações sociais varia de acordo com a regência supletiva escolhida pela limitada. Vide item 3.2.1 deste artigo. 563 Esclarece Fabio Ulhôa Coelho que a diferença entre assembleia e reunião dos sócios é sutil e pode ser inferida de algumas passagens da nova lei: “Em dois dispositivos (art. 1.072, § 6º e 1.079) o Código Civil estabelece que as regras sobre a assembleia dos sócios aplicam-se às reuniões, nos casos de omissão do contrato social. Quer dizer, o contrato que admite deliberações em reunião pode também estabelecer regras própria sobre sua periodicidade, convocação (competências e modo), quórum de instalação, curso e registro dos trabalhos”. (ULHOA, p. 94).

131

administradores. Se estes demorarem mais de sessenta dias para convocar a assembleia

anual, qualquer sócio poderá fazê-lo. Também é conferido ao sócio ou aos sócios

titulares de mais de 20% do capital social a competência da convocação, se os

administradores, transcorridos oito dias do pedido fundamentado de realização da

assembleia, não a tiverem convocado. O Conselho Fiscal pode chamar os sócios em

assembleia em dois casos: quando houver transcorrido trinta dias do término do quarto

mês seguinte ao fim do exercício social e nenhum administrador a tiver convocado; ou,

ainda, em casos de motivo grave ou urgente (art. 7.073 e 1.069, V).

Para que sejam válidas, as assembleias devem obedecer a certas formalidades

quanto à periodicidade, publicidade, quorum de instalação, registro dos trabalhos em

ata, bem como o arquivamento dos documentos desta em órgão de registro competente.

Nas assembleias anuais (obrigatórias), os sócios têm o dever de avaliar as

constas dos administradores e designá-los, quando for o caso, além de deliberar sobre

temas da ordem do dia.

O edital de convocação da assembleia – seja ela obrigatória ou não – deve ser

publicado por três vezes, ao menos, no órgão oficial do Estado onde se situa a sede e em

um jornal de grande circulação (art. 1152,§3º). A finalidade da publicação oficial é

inibir a arguição de desconhecimento da realização do conclave por parte dos sócios. A

utilidade da publicação oficial, portanto, é que esta “permite presumir de jure que todos

os sócios estão cientes da realização da assembleia nos termos em que foi

convocada564”. Apesar dessa facilidade prevista pelo instituto, Rubens Requião critica

duramente a figura da publicação oficial nas limitadas, ressaltando que “a publicação de

editais em jornais e revistas é onerosa e de duvidosa eficácia565”. Assevera ainda o autor

que o novo Código, nesses termos, está em descompasso com as técnicas modernas de

comunicação como o correio eletrônico, o fax e o próprio telex566.

A instalação da primeira assembleia da sociedade depende da presença dos

titulares de no mínimo 3/4 do capital social (art. 1.074). As seguintes não exigem

quorum de convocação. A ata da assembleia e os eventuais instrumentos de alteração

contratual que dela resultarem devem ser arquivados na Junta Comercial no prazo de

vinte dias (art. 1.075, § 2°).

564 CARVALHOSA, op. Cit., 2003,, p. 204. 565REQUIÃO, op. cit., 2003. p.. 534 566Id.

132

5.2. Novos quoruns deliberativos

No regime anterior, em que todas as deliberações eram feitas por mudança no

contrato social, exigia-se a anuência dos titulares de mais de metade do capital social.

Prevalecia, portanto, o critério da maioria do capital para deliberar. Com a chegada do

novo Código Civil, a matéria ganha notável complexidade. São estabelecidos cinco

quoruns para as deliberações: a) unanimidade (art. 1.061); b) três quartos do capital

social (arts 1.071, V e VI, e 1.076, I); c) dois terços do capital social (arts 1.061 e

1.063,§1º);d) maioria absoluta (art. 1.071 II, III, IV, VIII e 1.076, II); e e) maioria

simples (arts. 1.071, I, VII e 1.076, III).

A inovação mais significativa foi, sem dúvida, a exigência de três quartos do

capital social para alteração do contrato social. Essa medida, além de garantir mais

estabilidade à organização da sociedade, também protege significativamente os

interesses de sócios minoritários ao impedir que os titulares de mais da metade do

capital exerçam demasiado controle sobre a limitada.

5.3. Críticas

Não só os quoruns, mas toda a estrutura deliberativa concebida no novo

Código parte da assunção de que há frágeis interesses que devem ser protegidos no

âmbito das atuais sociedades limitadas. De fato, a atuação dessas sociedades hoje é foco

de interesses que vão além dos muros da própria empresa, o que impõe a necessidade de

proteção aos sócios minoritários, credores sociais, meio ambiente e fisco, por exemplo.

Esse quadro é ainda mais evidente no campo das sociedades limitadas de capitais. Logo,

a estrutura da nova administração permite, de certo modo, maiores possibilidades de

realização da função social dessas empresas.

Por outro lado, a recepção desses órgãos deliberativos (com todas as suas

exigências) também traz alguns obstáculos à atuação das limitadas. A sofisticação

trazida pelo Código, em certa medida, contradiz a intenção original de recepção das

limitadas, qual seja, a criação de um modelo societário de responsabilidade limitada

sem a onerosidade e burocracia das sociedades anônimas567. Assim, exigências como a

567 A intenção da recepção do instituto das sociedades limitadas no direito pátrio está contida na Exposição de Motivo do Projeto do Código Comercial, de lavra de Inglês de Souza, que asseverou: “A presunção de solidariedade dos sócios nas obrigações assumidas em nome da empresa é regra predominante no assunto. [...] Este processo permite seguir a tendência que se assinala no regime das sociedades para aumentar a aplicação do princípio da comandita sob diversas formas, de modo a animar a concorrência das

133

realização anual de assembleias e a publicidade oficial podem constituir óbices à

atuação de algumas sociedades através da burocratização. Nesse sentido, assevera José

Lucena que:

Imposta a inevitável comparação entre o Decreto 3.708/19 e o novo Código, há de se concluir que, se foi aquele acoimado de atécnico e faltoso de regras indispensáveis, este, embora dotado de tecnicidade, não deixará de profigado como extremamente burocratizante da constituição e funcionamento das Sociedades Limitadas, assim eliminando uma das vantagens que levaram à criação e à ampla aceitação desse tipo societário568.

5.4. A legalidade do acordo de quotistas

Ainda no âmbito das assembleias, questão bastante controversa sobre o tema

das deliberações nas limitadas diz respeito ao acordo de quotistas. A matéria nunca foi

regulada no regime anterior e o novo Código, mais uma vez, perdeu a chance de pôr fim

ao impasse e se omitiu quanto à legalidade desses contratos parassociais.

A discussão se torna ainda mais acalorada em face do novo sistema de regência

supletiva do novo Código, já que os acordos de acionistas vêm disciplinados no art. 118

da Lei das SA e, assim, nas sociedades limitadas que expressamente adotaram a LSA

como fonte de regência supletiva, estes serão plenamente aceitos. Por outro lado, não

há nenhuma norma no Código Civil que discipline ou expressamente proíba tais

acordos. Logo, parte da doutrina defende a aplicação analógica do referido artigo da

LSA em relação às sociedades limitadas regidas supletivamente pelas normas de

sociedades simples, o que possibilitaria a realização desses contratos parassociais nas

limitadas de vínculo instável.

As discussões se dão em torno do parágrafo único do art. 997 do Código Civil,

que reproduz a parte final do art. 302, 7 (este já revogado), do Código Comercial.

Aquele artigo dispõe que “é ineficaz em relação a terceiros qualquer pacto separado,

contrário ao disposto no instrumento contratual.” Há duas interpretações desse diploma

na doutrina.

A primeira vertente defende que o acordo é inteiramente válido no âmbito das

limitadas, já que não há nenhuma lei que o proíba e, nesses casos, deve-se respeitar a

própria autonomia privada dos sócios. A aplicação da LSA poderia se dar, então, por

meio de analogia, já que nenhuma parte do Código disciplina o tema. Nessa corrente,

atividades e dos capitais ao comércio,sem ser preciso recorrer à sociedade anônima, que melhor se reservará para as grandes empresas industriais. (Projeto de Código Comercial, Pag. 24). 568 . LUCENA, op. Cit., 2003. p.31

134

estão renomados autores como Modesto Carvalhosa569, Celso Barbi Filho Bulgarelli e

Jorge Lobo, que, desde a vigência do artigo 302 do Código Comercial, já defendiam

essa postura. Por outro lado, há autores que entendem que o parágrafo único do art. 997

do Código Civil limita a liberdade dos sócios de firmar acordos entre si. Nesse sentido,

para Fabio Ulhôa Coelho, os acordos de quotistas só podem tratar de matérias não

especificadas nos incisos I a VIII do art. 997570.

6. Conclusão

Imerso num contexto de valorização de princípios, de gradual abandono do

individualismo e de funcionalização de direitos, o Código de 2002, mais do que

inovações esparsas, traz um novo paradigma ao tema das limitadas. À regulação da

matéria são postos os desafios de incentivar a atividade econômica, respeitando a livre

iniciativa, e de, ao mesmo tempo, proteger interesses sociais, realizando os preceitos da

função social da empresa e de sua preservação. Na tentativa de alcançar todos esses

propósitos, o Código concebe dispositivos que ora valorizam a liberdade de contratar,

ora impõem limites e deveres à atuação empresária, concretizando um verdadeiro

modelo híbrido e, em certos casos, bastante controverso.

O art. 1.053, talvez o mais importante do capítulo das limitadas, na tentativa de

abarcar a complexidade do modelo das limitadas, acaba gerando vários desencontros e

imprecisões, em certa medida, até piores do que os do regime anterior. Há situações em

que não fica claro quando e como devem ser aplicadas as normas de regência supletiva.

Por causa dessas imprecisões caberá aos julgadores a mestria de decidir, não só a partir

das formas preceituadas no contrato social ou na lei, mas também levando em conta as

reais intenções consubstanciadas dos sócios (art. 112 CC), bem como princípios da

função social dos contratos e da preservação da empresa.

Além das inovações, são também pertinentes as omissões do novo diploma. O

Código Civil perdeu a oportunidade de pôr fim a vários debates como o acordo de

quotistas, não disciplinou mecanismos reais de controle do capital social e, o mais

importante, reafirmou a permissividade do regime anterior, não definindo um capital

569 Carvalhosa entende que “serão amplamente aplicáveis às Sociedades Limitadas às regras da Sociedade Anônima no que respeita, sobretudo, à sua estrutura organizacional, direitos, deveres e responsabilidades dos administradores”. Logo, na opinião de Carvalhosa, serão também aplicáveis “as regras que regem os pactos parassociais, como o acordo de acionistas” (CARVALHOSA,op. Cit. 2003, p. 55).. 570 Fabio Ulhôa Coelho entende que os acordos de quotistas só podem recair sobre as chamadas cláusulas acidentais do contrato, isso é, sobre aquelas cláusulas não dispostas como obrigatórias pelo art. 997 do Código Civil. (COELHO,op. Cit. 2003. p. 35).

135

mínimo para a criação de limitadas. Todas essas lacunas, e em especial a última,

permitem abusos econômicos de todo gênero, conforme já foi observado no regime

anterior. Logo, não é descabida a afirmação de que o Código de 2002 conservou várias

distorções do antigo modelo e, assim, não foi capaz de estabelecer regras adequadas às

necessidades econômicas do país, nem tampouco incentivou um desenvolvimento

prudente das atividades empresárias.

As imprecisões e omissões do Código certamente irão gerar resultados

controversos nos tribunais, aos quais será incumbida a árdua tarefa de dar certa unidade

e integridade ao regime das limitadas. Nesse sentido, é possível asseverar que o novo

regime translada a responsabilidade de coerência do sistema aos julgadores. Como bem

afirma Gustavo Tepedino, ao apontar a crise de fontes normativas no Código de 2002,

no novo regime “caberá ao intérprete, e não ao legislador, a obra de integração do

sistema judiciário, e esta tarefa há de ser realizada em consonância com a legalidade

constitucional”. 571

7. Referências.

BARBOSA, Ana Beatriz Nunes .Boa Fé nas Relações entre Sócios. Revista Forense (Impresso), v. 407. BERALDO, Leonardo de Faria CAMPOS FILHO, Moacyr. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. CAMPOS FILHO, Moacyr. Sociedade de Responsabilidade Limitada. In, BERALDO, Leonardo de Faria. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. CARVALHOSA, Modesto. Parte Especial: direito de empresa, da sociedade personificada. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira. Comentários ao Código Civil. São Paulo, 2003. COELHO, Fabio Ulhoa. A Sociedade Limitada no Novo Código Civil. São Paulo: 2003. ____________. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa. São Paulo: Saraiva, 2011. FRANCO, Vera Helena. O triste fim das sociedades limitadas no novo Código Civil, Revista de Direito Mercantil, v. 123, jul-set, 2001.

571TEPEDINO, Gustavo. Introdução: Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 28.

136

FRAZÃO, ANA. A função social da empresa na constituição de 1988. In: LIMA, Frederico. H. Viegas. Direito Civil Contemporâneo. Brasília: Obcursos, 2009. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Sociedades Limitadas de Acordo com o Código Civil de 2002. – São Paulo: Atlas, 2003. LARENZ, Karl, Derecho de Obligaciones. Revista de Derecho Privado, Madrid. Editora Madrid, 1958 Apud. Traduzido e citado por Waldirio Bulgarelli em Contratos Mercantis. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000. LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Responsabilidade dos Administradores das Sociedades por quota de responsabilidade limitada. Revista de Direito Mercantil Industrial Econômico Financeiro , n. 25, ano XVI,– Nova Série. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. LUCENA, José Waldecy. Das Sociedades Limitadas. 5. Ed. Atual. E ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Disponível em: <www1.jus.com.br>. Acesso em 12.12.11 MARTINS, Fran. Sociedades por Quotas no direito estrangeiro e brasileiro – volume 1 – Rio de Janeiro: Forense, 1960. REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial, 1º Volume. São Paulo: Saraiva, 2003. ROCHA, Eduardo Augusto Franklin. Acordo de quotistas nas sociedades limitadas. In. In, BERALDO, Leonardo de Faria. O Direito Societário na Atualidade: aspectos polêmicos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. SOUZA, Sylvio Capanema de. Impacto do Novo Código Civil no Mundo dos Contratos.<http://www.universojuridico.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=1340>. Acesso em 03.12.11. TEPEDINO, Gustavo. Introdução: Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003

137

V. REFLEXÕES ACERCA DO PODER DE CONTROLE

Eduardo Kruel Rodrigues SUMÁRIO 1. Introdução. 2. O desenvolvimento do poder de controle e suas implicações. 2.1.

A socialização do investimento e os perfis de acionistas. 2.2. A dissociação entre capital e

controle. 2.3. Superação da noção democrática na tomada de decisões. 2.4. Finalidade jurídica

na identificação do controlador. 3.5. A definição do poder de controle. 3.6. A diferenciação do

poder de controle e os níveis de poder na sociedade. 3.7. A manifestação do poder de controle

na assembleia geral. 3.8. O duplo papel de controlador-administrador. 3.9. Formas de controle.

3.10. O controle compartilhado e o direito de veto. 4. O poder de controle na Lei 6.404/76. 5.

Questões. 5.1. A responsabilização por omissão do acionista majoritário. 5.2. As repercussões

do controle externo. 5.3. A pulverização do capital social e o poder gerencial. 5.4. Análise

comparativa das formas de controle: suas vantagens e desvantagens. 6. Conclusão. 7.

Referências.

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo levantar alguns questionamentos

relacionados ao poder de controle nas sociedades anônimas. Grosso modo, as questões

levantadas giram em torno da identificação do poder de controle e da responsabilidade

do controlador, considerando as diversas formas de controle.

Inicia-se com uma análise do que é o poder de controle, tendo como ponto de

partida a dissociação entre capital e controle. Em seguida, é analisada uma série de

elementos afeitos ao tema: sua importância, seu desenvolvimento histórico, suas

repercussões, sua definição, sua distinção em relação aos demais níveis de poder da

sociedade e sua forma de manifestação.

Após uma exposição das formas de poder de controle (totalitário, majoritário,

minoritário, gerencial e externo) e uma breve exposição de situações de controle

compartilhado, em especial quanto à sua ocorrência em casos de acordo de acionistas

que garantam exercício de direito de veto, analisa-se o tratamento dado pelo nosso

ordenamento jurídico para a identificação da figura do controlador. Nesse sentido,

138

analisam-se os requisitos legais determinados pelo art. 116 da Lei 6.404/76 (LSA) para

a conceituação do controlador.

Em seguida, passa-se a analisar algumas questões particulares afeitas ao tema

poder de controle. De forma genérica, as questões tratam de analisar a capacidade de

nosso ordenamento jurídico, sobretudo diante de sua conceituação de controlador,

englobar, de forma completa, as distintas formas de poder controle e a sua função

social.

Assim, a primeira questão trata de situação envolvendo a omissão (não dolosa)

do acionista majoritário no direcionamento dos negócios da companhia. Trata-se de

verificar se em tais situações o acionista majoritário deveria ser identificado como

controlador e, por conseguinte, lhe ser aplicado a correspondente responsabilidade.

A próxima questão trata do poder de controle externo. Em tal ponto, buscar-se-

á verificar se nosso ordenamento é apto para captar tal forma de controle, bem como

verificar a necessidade de se efetivamente tutelar tal situação de controle.

A terceira e última questão diz respeito às situações de pulverização do

controle de uma sociedade. Após breves considerações sobre a importância do Novo

Mercado para a materialização de tal fenômeno no cenário nacional, passa-se a

perquirir a adequabilidade de nosso conceito legal para incorporar as particularidades de

tal forma de controle, sobretudo em situações de controle gerencial.

Por fim, buscar-se-á fazer uma análise comparativa entre os sistemas de

organização do poder de controle, com o fim de se analisar a pergunta que sempre está

presente quando se trata do tema: existe forma ideal de estruturação do poder de

controle?

Conforme se depreende, o presente artigo tem por escopo uma análise de

diversas manifestações do poder de controle, seja no plano puramente teórico, seja nas

implicações concretas de materialização do instituto. Assim, pretende-se não uma

exposição exaustiva do assunto, mas uma abordagem geral que permita uma análise,

ainda que simplificada, do poder de controle como um todo, em suas diversas faces.

2. O desenvolvimento do poder de controle e suas implicações

A compreensão do “poder de controle” demanda a análise de dois pontos

que se relacionam: i) a socialização do investimento, e ii) a dissociação entre capital e

controle. Trata-se de fenômenos intimamente relacionados ao desenvolvimento

139

histórico das formas societárias mundiais, sobretudo, do desenvolvimento da sociedade

anônima.

2.1. A socialização do investimento e os perfis de acionistas

A liberalização das sociedades anônimas no século XIX572 permitiu a

proliferação de uma estrutura societária (a sociedade anônima) capaz de, de forma

eficiente, cooptar recursos financeiros dos diversos segmentos da sociedade civil, seja

de outras sociedades empresárias, seja da poupança popular. Consequência dessa

socialização dos investimentos foi o crescimento significativo das bases acionárias,

representando a entrada de uma enorme massa de pessoas, na qualidade de investidores,

no seio da sociedade empresária.

Como era de se esperar, esse aglomerado de (novos) investidores não poderia,

de forma simplista, ser identificado como um corpo uno e coeso. Representando os mais

diversos segmentos da sociedade, cada acionista via e tratava seus investimentos na

sociedade empresária de forma própria, o que repercutia sobre suas relações com a

companhia. Dessas diferentes formas de relações e de interesses com a sociedade,

passou-se a identificar certos perfis gerais de acionistas: o empreendedor e o investidor.

Fazendo uso das lições de Fábio Ulhoa Coelho (2010: 282), o acionista

empreendedor é aquele com interesse na exploração de determinada atividade

econômica, ou seja, é aquele com interesse direto na própria exploração da empresa,

enquanto atividade; são aqueles que “vivenciam a experiência da empresa”. Por outro

lado, os acionistas investidores são aqueles que, ainda conforme Coelho (2010: 282),

“identificam na ação da companhia uma boa oportunidade para empregar o dinheiro que

possuem”, pelo que se debruçam, sobretudo, sobre os números da empresa. Deve-se

fazer menção a dois subperfis do acionista investidor, cada qual com suas

peculiaridades: o rendeiro e o especulador. Sinteticamente, enquanto aqueles se

norteiam sob as perspectivas de longo prazo de seus investidores, estes “buscam

otimizar ganhos imediatos, e estão atentos às cotações das bolsas no mundo todo, e

outros investimentos financeiros, procurando, a cada momento, as alternativas mais

atraentes em termos de liquidez, risco e rentabilidade.” (Coelho, 2010: 282).

Como não poderia deixar de ser, estes perfis de acionistas, representando, cada

qual, uma forma de interesse na sociedade, repercutem na participação dos acionistas

572 Conforme aponta Ana Frazão (2011: 28): “[...] o regime de autorização estatal foi sendo gradativamente substituído pelo regime da livre criação ao longo do século XIX, inclusive no Brasil. Surgiu, aí o terceiro período na história das sociedades anônimas, marcado pela livre constituição, de forma a atender aos anseios do liberalismo econômico do período.”

140

nos diversos órgãos societários, seja em órgãos da administração, seja no órgão base da

sociedade – a assembleia geral. É a consequência natural dessas diversas formas de

relações entre acionista e companhia. Enquanto aqueles acionistas empreendedores têm

uma relação mais direta e imediata com a companhia, tendo interesse em (quase) todos

os assuntos relacionados a seu desenvolvimento, acionistas investidores mantêm uma

postura mais distante para com a sociedade, visando, basicamente, à proteção de seu

investimento.

2.2. A dissociação entre capital e controle

Essa falta de relação mais direta dos acionistas investidores, sobretudo dos

especuladores, acaba por implicar seu afastamento do mecanismo societário, deixando a

cargo dos empreendedores a tarefa de gerenciar a sociedade. Assim, chega-se ao

segundo elemento importante para a compreensão do poder de controle: a dissociação

entre a titularidade do capital social e o controle da atividade empresária. Isso significa

dizer que quem determina os rumos da sociedade empresária não é o detentor de todo

aquele patrimônio nem de sua maior parte e, em alguns casos, sequer tem qualquer

forma de participação no capital social da empresa.

A dissociação entre a propriedade dos bens de produção e o seu controle foi

apontada ao menos desde a década de 1930, a partir do importante estudo de Berle e

Means, que importantes conseqüências trouxe para a estruturação e a percepção dos

centros de interesses e de poder de uma sociedade empresária. Conforme a lição dos

autores, pode-se distinguir entre três funções dentro de uma sociedade: aquela de ter

interesse na sociedade empresária; aquela de ter poder sobre ela; e, por fim, aquela de

atuar em relação à companhia.573 Nada mais são que os três níveis em que se estabelece

a estrutura de poder na sociedade anônima apontados por Comparato (Comparato;

Salomão Filho, 2008: 41) em sua clássica obra O Poder de Controle na Sociedade

Anônima: o da participação no capital ou investimento acionário; o da direção; e o

controle.

E é assim que se chega aos contornos do poder de controle. Passou-se a

constatar a existência desse centro de poder no seio da sociedade, um poder que não

necessitava estar lastreado em participação societária, ou até mesmo na ocupação de

573 Tradução livre de: “In discussing problems of enterprise it is possible to distinguish between three functions: that of having interests in an enterprise, that of having power over it, and that of acting with respect to it. A single individual may fulfill, in varying degrees, any one or more of these functions.” (Berle e Means, 2010: 112)

141

cargos de direção da sociedade. Identificou-se o poder de controle como um poder

autônomo, ainda que relacionado aos demais níveis de poder (o de direção e o domínio

sobre o capital social).

2.3. Superação da noção democrática na tomada de decisões

A identificação desse novo nível de poder foi de extrema importância para a

superação da noção de soberania da assembléia geral e da “democratização” que tal

modelo implicava574. Até então, e incluindo o Brasil no sistema vigente antes da Lei

6.404/76, prevalecia a noção de que as decisões da companhia eram tomadas

democraticamente pela comunhão dos acionistas reunidos em assembleia geral (Eizirik,

2010: 181). Tinha-se a concepção de que o poder efetivo da sociedade pertencia não a

um determinado centro putativo (o que veio a ser identificado, posteriormente, como o

controlador), mas a todos os acionistas575, o que impossibilitava a identificação dos

reais responsáveis pelo comando da sociedade.

Ao se considerar que as deliberações em assembleia geral sempre foram

tomadas com base não na quantidade de acionistas, mas na participação de cada um no

capital social (e mais grave ainda, somente aquelas ações com direito a voto) evidencia-

se o nítido caráter utópico e romantizado da perspectiva “democrática” das deliberações

da sociedade. A partir do momento em que se trouxe à tona que o resultado de uma

deliberação não poderia, indistintamente, ser atribuído a todos acionistas, mas muitas

vezes a um único acionista, evidenciou-se a tensão existente na sociedade: o conflito

entre controladores e não controladores.

Com a identificação do poder de controle, pôde-se perceber que essa

“soberania da assembleia geral”, ao qual a visão democrática se prendia, apenas

dissimulava as reais relações de poder na sociedade. Agora, com a identificação do

poder de controle, ao invés de se imputar a direção da sociedade empresária a toda a

massa de acionistas, verificou-se que seria possível (e correto) atribuí-la a um

determinado agente, o controlador.

574 Não por menos, um dos pontos que a doutrina realça na nossa Lei de Sociedades Anônimas foi o reconhecimento desse centro de poder. 575 Vide interessante passagem de Comparato (Comparato; Salomão Filho, 2008: 39): “Aliás, a definição legal dos centros de poder, no Direito atual, parece coincidir, raramente, com a realidade do poder. A declaração constitucional de que ‘todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido’, por exemplo, tem se apresentado mais como enunciado de princípio, de valor programático, do que como disposição efetivamente vinculante na prática política, onde a noção de ‘povo’ se revela excessivamente abstrata. Analogamente, na pesquisa da realidade de poder, na sociedade anônima, não nos podemos contentar com a afirmação legal de que ‘a assembléia geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da sociedade e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento’ (Lei nº 6.404, art. 121). Quem toma, de fato, as decisões em assembléia?”

142

2.4. Finalidade jurídica na identificação do controlador

Diante dessa nova figura do controlador, e de toda importância que ele

representa para o funcionamento da sociedade, restou às leis societárias atribuir-lhes

novas responsabilidades e deveres que não se aplicariam aos demais órgãos societários.

Nesse sentido, nos ensina Nelson Eizirik:

Para evitar a diluição de responsabilidade que este sistema acarretava – pois não se podia apontar o acionista efetivamente responsável pelas deliberações sociais –, a Lei 6.404/1976 definiu a figura do acionista controlador e, ao mesmo tempo, atribuiu-lhe uma série de deveres não imputáveis aos demais acionistas. (2010:181)

Entretanto, a primeira finalidade dada a esse centro de poder da sociedade (o

controlador) não foi a composição do conflito controlador/não controlador - por meio

da responsabilização e imputação de deveres àquele e de proteção a estes. O primeiro

uso que se aponta para a identificação do controlador foi como critério de identificação

da nacionalidade das companhias – o que ocorreu, sobretudo na França e Inglaterra,

durante a Primeira Guerra Mundial (Frazão, 2011:78). Percebeu-se que o critério de

localização da sede não era suficiente. Para a identificação da “companhia inimiga”,

necessário se fazia descobrir de onde se originava sua “vontade”.

Superado esse momento, a figura do controle passou a ter tratamento jurídico,

com especial finalidade para a estruturação do poder na sociedade, especificamente,

como forma de composição dos distintos interesses dos controladores e não-

controladores.

É claro que, ainda que se possa afirmar, com precisão, que existe uma tensão

inerente entre os estados de controlador e não-controlador, isso não significa que

existirá, de fato, uma situação de real conflito dentro de todas as sociedades. Pode-se

pensar em situações em que os diversos interesses se encontram em estado de

equilíbrio, propiciando o desenvolvimento da sociedade, trazendo, consequentemente,

benefícios a todos. É missão do Direito propiciar esse estado de coisas, e buscar, nas

situações em que ocorre a desarmonia social, o retorno a tal estado de equilíbrio.

Nesse aspecto, a figura do controlador ganha relevante papel. A identificação

do poder de controle surge como forma de proteção aos não controladores, pelo que se

atribui ao controlador uma série de deveres e responsabilidades. Uma maior dissociação

entre capital e controle apenas evidencia, ainda mais, a importância dessa proteção, uma

143

vez que o controlador passa a gerir uma massa patrimonial para a qual ele,

individualmente, pouco contribuiu.

De qualquer forma, deve-se destacar que não é qualquer conflito que surja

entre controladores e não-controladores que deve implicar a responsabilização daqueles.

O exercício do poder de controle é, em grande parte, derivado do exercício dos

legítimos direitos e interesses do controlador. O que o Direito deve tutelar são aquelas

situações em que o controlador, valendo-se de seu poder de mando sobre a empresa, a

direcione para atividades que visem, única e exclusivamente, a seu favorecimento em

detrimento dos demais acionistas, ou até mesmo em detrimento da própria sociedade

empresária. Ou seja, deve-se evitar situações de abuso de poder de controlador,

responsabilizando-o pelos danos causados.

Mais do que a criação desse centro de imputação e de responsabilização, a

compreensão do poder de controle traz uma série de outras repercussões jurídicas no

campo societário, que, de forma mais ou menos evidente, continuam girando em torno

da tensão controlador/não-controlador. Assim, sendo o poder de controle o poder de

dispor da atividade empresária, qualquer alteração quanto ao seu titular pode ter por

consequência uma nova forma de gestão da sociedade, representando uma nova

situação de fato da sociedade. Por óbvio, essa importante alteração pode implicar

profundas modificações para os interesses dos demais sócios, sobretudo a assunção de

novos riscos. Assim, como forma de proteção de seus interesses, desenvolveu-se uma

série de institutos que lhe garantam certa proteção contra tais mudanças. Nesse sentido,

destaca-se, dentre outras, a figura do tag along, de extensão do preço da aquisição pelas

ações do bloco de controle às demais ações – todas merecendo ser tuteladas pelo direito.

Resumindo, mais do que criar um plus de responsabilidades e deveres para o

controlador, o poder de controle também implica direitos aos não-controladores. Assim,

além de uma tutela repressiva do abuso do poder de controle (por meio da

responsabilização do controlador), o tema implica uma série de tutelas preventivas a

situações que já se identificam como potencialmente desarmônicas para os interesses

envolvidos.

2.5. A definição do poder de controle

A partir dessa contextualização do poder de controle, pode-se mais facilmente

esboçar uma definição do que vem a ser esse poder de fato dentro da sociedade

empresária. Na lição de Comparato, poder de controle é um poder soberano sobre a

144

sociedade empresária (Comparato; Salomão Filho, 2008: 135), manifestado no poder de

decidir sobre outrem ou sobre bens de outrem. O mencionado autor colaciona, ainda,

percepções acerca do poder de controle de outros autores, que, devido a sua

importância, valem ser reproduzidas. Assim, citando Champaud, “controlar uma

empresa significa poder dispor dos bens que lhe são destinados, de tal sorte que o

controlador se torna senhor de sua atividade econômica” (Comparato; Salomão Filho,

2008: 126); e citando Giuseppe Ferri, “o controle exprime uma particular situação, em

razão da qual um sujeito é capaz de marcar com a própria vontade a atividade

econômica de uma determinada sociedade” (Comparato; Salomão Filho, 2008: 125).

Modesto Carvalhosa, por sua vez, assim define o poder de controle:

Controle societário pode ser entendido como o poder de dirigir as atividades sociais. Essa noção tem um sentido material ou substancial e não apenas formal. Assim, o controle é o poder efetivo de direção dos negócios sociais. Não se trata de um poder potencial, eventual, simbólico ou diferido. É controlador aquele que exerce, na realidade, o poder. Internamente, mediante o prevalecimento dos votos. Externamente, por outros fatores extra-societários. Controlar uma companhia, portanto, é o poder de impor a vontade nos atos sociais e, via de conseqüência, de dirigir o processo empresarial, que é o seu objeto. (Carvalhosa, 2009: 489)

No mesmo sentido se encontra entendimento figurado na legislação

estrangeira. A legislação norte-americana, por exemplo, reconhece o poder de controle

em termos similares: o poder de dirigir ou de causar a direção dos negócios de uma

pessoa, seja por detenção de ações com direito a voto, por contrato, ou por qualquer

outra forma.

2.6. A diferenciação do poder de controle e os níveis de poder na sociedade

Conforme apontado anteriormente, desde Berle e Means passou-se a conceber

três níveis de poder na sociedade empresária, aos quais Comparato identificou como

sendo: o da participação no capital da sociedade; a direção; e o controle. A capacidade

de gestão da sociedade está compreendida nestes dois últimos níveis: direção e

controle. Entretanto, um não se confunde com o outro. A diferenciação entre um e o

outro evidencia-se a partir da caracterização de tais funções feita por Berle e Means:

enquanto um é o poder sobre a sociedade, o outro é poder de agir em relação à

sociedade. Comparato apresenta essa distinção a partir da diferença entre controle sobre

a sociedade (poder de controle – poder de designar os administradores) e o controle

sobre a empresa (poder de direção). Ilustração disso é que o controlador sequer precisa

pertencer à diretoria. O importante é que ele possa conduzir a atividade empresária

145

conforme sua própria vontade, impondo a sua vontade aos administradores. Veja, a

exemplo disso, que o sistema britânico identifica o controle com o poder de determinar

a composição do board of directors.

Por outro lado, o poder de controle não se confunde com a participação no

capital social da sociedade, ainda que, na maioria das vezes (ao menos aqui no Brasil),

aquele derive de participação no capital social. Trata-se daquilo que já foi apresentado a

respeito da dissociação entre capital e controle. Para compreender o que representa isso,

basta perceber que não é necessário ser detentor de todo o capital social para ser

controlador. Tal dissociação chega ao ápice quando se constata que sequer é necessário

ter uma ação da sociedade para ser seu controlador – é o ocorre na forma de controle

gerencial, que será analisada mais a frente.

2.7. A manifestação do poder de controle na Assembléia Geral

A partir da identificação desses níveis de poder, é possível verificar como este

se manifesta. Conforme lição de Comparato (Comparato; Salomão Filho, 2008: 39), o

controle se manifesta por meio dos poderes decisórios da assembleia de acionistas como

necessária legitimação de seu exercício. Entretanto, trata-se de legitimação meramente

procedimental, formal.

Assim sendo, a definição do poder de controle é feita sempre em função da

assembleia geral, que constitui a última instância societária. Não por menos, Ascarelli,

citado por Comparato, o definiu como “a possibilidade de uma ou mais pessoas

imporem a sua decisão à assembléia da sociedade.” (Comparato; Salomão Filho, 2008:

39) 576

Esse papel fundamental da assembleia geral para o exercício do poder de

controle se mostra relevante para a compreensão dos diferentes tipos de controle, o que

será feito mais a frente.

2.8. O duplo papel de controlador administrador

Conforme explica Carvalhosa (2009: 494), a cumulação das funções de

administrador e controlador é extremamente comum, “já que a tendência do acionista

ou do grupo de controle será a de assumir pessoalmente o poder no Conselho de

Administração”. Ora, sendo um dos requisitos para a identificação do controlador a

576 No mesmo sentido, vide Frazão (2011: 79): “Acresce que tal premissa está em sintonia com a atual Lei da S/A (Lei nº 6.404/76), que definiu o controlador a partir da efetividade do seu poder na assembléia geral, sem restringi-lo a parâmetros fechados, motivo pelo qual admite inclusive o controle compartilhado.”

146

predominância de votos na assembleia Geral, com a eleição da maioria dos

administradores, nada impede que o próprio controlador se eleja como administrador.

Em tais situações, o controlador-administrador estaria diante de dois regramentos

próprios de responsabilidade: a do administrador e a do controlador.

As atividades dos administradores e dos controladores acabam se

aproximando, uma vez que ambos são gestores da atividade empresarial. Entretanto,

conforme já anteriormente indicado, trata-se de figuras que não se confundem,

representando cada qual um nível distinto de poder em relação à condução dos

negócios. De qualquer forma, tendo em vista a base comum desses dois centros de

poder, a racionalidade de suas respectivas responsabilidades acaba se pautando sobre os

pressupostos semelhantes. Destarte, nada obsta a análise em conjunto das

responsabilidades do controlador e do administrador. É o que nos apresenta Frazão

(2011: 248-249), em importante obra sobre o tema:

Estão, portanto, sujeitos aos mesmos princípios da ordem econômica constitucional, que oferece os parâmetros para a delimitação dos fins e objetivos da atividade empresarial, bem como para a redefinição do interesse social das companhias. Daí a possibilidade do tratamento conjunto da responsabilidade civil de controladores e administradores, conclusão que é reforçada pelos pressupostos funcionais e pragmáticos já examinados, os quais mostram que o regime de responsabilidade civil dos gestores é arquitetado para assegurar uma boa gestão, em obediência aos interesses constitucional e legalmente protegidos, tanto do nível do controle, quanto ao nível da administração strictu sensu.

Assim, pode-se conceber que os regimes de responsabilização dos

controladores e dos administradores visam à tutela de bens jurídicos próximos e, grosso

modo, o fazem de forma similar577. O próprio regime legal de responsabilização

existente na Lei 6.404/76 mostra sinais desse paralelismo, submetendo os dois sujeitos a

semelhantes regras e cláusulas gerais (Frazão, 2011: 249) 578-579-580.

577 Frise-se que está se discutindo a responsabilização diante de situações em que controlador e administrador se confundem. Em casos em que tais posições são ocupadas por diferentes agentes, entende-se que o controlador é responsabilizado mesmo diante de situações em que o administrador já é responsabilizado. Ou seja, a responsabilização de um não exclui a do outro. (Comparato, 2008: 403) 578 A autora, exemplificando essa situação, informa da recente extensão dos deveres de informar e de sigilo ao controlador, o que, até pouco tempo, era unicamente obrigação do administrador. (Frazão, 2011: 249) 579 Fato é que a responsabilidade do administrador foi tratada, pela LSA, de maneira mais pormenorizada do que em relação à responsabilidade do controlador. Isso deve à própria construção histórica dos institutos: enquanto a importância do administrador já foi reconhecida de longa data pelo direito, apenas mais recentemente (metade do século XX) o controlador passou a ser objeto de maiores reflexões. 580 Deve-se destacar, de qualquer forma, que alguns autores entendem haver certas peculiaridades entre cada um dos regimes, como por exemplo nos deveres de lealdade e nos regramentos de conflito de interesses. Nesse sentido, sustenta-se que os deveres de administrador, por decorrerem da administração de um patrimônio alheio (ainda que não exclusivamente), seriam mais acentuados, seguindo uma hipótese de conflito formal, enquanto para os controladores seria suficiente uma regra de conflito substancial. Conforme Salomão Filho (2006: 172), o conflito formal ocorre naquelas situações em que, a priori, o agente tiver interesse direto no negócio ou no ato. Não seria necessário, portanto, a indagação de lesão ao interesse social ou à sociedade. Por outro lado, o conflito substancial se reduz a um critério de culpa, em face de certos padrões (por exemplo, a razoabilidade de mercado).

147

Entretanto, ainda que tenham raízes e propósitos semelhantes, nas situações em

que as funções de controlador e administrador se reúnem em uma mesma pessoa, os

dois sistemas de responsabilidade lhe devem ser aplicados (Carvalhosa, 2009: 494).

Trata-se de regra decorrente da própria LSA, como se depreende do art. 117, §3º.

Apenas com a utilização desses dois institutos pode-se tutelar efetivamente essas

situações em que o poder sobre a companhia se concentra, de maneira preocupante, sob

um único indivíduo.

3. Formas de controle

A doutrina identifica, tradicionalmente, cinco formas de manifestação do poder

de controle: totalitário, majoritário, minoritário, gerencial (essas quatro sendo

consideradas formas do controle interno) e externo.

As formas de controle interno significam que o seu titular (ou seja, o

controlador) atua no interior da própria sociedade, ou seja, representa um órgão na

estrutura social. Por outro lado, o controle externo é aquele em que seu titular não se

encontra no interior da sociedade, sendo, no mais das vezes, um exercício de fato que

passa à margem do direito.

Poder de controle totalitário: forma de controle exercida pelos acionistas

detentores da quase totalidade das ações com direito a voto. Pode-se falar que, em certa

medida, propriedade e controle acabariam se identificando. Entretanto, em sociedade

em que existem ações preferenciais, continua a haver essa dissociação, permanecendo,

pois, o conflito. Situação interessante que representaria tal forma de controle seria o

controle compartilhado entre todos os acionistas.

Ainda que se possa, em tal estruturação do controle, falar em inexistência de

conflitos dentro dos órgãos societários, isso não pode ser interpretado como

inexistência de conflitos derivados da atividade empresária. Em tal forma, persistem os

conflitos externos aos órgãos societários, por exemplo, entre a sociedade empresária e a

sociedade civil, os trabalhadores e os consumidores.

Poder de controle majoritário: forma de controle exercida pelo detentor da

maioria das ações com direito a voto. Lastreia-se, pois, no princípio majoritário. De

qualquer forma, deve-se frisar que essa maioria titularizada pelo controlador não

representa, necessariamente, a maior parte dos investimentos aportados à sociedade,

mas, tão somente, maior detenção de ações com direito a voto. O direito societário

148

fornece uma série de elementos que potencializam a dissociação capital – controle; de

se ver, por exemplo, as ações preferenciais sem direito a voto.

Trata-se da forma predominante no Brasil, ainda que o Novo Mercado tenha

dado indicações de um novo horizonte por vir. Dentro de tal forma de poder de controle,

o conflito que se verifica é entre o acionista controlador e o acionista não-controlador.

Poder de controle minoritário: trata-se de poder fundado em menos da

metade do capital votante. Tal forma de controle pode resultar de duas situações: (i) a

existência de um acionista majoritário que não exerce de fato o controle, sendo este

exercido por outro acionista que não o majoritário, ou (ii) o controle exercido pelo

acionista minoritário diante da dispersão das ações da companhia e de um elevado grau

de absenteísmo da grande massa de acionistas, pelo o que a ‘vontade’ do minoritário

não consegue ser suplantada pelos demais acionistas. Trata-se de forma de controle que

vem ganhando destaque diante das perspectivas do Novo Mercado da Bolsa de Valores.

As companhias listadas nesse segmento especial adotam práticas diferenciadas de

Governança Corporativa que acabam reduzindo, substancialmente, a possibilidade de

extração de benefícios do acionista controlador majoritário. Sem esse benefício, a

dispersão acionária se apresenta como interessante alternativa para o antigo acionista

majoritário.

Poder de controle gerencial: trata-se de curiosa forma de controle que não é

fundada na participação acionária, mas unicamente nas prerrogativas diretoriais. A

partir de uma extremada diluição acionária, os administradores assumem o controle

empresarial, transformando-se em órgão que se autoperpetua no poder. Explora-se o

elevado grau de absenteísmo dos acionistas por meio, sobretudo, de sistemas de

procurações (proxy machinery)581. A dissociação entre capital e controle é levada ao

extremo sob tal forma de controle. Trata-se de forma de estruturação de poder que se

manifesta, de forma geral, somente nos Estados Unidos.

Conforme aponta Comparato (Comparato; Salomão Filho, 2008: 73), tal forma

de controle representa forte argumento a favor da teoria institucional da sociedade

anônima. Uma vez que a “vontade” da sociedade transcenderia à vontade do corpo de

acionistas, impraticável à análise da sociedade por meio de critérios contratualistas.

Outra forma de manifestação do poder de controle gerencial é a de companhias

controladas por fundações, conforme apresenta Comparato (Comparato; Salomão Filho,

2008: 73), por meio do qual competirá aos curadores do patrimônio fundacional “as 581 Observa-se, pois, a manifestação desse poder na Assembléia Geral.

149

decisões concernentes à gestão e disposição dos bens da fundação”. Nesta forma de

controle, o conflito existente é aquele entre o corpo de acionistas e o corpo de

administradores – o chamado agency problem.

Por fim, o poder externo. Trata-se de forma de controle bastante peculiar,

devendo ser identificada caso a caso. Parte do conceito de influência dominante, que é

exercido por uma figura estranha à sociedade. Ainda que se possa entender o exercício

do poder de controle externo por meio de posição jurídica, grande parte de sua

manifestação é “simplesmente” uma situação de fato, passando, no mais das vezes,

despercebido pelo direito societário. Apresentam-se as seguintes situações como

configuradoras de tal forma de controle: (i) endividamento da sociedade – tendo a

possibilidade de proceder à execução forçada da sociedade, com risco de levá-la a

falência, o credor acaba dominando a atividade empresarial; (ii) empréstimo em que o

credor recebe como caução ações do bloco de controle; (iii) situações de oligopsônio ou

monopsônio.

Tais formas de controle não têm, na realidade, separação nítida, muitas vezes

sendo difícil a perfeita aplicação de uma forma de controle a uma dada situação.

Adverte-se, portanto, que figura impossível traçar uma nítida linha divisória entre esses

diferentes tipos de controle, de tal maneira que cada qual seja inteiramente excludente

dos demais (Comparato; Salomão Filho, 2008: 52).

3.10. O Controle Compartilhado e o Direito de Veto

O exercício do poder de controle pode não ser atribuído a um único

acionista, o que pode se dar em diversas situações. Por exemplo, um acionista

majoritário, de forma a atrair o investimento de determinado agente, abre mão de parte

de seu poder, concedendo a este último algumas prerrogativas, tal como direito de veto

em determinados temas, de forma a proteger o seu investimento582. Em casos como

esse, pode-se identificar estruturas de controle compartilhado, figurando-se não um

acionista controlador, mas um bloco de controle.

Entretanto, não é qualquer vínculo parassocial que implica o aparecimento

de um bloco de controle. Resta saber em que situações pode-se, efetivamente, constatar

a existência de uma estrutura de poder compartilhada (pela qual o minoritário também é

582 O mesmo princípio aqui apresentado pode ser aplicado a outras situações de poder de controle derivado de acordo de acionistas.

150

identificado como controlador), e não somente o controle simples de um único

acionista, ainda que com alguma influência relevante de um acionista minoritário.

Conforme Villas Boas (2010: 16), citando parecer da Procuradoria Federal

Especializada da CVM, somente se fala em controle compartilhado (ou controle

conjunto) quando o grupo de controle exerce as prerrogativas e as responsabilidades que

incubem ao acionista controlador de forma coletiva, quando as pessoas que constituem

tal grupo agem e respondem como se fossem uma única pessoa, sem que cada um possa,

por si só, ser considerada controlador.

Assim, a identificação de um bloco de controle não se dá de forma

automática após a constatação da existência de um acordo de acionista que garanta a

maioria das ações com direito a voto. Deve-se proceder, ainda, a uma minuciosa

análise do contexto em que os acionistas interagem ente si, de forma a tomarem suas

decisões e conduzirem os negócios da companhia (Villas Boas, 2010: 11). É necessário

que, por meio do ajuste parassocial (o acordo de acionista), o minoritário atenda aos

requisitos legais para ser identificado também como controlador; ou seja, que possa ser

identificado com detentor de poder para a condução dos negócios da companhia.

Conforme a autora (2010: 10):

Tal análise é de extrema importância posto que a ausência dos requisitos inerentes ao reconhecimento do acionista controlador farão com que não exista entre o investidor engajado e o acionista majoritário um bloco de controle, mas somente a existência de um acionista minoritário (posto que não detém a maioria das ações com direito a voto da companhia) que apresenta influência relevante nas decisões e atos societários de determinada empresa. Partindo de tal pressuposto, passará o acionista majoritário a ser também o acionista controlador da companhia, detendo o denominado controle simples.

Assim, garantido aos sócios vinculados por acordo de acionista a

predominância de votos na assembleia Geral, com a eleição da maioria dos

administradores (primeiro requisito para a identificação do poder de controle), deve-se,

no intuito de verificar se o minoritário é parte do bloco de controle, perquirir sobre

quais matérias ele tem direito a veto. Apenas nos casos em que, por meio de tal direito,

se permite ao minoritário a efetiva orientação das atividades sociais, é que se pode

constatar a existência de um controle compartilhado. Em tais situações, mais do que

simples proteção do investimento, os direitos concedidos ao minoritário investidor lhe

conferem poder para ingerir no funcionamento e manutenção da empresa.

Constatada a possibilidade de ingerência, de forma permanente, na

Assembleia geral e o poder de deliberação (ainda que por meio do exercício de veto) às

151

matérias afeitas ao gerenciamento da companhia, poder-se-ia constatar a figura de um

bloco de controle, sendo a ambos os acionistas (o majoritário e o minoritário) atribuídas

as responsabilidades de controlador.

3. O Poder de Controle na Lei 6.404/76

O reconhecimento do poder de controle é comumente apontado como um dos

grandes méritos da nossa Lei das S.A (Lei 6.404/76). Até então, fundado na noção de

soberania da assembléia geral, nosso regime jurídico se utilizava não da figura do

acionista controlador, mas de outro conceito: de acionista majoritário.

Segundo o regime anterior, em que havia uma correlação entre capital

empregado e mando, atribuía-se o voto (Carvalhosa, 2009: 476) a todos os acionistas

titulares de ações ordinárias, dando aos votos majoritários totais direitos de decisão (a

“ficção democrática”). Assim, mais encobrindo do que identificando os verdadeiros

donos do negócio, nosso ordenamento jurídico não estabelecia responsabilidades

específicas para o controlador nem trazia uma proteção extensa e sistemática aos

minoritários.

Evidencia-se, pois, o avanço implementado pela Lei 6.404/76, em que,

superando a ficção democrática, personaliza o poder de controle sobre o patrimônio

social, definindo os deveres e as responsabilidades de quem efetivamente detém o

comando no seio da companhia (Carvalhosa, 2009: 488).

Segundo a definição legal apresentada pelo art. 116 da Lei das S.A:

Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

Conforme se depreende, nosso ordenamento se centra não mais na

titularidade da maioria do capital votante, mas em função do efetivo exercício do poder

de direção. Sendo assim, para a identificação do acionista controlador, deve-se cumular

152

os seguintes elementos: (i) a predominância de votos na assembleia geral, com a eleição

da maioria dos administradores; (ii) a permanência dessa predominância; e (iii) o

efetivo uso do poder de dominação (Eizirik, 2010: 179). Destarte, o poder de controle é

o exercício real do poder, não sendo um mero poder potencial, eventual, simbólico ou

diferido, nas palavras de Carvalhosa (2009: 489).

Sendo ponto de partida necessário para a personificação do controlador e,

consequentemente, para se identificar a quem se atribui uma série de responsabilidades

específicas583, a definição legal se encontra no centro de uma série de questões

envolvendo o poder de controle. Conforme será adiante tratado, a conceituação legal

deve ser confrontada com a realidade, de forma a se perquirir sua adequabilidade para

incorporar ou abarcar as novas perspectivas do poder de controle – não só quanto à sua

forma, mas também quanto à sua função social.

4. Questões

Apresentadas, de forma geral, essas considerações acerca do poder de controle,

bem como a exposição de sua conceituação pelo nosso ordenamento jurídico, pode-se,

mais apropriadamente, abordar algumas questões afeitas ao tema. Buscar-se-á

confrontar o texto normativo em face de algumas situações peculiares decorrentes do

poder de controle. Para tanto, far-se-á uso não só do texto frio da Lei 6.404/76, mas

também das repercussões dos princípios próprios do Direito Comercial e dos ditames

constitucionais. Mais do que respostas, se busca a problematização do tema,

fomentando o debate.

4.1. A responsabilização por omissão do acionista majoritário

Deve o acionista majoritário ser responsabilizado inclusive nos casos em que

ele se abstém de exercer o poder de controle? Ou seja, basta estar na posição de

acionista majoritário para ser identificado como controlador e, consequentemente, lhe

serem atribuídos os deveres e responsabilidades correlacionados?

A questão não envolve casos de omissão dolosa do controlador, ou seja, casos

em que o acionista majoritário vem usualmente exercendo seu poder de controle, mas

que, diante de uma determinada deliberação, se abstém de exercer seu poder tendo em

vista os benefícios que poderá extrair de tal omissão.

583 Art. 117 da Lei 6404/76.

153

A questão trata daquelas situações em que um detentor da maioria das ações

usualmente se mantém inerte em relação ao controle da sociedade, cabendo este a

acionistas minoritários ou até mesmo a alguma forma de controle gerencial. Em tais

casos, para fins de responsabilização, pode o acionista majoritário ser considerado

controlador? Tal pergunta, a bem da verdade, implica outra mais genérica: o acionista

majoritário sempre será controlador?

A nossa Lei das S/A, em seu art. 116, apresenta, conforme dito anteriormente,

três elementos para a identificação do controlador: (i) a predominância de votos na

Assembléia Geral; (ii) a permanência dessa predominância; e (iii) o uso efetivo do

poder de direção tal poder. Discute-se se, de fato, exige o mencionado dispositivo esses

pré-requisitos para a qualificação do controle (Comparato; Salomão Filho, 2008: 69),

ou se, independentemente da existência do elemento ‘uso efetivo’, poder-se-ia alcançar

o acionista majoritário.

A questão parte da percepção de que o acionista majoritário estaria em uma

posição fática e jurídica capaz de alterar os rumos da sociedade pela sua própria

vontade. Diante de tal percepção, o minoritário que estivesse exercendo controle estaria

em uma situação de precariedade, uma vez que seu controle poderia ser substituído pelo

controle do majoritário, sempre que este o quisesse. Assim, poder-se-ia sustentar que

haveria a responsabilização de ambos: a do majoritário por omissão e a do minoritário

por comissão.

Tal posição é apresentada por Calixto Salomão Filho (Comparato; Salomão

Filho, 2008:69-71):

Muito discutida é a existência no referido artigo [art. 116 da Lei 6.404/76] de dois requisitos para a qualificação do controle: em primeiro lugar, a existência de direitos de sócio que assegurem, de modo permanente, a maioria de votos na Assembléia Geral. Em segundo lugar, o uso efetivo do poder para dirigir as atividades sociais. Apesar de o primeiro requisito aparentemente indicar no sentido da exigência de controle majoritário, o segundo claramente é aplicável só a casos de controle minoritário. Em caso de controle majoritário, é irrelevante o uso efetivo do poder: o acionista terá status de controlador e as responsabilidades dele decorrentes, seja por ação ou por omissão. [...] Para a aplicação da disciplina de responsabilidade, o controle minoritário é plenamente suficiente (sem afastar, é claro, a responsabilidade do majoritário por omissão) [...]

Comparato (2008: 392-393), da mesma forma, parece indicar que,

independente da previsão legal no art. 117 da LSA, que apenas elencou hipóteses

comissivas, a cláusula genérica do art. 116, parágrafo único, seria suficiente para captar

154

a ação omissiva. Apenas não fica claro se a omissão a que ele se refere é a ‘dolosa’ ou

propriamente a forma de omissão aqui sendo tratada.

Tais posições, em alguma medida, se sustentam na função social da

propriedade. Incorporado do direito alemão, o princípio de que “a propriedade obriga”

faria surgir um dever do acionista majoritário no sentido de dar um destino social à sua

propriedade – o bloco de controle –; criando, pois, um dever de se evitar o mau uso da

sociedade empresária. Consequência desses deveres seria a sua responsabilização por

omissão.

Em que pese a força de tal princípio, inclusive elencado na Constituição como

princípio ordenador da ordem econômica, há bons elementos para que ele tenha uma

interpretação temperada para o direito comercial.

Ora, seria implausível se cogitar de que um “simples” investimento (capaz de

assegurar uma posição de acionista majoritário) já não representaria uma função social

em si mesmo?

O investimento não deve ser tutelado unicamente em vista dos interesses

individuais do investidor; não se pode afastar a repercussão social do investimento na

sociedade civil, seja na criação de empregos, tributos, oferta de novos produtos,

desenvolvimento tecnológico... Assim, a lei, ao proteger o investimento, está

necessariamente resguardando interesses que não se reduzem aos do investidor (Coelho,

2012: 33). Como ensina Fábio Ulhoa Coelho (2012: 21) “a chave é demonstrar como

aproveita aos interesses metaindividuais de todos os brasileiros a proteção jurídica

liberada ao investimento”.

Deve-se, portanto, afastar uma visão reducionista quanto à função social do

“simples” investimento. Incrementar o “custo” do investimento (responsabilizando o

investidor por omissão) pode trazer nefastas consequências para a economia nacional,

podendo, inclusive, afastar investimento no país. A situação se agrava ainda mais ao se

considerar que, atualmente, a partir do fenômeno da globalização, os investimentos

competem em uma base global584.

Não se pode esquecer deque uma não responsabilização do acionista

majoritário não deixaria, por si só, ao desamparo a sociedade civil ou demais indivíduos

com interesses na sociedade empresária. Persistiria ainda a responsabilização daquele

que, no caso, foi a origem dos prejuízos causados: o minoritário.

584 Vide, nesse sentido, artigo de Fábio Ulhoa Coelho: “Democratização” das Relações entre os Acionistas.

155

Destarte, deve-se sopesar até que ponto uma maior responsabilização do

acionista majoritário deva ir, tendo em vista outros aspectos relevantes de seu

investimento. Por outro lado, a flexibilização demasiada do conceito legal

(inexigibilidade do requisito ‘uso efetivo’) poderia implicar um desvirtuamento do

sistema normativo: em última análise, poderia significar um retorno ao sistema

majoritário vigente pré-LSA.

4.2. As repercussões do poder de controle externo

O poder de controle externo é envolto de elevado grau de obscuridade do ponto de

vista jurídico-societário. Tal característica advém de sua própria essência em que,

prescindindo de estruturas jurídicas, se passa – em várias situações – no plano

puramente fático. Basta lembrar da situação de companhia em situação de monopsônio.

Não por menos, acaba se utilizando uma terminologia distinta para o poder de controle,

preferindo-se a utilização do termo “influência dominante” (Comparato, Salomão Filho,

2008: 89).

A análise da influência dominante tem terreno fértil na área do direito antitruste,

em que, acima da independência societária, deve-se atentar para independência

econômica dos agentes. Entretanto, no campo societário, a discussão é marginalizada,

sobretudo porque tal ramo do direito tem escopo distinto. Como bem coloca Salomão

Filho (Comparato; Salomão Filho, 2008: 90):

No direito societário, a mesma preocupação com a realidade das formas, portanto com o poder de disposição sobre unidades juridicamente autônomas mas economicamente dependentes, tem escopos diversos. A preocupação é com a determinação por interesses estranhos aos interesses da sociedade dos destinos do patrimônio social [...] Daí porque a idéia de influência dominante no direito societário é de pouco valor explicativo.

Diante de tal grau de indeterminação do poder de controle externo, em que a

análise de sua ocorrência acaba se dando caso a caso, poucas análises têm sido feitas

quanto à responsabilização de seu titular. Exceção pode ser apontada para aqueles casos

em que o exercício de controle externo é decorrência de dispositivos legais próprios,

como é o caso da intervenção administrativa ou judicial. Em casos como esse, pouco se

duvida quanto à responsabilização civil do Estado pela gestão empresarial (Comparato,

2008: 101). Entretanto, mesmo diante de tais casos de responsabilização do Estado,

utiliza-se não propriamente o instituto da responsabilização do controlador, mas de

156

institutos muitas vezes alheios ao direito societário. Assim, o poder de controle externo

se mostra terreno fértil para novas reflexões.

Em tal âmbito, poder-se-ia levantar uma série de questões: Pode-se conceber a

responsabilização do controlador externo em face de seus atos prejudiciais à sociedade?

Todas as formas de controle externo poderiam ser abarcadas nessa responsabilização?

Como se daria a responsabilidade dos órgãos societários, sobretudo dos acionistas, que

seguiram tal influência determinante?

Diante de uma análise mais moderna do direito civil, sobretudo quanto à

função social dos contratos, supera-se o antigo caráter relativo da força vinculante dos

contratos (“o contrato é lei entre as partes”), e passa-se a cogitar de uma obrigação

erga omnes no sentido de se respeitar e não interferir negativamente nos negócios

jurídicos de terceiros. Seria implausível buscar uma incorporação de tal funcionalização

dos direitos obrigacionais (uma das principais formas das quais deriva o poder de

controle externo) pelo direito societário585? A discussão enseja, assim, a questão de se

seria factível conceber alguma espécie de dever fiduciário do agente externo – elemento

orientador da responsabilização do controlador. Com isso, buscar-se-ia afastar o

argumento de que um credor (na qualidade de controlador externo), não sendo membro

de qualquer órgão social, não teria obrigações para com a sociedade, pelo que não lhe

seria possível a aplicação da legislação societária para fins de responsabilização.

A situação ganha especial relevância quando, por exemplo, se considera a

caução das ações do bloco de controle, sobretudo em situação em que se determina a

estipulação do consentimento do credor para deliberar certas matérias. Diante de tal

situação, evidente fica o impacto direto (seja prejudicial ou não) à sociedade decorrente

de tais estipulações. Nessa situação em que o próprio exercício do voto é condicionado

ao consentimento do credor (controlador externo), pouco plausível o argumento de que

este se mantém figura estranha à sociedade.

Outra questão correlacionada é quanto à responsabilização do detentor do

bloco de controle por meio do qual se exerceu o controle. Seria ela concorrente à do

controlador externo? Subsidiária? Ou mesmo, a depender da situação, até mesmo

excluída?

Conforme afirma Carvalhosa (2009: 196), pela sistemática da LSA o

controlador externo é irresponsável perante a companhia, seus acionistas ou terceiros

585 Em uma situação como essa acaba se evidenciando a teoria contratualista das sociedades. Não obstante, o argumento pode ser adaptado para a incorporação à teoria institucionalista.

157

pela direção da sociedade. O diploma legal não previu a responsabilidade do

controlador externo, cabendo unicamente aos controladores internos essa

responsabilidade quando se prestam a formalmente exprimir a vontade dos

controladores externos. Observa-se, pois, que o controle externo acaba escapando de

nosso sistema legal.

O mesmo não ocorre com o ordenamento jurídico estrangeiro que, quer se

utilizando de um conceito legal de controle mais amplo, quer prevendo expressamente a

existência do controle externo, acaba por tutelar os interesses sociais em face do

controle externo. Nesse sentido, pode-se fazer menção ao regramento norte-americano,

para o qual controle significa detenção de poder para dirigir direta ou indiretamente a

administração e as atividades de uma companhia, quer mediante a propriedade de ações

com direito de voto, quer por contrato, ou por qualquer outra forma (Carvalhosa, 2009:

497). O direito alemão, por sua vez, previu expressamente a figura do controlador

externo e sua consequente responsabilização. Diante do ‘aproveitamento de influência

sobre a sociedade’, que seria o ato de induzir, dolosamente, um administrador,

procurador ou representante a agir em detrimento da sociedade, mediante abuso de

influência:

O aproveitador é obrigado a ressarcir à companhia e aos acionistas os danos causados aos patrimônios respectivos. Com ele respondem, também, os administradores, procuradores ou representantes que se submeteram a essa influência abusiva. Deixou, no entanto, o legislador de prever a hipótese, nada improvável, do abuso de influência sobre o acionista controlador. (Comparato, 2008: 94)

A análise das repercussões do poder de controle externo deve ser feita com

extrema cautela. Primeiramente, não se pode, na tentativa de buscar uma

responsabilização do agente externo, uma elasticidade conceitual que põe em risco a

própria integridade do instituto. Diante de uma situação como essa, em benefício da

coerência do ordenamento como um todo, melhor seria deixar a responsabilização do

controlador externo a cabo de outros mecanismos fora do direito societário. Outra

questão diz respeito às repercussões que tal forma de responsabilização teria, sobretudo

no que diz respeito às relações creditícias. Um excesso de responsabilização por parte

do credor pode significar o encarecimento (por meio de juros mais elevados) do crédito.

De qualquer forma, constatada a necessidade de incorporar as situações de poder de

controle externo à tutela legal, deve-se proceder a um aperfeiçoamento da conceituação

legal de controle. Centrado na figura do acionista, nosso ordenamento deixa escapar,

158

por completo, tal forma de controle. Em seguida, será necessário estabelecer as

responsabilidades do controlador externo, de forma a se cooptar as especificidades e

peculiaridades de tal forma de controle. Como e em que medida se deverá materializar

essa responsabilização é tema que tem muito ainda a ser explorado.

4.3.A pulverização do capital social e o Poder Gerencial

Diante da ineficácia de nossa lei societária em atrair investimentos (sobretudo a

poupança popular) para as bolsas de valores586, e, consequentemente, em tornar o

mercado acionário uma opção relevante como fonte de capital para as companhias,

percebeu-se a necessidade de um aperfeiçoamento às nossas formas de organização

societárias. Como tentativa (contratual) de solucionar alguns desses problemas

societários brasileiros, criou-se o Novo Mercado, segmento especial de listagem de

companhias que se utilizam de níveis diferenciados de governança corporativa. Trata-se

da implementação, nos moldes de uma autorregulação, de regras que visem a tornar

menos vantajoso o controle concentrado, seja a partir da redução dos benefícios que

possam ser extraídos de tal forma de controle, seja tornando mais custosa a

manutenção/aquisição dessa forma de controle587.

Conforme aponta Salomão Filho (2006, pp. 57-58), a solução se alicerça sobre

três bases. Duas delas seguem a tendência da lei societária, e são: (i) o acesso a

informações completas e (ii) o reforço a garantias patrimoniais dos minoritários no

momento da saída da sociedade. A terceira base, que é o ponto original da solução (e a

que nos interessa neste momento), diz respeito justamente ao poder de controle.

Conforme aponta o professor:

Trata-se das chamadas proteções estruturais, por modificar a própria conformação interna das sociedades. Não são diretamente inspirados pelo princípio cooperativo, mas sem dúvida ajudam a persegui-lo ao enfraquecer ou permitir o enfraquecimento do poder do controlador. (2006: 58)

Assim, a partir do desenvolvimento do Novo Mercado da Bolsa de Valores,

o tema poder de controle assumiu novos contornos. A implicação para o tema que mais

se destaca foi a maior pulverização do capital das companhias, modificando o perfil de

586 “Nesses 30 anos de vigência da lei societária foi e tem sido impossível atrair poupança popular para as Bolsas brasileiras. O mercado de capitais brasileiro viveu, nos últimos anos, de investimentos especulativos específicos e de investidores dispostas a entrar e sair rapidamente das empresas – o contrário, portanto, dois países que conseguiram organizar seus mercados de capitais.” (Salomão Filho, 2006: 56) 587 Novaes (2011: 06) apresenta as seguintes inovações do Novo Mercado: (i) emissão apenas de ações ordinárias (uma ação, um voto); (ii) tag along de 100% para todos acionistas em caso de alienação do controle da companhia; (iii) apresentação das demonstrações financeiras em padrão internacional; (iv) divulgação de informação sobre transações com partes relacionadas e de negociação de valores mobiliários pelos administradores; (v) mandato uniforme e eleição na mesma data dos membros do conselho de administração que deve contar com pelo menos 20% de conselheiros independentes; e (vi) adesão à Câmara de Arbitragem da Bolsa para dirimir disputas entre acionistas.

159

controle das sociedades, de uma forma predominantemente majoritária, para novas

realidades, como controle minoritário e, até mesmo, formas sem a presença de

acionistas controladores. É justamente no Novo Mercado que se observam os menores

níveis de concentração de controle. Segundo apontamentos de Novaes (2011:06), em

2010, 41 das 106 companhias listadas nesse segmento especial não tinham acionista ou

grupo de acionistas que detinham mais de 50% das ações. Dados de Bortolon e Leal

(2008: 02) referentes a 2008 indicam que, enquanto no segmento tradicional o maior

acionista detém uma participação média de 65,5%, no Novo Mercado essa participação

foi de apenas 36,39%.

Assim, a discussão em torno do poder de controle é reavivada diante dessa

nova experiência que materializa novas formas de controle, até então pouco conhecidas

no cenário nacional. A partir de incentivos para a diluição acionária, novas implicações

do poder de controle ganham corpo e as normas e regulamentos jurídicos devem ser

confrontados com essa nova realidade decorrente da dispersão acionária, catalisada pelo

Novo Mercado. Deve-se inquirir se os institutos tradicionais, criados e desenvolvidos

para atender às necessidades de um sistema focado na figura de um acionista

majoritário controlador, estão aptos para normatizarem a nova realidade que se faz

presente, ou se, pelo contrário, nova regulamentação e normatização se fazem

necessários.

Nesse sentido, o poder gerencial, destoando das tradicionais formas de

controle das sociedades brasileiras, se mostra o grande desafio. Conforme dito

anteriormente, o controle gerencial é a forma de controle em que a dissociação entre

capital e controle é levada ao extremo. Diante de uma extrema pulverização do capital

social, nenhum acionista é capaz de, isoladamente, fazer prevalecer sua vontade sobre a

companhia (Garcia, 2008: 120). Da mesma forma, diante da extrema dispersão

acionária, a possibilidade de os acionistas se agruparem, via acordo de acionistas ou

outras formas de coordenação, se torna impraticável, tendo em vista os enormes custos

que tal procedimento demandaria588. Assim,

em decorrência da impossibilidade de se configurar uma situação de controle pelo próprio acionista [...] há o deslocamento do centro decisório que passa a ser ocupado por aqueles que, em razão do cargo que ocupam na companhia, possuem entre as suas atribuições o poder de dirigir os negócios sociais: os administradores. (Garcia, 2008: 120)

588 A coordenação de milhares de acionistas se torna inviável.

160

Assim, já podemos analisar uma primeira questão: nosso ordenamento jurídico

se mostra, atualmente, apto a identificar e regular o poder de controle gerencial?

A conceituação legal de controlador, dada pelo art. 116 da LSA, centra-se na

figura de um acionista (titular de direitos de sócios)589 e no seu poder de eleger os

administradores. Assim, observa-se que o conceito de controlador não alcança, ao

menos em princípio, a figura do controle gerencial, por este não se fundar na

possibilidade de eleger os administradores.

Diante da limitação da conceituação atual de controlador, deixar-se-ia de

responsabilizar aquele que efetivamente dirige os negócios da companhia (o

administrador). Em tal situação, o ordenamento jurídico deixaria de tutelar o agency

problem decorrente do poder de controle; situação essa, por óbvio, indesejada.

Verifica-se, pois, a necessidade de um aperfeiçoamento do conceito legal de

controlador, de forma a se abarcar o controle gerencial. Para tanto, o conceito de

controlador deve-se focar na sua capacidade de orientação dos negócios da companhia,

e não em características específicas de determinada forma de controle (ser titular de

direitos de sócios, ter o poder de nomear os administradores, etc.).

Até que tal flexibilização conceitual seja feita, estaremos diante de situação

peculiar, em que poderíamos afirmar que uma sociedade não teria um controlador (ou

ao menos um controlador juridicamente reconhecido). Em tais casos, o instituto da

responsabilização do controlador perderia sua eficácia, vez que não se identificaria um

controlador a quem responsabilizar. É claro que ao administrador-controlador seriam

ainda aplicáveis as regras de responsabilidade dos administradores, que, conforme dito

anteriormente, apresentam racionalidade semelhante a dos dispositivos referentes à

responsabilidade do controlador. Assim, o controle gerencial não ficaria inteiramente

desregulado, apenas não seria tutelado da forma mais adequada. Para uma tutela mais

eficiente, seria imprescindível que se aplicasse ao administrador-controlador os

dispositivos da responsabilidade do controlador, o que, conforme foi dito, só seria

possível após a flexibilização conceitual do controlador, de forma a se reconhecer a

figura do controle gerencial.

De qualquer forma, deixando de lado essa posição conservadora, que não

reconhece a possibilidade de o controle gerencial ser abarcado pela redação do art. 116

da LSA, pode-se cogitar de um exercício interessante para enquadrar o controle

gerencial na conceituação do art. 116 da LSA, a partir do instrumento que viabiliza sua 589 Destaca-se ainda que o texto normativo sempre faz referência a acionista controlador.

161

ocorrência. Conforme dito anteriormente, o controle gerencial, aproveitando o

absenteísmo dos acionistas marcante em sociedades de capital pulverizado, utiliza-se de

mecanismos de procuração (proxy machinery). Tal mecanismo consiste na captação, em

larga escala, de procurações outorgadas pelos acionistas aos administradores, com

poderes de representação nas assembléias-gerais da companhia (Garcia, 2008: 132).

Assim, uma vez que o poder gerencial, para a sua concretização, necessita da utilização

de direitos de sócios (estes transmitidos aos administradores por procuração), poder-se

ia cogitar de enxergar, em tal caso, a existência de uma efetiva capacidade de o

administrador se valer de direitos de sócios (ainda que simplesmente como procurador)

para obter a predominância na Assembléia Geral, com a eleição dos administradores

(no caso, a sua própria manutenção na posição de administrador). Assim, a partir de um

exercício hermenêutico, poder-se-ia entender que o controle gerencial atende sim aos

requisitos da conceituação legal de controlador, pelo que se tornaria desnecessário o

aperfeiçoamento do conceito legal590. Trata-se de proposta que necessita ser melhor

analisada de forma a se perquirir se não implicaria alguma desestabilização dos

institutos jurídicos correlacionados.

Seja qual for o caminho escolhido (uma interpretação mais flexível do art. 116,

ou uma interpretação mais conservadora), fato é que para o devido reconhecimento do

controle gerencial como efetiva forma de poder de controle por nosso ordenamento

jurídico, os intérpretes do Direito deverão se debruçar sobre o tema: seja para a

elaboração de um novo conceito legal de controle, seja para clarificar o caminho

argumentativo que possibilite a captação do controle gerencial pela atual redação do art.

116 da LSA. Apenas após tal construção, normativa e/ou argumentativa, poder-se-á

garantir um mínimo de segurança jurídica ao tema, essencial para o desenvolvimento

das atividades econômicas do país.

590 É claro que, superada a questão da predominância sobre a Assembléia Geral, restaria ainda a necessidade de identificar o segundo requisito: a permanência. Diante da relativa precariedade da posição do administrador controlador (caso este não mais consiga obter número suficiente de procurações – o que, conforme demonstra as chamadas proxy fights, é algo crível) poderia se argumentar que este não consegue exercer de forma permanente o controle. Entretanto, pode se dar uma interpretação que flexibilize tal requisito. Ao invés de se pensar de forma prospectiva o requisito da permanência, ou seja, voltada para o futuro, pode-se cogitar de uma percepção retrospectiva de tal requisito, pelo o que se poderia verificar o atendimento do quesito permanência. Trata-se de orientação semelhante àquela dada pela Resolução n. 401/76 pelo Banco Central. Em casos em que não houvesse um acionista majoritário que, por conseguinte, resolvesse automaticamente a questão da permanência, tal requisito, conforme a referida Resolução, seria virtualmente suprimido diante da verificação do acionista que nas últimas três assembléias gerais tivesse sido titular de ações que lhe asseguraram a maioria absoluta dos votos.

162

5. Análise comparativa das formas de controle: suas vantagens e desvantagens

Muito comum é, após o estudo das diversas formas de controle, o

questionamento de se uma delas é a “melhor” forma de organização do poder. Tal

questionamento enfrenta, de imediato, uma série de outras questões: o que significa ser

uma melhor forma de controle? Qual seria o parâmetro? Para quem a forma de controle

deve ser melhor? Para o controlador? Para o minoritário? Para terceiros?591

Grande parte da literatura utiliza como critério de avaliação dos sistemas de

controle o valor de mercado da companhia (reflexo do preço das ações). Trata-se de

parâmetro proveniente dos Estados Unidos, a partir de uma definição neoclássica de

desempenho (Salomão Filho, 2006: 65).

Conforme Salomão Filho nos informa (2006: 67), estudos recentes

demonstram que existe uma relação inversa entre grande concentração e o valor de

mercado da companhia. Assim, uma maior pulverização do controle se mostraria uma

forma mais eficiente de se organizar uma sociedade. Conforme expõe o autor “a

diluição de controle, como toda diluição de poder, acaba por permitir um melhor

equilíbrio entre os vários interesses envolvidos pelas grandes companhias”.

Entretanto, como o mesmo autor reconhece (2006: 65), ainda que haja uma

preferência pelos sistemas de controle diluído por parte da literatura, a questão ainda

traz enormes incertezas.

Tais dúvidas já se tornam evidentes ao se constatar a existência de uma série de

outros fatores determinantes para a estrutura de controle de uma empresa, que não se

resumem unicamente a uma forma genérica e abstrata de controle concentrado ou

diluído. Conforme apontam Canellas e Leal (2009: 05-06), são fatores determinantes

para a estrutura de controle de uma empresa: o seu tamanho (empresas maiores

tenderiam a ter o capital mais disperso); o potencial de interferência do controlador

sobre os resultados da empresa (em ambientes de maior instabilidade, em que é

necessário mais mudanças de rumo – interferência do controlador –, haveria um

favorecimento do controle concentrado); a regulação jurídica (em casos em que já se

oferece maiores garantias aos minoritários, favorecer-se-ia o controle diluído). Além

desses, os autores apresentam uma série de outros fatores. Interessante exemplo é no

tocante ao valor não material do controle: nesse caso “empresas de mídia e esportes, por

exemplo, trazem outros benefícios para seus controladores como o status social e a 591 Para fins da presente questão, ao invés de se analisar cada forma individualmente, será feito uma análise dos dois grandes sistemas de controle: o concentrado e o diluído.

163

gratificação emocional e, por isso, favorecem a concentração de controle”. Assim,

diante de tantas variáveis, até mesmo subjetivas, torna-se difícil formular, genérica e

abstratamente, uma estrutura de poder de controle ideal e universal.

Por tais razões, ao invés da análise de qual sistema de controle seria ideal, se

mostra mais profícua a análise das vantagens e desvantagens que cada sistema de

controle apresenta. Assim, pode-se ter uma concepção geral das questões a serem

enfrentadas por cada forma de controle.

O controle concentrado, por envolver uma estrutura mais simples, permite uma

maior agilidade da companhia diante de novos desafios ou instabilidades no ambiente

em que se insere. Da mesma forma, o controle concentrado, por corresponder, em

algum grau, a uma maior associação entre propriedade e controle592, aumenta o

interesse de quem efetivamente detém o poder de mando da companhia no sucesso da

sociedade. Assim, uma vez que o insucesso da atividade empresarial implicará, de

maneira mais intensa, prejuízos ao controlador, que contribui em grande parte para a

formação do patrimônio da companhia, este tem total interesse em orientar de maneira

eficiente as atividades empresárias. Entretanto, tal associação entre propriedade e

controle também implica uma grande desvantagem de tal sistema: o controle

concentrado permite a extração, por parte do controlador, de benefícios privados da

companhia, em prejuízo dos demais acionistas. Ainda que o ordenamento jurídico possa

minimizar a potencialidade de extração desses benefícios particulares, aumentando o

poder de monitoramento dos demais acionistas, isso, por si só, não implica

necessariamente uma maior atuação dos minoritários. Conforme expõe La Rocque e

Sarno (2010:04), a participação pouco expressiva de tais acionistas nas assembleias

gerais pode ser atribuída aos custos associados a essa maior intervenção, que se

relacionam, principalmente, aos custos associados à assimetria de informações.593

Ainda segundo as autoras, “os benefícios gerados, quando comparados a tais custos,

podem ser incertos e irrelevante. Isto porque, isoladamente, os acionistas minoritários

tendem a duvidar de sua capacidade de interferir no rumo das decisões deliberadas em

Assembléia.”

Quanto a estruturas de controle pulverizado, ao se acentuar a dissociação entre

capital e controle, reduz-se a chance de extração de benefícios privados por parte dos

592 Tais situações podem ser bruscamente alteradas se utilizando de formas de controle piramidal ou de ações preferenciais, em que diminui o capital investido do controlador na sociedade. 593 Ainda segundo as autoras, a regulação busca mitigar tais custos, como, por exemplo, ao exigir a divulgação de um conjunto de informações previamente à assembléia, mas, ainda assim, há uma série de custos associados: expertise e tempo necessários para o processamento de informações, necessidade de solicitar informações adicionais, custos relacionados ao comparecimento ao evento.

164

acionistas. Ao mesmo tempo, entretanto, reduzindo os incentivos individuais para que

os acionistas exerçam plenamente seus direitos, intensifica-se, ainda mais, o fenômeno

do absenteísmo. Em tais situações, conforme explicado anteriormente, o poder pode ser

assumido pelos administradores. Diante do absenteísmo dos acionistas, aqueles deixam

de ser fiscalizados de forma efetiva, ocasionando o conflito entre administrador e

acionista, o típico agency problem norte-americano. Em tais situações, os

administradores podem atuar, ao invés de no interesse da companhia, segundo seus

próprios interesses, sobretudo de forma a se perpetuarem no poder. Tal situação é bem

exemplificada em caso de oferta de aquisição de controle de sociedade controlada por

administradores: na falta de maior vigilância e responsabilização do administrador,

estes podem tomar medidas defensivas em face da proposta que poderia corresponder, a

bem da verdade, aos melhores interesses da companhia, unicamente com o propósito de

se perpetuarem na gestão da sociedade.

Assim, verifica-se, como dito anteriormente, a complexidade da questão de se

determinar a melhor forma de estruturação do poder na sociedade. Primeiramente,

sendo resultado de uma série de fatores determinantes variáveis, não se pode concluir

por uma forma ideal de estruturação do poder de controle, aplicável a todas as

sociedades de todos os tipos, tamanhos, objetos, situadas em todos os lugares do mundo

e em qualquer momento. Em segundo lugar, cada sistema tem suas próprias vantagens e

desvantagens, que, a depender da regulação jurídica e dos interesses do conjunto de

acionistas, pode atender de maneira mais eficiente a uma dada situação fática. Voltando

a citar Salomão Filho (2006: 65): “não se chega a respostas conclusivas, entre outras

razões, por ser difícil ligar o desempenho única e exclusivamente à questão da

existência ou não de controle. Daí as enormes incertezas dogmáticas que existem na

matéria [...]”.

6. Conclusão

Tema central dentro do direito societário, o poder de controle ainda passa por

uma fase de (re)conhecimento, sendo, aos poucos, apreendidas suas múltiplas

repercussões. Assim, é essencial o trabalho de estudiosos, não só juristas, mas também

economistas e administradores, que se debruçam sobre o assunto. Nesse sentido, o Novo

Mercado, materializando novas perspectivas e cenários, inova no tema, demandando do

sistema legal e do operador do direito uma postura ativa para a devida compreensão e

165

regulação das novas atividades. Não por menos, em muitos momentos, mais do que

conclusões, buscou-se, no presente trabalho, apenas o levantamento de algumas

questões que mereciam ser melhor debatidas.

As profundas sofisticações que o direito tem vivido (com foco no direito

privado), especialmente decorridas da funcionalização e concreção de determinantes

constitucionais, demandam uma postura mais ativa do operador do direito, que busque

sempre uma nova interpretação a partir de velhos institutos. Não se pode, sob pena de

fazer o direito perder toda a dinamicidade que lhe é essencial, se ater a velhos dogmas e

adotar postura reacionária a demandas provenientes não só de nossa Carta Maior, mas

de nossa própria sociedade.

A evolução do direito tem levado a fenômenos novos, tal como a publicização

do direito privado, em que superando o tradicional egoísmo individualista, busca

colocar o ser humano dentro de seu contexto social, dentro de uma relação com outros

indivíduos.

Especificamente quanto ao tema aqui tratado, não se pode olvidar da

importância que foi a identificação e a incorporação pelo direito de tal centro de poder,

deixando de lado certas ficções para abarcar situações reais de poder. Entretanto, para

não deixar escapar a importância do que ele representa, deve-se, reiteradamente, fazer

nova leitura de seus pressupostos e consequências. Apenas assim o instituto poderá

manter-se coerente com os anseios principiológicos e sociais.

166

7. Referências

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CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Direito de empresa. Volume 2. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 3ª ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros, 2006.

VILLAS BOAS, Silvia Carolina. Acordo de acionistas, celebrado entre acionista majoritário e investidor engajado, conferindo a este último o direito de veto, implica no surgimento de um bloco de controle? Artigo Científico – Programa de Educação Continuada e Especialização GVLAW da Direito GV. São Paulo, 2010.

168

VI.

OFERTA PÚBLICA DE AQUISIÇÃO DE AÇÕES OBRIGATÓRIA

(“OPA” Obrigatória ou a posteriori)

Larissa Kawano Mori

SUMÁRIO. Introdução 1. Alienação do poder de controle 1.1. Poder de Controle. 1.1.1. Formas

de aquisição do poder de controle de companhia aberta. 2. Evolução da regulação das

transferências de controle societário. 2.1. Evolução histórica da OPA obrigatória no direito

comparado. 2.2. Evolução histórica da OPA obrigatória no Brasil. 3. Regime da OPA

Obrigatória na Lei nº 6.404/1976. 3.1. OPA voluntária ou a priori X OPA obrigatória ou a

posteriori. 3.2. O art. 254-A da Lei das Sociedades Anônimas de 1976. 3.3. A Alienação de

controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976. 3.4. A competência da Comissão de Valores

Mobiliários (“CVM”). 3.5. Poder de controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976. 3.6.

Penalidades previstas ao não cumprimento das regras do art. 254-A da Lei das Sociedades

Anônimas de 1976. 3.7. O entendimento da CVM quanto à alienação de controle para

incidência da OPA obrigatória. 4. Questões referentes à OPA obrigatória ou a posteriori. 4.1.

Qual são os fundamentos da OPA obrigatória? Qual a sua finalidade? Ela é alcançada?. 4.2.

Qual a natureza do ágio? A quem pertence o prêmio de controle? Em que consiste o tratamento

igualitário entre os acionistas? 4.3. A OPA obrigatória deve ser estendida aos minoritários

titulares de ações preferenciais?4.4. A OPA obrigatória deve ser estendida às companhias

fechadas? 4.5. Na realidade brasileira, os controladores devem ser remunerados por possuírem

responsabilidades e deveres especiais? 4.6. A possibilidade de incidência da OPA obrigatória

nos casos de alienação de poder de controle minoritário. A transferência de controle minoritário

na LSA de 1976. 4.7. Quais seriam as alterações caso se alterasse o foco da OPA obrigatória da

alienação do controle para a aquisição do controle? 4.8. A obrigatoriedade da oferta pública de

aquisição de ações obrigatória ou a posteriori poderia ser substituída pela obrigatoriedade de se

atribuir o prêmio de permanência previsto no art. 254, § 4º? 5. Conclusão. 6. Referências.

Introdução.

A oferta pública de aquisição de ações obrigatória ou a posteriori (OPA

obrigatória ou a posteriori) é um importante instrumento para a proteção dos acionistas

minoritários nos casos de transferência de controle. Sua relevância decorre de promover

tratamento igualitário aos minoritários na repartição do prêmio de controle e também

169

conferir o direito de saída em face da alteração na orientação dos negócios da

companhia. No Brasil, a OPA obrigatória está prevista no art. 254-A da Lei das

Sociedades Anônimas de 1976, com redação dada pela da Lei nº 10.303/2001.

Para uma análise adequada do tema, faremos uma breve introdução sobre a

definição do poder de controle, suas formas de aquisição e as doutrinas relativas à

regulação das transferências de controle no direito comparado e no direito nacional. A

seguir, analisaremos o desenvolvimento da oferta pública obrigatória, com atenção a

sua evolução histórica no Brasil e a sua regulação no regime jurídico atual. Por fim,

apresentaremos algumas das principais questões que circundam a oferta pública

obrigatória, oferecendo alguns parâmetros dados pela doutrina e jurisprudência

brasileiras.

Portanto, o objetivo do trabalho é justamente oferecer elementos para uma

compreensão inicial da OPA obrigatória, de seu desenvolvimento histórico, de suas

finalidades e funções, de modo a permitir adentrar no âmbito da sua complexidade e da

diversidade das questões associadas a esse tema de tamanha importância, especialmente

por sua função social de tutela dos acionistas minoritários nos mercados de capitais.

Não se pretende oferecer todas as respostas e soluções, mas expor ideias e argumentos

da mais ampla gama de perspectivas possível, a fim de promover o debate sobre o tema.

1. Alienação do poder de controle

1.1. Poder de Controle

O poder de controle é um tema, em si, bastante amplo e complexo. Para efeito

de análise no âmbito societário, a doutrina estrangeira propõe uma classificação geral

quanto às formas de exercício do controle: interna e externamente. O controle interno é

aquele fundado na titularidade de ações com direito a voto que garantam a direção dos

negócios da companhia. Por sua vez, o poder externo é aquele exercido por agente não

titular de ações que, por determinadas circunstâncias, exerce influência dominante nos

negócios da companhia. Caracteriza-se como um poder de fato, uma vez que não tem

amparo legal.

Em face dos propósitos da oferta pública obrigatória ou a posteriori, o poder de

controle interno apresenta maior relevância. 594 Desta forma, para os fins da OPA

594TESTA, 2006. P. 7

170

obrigatória, podemos ressaltar três classificações básicas para o poder de controle

interno:

(i) o poder de fato;

(ii) o denominado “presumed control”; e

(iii) o controle majoritário.

O poder de fato pertence aos acionistas que representarem a maioria dos votos

durante um período determinado de tempo, conduzindo a atividade da companhia.

Busca-se identificar o efetivo exercício do poder de controle, baseando-se em uma

análise concreta e factual.595O Brasil adotou esse critério durante um período, quando

da vigência da Resolução nº 401/1976 do Conselho Monetário Nacional (“CMN”), para

caracterizar a alienação de controle minoritário. Em face dessa resolução, a efetividade

do controle minoritário deveria ser, via de regra, demonstrada por meio das três últimas

atas das assembléias gerais da companhia. Tal resolução era muito questionável, porque

ampliava a interpretação do então vigente art. 254 da LSA de 1976, sendo controversa

ainda a competência do CMN para fazê-lo. Além disso, tratava-se de critério bastante

suscetível a fraudes. 596 Por tais razões, o conceito de poder de fato foi revogado do

regime jurídico brasileiro.

Diante das dificuldades em se determinar o poder de fato, várias jurisdições

passaram a adotar o denominado “presumed control”. A definição de poder de controle

afasta-se, portanto, da identificação do seu efetivo exercício, para se focar apenas na

titularidade de determinada quantidade de ações. Nesse conceito, a partir do momento

em que um acionista atinge uma porcentagem estabelecida de ações com direito a voto,

presume-se que tenha adquirido o controle da companhia. Portanto, não é necessário o

efetivo exercício de direito de voto associado a tais ações, pois se trata de um requisito

de mera propriedade, sendo presumido que os detentores dessa porcentagem mínima

podem controlar a companhia.597 O patamar a ser estabelecido, em regra, varia de forma

diretamente proporcional em relação ao nível de concentração acionária.

As duas classificações acima são muito mais recorrentes em mercados em que

há alta dispersão acionária. O “presumed control”, por exemplo, é um mecanismo

alternativo para se aferir o poder de controle quando não é possível identificar um

controle majoritário dos votos. Foi inclusive adotado pela União Européia, por meio do

“European Takeover Directive”, deixando livre para cada Estado membro adotar o seu

595TESTA, 2006. P. 11 596PRADO, 2005. P.138 597TESTA, 2006. P. 12

171

próprio parâmetro porcentual, em face das especificidades de mercado e da legislação

de cada país.598

Por fim, o controle majoritário é atingido com a titularidade de 50% mais um

do total das ações com direito a voto emitidas. Tem sido o critério mais amplamente

utilizado no Brasil, tendo em vista que, em face da alta concentração acionária dos

mercados brasileiros, não há dificuldades em se obter a maioria de votos. Tais

características explicam a prevalência das cessões privadas de controle, em detrimento

das demais formas de aquisição de companhia no país. Nesse sentido, a oferta pública

obrigatória também apresenta grande relevância na realidade brasileira, como

mecanismo para se evitar abusos em negociações privadas de controle, como se verá

mais adiante.

1.1.1 Formas de aquisição do poder de controle de companhia aberta

Os principais mecanismos de transferência de controle em que terceira pessoa,

alheia ao controle interno de determinada companhia aberta, adquire-o voluntária e

onerosamente são:

(i) oferta pública de tomada hostil de controle (OPA voluntária ou a priori),

regulada pelo art. 257 e seguintes da LSA de 1976;

(ii) escalada em bolsa de valores; e

(iii) cessão privada de controle.

A oferta pública de tomada hostil de controle ocorre quando a pessoa, física ou

jurídica, fundo ou universalidade de direitos, em conjunto ou individualmente, dirige-se

ao mercado e realiza oferta pública para adquirir o controle de determinada companhia.

Não há uma negociação privada entre os ofertantes e os controladores efetivos.

É o mecanismo adotado pela legislação norte-americana, que estabelece os

aspectos contratuais e procedimentais que o ofertante deve seguir, assim como regras de

ampla divulgação das informações. No Brasil, está prevista no art. 257 e seguintes da

LSA de 1976, nos mesmos moldes do takeover bid norte-americano. Porém, tal

mecanismo, na prática, só é possível em mercados em que haja dispersão acionária;

sendo muito rara sua aplicação em mercados altamente concentrados como o brasileiro.

Conforme indica Roberta Nioac Prado, “tal tomada de controle só será eficiente se

inexistir controle majoritário efetivamente exercido” 599.

598TESTA, 2006. P. 13 599PRADO, 2005. P. 69.

172

O segundo mecanismo, a escalada em bolsa de valores, também é característico

de mercados com maior dispersão acionária. Ele ocorre com a aquisição progressiva de

ações com direito a voto na bolsa de valores e também por meio de contratação privada

com os acionistas minoritários, de modo a atingir um número suficiente de ações que

assegurem o controle da companhia. Esse mecanismo apresenta uma série de

desvantagens tanto para o adquirente, quanto para os acionistas minoritários, em termos

de tempo e previsão dos gastos. Pelas dificuldades e inseguranças que esse mecanismo

acarreta, ele vem sendo pouco utilizado tanto no Brasil quanto em outros países.

Conforme Calixto Salomão Filho e Fábio Konder Comparato, “(e)ssa realidade é

marginal no Brasil, onde é ainda extremamente elevado o grau de concentração

acionária das empresas”. 600

A cessão privada de controle é o mecanismo que resulta de uma negociação

privada entre o acionista controlador e o adquirente do controle, que estabelecem

contratualmente a quantidade e o valor das ações alienadas. Nessa operação, incide o

art. 254-A da LSA de 1976, que prevê a obrigatoriedade da OPA a posteriori, para

garantir aos minoritários a participação no prêmio de controle e o recebimento de

tratamento igualitário. Trata-se da forma mais usual de transferência de controle no

Brasil, em face da concentração acionária característica do mercado de capitais

brasileiro.

2. Evolução da regulação das transferências de controle societário

2.1. Evolução histórica da OPA obrigatória no direito comparado

A partir da evolução dos mercados e do surgimento de tomadas hostis de

controle de companhias abertas, a partir dos anos 60, nos Estados Unidos e no Reino

Unido, houve o aparecimento de um “mercado de controle acionário”, em paralelo aos

mercados primário (de capitalização das companhias) e secundário (de negociação de

valores mobiliários em bolsa de valores e mercados de balcão).

Até então, não havia nenhuma norma, quer legal ou regulamentar, em relação

à transferência do controle societário de companhia aberta.601 De acordo com H. G.

Manne, a importância jurídica e econômica atribuída a esse “mercado de controle

acionário” era devida, principalmente, por possibilitar a substituição de administradores

600 SALOMAO FILHO; COMPARATO, 2008. P. 239 601PRADO, 2005. P. 45

173

ineficientes por outros mais eficientes e permitir um melhor aproveitamento de recursos

sociais. 602

Existem, atualmente, três correntes na doutrina estrangeira acerca da

necessidade ou não de regulação do mercado de controle societário603:

(i) a mais liberal, defendida por Manne, EasterBrook, Fischel e

Posner, parte do pressuposto de que as trocas de controle (privadas ou por

tomada hostil) são sempre benéficas e não propõe nenhum mecanismo de

regulação que restrinja a liberdade do mercado;

(ii) uma corrente intermediária, defendida por Jennings, Marsh e

Coffe, entende que as tomadas de controle (privadas ou por tomada hostil)

podem ou não prejudicar os acionistas minoritários e propõe uma regulação

apenas procedimental, por meio de ampla, correta e honesta divulgação das

informações da companhia (full and fair disclosure) e a realização da OPA

voluntária ou a priori;

(iii) a última, mais conservadora, entende que as cessões privadas

de controle são sempre prejudiciais aos acionistas minoritários, que ficam

alheios a essas transferências. Dessa forma, propõe uma regulação material e a

imposição de OPA obrigatória ou a posteriori.

Dessa última corrente doutrinária mais conservadora, decorrem três

entendimentos. O primeiro é a teoria do “corporate asset”, de Berle e Means604, de que

o valor do controle é um ativo social e, portanto, pertence ao patrimônio da companhia.

O segundo, defendido por Bayne, funda-se em um dever de fidúcia do acionista

controlador para com os acionistas minoritários. Em ambos, entende-se que o prêmio de

alienação de controle é ilegal per se605 e a solução é que o controlador devolva a quantia

recebida pelo valor do controle à companhia ou que a divida proporcionalmente com

todos os minoritários.

O terceiro entendimento, dentro dessa corrente mais conservadora, foi proposto

por William Andrews 606, segundo o qual, todos os acionistas detentores de ações da

mesma espécie e classe deveriam possuir a mesma oportunidade de aliená-las em

eventual transferência. Segundo ele, deveria haver uma regulação material e imposição

602PRADO, 2005. P. 46 603PRADO, 2005. P. 50 604BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner Coit. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 335 p. : (Os economistas) 605 Partem do pressuposto que as transferências de controle sempre prejudicam os minoritários, assim como os prêmios de controle dela advindos. 606 The stockholder’s right to equal opportunity in the sale of shares. In: Harvard Law Review, Volume 78, 1965. P. 505-563

174

legal de um mecanismo de tratamento igualitário a todos os acionistas da companhia,

que foi o embrião para o desenvolvimento da OPA obrigatória ou a posteriori.

2.2. Evolução histórica da OPA obrigatória no Brasil

Ao longo do seu desenvolvimento, a regulação da OPA obrigatória sofreu

influências político-governamentais e a sua condução ficou ao sabor de políticas

macroeconômicas implantadas pelo governo, em detrimento dos interesses dos

acionistas minoritários. Desde o início, a tramitação no Poder legislativo foi conturbada

e tumultuada, em face dos vários interesses que estavam envolvidos. Isso resultou em

grande incerteza e insegurança jurídica na aplicação do instituto.

A regulação das alienações privadas de controle por meio da OPA obrigatória

apresenta três momentos principais:

(i) a sua previsão pelo art. 254 na LSA de 1976;

(ii) a sua revogação em 1997, pela Lei nº 9.457; e

(iii) sua posterior reintrodução em 2001 pela Lei nº 10.303, atualmente prevista

pelo art. 254-A da LSA de 1976.

Antes da Lei das Sociedades Anônimas de 1976, as sociedades por ações eram

reguladas pelo Decreto-lei nº 2.627/1940, que permaneceu vigor até 15.12.1976 e não

previa nenhuma espécie de regulação das cessões ou tomadas de controle das

companhias abertas.

A primeira inserção do mecanismo de oferta pública de aquisição de ações

ocorreu com o art. 254607 da Lei nº 6.404 (LSA de 1976), que previa tratamento

igualitário a todos os acionistas detentores da mesma classe e espécie de ações emitidas

por companhia aberta em uma alienação de controle. Impunha-se ao adquirente a

obrigação de realizar oferta pública de aquisição de ações aos acionistas minoritários e

de oferecer o mesmo preço pago ao alienante do bloco de ações que lhe assegurava o

poder de controle.

Conforme se observa, a redação desse artigo deixava margem a interpretações

quanto à extensão ou não aos minoritários titulares de ações preferenciais. Tal questão

607Art. 254. A alienação do controle da companhia aberta dependerá de prévia autorização da Comissão de Valores Imobiliários.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997) § 1º A Comissão de Valores Mobiliários deve zelar para que seja assegurado tratamento igualitário aos acionistas minoritários, mediante simultânea oferta pública para aquisição de ações.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997) § 2º Se o número de ações ofertadas, incluindo as dos controladores ou majoritários, ultrapassar o máximo previsto na oferta, será obrigatório o rateio, na forma prevista no instrumento da oferta pública.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997) § 3º Compete ao Conselho Monetário Nacional estabelecer normas a serem observadas na oferta pública relativa à alienação do controle de companhia aberta.(Revogado pela Lei nº 9.457, de 1997)

175

foi prontamente resolvida com a Resolução nº 401 do Banco Central, de 22 de

dezembro de 1976, ao estabelecer que os “acionistas minoritários” eram aqueles

titulares de ações com direito a voto.608 Além disso, o art. 255 dessa mesma lei visava a

impedir que o acionista controlador se apropriasse do valor dos intangíveis nos casos de

alienações de instituições financeiras.

Em um segundo momento, os artigos que previam a OPA obrigatória foram

revogados pela Lei nº 9.457, de 5.5.1997. Por conveniência aos interesses do governo, a

revogação da OPA obrigatória ocorreu na ocasião da implantação da política

macroeconômica do governo FHC. O objetivo era viabilizar os programas de

privatização de companhias estatais e sociedades de economia mista e reduzir os custos

na transferência do controle. Ademais, os prêmios de controle foram integralmente

apropriados pelo Governo Federal nessa época.

Durante esse intervalo de não-regulação por meio da OPA obrigatória, foram

vários os abusos praticados pelos controladores e adquirentes do poder de controle,

notadamente o fechamento branco de capital, a aplicação de preços díspares e de ágios

astronômicos, sem nenhuma consideração em proteger os interesses dos acionistas

minoritários.

Com o fim do período das privatizações, não havia interesse governamental em

manter a ausência de previsão da OPA obrigatória. Portanto, em um contexto político e

econômico diferente, mas, com trâmite não menos complicado, a OPA obrigatória foi

reintroduzida no regime jurídico brasileiro em 2001, com a promulgação da Lei nº

10.303.

O art. 254-A da Lei nº 6.404 passou a prever, quando da alienação do controle

de companhia aberta, a obrigatoriedade de realização de oferta pública de aquisição das

ações com direito a voto, devendo o adquirente oferecer aos titulares de tais ações no

mínimo 80% do valor pago por ação integrante do bloco de controle. Isso foi um

retrocesso quanto à função protetiva dos minoritários em relação à redação originária

do art. 254 da LSA de 1976, que previa a extensão de 100% do valor pago por cada

ação alienada no bloco de controle. Conforme bem observa Nelson Eizirik,

“Assim, não se restaura o princípio do tratamento igualitário contido originalmente no art. 254 da Lei 6.404/76; ao contrário, consagra-se, expressamente, o princípio do valor diferenciado de ações da mesma

608 I - A alienação do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer, nos termos desta Resolução, oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar tratamento igualitário ao do acionista controlador.

176

espécie: as ações ordinárias integrantes do bloco de controle, detidas pelos acionistas controladores, valem mais do que as não integrantes, detidas pelos acionistas minoritários.” 609

Em nenhuma das previsões da lei societária, entretanto, houve a possibilidade

de extensão desse tratamento aos minoritários titulares de ações preferenciais, sendo

destinatários da oferta pública apenas os titulares de ações com direito a voto que não

integram o bloco de controle.

3. Regime da OPA Obrigatória na Lei nº 6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas

de 1976)

3.1. OPA voluntária ou a priori X OPA obrigatória ou a posteriori;

Inicialmente, é importante delimitar os contornos das modalidades de oferta

pública de aquisição de ações (“OPA”). A lei nº 6.404/76 (“LSA de 1976”), que trata

das sociedades anônimas, prevê duas modalidades de oferta pública de aquisição de

ações, nos casos de transferência de controle:

(i) a OPA voluntária ou a priori, de tomada hostil de controle societário; e

(ii) a OPA obrigatória ou a posteriori, decorrente de alienação de controle de

companhia aberta.

A OPA voluntária, que também pode ser denominada “OPA a priori”, está

prevista no art. 257 e seguintes da LSA de 1976. Como já explicado, trata-se de um dos

instrumentos utilizados para a aquisição do controle de determinada companhia.

Portanto, ocorre em momento anterior à alienação do poder de controle e caracteriza-se

pela voluntariedade.

Por sua vez, a OPA obrigatória, prevista no art. 254-A e objeto deste estudo,

ocorre após e como condição de eficácia de cessões privadas do poder de controle. Por

ser uma conseqüência da alienação privada de controle, essa modalidade também é

denominada “OPA a posteriori”.Nesse sentido, não se trata de uma alternativa que o

adquirente do poder de controle possui, mas consiste na obrigatoriedade de realizar a

oferta pública de aquisição de ações como forma de tutela dos interesses dos acionistas

minoritários.

609EIZIRIK, 2010.P. 74.

177

O elemento por trás da necessidade de realização da OPA obrigatória é que nas

alienações privadas do controle, além do próprio valor que as ações pertencentes ao

bloco de controle recebem por seu valor individual, existe um ágio (prêmio de controle)

acrescido a tais ações. Isso ocorre pelo fato de tais ações juntas representarem o poder

de controle da companhia e a possibilidade de dirigir a organização empresarial.

Segundo Calixto Salomão Filho e Fábio Comparato, “(a) cessão de 51% das

ações votantes de uma companhia difere da cessão de 49% dessas ações, não apenas por

razões de ordem quantitativa, mas sobretudo pela diversidade qualitativa do

objeto.”610O fundamento é que, se essa transferência de controle não é regulada, há

grande tentação por parte dos controladores e dos adquirentes de extraírem benefícios

em interesse próprio, que não o da companhia e em detrimento dos acionistas

minoritários.

Embora ambas sejam denominadas oferta pública de aquisição de ações,

diferindo apenas na qualificação, como obrigatória ou voluntária, é importante ressaltar

que elas são aplicadas em momentos completamente distintos e não podem ser

consideradas duas faces de uma mesma moeda. São mecanismos de natureza distinta.

As diferenças são várias, a começar pelo próprio fundamento para a sua

realização. A principal está na forma de aquisição do controle societário: enquanto a

OPA voluntária é, em si, um instrumento para a aquisição do controle (a priori), mais

recorrente nos mercados de capitais com dispersão acionariam, a OPA obrigatória tem o

fundamento de proteção aos minoritários após uma alienação privada do poder de

controle (a posteriori), de modo a evitar possíveis abusos e apropriações indevidas por

parte do controlador alienante e do terceiro adquirente.

A LSA de 1976 ainda prevê duas outras modalidades de oferta pública, que

não se referem à transferência de poder de controle, quais sejam: a OPA obrigatória

para cancelamento de registro de companhia aberta (art. 4º, § 4º) e a OPA obrigatória

para aumento de participação de acionista controlador (art. 4º, § 6º), que não serão

objeto deste estudo.

610COMPARATO, 2008, p. 268.

178

3.2.O art. 254-A da Lei das Sociedades Anônimas de 1976

Atualmente, a OPA obrigatória está prevista no art. 254-A da Lei nº 6.404 de

1976, com redação dada pela Lei nº 10.303/2001. A regulação é feita pela Instrução

Normativa n. 361 da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”).

Assim dispõe o art. 254-A:

“Art. 254-A.A alienação, direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de que o adquirente se obrigue a fazer oferta pública de aquisição das ações com direito a voto de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)

Pela leitura do artigo acima transcrito, é possível depreender os elementos

principais da oferta pública de aquisição de ações obrigatória: (i) decorre da alienação,

direta ou indireta, do controle de companhia aberta; (ii) sua realização consiste em

condição, suspensiva ou resolutiva; (iii) deve ser estendida às ações com direito a voto;

(iv) o valor ofertado por cada ação deve ser no mínimo igual a 80% (oitenta por cento)

do valor pago por ação com direito a voto integrante do bloco de controle.

A OPA obrigatória consiste em condição de eficácia para a operação de

transferência de controle. Isso significa que, até a sua realização, os efeitos da operação

de alienação de controle ficarão suspensos (cláusula suspensiva), ou garantirão o

exercício do poder de controle (cláusula resolutiva). No caso da sua não realização, a

operação será revogada. Os demais elementos referentes à alienação do poder do

controle e a extensão da OPA obrigatória (quanto aos beneficiários e ao valor pago),

serão analisados ao longo deste trabalho.

3.3. A Alienação de controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976

Para efeitos da OPA obrigatória, o art. 254-A, §1º da LSA de 1976, define a

alienação de controle:

§ 1o Entende-se como alienação de controle a transferência, de forma direta ou indireta, de ações integrantes do bloco de controle, de ações vinculadas a acordos de acionistas e de valores mobiliários conversíveis em ações com direito a voto, cessão de direitos de subscrição de ações e de outros títulos ou direitos relativos a valores mobiliários conversíveis em ações que venham a

179

resultar na alienação de controle acionário da sociedade. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)

O art. 254-A contempla uma ampla acepção para a expressão “alienação do

controle acionário”, englobando tanto os casos de alienação direta do bloco de controle,

como os casos em que há alienação indireta e alienação em etapas. 611

Por ser o substrato da norma a transferência onerosa do poder de controle, o

art. 29, § 5º, da Instrução da CVM nº 361, dispõe a possibilidade de uma análise

casuística por parte da CVM em relação a cada caso concreto, de maneira a impor a

realização de OPA obrigatória, caso verifique ter ocorrido alienação onerosa do

controle de companhia aberta.

Art. 29. A OPA por alienação de controle de companhia aberta será obrigatória, na forma do art. 254-A da Lei 6.404/76, sempre que houver alienação, de forma direta ou indireta, do controle de companhia aberta, e terá por objeto todas as ações de emissão da companhia às quais seja atribuído o pleno e permanente direito de voto, por disposição legal ou estatutária. § 5º Sem prejuízo da definição constante do parágrafo anterior, a CVM poderá impor a realização de OPA por alienação de controle sempre que verificar ter ocorrido a alienação onerosa do controle de companhia aberta.

3.4. A competência da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”)

No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários é o órgão competente para

regular, fiscalizar e punir os agentes do mercado de valores mobiliários. Quanto à OPA

obrigatória, sua competência vem estabelecida no art. 254-A, §§ 2º e 3º da Lei n.

6.404/76. Cabe a ela autorizar a alienação do controle desde que verificado que as

condições da oferta pública atendem aos requisitos legais e estabelecer normas a serem

observadas na oferta pública obrigatória.

§ 2º A Comissão de Valores Mobiliários autorizará a alienação de controle de que trata o caput, desde que verificado que as condições da oferta pública atendem aos requisitos legais. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001) § 3º Compete à Comissão de Valores Mobiliários estabelecer normas a serem observadas na oferta pública de que trata o caput. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)

Da mesma forma como ocorria no regime anterior, de 1976, o poder da CVM

de autorizar a alienação de controle é vinculado, não lhe cabendo qualquer juízo de

mérito ou oportunidade da alienação, mas apenas verificar se a oferta pública de

aquisição de ações atende aos requisitos legais.

611ELZIRIK, Nelson. P. 77.

180

Também faz parte da competência da CVM regulamentar a oferta pública,

conforme previsto no §3º desse mesmo artigo, por meio de Instrução Normativa para

disciplinar os elementos que deverão constar em seu instrumento: “preço e condições de

pagamento; prazo de validade da oferta; procedimento a ser adotado pelos destinatários

para manifestar sua aceitação e efetivar a transferência das ações; participação

obrigatória ou facultativa de instituição financeira, assim como as garantias a serem por

elas prestadas.” 612

Ademais, a Instrução Normativa deve estabelecer as regras para a prestação de

informações ao mercado, o prazo para a realização da oferta pública, a oferta de

pagamento de prêmio para que os acionistas permaneçam na companhia, assim como os

prazos para a aprovação do instrumento de oferta pública pela CVM.613 Tais condições

estão atualmente reguladas pela Instrução normativa n. 361/2002 editada pela Comissão

de Valores Mobiliários.

3.5. Poder de controle na Lei das Sociedades Anônimas de 1976

Para a incidência da OPA obrigatória, deve haver uma cessão onerosa do poder

de controle, o qual deve ser interno e efetivo.

Conforme disposto no art. 116 da LSA de 1976,

Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.

Isso significa que o poder de controle deve ser exercido por titulares de ações

da companhia, ou seja, interno (exclui-se tanto o controle externo, quanto o controle

gerencial614); e essa titularidade deve ser efetivamente exercida nas assembleias gerais e

na escolha dos administradores. Outra característica fundamental é que, como se

612EIZIRIK, 2010.P. 85. 613EIZIRIK, 2010.P. 85. 614EIZIRIK, 2010.P. 75.

181

depreende do art. 116 da LSA de 1976, o poder de controle pertence a quem seja titular

de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria de votos na

assembléia-geral. No Brasil, esse critério foi adotado em face da elevada concentração

acionária e do poder de controle concentrado nas mãos de famílias ou bancos.

Entretanto, a maior parte da doutrina também entende que a LSA de 1976

reconhece, ainda que implicitamente, a existência de controle minoritário. O poder de

controle minoritário é aquele exercido pelo titular de menos de 50% das ações com

direito a voto da companhia. Isso geralmente é possível quando não há um acionista

controlador majoritário, ou no caso em que, havendo tal titular, ele não exerça

efetivamente o seu controle.

Como objeto da alienação que enseja a oferta pública obrigatória, o poder de

controle adquire sentido diferente daquele atribuído pelo art. 116 da LSA de 1976.

Dessa forma, o critério para se determinar o acionista controlador é aquele que possuir

50% dos direitos de voto mais um. Além disso, a hipótese de mera alienação de ações

que representem a maioria dos votos, por si só, não desencadeia a OPA obrigatória,

caso o controle não seja efetivamente exercido.

Por sua vez, o controle minoritário não vem previsto expressamente pelo art.

254-A da Lei n. 6.404/76, nem pela Instrução n. 361 da CVM. Diante disso, resta a

dificuldade de se aplicar a OPA obrigatória nos casos em que houver alienação de

controle minoritário, tendo em vista que a identificação do poder de controle nesses

casos tem passado pela existência de um controle majoritário, ou seja, a titularidade da

maioria dos votos da companhia. Tal questão apresenta grande relevância e será

discutida mais adiante.

3.6. Penalidades previstas ao não cumprimento das regras do art. 254-A da Lei

das Sociedades Anônimas de 1976

O art. 254-A da LSA de 1976 é a norma que busca assegurar aos minoritários

titulares de ações ordinárias a possibilidade de receberem por suas ações ao menos 80%

do preço das ações do bloco de controle, por meio da oferta pública de aquisição de

ações. No caso de esta não ser realizada, resulta na nulidade do contrato, não havendo

como convalidar ou refazer o ato.

182

A CVM deverá determinar que a operação seja refeita, mas não tem

competência para declarar a nulidade do contrato. Tal declaração só poderá ser feita

pelo Poder Judiciário, mediante requerimento da parte prejudicada.

Enquanto não houver manifestação do Judiciário, a CVM poderá instaurar

inquérito administrativo, conforme previsto no art. 11 da Lei n. 6.385/1976. Entretanto,

a competência da CVM se restringe ao mercado de capitais, conforme o art. 9º, V, da

Lei do Mercado de Capitais. A partir desse instrumento, o adquirente do controle pode

ser responsabilizado, pois compete a ele a obrigação de realizar a oferta pública;

restando ainda o problema de responsabilização do ex-controlador, que, muitas vezes,

pode ter saído do mercado, e somente pode ser responsabilizado até o momento em que

o nome do novo controlador seja devidamente inserido no livro de registro de ações

nominativas.

As medidas de fiscalização e penalização aplicáveis à não realização de oferta

pública prevista no art. 254-A são brandas e, muitas vezes, ineficazes. Por depender da

atuação do Judiciário, a nulidade dos contratos pode demorar anos para ser declarada, o

que contribui para agravar a situação das partes prejudicadas.

3.7. O entendimento da CVM quanto à alienação de controle para incidência da

OPA obrigatória

A Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) é a responsável por regular,

fiscalizar e punir os agentes do mercado de valores mobiliários, conforme mencionado

anteriormente. Suas competências no que tange a OPA obrigatória vêm estabelecidas no

art. 254-A, §§ 2º e 3º, da Lei n. 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas de 1976).

Para se analisar o conceito de alienação de controle segundo o entendimento da

CVM, é necessário entender como que conceito de controle vem sendo adotado em suas

decisões. Segundo a autarquia, deve haver um controle majoritário (acionista ou grupo

de acionistas com titularidade de mais de 50% do total das ações emitidas com direito a

voto); ou um controle minoritário (acionistas ou grupo de acionistas com titularidade de

menos de 50% das ações com direito a voto, mas com efetivo poder de dirigir a

companhia, em função de dispersão acionária ou da não atuação do sócio detentor da

maioria dos votos,confere), hipótese em que há um controle de fato.

Há posicionamentos da CVM quanto ao requisito de permanência no exercício

desse controle como uma questão fática. Dessa forma, maiorias eventuais também não

183

são suficientes, tendo em vista que se exige um poder permanente de direção dos

negócios. Nesse sentido, manifesta-se o Diretor Octavio Yazbeck, como relator no

processo administrativo CVM RJ nº 2009/0471:

“O art. 116 da Lei no 6.404/76, ao caracterizar a figura do acionista controlador, remete não apenas a capacidade de influenciar de forma determinante, a tomada de decisões na companhia, mas também a uma consistência temporal no exercício de tal capacidade. Não é por outro motivo que a alínea “a”do citado artigo fala em direitos de sócio que assegurem “de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia”. No próprio texto trazido pelo recorrente, Konder Comparato realça a importância dessa permanência.”

Passando ao conceito de alienação de controle, é pacificado o entendimento

sobre a necessidade da presença de um controlador alienando seu poder de controle a

terceiro adquirente. Nesse sentido, o entendimento da CVM é que a figura de um

controlador já deve existir para que haja a incidência de OPA obrigatória, tendo em

vista a sua necessidade para caracterizar a alienação de controle. Essa questão foi

abordada pelo Diretor Marcelo Trindade no julgamento do processo CVM RJ nº

2007/7230:“O art. 254-A é explícito ao condicionar a OPA à ocorrência de uma

alienação de controle, e, passe o truísmo, somente controladores podem alienar o

controle”.

No que trata da alienação de bloco de controle para configurar a incidência da

OPA obrigatória pelo art. 254-A da LSA, não há discussão. As questões principais se

referem à alienação de partes integrantes do acordo de acionistas. Tais possibilidades

podem decorrer da alienação das ações de (i) integrante não preponderante no acordo de

acionistas a terceiro não integrante; (ii) integrante não preponderante no acordo de

acionistas a outro integrante do acordo, que passa a deter sozinho o controle da

companhia; e (iii) integrante preponderante no acordo de acionistas a terceiro não

integrante.

No entendimento da CVM, nos dois primeiros casos não há alienação de

controle e não deve incidir a OPA obrigatória nesses casos. Trata-se de decorrência da

necessidade de haver a figura do controlador para caracterizar a alienação de controle.

A última questão ainda não foi analisada pela CVM, tendo em vista não ter sido

apresentado nenhum caso com situação semelhante.

184

Nas duas primeiras situações, o integrante não preponderante no acordo de

acionistas não detém o poder de controle, uma vez que este pertence em conjunto ao

grupo que constitui o acordo de acionistas. Nesse sentido, a CVM vem decidindo pela

não aplicação da OPA obrigatória nos casos em que membro não preponderante no

acordo de acionistas aliena suas ações a terceiro ou a membro do acordo de acionistas,

ainda que este consolide sozinho o poder de controle da sociedade. Conforme se

manifestou o Diretor Marcelo Trindade no processo CVM RJ nº 2007/7230:

“Mas o fato é que, de lege lata, estou de acordo com a conclusão do voto do Diretor Relator, pela inexistência de alienação de controle, que só pode ser alienado por quem o detenha, o que, em casos de acordo de acionistas, significa o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, como diz o art. 116 da Lei das S.A., e não um membro desse grupo que detenha menos que a maioria das ações.”

4. Questões referentes à OPA obrigatória ou a posteriori

4.2.Qual são os fundamentos da OPA obrigatória? Qual a sua finalidade? Ela

é alcançada?

Não há dúvidas de que o fundamento da OPA obrigatória é servir como

mecanismo de proteção aos interesses dos acionistas minoritários. Nesse sentido, na

realização da OPA a posteriori, existe uma constante tensão entre o princípio do livre

mercado das transferências de controle e o princípio de tratamento igualitário entre os

acionistas. O grande desafio que se propõe é equilibrar seus efeitos, em uma análise de

custos e benefícios.

Essencialmente, uma das consequências da tutela dos acionistas minoritários é

conferir mais segurança aos mercados de capitais, resultando em maior aporte de

recursos, na redução dos custos de financiamento das companhias; e, em última análise,

no pleno desenvolvimento do mercado de capitais.

Por outro lado, não se pode onerar demasiadamente as partes (tanto

controladores alienantes, como terceiros adquirentes) nas transferências de controle, de

modo a provocar interferências na dinâmica dos mercados. Tais interferências podem

ser prejudiciais na medida em que dificultem ou evitem operações que seriam benéficas

e, muitas vezes necessárias, para o melhor desenvolvimento das companhias.

185

Além disso, surge a questão de como essa proteção aos minoritários se

concretiza. De que maneira a oferta pública é eficaz em oferecer um tratamento

igualitário aos acionistas minoritários? Embora não haja controvérsia quanto ao

fundamento da oferta pública como mecanismo de proteção dos acionistas minoritários,

ainda há divergências quanto os interesses que estão sendo efetivamente protegidos: se

(i) o recebimento de mesmo tratamento no caso de uma transferência de controle e

participação no prêmio de controle; e/ou (ii) o direito de saída no evento de uma

mudança de controle. É claro que há outros interesses tutelados, mas esses são os que

aparecem com mais relevância e são os mais determinantes para se resolver questões

que circundam o tema da OPA obrigatória, como veremos mais adiante.

4.3.Qual a natureza do ágio? A quem pertence o prêmio de controle? O que

consiste o tratamento igualitário entre os acionistas?

Tanto na doutrina estrangeira, como na brasileira, há diversos posicionamentos

e justificativas quanto à natureza do ágio e a quem deveria ser estendido o valor do

prêmio de controle. A depender da solução adotada para essa questão, altera-se a

percepção do princípio de tratamento igualitário dos acionistas minoritários, por se

tratar de questões que caminham interligadas. De uma maneira geral, podemos

identificar três entendimentos principais, em relação aos titulares do prêmio de controle:

(i) Exclusivamente os acionistas controladores;

(ii) Todos os acionistas que participam do capital social;

(iii) Apenas o controlador e os acionistas minoritários ordinaristas.

O primeiro entendimento corresponde, na doutrina estrangeira, à posição mais

liberal adotada por Manne, Easterbrook, Fischel e Posner. Tais autores, que defendem a

liberdade de mercado e seu desenvolvimento, entendem que o prêmio de controle

pertence ao acionista controlador e que não há qualquer ilegalidade na sua apropriação.

Na doutrina brasileira, tal posicionamento é adotado por Bulhões e Lamy, que o

justificam pelo fato de o acionista ter responsabilidades e deveres próprios definidos na

lei.

De acordo com o segundo entendimento, defendido por Berle e Means, o

controle é um ativo social da companhia, e, portanto, integra o seu patrimônio. Nesse

sentido, apenas a companhia poderia extrair benefícios do controle, inclusive do prêmio

186

de controle. 615 Conclusão: o prêmio de controle deve ser dividido entre todos os

acionistas da companhia que participam do capital social. Na doutrina brasileira, essa

posição é defendida por Calixto Salomão Filho, Nélson Cândido Motta e Norma

Parente616, embora baseados em justificativas diferentes.

A posição mais interessante é a de Calixto Salomão Filho de que o prêmio de

controle deve ser estendido a todos os acionistas sempre que o prêmio de controle for

atribuído com base na perspectiva da rentabilidade.617 Em outras palavras, sendo o

controle considerado no cálculo dos intangíveis da companhia, a OPA deve ser

estendida tanto aos minoritários ordinaristas, quanto aos preferencialistas.

Como desencadeamento do entendimento anterior, William Andrews sustenta

que os acionistas controladores podem alienar suas ações no momento e pelo preço que

considerarem razoáveis, desde que os titulares de ações de mesma espécie e classe

recebam o mesmo tratamento. Dessa forma, haverá ilegalidade apenas se não for

utilizado o mecanismo de tratamento igualitário a todos os acionistas da companhia.

Acompanham tal doutrina, Fábio Konder Comparato e Alexandre de Mendonça

Wald,618 que entendem que a minoria no direito societário é sempre em relação aos

acionistas com direito a voto.

O legislador brasileiro, no art. 254-A da Lei n. 6.404/76, optou expressamente

por estender a oferta pública de aquisição de ações apenas aos minoritários titulares de

ações com direito a voto. Tal opção legislativa parte do entendimento de que o prêmio

deve ser dividido entre todos os titulares de mesma espécie e classe. Entretanto, fica

mitigado o princípio de tratamento igualitário, na medida em que o legislador optou por

estender apenas 80% do valor de controle a tais acionistas, de modo que os 20%

restantes ainda podem ser totalmente apropriados pelo controlador alienante.

4.4.A OPA obrigatória deve ser estendida aos minoritários titulares de ações

preferenciais?

Como visto anteriormente, o legislador excluiu os minoritários

preferencialistas do benefício de alienarem suas ações por no mínimo 80% do valor

615 TESTA, 2006. P. 20. 616PRADO, 2005, P. 331. 617PRADO, 2005, P. 331. 618PRADO, 2005, P.334

187

pago pelas ações do acionista controlador, sendo destinatários da OPA obrigatória

apenas os minoritários ordinaristas.

Entretanto, a diversidade de correntes doutrinárias sobre a natureza do prêmio

de controle e sobre a quem este deve ser estendido apontam que tal assunto está longe

de estar pacificado. O uso extenso de ações sem direito a voto no Brasil gera reflexos na

noção do tratamento igualitário entre acionistas minoritários. Em face das

configurações do mercado de capitais brasileiro, em que a maioria das ações negociadas

são preferenciais, não seria adequado estender os direitos da OPA obrigatória aos

acionistas minoritários sem direito a voto, como adequação às peculiaridades da

realidade brasileira?

Até 2001, as sociedades anônimas podiam emitir a quantidade de ações

preferenciais em até 2/3 do total de ações emitidas. Com a nova redação dada ao art.

15, §2º, pela Lei nº 10.303/2001, tal porcentagem foi reduzida para 50%. Ainda assim,

as ações preferenciais constituem a maior parte das ações em circulação.

Por essa razão, sustenta-se que não contemplá-las seria restringir em larga

escala a aplicação da OPA obrigatória. Haveria, assim, maior coerência com as

características do mercado local, na realização de uma proteção mais abrangente aos

minoritários nos casos de alienação do controle de companhia aberta.

Por outro lado, a desvantagem é que a extensão à totalidade das ações oneraria,

talvez excessivamente, o custo da transferência do controle societário. A

obrigatoriedade de estender a oferta pública a todas as ações da companhia exigiria um

aporte de recursos bastante elevado do interessado em adquirir o controle. Como

conseqüência, teríamos o aumento dos custos e a redução da ocorrência de

transferências de controle, que muitas vezes, poderiam ser benéficas e necessárias para

o desenvolvimento da companhia.

Ademais, a OPA nesses moldes poderia provocar uma grande perda de liquidez

das ações, tendo em vista que se estenderia a todas as ações da companhia. Considere-se

a hipótese factível em que praticamente todos os acionistas tenham interesse em aderir à

oferta e alienar suas ações (por interesse econômico, potencial perda liquidez, etc.),

haveria perda completa da liquidez das ações. O “Novo Mercado” da Bovespa prevê o

mecanismo do “free float” para corrigir as distorções nesses casos, de modo que, após a

alienação do controle, o adquirente deve tomar medidas para restabelecer o percentual

mínimo de ações em circulação durante um prazo determinado.

188

Nesse sentido, um aspecto muito controverso é que, da mesma forma que a

OPA obrigatória constitui um instrumento para conferir liquidez às ações em uma

situação de alienação de controle, como mecanismo de proteção aos minoritários, o seu

resultado é a própria perda de liquidez para os acionistas que decidem permanecer na

companhia.

Portanto, a OPA obrigatória é um mecanismo que garante a proteção dos

acionistas minoritários a partir da sua saída da empresa, sem maiores incentivos aos que

permanecem. Nesse sentido, a oferta pública afeta artificialmente a dinâmica dos

mercados, gerando várias distorções em seu funcionamento, como a saída de vários

acionistas minoritários, que, muitas vezes, continuariam na companhia, caso houvesse

mecanismos diferentes de proteção os que decidem permanecer.

4.5.A OPA obrigatória deve ser estendida às companhias fechadas?

O mercado de capitais brasileiro ainda é muito incipiente, de modo que o

número de companhias abertas é ínfimo se comparado ao número total de sociedades

anônimas existentes, entre abertas e fechadas. Dessa maneira, como forma de tornar

mais efetivo o mecanismo da OPA obrigatória, no sentido de proteger os interesses dos

minoritários em face das peculiaridades do mercado brasileiro, coloca-se a possibilidade

de estender também esse direito aos minoritários em companhias fechadas.

Por um lado, entende-se que, não havendo regulação nem fiscalização pela

CVM, por não serem sociedades que captam recursos no mercado, não haveria

racionalidade para interferir na condução dos seus negócios impondo tal obrigação. Nas

companhias fechadas, as relações seriam travadas direta e contratualmente por pessoas

que se conhecem e decidem juntar recursos na consecução de objetivos comuns. Assim,

os sócios poderiam regular privadamente suas relações, não havendo necessidade de

regulações externas.

Por outro lado, ocorre que tais regras só podem ser decididas no momento da

fundação, no ingresso voluntário, ou no planejamento sucessório feito pelo acionista

controlador. Para serem alteradas, dependem da anuência dos outros sócios. Isso

dificulta a situação daquele que ingressa na sociedade por sucessão hereditária ou

189

testamentária, por adquirir a participação societária nas condições deixadas pelo de

cujus.619

Nesse âmbito, adquire relevância a faculdade de a OPA obrigatória, mais do

que garantir um tratamento igualitário aos acionistas, proporcionar um direito de saída

do minoritário ante uma transferência de controle. Isso ocorre, principalmente, em razão

de as ações de companhias fechadas possuírem baixíssima liquidez se comparadas à

liquidez de ações de companhias abertas, por não serem publicamente ofertadas em

bolsa de valores ou mercados balcão. Por esse motivo, a saída do minoritário por meio

da alienação de ações é bastante dificultada nas companhias fechadas.

Assim, estender a oferta pública abriria a possibilidade de o minoritário de

companhia fechada retirar-se da sociedade, sem ter que depender também da ocorrência

de uma das hipóteses de direito de recesso previstas na lei, ou de provar judicialmente

que não há affectio societatis, questão ainda bastante controvertida no direito brasileiro.

Esses processos podem durar anos, tendo em vista a mora do judiciário. Nesse sentido,

a aplicação da OPA obrigatória às companhias fechadas atingiria uma finalidade

próxima a do mecanismo de direito de recesso. Cabe questionar se não haveria uma

sobreposição de funções.

Sendo assim, a tutela ao minoritário com a extensão da oferta pública seria

mais focada na possibilidade de oferecer uma saída ao sócio que, por conta da alienação

do controle, não quer se manter em determinada companhia, mas que, por força das

condições do mercado, não conseguiria aliená-las em função da baixa liquidez das

ações. Essa finalidade da OPA obrigatória adquire mais destaque quando analisada

nesse contexto das companhias fechadas, muito embora não se descarte a proteção

econômica da possibilidade de alienar as ações por valor próximo ao conferido às ações

do bloco de controle.

Portanto, voltamos mais uma vez à questão fundamental sobre que pilares

sustentam a proteção dos minoritários pela OPA obrigatória. Se se considera necessária

a realização de oferta pública nas companhias fechadas, pende-se a balança para a

garantia de uma saída justa e digna aos minoritários como sua finalidade, mais do que

proporcionar um tratamento igualitário entre os acionistas.

Ademais, para que isso fosse possível, seria necessário alterar a redação do art.

254-A para prever a incidência da OPA obrigatória também aos minoritários de

companhias fechadas. Seria o caso também de se considerar a possibilidade de criação 619 PRADO, 2005. P. 260.

190

de outro mecanismo, com características semelhantes, para se garantir a proteção dos

acionistas minoritários de companhias fechadas. Afinal, estender a oferta pública

obrigatória nesses casos poderia significar o afastamento dos seus escopos iniciais. A

começar pelo seu nome, tendo em vista que a oferta é denominada “pública” pelo fato

das ações das companhias abertas serem negociadas livremente, surgindo daí a

necessidade de a oferta ser oferecida publicamente no mercado.

4.6.Na realidade brasileira, os controladores devem ser remunerados por

possuírem responsabilidades e deveres especiais?

O legislador brasileiro optou por conferir remuneração aos acionistas

controladores no valor de 20% do prêmio de controle. O art. 254-A estendeu apenas

80% do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. Isso

constitui uma afronta ao princípio que rege a OPA obrigatória de proporcionar

tratamento igualitário aos acionistas minoritários.

A remuneração dos controladores estaria justificada pela realidade brasileira de

alta concentração acionária, em que os controladores atuam intensa e decisivamente na

direção dos negócios da companhia, assumindo responsabilidades e deveres que os

outros acionistas não possuem?

Há que se notar a constante influência de interesses político-econômicos na

tramitação da lei das sociedades anônimas, tendo sido conturbada e sujeita a muitas

discussões. Como já exposto, na redação original do art. 254 em 1976, o valor a ser

estendido aos minoritários consistia em 100% do valor do prêmio pago ao controlador.

Houve a revogação do instituto em 1997 e sua reinserção em 2001, porém com a

menção expressa de que a OPA obrigatória somente se aplicaria aos minoritários com

direito a voto e com a extensão de apenas 80% do valor do ágio pago ao controlador

alienante.

Em face do histórico da redação da lei das sociedades anônimas, tem-se que

não se pode obter uma justificativa apenas econômica para a opção legislativa quanto

ao valor estendido aos minoritários. Deve-se também levar em conta o contexto

macroeconômico das políticas do governo e interesses que estiveram envolvidos na

tramitação da lei.

Tal previsão legislativa pode ser vista como uma tentativa de conciliar

interesses opostos; aos minoritários, previu-se o mecanismo da OPA obrigatória,

191

enquanto, aos controladores, garantiu-se uma porcentagem mínima de remuneração

(20%).

Importante analisar também a eficácia desse mecanismo nos moldes adotados,

pois, como bem observa Roberta Nioac Prado, “(...) a obrigatoriedade de estender no

mínimo 80% do preço pago ao acionista controlador, pelas ações integrantes do bloco

de controle, não fará sentido econômico sempre que o prêmio pago ao pelo controle for

inferior a 25% do preço das ações do mercado.”

Em vista do exposto, a reflexão sobre a adequada e justa remuneração aos

acionistas controladores se mostra de grande relevância, tanto em relação à realidade

dos nossos mercados quanto à realização dos objetivos a que se propõe a OPA

obrigatória.

4.7.A possibilidade de incidência da OPA obrigatória nos casos de alienação de

poder de controle minoritário. A transferência de controle minoritário na

LSA de 1976.

O controle minoritário é aquele exercido por menos de 50% das ações com

direito a voto de uma companhia. A possibilidade de incidência da OPA obrigatória nos

casos de alienação do poder de controle minoritário é um tema dos mais controversos

na atualidade, e o seu possível enquadramento na legislação atual ainda é bastante

discutido.

Atualmente, o controle minoritário não vem contemplado expressamente pelo

art. 254-A da Lei n. 6.404/76, nem pela Instrução n. 361 da CVM. Conforme exposto

anteriormente, tal regulação era feita pelo item IV da já revogada Resolução n. 401 da

CVM620, que qualificava o controlador minoritário como a pessoa titular de ações que

lhe assegurasse a maioria dos votos dos acionistas presentes nas três últimas

assembléias gerais da companhia.

Para justificar a incidência da OPA obrigatória nos casos de alienação de

controle minoritário, Erik Oioli recorre a uma análise do art. 116 da LSA de 1976621.

620IV - Na companhia cujo controle é exercido por pessoa, ou grupo de pessoas, que não é titular de ações que asseguram a maioria absoluta dos votos do capital social, considera-se acionista controlador, para os efeitos desta Resolução, a pessoa, ou o grupo de pessoas vinculados por acordo de acionistas, ou sob controle comum, que é o titular de ações que lhe asseguram a maioria absoluta dos votos dos acionistas presentes nas três últimas Assembléias Gerais da companhia. 621 Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia.

192

Graças à diluição do capital, como também ao fenômeno do absenteísmo do titular de

ações que garantam maioria de votos nas assembléias gerais, o acionista que não detém

maioria dos votos poderia ser considerado o acionista controlador, conforme dispõe o

referido artigo.622.

Para justificar a incidência da OPA a posteriori nos casos de alienação de

controle minoritário, Oioli afasta-se da doutrina dominante, que entende que o poder de

controle efetivamente se realiza com a obtenção da maioria de votos (50%+1).

Flexibiliza esse conceito ao determinar a possibilidade de o acionista minoritário obter a

maioria de votos na assembléia geral, ainda que não detenha titularidade da maioria das

ações na acepção clássica. Segundo Oioli, “apesar de exercido com menos da metade

das ações com direito a voto (...) - tal controle só existe porque seu detentor, ainda que

com tal posição acionária, possui posição majoritária nas assembléias da companhia”. 623

Tal entendimento vem associado à obra clássica de Berle e Means624, que

ressaltam a possibilidade de segregação entre propriedade e controle. Nesse sentido,

não haveria razão para se afastar a incidência do art. 254-A, tendo em vista que o

controle ao qual faz menção é exatamente manifestação do poder de controle do

acionista controlador.

Conforme Roberta Nioac Prado, a aplicação da OPA a posteriori também

poderia ser feita sobre uma base casuística, em face da abertura conferida pelo art. 29,

par. 5º, da Instrução n. 361. 625

No ano de 2009, em análise inédita de operação em que não havia um controle

majoritário (ou seja, não havia participação superior a 50% do capital votante), no caso

da aquisição da companhia Olimpia pela Telco626, a CVM entendeu pela inexigibilidade

da OPA obrigatória no caso concreto. Porém, cabe notar que as posições dos diretores

foram diversas, tendo cada um embasado seu voto em argumentos distintos.

Conforme indicado pelos advogados Carlos Lobo, Felipe Boechem e João

Lemos

622OIOLI, 2011.P. 319. 623OIOLI, 2011.P. 319. 624BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner Coit. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 335 p. : (Os economistas) 625Art. 29. A OPA por alienação de controle de companhia aberta será obrigatória, na forma do art. 254-A da Lei 6.404/76, sempre que houver alienação, de forma direta ou indireta, do controle de companhia aberta, e terá por objeto todas as ações de emissão da companhia às quais seja atribuído o pleno e permanente direito de voto, por disposição legal ou estatutária. § 5º Sem prejuízo da definição constante do parágrafo anterior, a CVM poderá impor a realização de OPA por alienação de controle sempre que verificar ter ocorrido a alienação onerosa do controle de companhia aberta. 626Disponível em www.cvm.org.br.

193

“(a)pesar do resultado final, no caso em análise, ter sido a inexigibilidade da OPA prevista no artigo 254-A da LSA em função da transferência de uma participação minoritária relevante, a análise pormenorizada de cada um dos votos proferidos pelos Diretores da CVM evidencia a ausência de consenso sobre a matéria e nos leva a acreditar que não pode ser descartada a possibilidade da atual composição do Colegiado, ao apreciar uma nova operação de alienação de controle de fato, vir a adotar posicionamento diverso.” 627

Como se pode observar, em face da característica de alta concentração

acionária, alienações de poder de controle minoritário não são muito recorrentes na

realidade brasileira. Porém, diante de fenômenos de maior dispersão acionária, com o

desenvolvimento dos mercados e o aumento de complexidade, a análise de tais

estruturas se faz necessária. Longe de haver um entendimento pacífico, observa-se que

há um grande campo a ser ainda explorado pela doutrina e pela jurisprudência.

4.8.Quais seriam as alterações caso se alterasse o foco da OPA obrigatória da

alienação do controle para a aquisição do controle?

Segundo o art. 254-A da Lei n. 6.404/76, a alienação de controle de companhia

aberta resulta na obrigação de realizar a oferta pública. Disso se depreende que, no

Brasil, a regra se foca em identificar a alienação, e não a aquisição do poder de

controle.

Entretanto, na maioria dos outros países, a regra se foca na aquisição do

controle, sem maiores considerações sobre se esta vem acompanhada da transferência

de controle a partir de um acionista controlador já existente; ou sobre o método

utilizado para a aquisição (como bloco de controle, conjunto de operações), etc. 628

Nessa perspectiva, a aquisição de controle é identificada em todas as

circunstâncias em que determinada pessoa se torna o controlador da companhia629,

independentemente de como tal situação de controle foi atingida (aquisição do bloco de

controle, escalada acionária, acordos de acionistas).

No Brasil, pelo critério ser a transferência do poder de controle, realiza-se um

teste subjetivo para avaliar se o acionista controlador realmente alienou o controle da

companhia ao adquirente. Isso traz complicações na identificação das operações que

resultam na transferência de controle, exigindo adentrar, muitas vezes, nas

complexidades envolvidas na própria operação para se verificar ou não a alienação do

627 Edição extraordinária, disponível em http://www.ibri.com.br/download/espaco_juridico/Anexo_18.pdf. 628TESTA, 2006. P. 15 629TESTA, 2006. P. 16

194

poder de controle. De acordo com Pedro Testa, “a adoção do foco na “alienação do

controle” pelo direito societário brasileiro tem causado dificuldades para agentes de

mercado, advogados e autoridades reguladoras”.630

Desse critério, resulta, por um lado, que um adquirente do poder de controle

não tenha a obrigatoriedade de realizar oferta pública, desde que ninguém a ele tenha

vendido. Exemplo disso pode ser observado nas companhias em que não haja controle

majoritário, de modo que seria possível a uma pessoa atingir a titularidade de 70% das

ações, em uma hipótese de aquisição ordinária, e ainda assim não ter a obrigação de

realizar oferta pública às demais ações.631 Por outro lado, tal critério traz outras

questões referentes à análise de operações de alienação de controle, mas que não

resultam na aquisição do poder de controle da companhia.

No entendimento de Modesto Carvalhosa, o poder de controle deve ser

encarado do ponto de vista do adquirente, e não do alienante. Segundo ele, “pode

ocorrer que o acionista alienante detenha a maioria absoluta do capital votante sem ter

jamais ou, então, ultimamente, exercido o poder de direção das atividades sociais, nem

orientado a política da administração da companhia”. 632 Exemplifica com os casos de

sucessão do acionista controlador por seus herdeiros, de legado de ações de controle a

instituição filantrópica, como o acionista majoritário que nunca se interessou pelo

exercício do controle, confiando a outro grupo tal atribuição.

De todas as formas, confere-se ao adquirente a potencialidade de exercício

imediato do controle, de forma que a efetividade do controle deve ser presumida na

figura do adquirente das ações, “já que estas lhe darão esse atributo, e não na figura do

acionista alienante que, como vimos, pode, por diversas razões, nunca tê-lo exercido.” 633

A transferência de controle, vista pela perspectiva da aquisição, poderia

inclusive comportar soluções para a complicada análise da incidência da oferta pública

nos casos de alienação do poder de controle minoritário, em que não se identifica uma

clara alienação do poder. Tais dificuldades decorrem do foco do evento desencadeador

da OPA obrigatória e a definição de poder de controle adotado hoje.

Não se pretende defender tal possibilidade nesse estudo, até porque exigiria um

espaço muito mais amplo de análise, mas apenas propor mais uma questão que pode ser

630TESTA, 2006. P. 16 631TESTA, 2006. P. 16 632CARVALHOSA, 1979. P. 145. 633CARVALHOSA, 1979. P. 145.

195

importante ao melhor desenvolvimento do mecanismo da oferta pública

obrigatória.Conforme Pedro Testa, “à primeira vista, tais questões podem parecer

simples e sobrepostas, mas não são, especialmente quando tais definições são o gatilho

para a custosa obrigação aos novos acionistas controladores: a oferta pública

obrigatória.” 634

4.9.A obrigatoriedade da oferta pública de aquisição de ações obrigatória ou a

posteriori poderia ser substituída pela obrigatoriedade de se atribuir o

prêmio de permanência previsto no art. 254, § 4º?

A OPA obrigatória surge como o mecanismo desenvolvido para se realizar a

proteção dos acionistas minoritários quanto aos abusos e expropriações indevidas por

parte dos controladores nas transferências de controle. Entretanto, pelos vários motivos

elencados, essa solução apresenta vários problemas a serem solucionados e efeitos

colaterais a serem controlados.

Portanto, é possível ainda questionar se tal mecanismo seria realmente o mais

efetivo para o alcance de tais finalidades. Nesse ponto, surge a possibilidade teórica de

analisarmos as conseqüências caso, no lugar da obrigatoriedade da OPA a posteriori,

aplicássemos a obrigatoriedade do prêmio de permanência, previsto no art. 254, §4º.

Assim dispõe o referido artigo:

Art. 254-A. A alienação, direta ou indireta, do controle de companhia aberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva, de fazer oferta pública de aquisição das ações com direito a voto que o adquirente se obrigue a de propriedade dos demais acionistas da companhia, de modo a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80% (oitenta por cento) do valor pago por ação com direito a voto, integrante do bloco de controle. § 4o O adquirente do controle acionário de companhia aberta poderá oferecer aos acionistas minoritários a opção de permanecer na companhia, mediante o pagamento de um prêmio equivalente à diferença entre o valor de mercado das ações e o valor pago por ação integrante do bloco de controle. (grifos nossos)

Atualmente, a oferta do prêmio de permanência não apresenta incentivos

econômicos ao adquirente do controle, tendo em vista que, além dos custos com a

realização da oferta pública, em face da sua obrigatoriedade, teria que arcar com custos

extras referentes ao prêmio. Em outras palavras, ao optar por oferecer aos acionistas

minoritários a opção de permanecer na companhia mediante o pagamento de um

634TESTA, 2006.P. 16

196

prêmio, o adquirente se compromete não só a contemplar os acionistas que decidem sair

da companhia (aderem à OPA obrigatória), como também aos que ficam (prêmio de

permanência).

Tal condição está bem explicitada no art. 30, da Instrução normativa n. 361 da

CVM, como se observa a seguir:

Art. 30 - Na forma do § 4º do art. 254-A da Lei 6.404/76, o adquirente do controle acionário poderá oferecer aos acionistas minoritários destinatários da OPA um prêmio no mínimo equivalente à diferença entre o valor de mercado das ações e o valor pago por ação integrante do bloco de controle. § 1º Oferecida tal faculdade, os acionistas poderão manifestar, no leilão da OPA, sua opção por receber o prêmio, ao invés de aceitar a OPA, entendendo-se que todos os acionistas que não se manifestarem aceitam e fazem jus ao prêmio. (grifos nossos)

O prêmio de permanência encontra-se hoje ofuscado pela obrigatoriedade da

OPA a posteriori, tendo em vista que ao conferir tal prêmio o adquirente aumenta

consideravelmente seus custos, sem obter relevantes benefícios em troca. Entretanto,

caso a ordem da obrigatoriedade fosse invertida, tornando o prêmio de permanência

obrigatório e a OPA a posteriori facultativa, afigura-se um cenário interessante a ser

estudado.

A vantagem mais evidente para o adquirente do controle seria não ter que

adquirir, além das ações que lhe conferem o controle, também as ações dos

minoritários. Nesse caso, o custo se limitaria à diferença relativa a preço de mercado

das ações e o valor pago ao controlador. No lado dos minoritários, o prêmio

representaria um incentivo para permanecerem na companhia, favorecendo o

minoritário investidor, que é aquele “interessado na manutenção de sua posição

acionária e nos dividendos que a sociedade pode lhe proporcionar a longo prazo” 635. O

interesse do minoritário investidor aproxima-se dos interesses dos trabalhadores, quais

sejam, a manutenção da empresa e do investimento produtivo.

O ponto de divergência reflete o entendimento adotado quanto à finalidade da

OPA obrigatória como mecanismo de proteção dos acionistas minoritários. Se se

entende que a sua função é prioritariamente oferecer tratamento igualitário aos

acionistas minoritários, com a repartição do prêmio de controle, não há obstáculos para

a sua substituição pelo prêmio de permanência.

Por outro lado, caso se entenda que deve a OPA obrigatória oferecer também a

possibilidade de saída ao minoritário quando o controle for alterado, em função de

635SALOMÃO FILHO; COMPARATO, 2008. P. 263-264.

197

alteração nos rumos da companhia, apenas o prêmio de permanência não é suficiente

para garantir tal tutela aos minoritários. Embora o minoritário, após receber o prêmio de

permanência, ainda tenha a opção de saída pela bolsa de valores ou pelos mercados de

balcão, não se garante que, no momento da alienação, receberá o mesmo valor aferido

no momento do pagamento do prêmio, em função das possíveis flutuações do valor das

ações no mercado. Porém, isso fica a depender das especificidades e das circunstâncias

de cada caso concreto.

A aplicação da obrigatoriedade do prêmio de permanência solucionaria os

problemas relativos aos consideráveis aumentos de custos ao adquirente, da mesma

forma que as ações da companhia não perderiam liquidez. Entretanto, não se perde de

vista o fato de que tal mecanismo, apesar de resolver alguns problemas decorrentes da

OPA obrigatória, pode gerar outros. Ocorre que tal possibilidade ainda não foi

aprofundadamente estudada pela doutrina, de modo que os prós e contras advindos de

uma alteração como esta ainda são abstratos, mas merecem ser objeto de estudo, por

aparentar ser uma alternativa razoável para se tutelar os mesmos direitos com

consequências menos drásticas. Porém, como já mencionado, depende antes da

abordagem adotada quanto à finalidade da OPA obrigatória, pois se se entender que o

objetivo da oferta pública obrigatória é somente conferir uma saída ao minoritário

quando da mudança de direção dos negócios da companhia, o prêmio de permanência

não alcança a mesma finalidade.

5. Conclusão

Diante de todo o exposto, é evidente que a oferta pública obrigatória ou a

posteriori é um tema que merece ser explorado, pela diversidade e complexidade de

questões que apresenta. O objetivo desse artigo foi justamente oferecer uma introdução

básica para sua fundamentação, tanto na doutrina estrangeira como brasileira, sua

previsão na legislação atual e analisar algumas das questões que circundam esse

mecanismo tão importante para a proteção dos acionistas minoritários e, em última

instância, para o desenvolvimento dos próprios mercados de capitais.

Como visto, existe uma grande perplexidade diante da oferta pública, sobre o

que ela representa e seus fundamentos. Se seus objetivos são atingidos ou não,

permanece a questão. Porém, pela experiência brasileira, em face da revogação do

instituto em 1997, a sua importância se tornou cristalina.

198

Atualmente, a OPA obrigatória é um mecanismo necessário para corrigir

distorções de liquidez, de eficiência de mercado e de proteção jurídica dos acionistas

minoritários. Entretanto, paradoxalmente, ela mesma consiste em um mecanismo de

distorção do livre funcionamento dos mercados, inclusive por seu resultado ser a

própria perda de liquidez de ações da companhia, em face da alienação de ações dos

acionistas minoritários ao novo controlador.

Ademais, a OPA a posteriori onera artificialmente a operação de transferência

de controle, exigindo aos adquirentes aportar recursos correspondentes não só à

quantidade de ações necessárias para garantirem o controle, mas também devem

considerar a possibilidade de aderência dos acionistas minoritários aos quais se destina

a oferta, atualmente, os minoritários titulares de ações com direito a voto. O aumento de

custos tem reflexos na própria frequência de alienações de controle, que, muitas vezes,

podem ser benéficas e necessárias na troca de administradores ineficientes e na melhor

utilização dos ativos sociais. Nesse sentido, é necessário buscar o equilíbrio entre a

proteção de minorias de um lado, e a promoção de trocas de controle por outro lado,

tendo em vista a importância de ambos para um desenvolvimento saudável dos

mercados de capitais.

Dessa forma, se se parte do pressuposto que o objetivo da regulação dos

mercados (e o que justifica essa interferência em relação ao princípio do livre mercado)

é primordialmente o próprio desenvolvimento de tais mercados, a importância e a

eficácia da OPA obrigatória deve ser analisada em função do seu impacto na proteção

dos minoritários e na garantia de maior segurança jurídica. Conforme analisado

anteriormente, embora não haja controvérsia quanto ao fundamento da oferta pública

como mecanismo de proteção dos acionistas minoritários, ainda há divergências quanto

os interesses que estão sendo efetivamente protegidos, quais sejam, oferecer tratamento

igualitário aos acionistas e/ou garantir o direito de saída, em face de uma alteração na

orientação na condução dos negócios da companhia.

No entanto, seja interesse fundamental ou não, é importante notar que a

retirada do acionista minoritário da companhia não deixa de ser uma condição para que

a oferta pública obrigatória se realize como mecanismo de tratamento igualitário aos

minoritários. Por sua vez, a garantia de tratamento igualitário confere mais segurança

jurídica aos acionistas minoritários, de modo a atrair mais investidores ao mercado de

capitais, ou seja, maior aporte de recursos para o financiamento das empresas, o que

199

resulta no desenvolvimento do mercado como um todo. Porém, não favorece a

permanência dos acionistas minoritários na companhia.

Tendo isso em vista, questiona-se se o desenvolvimento dos capitais é atingido

com a permanência dos minoritários na companhia ou com a sua saída, a partir do

recebimento de tratamento igualitário. Isso não significa que tais premissas se excluam,

mas, para efeitos da OPA obrigatória, oferecer um tratamento igualitário aos acionistas

minoritários só é possível mediante a sua retirada da companhia.

Diante de todo o exposto, conclui-se que a OPA obrigatória é adotada hoje, no

Brasil, como o mecanismo de proteção aos acionistas minoritários quando das

transferências do controle societário. O grande desafio que se propõe é equilibrar seus

efeitos, em uma análise de custos e benefícios. Tendo em vista os altos custos de

implantação e os efeitos colaterais consideráveis, há que se questionar ainda se os

benefícios realmente superam os custos de se proteger os minoritários, no que tange ao

desenvolvimento dos mercados de capitais. Há que se questionar ainda se a OPA a

posteriori ainda é o meio mais efetivo para alcançar tais objetivos, ou se haveria

mecanismos alternativos, com medidas menos drásticas, que pudessem atingir os

mesmos resultados.

Diante de tamanha complexidade, há que se notar que a origem provém,

entretanto, da própria complexidade e da dinâmica dos mercados de capitais. Nesse

sentido, observamos duas realidades que caminham em paralelo. De um lado, a

realidade do “dever ser” do âmbito jurídico e da regulação legal para correção e

reparação de eventuais desvios dos institutos do mercado. De outro lado, a realidade do

“ser” de aspecto econômico, da dinâmica livre das relações societárias e do mercado

financeiro.

Caso os mercados funcionassem perfeitamente conforme as regras da lealdade

e a alocação eficiente e diligente de recursos, não haveria a necessidade de

interferência. Entretanto, a realidade mostra que tal intervenção das ferramentas legais

do “dever ser” jurídico não só é desejada, como necessária. A fiscalização e a regulação

dos mercados, assim como a punição dos agentes que violem as regras, ainda se

mostram imperativas para controlar eventuais abusos e desvios. Para se obter um

mecanismo realmente eficiente para o desenvolvimento do mercado, é importante que

esteja em conformidade com estes dois mundos. As realidades do “ser” e do “dever ser”

não devem andar em paralelo e surdas entre si, sob pena das intervenções jurídicas

serem excessivamente penosas à dinâmica de “ser” dos mercados. Tais realidades

200

devem ser costuradas, para, assim, interagirem e conjuntamente desenvolverem

mecanismos que protejam os acionistas minoritários, mas, ao mesmo tempo, sejam

condizentes com a funcionalidade econômica dos mercados.

Referências.

ANDREWS, William. The stockholder’s right to equal opportunity in the sale of shares. In: Harvard Law Review, Volume 78, 1965. P. 505-563 BERLE, Adolf Augustus; MEANS, Gardiner Coit. A moderna sociedade anônima e a propriedade privada. Saopaulo: Abril Cultural, 1984. 335 p. : (Os economistas) CARVALHOSA, Modesto. Oferta pública de aquisições de ações. Rio de janeiro: IBMEC, 1979. 211 p. COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. Rio de Janeiro : Forense, 2008. EIZIRIK, Nelson. Oferta pública de aquisição na alienação do controle de companhia aberta. In: Revista jurídica empresarial, v. 3, n. 14, p. 11-26, maio/jun. 2010. LOBO, Carlos Alexandre et al. CVM se pronuncia sobre a incidência de OPA em caso de alienação de controle de fato. Disponível em: http://www.ibri.com.br/download/espaco_juridico/Anexo_18.pdf. OIOLI, Erik F. Obrigatoriedade do Tag Along na Aquisição do Controle Diluído. In: ADAMEK, Marcelo Vieira Von. (Org.). Temas de Direito Societário e Empresarial Contemporâneos. 1a ed. São Paulo: Malheiros, 2011, v. 1. PRADO, Roberta Nioac. Oferta pública de ações obrigatória nas S.A. Tag Along. São Paulo: Quartier Latin, 2005. TESTA, Pedro. The Mandatory Bid Rule in the European Community and in Brazil: A Critical View (August 2006). Disponível em: http://ssrn.com/abstract=943089

201

VII.

INSIDER TRADING: QUESTÕES RELEVANTES

Giovanna Bakaj Rezende Oliveira

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Considerações iniciais sobre o mercado de capitais e o insider

trading. 3. Legislação: considerações históricas. 4. Informação relevante: conceito. 5. Dever de

diligência e dever de lealdade. 6. Dever de informar. 7. Sujeitos ativos: insider trading. 8.

Presunção de culpa. 9. Jurisprudência Administrativa. 10. Criminalização. 11. Insider trading e

seus benefícios? 12. Chinese Wall. 13. Conclusão. 14. Referências.

1. Introdução

O mercado de capitais tem a função social de propiciar uma menor

concentração de renda e riqueza, tendo em vista que aproxima o poupador do

investidor. O poupador é o sujeito que disponibiliza fundos que serão alocados e

transformados em investimentos, proporcionando o funcionamento da economia. Tais

investimentos constituem pressuposto do crescimento econômico do país, o qual é mais

expressivo, usualmente, onde o mercado de capitais é bem estruturado.

No ambiente do mercado de capitais, se preza, portanto, por uma maior

transparência de informações com o escopo de auxiliar os investidores na tomada de

decisões, bem como contribuir para aplicação e aproveitamento ótimo dos recursos

econômico-financeiros, sempre escassos.

Para que haja eficiência econômica do mercado, o preço dos valores

mobiliários tem de refletir as informações disponíveis acerca das companhias cujos

títulos são negociados. E, para tanto, a transparência das informações apresentadas aos

diversos atores do mercado é primordial.

A legislação brasileira tem como objetivo proporcionar simetria das

informações aos agentes econômicos e, como meio para alcançá-lo, combate o insider

trading. A repreensão a tal conduta é relativamente recente em nosso país, contudo, já

existem discussões relevantes acerca do tema. No presente trabalho, buscou-se ressaltar

202

pontos de conflito e questionamentos que não possuem, até o momento, uma solução

definitiva.

2. Considerações iniciais sobre o mercado de capitais e o insider trading

A expressão insider trading é originária do direito norte-americano e refere-se

às transações desleais que ocorrem no mercado de valores mobiliários e acarretam

lesões aos direitos dos investidores. A compreensão do âmbito no qual se concretiza a

conduta é essencial, pois “não se pode estudar um instituto jurídico, sem conhecer a sua

realidade“, conforme já ensinava o Prof. Karl Hauser, catedrático de economia da

Universidade de Frankfurt.636

Partindo dos ensinamentos do mencionado professor, define-se o mercado de

capitais como ambiente em que há oferta e demanda de dinheiro passível de

investimento monetário e real, incluindo direitos negociáveis, tais como títulos e ações

e com função precípua de formação de capitais.637

Tem o mercado de capitais uma função de transformação que atrai os

investidores, pois é um ambiente em que se faz possível a conversão de ativos líquidos

em investimentos fixos e a transformação de prazos dos investimentos, da magnitude do

capital e, ainda, dos riscos. Contudo, para que o investimento se concretize, devem os

poupadores estar seguros de que existe transparência de informações e que o preço dos

valores mobiliários é reflexo das informações disponíveis acerca das companhias cujos

títulos são negociados.

O mercado, portanto, tem de estar livre de indivíduos que se utilizam

indevidamente de informações relevantes ainda não divulgadas ao mercado de que

tenham conhecimento e devam manter sigilo, ou seja, livre de indivíduos que pratiquem

o insider trading. E, destaque-se que, para a configuração da conduta de insider trading,

tal informação deve ser capaz de propiciar vantagem indevida para si ou para outrem na

negociação de valores mobiliários.

Com o objetivo de dissuadir os detentores das informações privilegiadas de

usá-las de maneira indevida e prejudicar a confiabilidade no mercado de capitais,

implementaram-se diversos mecanismos jurídicos em nossa legislação.

636PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 72. 637PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 72.

203

As normas repressivas são aquelas que proíbem ações que caracterizem a

conduta de insider trading e visam à punição com sanções administrativas, civis

(reparação do dano) e criminais. As normas preventivas advêm do princípio da

transparência, segundo o qual se deve dar visibilidade às operações do mercado

acionário e exigir do potencial insider a prestação contínua de informações sobre os

valores mobiliários por ele negociados. Constituem, portanto, normas voltadas à

garantia da simetria de informações no âmbito do mercado de capitais.

O agente ao qual se imputa a conduta de uso indevido de informação

privilegiada não pode ser confundido com o agente especulador. O especulador não

manipula preços e tampouco mercados, condutas essas coibidas e punidas. Ele se utiliza

de informações públicas e de sua capacidade de análise para realizar investimentos de

alto risco que, quando bem sucedidos, geram retorno acima da média.

O mercado de capitais é, portanto, o ambiente no qual se dá a conduta de

insider trading e é distinto do mercado financeiro, conforme explica a Comissão de

Valores Mobiliários (CVM):

Mercado de capitais é aquele no qual as operações são normalmente efetuadas diretamente entre poupadores e empresas, ou por meio de intermediários financeiros não-bancários, diferenciando-se, do mercado financeiro, no qual os bancos atuam como parte na intermediação, interpondo-se entre aqueles que dispõem de recursos e aqueles que necessitam de crédito.638

Dentre os princípios orientadores do mercado financeiro e de capitais estão,

segundo o jurista Roberto Quiroga Mosquera, os de proteção da mobilização da

poupança nacional, proteção da economia popular, proteção da estabilidade da entidade

financeira e, por fim, o da proteção da transparência de informações, essencial à

compreensão do instituto jurídico ora sob análise.639

O princípio por último mencionado dispõe que todos aqueles que têm interesse

em realizar investimentos no mercado de capitais devem dispor das mesmas

informações para se evitar que haja benefícios de determinados agentes em detrimento

de outros.

A economia deve estar calcada em estabilidade monetária, bem como

confiabilidade institucional em relação à atividade econômica em geral. Tendo em vista

638ANDREZO, Andrea Fernandes. A necessidade de maior transparência das informações e orientação dos investidores para o desenvolvimento do mercado de valores mobiliários. 1999. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/port/Public/publ/1monografia.asp. Acesso em: 20.10.2011. 639ANDREZO, Andrea Fernandes. A necessidade de maior transparência das informações e orientação dos investidores para o desenvolvimento do mercado de valores mobiliários. 1999. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/port/Public/publ/1monografia.asp. Acesso em: 20.10.2011.

204

a importância dessa confiabilidade institucional, criou-se, no âmbito da Bolsa de

Valores Mobiliários de São Paulo, o Novo Mercado, o qual constitui uma seção

especial reservada à negociação de ações emitidas por empresas que voluntariamente se

comprometeram à adoção de melhores práticas de governança corporativa, além de

disclosure adicional comparativamente ao exigido pela legislação. Trata-se de um

ambiente que proporciona maior segurança aos investidores e reduz os custos de

captação de recursos, refletindo beneficamente na valorização e liquidez das ações.

3. Legislação: considerações históricas

A legislação referente às atividades no mercado de valores mobiliários vem

sofrendo diversas mudanças, as quais têm como finalidade precípua incentivar o

mercado de capitais por meio de condições seguras e adequadas à capitalização das

empresas, de maneira a gerar maior confiança e proteção ao futuro investidor.

A legislação brasileira é notável, pois determina: “informe, seja transparente,

mas se, por qualquer motivo não for possível informar, abstenha-se de negociar no

mercado de capitais“640. Impasse existe na definição do quanto é necessário informar

cabendo isso à regulação.

A lei deve tutelar os investidores perante a possibilidade de atuações

prejudiciais de outros participantes do mercado; deve buscar suprimir desigualdades.

Entre 1940 e 1976, as companhias abertas eram regidas pelo Decreto-lei

2.627/40. Havia menção à prestação de informações de maneira singela. A preocupação

limitava-se ao registro e autorização de funcionamento de sociedades empresárias

estrangeiras.

Em seguida, veio a Lei do Mercado de Capitais, a Lei 4.728/65, que passou ao

Banco Central (BACEN) a incumbência de empreender a fiscalização da utilização, em

benefício próprio ou de terceiros, de informações não divulgadas ao público por

acionistas ou pessoas que, em virtude do cargo exercido, a elas tivessem acesso.

Determinava, ainda, a aplicação de sanções previstas na Lei Bancária (Lei 4.595/64), o

que era por completo inapropriado.641

640PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 136. 641PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 275.

205

Segundo Fábio Konder Comparato, tal texto não era suficiente para refrear a

prática do insider trading, tampouco para orientar a criação de estruturas fiscalizadoras

de tal conduta.642

A Resolução 88 de 1968 do Banco Central procurou complementar o

dispositivo lacunoso da produção legislativa anterior, exigindo das companhias o

compromisso formal de revelar, de forma ágil, as decisões da diretoria e assembleia

geral relativas a dividendos, direitos de subscrição ou outras relevantes que

influenciassem, principalmente, nas decisões dos investidores.

Nasce, nesse momento, o comando de disclosure, o fato relevante. Não

encerra, contudo, a proibição da utilização das informações antes de revelá-las ao

público.

A Resolução 39 de 1960 do Banco Central, anterior portanto a 1988,

incriminava a manipulação fraudulenta dos preços (art. 89, II), além de disciplinar a

constituição, organização e funcionamento das bolsas.

A Lei 6.404/76 introduz uma regulação mais taxativa do insider trading, tanto

em moldes preventivos como repressivos. A lei insere o princípio do dever de informar

em seu art. 157. Não soluciona, contudo, todas as lacunas, pois, por exemplo, refere-se

à responsabilidade no âmbito administrativo e civil, sem a previsão de sanções penais.

Foi responsável, ainda, pela restrição da imputação da conduta aos administradores,

seus subordinados e terceiros de sua confiança.

A Lei 10.303/2001 introduziu alterações na LSA, solucionando algumas de

suas falhas. Atribuiu à CVM poderes para exigir informações imediatas a respeito de

qualquer alteração de posição acionária dos administradores da companhia, enfatizando

um procedimento que viabiliza ou, ao menos, facilita a identificação de eventual

conduta ilícita de insider trading. Introduziu, sobretudo, o §4º do art. 155.

4. Informação relevante: conceito

A Instrução CVM 358 de 3 de janeiro de 2002 dispõe:

sobre a divulgação e uso de informações sobre ato ou fato relevante relativo às companhias abertas, disciplina a divulgação de informações na negociação de valores mobiliários e na aquisição de lote significativo de ações de emissão da companhia aberta, estabelece vedações e condições para a

642COMPARATO, Fábio Konder. Insider Trading - Sugestões para a moralização do mercado de capitais. Revista de Direito Mercantil. São Paulo, n. 3, 1971.

206

negociação de ações de companhia aberta na pendência de fato relevante não divulgado ao mercado, revoga a Instrução CVM nº 31, de 8 de fevereiro de 1984, a Instrução CVM nº 69, de 8 de setembro de 1987, o art. 3° da Instrução CVM n° 229, de 16 de janeiro de 1995, o parágrafo único do art. 13 da Instrução CVM 202, de 6 de dezembro de 1993, e os arts. 3o a 11 da Instrução CVM no 299, de 9 de fevereiro de 1999.643

Em seu art. 2º, caput a Instrução define o ato ou fato relevante como as

decisões do acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de

administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-

administrativo, técnico, negocial, ou econômico-financeiro. Realiza uma enumeração

que estabelece um rol exemplificativo.

A instrução cataloga, ainda, os titulares do dever de divulgação de ato ou fato

relevante (art. 3º)644. Para se eximir de responsabilidade relativamente à omissão do

Diretor de Relações com Investidores, as pessoas apresentadas no rol do art. 3º devem

imediatamente cientificar a CVM da ocorrência.

O ato ou fato relevante deve ser divulgado pelo Diretor de Relações com

Investidores mediante publicação em jornais de grande circulação, e, sempre que

possível, antes do início ou após o encerramento dos negócios nas bolsas de valores e

entidades do mercado de balcão organizado onde os títulos de emissão da companhia

sejam admitidos à negociação.

A Instrução também foi responsável pela ampliação substancial do rol

daqueles que têm o dever de guardar sigilo, conforme dispõe o art. 8º:

Art. 8º - Cumpre aos acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, e empregados da companhia, guardar sigilo das informações relativas a ato ou fato relevante às quais tenham acesso privilegiado em razão do cargo ou posição que ocupam, até sua divulgação ao mercado, bem como zelar para que subordinados e terceiros de sua confiança também o façam, respondendo solidariamente com estes na hipótese de descumprimento.645

643Instrução CVM nº 358, de 3 de janeiro de 2002. 644Art. 3º - Cumpre ao Diretor de Relações com Investidores divulgar e comunicar à CVM e, se for o caso, à bolsa de valores e entidade do mercado de balcão organizado em que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação, qualquer ato ou fato relevante ocorrido ou relacionado aos seus negócios, bem como zelar por sua ampla e imediata disseminação, simultaneamente em todos os mercados em que tais valores mobiliários sejam admitidos à negociação. § 1º Os acionistas controladores, diretores, membros do conselho de administração, do conselho fiscal e de quaisquer órgãos com funções técnicas ou consultivas, criados por disposição estatutária, deverão comunicar qualquer ato ou fato relevante de que tenham conhecimento ao Diretor de Relações com Investidores, que promoverá sua divulgação. (...) 645Instrução CVM nº 358, de 3 de janeiro de 2002.

207

Ary Oswaldo Mattos Filho afirma que, apesar das modificações essenciais na

Lei da CVM, o campo ainda ficou extremamente amplo e não mapeado, devido a duas

principais mudanças.646

A primeira diz respeito a que a função de normatização, fiscalização e punição

de todos os contratos de investimentos passou a ser competência da Comissão de

Valores Mobiliários (CVM). Significa que o modelo brasileiro se descolou do

americano, em que há divisão de tarefas entre a Securities and Exchange Comission

(SEC), responsável por alguns poucos tipos de valores mobiliários, e a Commodity

Futures Trading Comission (CFTC), responsável pelos mercados futuros de

commodities agrícolas, financeiros, etc. Tudo que se refere a contrato de investimento

passou para o âmbito da competência da CVM. Para a CFTC, não há insider em

commodities. No Brasil, passou a ser possível a caracterização da conduta de insider em

todos os contratos negociados na BM&F ou outras bolsas similares.647

A segunda refere-se à inclusão do art. 27-D na Lei 6.385/76, dispositivo

responsável pela ampliação da definição da prática do insider trading, conforme se

vislumbra no texto que criminaliza a conduta:

Art. 27-D. Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado, de que tenha conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiro, com valores mobiliários:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)

Afirmou o Professor Ary Oswaldo Mattos Filho que haverá um árduo trabalho

de interpretação, pois o campo ficou extremamente amplo. O insider trading deixou de

ser apenas o que está na LSA e passou a ser definido, também, pelo art. 27-D da Lei

6.385/76. Um dos problemas residiria, por exemplo, no verbo utilizar. Seria necessário

um ato de vontade? Outra questão estaria relacionada à definição de quais valores

mobiliários. Seriam apenas os contratos de investimento?

5. Dever de Diligência e Dever de Lealdade

646PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852. 647PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852, p. 23-24.

208

O dever de diligência encontra-se previsto no art. 153 da LSA e consiste em

uma obrigação de meio, segundo enuncia o doutrinador Fábio Ulhoa Coelho.648

Corresponde ao dever de atuar com cuidado e diligência na administração dos negócios

sociais, como se fossem negócios seus649, ou seja, ao administrador é atribuída a tarefa

de ter todo o cuidado na gestão dos negócios sociais.

A legislação brasileira incorporou o duty of care do direito norte-americano

com a ideia fundamental de que o administrador deve conduzir-se pela boa-fé, atuando

como uma pessoa prudente agiria em situações semelhantes, com a finalidade precípua

de atender aos interesses da companhia.

O dever de lealdade, concretizado no art. 155 da LSA, corresponde à noção de

que o administrador deve servir à companhia e não se servir dela, ou seja, não pode

sobrepor os seus interesses aos da sociedade.650 O dispositivo legal visa, portanto,

proibir o administrador de auferir vantagens pessoais ou para terceiros, a partir de

oportunidades comerciais que lhe aparecem em função do cargo ocupado.

O administrador tem a obrigação de proteger a função social da sociedade

empresária, cujo fundamento está no caráter fiduciário de sua função. Importante

destacar, ainda, que o dever é para com a companhia e não para com os acionistas,

conforme leciona Modesto Carvalhosa.651

Com o aperfeiçoamento dos mandamentos éticos, chegou-se ao dever de

disclosure, essencial à manutenção de um ambiente propício ao desenvolvimento

econômico e social do país.

6. Dever de Informar

O dever de informar encontra fundamento no princípio da transparência.

Constitui um mecanismo para assegurar a simetria das informações no âmbito do

mercado de capitais, ensejando a toda a comunidade de investidores o acesso aos dados

das companhias.

O mencionado dever provém do princípio da função social da propriedade

elencado no art. 170, III de nossa Carta Magna. Para a sua melhor compreensão, deve-

648COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v.2, p. 244. 649TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário. 3a Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 538. 650TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário. 3a Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 539. 651CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 302.

209

se analisar o art. 157 da Lei das Sociedades Anônimas (LSA). Determina-se no §4º do

mencionado dispositivo que os administradores de companhias abertas estão obrigados

à pronta e eficaz divulgação dos fatos relevantes acerca da situação da sociedade,

garantindo o equilíbrio das posições dos agentes do mercado, sobretudo a isonomia, de

forma a obstaculizar a utilização desleal das informações.652

Ainda no contexto da LSA, importante é o art. 155 que dispõe sobre o dever de

lealdade do administrador.653. Tendo em vista o alcance limitado do §1º, destinado

somente aos administradores das companhias abertas, incluiu-se o § 4º. Passou-se,

assim, a proibir a utilização, por qualquer pessoa, de informação relevante ainda não

divulgada com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de

valores mobiliários.

O §6º do art. 157 da LSA fez com que o dever de informar passasse a ser mais

contundente, tendo em vista que obriga os administradores da companhia a comunicar,

imediatamente, à CVM, às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão

organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam

admitidos à negociação, alterações em suas posições acionárias na companhia. O

dispositivo reflete a importância de que toda informação essencial seja divulgada

imediatamente ao mercado, seja pelas bolsas, CVM ou por publicação em jornais e

revistas.

O dever de informar é essencial para fomentar a maior liquidez no mercado,

reduzir a concentração da titularidade das ações, enfim, democratizar o mercado de

capitais. Tem como finalidade, sobretudo, prevenir a prática do insider trading.

Para melhor compreensão do dever de informar, apontaremos a forma de

classificação das informações. Elas encontram-se divididas em básicas, “fatos

relevantes“, informações privilegiadas e informações de mercado. As básicas são

aquelas informações fundamentais ao mercado, tais com as que tratam da situação

652Art. 157. O administrador de companhia aberta deve declarar, ao firmar o termo de posse, o número de ações, bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, de que seja titular. (…) § 4º Os administradores da companhia aberta são obrigados a comunicar imediatamente à bolsa de valores e a divulgar pela imprensa qualquer deliberação da assembléia-geral ou dos órgãos de administração da companhia, ou fato relevante ocorrido nos seus negócios, que possa influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mercado de vender ou comprar valores mobiliários emitidos pela companhia. (...) § 6º Os administradores da companhia aberta deverão informar imediatamente, nos termos e na forma determinados pela Comissão de Valores Mobiliários, a esta e às bolsas de valores ou entidades do mercado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão da companhia estejam admitidos à negociação, as modificações em suas posições acionárias na companhia. 653Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado: (...) § 1º Cumpre, ademais, ao administrador de companhia aberta, guardar sigilo sobre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários. (...) § 4º É vedada a utilização de informação relevante ainda não divulgada, por qualquer pessoa que a ela tenha tido acesso, com a finalidade de auferir vantagem, para si ou para outrem, no mercado de valores mobiliários. (Incluído pela Lei nº 10.303, de 2001)

210

econômico-financeira da companhia, estatuto social, organização societária, balancetes

contábeis, dentre outras. Os “fatos relevantes“ dizem respeito aos acontecimentos

capazes de mudar, imediatamente, o julgamento dos investidores em relação a um certo

ativo.

As informações privilegiadas são aquelas relativas a matérias relevantes, caso

contrário, não seria considerado privilégio acessá-las, e, ademais, caso publicadas

antecipadamente, são capazes de induzir os investidores em erro. Caracterizam-se,

ainda, pelo fato dos administradores diretos da empresa serem os primeiros a manuseá-

las. Posteriormente, terceiros também podem vir a tomar conhecimento das mesmas em

virtude do exercício de profissão ou por meios obscuros.

O fundamento da não divulgação de determinadas circunstâncias societárias,

previsto no art. 155 da LSA, provém do dever de lealdade, dever esse inerente à função

dos administradores e que se impõe tanto para atuação junto à sociedade empresária

quanto junto aos acionistas, aos empregados, ao mercado de capitais e à própria

comunidade.

Os deveres de lealdade, diligência e de informar decorrem da posição

privilegiada em que se encontram os administradores, face, essencialmente, ao acesso às

informações da companhia, as quais, constantemente, não são de conhecimento público.

Podem-se vislumbrar dois mandamentos imperativos básicos no dever de

lealdade e na proteção do mercado de capitais e de seus agentes. Primeiro, a proibição

de qualquer pessoa detentora de informações privilegiadas de realizar negociações em

seu nome ou de terceiros com os valores mobiliários da companhia, a fim de não restar

configurado o delito de insider trading. Proibição, portanto, que visa impedir que um

sujeito aufira lucros valendo-se de situação vantajosa em relação ao investidor comum.

Um segundo mandamento relaciona-se à obrigação de divulgação, exposto no

art. 157, §§ 5º e 6º da LSA. Confere à CVM poderes de exigir informação, ainda que

sigilosa, podendo, a seu critério, noticiá-la ao mercado. Em alguns casos, a quebra do

sigilo corresponde ao cumprimento do dever de lealdade.

Por fim, as informações de mercado correspondem àquelas obtidas por meio de

pesquisa própria e apurada. No âmbito de tais informações aflora a discussão existente

nas cortes americanas acerca da teoria do mosaico, segundo a qual um analista talentoso

e perceptivo combina informações públicas com pedaços de informes não públicos

irrelevantes para se alcançar uma conclusão importante que altere precificação de um

determinado ativo e acarrete vantagem.

211

Nos Estados Unidos, tem-se decidido que, no caso de aplicação da teoria do

mosaico, para que a conduta de insider trading não reste configurada, devem os

analistas apresentar os detalhes das informações, bem como a metodologia utilizada

para alcançar a conclusão que motivou a realização da transação no mercado. Ou seja,

caso seja possível verificar que não houve uso indevido de informação privilegiada, não

se pune o analista.

O autor José Marcelo Martins Proença argumenta que, de qualquer forma,

gera-se assimetria de informações, a menos que a conjugação das informações pelos

analistas corresponda, apenas, à maior diligência no atendimento aos clientes.654

Interessante consideração é a realizada por Ilene Patrícia Noronha Najjaria,

procuradora federal da Comissão de Valores Mobiliários (CVM):

Como saber quando eu devo guardar sigilo e quando eu devo informar? Isso é uma linha tênue e é difícil para o empresário, os players e todos os que estão em uma operação raciocinar assim. Eu sempre falo que é um exercício de meditação do ser humano. O ser humano tem que meditar. É pensar: essa decisão, essa operação que está ocorrendo, influenciaria no meu íntimo, na minha decisão de comprar ou vender esse papel? Se, lá no seu íntimo, vier sim, influenciaria na minha decisão de comprar ou vender esse papel, aí você tem um dever de divulgar, de consultar a autarquia, de verificar melhor.655

Deve-se observar que a teoria do mosaico ainda acarreta muitas discussões e

difícil faz-se chegar a uma conclusão definitiva sobre se deveria haver a punição de tal

prática por corresponder a uma forma de insider trading ou se não se deveria puni-la,

tendo em vista que a decisão decorre de uma cuidadosa análise do mercado, fruto da

bagagem intelectual do analista.

Deve-se questionar, por exemplo, se seria um caso de assimetria de informação

resultado de não publicação de fatos relevantes ou se, ao contrário, pela análise da

metodologia utilizada pelo analista pode-se perceber que a decisão decorreu de know-

how sobre o funcionamento do mercado e, portanto, não se tratou de utilização indevida

de informação ainda não divulgada ao mercado. A verificação da ocorrência do insider

trading decorrerá, portanto, da análise do caso concreto.

654 PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 655PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852, p. 18.

212

6. Sujeitos Ativos: insider trading

Dúvida reside em saber a quem se pode imputar a conduta insider trading.

Trata-se de discussão amplamente difundida na doutrina. Segundo a tese de José

Marcelo Martins Proença, pode-se imputá-la a qualquer pessoa, seja ela administradora

ou não da companhia, desde que utilize informação ainda não pública para negociar no

mercado de capitais auferindo vantagens, em regra, a custo de prejuízo alheio.656

Conforme já explicado, a prática do insider trading pode resultar de conduta

dos administradores das companhias abertas ou de outros indivíduos que tenham acesso

às aludidas informações, quer pela função, quer por qualquer outro meio.

A LSA supriu uma lacuna até então existente na legislação ao inserir o §4º no

art. 155 trazendo a expressão “qualquer pessoa“. Insider, portanto, é qualquer pessoa

que tenha acesso a informações capazes de influenciar na cotação de valores

mobiliários de emissão da companhia.

Segundo Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik a Lei 10.303/2001 pressupôs

que o administrador representa o tipper, que transmite ao tippee a informação não

divulgada, ou seja, existiria sempre uma correlação entre o administrador e o terceiro.

Logo, tendo em vista o §4º, o insider será a pessoa que, em conluio ou mesmo por

negligência do administrador, efetivamente se aproveita das informações privilegiadas

para obter ganhos ou evitar prejuízos. Além do administrador, poderia ser qualquer

pessoa que, em decorrência do exercício de funções na sociedade ou no mercado, ou por

circunstâncias especiais de acesso à administração da companhia, viesse a deter

informações relevantes relativas aos negócios e estado da companhia.657

Para os mesmos autores, existe limitação ao termo “qualquer pessoa“, pois,

para que terceiros possam ser tippees, deve haver nexo profissional entre eles e o

administrador (tipper). Ademais, se a informação relevante vazar além dos

controladores e dos profissionalmente envolvidos com ela, os terceiros ocasionalmente

informados não poderiam ser considerados insiders. O administrador deveria ser o

responsabilizado por não ter mantido a reserva necessária sobre o fato relevante.

José Marcelo Martins Proença, contudo, contestando os argumentos

mencionados, afirma que a introdução do novo parágrafo visou vedar a “qualquer

656PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 657 PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 291-293.

213

pessoa“, sem qualquer limitação, a utilização de informações privilegiadas no mercado

de capitais.658

O §2º do art. 155 aplicava a proibição de prática de insider trading apenas aos

subordinados ou terceiros da confiança do administrador. Antes da inserção do §4º,

houve decisão no sentido de proibição ao acionista controlador também.

Segundo a Lei 6.385/1976, que criou a CVM, os insiders poderão ser os

administradores da companhia (art. 145), os membros de quaisquer órgãos criados pelo

estatuto da cia com funções técnicas ou destinadas a aconselhar os administradores (art.

160), os membros do conselho fiscal (art. 165), as pessoas autônomas que prestam

serviços profissionais à companhia, aquelas com relação de subordinação ou, ainda, que

tenham acesso às informações privilegiadas, ademais dos controladores com acesso às

informações privilegiadas da administração da companhia (art. 116 e 117), os

intermediários do mercado de capitais, como as instituições componentes do Sistema de

Distribuição de Valores Mobiliarios, bem como as pessoas físicas que as administram,

nelas trabalham ou delas são agentes autônomos, os investidores ou participantes do

mercado, na qualidade de compradores e vendedores de valores mobiliários ali

negociados. Todas essas pessoas físicas ou jurídicas que, originariamente, ou, por

vazamento, estejam de posse de informações privilegiadas, são obrigadas a se absterem

de negociar com valores mobiliários da companhia no mercado de capitais.

7. Presunção de culpa

A LSA adota o critério analítico ao enumerar os deveres de lealdade e de

informação dos administradores, de forma a facilitar a configuração da falta e a

determinação de responsabilidade. O legislador ampliou, portanto, as hipóteses de

presunção de culpa, facilitando a prova.

A responsabilidade civil dos administradores pelos prejuízos ocasionados,

dentro da órbita de suas atribuições ou poderes decorre, segundo a lei, de culpa ou dolo

com que tenham atuado. Logo, considera Luis Gastão Paes de Barros que a culpa dos

administradores em sentido lato ou estrito deve ser provada pelo lesado, bem como deve

ser comprovado o prejuízo resultante e o nexo causal entre o ato e o fato ilícito.

658PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 293.

214

Todavia, quando os prejuízos resultarem de atos praticados pelos administradores com

violação à lei ou aos estatutos, a lei presume culpa, havendo a inversão do ônus da

prova.659

Em geral, a responsabilidade administrativa dos indiciados em inquérito

administrativo da CVM deveria reger-se pelos princípios da responsabilidade subjetiva.

Em alguns casos, todavia, como o do insider trading seria admitida a inversão do ônus

da prova em matéria, o que não significa aceitação da responsabilidade objetiva, a qual

deve originar-se de disposição legal expressa, não cabendo, por conseguinte, em

matéria de aplicação de medidas punitivas.

Em relação ao insider trading, cabe à CVM comprovar a existência do dano e

que decorreu de conduta ilegal do insider, pela utilização de informação da companhia

em proveito próprio. Quando for insider administrador ou acionista controlador

presume-se que, devido ao cargo, teve acesso à informação relevante.

No caso do insider trading, em que há violação a deveres legalmente

estabelecidos ao administrador da companhia, possível faz-se, segundo Eizirik, uma

apuração objetiva da infração, a qual se caracterizaria independentemente do elemento

intencional. Tais casos de responsabilidade civil e administrativa decorreriam da

infração à lei, sendo possível a aplicação de sanções disciplinares sem a comprovação

da intenção de lesar, do dolo, bastando a configuração da culpa em sentido estrito.

Modesto Carvalhosa660 assume o posicionamento de que deve haver a

responsabilidade objetiva daquele que pratica o insider trading, estendendo-se a mesma

aos controladores e aos terceiros que se beneficiaram do vazamento das informações. A

responsabilidade decorreria diretamente da ação ou omissão do administrador (tipper).

Segundo o autor, trata-se de quebra do dever de lealdade com a companhia, os demais

acionistas e o mercado de ações e, nesse caso específico, dispensa-se o nexo entre a

ação ou a omissão e o prejuízo ou dano sofrido pela companhia, segundo prescreve o

art. 158, I ao vedar ao administrador o uso das oportunidades “com ou sem prejuízo

para a companhia“. O dever de lealdade estaria embasado não no dano, mas, sim, no

caráter fiduciário das funções de administrador. Seria, assim, um ilícito formal.

A intenção, segundo Modesto Carvalhosa, estaria dispensada, pois a fraude

seria objetiva. Segundo o doutrinador, tratar-se-ia do mesmo princípio contido no art.

659PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 280. 660 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 303-304.

215

129 da Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei n. 11.101/2005), o qual nega

efeito aos negócios jurídicos praticados pelo devedor antes da falência,

independentemente da intenção de fraudar os credores. O termo legal da falência

constituiria elemento necessário e suficiente à decretação da ineficácia dos atos

jurídicos praticados no período.

No caso do insider trading, dever-se-ia utilizar o mesmo critério. Considera

Modesto Carvalhosa que a fraude decorreria objetivamente de qualquer negócio com

valores mobiliários emitidos pela companhia praticados pelos administradores e demais

agentes durante o período em que possuíssem informações relevantes com relação aos

negócios e ao estado da companhia.

9. Jurisprudência Administrativa 661

No âmbito da Comissão de Valores Mobiliários diversas questões já foram

analisadas e discutidas. Trazemos agora alguns posicionamentos interessantes da

autarquia.

Nos Processos Administrativos (PA) nº 01/78 e 28/88 concluiu-se pela

desnecessidade de caracterização do dolo do insider, sendo suficiente a existência da

negociação sem que a outra parte conheça a informação privilegiada.

No PA 04/86, determinou-se que um prejuízo considerável constitui

informação relevante. Considerou-se prática de insider trading as transações efetuadas

pelos administradores, antes da publicação das demonstrações desses prejuízos

No âmbito dos Processos Administrativos 02/79 e 04/85, discutiu-se acerca do

conceito de vantagem auferida. No PA 02/79, entendeu-se que no conceito estava

incluída não apenas a vantagem real, mas também a vantagem potencial. No PA 04/85,

concluiu-se que o conceito de vantagem abrangia, além do lucro obtido, o prejuízo

evitado.

No PA 07/91, caso em que se discutiu acerca do conceito de vantagem

auferida, entendeu-se que o conceito envolvia, além da vantagem real, a vantagem

potencial.

Nos PAs 02/85 e 13/00 houve presunção de conhecimento de informação por

administrador, mas, de outro lado, não houve consenso quanto à aplicação de

661Os casos tratados foram selecionados na obra de PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 299-306.

216

penalidade ao diretor financeiro, que, supostamente, teria conhecimento da proposta de

pagamento de dividendos antes da deliberação do Conselho e que negociou com valores

mobiliários antes dessa decisão. Segundo o Relator (voto vencedor), o elemento

essencial à configuração do insider trading é a utilização pelo insider de informação

confidencial sobre fato relevante. Sendo o insider administrador ou acionista

controlador da companhia, haveria presunção de que teve acesso à informação relevante

em decorrência de seu cargo. No caso de um insider de mercado ou tippee, não

ocorreria tal presunção, cabendo à CVM provar o seu acesso à informação. O voto

divergente propugnou que, por ser da área financeira e participar do Conselho de

Administração, o diretor financeiro não poderia ter efetuado as negociações que

realizou, pois possuía as condições privilegiadas para, além de supor, propor e participar

da decisão em relação ao pagamento de dividendo intercalar.

No PA 05/83, afirmou-se que o dever genérico de informar deve suplantar o

dever de sigilo. Todavia, quando a divulgação pudesse acarretar desordens e tumultos

no mercado, seria aceita a manutenção do sigilo no caso de intenções de negócios, a

menos que houvesse vazamento ou rumores, situação em que passaria a ser obrigatória

a divulgação.

Acima foram, portanto, apresentados algumas das discussões já ocorridas no

âmbito da CVM. Vê-se que são casos específicos, os quais devem ser minuciosamente

analisados para se tentar coibir tal prática que lesa, sobretudo, o interesse público.

10. Criminalização

Importante ressaltar, inicialmente, que a lei que instituiu a criminalização da prática

do insider trading é complementada pela Lei das S/A, bem como pelas Instruções

emitidas pela CVM. Apenas em 2001, alguns ilícitos administrativos ganharam a tutela

do direito penal e foram, portanto, acolhidos por seara que não o direito societário.

Os delitos financeiros, resumidamente, destinam-se a punir as condutas intoleráveis,

que importem em manobras lucrativas e em prejuízo geral, mediante o aproveitamento

da estrutura e organização do sistema financeiro. Assim sendo, os mencionados delitos

expressam uma disfunção do sistema financeiro e o seu conteúdo está limitado pelo

bem jurídico a ser protegido.

A tipificação de infrações contra o mercado de capitais, sobretudo o uso de

informação privilegiada, só se torna viável diante de um mercado de caráter liberal, mas

217

sobre o qual se faça marcante a presença do Estado, regulamentando e fiscalizando o

seu funcionamento.

A LSA e a LVM, além das instruções normativas da CVM, impõem aos

administradores das sociedades anônimas, deveres e responsabilidades perfeitamente

afinados com os rígidos princípios conformadores da atividade do administrador

público (art. 37 CF). Deve-se analisar para tanto os arts. 153 a 160 da LSA.

A nossa ordem econômica constitucionalmente estabelecida confere ao mercado o

título de patrimônio nacional e à empresa uma função social. O administrador de

sociedades anônimas desempenha atribuições legais e estatutárias, não só no interesse

da empresa, mas do público em geral e, como tal, há de adotar um comportamento

similar ao do administrador público.

A LVM, antes mesmo das alterações introduzidas pela Lei 10.303/2001, já firmara a

presença do Estado no nosso mercado de valores mobiliários. À CVM atribuiu-se

competência para, além de regulamentar, fiscalizar as atividades e os serviços do

aludido mercado, apurando infrações e aplicando penalidades de natureza administrativa

por ela estatuídas.

O art. 27-D, da Lei 10.303/2001 intensificou a penalização da prática do insider

trading ao criminalizar a conduta, a qual passou a constituir violação simultânea dos

preceitos legais pertinentes ao dever de informar e de tornar públicos fatos hábeis para

influir na decisão de compra e venda de títulos por parte dos investidores (art. 157,

paragrafo 4º LSA), além da transparência e da ética essenciais ao bom funcionamento

de nosso mercado de capitais.

Viola, ainda, o dever de lealdade, transgredindo a disposição do art. 155, §1º da

LSA. A norma tutela, também, a eficiência do mercado para cuja garantia a lei institui o

dever de informar.

Trata-se de norma penal em branco, pois sua exequibilidade depende de conceitos

trazidos pela LSA e pelas instruções CVM. Constitui crime próprio, tendo em vista que

só pode cometê-lo aqueles aos quais a lei imponha o sigilo acerca da informação usada

para a negociação. É crime formal, considerando-se que o legislador não cogitou, para

sua consumação, da efetiva obtenção da vantagem almejada pelo autor. Importante

ressaltar que a informação tem de ser capaz de propiciar vantagem a quem dela se

utiliza.

218

O núcleo do tipo consiste em negociar com valores mobiliários valendo-se de

informação não divulgada ao mercado. Distingue-se do delito material, portanto, o qual

prevê o dano.

Modesto Carvalhosa e Nelson Eizirik suscitam a discussão acerca da definição

como crime formal ou material. Afirmam que a pena aplicável parece caracterizar o

delito como material, pois cumula a reclusão com multa calculada em função da

vantagem obtida.

Conforme já mencionado o insider trading corresponde ao uso de informações

privilegiadas no mercado de capitais. A legislação, portanto, tem como finalidade evitar

uma assimetria informacional no mercado de valores mobiliários.

À conduta deve-se atribuir o status de ilícito, tendo em vista que se faz necessário

que o nosso mercado de capitais tenha credibilidade para que possa constituir um dos

pilares de nosso desenvolvimento econômico e, consequentemente, social.

11. Insider trading e seus benefícios?

Existem teorias que afirmam ser a prática de insider trading benéfica ao

mercado por ser eficiente do ponto de vista econômico. Três são as principais vertentes

defensoras de tal entendimento.662

A primeira, baseada na agency theory, enxerga na conduta do insider uma

fórmula para compensar os administradores por incrementar os ganhos dos mesmos e,

consequentemente, reduzir os conflitos com os acionistas. A prática do insider seria

hábil para melhor remunerar e, portanto, incentivar os administradores quando, a

despeito de normalmente avessos aos riscos, os assumem em patamares elevados ao

ocuparem a direção de uma companhia. E, em contraprestação aos maiores riscos dos

administradores, a remuneração seria incrementada, atribuindo-lhes a faculdade de

negociarem no mercado de capitais, munidos de informações privilegiadas, detidas em

razão de seus cargos. Em suma, tal vertente argumenta que o maior apetite dos

administradores para o risco também favoreceria os investidores, os acionistas e os

titulares do equivalente a uma opção sobre os bens da empresa.

Uma segunda vertente, que tem como principal expoente Richard Posner,

suscita para legitimá-la, os altos custos de sua punição ou identificação. Estabelecida

662 PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 330-333.

219

essa relação custo-beneficio, fica legitimada a ação dos insiders, bem como explicado o

motivo pelos quais as companhias não se esforçam para penalizá-los. Para Posner,

inclusive, a repressão eficaz dessa espécie de conduta implicaria proibir os prováveis

insiders e suas famílias de negociarem quaisquer valores mobiliários, o que entendia ser

um exagero despropositado.

A terceira teoria ultrapassa o âmbito da relação administrador-acionista,

advogando que similar prática teria a capacidade de fazer os preços das ações

refletirem, ágil e completamente, as informações relevantes pertinentes. A atuação dos

insiders configuraria um instrumento para a rápida canalização e divulgação das

informações no mercado, não obstante o eventual ganho dos administradores. Para os

defensores dessa teoria, portanto, tão logo se verifica o movimento dos insiders, o

mercado os acompanha.

Interessantes são tais posicionamentos vistos da perspectiva atual em que não

se cogita de que qualquer benefício seja proveniente de tal ação. Todavia, importante

destacar a existência de tais teorias.

12. Chinese Wall

Define-se o Chinese Wall como:

conjunto de regras e procedimentos definidos em política interna adotada pelas companhias de mercado e instituições financeiras com o fim de promover e manter a segregação de informações a que tem acesso os diversos departamentos da organização administrativa de tais sociedades, cujos objetivos podem eventualmente se revelar conflitantes. 663

Antes de tecer considerações, importante distinguir insider primário e

secundário. Insider primário é aquele que é administrador ou membro de órgão

deliberativo da sociedade e, secundário, o profissional que tem contato com

informações exclusivas e privilegiadas sobre a mesma pelo exercício concreto de atos

profissionais diretamente ligados à sociedade.

Apesar de a CVM não prover um elenco de procedimentos para implantação e

manutenção do Chinese wall nas instituições financeiras e companhias abertas, ela não

desconhece a prática e a recomenda, como se depreende do art. 7º da Instrução 306 de

663LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. A adoção do Chinese wall e a repressão ao insider trading. In: Revista do Direito Bancário e do Mercado de Capitais – RBD 47. Ano 13, n. 47, jan-mar/2010, p. 229.

220

05.05.1999. A autarquia pode, no exercício de suas funções, avaliar a coerência e a

viabilidade das normas implantadas voluntariamente nas companhias, bem como o

cumprimento pelos empregados e administradores das mesmas.

O Banco Central, por meio das resoluções CMN 2.451, de 27.11.1997 e CMN

2.486, de 30.04.1998, dispôs, expressamente, acerca da necessidade de segregação, nas

instituições bancárias, da administração de recursos de terceiros das demais atividades

por elas desenvolvidas. O Conselho Monetário Nacional estabeleceu nessas resoluções

que as instituições em apreço não podem atuar na contraparte, direta ou indiretamente,

em operações de carteiras de títulos e valores mobiliários, por elas administradas,

exceto quando, embora formalmente contratadas como administradoras das mesmas,

não tenham conhecimento prévio das operações e não detenham o poder discricionário

sobre as referidas carteiras por terem delegado a empresas especializadas a prestação de

serviços de gestão.

A muralha chinesa gera restrição ao fluxo de informações dentro da empresa,

todavia, não determina, necessariamente, a proibição da atuação com determinados

papéis. Constitui, sobretudo, um processo de sinalização, o qual sujeita as operações a

uma análise que poderá redundar em proibição das transações.

13. Conclusão

O insider trading consiste no uso indevido de informação privilegiada e traduz

um comportamento nocivo ao bom funcionamento de nosso mercado de capitais. Como

crime, portanto, pode-se afirmar que lesa interesse da coletividade.

O presente artigo buscou gravitar em torno de questionamentos essenciais ao

desenvolvimento do tema. Três foram as questões inspiradoras. A primeira corresponde

à discussão acerca do sujeito ativo da conduta, a segunda acerca da responsabilização

do administrador e uma terceira da aplicação da teoria do mosaico.

Inicialmente, alguns comentários serão realizados acerca da aplicação da teoria

do mosaico. Não foi possível chegar a uma conclusão definitiva sobre se tal viés da

conduta configura insider trading. A favor da punibilidade, há o argumento de que o

analista utiliza informação privilegiada. Sopesa-se, contudo, o fato de que as

informações não seriam, por assim dizer, úteis, caso não houvesse know-how acerca do

funcionamento do mercado por parte de quem a utiliza. Não há, portanto, uma solução

221

aplicável genericamente. Necessária é a análise casuística e verificação da ilicitude da

conduta.

Em relação ao sujeito ativo, ainda existe dissensão doutrinária, conforme

demonstrado ao longo do texto. Todavia, o rol daqueles aos quais se pode imputar a

conduta sofreu ampliação considerável em decorrência de modificação legislativa.

Passou-se de uma legislação que buscava proteger apenas o “ambiente companhia” para

uma que zela pelo mercado de capitais e seus múltiplos agentes.

A expressão “qualquer pessoa“, de fato, deve abranger todos, sejam ou não

administradores da companhia e punir pela negociação vantajosa a custa de prejuízo

alheio. Em posicionamento destoante do sustentado por Modesto Carvalhosa, nem

sempre se pode assumir uma correlação entre o administrador e o terceiro, ou qualquer

violação pelo administrador ao dever de reserva sobre o fato relevante.

A discussão que, todavia, considera-se mais relevante diz respeito à

responsabilização do insider. Segundo Modesto Carvalhosa, deveria ser objetiva.

Considerando-se tal posicionamento, severas considerações devem ser tecidas e ampla

discussão deve ser realizada. A responsabilidade tem, necessariamente, de ser subjetiva,

pois a responsabilidade objetiva encontra-se adstrita aos casos assim previstos em lei. O

argumento de que se trata de ilícito formal não sustenta de maneira sólida tal

entendimento. Deve haver, ao menos, a análise de culpa em sentido estrito.

Por fim, após a apresentação dos principais pontos discorridos ao longo do

trabalho, vê-se que constitui um campo fértil e deficitário, que ainda requer muita

análise. Diversas dificuldades se colocam, inclusive pela pouca discussão acerca do

assunto. Logo, devem-se empreender pesquisas mais aprofundadas acerca do tema e

apresentar-se soluções que podem beneficiar, inclusive, o desenvolvimento econômico

do país ao atrair mais investidores a nosso mercado de capitais.

14. Referências

ANDREZO, Andrea Fernandes. A necessidade de maior transparência das informações e orientação dos investidores para o desenvolvimento do mercado de valores mobiliários. 1999. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/port/Public/publ/1monografia.asp. Acesso em: 20.10.2011. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 3º Volume. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

222

EIZIRIK, Nelson. Aspectos Modernos do Direito Societário. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1992. LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. A adoção do Chinese wall e a repressão ao insider trading. In: Revista do Direito Bancário e do Mercado de Capitais – RBD 47. Ano 13, n. 47, jan-mar/2010 LUCCHESI, Guilherme Brenner. O objeto de tutela penal no delito de insider trading. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 90, Ano 19, maio-junho, 2011. POSER, Norman S. Book review: insider trading and the stock Market. Disponível em: https://www.copyright.com/ccc/basicSearch.do?&operation=go&searchType=0&lastSearch=simple&all=on&titleOrStdNo=0042-6601 PRADO, Viviane Muller (Org.). Insider trading: dados e reflexões. Cadernos Direito GV, São Paulo, volume 7, n. 6, novembro de 2010. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/7852. PROENÇA, José Marcelo Martins. Insider Trading: regime do uso de informações privilegiadas no mercado de capitais. São Paulo: Quartier Latin, 2005. PROENÇA, José Marcelo Martins. Violação ao dever de informar no mercado de capitais – a manipulação de mercado e a prática do insider trading. Revista de Direito Mercantil, industrial, econômico e financeiro, São Paulo, volume 144, outubro-dezembro, 2006. TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial: teoria geral e direito societário. 3a Edição. São Paulo: Editora Atlas, 2011. WALD, Arnoldo (Org.). A evolução conjuntural e regulatória das sociedades anônimas e do mercado de valores mobiliários na última década. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. Ano 11, n. 41, jul-set, 2008.

223

VIII.

ASPECTOS GERAIS DAS OPERAÇÕES DE FUSÃO, INCORPORAÇÃO E

CISÃO DE SOCIEDADES

Leonardo Cocchieri Leite Chaves

SUMÁRIO. Introdução. 1. As operações societárias no ordenamento jurídico brasileiro. O

Código Civil e a Lei das S.A. 2. As operações societárias de fusão e incorporação e suas

características fundamentais 3. As diferenças entre as operações de fusão e incorporação de

sociedades 4. A operação de cisão de sociedades e suas características fundamentais 5. As

operações societárias e a formação de capital 6. Procedimento 7. Os direitos dos sócios e

acionistas nas operações societárias 8. O direito dos credores nas operações societárias 9. Fusão,

Incorporação e Cisão e os Grupos de Sociedades 10. Questões relevantes e conclusões.

Referências.

Introdução

As fusões, incorporações e cisões de sociedades representam instrumentos

jurídicos que possibilitam a concentração societária. Esses três institutos possuem

consequências relevantes em diversas esferas, não só no âmbito jurídico, mas também

nos campos da contabilidade, das finanças e da economia. Mesmo no universo do

direito, abrangem diferentes áreas, cada qual com preocupações e finalidades próprias.

No direito societário, percebe-se uma clara intenção do legislador em definir

expressamente os direitos de credores, sócios e acionistas em face das referidas

operações. Assim, buscou-se, no presente trabalho, uma análise detalhada dos

mecanismos de proteção a tais direitos.

Ademais, também serão tratados os aspectos procedimentais gerais das

operações de fusão, incorporação e cisão, bem como a formação de capital das

sociedades resultantes de determinada operação.

Por fim, buscou-se também relacionar as operações societárias em questão

com o fenômeno da consolidação dos grupos de sociedades, a fim de evidenciar a

importância do estudo das fusões, incorporações e cisões nessa nova realidade

empresarial.

224

1. As operações societárias no ordenamento jurídico brasileiro. O Código Civil e a

Lei das S.A.

As operações de incorporação, fusão e cisão societárias são reguladas, no

ordenamento jurídico brasileiro, por dois diplomas normativos. O Código Civil, em seus

artigos 1.116 a 1.122, estabelece o regime jurídico geral incidente sobre operações dessa

espécie. A Lei 6.404/76 (LSA), por sua vez, define diretrizes específicas a serem

observadas em operações envolvendo sociedades por ações.

Grande parte da doutrina defende a aplicação subsidiária da LSA às demais

sociedades no que se refere às operações de incorporação, fusão e cisão, tendo em vista

a total omissão do legislador, no Código Civil, no tocante a aspectos societários

essenciais relacionados à matéria. Exemplo mais relevante dessa omissão é a ausência

completa de regulamentação da cisão de sociedades no âmbito das disposições

civilistas. Assim, defende a doutrina que essa lacuna deve ser suprida pelo tratamento

específico dado ao tema pela LSA.

O aludido posicionamento de regulação subsidiária pela LSA se respalda

principalmente no fato deste diploma ter regido as operações societárias em questão

antes da promulgação do novo Código Civil, e por possuir dispositivos que, de forma

expressa, transcendem a esfera das sociedades por ações. Partindo de tal concepção, é

possível compreender o sistema normativo incidente nas operações societárias do

seguinte modo: i) O Código Civil estabelece as disposições gerais atinentes às

operações de fusão e incorporação de sociedades, as quais podem ser complementadas,

eventualmente, pela LSA; ii) A operação de cisão de sociedades é regulamentada pela

LSA em relação a quaisquer tipos de sociedade; iii) A LSA estabelece a

regulamentação específica em operações que envolvam sociedades por ações.

Confira-se o entendimento de Ian Muniz, em importante obra sobre o tema:

“Uma leitura cuidadosa dos artigos seguintes da Lei das S.A. revela que ela regulamentava tais operações (societárias) de forma abrangente, não cuidando apenas das operações pertinentes às sociedades anônimas. (...) Considerando que a regulamentação da matéria pelo Código Civil é falha e incompleta em muitos aspectos, como, por exemplo, quando silencia quanto às cisões, os dispositivos da Lei das S.A. continuarão sendo aplicáveis de forma supletiva, complementar e extensiva, naquilo que não conflitarem com as normas do Código Civil, inclusive quanto às sociedades simples.”664

664 MUNIZ, Ian. Fusões e Aquisições – Aspectos Fiscais e Societários. 2ª ed. Ed. Quartier Latin. 2011, p. 92.

225

2. As operações societárias de fusão e incorporação e suas características fundamentais

As operações de fusão e incorporação de sociedades têm, como finalidade

precípua, a compenetração societária. Em outros termos, é possível perceber que, em

todas elas, está manifesto o fenômeno da concentração empresarial, por meio do qual

uma ou mais sociedades transferem seu patrimônio, ou parte dele, a outra sociedade.

Esta, por sua vez, sucede aquela ou aquelas em todos os direitos e obrigações.

No entanto, não são todas as formas de compenetração societária que se

enquadram nos conceitos de fusão e incorporação. Waldirio Bulgarelli define as

referidas operações societárias como “institutos de direito societário, pelos quais, duas

ou mais sociedades -, uma das quais pelo menos se extinguindo - unificam seus

patrimônios na titularidade de um único sujeito coletivo que agrupa os sócios das

respectivas sociedades.” 665

A partir da concepção de Bulgarelli, é possível identificar as três características

fundamentais das fusões e incorporações. São elas: i) a transmissão patrimonial; ii) o

ingresso dos sócios das sociedades dissolvidas, diretamente, em nova sociedade ou na

sociedade subsistente; iii) a extinção de ao menos uma das participantes.

A transmissão patrimonial verificada nas operações societárias de fusão e

incorporação é completa. Uma vez consumadas, levam à sucessão universal da

sociedade extinta pela sociedade sucessora em todos os direitos e obrigações.

Premissa essencial de tais operações é a ausência do processo de liquidação

antes que haja a transferência efetiva do acervo líquido da sociedade extinta à sociedade

sucessora. A extinção da sociedade incorporada ou fundida não se dá por sua

dissolução, ou seja, não há partilha de seus ativos entre os sócios. Tais ativos se

transferem integralmente à incorporadora ou à sociedade resultante da fusão. Ademais,

não há liquidação de obrigações e de débitos previamente à extinção, pois as

obrigações da sociedade sucedida passam à sucessora no estado contratual e

extracontratual em que se encontravam no momento da consumação do negócio.666

O principal efeito relacionado à transmissão patrimonial, portanto, é o aumento

de capital da sociedade sucessora, nos casos de incorporação, e a constituição do

patrimônio da nova sociedade, no que se refere às operações de fusão.

665 BULGARELLI, Waldirio. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. p. 52 666 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 4. Tomo I. p. 252

226

Além da transmissão patrimonial, outra característica essencial das fusões e

incorporações é a integração dos antigos sócios da sociedade extinta na sociedade

sucessora. Quando realizadas as operações em questão, não há a prévia repartição do

patrimônio da sociedade extinta entre seus sócios, nos termos dos artigos 206 e

seguintes da LSA (processo de liquidação). Há, na verdade, uma partilha indireta desse

patrimônio líquido em favor destes sócios. Explica-se.

A extinção da sociedade incorporada ou fundida tem como conseqüência a

entrega de seus ativos à sociedade sucessora em face da subscrição de ações desta em

favor dos sócios e acionistas daquela. Desse modo, eles passam a integrar o quadro

acionário da incorporadora ou da sociedade resultante da fusão, na proporção de sua

participação na sociedade extinta. Não se trata, portanto, de compra e venda ou de

cessão de direitos. Conceitualmente, trata-se de ato de contribuição para o capital

social.

Nesse sentido, Modesto Carvalhosa, no tocante às incorporações societárias,

assevera que:

“Ocorre que a incorporação, que se efetiva com a subscrição do capital da incorporadora com o patrimônio líquido da incorporada, não constitui nem compra e venda, nem alienação sui generis. Isto porque a transferência do patrimônio de uma para outra sociedade dá-se à título de pagamento das ações subscritas pela incorporada a favor de seus sócios ou acionistas. E, com efeito, a vontade da sociedade que será incorporada não é de alienar, permutar ou vender o seu patrimônio, mas de subscrever com ele o capital de outra sociedade.” 667

E, nessa mesma linha, identifica que ocorre o mesmo nas operações de fusão:

“A transferência dos patrimônios das sociedades fundidas dá-se a título de pagamento das ações subscritas pelos sócios ou acionistas daquelas. A vontade das sociedades fundidas não é de alienar, permutar, ou vender o seu patrimônio, mas de extinguir-se, fazendo com que seus sócios ou acionistas subscrevam com esse patrimônio o capital da nova sociedade. A entrega do patrimônio das sociedades fundidas, como forma de pagamento da subscrição feita pelos seus sócios ou acionistas na sociedade agora constituída, tem como efeito a transferência de propriedade sobre tal patrimônio, no valor correspondente ao da subscrição.” 668

Analisando conjuntamente as duas características até aqui expostas, tem-se que

a fusão e a incorporação configuram a “transmissão do patrimônio de uma sociedade a

667 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 257. 668 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 275

227

outra, mediante a aquisição da qualidade de sócio na sociedade que recebe o

patrimônio, dos sócios da sociedade que o transmite” 669

A última característica fundamental associada às operações em questão é a

necessária extinção de ao menos uma das sociedades nelas envolvidas. A própria

legislação estabelece, como modalidades de extinção societária direta, as fusões e

incorporações (art. 219, inciso II da LSA).

Conforme mencionado anteriormente, a extinção da sociedade incorporada ou

fundida não implica a liquidação. Assim, a ordem de fases verificada na incorporação e

fusão é a seguinte: i) a transmissão do patrimônio da sociedade sucedida para a

sociedade sucessora; a passagem dos sócios e acionistas de uma para outra sociedade; e,

somente então, iii) a extinção da sociedade transmitente.670

À luz das três características fundamentais comuns às fusões e incorporações, a

doutrina identifica hipóteses em que, por mais que haja concentração de sociedades ou

atuação concertada entre estas, não se evidencia, sob um prisma técnico, a ocorrência de

tais operações. São alguns exemplos:

1. A compra de uma sociedade por outra, sem que haja a extinção da primeira.

Ambas permanecem juridicamente independentes. Nesse caso, trata-se de fusão

(incorporação) econômica, mas não jurídica.

2. A aquisição do patrimônio de sociedades dissolvidas, como resultado da

liquidação delas. Isso porque os sócios da ou das sociedades dissolvidas receberão o

preço pago como quota de liquidação, mas não tomarão parte na sociedade compradora.

3. A não transmissão global do patrimônio das sociedades fundidas ou

incorporadas, mas somente seu ativo, total ou parcial.

Percebe-se que, em cada uma dessas hipóteses, está ausente ao menos uma das

características fundamentais das operações de fusão e incorporação. A doutrina é

uníssona no sentido de somente reconhecer essas últimas quando for possível aferir,

concretamente, a transmissão patrimonial completa, a integração dos sócios da

sociedade sucedida na sociedade sucessora e a extinção das sociedades fundidas e

incorporadas. Confira-se o entendimento de Bulgarelli a respeito:

“Os três elementos aqui apontados, ou seja, a transferência global do patrimônio, com sucessão universal, a congeminação direta dos acionistas das extintas em nova ou na que permanece, e a extinção de ao menos uma das sociedades participantes, considerando como essenciais, integram o conceito,

669 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit., p. 52 670 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., 252.

228

configurando o instituto em suas linhas básicas. Admitindo-se a falta de qualquer deles, ocorrerá a existência de uma figura afim, porém, não exatamente fusão ou incorporação, pois descaracterizada o instituto como construção unitária, de elaboração completa, alterando também as formalidades e atos que implicam e que justificam a sua existência.” 671

3. As diferenças entre as operações de fusão e incorporação de sociedades

Não obstante possuam características fundamentais comuns e a mesma

finalidade (a compenetração societária), as fusões e incorporações de sociedades

possuem estruturas jurídicas diversas. A incorporação consiste na operação pela qual

uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos

e obrigações (Art. 1.116 do CC e art. 227 da LSA). A fusão, por seu turno, se

consubstancia na operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar

sociedade nova, que, de igual modo, as sucederá nos direitos e obrigações (Art. 1.119

do CC e art. 228 da LSA).

Evidencia-se que a grande distinção entre as operações em questão reside no

fato de que, na fusão, o acervo líquido das sociedades fundidas constitui o capital de

uma nova sociedade, enquanto que, na incorporação, o patrimônio da(s) sociedade(s)

incorporada(s) será agregado, integralmente, ao capital da incorporadora. É nesse

aspecto, inclusive, que a incorporação, do ponto de vista operacional, se mostra mais

vantajosa do que a fusão. Tendo em vista que a lei estabelece que a sociedade resultante

da fusão deve ser uma nova pessoa jurídica, esta tem de ser regularizada perante a Junta

Comercial e aos diversos cadastros fiscais, o que demanda tempo, durante o qual a nova

sociedade não pode realizar nenhum negócio regular. Ademais, como as sociedades

participantes da fusão deixam de existir, a empresa fica simplesmente paralisada. Por

esse motivo, é muito rara a ocorrência de operações de fusão no mundo empresarial.

Outra grande diferença entre fusões e incorporações relaciona-se às partes

envolvidas na operação. Na incorporação, são partes a sociedade que houver de ser

incorporada e a incorporadora. Quem subscreve o aumento do capital dessa última é a

própria sociedade cujo patrimônio líquido será incorporado.672 Já na fusão, as partes

são sucessivas. Inicialmente, as sociedades que serão fundidas pactuam acerca das

condições da operação e dispõem expressamente que com seus patrimônios líquidos

constituirão nova sociedade. Superada essa fase preliminar, os sócios ou acionistas das

671 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit. p. 67 672 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 270.

229

sociedades extintas tornam-se partes sucessoras destas e, com o acervo líquido de cada

uma delas, constituem a sociedade resultante da fusão. Explica Modesto Carvalhosa:

“Há, portanto, uma inversão na estrutura do negócio jurídico, se comparado à incorporação, de um lado, e à fusão de outro. Na incorporação, a sociedade que houver de ser incorporada subscreve o capital da incorporadora em nome próprio, mas em favor dos seus sócios ou acionistas. Na fusão, os sócios ou acionistas constituem diretamente a nova sociedade, subscrevendo o respectivo capital com os bens e direitos da sociedade de que eram sócios. Assim, na incorporação, a pessoa jurídica da incorporada atua em benefício de outras pessoas jurídicas ou físicas, que serão titulares de seu capital. Na fusão, as pessoas titulares do capital das sociedades envolvidas atuam em benefício próprio, com a aferição ao capital da nova sociedade do patrimônio líquido da sociedade de cujo capital participavam.” 673

Em síntese, nas operações de incorporação, é em nome e por meio da própria

sociedade incorporada que ocorre a subscrição de ações da sociedade incorporadora,

cujo pagamento se dá pela transferência do patrimônio daquela para esta. Nas fusões, o

que se observa é a subscrição das ações da nova sociedade pelos próprios sócios ou

acionistas das sociedades fundidas. Após a aprovação da operação de fusão pela

assembléia de cada uma das sociedades participantes, eles as sucedem com a finalidade

de constituírem a nova pessoa jurídica. Em ambos os casos, há “uma transferência de

caráter real, embora indireta, do patrimônio das sociedades envolvidas a favor de seus

sócios e acionistas.” 674

Apesar das diferenças entre fusão e incorporação de sociedades, resta nítido

que ambas as operações estão vinculadas a um mesmo objetivo, que é a concentração

empresarial. As cisões de sociedades também engendram concentração societária, mas

sob um prisma diferente das operações até aqui analisadas, como se verá a seguir.

4. A operação de cisão de sociedades e suas características fundamentais

Prescreve o artigo 229 da LSA que a cisão é “a operação pela qual a

companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades,

constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se

houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a

versão.” Percebe-se, pela própria definição legal, que as operações de cisão societária

configuram fusões ou incorporações do ponto de vista inverso. A sociedade cindida tem

o seu capital fracionado, e não somado como nas fusões, para a constituição de duas ou

673 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 271. 674 Idem

230

mais sociedades. Em outros termos, desdobra-se o capital da cindida para a formação ou

o aumento do capital de sociedade nova ou existente.

Assim como nas operações de fusão e incorporação, na cisão de sociedades a

transferência de parcelas do patrimônio da sociedade cindida para sociedades novas ou

já existentes dá-se a título de pagamento das ações ou das quotas subscritas por seus

sócios ou acionistas.

No entanto, a peculiaridade que envolve as operações de cisão societária reside

no fato de que a sociedade cindida pode ou não se extinguir após a transferência de

patrimônio à sociedade ou às sociedades sucessoras. Isso porque essa transferência

pode ser completa, caso em que, de fato, se extingue, ou parcial, quando se observa

apenas a transmissão de parcela do seu patrimônio. Desse modo, são duas as espécies

de cisão de sociedades, quais sejam, a cisão total e a cisão parcial.

Na cisão total, ocorre a transferência de todo o patrimônio da sociedade

cindida para duas ou mais sociedades, já existentes ou constituídas para esse fim.

Ressalte-se, portanto, que para ocorrer essa espécie de cisão, deve haver,

necessariamente, duas ou mais sociedades beneficiárias da transmissão patrimonial.

Como o próprio nome do instituto já diz, a cisão pressupõe divisão do patrimônio da

sociedade cindida. Tendo em vista que, em face da transferência completa de capital,

essa última deixa de existir, tem de haver no mínimo duas sociedades a que se destinam

as parcelas desse capital. Tais sociedades, por sua vez, podem ser já existentes ou

constituídas a partir do patrimônio recebido na operação.

Já na cisão parcial, a transmissão patrimonial decorrente da operação tem

como requisito a existência de ao menos uma sociedade sucessora. Nessa espécie de

cisão, a sociedade cindida não se extingue, haja vista que transfere apenas parcela de

seu acervo líquido. E é justamente essa possibilidade de permanência da sociedade

cindida que diferencia a estrutura da cisão das demais modalidades de operação

societária. A cisão parcial tornou-se um instrumento de organização e reestruturação

muito vantajoso do ponto de vista operacional. O desmembramento de capital de uma

determinada sociedade para a criação de outras sociedades possibilita maior

especialização das atividades empresariais por parte dessas últimas, sem que haja a

perda do controle acionário da sociedade “mãe” sobre elas. Inclusive, é esta uma das

formas de se alcançar a formação de holdings.

Bulgarelli, com base na obra de Champaud, analisa do seguinte modo as

possibilidades de cisão societária:

231

“a) A cisão que considera o tipo mais simples e puro de divisão de sociedades, aquele que resulta na constituição de duas ou mais sociedades novas, pela divisão do ativo de uma sociedade preexistente – havendo, portanto, sempre no mínimo três participantes – e se extingue. b) A cisão-absorção, em que uma sociedade, repartindo o seu patrimônio entre duas ou mais sociedades preexistentes, desaparece. c) “falsa cisão”, ou o “apport partiel d’actif”, também chamada de cisão parcial ou fusão parcial, em que a sociedade transfere uma parte do seu ativo ou patrimônio a outra, permanecendo. Estaria, neste caso, a “scission-holding”, decorrente da repartição de seus bens, por uma sociedade, entre duas ou mais sociedades constituídas por ela para esse fim, subsistindo como sociedade “holding”.” 675

Preceitua o § 3º do artigo 229 da LSA: “A cisão com versão de parcela de

patrimônio em sociedade já existente obedecerá às disposições sobre incorporação

(art. 227).”

Conforme antes mencionado, a cisão constitui uma incorporação às avessas.

Desse modo, quando há a transferência de parcela do patrimônio da sociedade cindida a

sociedades já existentes, ocorre a agregação desses ativos ao capital dessas últimas,

assim como se dá nas incorporações societárias. É por essa razão, portanto, que o

legislador, corretamente, determinou a aplicação dos dispositivos relativos à

incorporação às cisões com versão patrimonial a sociedades já existentes.

Percebe-se, então, que a cisão possui grande semelhança com as operações de

fusão e incorporação em muitos aspectos. No entanto, difere justamente por se tratar de

um desmembramento ou desagregação de patrimônio, ao invés de soma ou agregação

deste, e por possibilitar a transmissão parcial do acervo líquido da sociedade cindida, a

qual não deve, necessariamente, se extinguir.

Destarte, são três as fases até a consumação das operações de cisão societária:

a transmissão de parcelas de patrimônio da sociedade cindida a favor de sociedades

novas ou existentes; a migração de todos os sócios ou acionistas da sociedade cindida

para as sociedades beneficiárias, sem embargo de se manterem também sócios ou

acionistas naquela sociedade cindida que permanecer com parte de seu patrimônio após

a cisão; e, finalmente a extinção ou não da sociedade cindida.676

5. As operações societárias e a formação de capital

675 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit. p. 58 676 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 288

232

Como visto anteriormente, característica fundamental das operações de fusão,

incorporação e cisão é a transferência de capital da sociedade sucedida à sociedade

sucessora. Desse modo, tais operações, em regra, têm como conseqüência o aumento de

capital social da pessoa jurídica receptora do capital transferido. Esta, por sua vez, como

contrapartida a este aumento de capital, emite ações ou quotas em favor dos sócios ou

acionistas da sociedade fundida, incorporada ou cindida, em substituição à participação

societária extinta pela redução ou perda completa do patrimônio da sociedade sucedida.

Ressalte-se que “o número de ações do acervo líquido fundido, incorporado ou

cindido a ser recebido pelos sócios ou acionistas da sociedade receptora deverá

obedecer a uma relação de troca, de forma que o percentual de cada acionista ou

quotista na sucessora guarde proporção com o patrimônio contribuído.” 677

À luz desses conceitos basilares, é possível compreender a determinação

constante do artigo 226 da LSA, o qual preceitua que as operações societárias somente

poderão ser efetivadas nas condições em que foram negociadas e aprovadas em

assembléia se os peritos reconhecerem que o valor do patrimônio líquido a ser vertido

para a formação de capital social é, ao menos, igual ao montante do capital a realizar.

Com esse dispositivo, o legislador busca evitar que o patrimônio líquido

fundido, incorporado ou cindido seja objeto de realização como capital social por valor

superior ao real, prejudicando assim credores legítimos. Isso porque estes têm, no

próprio patrimônio da sociedade, a garantia de seus créditos, principalmente quando os

sócios ou acionistas desta possuírem responsabilidade limitada. Desse modo, verifica-se

que o incremento patrimonial verificado deve, necessariamente, ser integralizado por

meio da transferência à sociedade sucessora do capital da sociedade sucedida.

Os parágrafos 1º e 2º do referido artigo 226, por seu turno, tratam de hipóteses

em que uma das sociedades envolvidas na operação detenha a totalidade das ações ou

quotas das demais sociedades.

6. Procedimento

O procedimento a ser adotado nas operações societárias depende do tipo de

sociedade ou de sociedades envolvidas. Como implicam a alteração da própria estrutura

societária, as incorporações, fusões e cisões devem ser aprovadas, em regra, pelas

assembléias das respectivas sociedades.

677 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 98

233

Nas sociedades anônimas, quaisquer das operações societárias devem ser

aprovadas por quorum especial, constaste do artigo 136 da LSA. Já nas sociedades

limitadas, essa aprovação deve se dar em assembleia, nos termos do artigo 1.072 do CC.

O protocolo é o instrumento firmado pelos órgãos de administração ou pelos

sócios da sociedade interessada em que constam, de forma ampla e detalhada, as

condições das operações societárias a serem submetidas à aprovação da assembléia. O

artigo 224 da LSA traz, em seus incisos, todos os aspectos que devem ser tratados na

redação do protocolo. De forma geral, este trata das três características fundamentais

inerentes às operações societárias, quais sejam, a transmissão patrimonial (a dimensão

do aumento ou redução de capital), a participação dos sócios na sociedade sucessora

(novo regime acionário, valor das ações, etc.) e a eventual extinção da sociedade

sucedida.

A doutrina discute a possibilidade de equiparação do protocolo à figura do

contrato preliminar, previsto no art. 462 do CC. O entendimento predominante é de que

esta não prevalece, tendo em vista que o contrato preliminar pressupõe que as

obrigações ali assumidas sejam eficazes e exigíveis, enquanto que o protocolo é

destituído de qualquer eficácia jurídica, salvo a obrigação de a administração

encaminhar o documento para a apreciação dos sócios ou acionistas das sociedades

interessadas.678

A justificação é o segundo instrumento que deve ser aprovado pelas

assembléias das sociedades envolvidas na operação para que esta se concretize. Tal

instrumento deverá expor, nos termos do artigo 225 da LSA, os motivos ou fins da

operação, e os interesses da companhia na sua realização. Ademais, deixará claro quais

serão os valores de reembolso das ações nos casos de direito de retirada, qual será a

composição societária na sociedade sucessora, quais as ações que os acionistas

preferenciais receberão e as eventuais razões para a modificação de seus direitos.

Assim, “ao passo que o protocolo constitui um documento de natureza mais técnica,

que visa a detalhar com maior riqueza de informações a operação de reorganização, a

justificação é uma espécie de exposição de motivos a ser apresentada pelos órgãos de

administração aos sócios ou acionistas.” 679

Importante aspecto procedimental relacionado a quaisquer das operações

societárias é a auditoria (due diligence). Esta compreende o dever do administrador ou

678 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 137 679 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 161

234

controlador da sociedade em realizar as análises e atos necessários para a verificação

das da regularidade e veracidade das demonstrações contábeis e investigação dos

passivos das demais sociedades envolvidas na operação. O administrador de uma

sociedade empresária que leva adiante qualquer operação societária sem a devida

verificação da regularidade da outra sociedade envolvida não cumpre seu dever de

diligência e, e responde, assim, pelos prejuízos causados aos sócios e/ou acionistas. 680

7. Os direitos dos sócios e acionistas nas operações societárias

As operações societárias afetam substancialmente a estrutura jurídica da

sociedade, assim como as relações entre ela e seus sócios. Com efeito, a característica

essencial dessas espécies de operação “não é o de criar um vínculo jurídico entre as

sociedades e terceiros ou entre sociedades, mas de determinar uma nova estrutura

interna do ente ou nos entes que participam, um novo modo de ser da corporação. E o

efeito do negócio jurídico corporativo não se produz sobre as relações externas do

ente, mas forma-se e reage sobre a sua estrutura.”681

Após as operações de fusão, incorporação ou cisão, a sociedade sucedida é

extinta ou tem sua estrutura modificada pela perda de capital. Nas sociedades

sucessoras, é possível observar mudanças de diversas ordens em relação ao ambiente

societário anterior. É provável que haja alterações no risco do negócio, na composição

de participação entre os sócios ou acionistas e na expectativa de fluxo de dividendos.

Assim, é plenamente possível que os sócios ou acionistas da sociedade a ser

incorporada, fundida ou cindida não concordem com os padrões e as condições das

operações em curso.

Em outras hipóteses, ainda, pode-se evidenciar o caráter abusivo e fraudulento

das operações societárias conduzidas pelo controlador da sociedade. Nesses casos, não

há somente discordância em relação às operações, mas ocorre lesão direta aos direitos

dos acionistas e sócios.

Em face de tais circunstâncias, a lei estabelece expressamente os direitos dos

acionistas e sócios (principalmente minoritários) no tocante às operações societárias. É

possível dividi-los em dois grupos: i) o direito de recesso (retirada); e ii) o direito de

anulação da operação societária e responsabilização do controlador.

680 COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Empresarial. V. 2., p. 681 BULGARELLI, Waldirio. Ob. cit. p. 89

235

7.1 O direito de recesso

As disposições normativas relativas ao direito de recesso nos casos de

operações societárias encontram-se nos artigos 137 e 223, § 4º, da LSA, e artigo 1.077

do CC. Cada um desses dispositivos trata de hipóteses particulares de direito de recesso,

entendendo este como o direito de reembolso do valor das ações aos acionistas

dissidentes de deliberação da assembléia geral (art. 45 da LSA).

Primeiramente, vejamos o § 4º do artigo 223 da LSA, in verbis:

“Art. 223. A incorporação, fusão ou cisão podem ser operadas entre sociedades de tipos iguais ou diferentes e deverão ser deliberadas na forma prevista para a alteração dos respectivos estatutos ou contratos sociais.

§ 3º Se a incorporação, fusão ou cisão envolverem companhia aberta, as sociedades que a sucederem serão também abertas, devendo obter o respectivo registro e, se for o caso, promover a admissão de negociação das novas ações no mercado secundário, no prazo máximo de cento e vinte dias, contados da data da assembléia geral que aprovou a operação, observando as normas pertinentes baixadas pela Comissão de Valores Mobiliários.

§ 4º O descumprimento do previsto no parágrafo anterior dará ao

acionista direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor

das suas ações (art. 45), nos trinta dias seguintes ao término do prazo nele

referido, observado o disposto nos §§ 1º e 4º do art. 137.”

Nos casos abarcados por esse dispositivo, o exercício do direito de recesso não

dependerá de qualquer outro requisito que não o da manifestação do sócio ou acionista

no prazo de trinta dias, contados da aprovação da publicação da ata que aprovar o

protocolo ou justificação. Isso porque a causa da retirada, em tal hipótese, não é a

incorporação, fusão ou cisão, mas o fato de a sociedade sucessora não ser companhia

aberta. Trata-se, portanto, de direito pré-constituído, desde o momento da própria

aprovação das condições protocolares, onde já se encontra expressa a conversão da

companhia aberta em outra forma societária.

As demais possibilidades legais de direito de recesso no âmbito das operações

societárias têm sede no artigo 137 da LSA. Confira-se a redação deste dispositivo:

“Art. 137. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia, mediante reembolso do valor das suas ações (art. 45), observadas as seguintes normas: II - nos casos dos incisos IV e V do art. 136, não terá direito de retirada o titular de ação de espécie ou classe que tenha liquidez e dispersão no mercado, considerando-se haver:

236

a) liquidez, quando a espécie ou classe de ação, ou certificado que a represente, integre índice geral representativo de carteira de valores mobiliários admitido à negociação no mercado de valores mobiliários, no Brasil ou no exterior, definido pela Comissão de Valores Mobiliários; e b) dispersão, quando o acionista controlador, a sociedade controladora ou outras sociedades sob seu controle detiverem menos da metade da espécie ou classe de ação; III - no caso do inciso IX do art. 136, somente haverá direito de retirada se a cisão implicar: a) mudança do objeto social, salvo quando o patrimônio cindido for vertido para sociedade cuja atividade preponderante coincida com a decorrente do objeto social da sociedade cindida;” b) redução do dividendo obrigatório; ou c) participação em grupo de sociedades;”

Evidencia-se, a partir das disposições legais acima transcritas, que o legislador

estabeleceu diferenciação expressa entre o direito de retirada dos sócios e acionistas nos

casos de incorporação e fusão, de um lado, e de cisão, de outro.

Nos casos envolvendo operações de fusão e incorporação, o direito de retirada

dos sócios ou acionistas dissidentes é garantido, salvo as hipóteses em que haja,

cumulativamente, liquidez e dispersão das ações no mercado.

Interessante é a posição adotada pelo legislador, uma vez que concilia os

direitos dos acionistas e sócios com os interesses da sociedade. Ao impedir que o sócio

dissidente retire o capital por ele investido da sociedade nas hipóteses acima, minimiza-

se o risco de insucesso da operação, que poderia ocorrer se houvesse retirada de capital

em massa por estes sócios e acionistas. Ao mesmo tempo, não fere o direito de recesso,

haja vista que o garante, salvo em situações em que os seus titulares possam, facilmente,

recuperar seu investimento com a venda de suas ações no mercado.

Já nas cisões, o direito de recesso é mais restrito. Este só tem fundamento legal

nos casos de mudança de objeto social, redução do dividendo obrigatório e participação

em grupo de sociedades.

Questão controversa na doutrina diz respeito à aplicação às cisões das regras

relativas ao direito de recesso na esfera da incorporação quando aquelas engendrarem

versão de parcela de patrimônio em sociedade já existente, nos termos do § 3º do artigo

229 da LSA. De um lado, a doutrina se posiciona pela impossibilidade de tal aplicação,

tendo em vista o caráter restritivo das hipóteses elencadas no inciso III do art. 137 da

LSA. No entanto, esse posicionamento dá abertura para condutas abusivas por parte do

controlador. Ressalte-se a hipótese aventada por Ian Muniz:

237

“Imaginemos que um empresário pretenda que a sua controlada seja incorporada por um concorrente, em um processo de casamento empresarial, mas tema o exercício do recesso pelos minoritários da controlada. Suponhamos, ainda, que essa controlada, além dos ativos operacionais que são absorvidos pelo concorrente, possua uns poucos ativos (por exemplo, uma fazenda leiteira) que não são objeto do casamento. Poderia, então, tal empresário simplesmente cindir 98% do seu acervo líquido, que será absorvido pela empresa concorrente, enquanto permaneceria a fazenda leiteira equivalente a 2% do seu patrimônio, caracterizando-se, assim, uma operação que ninguém poderá dizer que é abusiva, mas que substancialmente nega aos minoritários um direito de recesso que estaria presente caso fosse uma incorporação pura.”682

Nessa perspectiva, Muniz entende que equiparação legal feita pelo § 3º do

artigo 229 é no sentido de que todas as conseqüências aplicáveis à incorporação

também alcancem as cisões em que há transferência patrimonial a sociedades já

existentes, tendo em vista a necessária proteção aos sócios e acionistas minoritários. A

doutrina majoritária tem adotado esse mesmo entendimento.

Quanto à legitimidade subjetiva, os parágrafos 1º e 2º do art. 137 esclarecem

que o direito de recesso pode ser exercido por qualquer acionista dissidente, ainda que

seja portador de ações preferenciais sem direito voto ou que não tenha comparecido à

assembléia que deliberou a operação de fusão, incorporação ou cisão. O prazo para o

exercício de tal direito é de trinta dias, sob pena de decadência (art. 137, § 4º, da LSA).

À luz da análise dos dispositivos legais que garantem e condicionam o direito

de retirada, impende ressaltar que, assim como qualquer outro direito, ele não é

absoluto. No que se refere às operações societárias, o exercício de tal direito pode

severamente limitar a capacidade do acionista controlador de deliberar sobre fusões,

incorporações ou cisões, visto que a obrigação de reembolsar o minoritário que resolva

se retirar pode inviabilizar financeiramente a sociedade.

Em face disso, a doutrina tem sido favorável à tese de que não pode o acionista

dissidente exercer o direito de recesso indiscriminadamente. Deve demonstrar,

motivadamente, que de alguma forma a deliberação da assembléia contraria seus

interesses legítimos. Nesse sentido, confira-se o entendimento de Wilson Campos

Batalha:

“Não basta ser dissidente. É mister provar legítimo interesse e o prejuízo resultante da deliberação assemblear. Não pode o preceito, norteado pelos propósitos mais elevados de proteger as minorias

682 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 314

238

contra as arbitrariedades da maioria, constituir-se em fonte de abusos e locupletamentos.” 683

7.1 O direito de anulação de deliberação abusiva acerca das operações societárias

As deliberações da assembléia que aprovaram operações societárias podem ser

anuladas pelos sócios ou acionistas quando houver abuso de poder pelo(s) acionista(s)

controlador(es). Além disso, uma vez comprovada a conduta abusiva, podem os sócios

ou acionistas prejudicados pleitear a responsabilização do controlador por seus atos. É o

que preceituam os artigos 117 e 286, sendo que o primeiro deles estabelece

expressamente que “a incorporação, fusão ou cisão de companhia, com o fim de obter,

para si ou para outrem, vantagem indevida, em prejuízo dos demais acionistas”

configura exercício abusivo de poder.

Destarte, também é um direito dos acionistas dissidentes nas operações

societárias a anulação destas, bem como o ressarcimento, pelo controlador, dos

prejuízos a eles causados em decorrência da incorporação, cisão ou fusão. Não é

necessário que haja violação do estatuto para que reste configurada a deliberação

abusiva. São passíveis de anulação todas as deliberações dos órgãos da sociedade que

não forem tomadas no interesse desta, mas no interesse pessoal ou exclusivo de

determinados sócios ou acionistas. No entanto, para que reste nítido o abuso, é

necessário que haja dolo, ou seja, que o controlador tenha praticado o ato

conscientemente com o objetivo de obter uma vantagem indevida para si.

8. O direito dos credores nas operações societárias

Questão de extrema relevância no tocante à extensão e às condições das

operações societárias diz respeito aos direitos dos credores das sociedades a serem

incorporadas, fundidas ou cindidas. Qual seria a melhor forma de garantir esses direitos

em face da profunda mudança de estrutura pela qual passam tais sociedades? Seria

razoável condicionar a realização de qualquer operação societária ao prévio

consentimento dos credores?

Com efeito, diante da concentração patrimonial decorrente das operações de

fusão e incorporação, poderia ocorrer que uma sociedade saudável e geradora de caixa

seja absorvida por uma sociedade doente, decadente e geradora de prejuízos, de tal

forma que, eventualmente, a junção das duas poderia acarretar uma “contaminação” da 683 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: Ed. Forense. Vol. 2. p. 263. 1977.

239

saúde da sociedade lucrativa.684 Por outro lado, nos casos de cisão, existe um

desmembramento do patrimônio líquido, o que, em certas hipóteses, poderia engendrar

prejuízos para os credores da sociedade.685

O legislador pátrio não condicionou a realização das operações societárias ao

prévio consentimento dos credores, mas concedeu a estes a faculdade de pleitear

judicialmente a anulação das referidas operações nos casos em que houver efetivo

prejuízo ao seu crédito ou às garantias a ele inerentes. É o que preceitua o artigo 1.222

do CC, sendo esta a regra para as sociedades em geral, exceto as sociedades por ações.

A LSA, também no tocante a essa temática, estabeleceu disposições

normativas diferentes em relação às incorporações e fusões, de um lado, e às cisões de

outro.

No tocante às operações de fusão e incorporação, a redação do artigo 232 da

LSA, que disciplina a matéria, é basicamente a mesma da do artigo 1.222 do CC,

facultando ao credor prejudicado pela operação o ingresso em juízo para anulá-la. Não

obstante, tanto no âmbito da LSA quanto no do CC, “será necessária a produção de

prova do prejuízo. O juiz deverá exercer prudente juízo em analisar os motivos do

credor descontente, de forma a definir se procede ou não o pedido de anulação da

operação de fusão ou cisão.” 686 Desse modo, “somente poderá o credor argüir prejuízo

quando há um dano por ele sofrido em seu direito de crédito, seja pela sua não

recepção integral pela incorporadora ou pela resultante da fusão, seja pela alteração

da natureza jurídica de tais créditos, seja ainda, e principalmente, pela alteração das

garantias sem o seu expresso consentimento.” 687

Destarte, o dano ou prejuízo, resta configurado pela possível ou concreta

diminuição do patrimônio do devedor representado pelo crédito agora junto à sociedade

sucessora. Esse é o entendimento de Modesto Carvalhosa. Segundo o autor, esse dano

pode ser efetivo ou potencial. Será efetivo quando a incorporadora ou fusionada não

reconhece o crédito, altera-lhe a categoria ou o seu valor, juros incidentes, prazo ou

modalidade de resgate. Será potencial quando altera as garantias que lastreiam o

crédito.688

Uma vez presente e comprovado o dano, e se o credor ingressou

tempestivamente em juízo, deverá o juiz declarar a anulação da operação societária. Os

684 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 177 685 Idem 686 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 179 687 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 313 688 CARVALHOSA, Modesto. Ob. cit., p. 314

240

efeitos de tal anulação compreendem o restabelecimento do status quo ante, ou seja, a

reposição da pessoa jurídica que contraiu dívida com o credor, não prevalecendo a

sucessão oriunda da operação anulada.

Importante consignar também que a anulação do negócio reorganizativo não

inibe o direito do credor de pleitear perdas e danos em face de eventual ilicitude

manifesta pela alteração das cláusulas ou das garantias de seu crédito.

Os parágrafos dos artigos 1.222 do CC e 232 da LSA dispõem sobre a

consignação da importância relativa aos créditos, sobre a iliquidez da dívida, e sobre a

eventual falência da sociedade sucessora.

Consignando-se a importância relativa ao crédito, aos juros incidentes e ás

custas processuais, restará prejudicada a anulação da operação pleiteada em juízo (§ 1º).

Sendo ilíquida a dívida, será facultado à sociedade sucessora garantir-lhe a execução, o

que suspenderá o processo de anulação (§ 2º). E, por fim, ocorrendo a falência da

sociedade sucessora, qualquer credor anterior à operação terá o direito de pedir a

separação dos patrimônios, de forma que haja duas ou mais massas falidas, cada uma

delas respondendo separadamente pelos créditos existentes anteriormente à publicação

da assembléia geral que deliberou sobre a operação (§ 3º).

As operações de cisão, por sua vez, possuem dois regimes legais distintos no

que se refere aos direitos dos credores. Em relação às sociedades em geral, aplica-se o

artigo 1.222 do CC, equiparando-se às fusões e incorporações. No entanto, quando as

sociedades cindidas forem sociedades por ações, aplica-se a norma especial constante

do artigo 233 da LSA.

O referido dispositivo estabelece a responsabilidade solidária de todas as

sociedades envolvidas na operação pelas obrigações e dívidas da sociedade cindida. Em

suma,

“o credor anterior à data de publicação da assembléia ou contrato social que deliberou a cisão poderá livremente escolher qual, dentre as sociedades envolvidas no processo de cisão, irá quitar o passivo, seja a sociedade cindida, sejam quaisquer das sociedades sucessoras.” 689

Entretanto, o parágrafo único do art. 233 da LSA prescreve que, nos atos de

cisão parcial, as assembléias poderão deliberar que as sociedades que absorverem

parcelas do patrimônio da companhia cindida serão responsáveis apenas pelas

obrigações que lhes forem transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia

689 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 182

241

cindida. Nesses casos, o legislador resguarda o direito dos credores de se opor a tal

estipulação, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de

noventa dias a contar da data da publicação dos atos de cisão.

Cumpre ressaltar que a oposição de que trata o parágrafo único do artigo 233

da LSA não equivale à possibilidade de anulação judicial da operação constante do

artigo 232 do mesmo diploma. A diferença reside no fato de que, nos casos de

incorporação ou fusão, a oposição do credor resulta em desfazimento da operação,

enquanto que, na cisão, apenas na manutenção da cláusula de solidariedade.

Questão que desafia a doutrina é a possibilidade de aplicação do artigo 232 da

LSA às cisões em que haja versão parcial do patrimônio em sociedade já existente, as

quais a própria legislação equipara às operações de fusão, nos termos do § 3º do artigo

229 dessa lei. Ressalte-se o entendimento de Ian Muniz acerca do tema:

“Talvez a única forma de reconciliar essa questão seria interpretar que a regra de proteção ao credor mediante solidariedade, prevista no art. 233 da Lei das S.A., somente vale quando a sociedade que absorver os créditos da sociedade cindida for uma sociedade nova, ao passo que, na hipótese em que a sociedade absorvedora do acervo líquido for uma sociedade preexistente, estaria havendo uma cisão seguida de incorporação e, nessa hipótese, prevaleceriam as regras aplicáveis às hipóteses de incorporação (art. 232 da Lei das S.A.).” 690

9. Fusão, Incorporação e Cisão e os Grupos de Sociedades

O fenômeno concentracionista, entendido como processo de redução dos

agentes econômicos em face da concentração empresarial, intensificou-se, em grande

escala, no século XX. A doutrina explica essa tendência com base em motivos diversos.

No entanto, é possível constatar como fatores determinantes desse processo a formação

de grandes blocos econômicos, a criação de institutos que visam a harmonizar o sistema

financeiro internacional (ex. FMI e Banco Mundial), e a globalização, por meio da qual

a circulação de bens, serviços, capitais e tecnologias alcançou dimensão mundial.

Do ponto de vista organizacional, verifica-se que somente as sociedades

empresárias que possuem formas estruturais dinâmicas e cada vez mais especializadas

são capazes de se sobressair num mercado extremamente integrado, tanto técnica

quanto geograficamente. Nesse sentido, se destacam as grandes empresas com

estruturas organizacionais maleáveis, sendo capazes de responder prontamente às

mudanças e vicissitudes do mercado globalizado.

690 MUNIZ, Ian. Ob. cit. p. 184

242

A doutrina divide o fenômeno concentracionista em duas fases, quais sejam, a

fase primária e a fase secundária.

A fase primária é caracterizada pelo crescimento interno das sociedades

empresárias. Nesse tipo de concentração, a sociedade utiliza suas próprias capacidades

financeiras, técnicas e comerciais para se expandir. Os instrumentos típicos dessa

modalidade de concentração são justamente as operações societárias, pelas quais são

absorvidas unidades empresariais, que perdem suas individualidades econômicas e

jurídicas.691 A partir desse modelo concentracionista foram constituídas as grandes

empresas monolíticas, que representavam verdadeiros impérios empresarias, como a

Standard Oil Company e a US Steel Corporation.692

Já a fase secundária está em plena consolidação. Ela é marcada pela superação

do modelo tradicional de organização empresarial. O crescimento interno excessivo das

sociedades, fator caracterizador da fase primária, chegou a um ponto tal que passou a

ser extremamente oneroso, tanto do ponto de vista organizacional, quanto operacional.

Eduardo Secchi Munhoz, com base na obra de Engrácia Antunes identifica três

espécies de limites ao crescimento interno das sociedades: i) limites financeiros; ii)

limites organizativos; e iii) limites legais. Os limites financeiros são decorrentes do

crescimento em grande escala de uma só pessoa jurídica, ou seja, expressam a

dificuldade em continuar a atividade lucrativa de forma eficiente em razão do vasto

incremento no volume de capital. Os limites organizativos dizem respeito à perda de

eficiência na gestão interna, pela grande dimensão da sociedade. Os limites jurídicos,

por fim, estão relacionados principalmente á legislação de defesa da concorrência, a

qual impede o crescimento empresarial desmedido, na medida em que este engendra a

possibilidade de abusos do poder econômico.

Os grupos de sociedades surgem como a principal alternativa para superar os

limites ao crescimento societário interno. Fator fundamental para o sucesso desse novo

modelo de organização empresarial foi o reconhecimento, pela ordem jurídica, da

possibilidade de participação de uma sociedade no capital de outra. Por meio desse tipo

de participação societária, não há mais a necessidade de as sociedades se incorporarem

ou se fundirem para poderem controlar ou influenciar as decisões estratégicas de outra

pessoa jurídica. Nesse sentido, a doutrina especializada identifica que:

691 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Contemporânea e Direito Societário. p. 90 692 Idem

243

“Opera-se, assim, em fins do século XIX, com a admissão da participação de uma sociedade no capital de outra, uma mudança da disciplina jurídica que revolucionaria o direito das sociedades. Embora haja outros tipos de vínculos entre sociedades, não há dúvida de que a participação no capital continua a ser o principal deles, tendo sido fundamental para o surgimento e expansão dos grupos, transformando-os na principal técnica jurídica de organização da empresa contemporânea.” 693

A partir dessa perspectiva, é possível evidenciar diversas vantagens do modelo

de grupos de sociedades em relação ao modelo de organização societária tradicional,

tanto do ponto de vista econômico quanto jurídico.

As vantagens econômicas decorrem, basicamente, da possibilidade de reunir

numa esfera empresarial vasta, com políticas comerciais, financeiras e administrativas

comuns, diversas unidades, que mantêm sua própria individualidade. Assim, tornam-se

mais viáveis econômica e operacionalmente as integrações, verticais e horizontais,

possibilitando maiores ganhos em economia de escala e escopo.

Do ponto de vista jurídico, a formação de grupos societários reduz o risco

empresarial à esfera de cada uma das sociedades integrantes, na medida em que estas

preservam sua autonomia jurídica e patrimonial. Em outros termos, diante da

preservação da personalidade jurídica de tais sociedades, eventuais problemas

financeiros ou econômicos envolvendo quaisquer delas não afetam diretamente o grupo

como um todo.

O que caracteriza os grupos de sociedades, portanto, é a diversidade jurídica e

a unidade econômica. Diversidade jurídica porque as sociedades que fazem parte dos

grupos societários preservam sua individualidade, e unidade econômica, na medida em

que essas sociedades estão sujeitas a uma mesma direção, que as vincula a um interesse

comum.

Destarte, tendo em vista a consolidação dos grupos societários como principal

técnica jurídica de organização da atividade empresarial contemporânea, não é possível

continuar compreendendo as operações societárias de fusão, incorporação e cisão como

meros instrumentos propiciadores de crescimento interno das sociedades. É necessário

que o estudo desses institutos societários tenha como pano de fundo essa nova realidade

empresarial, no sentido de readequar a esta as suas finalidades e os direitos por eles

protegidos.

A consolidação dos grupos de sociedades redefiniu a própria concepção de

empresa. A atividade empresarial desenvolvida em torno de uma sociedade monolítica

693 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Contemporânea e Direito Societário. p. 107.

244

foi superada pelo modelo de empresa plurissocietária. Desse modo, o universo em que

ocorrem quaisquer transações empresariais, incluindo-se aqui as operações societárias,

tornou-se mais amplo e extremamente mais complexo. Assim, as preocupações com a

transparência e com a regularidade de tais operações, a fim de que sejam protegidos os

direitos de sócios, acionistas e credores, devem ser ampliadas para alcançar não só as

pessoas jurídicas por elas afetadas direitamente, mas também os grupos de sociedades

de que fazem parte.

Nessa perspectiva, os mecanismos legais que garantem a responsabilidade dos

administradores/controladores e a possibilidade de anulação judicial de determinada

operação, bem como as exigências de publicidade e justificação dos negócios

reorganizativos, devem ser vistos e entendidos a partir do amplo espectro de sociedades

abarcado pelos grupos. Assim, a aferição da legitimidade e da legalidade das operações

societárias deve passar necessariamente pela análise das relações entre as sociedades

envolvidas na operação com os respectivos grupos que estas integram.

10. Questões relevantes e conclusões

Ao final de todas as análises feitas anteriormente, surgem alguns

questionamentos fundamentais: i) Garantindo-se o direito de recesso amplo, tanto aos

sócios da incorporadora quanto aos da incorporada, não se estará impedindo a própria

operação, pela possibilidade de uma retirada em massa?; ii) Garantindo-se o direito de

oposição aos credores, de forma ampla e abrangente, não se estará dificultado

excessivamente a efetivação das operações?; iii) Em que medida o estudo das operações

societárias pode contribuir para melhor compreender o fenômeno concentracionista,

numa realidade econômica marcada pela consolidação dos grupos societários?

Todas essas questões são muito discutidas pela doutrina, e as respostas

dependem da postura que se adote diante da extensão das garantias e direitos de sócios,

acionistas e credores em face de quaisquer das operações societárias. Além disso, diante

da nova realidade econômica relacionada à emergência e consolidação dos grupos de

sociedade, a compreensão de tais direitos e garantias deve ser ampliada para além da

mera análise das operações societárias em si, a fim de alcançar aspectos relacionados ao

poder de controle e à participação de sociedades no capital de outras pessoas jurídicas.

Não obstante, não é possível conceber os direitos e garantias de sócios,

acionistas e credores de forma tão ampla que gere uma insegurança tal que inviabilize a

concretização das operações societárias, haja vista que estas constituem importante

245

meio de fortalecimento da atividade empresarial e engendram inúmeras eficiências para

economia como um todo.

A complexidade das questões envolvendo as operações societárias foi

intensificada com a criação dos mecanismos legais que permitem a participação de

pessoas jurídicas no capital de outras instituições personificadas. Se por um lado essa

nova possibilidade de participação societária substituiu as operações de fusão, cisão e

incorporação em muitos casos, em outros ela pode gerar problemas de diversas ordens.

Quando os sócios de determinada sociedade também são pessoas jurídicas,

quaisquer processos de reorganização societária por que ela passe serão mais

complexos, tendo em vista os procedimentos de formação de vontade de tais pessoas

jurídicas e as eventuais oposições de interesse no âmbito destas. Nessas hipóteses, os

negócios reorganizativos, por envolverem uma vasta gama de agentes econômicos com

interesses diversos, devem ser conduzidos, ainda de forma mais contundente, com

transparência e observância estrita da “due diligence”.

Assim, questão fundamental ao estudo hodierno das operações societárias diz

respeito ao interesse social dos grupos de sociedade. O controle de uma sociedade por

outra leva a relevantes questionamentos. Há espaço para divergência de interesses entre

controladoras e controladas? Até que ponto o interesse da controladora deve

condicionar o interesse da controlada? Como é possível adaptar as teorias do interesse

social à nova realidade dos grupos societários?

As respostas a questões como essas ainda são objetos dissenso na comunidade

jurídica internacional. No entanto, o posicionamento que defende a sobreposição do

interesse do interesse da sociedade controlada ao interesse da sociedade controladora e

do respectivo grupo de sociedades de que fazem parte, garantindo-se aos acionistas

minoritários formas de compensação, tem ganhando mais força. Nesse sentido, ressalte-

se o entendimento do professor português José Estaca, citado por Pedro Ivan Hollanda:

“O Código de Sociedades Comerciais veio permitir, contudo, a sobreposição do interesse de grupo, dum grupo de sociedade, definido pela entidade dominante de grupo, ao interesse da sociedade subordinada, conforme dispõe o art. 503º. Este estatui que a sociedade directora tem o direito de dar à administração da sociedade subordinada instruções vinculantes (n. 1) e que tais instruções possam ser desvantajosas para esta, desde que sirvam os interesses da sociedade directora ou das outras sociedades do mesmo grupo (n.º 2), desde que sejam lícitas em si mesmas. Passando a sociedade subordinada a poder estar ao serviço do interesse da sociedade directora, e, indirectamente dos sócios desta, tal pode acarretar importantes conseqüências para os credores, administradores e restantes sócios da sociedade subordinada. Esta norma constitui uma importante excepção à regra geral de

246

que cada sociedade deve prosseguir o seu interesse próprio, uma vez que se admite que a sociedade dominante ou até outra sociedade (arts. 491º e 493° do C.S.C.) imponha à sociedade subordinada a prossecução do interesse daquela. O interesse da sociedade pode não coincidir com o interesse do grupo, quando este prevalecer sobre aquele, deve existir uma contrapartida que reponha um certo equilíbrio”.694

Aplicando esse entendimento ao âmbito das operações societárias, é possível

que determinada sociedade seja fundida, incorporada ou cindida, mesmo em situações a

ela desvantajosas, caso seja esse o interesse da sociedade controladora ou de seu grupo

societário. Em contextos como esse, os legisladores de alguns países estabeleceram

medidas de compensação aos sócios e acionistas minoritários pelos eventuais prejuízos,

sendo esse um meio de grande eficácia para conciliar interesses no âmbito dos grupos

de sociedades.

No Brasil, contudo, não existem previsões legais que garantam a referida

compensação. Esse, inclusive, consiste num dos fatores que inibem a consolidação dos

grupos no ambiente empresarial brasileiro. Desse modo, considerando o caráter de

proteção do direito societário em relação aos direitos dos sócios e acionistas

minoritários, especialmente no que se refere às operações societárias, seria de grande

relevância a incorporação no direito brasileiro das referidas medidas compensatórias,

não só para aumentar a segurança dos minoritários, mas também para melhor adequar

os interesses na esfera dos grupos de sociedades.

Destarte, ao final de toda a análise feita anteriormente, resta nítido que o

grande desafio do direito societário em face das fusões, incorporações e cisões de

sociedades reside na busca em conciliar a eficácia de tais operações com a proteção,

legítima e razoável, dos direitos dos respectivos sócios, acionistas e credores das

sociedades envolvidas.

Referências.

BATALHA, Wilson de Souza Campos. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. Rio de Janeiro: Ed. Forense. Vol. 2. 1977.

694 HOLLANDA. Pedro Ivan Vasconcelos. Os grupos societários como superação do modelo tradicional da sociedade comercial autônoma, independente e dotada de responsabilidade limitada. Tese (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná – Curitiba. 2008. p. 65.

247

BULGARELLI, Waldirio. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. 5ª ed. São Paulo: Ed. Atlas. 2000. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 4. Tomo I. Ed. Saraiva. 1998. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Empresarial. V. 2, 15ª Ed. São Paulo: Ed. Saraiva. 2011. MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Contemporânea e Direito Societário. 1ª ed. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira. 2002. MUNIZ, Ian. Fusões e Aquisições – Aspectos Fiscais e Societários. 2ª ed. Ed. Quartier Latin. 2011. HOLLANDA. Pedro Ivan Vasconcelos. Os grupos societários como superação do modelo tradicional da sociedade comercial autônoma, independente e dotada de responsabilidade limitada. Tese (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2008.