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CADERNO DE ENSAIOS Segundo V. 2, 2017

Segundo - Instituto Rio Branco CADERNO DE ENSAIOS Segundo Instituto Rio Branco Impresso no Brasil - 2017 Caderno de Ensaios / Instituto Rio Branco. – V. 2 (2017). – Brasília :

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CADERNO DE ENSAIOS

Segundo

V. 2, 2017

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EMENTA

O "Caderno de Ensaios" é uma publicação anual, editada pelo Instituto Rio Branco (IRBr).

Reúne trabalhos apresentados pelos alunos do Curso de Formação de Diplomatas dentro da

disciplina “Pensamento Diplomático Brasileiro”. Publicado desde 2015, o Caderno de Ensaios

tem divulgado artigos acadêmicos originais, elaborados na forma de ensaios, que contribuem

para a reflexão sobre os grandes temas das relações internacionais e o lugar do Brasil do mundo.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES

INSTITUTO RIO BRANCO

Diretor-Geral

Embaixador José Estanislau do Amaral Souza Neto

Diretor-Geral Adjunto

Ministro Sérgio Barreiros

de Santana Azevedo

Coordenador-Geral de Ensino

Conselheiro Marco Cesar Moura Daniel

Assistente

Conselheiro João Mauricio

Cabral de Mello

Assessor Técnico

Secretário Bruno de Lacerda Carrilho

Gabinete do Diretor-Geral

OC Henrique Madeira Garcia Alves

OC Carlos Alexandre Fernandes Considera

ADM Aida Maria Cueva

TAE Éveri Sirac Nogueira

Sra.Vanessa Souza Caldeira

Secretaria Acadêmica

OC Saide Maria Vianna Saboia

AC Tânia Marques Silva

AA Fernando Sérgio Rodrigues

AA Diego Batista Silva

Sr. Osmar Jorge Pires

Sra. Thais Regina da Costa

Secretaria Administrativa

OC Carlos Alexandre Fernandes

Considera

ATA Adriano César Santos Ribeiro

Biblioteca “Emb. João Guimarães Rosa”

BIB Marco Aurelio Borges de Paola

AC Maria de Fátima Wanderley de Melo

Setor de Administração Federal Sul, Quadra 5, Lotes 2/3,

CEP 70070-600, Brasília-DF, Brasil

+55 61 2030-9852 /9851

[email protected] / www.institutoriobranco.mre.gov.br

facebook.com/InstitutoRioBrancoOficial/

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CADERNO DE ENSAIOS

Segundo

Instituto Rio Branco

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Impresso no Brasil - 2017

Caderno de Ensaios / Instituto Rio Branco. – V. 2 (2017). – Brasília : Instituto Rio Branco, 2017 193 pp. Anual. ISSN 2526-5601 1. Relações Internacionais – Periódicos. 2. Brasil – Relações Exteriores – Periódicos. I. Brasil. Ministério das Relações Exteriores. II. Instituto Rio Branco.

CDU 327 (05)

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 6

PREFÁCIO .......................................................................................................................... 7

Isadora Loreto da Silveira

Quintino Bocaiúva entre a solidariedade americana e o interesse nacional:

A Questão de Palmas/Missões.........................................................................................18

Mariana Marshall Parra

Do idealismo ao desencanto:

Os discursos e a atuação diplomática de Salvador de Mendonça....................................39

Ana Flávia Jacintho Bonzanini

O Barão do Rio Branco e a Imprensa:

Instituto de Publicidade e Formação de Ideal de Política Externa .................................67

Micaela Finkielsztoyn

Relaciones bilaterales Argentina-Brasil en el primer centenario de independencia:

la Embajada de Rui Barbosa en Buenos Aires................................................................93

Lucas Cortez Rufino Magalhães

Araújo Castro:

Práticas Discursivas em prol do desenvolvimento........................................................116

Alexandre de Paula Oliveira

Ítalo Zappa - 90 anos...........................................................................................................................140

Arthur Cesar Lima Naylor

José Guilherme Merquior:

O pensamento diplomático e a diplomacia do pensamento do esgrimista liberal.........165

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APRESENTAÇÃO

É com satisfação que o Instituto Rio Branco publica o segundo número dos

Cadernos de Ensaios.

Essa publicação volta a reunir trabalhos apresentados pelos alunos do Curso de

Formação de Diplomatas dentro da disciplina “Pensamento Diplomático Brasileiro”,

cujo professor é o embaixador Tarcísio de Lima Ferreira Fernandes Costa. É dele a

seleção dos ensaios incluídos aqui, bem como o prefácio em que comenta breve e

individualmente os textos.

É duplo o objetivo perseguido pelo Caderno de Ensaios. Em primeiro lugar, dar

reconhecimento público e acadêmico aos alunos que se destacaram no âmbito de uma

matéria que se presta, como poucas, à elaboração de textos sob a forma clássica do

ensaio. Em segundo, oferecer ao público interessado nas relações internacionais, e mais

especificamente na reflexão sobre o lugar do Brasil no mundo, uma coletânea de alto

valor, frequentemente sobre temas pouco explorados.

Esse segundo volume terá, como o primeiro, tiragem limitada em papel, mas estará

disponível ao público na página do Instituto Rio Branco na internet

(www.institutoriobranco.mre.gov.br).

JEASN

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PREFÁCIO

O segundo número do Caderno de Ensaios reúne alguns dos melhores textos produzidos

pela Turma de 2015-2016 do Instituto Rio Branco na disciplina "Pensamento

Diplomático Brasileiro". Além da qualidade da pesquisa, os ensaios distinguem-se pela

originalidade. Nos trabalhos de Isadora Loreto da Silveira e de Mariana Marshall Parra,

a inovação passa pela escolha das personalidades analisadas: Quintino Bocaiúva e

Salvador de Mendonça, personalidades importantes do início da Primeira República que

não têm sido devidamente valorizadas pela historiografia. Já Ana Flávia Bonzanini,

Micaela Finkielsztoyn e Lucas Magalhães enfrentam bem o desafio de analisar aspectos

até os momentos pouco explorados do pensamento do Barão do Rio Branco, de Rui

Barbosa e de Araújo Castro. Ana Flávia atém-se aos escritos do Barão na imprensa,

enquanto Micaela faz uma exegese metodologicamente criativa do tratamento por Rui

do conceito de neutralidade e Lucas contextualiza com propriedade o tratamento por

Castro dos temas de comércio e meio-ambiente. Os nomes discutidos por Alexandre

Oliveira e por Arthur Naylor são icônicos e devidamente estudados: Ítalo Zappa e José

Guilherme Merquior. Mas merecem dos ensaístas perfis muito bem delineados com

uma abrangência sem par.

Em “Quintino Bocaiúva entre a solidariedade americana e o interesse nacional: a

questão de Palmas/Missões” e “Do idealismo ao desencanto: os discursos e a atuação

diplomática de Salvador de Mendonça”, Isadora e Mariana demonstram que Bocaiúva e

Mendonça, longe de serem idealistas ingênuos que sacrificaram o interesse nacional ao

republicanismo romântico do final do século XIX, foram os efetivos precursores do

pan-americanismo que se consolidou como principal eixo da política externa brasileira

durante a gestão de Rio Branco.

Isadora inicia seu artigo sobre Quintino Bocaiúva com um panorama da geração

de 1870 e do “bando de ideias novas” por ela engendrado, com especial ênfase no

trabalho de Ângela Alonso sobre o tema. Lá identifica o liberalismo, o republicanismo e

o abolicionismo como os principais ideais que nortearam a trajetória pública de

Quintino, desde sua atuação jornalística e literária até a militância política como um dos

próceres do movimento republicano em sua vertente evolucionista, que pregava o

advento gradual da República por meio de uma campanha doutrinária na imprensa em

lugar do levante armado. No pensamento de Bocaiúva e de muitos de seus colegas

republicanos, os Estados Unidos e a Argentina, como principais modelos para o

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republicanismo liberal que defendiam, inspiravam uma nova linha de política externa,

fundada na solidariedade continental, em contraposição ao europeísmo e ao

intervencionismo platino que teriam predominado no período imperial.

Antes de discutir a participação de Quintino na questão de Palmas/Missões, pela

qual é mais lembrada (e criticado), a autora discorre sobre outros marcos importantes da

sua curta atuação como primeiro Ministro das Relações Exteriores do Brasil

republicano, no período de 1889 a 1891: o amplo reconhecimento das potências

estrangeiras ao novo regime (com apenas algumas exceções); a defesa de ideais pan-

americanos como a solidariedade continental, a arbitragem obrigatória como mecanismo

de resolução de controvérsias e a abolição da conquista, na I Conferência Internacional

Americana; e a celebração do Acordo Aduaneiro de 1891 com os Estados Unidos –

tendo sempre como seu principal colaborador em todas essas iniciativas o então enviado

extraordinário brasileiro em Washington, Salvador de Mendonça.

Isadora passa, em seguida, ao tema central de seu artigo: o Tratado de

Montevidéu, por meio do qual Quintino Bocaiúva pretendeu solucionar a disputa com a

Argentina em torno do território de Missões/Palmas, por meio de uma divisão

salomônica. O acordo, que pretendia assinalar o início de uma nova fase de amizade e

cooperação nas relações com o vizinho platino, foi recebido como uma vitória em

Buenos Aires, mas terminou rejeitado pela Câmara dos Deputados no Brasil, onde foi

visto como uma ignominiosa entrega de território brasileiro à Argentina. A autora

argumenta, todavia, que a percepção posterior do “fracasso” de Quintino à luz do

triunfo de Rio Branco no posterior laudo arbitral do Presidente Cleveland é equivocada,

pois o recurso ao uti possidetis na ocasião não era seguro e poderia levar até mesmo a

um casus belli com a Argentina. Além disso, a aprovação do acordo tampouco foi uma

decisão isolada de Quintino, mas contou com a adesão consensual de todo o Ministério

– inclusive de Rui Barbosa, que permaneceu até o final um de seus principais

defensores.

O artigo de Mariana complementa a visão do período ao abordar o papel de

Salvador de Mendonça na legação brasileira em Washington durante a transição para a

República. Como Quintino, Mendonça também foi um dos luminares da geração de

1870 e, como ele, militou nas fileiras do republicanismo liberal de linha evolucionista,

com admiração pelos Estados Unidos. Diferentemente de Bocaiúva, entretanto,

Salvador de Mendonça deixou o país em 1875, quando ingressou na carreira

diplomática e foi designado cônsul brasileiro em Baltimore. Passou, posteriormente, às

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funções de cônsul-geral em Nova York e enviado extraordinário e ministro

plenipotenciário em Washington, onde permanece até 1898, quando sua carreira

diplomática foi interrompida com a recusa do Congresso Nacional à sua transferência

para a legação em Lisboa.

Mariana analisa a atuação diplomática de Mendonça em dois momentos

principais: a convergência com os EUA nos primeiros anos da República e as gestões

junto ao Governo norte-americano durante a Revolta da Armada, em 1893-94. Em

relação ao primeiro momento, a autora destaca a “alteração radical no discurso” quando

Mendonça assumiu a chefia da delegação brasileira à I Conferência Internacional

Americana, tratando de dar “interpretação republicana” às instruções originalmente

recebidas, com a defesa da arbitragem obrigatória e da abolição da conquista. Discorre,

em seguida, sobre o papel do plenipotenciário na obtenção do reconhecimento do

governo norte-americano ao novo regime, em janeiro de 1890, e na assinatura do

Acordo Aduaneiro de 1891 (chamado “Blaine-Mendonça”), que, embora rechaçado

alguns anos depois, representou a efetiva consolidação da nova política americanista.

No segundo momento, Mariana trata do aspecto mais polêmico da atuação de

Salvador de Mendonça em Washington: as gestões que resultaram na intervenção da

marinha americana durante a Revolta da Armada. Apesar da inclinação original dos

EUA no sentido de acompanharem as potências europeias no reconhecimento do estado

de beligerância dos revoltosos e optarem pela neutralidade diante do conflito, o

plenipotenciário brasileiro conseguiu influenciar o Governo norte-americano no sentido

de desconhecer o bloqueio decretado pela armada brasileira e ameaçar a intervenção

militar em defesa do Rio de Janeiro, esvaziando o potencial ofensivo dos rebeldes. O

papel de Mendonça foi decisivo na resolução do conflito em favor do Governo, mas

também ensejou duras críticas por parte daqueles que, como Joaquim Nabuco,

considerou a intervenção norte-americana no conflito um sacrifício da soberania

nacional.

Os três ensaios seguintes – “O Barão do Rio Branco e a imprensa: instinto de

publicidade e formação de ideal de política externa”, de Ana Flávia, “Relaciones

bilaterales Argentina-Brasil en el primer centenario de independencia: la Embajada de

Rui Barbosa en Buenos Aires”, de Micaela, e "Araújo Castro: práticas discursivas em

prol do desenvolvimento", de Lucas Magalhães – propõem um desafio diferente dos

primeiros: em lugar de procurarem recuperar personagens negligenciadas pela

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academia, os autores ampliam o acervo historiográfico sobre três reconhecidas

personalidades da diplomacia brasileira.

Ana Flávia dedica-se à atuação de Rio Branco junto à imprensa, o que

representou uma espécie de diplomacia pública avant la lettre por parte do patrono da

diplomacia brasileira. Já durante a sua juventude, Paranhos Júnior havia sido redator do

periódico A Nação, onde defendia as reformas propostas pelo Ministério de seu pai, o

Visconde do Rio Branco. Mesmo após a queda do Gabinete e de sua partida para

Liverpool como cônsul, Paranhos continuou a manter laços estreitos com o Jornal do

Commercio e, após a queda da Monarquia, atuou como correspondente informal

(normalmente sob pseudônimo) do Jornal do Brasil, folha oposicionista aos governos de

Deodoro e Floriano.

Como argumenta a autora, com as vitórias obtidas nas questões de

Palmas/Missões e do Amapá, Rio Branco tornou-se uma celebridade nacional e passou

a utilizar a imprensa não mais para fazer oposição ao regime, mas para divulgar seus

próprios sucessos e consolidar sua imagem perante a opinião pública nacional. Esse

processo se intensifica com a ascensão de Paranhos ao cargo de Ministro das Relações

Exteriores. Visto como um monarquista em um Governo republicano, Paranhos recorre

à imprensa para promover o discurso da separação entre política interna e política

externa e, com isso, legitimar-se diante tanto de republicanos desconfiados como de

monarquistas desencantados.

Rio Branco passa a utilizar a imprensa, em seguida, como meio para dialogar

com a opinião pública brasileira (e às vezes estrangeira) em defesa das novas linhas de

atuação diplomática por ele propugnadas – frequentemente por meio da vinculação de

suas propostas a linhas de política exterior pretensamente permanentes e

suprapartidárias, que remontam ao Império. Nesse sentido, defende a permuta de

territórios do Tratado de Petrópolis com base em precedentes de acordos celebrados no

período imperial; argumenta que sua política americanista tinha raízes na aproximação

com os EUA já no Primeiro Reinado; e relaciona a convergência com a Argentina às

antigas alianças com Urquiza e Mitre. Ana Flávia demonstra, ademais, que, no uso que

fez da imprensa, Rio Branco foi além de apenas promover linhas de ação diplomática:

contribuiu, na realidade, para reconstruir as bases de legitimidade da nacionalidade

brasileira, com base em “valores superiormente nacionais”, para usar as palavras de

Gilberto Freyre, como o respeito ao direito, a generosidade e a moderação.

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Micaela Finkielsztoyn produziu um ótimo ensaio sobre a conferência de Rui

Barbosa na Faculdade de Direito de Buenos Aires, pronunciada em 1916, no âmbito das

comemorações do primeiro centenário da Independência da Argentina. Trata-se de um

episódio relativamente explorado pela historiografia, mas a autora conseguiu produzir

uma análise original, muito por conta dos recursos metodológicos a que recorre,

associando o método de Quentin Skinner ao emprego de categorias retóricas clássicas,

por sinal de uso frequente por Rui.

Micaela analisa com propriedade o tributo feito por Rui na parte inicial da

conferência às personalidades (Sarmiento, Alberdi, Cané, Echeverría, Tejedor e

Irigoyen) e à tradição liberal argentina. Lembra que Rui lançou mão da dicotomia

trabalhada por Sarmiento de civilização versus barbárie para fazer um extenso excursus

pela evolução histórica da Argentina, que conclui com o reconhecimento da prevalência

no início do século XX de um estado social de respeito à segurança jurídica e às

liberdades fundamentais, em contraste não apenas com o ambiente que alimentara o

conflito entre unitários e federalistas de 1820 e a gauchocracia de Juan Manuel de

Rosa, mas também com a experiência recente brasileira (florianismo).

A dualidade civilização-barbárie, afirma Micaela, também serviu como

referência para Rui aproximar-se dos temas centrais da conferência: a dupla moral da

guerra e da paz e o direito dos neutros. O confronto agora se dá entre a barbárie

introduzida pela guerra mundial então em curso e os padrões civilizatórios definidos

pela Conferência de Haia, da qual Rui e Sáenz Peña haviam sido atores de relevo. Rui

insurgiu-se, comenta a autora, contra as referências teóricas, como Clausewitz e

Nietzsche, que haviam estilizado a guerra, transformando-a em um dever moral do

Estado, o que operaria necessariamente em desfavor das nações militarmente mais

débeis. Daí a importância de que se revalidasse o primado do direito internacional e, em

particular, dos princípios consagrados em Haia, como o da isonomia, o que exigia, por

sua vez, a atualização do conceito de neutralidade. Aqui reside o trecho mais sólido da

conferência, a argumentatio, afirma Micaela, reconstituindo a defesa por Rui de um

novo significado para a neutralidade. Diante da interdependência dos povos, a

neutralidade não podia confundir-se com o abstencionismo, a indiferença ou a

insensibilidade frente à injustiça, sob o risco de cumplicidade com os beligerantes. Não

se deveria admitir imparcialidade entre o direito e a injustiça.

Pelas afinidades do jurista com os valores associados à causa aliada, a

neutralidade em Rui, arremata Micaela, trazia embutida uma contradição em termos.

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Crítica à neutralidade passiva, a conferência em Buenos Aires teve a clara "intenção

performativa" de mobilizar a opinião pública argentina, brasileira e internacional (o

discurso foi citado por Clemenceau, na Assembleia Nacional da França) contra as

violações cometidas por um dos lados (o Império alemão) ao direito humanitário e à

situação dos neutros. Rui logo evoluiria de sua "neutralidade organizada" para uma

campanha aberta a favor da entrada do Brasil na guerra, que seria formalizada após a

substituição de Lauro Muller por Nilo Peçanha na chefia do Itamaraty. Embora

saudadas com louvor pela imprensa portenha, as palavras de Rui teriam pouca

repercussão prática na Argentina, que manteve a neutralidade até o final da guerra,

configurando uma dissonância entre Buenos Aires e Rio de Janeiro que também se

produziria na Segunda Grande Guerra. Micaela atribui tais desencontros às reações

distintas do Brasil e da Argentina ao "papel gravitacional" exercido pelos Estados

Unidos nas relações hemisféricas.

Em outra objetiva e original aplicação do método de Quentin Skinner, Lucas

Cortez Magalhães detém-se na interpretação dos "atos de fala" de Araújo Castro. Elege

como objeto de análise dois discursos paradigmáticos: o discurso dos 3Ds

(Desarmamento, Descolonização e Desenvolvimento, 1963), e a fala sobre o

congelamento do poder mundial a estagiários da Escola Superior de Guerra (1971). Em

cada texto, um tema é privilegiado: no caso dos 3Ds, a questão do comércio enquanto

motor do desenvolvimento; na palestra da ESG, a questão ambiental, em sua interface

com o crescimento demográfico.

Lucas Magalhães preocupa-se em precisar que Araújo Castro tratou de sua

preocupação permanente com o desenvolvimento em contextos bem distintos. Em 1963,

vigia o período da "coexistência pacífica", em que as superpotências, superada a crise

dos mísseis, não haviam iniciado ainda a busca concertada de acomodação de diferenças

que caracterizaria a détente. O cenário abria alguma margem de atuação para os países

em desenvolvimento. No plano interno, o Governo Goulart confrontava-se com a

necessidade premente de equilibrar as contas públicas, após os limitados resultados da

missão do Ministro da Fazenda San Tiago Dantas a Washington. Em 1971, a détente já

era um fato. Pelo menos desde a assinatura do Tratado de Não-Proliferação, em 1967,

relembra Lucas, as superpotências convergiam no esforço de congelar o poder militar,

político, econômico e tecnológico, reduzindo a "permissividade" da ordem

internacional. Na esfera doméstica, as credenciais econômicas do país eram renovadas,

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com a correção das contas públicas, a queda da inflação e um crescimento expressivo do

produto interno bruto, ainda que à custa de forte concentração da renda.

Para Lucas Magalhães, o discurso dos 3Ds definiu princípios que balizariam a

atuação do Brasil no ousado esforço que se avizinhava de regulamentar o comércio

internacional sob a perspectiva do desenvolvimento: a UNCTAD. São enunciados,

assim, na intervenção de Araújo Castro na XVIII AGNU: (a) a importância do comércio

(ao lado da industrialização e da transferência de capitais) para a redução do hiato entre

Norte e Sul; (b) a crítica ao fenômeno da deterioração dos termos de intercâmbio; e (c) a

expectativa de que a UNCTAD definisse diretrizes para um tratamento inovador e

diferenciado dos fluxos comerciais em prol do desenvolvimento. Sob o marco do

conceito de segurança econômica coletiva, acrescenta o autor, o Brasil engajar-se-ia nos

anos seguintes na defesa da adoção de mecanismo de concessão de preferências

comerciais aos países em desenvolvimento em bases não recíprocas e não

discriminatórias, aspiração veiculada pela primeira vez na Conferência Internacional

sobre Comércio e Desenvolvimento (Havana, 1948) e concretizada, como se sabe, em

1971, com o estabelecimento do sistema geral de preferências.

Se o discurso dos 3Ds sinalizou novos padrões para a regulação do comércio, a

intervenção sobre o congelamento do poder, afirma Magalhães, revela a preocupação de

Castro com a emergência de paradigmas que poderiam vir a inibir a aspiração do Brasil

pelo desenvolvimento econômico, em particular as teses neomalthusianas associadas ao

Clube de Roma. Recomendava-se a adoção pelo mundo em desenvolvimento de

políticas de controle populacional para evitar pressão excessiva sobre recursos naturais

limitados, desconsiderando a possibilidade de ganhos de produtividade pela

incorporação de novas tecnologias. Ignorava-se, outrossim, que o aumento do mercado

consumidor era crucial para a expansão dos esforços de substituição de importações.

Contra a multilateralização no tratamento dos desafios populacional e ambiental, Castro

defendia mantê-los sob a tutela dos Estados nacionais, sem o que estariam sacrificadas

as chances de emancipação econômica do Sul e a própria hipótese de uma reconciliação

futura por grande parte da humanidade dos ideais do desenvolvimento e da preservação

ambiental.

Alexandre de Oliveira traça um perfil instigante de Ítalo Zappa. Enfrentou uma

dificuldade de monta, como registra na introdução do ensaio: o desinteresse de Zappa

em deixar uma obra escrita. A reconstrução das leituras de Zappa sobre suas

experiências é feita a partir de um acervo reduzido de fontes - entrevistas, discursos e

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textos avulsos -, que o autor complementa com depoimentos colhidos de antigos

assessores do diplomata de Barra do Piraí. O resultado é um mosaico bem articulado de

impressões de Zappa sobre o ofício diplomático, os condicionantes domésticos da

política externa, o significado das Nações Unidas e algumas das principais iniciativas da

ação exterior do Brasil nas décadas de setenta e oitenta, como a revisão da política

africana, as relações com a China e o reatamento de relações diplomáticas com Cuba.

O discurso que pronunciou como paraninfo da Turma do Instituto Rio Branco

de 1990 é revelador da visão de Zappa sobre a diplomacia, lembra Oliveira. Transmitiu

a mensagem de que o ofício não é uma "carreira de burocratas", uma vez que comporta

um "inelutável conteúdo político". Espera-se do diplomata, no exercício cotidiano da

profissão, estar atento à "variação de critérios", às "diferentes interpretações dos matizes

decisivos" e a um "sem-número de vicissitudes". Sempre com o propósito de definir o

"rumo certo", a "dose adequada", a "composição aceitável".

Nesse esforço, recorda o autor, Ítalo Zappa era plenamente consciente da

importância dos condicionantes domésticos da ação externa, que assumira

características específicas nas décadas anteriores pela natureza autocrática do regime.

Chegou a dizer, no mesmo discurso como paraninfo, que "diplomacia lá fora é fácil;

difícil é praticá-la aqui dentro". Para Zappa, mais árduo do que traduzir os conceitos de

política externa em ações diplomáticas havia sido superar resistências internas a

políticas de cunho progressista, que provinham não apenas do meio castrense, mas,

dependendo do tema, de instâncias civis, como a comunidade portuguesa no Rio de

Janeiro e a grande imprensa.

A convicção de Zappa nas potencialidades do Brasil não se traduzia em

ufanismo ou impulsos voluntaristas. Vinha temperada por seu pragmatismo realista, que

o fazia rejeitar fórmulas prontas. O Brasil não se encaixaria no Terceiro Mundo. Mas

tampouco no Primeiro. Sua regra assemelhava-se à de Nabuco no comentário sobre a

atuação do Brasil em Haia ("Não se fica grande por dar pulos. Não podemos ser

grandes, senão o sendo"). Em entrevista à revista Veja, lembra Oliveira, Zappa afirmou

que a pertinência ao Primeiro Mundo, por desejável que fosse, não se faria por ato de

vontade, de fora para dentro. A graduação na ordem internacional viria por um

desenvolvimento duradouro e sustentável.

Não via as Nações Unidas como uma organização talhada para transformar a

ordem, esclarece Oliveira. O foro existiria para consolidar privilégios ou

responsabilidades dos vencedores na Grande Guerra. Tampouco serviria como espaço

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para solução de controvérsias. Este fim seria melhor atendido por um tribunal

internacional de arbitragem. Mas as Nações Unidas não seriam irrelevantes.

Contribuiriam para "evitar isolamentos e radicalizações", estimulando as convergências

possíveis, sem o que não haveria "evolução benigna" nas relações internacionais.

De todo modo, o autor deixa claro, o interesse principal de Zappa foi pelo

trabalho bilateral, em que, no exercício de uma invulgar capacidade intuitiva, abriu ou

consolidou novas sendas, como a da aproximação com a África, no marco do

pragmatismo responsável. "Sem Azeredo da Silveira, não haveria Zappa", diz um de

seus antigos colaboradores. O fato é que Zappa - tanto na condição de Chefe do

Departamento de África, Ásia e Oceania, como enquanto Embaixador em Moçambique

- prestou imensa contribuição tanto para a definição de uma orientação própria para o

continente africano como para a diluição junto às lideranças emergentes da África,

como Samora Machel, da desconfiança gerada por nosso prolongado apoio ao

colonialismo português. Alexandre Oliveira também faz um bom registro do papel de

Zappa na afirmação das recém-estabelecidas relações com a República Popular da

China e de sua missão em Cuba, como o primeiro embaixador brasileiro após o

reatamento dos vínculos bilaterais.

Arthur Cesar Lima Naylor encerra o conjunto de ensaios com seu “José

Guilherme Merquior: o pensamento diplomático e a diplomacia do pensamento do

esgrimista liberal”. "O artigo parte da premissa proposta por Rubens Ricupero, segundo

o qual a atividade intelectual, para Merquior, “definiu e deu forma à existência toda,

integrando e absorvendo os demais elementos”, ao ponto de confundir-se com a própria

vida”. Do versátil crítico literário dos primeiros anos, nas faculdades de Direito e de

Filosofia, passando pelo jovem diplomata de pendores esquerdistas, até o “esgrimista

liberal” de idade mais madura, Arthur narra os encontros de Merquior com os mais

variados pensadores e movimentos intelectuais e extrai alguns dos traços mais

consistentes de seu pensamento: a crença inabalável na razão, a busca irrefreável da

modernidade, a defesa da autodeterminação e do pluralismo.

Ao mesmo tempo em que Merquior evolui em sua carreira diplomática,

passando por Paris, Bonn, Londres e Montevidéu, e aprofunda sua formação intelectual

com doutoramentos na Universidade de Paris e na London School of Economics, o seu

pensamento consolida-se em torno do ideário liberal, mas sem abandonar a preocupação

social que o motivou desde a juventude. Arthur dá grande destaque, nesse período, às

instigantes reflexões de Merquior sobre o tema da legitimidade na política internacional,

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objeto de sua tese do Curso de Altos Estudos, em que o diplomata defende uma

concepção “crática” da legitimidade e diagnostica um cenário de crise no final da

década de 1970, marcado pelo desequilíbrio entre legitimidade e eficácia na política

internacional.

Para Arthur Naylor, a tese de CAE – que Merquior não precisaria ter

apresentado, uma vez que o curso somente seria convertido em requisito de ascensão

funcional anos mais tarde, mas que o fez, no dizer de Gelson Fonseca, como

"oportunidade de afiar instrumentos para criações maiores" - representou para o

diplomata a primeira expressão de sua maturidade liberal. Naylor detalha como

Merquior esmiúça a crítica liberal aos pressupostos dos "trinta anos gloriosos" do pós-

guerra, quando a presença do Estado facilitou a expansão da democracia, o crescimento

econômico e o estado do bem-estar social na Europa e nos Estados Unidos. Merquior

lembra que, se as crises do petróleo e as dificuldades fiscais punham em cheque os

modelos em voga no Ocidente, era ainda mais aguda a estagnação no bloco socialista,

configurando uma "ilegitimação crescente do socialismo de estado". Por que então os

países ocidentais não tiravam maior proveito dessa situação, atraindo os países em

desenvolvimento que buscavam manter certa neutralidade entre os blocos? Porque a

receita liberal sofria de dois fatores de legitimidade: o hiato tecnológico entre os países

ricos e o mundo em desenvolvimento e o neoprotecionismo a que se recorria como

resposta à elevação dos custos de energia, uma resposta de todo míope diante da

interdependência das economias capitalistas, esclarece Merquior. De todo modo,

acrescenta Naylor, Merquior estava convencido de que o espírito da época passava "do

mito da revolução ao desejo de liberalização".

O autor passa, então, à última fase da evolução intelectual de Merquior, quando

o diplomata passa do pensamento à ação por meio da intervenção ativa no debate

público. Tanto em seus embates na academia e na imprensa contra aqueles que

consideravam os expoentes das “cidadelas de irracionalismo” como em sua atuação

profissional como Embaixador no México e conselheiro do recém-eleito Presidente

Fernando Collor de Mello, Merquior buscou apresentar um novo projeto para o país,

fundado na democracia, na cultura liberal e na interdependência: um projeto

universalista para um Brasil moderno, competitivo e integrado ao mundo.

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Tragicamente, sua morte prematura aos 49 anos não permitiu que Merquior

continuasse a participar do debate público sobre a modernidade no Brasil.

Receba os nossos cumprimentos e melhores votos,

Tarcísio Costa e Cesar Barrio

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QUINTINO BOCAIÚVA ENTRE A SOLIDARIEDADE

AMERICANA E O INTERESSE NACIONAL: A QUESTÃO

DE PALMAS/MISSÕES

ISADORA LORETO DA SILVEIRA

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo analisar o pensamento diplomático – centrado, em

particular, na solidariedade americana - de Quintino Bocaiúva, chanceler entre 1889 e

1891, e a sua influência sobre a política exterior no início da República brasileira. Para

tanto, será realizada uma reflexão sobre as ideias da geração de 1870, seguida de uma

breve apresentação da trajetória de Bocaiúva no jornalismo e na política e de uma

avaliação mais detida da sua atuação na Questão de Palmas/Missões, e de considerações

finais. A pergunta central proposta por este estudo é a seguinte: de que forma o

pensamento de Quintino Bocaiúva afetou a política externa brasileira da República

nascente, em particular no que se refere ao contencioso territorial com a Argentina?

Palavras-chave

Quintino Bocaiúva; República; Palmas; Argentina; americanismo.

Introdução

Quintino Bocaiúva, político, jornalista e maçom de orientação republicana,

liberal e anti-positivista, foi o primeiro chanceler da República. Além disso, teve longa

carreira pública, tendo cumprido mandatos parlamentares e como presidente do estado

do Rio de Janeiro. Relativamente negligenciado pela historiografia em função do

polêmico Tratado de Montevidéu, assinado durante a sua gestão, Bocaiúva tinha

concepções interessantes sobre o Brasil republicano e a natureza das relações que este

deveria manter com os vizinhos americanos em geral e com a Argentina em particular.

Bocaiúva pode ser considerado o “apóstolo dos três grandes ideais: a Abolição, a

República e a Confraternidade Americana” (SILVA, 1983, p. 107).

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O presente trabalho tem por objetivo analisar o pensamento diplomático –

centrado, em particular, no terceiro ideal - de Quintino Bocaiúva, chanceler entre 1889 e

1891, e a sua influência sobre a política exterior no início da República brasileira. Para

tanto, será realizada uma reflexão sobre as ideias da geração de 1870, seguida de uma

breve apresentação da trajetória de Bocaiúva no jornalismo e na política e de uma

avaliação mais detida da sua atuação na Questão de Palmas/Missões, e de considerações

finais. A pergunta central proposta por este estudo é a seguinte: de que forma o

pensamento de Quintino Bocaiúva afetou a política externa brasileira da República

nascente, em particular no que se refere ao contencioso territorial com a Argentina?

A partir da perspectiva contextualista de Quentin Skinner em relação à história

do pensamento político, buscar-se-á desvendar as motivações e o contexto por trás do

pensamento diplomático de Quintino Bocaiúva. Apoiando-se na metodologia

skinneriana, o trabalho vai procurar articular a linguagem do pensamento político do

chanceler brasileiro (os atos de discurso e as intenções ilocucionárias por trás deles)

com o foco contextual (SKINNER, 1968; TULLY, 1983). Uma vez que Bocaiúva não

apresenta uma produção muito densa sobre o tema do ponto de vista acadêmico, o

presente trabalho vai se utilizar, majoritariamente, de artigos de jornal escritos pelo

chanceler em “O Paiz”.

Ademais, de acordo com Angela Alonso (2002), para se atingir a compreensão

do impacto das ideias gestadas pela geração de 1870 sobre a vida política brasileira é

necessário unir a análise das “formas de pensar” (ou “cultura”) à das “formas de agir”

(ou “experiências” empíricas). Logo, de forma complementar à interpretação

skinneriana, para que seja possível explicitar o pensamento de Bocaiúva sobre a política

exterior brasileira, faz-se mister avaliar como ele se manifestou, concretamente, em uma

determinada área da ação externa brasileira no período. Para tanto, pretende-se analisar

a atuação de Quintino na negociação da Questão das Missões com a Argentina.

A geração de 1870 e o “bando de ideias novas”

Os pensadores da chamada geração de 1870 introduziram no Brasil o que Sílvio

Romero chamou de “um bando de ideias novas” ou importaram do exterior uma série de

“ideias fora do lugar” nas palavras de Roberto Schwarz. Entre elas, podem-se

mencionar, pelo menos, o positivismo, o evolucionismo, o republicanismo e o

liberalismo. Alonso (2002) defende que a absorção e o emprego de ideários europeus no

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Brasil visou não à legitimação do status quo do Império, mas, pelo contrário, à reforma

e à contestação de seus mecanismos. A novidade e radicalidade das ideias não estariam

ligadas a sistemas de pensamento prontos, mas ao uso político que os agentes fazem do

repertório disponível à sua época, logrando inclusive extrair efeitos “progressistas”, vide

o abolicionismo, de sistemas “reacionários”, como o próprio positivismo (ALONSO,

2002).

De acordo com Fonseca (2004), no Brasil, os grupos positivistas articulavam-se,

desde as últimas décadas do Império, nas faculdades de Direito e no âmbito das Forças

Armadas, o que levava, frequentemente, à formação de blocos parlamentares dotados de

relativa coesão e identidade ideológicas. Um dos seus principais expoentes no período

aqui analisado foi Benjamin Constant, responsável pela difusão das concepções

positivistas no seio do Exército, e, posteriormente, como Ministro da Guerra de

Deodoro da Fonseca. Todavia, é importante avaliar a contribuição positivista cum grano

salis, pois, de acordo com Oliveira Vianna (2006), ainda que os republicanos

positivistas tenham tido certa importância no processo de articulação para a

proclamação da República, a força decisiva para a mudança do regime político foi

definitivamente o Exército. Importa, contudo, a influência que a doutrina comtiana

exercia sobre parte significativa dos quadros das Forças Armadas da época.

O positivismo, inspirado primordialmente nas ideias de Auguste Comte, mas

também nas de Littré, Stuart Mill e Spencer, entre outros, veio dar uma contribuição

fundamental ao entendimento de que seria dever do Estado possibilitar que a sociedade

rumasse ao “progresso”. Os positivistas ressaltavam a centralidade da educação, do

progresso científico e da evolução moral da sociedade, sublinhando o importante papel

do Estado para promovê-los. O Estado deveria ainda servir como modelo, dando o

exemplo por meio da abolição de privilégios de nascimento, da separação entre as

esferas pública e privada e entre a religião e o Estado. O positivismo apresentava pelo

menos três vertentes: a religiosa, a científica e a política. Essa última, que pregava a boa

administração política e era dotada de fundamento autoritário, foi a de maior influência

no Brasil e na América Latina. Ainda, o positivismo atingiu maior notoriedade no Brasil

do que na própria França em função de sua coincidência com o período de fortes

transformações políticas, econômicas e sociais então vivido no país (FONSECA, 2004;

ABREU, 2015).

Segundo Alonso (2002), a aparente oposição entre liberais e positivistas, por

exemplo, não se confirmava na prática. Havia relativa identidade política entre as

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diversas correntes teóricas vigentes no Brasil à época da proclamação da República.

Dessa forma, o liberalismo e as diferentes variantes de positivismo e cientificismo

comporiam modalidades de postura crítica e reformista em relação à ordem imperial e

também à política exterior do Império. Alonso ainda buscou subdividir as escolas de

pensamento dos ideólogos da época, chegando às classificações de novos liberais,

liberais republicanos, positivistas abolicionistas e federalistas científicos, categorias que

por si só revelam o sincretismo e a permeabilidade do pensamento da época.

Em conjunto com o positivismo, o idealismo liberal e republicano influenciou a

condução da política exterior nos anos que se seguiram à proclamação da República. Os

idealistas pregavam a aproximação aos vizinhos sul-americanos e aos EUA, por meio da

“republicanização” e da “americanização” da política exterior que se inaugurava com o

fim do Império. Assim, o discurso imperial, que retratava os vizinhos como inimigos

potenciais e privilegiava a contenção de Buenos Aires e os laços com a Europa, deveria

ser substituído pela defesa da solidariedade hemisférica. Lyra Jr. (2014) lembra que

tanto o americanismo quanto a americanização da política externa brasileira eram

bandeiras dos republicanos históricos, como Salvador de Mendonça. Clodoaldo Bueno

(1995b) enfatiza, em particular, a mudança de postura em relação à Argentina, a qual

seria, contudo, revertida com a adoção de uma postura mais realista e pragmática sob a

chancelaria do Barão do Rio Branco.

Entre as figuras do período que merecem destaque por sua atuação em termos de

política externa está o republicano liberal Quintino Bocaiúva. Bocaiúva iniciou sua

carreira pública durante os anos da Liga Progressista. A partir de então, passou a

conciliar a vida pública – no Legislativo e no Executivo – com a atividade jornalística

em periódicos liberais e literários. Foi ainda homem de negócios, estabelecendo

sociedade com os estadunidenses no cabo telegráfico submarino e com os cubanos na

linha Rio de Janeiro-Nova York de vapores. Entre 1866 e 1867, viajou aos EUA como

agente do gabinete da Liga para contratar imigrantes sulistas. Após a chegada dos

conservadores ao gabinete, Bocaiúva partiu para Montevidéu e Buenos Aires, voltando

ao Brasil somente em 1870 (ALONSO, 2002).

Quintino Bocaiúva passou a manifestar suas inclinações americanistas após suas

passagens pelo exterior. Ele cultivou importantes vínculos na região do Prata, em

particular na Argentina. Segundo Alonso (2002), foi justamente essa visão exterior do

Brasil que conferiu ao americanismo esposado pelos republicanos liberais um caráter

mais federalista que indianista (ainda que Bocaiúva tenha adotado esse sobrenome

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estimulado pelo nativismo indigenista reinante entre seus pares em seus anos de

estudante universitário). Enquanto Salvador de Mendonça, que se radicou em Nova

York, manifestou sua admiração pelo federalismo e pela ideia do self-made man

estadunidense, o que inclusive está presente em sua obra “Marabá” (1875), Bocaiúva

demonstrou sua admiração pelos progressos das repúblicas sul-americanas em

comparação com o regime imperial brasileiro.

Preuss (2011) chama a atenção para o fato de que os brasileiros, no final do

século XIX, sobretudo após a Guerra do Paraguai, passaram por um processo de

redefinição da própria identidade nacional. Tal identidade deixou, progressivamente, de

se relacionar à ideia de excepcionalidade que prevalecera outrora, relacionando-se, cada

vez mais, a uma concepção identitária mais inclusiva, que privilegiava os aspectos em

comum com a América hispânica. O Manifesto Republicano, de 1870, assinado por

personalidades importantes como Quintino Bocaíuva e Salvador de Mendonça, já

afirmava, a partir de perspectiva bastante idealista das questões internacionais e

romântica do pan-americanismo, que

(...) [s]omos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de

governo é, em sua essencia e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e

aos interesses dos Estados americanos. A permanência dessa forma tem de

ser forçosamente, além da origem da oppressão no interior, a fonte perpetua

da hostilidade e das guerras com os povos que nos rodeiam. Perante a Europa

passamos por ser uma democracia monarchica que não inspira sympathia

nem provoca adhesões. Perante a América passamos por ser uma democracia

monarchisada, aonde o instincto e a força do povo não podem preponderar

ante o arbítrio e a omnipotencia do soberano. Em taes condições pode o

Brazil considerar-se um paiz isolado, não só no seio da América, mas no seio

do mundo. O nosso esforço dirige-se a suprimir este estado de cousas, pondo-

nos em contacto fraternal com todos os povos, e em solidariedade

democratica com o continente que fazemos parte (MANIFESTO

REPUBLICANO, 1870, p. 58).

Quintino Bocaiúva reafirmaria o ideal americanista republicano em artigo de 18

de dezembro de 1891, em “O Paiz”, intitulado “Pela República (II)”

Ora, no próprio manifesto de 1870 (...) o que é que nós, republicanos,

dissemos?

Dissemos que éramos da América e queríamos ser americanos.

Pois bem; a América é a República; a América é a liberdade; é o repúdio da

vassalagem a toda e qualquer influência tradicional ou institucional, cujas

raízes se prendam ao solo da Europa e às suas constituições políticas

(BOCAIÚVA, 1986, p. 151).

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Pode-se falar também do idealismo monarquista, que ganharia força com os

escritos do brasileiro Eduardo Prado, crítico feroz de Bocaiúva. Essa manifestação do

idealismo, que não teve grande repercussão no Brasil, centrou-se na denúncia dos

excessos imperialistas da política externa dos EUA e deu vazão a um profundo

sentimento anti-estadunidense. Tal denúncia encontraria paralelo no “arielismo” do

uruguaio Enrique Rodó. Na visão de Prado, a República teria se aproximado em

demasia dos EUA e também, ainda que em menor medida, dos vizinhos cujos governos

eram notadamente marcados pelo caudilhismo. Apesar da adoção de uma postura mais

realista em relação aos EUA a partir da chancelaria de José Maria Paranhos Jr., a

aliança com Washington ganharia ainda mais força, ou seja, a concepção de Prado sobre

a política exterior não alcançaria muita ressonância no governo brasileiro (RÉ, 2010;

BUENO, 1995a).

A trajetória política de Quintino Bocaiúva

Quintino Antonio Ferreira de Sousa nasceu em 1836, no Rio de Janeiro. Sua

mãe, Maria Candelaria Moreno y Alagon, era de origem argentina. Seu pai, Quintino

Ferreira de Sousa, morreu em 1849 e, então, Quintino mudou-se para São Paulo e teve

seus estudos no curso de humanidades anexo à Faculdade de Direito pagos por um tio.

Por volta de 1852, passou a envolver-se com atividades jornalísticas, publicando

poemas e artigos no jornal literário acadêmico “O Acaiaba” e escrevendo em “A

Honra”, jornal político republicano que fundou com Antonio Ferreira Viana em 1853.

Em função de problemas financeiros, teve de abandonar os estudos e retornar à

Corte, onde iniciou carreira de teatrólogo. Nos anos 1860, trabalhou nos jornais

“Correio Mercantil” e “Diario do Rio de Janeiro”, período em que realizou coberturas

de assuntos de política exterior na região do Prata. Em 1861, passou a fazer parte da

organização maçônica Loja Amizade. No mesmo ano e no seguinte, escreveu os

panfletos políticos republicanos “A opinião e a coroa” e “Os nossos homens” sob um

pseudônimo. Durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), trabalhou como

correspondente na Argentina, período no qual consolidou suas convicções republicanas.

Ao longo do conflito, desenvolveu diversas atividades comerciais, como, por exemplo,

a exploração de contratos de fornecimento ao exército (LEMOS, 2016).

Em 1866, associou-se ao capitalista cubano Bernardo Caymari, e fundou a

Sociedade Imperial de Imigração. Desde então, já demonstrava preocupação em

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apresentar alternativas à mão de obra escrava no Brasil. O objetivo da empresa era

promover a atração de mão de obra do sul dos Estados Unidos para a agricultura

brasileira. Bocaiúva trabalhou como agente de imigração em Nova Iorque entre 1866 e

1867. Ao voltar ao Brasil, Bocaiúva passou pela Argentina e pelo Paraguai e, ao chegar

ao Rio de Janeiro, readquiriu o controle do “Diario do Rio de Janeiro”, com a ajuda de

Caymari. Em 1868, Bocaiúva publicou o opúsculo intitulado “A crise na lavoura”, no

qual defendeu o emprego de migrantes chineses assalariados como alternativa ao

trabalho cativo (LEMOS, 2016).

Em 1869, publicou o panfleto “A Guerra do Paraguai, nova fase” e, no ano

seguinte, após retornar das comemorações do final do conflito na Argentina, proferiu

palestra no Teatro São Luís, no Rio de Janeiro, na qual comparou as sociedades

republicanas platinas com a brasileira. Ainda em 1870, uniu-se a liberais dissidentes

para fundar o Clube Republicano do Rio de Janeiro. Bocaiúva integrou a comissão

diretora, assim como o grupo que fundou o jornal “A República”, cuja primeira edição

continha o “Manifesto Republicano”. A não ser por um breve interregno, o jornal se

manteve como o porta-voz oficial do Partido Republicano. Três anos mais tarde, surgiu

o Partido Republicano Paulista.

Em 1874, após ter alcançado a tiragem de 12 mil exemplares diários, “A

República” parou de circular. Bocaiúva passou então a atuar em “O Cruzeiro”. Em

1883, Quintino contribuiu para a fundação do jornal republicano “O Paiz”, o qual

passou a circular no ano seguinte. Enquanto redator-chefe, Bocaiúva procurou manter a

linha editorial republicana não partidária que vinha até então caracterizando sua

atividade jornalística. O periódico teria papel muito importante na vida política

nacional, participando do debate acerca da abolição da escravidão e da substituição do

regime monárquico pelo republicano. A atuação de Quintino à frente do jornal lhe

valeria o epíteto de “príncipe dos jornalistas brasileiros” na década de 1880 (LEMOS,

2016).

Em um contexto de desgaste das relações de militares com o governo, por volta

de 1887, projetaram-se de novos líderes entre os oficiais, com destaque para o general

Deodoro da Fonseca e o major Benjamin Constant. A imprensa republicana discutia,

então, o papel dos militares na sociedade brasileira, defendendo a formação de um

exército permanente formado pelos chamados “soldados cidadãos”. Destacavam-se

como propagandistas dessa proposta, além de Quintino, à frente de “O Paiz”, Júlio de

Castilhos, em “A Federação”, e Rui Barbosa, no “Diário de Notícias” (LEMOS, 2016).

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Nesse mesmo ano, Bocaiúva participou do Congresso Republicano Federal, o

qual fora convocado com o objetivo de unificar as correntes republicanas. Os delegados

aprovaram, na ocasião, uma constituição partidária que assegurava a autonomia e a

independência das organizações locais. Ademais, assinaram um manifesto reproduzindo

o programa liberal-democrático de 1870. O manifesto via na escravidão um problema a

ser urgentemente solucionado e estabelecia que, caso o regime monárquico seguisse

ignorando a necessidade de resolvê-lo em definitivo, os republicanos a aboliriam até

julho de 1889.

Bocaiúva participou, em outubro de 1888, de outro Congresso Republicano. No

mesmo ano, foi incluída uma seção oficial do Partido Republicano no jornal “O Paiz”,

de autoria de Antônio da Silva Jardim, principal líder da corrente defensora da via

revolucionária para a implantação do regime republicano. Em março do ano seguinte,

Quintino recebeu uma correspondência de Francisco Glicério - importante dirigente do

PRP – na qual ele o instava a aproveitar qualquer movimentação militar que ocorresse

para desfechar um golpe na monarquia. Bocaiúva respondeu, contudo, que não julgava

ser o momento oportuno pra tanto. Ainda no mês de março, os republicanos gaúchos

declararam estar preparados para uma possível revolução. A hipótese de se prestar apoio

a um movimento militar para depor o imperador começou a ser aventada no interior do

Partido Republicano (LEMOS, 2016).

No Congresso Republicano de maio de 1889, realizado em São Paulo, foi

consagrada a tese – defendida de forma intransigente por Quintino - de que se deveria

privilegiar uma campanha doutrinária por meio da imprensa como via para a promoção

do advento gradual da República. Todavia, o próprio Bocaiúva advertiu seus

correligionários sobre a possibilidade de uma ação armada se fazer necessária para

atingir os objetivos do Partido Republicano. Os membros do conselho federal então

pediram demissão de seus cargos, de forma comumente acordada, e Bocaiúva foi eleito

chefe nacional do partido, derrotando a corrente liderada por Silva Jardim, o qual

declarou não reconhecer a chefia de Quintino, rompendo com o partido. Em outubro de

1889, Quintino Bocaiúva e Benjamin Constant se reuniram, por iniciativa do primeiro,

para conversar sobre o momento político, ocasião na qual acertaram um plano de

contatos com outros republicanos nos dias seguintes. Os dois republicanos concordaram

que seria importante publicar artigos que acirrassem o ânimo dos militares e gerassem

uma elevação da oposição contra o governo. Nos dias que se seguiram, “O Paiz”

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publicou uma série de artigos nessa linha, um dos quais foi inclusive comentado e

apoiado por Ruy Barbosa no “Diario de Notícias” (LEMOS, 2016).

Na noite de 11 de novembro de 1889, Bocaiúva participou de reunião com

militares e civis republicanos realizada na casa de Deodoro da Fonseca, o qual anunciou

sua adesão à conspiração para derrubar o regime monárquico. Quintino foi, nessa

oportunidade, incumbido da organização do futuro ministério republicano. Em encontro

posterior, definiu-se que o levante contra a monarquia seria deflagrado no dia 20 de

novembro. Contudo, em função de rumores de que o governo pretendia prender

algumas lideranças entre os conspiradores, os militares aquartelados no bairro de São

Cristóvão decidiram desfechar o golpe e, em 15 de novembro, cercaram o quartel-

general do Exército, local onde estavam reunidos os ministros. As forças que defendiam

o prédio foram, então, rapidamente dominadas.

Após a deposição do governo de D. Pedro II, Quintino Bocaiúva, Benjamin

Constant, Deodoro da Fonseca, Ruy Barbosa e outros líderes do movimento republicano

reuniram-se para discutir as bases do novo governo provisório. Ficou decidida, no dia

seguinte, a seguinte composição para o governo republicano nascente: Deodoro da

Fonseca (presidente), Benjamin Constant (Ministro da Guerra), Aristides Lobo

(Ministro do Interior), Campos Salles (Ministro da Justiça), Ruy Barbosa (Ministro da

Fazenda), Eduardo Wandenkolk (Ministro da Marinha), Quintino Bocaiúva (Ministro

das Relações Exteriores) e Demétrio Ribeiro (Ministro de Agricultura, Comércio e

Obras Públicas). Ao assumir a chancelaria, Quintino teve como primeira tarefa tratar do

reconhecimento diplomático do novo regime (LEMOS, 2016).

Os assuntos principais da cena internacional a serem tratados ao longo dos

catorze meses da chancelaria de Bocaiúva foram: o esforço pelo reconhecimento do

novo regime pelos outros países; a I Conferência Internacional Americana iniciada em

1889, a qual inaugurou novas perspectivas para os ideais pan-americanos e de

solidariedade continental; o Acordo Aduaneiro firmado com os EUA em 1891, cujas

tratativas tiveram inicio em 1890 por iniciativa de Washington; e a Questão das

Missões. Em 20 de janeiro do ano de 1891, quando Bocaiúva deixou a pasta, todos os

países do mundo, exceto Colômbia, Nicarágua, Áustria-Hungria e Rússia, já haviam

restabelecido relações com o governo brasileiro (SILVA, 1983).

No que se refere à I Conferência Internacional Americana, com a proclamação

da República, rompeu-se com parte da tradição imperial: o critério de não associar o

País aos Estados Unidos foi abandonado, e a utilização da arbitragem para resolução de

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controvérsias passou a ser defendida. Durante a conferência, substituiu-se o

representante brasileiro e Salvador de Mendonça assumiu a chefia da representação

brasileira junto a Washington, devido à troca do regime. A americanização da política

exterior republicana foi a tradução do positivismo e do idealismo da República, a qual

voltou-se especialmente para o vizinho do Norte, mas também para os vizinhos do Sul

(CERVO; BUENO, 2015).

Com a autorização de Quintino Bocaiúva, chanceler do Governo Provisório,

Mendonça logrou, em conjunto com os delegados argentinos, apresentar os projetos de

arbitramento obrigatório e de abolição da conquista, com o apoio dos EUA e a

abstenção do Chile. No que se refere ao tema da abolição da conquista, em particular, o

Brasil e os EUA divergiam, mas houve esforço de Mendonça para que se lograsse

chegar a uma posição comum (BUENO, 1995a).

Quanto ao Acordo Blaine- Mendonça, desde finais do século XIX, os Estados

Unidos se firmaram como os principais importadores do café brasileiro. As relações

com os Estados Unidos se tornaram importante elemento da diplomacia brasileira,

marcada inicialmente pelo acordo comercial para favorecimento das principais

exportações, assinado em 1891. Embora denunciado em 1894, o tratado teve seus

efeitos sobre o comércio mantidos (exceto as vantagens para o açúcar brasileiro, que

foram logo revertidas pela intensificação dos benefícios ao açúcar das Antilhas) até a

data prevista para a sua expiração, em 1895 (AMADO; BUENO, 2015).

Alguns meses antes do início da I Conferência Americana, Salvador de

Mendonça enviou ao governo do Brasil um extenso memorando explicando

cronologicamente e em detalhes as suas concepções e posições sobre a aproximação

comercial do Império com os EUA. Mendonça ainda salientou que a enorme quantidade

de produtos europeus importados poderia ser prontamente equilibrada por meio de bens

oriundos dos EUA, bons compradores dos produtos agrícolas nacionais. O representante

brasileiro ainda recomendou que as tratativas comerciais bilaterais fossem realizadas

fora do âmbito da Conferência, indicando a busca por exclusividade do governo

brasileiro. O acordo seria então assinado no dia 31 de janeiro de 1891 e proclamado

pelos governos brasileiro e estadunidense no dia 5 de fevereiro do mesmo ano. No ato

da assinatura do acordo, Salvador de Mendonça e James Blaine trocaram notas. A carta

entregue pelo plenipotenciário brasileiro mencionava que o tratado havia sido “animado

pelo espírito de sincera amizade” entre os dois países (PEREIRA, 2009).

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O acordo que ficou conhecido como Blaine-Mendonça foi essencialmente um

tratado comercial de favores recíprocos o qual previa a troca de produtos agrícolas e

manufaturados entre os países, com isenção ou redução de taxas alfandegárias, então

importante fonte de renda para o Brasil. O tratado marcou a aproximação brasileira da

maior potência hemisférica, uma reversão da relutância imperial em ligar-se a tratados

comerciais abrangentes e uma busca de mercado consumidor para o açúcar doméstico.

Pelo lado dos EUA, significou a instrumentalização da política pan-americana e uma

iniciativa em prol da expansão econômica externa, que reverteria a política de esquivar-

se de acordos comerciais (PEREIRA, 2009; SOUZA, 2016).

A participação de Bocaiúva na Questão de Palmas/Missões

As relações do Brasil republicano com a Argentina começaram de forma

extremamente amistosa, buscando reverter o clima de desconfiança gerado por um

regime monárquico em meio a repúblicas. Ainda em dezembro de 1889, em retribuição

à solenidade oficial oferecida pela Argentina para celebrar a proclamação da República

no Brasil, um decreto do governo provisório estabeleceu uma série de homenagens a

serem prestadas à Argentina (em particular à bandeira argentina e à sua legação no Rio

de Janeiro). A solidariedade americana que marcou o início da República brasileira

permeou as relações brasileiro-argentinas (BUENO, 1995a).

A questão de Palmas ou das Missões, contudo, gerou algumas tensões, pois a

negociação de um acordo na visita do chanceler Quintino Bocaiúva a Buenos Aires em

1890 - o Tratado de Montevidéu - foi mal recebida no Brasil por conceder parcela

julgada excessiva do território, sendo resolvida posteriormente pela arbitragem

estadunidense previamente acertada. Em seguida, a rivalidade entre os dois países seria

retomada e o clima de paz armada se reproduziria no continente. Ademais, outros

desacordos surgiram, como o desentendimento gerado a partir da ambição argentina de

chegar a um acordo bilateral que lhe permitisse aumentar suas exportações de trigo para

o Brasil, competindo com os EUA. Ainda, a difamação da situação sanitária dos portos

brasileiros pela Argentina foi objeto de preocupação do governo no Rio de Janeiro, pois

afetava negativamente a política brasileira de atração de imigrantes como mão de obra

assalariada (AMADO; BUENO, 2015). Apesar do esforço inicial de aproximação entre

as duas repúblicas, inspirado pelo ideário positivista e idealista e pelo contexto de

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distensão do Prata, manteve-se, de forma geral, a “instabilidade estrutural com

predomínio da rivalidade” nas relações descrita por Candeas (2005).

A posse da região de Palmas, a oeste dos atuais estados do Paraná e de Santa

Catarina, vinha sendo objeto de disputa entre Brasil e Argentina desde 1857. Em 1889,

ainda durante o governo de D. Pedro II, os dois países assinaram, em Buenos Aires, um

acordo que previa a arbitragem para resolver a questão fronteiriça. O tratado

determinava o seguinte

Artigo 1º

A discussão do direito que cada uma das Altas Partes Contractantes julga ter

ao territorio em litigio entre ellas, ficará, encerrada no prazo de noventa dias

contados da conclusão do reconhecimento do terreno em que se acham as

cabeceiras dos rios Chapecó ou Pequiri-guassú e Jangada ou Santo Antonio-

guassú.

Entender-se-ha concluido aquelle reconhecimento no dia em que as

commissões nomeadas, em virtude do Tratado de 28 de Setembro de 1885,

apresentarem aos seus Governos os relatorios e as plantas a que se refere o

art. 4º do mesmo tratado.

Artigo 2º

Terminado o prazo do artigo antecedente sem solução amigavel, será a

questão submettida ao arbitramento do Presidente dos Estados Unidos da

America, a quem, dentro dos sessenta dias seguintes, se dirigirão as Altas

Partes Contractantes pedindo que acceite esse encargo (SENADO

FEDERAL, 1889, p. 1).

Bocaiúva, inspirado pela ideia de solidariedade americana que acompanhava

grande parcela das lideranças republicanas desde o Manifesto de 1870, negociou com a

Argentina de forma muito amistosa, afastando-se do tradicional clima de rivalidade que

permeara as relações entre os dois vizinhos durante o Império. As tratativas chegaram a

termo tendo como resultado o Tratado de Montevidéu – ou Tratado das Missões -

assinado na capital do Uruguai no dia 25 de janeiro de 1890. Do lado argentino, o

acordo alcançado foi visto como uma vitória, enquanto do lado brasileiro despertou

forte descontentamento e rejeição (LEMOS, 2016; HEINSFELD, 2014).

O chanceler do Brasil recebeu uma série de críticas e foi vítima de diversas

acusações, entre as quais a de ter transferido a Buenos Aires territórios sobre os quais o

Brasil teria legítimo direito de propriedade. Ademais, buscava-se explicar sua suposta

benevolência pela origem argentina de sua mãe e pela sua estada no país vizinho. Para

defendê-lo, os demais ministros (à exceção do ministro da Agricultura, Demétrio

Ribeiro, que se opunha à cessão de território onde habitassem brasileiros) decidiram

assumir coletivamente a responsabilidade por todas as decisões políticas tomadas pelo

governo provisório (LEMOS, 2016; HEINSFELD, 2014).

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À época, predominava no seio do governo a visão de que a questão lindeira

deveria ser resolvida a partir de uma espécie de “justiça salomônica”, à qual os

parlamentares e grande parte da opinião pública se opunham. Por um lado, há o apoio

de personalidades como Ruy Barbosa ao tratado assinado por Quintino Bocaiúva. O

jornal “O Paiz”, cujo redator-chefe era o próprio Bocaiúva, apresentou uma visão

moderada sobre as tratativas, favorável ao acordo. Por outro lado, personalidades como

o ministro da Marinha, Eduardo Wadenkolk, e diversos jornais se posicionaram de

forma extremamente crítica em relação à assinatura do tratado e à atuação do chanceler

brasileiro. O “Diario do Commercio”, também contrário ao acordo, publicou, no dia 18

de janeiro de 1890, portanto antes mesmo da sua assinatura, um mapa que explicitava a

magnitude da cessão territorial que o Brasil pretendia realizar (HEINSFELD, 2014;

BANDEIRA, 2003).

Diario do Commercio, 18 de janeiro de 1890.

Entre os jornais críticos a Bocaiúva, destacava-se também o “Jornal do

Commercio”, de cujas acusações ele se defenderia nas sessões dos dias 24 e 30 de julho

de 1891 no Senado. No texto publicado no periódico carioca, insinuava-se que Quintino

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teria, em conjunto com José Antônio de Freitas, funcionário comissionado do governo

que, por morar na Europa, ficara incumbido de localizar documentos em Portugal e na

Espanha que contribuíssem para subsidiar a posição brasileira na questão das Missões,

ocultado documentos favoráveis à posição brasileira (BOCAIÚVA, 1986).

Em agosto de 1891, o tratado seria recusado pela comissão especial da Câmara

dos Deputados. A comissão considerou que, pelos termos do acordo, o Brasil renunciara

a territórios legitimamente seus e recomendou que os deputados não o sancionassem.

Quintino ainda iria à Câmara em duas oportunidades para prestar esclarecimentos sobre

as tratativas, mas acabaria concordando com o parecer da comissão, que seria aprovado

em sessão secreta na Câmara por 142 votos contra cinco votos no dia 19 de agosto.

Ruy Barbosa apoiou a decisão de Bocaiúva de assinar o tratado até o final, tendo-

lhe endereçado carta acerca do assunto no dia 10 de agosto, após discurso do chanceler

na Câmara dos Deputados

Meu amigo Quintino Bocaiúva,

Por um amigo, testemunha presencial chegou até a minha cama a impressão

viva da imensa, da incomparável vitória moral obtida pelo seu patriotismo e

pela sua eloquência na defesa do Tratado de Montevidéu perante a Câmara

dos Deputados – vitória que por si só bastaria para encher toda uma grande

vida. Eu tenho nesse triunfo um desvanecimento especial: o de havê-lo

predito a toda a gente. Aceite, pois, o meu tríplice abraço: de brasileiro, de

membro do Governo Provisório e de irmão seu pelo espírito, nesta campanha,

que elevou cem côvados acima dos seus maiores adversários o seu honrado e

ilustre nome (...) (SILVA, 1968, p. 724).

Entre dezembro de 1891 e janeiro de 1892, Quintino publicou, em “O Paiz”, 21

artigos sobre o assunto, parte de uma série de 36 textos de sua autoria intitulada “Na

Defensiva”, na qual se defendia de ataques de políticos e de parte da imprensa. Nos

artigos acerca do Tratado das Missões, Bocaiúva reafirma que a decisão pela assinatura

foi realizada de forma unânime pelos membros do Governo Provisório e que, portanto, a

responsabilidade não era exclusivamente sua. Quintino ainda procura desmentir diversas

acusações feitas a seu respeito, como a de seu suposto parentesco com o negociador

argentino, Enrique Moreno (BOCAIÚVA, 1986).

Bocaiúva publicou, no dia 16 de dezembro de 1891, no artigo de número XVII da

série, o memorandum enviado a ele por Moreno logo após a proclamação da República,

no qual o diplomata argentino propunha a divisão do território contestado por meio do

traçado de uma linha mediana geográfica. Em tal documento, Moreno afirmava que D.

Pedro II já havia se mostrado favorável a tal solução e que um esboço do tratado já

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havia sido feito quando da derrubada do imperador brasileiro. Quintino narra então

como procedeu, conclamando uma reunião do Conselho de Ministros para discutir a

questão e deliberar a respeito (BOCAIÚVA, 1986).

Na penúltima reunião, ocorreu a votação acerca da questão, tendo todos os

ministros, à exceção de Benjamin Constant, se manifestado de forma favorável à

resolução do litígio territorial sob a forma de tratado e não de arbitragem. Apesar de

poder decidir favoravelmente à solução via tratado, dado que somente precisava de uma

maioria dos votos dos ministros, Bocaiúva preferiu considerar interrompida a discussão

do tema por falta de consenso. Julgava que a questão era importante demais para ser

adotada sem unanimidade dos votos. Após a suspensão da deliberação, em reunião

posterior, realizada no Palácio do Itamaraty, Constant mudou de opinião, passando a

apoiar a assinatura do tratado. Dessa forma, a decisão só foi de fato tomada pelo então

chanceler após alcançado o consenso do Conselho de Ministros. Segundo ele, todas as

reuniões realizadas encontram-se devidamente registradas no livro das atas do Governo

Provisório (BOCAIÚVA, 1986). Percebe-se, contudo, que, a posteriori, dois ministros

se opuseram ao resultado das tratativas, como já mencionado.

No artigo de número XXVII, publicado no dia 29 de dezembro de 1891, Bocaiúva

responde às críticas do Barão de Capanema, que integrara a Comissão Mista Brasileiro-

Argentina de Demarcação da região estabelecida em 1885, afirmando que o Brasil não

tinha nenhuma base para recorrer ao princípio do uti possidetis na região. Quintino

afirma que

(o) essencial a saber é o seguinte: que se, de comum acordo, tanto o governo

brasileiro como o argentino reconheceram como litigioso o território

compreendido entre os rios designados por um e outro, claro é que nenhum

deles pode alegar posse legítima e incontestável.

Nenhuma Nação permite que a sua soberania seja posta em dúvida em

territórios efetivamente ocupados e onde se exerça a jurisdição nacional. Não

seria esse um caso a submeter a um árbitro; seria um casus belli. O árbitro

seria o canhão. Não é este, felizmente, o caso das Missões. Ele é obscuro e

confuso; ele é intrincado e cheio de dubiedades; mas por fortuna foi posto em

um terreno decoroso e nobre, sem necessidade de se fazer apelo às armas

(BOCAIÚVA, 1986, p. 112).

No dia seguinte, em “Na defensiva” número XXVIII, Bocaiúva expõe a confusão

em relação aos nomes dos rios da região. O que para os brasileiros era o Pepiri-Guaçu,

para os argentinos era o Pepiri-Mirim; o que os brasileiros chamavam Chapecó, os

argentinos consideravam ser o verdadeiro Pepiri-Guaçu; o que no Brasil era considerado

o Santo Antônio (após muitos anos sendo considerado como o Chopim), os argentinos

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consideravam como o Santo Antônio-Guaçu ou Jangada. Esse desentendimento foi

constante durante as explorações e os estudos dos comissários brasileiros e argentinos

da comissão de demarcação. Quintino então apresenta alguns telegramas tocados entre o

barão de Capanema e o barão de Cotegipe, nos quais o próprio Capanema mostra-se

confuso em relação à nomenclatura e à localização dos rios, expondo a discussão sobre

o rio Jangada (BOCAIÚVA, 1986).

Outo crítico ferrenho de Bocaiúva e de suas ações à frente do Ministério das

Relações Exteriores foi o monarquista Eduardo Prado. Sob o pseudônimo de Frederico

de S., Prado publicou uma série de artigos na Revista Portugal, dirigida por seu amigo

Eça de Queirós, os quais seriam reunidos em livro intitulado “Fastos da ditadura militar

no Brasil” em 1890. Nos artigos “Fastos da ditadura”, de fevereiro de 1890, e “A

ditadura no Brasil”, de março do mesmo ano, Prado critica tanto o idealismo que

percebe na orientação da chancelaria do Governo Provisório republicano em relação à

Argentina, quanto o militarismo do governo Deodoro.

Prado especula, a partir de reportagens de um correspondente do jornal “Tempo”

que as tratativas para resolver o litígio territorial com a Argentina seriam motivadas, da

parte brasileira, pela necessidade de contar com o auxílio do vizinho diante da possível

emergência de uma revolta no Rio Grande do Sul, auxílio pelo qual o governo brasileiro

estaria disposto a “pagar caro”. Prado qualificou como “ato quase subserviência

internacional” a assinatura do acordo de Montevidéu (PRADO, 1890, p. 60) e como

“regabofe diplomático” de “feição antipatriótica, “espetaculosa” e “burlesca” (PRADO,

1890, p. 62, 64) a viagem do chanceler a essa cidade. Segundo ele, a atuação de

Quintino caracterizara-se pelo “servilismo” e pela “sofreguidão de entregar aos

argentinos parte do território brasileiro” e por “atos de indigna leviandade” (PRADO,

1890, p. 63-64).

Prado considera que, por meio do acordo, o Brasil, pelas mãos de Bocaiúva,

estava abdicando ao exercício da hegemonia na América do Sul. Segundo ele

Tudo isto é muito grave. A rivalidade entre o Brasil e a República Argentina

tem uma razão de ser histórica que há de perdurar malgrado todas as

palavrosas manifestações de apreço e amizade, outros tantos fenômenos de

histerismo que reveste a monomania da fraternidade americana que o

governo provisório tanto exalta e na qual finge acreditar.

Se são sinceras as expansões fraternais dos governos das duas repúblicas, por

que dobrou o governo provisório do Brasil o exército do país? Por que ainda

ultimamente abriu um grande crédito para a compra de navios de guerra? (...)

Parece, porém, que os estadistas da República brasileira estão convencidos da

eterna fraternidade americana (PRADO, 1890, p. 45).

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Eduardo Prado ainda criticou a suposta pompa da viagem de Bocaiúva a

Montevidéu. Ele e grande parte da imprensa da época afirmavam que o chanceler

brasileiro havia solicitado que lhe fosse disponibilizado o encouraçado Riachuelo, ato

percebido como desmesurado e perdulário. Na verdade, como demonstram as atas do

Governo Provisório, a viagem de Bocaiúva a bordo do Riachuelo e não de um vapor

comum se deu por decisão do presidente Deodoro da Fonseca (PRADO, 1890;

ABRANCHES, 1907).

Somente em 1895 o litígio seria resolvido, em favor do Brasil, de forma

definitiva, tendo por árbitro o presidente dos Estados Unidos Grover Cleveland e como

agentes arbitrais Estanislao Zeballos e o Barão do Rio Branco (LEMOS, 2016;

BANDEIRA, 2003). Essa atuação de José Maria da Silva Paranhos Jr. marcaria o início

da sua atuação em negociações limítrofes, a qual levaria, mais tarde, à sua consagração.

Em carta endereçada a Francisco A. Barroetaveña, ilustre político argentino,

escrita em 1912, Bocaiúva explicitou sua posição sobre as relações entre Brasil e

Argentina, denunciou a política imperial de hostilidade com os vizinhos (sobretudo a

Argentina) e expressou seu pesar com relação à incompreensão de sua visão por parte

da classe política e da imprensa.

À medida que nos distanciamos do nosso passado, vamo-nos emancipando

gradualmente dos preconceitos, dos antagonismos e até ódios, que, como o

levedo colonial, por tanto tempo perduraram entre os povos do continente e

particularmente entre brasileiros e argentinos, que durante muitos anos

viveram, apesar de independentes, como se fôssemos ainda súditos de D.

João VI, ou súditos de Fernando VII, acreditando que nenhum dos dois países

– o Brasil e a Argentina – poderia medrar em riqueza, em progresso e em

força, sem detrimento ou míngua para um ou para outro. Contra a influência

nefasta dessas preocupações que chegaram a caracterizar, durante algum

tempo, a política dos governos e a índole dos povos de uma e outra

nacionalidade, batalhei perseverantemente na imprensa e na tribuna popular,

com sincera convicção, sobrepondo-me aos erros da época e afrontando

virilmente, mas serenamente, os vilipêndios e as desconfianças sublevadas

pela minha propaganda – a qual era tão mal compreendida que chegava a

desnacionalizar-me no seio da minha própria pátria (BOCAIÚVA, 1986, p.

709-710).

Considerações Finais

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O pensamento do “apóstolo dos grandes ideais”, apesar de pouco estudado, tem

especial importância no que se refere à diplomacia. A defesa feita por Bocaiúva da

solidariedade americana ao longo do seu breve período à frente do Ministério das

Relações Exteriores, apesar de muito contestada à época, teria profundas repercussões

na condução da política exterior mais tarde. O interesse de Bocaiúva em se aproximar

dos vizinhos americanos, secundado por Salvador de Mendonça, influenciaria, mais

tarde, o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco, ainda que matizado pelo pragmatismo

e realismo esposados por Paranhos Jr. Isso ocorreria devido ao enfraquecimento das

correntes idealista e positivista de política exterior - muito fortes durante o governo

Deodoro da Fonseca – a partir do governo Floriano Peixoto. A influência das ideias de

Bocaiúva sobre o pensamento diplomático brasileiro, contudo, se manteve.

Por meio das análises propostas por Skinner e Alonso avaliamos a prática

discursiva e a aplicação em um caso concreto das ideias de Quintino Bocaiúva. Anti-

positivista no seio de um governo profundamente inspirado pelas ideias de Comte,

chanceler com atuação extremamente contestada pela imprensa, Bocaiúva logrou

manifestar suas concepções tanto sob a forma de discursos e artigos jornalísticos,

quanto sob a sua forma de conduzir as relações do Brasil com o exterior.

É importante ressaltar, contudo, que a atuação de Bocaiúva nas negociações do

território das Missões foi amplamente apoiada pelo governo de Deodoro e pelo

Conselho de Ministros. Parte da imprensa, não obstante, atribuiu exclusivamente ao

americanismo - colocado sob uma luz negativa - esposado por Quintino o resultado das

tratativas com a Argentina, consubstanciado no Tratado de Montevidéu e na sua

rejeição pela Câmara dos Deputados.

As críticas de grande parte dos meios de comunicação da época e de intelectuais

como Eduardo Prado obscureceram a importância da defesa de Bocaiúva da

solidariedade americana, igualando-a a uma traição do interesse nacional. Quintino,

prócer republicano, contudo, tinha uma visão clara do interesse nacional e da

importância da manutenção de boas relações com a vizinhança americana para garantir

a paz e a estabilidade e para evitar a ameaça de intervenções estrangeiras.

Reconhecido por personalidades como Ruy Barbosa e Pinheiro Machado como

um nacionalista convicto, defensor incansável dos interesses da república brasileira,

Bocaiúva buscou conciliar a solidariedade continental e a defesa da pátria. O Tratado de

Montevidéu e os artigos em defesa dele publicados por Quintino em “O Paiz”

demonstram esse propósito de forma eloquente.

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No dia da morte de Quintino, 11 de julho de 1912, Pinheiro Machado

homenageou a memória de seu amigo em discurso diante do Senado Federal, assim

como Ferreira Chaves, Nilo Peçanha, Francisco Glicério e Antonio Azeredo. Na

ocasião, Pinheiro Machado disse, a propósito de Bocaiúva

Servidores da estatura de Quintino Bocaiúva, de vida imaculada, com

serviços tão extraordinários ao seu país, não são comuns nem podem ser

avaliados pela metragem vulgar. (...) Ao embate das paixões em tumulto,

sempre enroupado o seu espírito na clâmide nobre da tolerância, mesmo neste

recinto, presidindo as sessões do Congresso, ele conseguiu manter a

superioridade singular de sua personalidade, ouvindo tranquilamente injúrias,

agressões cruéis, com que procuraram atingi-lo e não se deixou arrastar no

torvelinho das paixões (SILVA, 1983, p. 106).

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DO IDEALISMO AO DESENCANTO:

OS DISCURSOS E A ATUAÇÃO DIPLOMÁTICA DE

SALVADOR DE MENDONÇA

Mariana Marshall Parra

Resumo:

O presente trabalho tem por objetivo analisar os discursos e a atuação de

Salvador de Mendonça à luz da interpretação esposada pela historiografia brasileira

majoritária acerca de sua trajetória diplomática. Com este fim, propõe-se uma reflexão

sobre os primeiros anos da República no Brasil, detendo-se a análise sobre três

momentos distintos da vida de Mendonça: enquanto jornalista e membro fundador do

Movimento Republicano; durante o desenrolar da Revolta da Armada e após sua

aposentadoria do serviço exterior brasileiro. A questão central proposta por este trabalho

reside em identificar os aspectos de pragmatismo e pioneirismo presentes na atuação

diplomática de Salvador de Mendonça, em contraposição ao caráter idealista e

disruptivo a ele usualmente atribuído pela historiografia.

Palavras-chave:

Salvador de Mendonça; Manifesto Republicano; americanismo; Revolta da Armada.

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Introdução

A proclamação da República no Brasil significou a adaptação do Estado às

transformações sociais que deram azo ao surgimento da hegemonia dos cafeicultores.

Para a política externa brasileira, foi o início da diplomacia da agro-exportação e do

direcionamento para os Estados Unidos, com a liberalização aduaneira associada à

expansão do mercado consumidor de café.

Salvador de Mendonça participou de momentos decisivos da República

nascente:

inicialmente como jornalista militante do republicanismo; a partir de 1876 como

representante do Brasil junto ao governo dos Estados Unidos, quando inaugurou um

longo período de relações que viriam a se tornar estratégicas para a política externa e o

desenvolvimento nacional. Sua importância na condução do que viria a ser o

enquadramento do Brasil no “realismo periférico” conceitualizado por Carlos

Escudépode ser entendida como subvalorizada em comparação com a reputação gozada

pela figura do Barão do Rio Branco na história das relações exteriores brasileiras.

O presente trabalho partirá da perspectiva proposta por Quentin Skinner para a

análise da história do pensamento político. Pretende-se, dessa forma, avaliar o contexto

e as motivações subjacentes à atuação diplomática de Salvador de Mendonça. O

posicionamento esposado por Mendonça nas diferentes fases de sua vida por meio de

peças jornalísticas, documentos diplomáticos, gestões junto ao Departamento de Estado

norte-americano e registro escrito uma vez afastado do serviço exterior brasileiro, será

analisado em confronto com as circunstâncias históricas e políticas de cada momento.

De modo a explicitar o pensamento de Mendonça sobre a política exterior brasileira,

procede-se à avaliação detida sobre sua atuação em relação à Revolta da Armada.

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Breve biografia de Salvador de Mendonça

Salvador de Menezes Drummond Furtado de Mendonça nasceu em Itaboraí, na

província do Rio de Janeiro, em 1841. Iniciou seus estudos na Corte, indo em seguida

para São Paulo, onde ingressou, em 1859, no curso de Direito do Largo São Francisco,

onde estudou com Prudente de Morais, Campo Sales e Américo Brasiliense.

O ambiente acadêmico era marcado pelo reformismo e pelo liberalismo radical,

levando Salvador de Mendonça a iniciar atividade jornalística crítica ao predomínio

conservador e à Monarquia, ainda que sua inclinação inicial fosse mais literária do que

política. No princípio, o posicionamento defendido era de extremo liberalismo,

sustentado, contudo, o sistema monárquico constitucional representativo. Ao se

aproximar de Teófilo Ottoni, a literatura passou a perder espaço para a política, com a

fundação, por ambos, do periódico A Legenda. Já em 1859, Mendonça ali escrevia,

acerca do campo político:

Liberais em extremo, mas sustentadores ainda do sistema monárquico

constitucional representativo, havemos de mostrar os vexames e as

privações que sofre o povo, enquanto os cortesãos e os parasitas se

atropelam junto ao trono fazendo luzir os seus galões de ouro nas

librés que servem nos dias de mascaradas nacionais. Escrevemos para

brasileiros: eles nos hão de ouvir (MENDONÇA apud AZEVEDO,

1971, p.38).

Com a crise de 1868, marcada pela queda tumultuada do gabinete liberal,

abandonou-se o argumento da estabilidade monárquica, centrando-se o discurso

republicano na crítica severa ao sistema de representação e ao Poder Moderador.

Preservava-se, entretanto, a figura do Imperador.

Em 1869, Salvador de Mendonça formou-se bacharel em momento em que

questões familiares e financeiras impuseram seu retorno à Corte, ensejando assim sua

aproximação com a imprensa e a literatura. Passou a colaborar com o Diário do Rio de

Janeiro, de Saldanha Marinho, político liberal a quem Mendonça veio a considerar um

padrinho político, o que fez voltar suas atenções à crise que atravessava a política

brasileira. Atuou também como professor de História do Brasil no Colégio Pedro II, em

substituição a Joaquim Manuel de Macedo. Lá, teve como alunos Joaquim Nabuco e

Rodrigues Alves, à época descritos por ele como “grandes promessas”.

Em 1870, fundava, com Saldanha Marinho e Cristiano Ottoni, o Clube

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Republicano, em cujo periódico, “A República”, pretendia propagar as ideias com as

quais havia tido contato no período em que vivera em São Paulo. No mesmo ano,

publicaram juntos o Manifesto Republicano, de cuja autoria Salvador de Mendonça

participou com o capítulo intitulado “A Verdade Democrática”. Entre 1874 e 1875,

colaborou com “O Globo”, de Quintino Bocaiúva, escrevendo matérias sobre a Câmara

dos Deputados. Subsequentemente, a convite de José Carlos Rodrigues, passou a

escrever para o “Novo Mundo”, periódico brasileiro com correspondentes no exterior.

Seu retorno à Corte caracterizou-se pela ênfase sobre o jornalismo político,

marcado pelo republicanismo, tendência que chegou a se manifestar em algumas de

suas obras literárias, como “Marabá: romance brasileiro”, publicado em 1875. O livro

continha, implícitos, alguns dos elementos da plataforma republicana da época, como o

elogio ao sistema federalista e o entusiasmo pelos Estados Unidos. O diálogo a seguir

contrapõe as características de franceses, ingleses e norte-americanos, enaltecendo estes

últimos:

– Nenhuma liberdade lhe falta. Está de posse quanto é necessário para

a expansão de sua atividade prodigiosa. Mas por quê? Porque não há,

talvez, no mundo, cidadão que melhor o saiba ser. A instrução pública

não tem mais severo fiscal, nem mais dedicado contribuinte. Escolhe o

seu talante o seu culto e possui fé convicta. [...] Respeita as leis e as

autoridades constituídas, porque as fez e as constituiu, e não tem

escrúpulo em reformá-las ou substituí-las, quando são ou se tornam

más.

– É o que também devemos fazer aqui, porque leis e autoridades não

podem ser piores, acudiu José Alves, que até aí ouvira atento seu

interlocutor. [...]

– Mudem-se as instituições! Disse José Alves, com calor. (p.87-91)

Seu ingresso na carreira diplomática se deu em 1875, quando foi designado

cônsul em Baltimore, tornando-se em seguida cônsul geral em Nova York. Desde

praticamente o reconhecimento da República pelos Estados Unidos, em 29 de janeiro de

1890, exerceu a função de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário do Brasil

junto ao governo daquele país, até 1898, quando foi substituído por Assis Brasil. A este

propósito, as principais legações do Brasil (Washington, Buenos Aires, Paris, Roma e

Santiago) foram providas, logo após o advento da República, por pessoas que, se não

ingressaram no quadro diplomático após o 15 de novembro, eram identificadas com o

novo regime, como o caso do próprio Salvador de Mendonça, bem como de Assis

Brasil, Gabriel de Piza, Xavier da Cunha e Ciro de Azevedo.

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Na etapa de transição entre o regime imperial e a República, fazia parte tanto da

estratégia republicana evolucionista quanto da política monarquista manter um certo

grau de proximidade ao polo oposto. Da parte republicana, a postura relacionava-se à

aspiração por uma mudança de regime conduzida pelo Parlamento. De modo que ao

aceitar o convite para integrar a política exterior imperial, Salvador de Mendonça não

contrariava os princípios do grupo com o qual se identificava.

Uma vez servindo em solo norte-americano, Salvador de Mendonça encantou-se

com a organização política e as instituições estadunidenses. Foi o representante

brasileiro na Expo de 1876, na Filadélfia, onde a visita de D. Pedro II causou excelente

impressão aos norte-americanos. Em 1889, foi incumbido, pelo Visconde de Ouro

Preto, da organização da missão especial à I Conferência Internacional Americana.

A partir do desfecho da Revolta da Armada, Salvador de Mendonça passou ao

ostracismo, sequer tendo sido mencionado nas notícias referentes à questão das

Missões, apesar de dela ter participado ativamente, à época da cogitação da “aliança

íntima”. Sua carreira foi interrompida em 1898, quando sua transferência para a legação

em Lisboa, por si só punitiva em razão de suas gestões junto ao Departamento de

Estado, não foi aprovada pelo Congresso brasileiro. Em 1903, passou à disponibilidade,

mas não chegou a representar mais o país em razão de problemas de saúde. Com o fim

de promover seu próprio julgamento, publicou uma série de artigos transformados em

livro, em 1913, ano de sua morte: A situação internacional do Brasil. Na obra, Salvador

de Mendonça revisitou os principais momentos de sua carreira diplomática, tecendo

severas críticas aos condutores da política externa brasileira à época: Rio Branco e

Joaquim Nabuco. Mendonça acreditava ser o membro fundador da diplomacia pró-

Estados Unidos, entendendo que o Barão e Nabuco, ademais de não reconhecerem seu

pioneirismo, davam péssimo seguimento à política por ele inaugurada.

O Manifesto de 1870

Os anos 1870 foram marcados por profundas transformações que logo

promoveram mudanças incontornáveis na história política do Segundo Reinado. Desde

a década de 1850, quando o país passou a ser inundado por novas atividades produtivas

e investimentos estrangeiros, a diversificação do comércio e uma industrialização

embrionária haviam iniciado um processo de modernização material. Neste contexto,

fazia-se flagrante a decadência e o anacronismo das instituições centrais do Império,

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simbolizadas pela existência do poder moderador e sua “pessoalidade” na distribuição

de recursos entre as províncias, o que propiciava a continuidade dos traços de poder

econômico e político construídos nas províncias ao longo do século XIX. Desse modo,

perpetuava-se o déficit de representatividade da maioria da população nos assuntos

públicos, cristalizada a hierarquização da sociedade entre aqueles que tinham acesso e

os que deveriam permanecer excluídos do campo político.

Amado Luiz Cervo aponta, no período, a pretensão imperial de tornar o Brasil

uma potência periférica regional, mesclada por tendências de distensão (derivadas dos

bons resultados na guerra do Paraguai, do fim da questão fronteiriça com a Inglaterra, e

das novas relações com a Argentina em termos pacíficos) e de universalismo (presente

na busca de extensão e de prestígio para a ação externa da Monarquia). Neste contexto,

o Império manifestava reservas em relação às tendências ao pan-americanismo então em

voga na América Latina, acentuando suas históricas inclinações europeias.

O movimento intelectual da geração de 1870 não foi nem popular nem

revolucionário, mas reformista. Repudiava o exemplo da Revolução Francesa,

concentrando-se as apostas na propaganda e na persuasão. Ainda que mantivesse o

caráter elitista do debate político, os contestadores lançaram mão de uma estratégia até

então inédita: a mobilização coletiva fora das instituições políticas. Eram jovens

jornalistas com formação em Direito ou em Medicina que procuravam ampliar suas

esferas de influência e reconhecimento social, fazendo uso da propaganda escrita e de

discursos públicos. As ideias propostas traziam forte influência estrangeira aplicada à

realidade brasileira, com a particularidade de que o ímpeto reformista não visava à

destruição do status quo vigente, e sim servia ao objetivo sustentado por seus

proponentes de adquirir proeminência no espaço político, fazendo jus à caracterização

como corrente evolucionista do republicanismo, em oposição ao segmento militarista

radical, este inspirado pelas ideias positivistas de Auguste Comte.

A referência ao continente americano era, para os evolucionistas, a justificação

primordial para o estabelecimento do federalismo, entendido como bem aplicado no

caso norte-americano. Os Estados Unidos eram percebidos como afins ao Brasil em

razão de sua geografia e, em certa medida, de sua história.

A propaganda política, desenvolvida em comícios e conferências públicas e

principalmente por meio da imprensa, incutiu em certos meios uma opinião pública

favorável à ideia republicana que, no decorrer das décadas de 1870 e 1880, adaptou-se

às especificidades regionais.

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A 03 de dezembro de 1870, o Clube Republicano publicou seu manifesto no

periódico A República. O texto não se tratava de um programa político-partidário

propriamente dito, caracterizando-se antes como um ensaio histórico recheado de

críticas à decadência da monarquia. O Manifesto defendia a organização federativa do

Estado e vislumbrava a adoção da República pela via parlamentar, afastando suspeitas

de sedição revolucionária. A Salvador de Mendonça coube a escrita do capítulo

intitulado A Verdade

Democrática1, que se inicia com a crítica à monarquia constitucional representativa

prevista pela Constituição de 1824, por se tratar de uma contradição em termos, ou uma

utopia:

(...) A questão é clara e simples. Ou o principe, instrumento e orgam

das leis providenciaes, pela sua só origem e predestinação, deve

governar os demais homens, com os predicados essenciais da

inviolabilidade, da irresponsabilidade, da hereditariedade sem

constraste e sem fiscalisação, porque o seu poder emana da

Omnipotencia infinitamente justa e infinitamente boa; ou a Divindade

nada tem que ver na vida do Estado, que é uma communhão a parte e

extranha a todo interesse espiritual, e então a vontade dos governados

é o unico poder supremo e o supremo arbitro dos governos.

A questão da inadequação da monarquia constitucional representativa foi

tratada, ainda assim, como vício isolado da Carta de 1824, na medida em que o

Manifesto prossegue no sentido de demandar “a convocação de uma assembléia

constituinte com amplas faculdades para instaurar um novo regimen”, nos termos da

própria carta constitucional. O teor preponderante do Manifesto foi seu caráter

reformista de forte inclinação americanista (“Somos da América e queremos ser

americanos”), vista a configuração do Estado brasileiro como fator de isolamento do

país no mundo:

(...)Perante a Europa passamos por ser uma democracia monarchica

que não inspira sympathia nem provoca adesões. Perante a América

passamos por ser uma democracia monarchisada, aonde o instincto e a

força do povo não podem preponderar ante o arbítrio e a omnipotencia

do soberano.

1 MENDONÇA, Salvador et. al.. Manifesto Republicano. A República, Rio de Janeiro,

03 dez. 1870, p. 2.

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Clodoaldo Bueno aponta o desprezo demonstrado por Salvador de Mendonça a

respeito da aristocracia brasileira, que descrevia como “monarquistas vira-casacas”;

classe desprovida de projeto de nação e movida apenas pelo auto-interesse (que, à

época, em muito correspondia ao descontentamento com a abolição da escravatura). O

americanismo e a americanização pertenciam ao discurso dos republicanos históricos e

contribuíam para marcar a oposição entre liberais e conservadores.

O desencanto republicano que acometeu Salvador de Mendonça no final de sua

carreira diplomática condiz com a postura assumida pela corrente evolucionista do

movimento republicano, na medida em que atribui os insucessos da República ao modo

como o novo regime se instalou, qual seja: passando ao largo do espírito democrático e

da formação de uma consciência política e cidadã condicionada à educação do povo

brasileiro. É difícil afirmar que a sorte do país seria radicalmente diferente houvesse

sido o campo evolucionista o responsável pela instalação da República: a proposta dessa

corrente pressupunha um caráter elitista ao prever uma mudança de regime no

parlamento, nos termos da Constituição de 1824 e sem rupturas; logo, pretensamente

democrática na medida em que manteria um importante déficit de representatividade na

política.

O campo responsável pela proclamação da República opunha-se à tendência

evolucionista por promover a via ditatorial e revolucionária para a mudança de regime.

Inspirada nas ideias do positivismo de Comte, a corrente obteve aceitação junto aos

segmentos republicanos do Sul e do Nordeste do País. O conflito entre os dois setores

logo tomou a cena política, com disputas sendo travadas pela liderança do movimento e

do partido em âmbito nacional. Em maio de 1889, a questão foi aplacada, com a

indicação de Quintino Bocaiúva à chefia do partido, e a via pacífica ou eleitoral passou

a ser adotada na propaganda republicana.

1. A atuação diplomática de Salvador de Mendonça

a. A proclamação da República e a americanização nascente

Em 1889, com a substituição de Cleveland por Harrison na presidência, os Estados

Unidos promoveram um refluxo protecionista e antiliberal em suas relações comerciais,

gerando alarme no setor exportador brasileiro. No Brasil, a abolição da escravidão havia

gerado a desorganização do trabalho, exceto em São Paulo, onde a imigração já estava

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em curso. Neste contexto de instabilidade, com aumento das vulnerabilidades e

insatisfações por parte do setor produtivo, a Monarquia dependia do apoio de uma

verdadeira aristocracia, que então se percebia inexistente no Brasil: os pretensos

aristocratas brasileiros, grupo que incluía latifundiários, senhores de escravos, donos de

engenho e cafeicultores, afastaram-se do trono assim que começaram a perder

privilégios. Todo o setor que até então fora conservador aderiu, subitamente, ao

movimento republicano por ressentir-se das mudanças operadas pelo Império a fim de

se modernizar.

Salvador de Mendonça assumia postura crítica a essa aristocracia de ocasião, à qual ele

se referia como “monarquistas vira-casacas”, desprovidos de projeto de nação e

movidos apenas pelo auto-interesse, simbolizado, àquele momento, pelo

descontentamento pela abolição da escravatura.

No âmbito doméstico, como aponta Topik (2009), verificava-se a indiferença

popular ao regime republicano. O Império havia caído em momento de popularidade em

razão da recente abolição da escravidão. A forma de instauração do novo regime não foi

uma revolução, mas um golpe de Estado, orquestrado por um dos setores então

insatisfeitos com a política imperial.

As ideias de americanismo e americanização pertenciam ao discurso dos

republicanos históricos e fundavam-se sobre o projeto de construção de uma

cordialidade pragmática e utilitária entre os dois países, nos termos de Amado Luiz

Cervo (2011). A aproximação vislumbrada visava à ampliação do mercado norte-

americano para o café brasileiro, afastando-se o risco de ingerência dos Estados Unidos

sobre as ações brasileiras no Prata e garantindo-se a abertura do mercado brasileiro às

exportações norte-americanas. As mudanças políticas em curso nos Estados Unidos

punham em dúvida a continuidade das relações comerciais altamente lucrativas ao

Brasil que se verificavam até aquele ponto.

No momento em que celebrou o acordo de reciprocidade de 1890, no âmbito da I

Conferência Internacional Americana, a delegação brasileira agiu com o apoio dos

defensores da industrialização e da “modernização”, assim como dos barões do açúcar

ex-monarquistas. Conforme apontado por Topik, estes setores da sociedade esperavam

que a reorientação diplomática os ajudasse a enfraquecer o domínio inglês sobre o

Brasil.

Os Estados Unidos eram percebidos como nação amiga e modelo exemplar,

além de figurarem como única alternativa anti-imperialista. O país havia sido a primeira

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potência a reconhecer o Estado brasileiro após a Independência, inaugurando, à época,

relações políticas amigáveis, ainda que esporádicas. Não obstante isso, a queda da

monarquia foi percebida, no exterior, não como “a burguesia no palco”, mas como um

traço do caudilhismo hispano-americano, associado à instabilidade institucional e,

portanto, razão suficiente para o afastamento de investidores estrangeiros. Em realidade,

tanto aos Estados Unidos quanto às potências europeias, a normalidade político-

institucional e a responsabilidade na condução das finanças nacionais eram o que

importava, independentemente do regime político adotado.

A reação dos Estados Unidos à proclamação da República demonstra claramente

as hesitações em relação à situação política brasileira: ao receber a notícia da mudança

de regime, enquanto se realizava a I Conferência Internacional Americana, Blaine

prestou boa acolhida da novidade, congratulando a delegação brasileira pelo não

derramamento de sangue e reconhecendo prontamente seus representantes para

continuidade dos trabalhos da conferência. Trinta dias depois, contudo, o governo norte-

americano passou a adotar atitude cautelosa e legalista, condicionando o

reconhecimento à adesão da maioria nacional ao novo regime. A atitude demonstrada

pelo presidente Harrison foi em muito atribuída às boas impressões deixadas por Dom

Pedro II quando de sua visita ao país, em 1876, bem como ao temor de que o novo

regime evoluísse para uma ditadura. Ademais, a demora no reconhecimento do novo

regime pôde ser habilmente utilizada como instrumento de barganha pelos Estados

Unidos para obter a anuência brasileira ao acordo Blaine-Mendonça.

Ao saber que a Europa tampouco daria ao novo regime reconhecimento prévio

ao dos Estados Unidos, no que foi percebido como aceitação do fato de a América

Latina se situar na órbita de influência norte-americana, Salvador de Mendonça, estando

em Washington, fez chegar ao Departamento de Estado, por meio de Charles R. Flint,

Thomas Jefferson Coolidge a Andrew Carnegie, sua posição sobre a conveniência de

serem os Estados Unidos os padrinhos do batismo político da república nascente. Blaine

restou convencido e sinalizou positivamente, porém, no Congresso Americano, persistia

a divisão entre membros que suspeitavam de quartelada e preferiam esperar para ver se

existia legitimidade e outros que defendiam o reconhecimento como forma de obstar

ações europeias em solo americano. Entre estes, alguns ainda vislumbravam a

possibilidade de o Brasil entrar na órbita de influência dos Estados Unidos em troca da

manifestação de apoio que o reconhecimento simbolizaria.

Em entrevista ao “The South American Journal”, de Londres, de 31 de dezembro

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de 1989, Quintino Bocaiúva referia-se aos Estados Unidos como a “República-mãe”, de

quem o ministro esperaria júbilo pela mudança de regime no Brasil. Ao mencionar a

ausência de violência na abolição da escravatura e na independência do país, em

oposição ao que teria ocorrido no caso norte-americano, Bocaiúva insinuou que seriam

infundadas as objeções levantadas pela forma como foi implementada a República

brasileira. Havia-se, ademais, revertido a política alegadamente antiamericana do

Império, por meio da abertura para negociar tarifas, arbitramento obrigatório e moeda

comum na Conferência Pan-Americana.

Em 29 de janeiro de 1890, o governo dos Estados Unidos finalmente prestou o

reconhecimento, com aprovação unânime pelo Congresso a 20 de fevereiro.

Normalizadas as relações bilaterais, Salvador de Mendonça ficou incumbido de sondar

o governo dos Estados Unidos quanto ao estabelecimento de uma “aliança íntima”.

Quintino Bocaiúva, em entrevista ao “The New York World”, expressou interesse em

uma “aliança ofensivo-defensiva” para mútua assistência contra potência estrangeira.

Mostrou-se também favorável a medidas tarifárias que beneficiassem os dois países. A

ideia de aliança íntima foi logo abandonada em razão do recrudescimento das tensões

com a Argentina na questão das Missões e do cálculo estratégico de vir o Brasil a poder

contar com os Estados Unidos como árbitro de uma eventual disputa. Em caso de

celebração de aliança, essa possiblidade seria descartada. Mesmo assim, a manifestação

de Bocaiúva deixava claro que a República nascia atrelada aos Estados Unidos.

Em oposição a esse idealismo, em 1893 Eduardo Prado lançou “A Ilusão

Americana”, livro em que criticou a crença, então adotada, na existência de paralelos e

afinidades entre o Brasil e os Estados Unidos. Na obra, Prado apontou as diferenças

fundamentais na formação econômica e social dos dois países, identificando, na política

exterior norte-americana desde o lançamento da Doutrina Monroe, as origens de um

imperialismo capaz somente de manter o Brasil em posição servil e débil. Eduardo

Prado percebia a singularidade brasileira como entrave ao alinhamento irrestrito com os

Estados Unidos, e entendia a monarquia como aspecto indissociável do caráter nacional.

Assim como outros monarquistas à época da proclamação, Prado temia que a adoção de

um regime político desconectado da história e das particularidades brasileiras tornasse o

país mais vulnerável a crises internas, além de alvo do descrédito estrangeiro. Não

passava despercebido o paradoxo entre uma monarquia constitucional representativa e

uma república absolutista, com o militarismo brasileiro sendo alvo de críticas severas

por parte das imprensas francesa e norte-americana. Sintomaticamente, logo após a

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proclamação, retraiu-se o crédito internacional à disposição do governo brasileiro, tendo

em vista a quebra de legalidade, a falta de confiança no novo regime e a associação

corrente entre o militarismo da América espanhola e o prejuízo a seus credores.

Clodoaldo Bueno (1995) associa a política exterior dos anos iniciais da

República a uma ausência de diretriz e a uma perda de altivez internacional, corrigida

apenas com o início da gestão do Barão do Rio Branco, em 1902. Apesar disso, o

mesmo autor identifica uma ruptura clara no período: se as instituições monárquicas

prendiam o Brasil à Europa, as republicanas deviam integrá-lo ao sistema continental.

Pretendia-se romper com a tradição monárquica. Mesmo descontando-se arroubos de

redação encontrados em documentos da época, como os que constavam na mensagem

de Deodoro da Fonseca ao Congresso, na data do primeiro aniversário da proclamação,

não restam dúvidas de que a política exterior do Brasil sofreu significativa reorientação

com o advento da República.

Na perspectiva de Salvador de Mendonça, era inevitável que o expansionismo

dos Estados Unidos viesse a abarcar a América Latina. A única escolha possível recairia

sobre o modo como lidar com essa realidade inescapável. Advogado da boa

aproximação e do estabelecimento de um tribunal arbitral americano, Mendonça

entendia que esses passos resguardariam o Brasil de uma “inundação” comercial e

cultural provocada pelos Estados Unidos à revelia do arbítrio nacional.

Mendonça, em diversas ocasiões, manifestou contrariedade em relação ao

processo que fora empregado no Brasil para a mudança do regime. De acordo com a via

evolucionista que havia adotado desde os tempos do Manifesto Republicano, preferia

que a transição fosse feita no Parlamento. Dito isso, ao receber a notícia da

proclamação, estando em Washington para a I Conferência Interamericana, aduziu que

só dentro d’água se aprende a nadar. (...) Tínhamos de dar muita

cabeçada, e ainda as estamos dando, procurando criar no seio de uma

nação de analfabetos um governo livre que ninguém sabe quando

chegaremos a possuir. (MENDONÇA, 1913, pg. 113)

Tratou de dar “interpretação republicana” às instruções originalmente recebidas

do Império, substituiu Lafaiete Rodrigues na chefia da delegação e operou alteração

radical no discurso brasileiro: do desinteresse expresso em divorciar-se da Europa

passou-se à aceitação do arbitramento obrigatório e à adoção de “espírito americano”.

Cumpre sublinhar também a abolição da conquista, fruto de grande esforço diplomático

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em face da resistência dos Estados Unidos diante da pretensão compartilhada por Brasil,

Chile e Argentina.

Em 1891, o Brasil atravessava crise interna, com o fechamento do Congresso

por Deodoro. Em Washington, Salvador de Mendonça realizava gestões a fim de obter

apoio do governo norte-americano contra alegadas tentativas de golpe monarquista. Não

se consumou o golpe, tampouco houve guerra, mas as gestões precipitadas de Salvador

de Mendonça foram capazes de demonstrar que a restauração monárquica parecia

plausível a pelo menos um setor republicano, e que os Estados Unidos eram tidos como

guardiões das novas instituições. Era esse temor o que fazia de Mendonça menos zeloso

quanto à soberania nacional. Clodoaldo Bueno (1995) entende essa política como uma

ruptura inocente com a prática do Império, que cuidava de impedir o ingresso do Brasil

no subsistema de poder patrocinado pelos Estados Unidos. Havia, por parte dos

monarquistas, o temor de que os Estados Unidos virassem árbitros perpétuos das

Américas. Salvador de Mendonça é acusado, por conseguinte, por romper com a

tradição imperial de autonomia e cordialidade para tornar o Brasil caudatário dos

interesses econômicos e políticos norte-americanos.

As críticas à atuação de Salvador de Mendonça parecem desconsiderar o quadro

de aproximação que se desenhava ainda durante o Império, com o aval e o entusiasmo

do próprio D. Pedro II. O final do século XIX vinha se caracterizando como um período

de crescimento comercial e industrial para os Estados Unidos, passando a Doutrina

Monroe a servir à busca pela expansão dos mercados consumidores para os produtos de

exportação norte-americanos. Nesse contexto, o presidente Cleveland idealizou a I

Conferência Internacional Americana. À época, Cleveland já argumentava com

Salvador de Mendonça a respeito do desequilíbrio no comércio bilateral, antecipando a

ideia de um tratado de reciprocidade entre Estados Unidos e Brasil, que obteve pronta

aceitação por parte do imperador. Segundo Topik (2009), “engrossar as fileiras das

repúblicas apenas formalizou, em nível institucional, a reorientação do Brasil na direção

dos Estados Unidos, que já se achava em curso durante a Monarquia”.

b. A atuação de Salvador de Mendonça no âmbito da Revolta da Armada

Em 1893, o panorama brasileiro era temerário, combinando a destituição da maioria

dos governadores estaduais à revolução no Mato Grosso, somadas à guerra civil no Rio

Grande do Sul, à rebelião na fortaleza de Santa Cruz, à organização de sebastianistas,

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anarquistas, jacobinos e socialistas e à iminência da guerra contra a Argentina pelas

Missões. Em meio à ebulição política atribuída à insatisfação generalizada em relação

ao governo de Floriano, estourou a disputa entre as Forças Armadas. Exército e Marinha

opunham-se entre si em razão das diferenças na extração social e na formação de seus

respectivos integrantes. A Marinha, historicamente elitista em comparação com o

Exército, estava insatisfeita em razão de sua perda de destaque após a proclamação da

República, enquanto o Exército ganhava poder e mando político.

O caráter monarquista da revolta foi definido pelo manifesto de Saldanha da Gama,

de 07 de dezembro de 1893. Ao assumir o comando da revolta e promover o bloqueio

do porto, Gama paralisava o comércio e propunha que “a vontade nacional” escolhesse

o regime político do país. Custódio de Melo já havia buscado atrair os monarquistas a

fim de obter da Europa o reconhecimento do estado de beligerância. O que se percebe é

que tanto para revoltosos quanto para o Governo, a caracterização do movimento como

restaurador serviu mais a propósitos políticos do que a aspirações concretas por parte

dos revoltosos.

Clodoaldo Bueno refere-se a esse momento como a fase da diplomacia da

consolidação, vez que foi por ocasião da Revolta da Armada que se testou até que ponto

os Estados Unidos estavam dispostos a apoiar o Brasil, encerrando-se o conflito com

um vínculo ainda mais forte entre a política externa brasileira e a norte-americana.

Inicialmente, Floriano empenhou-se em organizar uma esquadra para a defesa de

seu governo, a fim de garantir a lealdade da região Norte e romper o bloqueio imposto

por Saldanha da Gama no Rio de Janeiro. Frustradas as tentativas de comprar navios da

Argentina, o Presidente encarregou Salvador de Mendonça de buscar canhoneiras nos

Estados Unidos, o que tampouco surtiu efeito: o Legislativo norte-americano não

autorizaria a venda de qualquer embarcação, em razão da necessidade de rearmar a

marinha do país. Em consequência da impossibilidade de montar uma esquadra nacional

capaz de confrontar os revoltosos, Salvador de Mendonça partiu para a atuação em

outras frentes, desde Washington, a fim de debelar a disputa, dirigindo-se à opinião

pública norte-americana e em gestões junto ao Departamento de Estado.

A questão da intervenção estrangeira centrava-se na disputa entre Estados

Unidos e Europa pela influência sobre a República, àquele momento dividida em polos

opostos, cada qual atrelado a uma das potências. Apesar de a ditadura florianista

promover o fim do predomínio britânico sobre o Brasil, com isso conquistando o apoio

do Presidente Cleveland, houve momentos em que o Secretário de Estado Gresham

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inclinou-se a acompanhar a diplomacia europeia em sua propensão a reconhecer o

estado de beligerância.

Já em janeiro de 1892, Salvador de Mendonça havia buscado manifestações de

apoio junto a Blaine em reação às informações segundo as quais as cortes europeias

estariam em tratativas acerca de restauração. Em telegrama, consultou o governo

brasileiro quanto a eventual interesse em receber mensagem do Congresso Americano,

ou na emissão de nota monroísta à Europa, ou ainda na formação de uma esquadra para

ser enviada ao Brasil. Naquele momento, a resposta de Fernando Lobo Leite Pereira foi

comedida, mas satisfeita pela disponibilidade oferecida.

Iniciada a revolta, a tendência entre comandantes e representantes diplomáticos

estrangeiros era a de manter estrita neutralidade. A partir do momento em que Coelho-

Neto, em missão, e Floriano, em convite ao corpo diplomático para conferência no

palácio, intentaram eximir o governo brasileiro de responsabilidade de qualquer

prejuízo que sofressem os governos e cidadãos estrangeiros, houve escalada de tom: os

comandantes das forças navais de potências estrangeiras – Estados Unidos, Grã-

Bretanha, França e Portugal – ancoradas na baía de Guanabara, em nome dos

“interesses superiores da humanidade”, intermediaram, em conjunto, um convênio,

firmado em 5 de outubro de 1893, entre o governo de Floriano e a Armada rebelada,

estabelecendo as regras de combate e declarando o Rio de Janeiro cidade aberta, com o

objetivo de resguardar alvos civis e o funcionamento do porto. Anteriormente, as

autoridades referidas haviam comunicado o líder da revolta, Custódio José de Melo, que

resistiriam pela força a qualquer ataque contra a cidade. A intervenção foi bem recebida

pelas autoridades legais brasileiras, desprezado qualquer atentado à soberania nacional,

uma vez que, afastada a possibilidade de bloqueio e resguardada a capital de

bombardeio, retirava-se o principal trunfo dos revoltosos.

Em 20 de outubro, o Contra-Almirante Stanton, então máxima autoridade da

Marinha norte-americana em território brasileiro, ao adentrar a baía de Guanabara,

salvou a bandeira dos rebelados e deixou de visitar as autoridades legais. O Governo de

Floriano instruiu Salvador de Mendonça a cobrar explicações do Secretário de Estado, e

a resposta foi a imediata retirada de Stanton do comando da Divisão dos Estados Unidos

no Rio de Janeiro. Fazia-se público, desta forma, o apoio à legalidade e à República

sustentado pelos Estados Unidos.

Em dezembro de 1893, já instalada a revolta, ensaiou-se uma aproximação entre

a diplomacia europeia e o governo norte-americano. A casa bancária Rothschild

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propalava o desinteresse dos países europeus na restauração, sem deixar de considerar

que esta estava a ponto de ser promovida pelos próprios brasileiros, o que restabeleceria

a paz interna e a normalidade nas relações comerciais. Com esse argumento, estimulava

que os Estados Unidos reconhecessem aos revoltosos o estado de beligerância. Salvador

de Mendonça, apreensivo quanto à aproximação entre Europa e Estados Unidos, optou

por influenciar a opinião pública norte-americana, por meio de dois artigos sucessivos

na “North American Review”, publicação mais influente entre as classes dirigentes dos

Estados Unidos.

Cumulativamente ao assédio europeu, Gresham mostrava-se insatisfeito com a

mudança de ancoradouro para o embarque e desembarque de mercadorias de entre as

ilhas das Cobras e Enxadas para o fundo da baía de Guanabara. Ao sentir que a

alteração representava recuo governista diante das forças revoltosas, o Secretário de

Estado advertiu Salvador de Mendonça de que os Estados Unidos não estariam

dispostos a reincidir no erro de apoiar o perdedor, em referência ao apoio norte-

americano anteriormente conferido ao presidente chileno deposto José Manuel

Balmaceda, em 1891. Ao perceber que a questão da mudança de ancoradouro estava

causando a retirada do apoio moral até então recebido pela República do Governo dos

Estados Unidos, Salvador de Mendonça assumiu atitude arriscada como último recurso:

Disse-lhe que melhor seria, para pôr-se de bem com os rebeldes,

reconhece-los logo como beligerantes, tornando-se assim clara e digna

a sua atitude como Governo neutro (...) Continuei: “Mas, se depois

que Vª Exª tiver reconhecido os rebeldes como beligerantes, vier a

reconhecer que apenas caiu num laço armado arteiramente pelos

ingleses, e se estes tomarem a atitude que Vª Exª vai agora deixar, não

se queixe de que não o avisei. O que se está passando na baía do Rio

neste momento entre os governos estrangeiros ali representados

assemelha-se a um jogo em que os parceiros marcam as cartas e

pretendem lograr uns aos outros. Até agora Vª Exª tem estado com

boa mão e, se não estivesse tão mal informado pelos seus agentes no

Brasil, ganharia por certo a partida”. O Sr. Gresham perguntou-me

como sabia eu das informações que lhe davam seus agentes.

Respondi-lhe que para subentendê-las bastavam-me o cabograma do

meu Governo que me dissera que o Ministro inglês levava o Sr.

Thompson a reboque. E mostrei-lhe o cabograma de 18 de novembro.

“Quer Vª Exª saber como ganharia a partida? Ordenando ao Sr.

Picking que rompesse esse bloqueio com que os rebeldes pretendem

embaraçar o Governo e que efetivamente se está tornando sério. Os

ingleses não podem senão seguir o seu exemplo porque se o não

fizerem e quiserem assistir de braços cruzados a que só os norte-

americanos descarreguem e carreguem livremente os seus navios no

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porto do Rio de Janeiro, a indignação dos armadores e comércio

ingleses há de levantar tamanha grita na Inglaterra que há de forçar a

mão ao Sr. Roseberry. Por outro lado, se Vª Exª aceder às sugestões de

Thompson e

Picking, o mais que pode fazer é colaborar na tentativa de mais uma

restauração monárquica. Não acha, Senhor Secretário de Estado,

perguntei-lhe, que duas tentativas de restauração monárquica são

demais para uma só administração Democrática?” – “O Sr. esquece-

se” disse-me o Sr. Gresham com tom convicto, “de que esta

administração é uma administração forte”. “A minha experiência”,

respondi-lhe, “de mais de dezoito anos neste país ensinou-me que há

uma coisa mais forte do que esta administração, - a opinião pública,

que nunca há de aprovar tamanho erro”. “Tem razão, tem razão”,

repetiu o Sr. Gresham que durante as minhas últimas palavras levara a

puxar violentas fumaças do seu charuto. Levantou-se, perguntou-me

se podia repetir nossa conversação ao Presidente; respondi-lhe

afirmativamente do modo mais decisivo, apertamo-nos a mão

vigorosamente e saí. Uma hora depois soube nesse mesmo lugar, a

que fui chamado pelo Sr. Gresham, que o Sr. Presidente Cleveland

acabava de recusar ao Sr. Saldanha o reconhecimento de beligerante

que já havia recusado ao Sr. Melo, e que o Contra-Almirante Benham,

então na ilha da Trindade à espera de ordens, ia receber instruções

para a toda velocidade seguir para o Rio de Janeiro e romper

o bloqueio rebelde, substituindo no comando da divisão o Sr. Picking.

Quanto ao Sr. Thompson, disse-me o Sr. Gresham que lhe ia mandar

ordem para descer de Petrópolis e ficar mais perto do Governo da

República do que do corpo diplomático europeu.2

As ações de Salvador de Mendonça não se restringiram ao Departamento de

Estado. Como se pode depreender das palavras trocadas com Gresham e reportadas ao

Ministro de Estado Carlos de Carvalho, sua atividade estendia-se à imprensa norte-

americana, com vistas a influenciar a opinião pública. Tirando proveito da imagem

positiva de que gozava perante a sociedade local, que havia se empenhado em construir

desde que chegara aos Estados Unidos, Mendonça fez uso da bipolarização política

existente nos Estados Unidos de modo a gerar a pressão necessária sobre seus

interlocutores oficiais, nomeadamente Gresham, no caso da Revolta da Armada. A

mesma estratégia pode ser percebida em sua proximidade a Charles Flint, a propósito,

como se tratará adiante.

Em artigo intitulado Aspects of the Brazilian Rebellion, publicado no “New

York Times” em dezembro de 1893, Mendonça direcionou seus ataques aos

monarquistas, identificados como “inimigos” da República e das nações estrangeiras,

2 Ofício confidencial nº 1, de 22 de dezembro de 1894, dirigido a Carlos de Carvalho.

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prejudicadas com a paralisação do comércio no Rio de Janeiro. Visava a convencer os

leitores norte-americanos das dificuldades e dos problemas que seriam provocados em

caso de restauração do antigo regime político brasileiro, tomando o cuidado de

contrapor interesses comerciais e produtivos a ambições de monarquias decadentes. Fez

também referência à intervenção de Napoleão III no México, em 1861, quando a inação

dos Estados Unidos, em razão da Guerra Civil entre as províncias do norte e do sul,

facilitou a instauração de uma monarquia europeia no seio da América Latina:

Os interesses das nações estrangeiras, que nos nossos tempos estão

dirigidos antes para a conquista de novos mercados para os seus

produtos do que reconstruir tronos para príncipes desempregados,

assentam no restabelecimento da paz na grande República sul-

americana. Na improvável hipótese da vitória dos restauradores no

Brasil, a paz seria impossível, porque o restabelecimento da

monarquia assinalaria o início de uma guerra civil de duração

indefinida e que poderia apenas terminar como a aventura napoleônica

no México [...]. (MENDONÇA, 1894 apud PEREIRA, 2009, pg. 128)

Gresham se deixou convencer pela argumentação de Mendonça e pela campanha

pró-Floriano que Charles Flint vinha conduzindo na imprensa norte-americana. Além de

influenciar a opinião pública, Flint representava as considerações econômicas que

também contaram na consolidação do apoio dos Estados Unidos: influentes empresários

do país encontravam-se organizados em defesa da intervenção naval, dadas as

dificuldades de descarga de mercadorias no porto do Rio de Janeiro e o temor de que os

rebeldes revogassem o acordo Blaine-Mendonça. Paralelamente, ganhava campo a ideia

de uma nova marinha como negócio em grande escala. O fortalecimento das indústrias

nacionais de armas e aço, no contexto de decadência pós-Guerra Civil, era tido como

necessidade elementar da sociedade industrial emergente.

Convencido, Gresham deixou de hesitar e assumiu a defesa de Floriano com

firmeza, dando instruções ao contra-almirante Benham, que procedeu à aplicação de

técnicas da velha marinha à nova missão diplomática naval. Ao assumir o controle da

operação, Benham enviou ofício a Saldanha da Gama, no qual dava conta de

desconhecer sua autoridade e ameaçava enquadrá-lo como pirata, manifestando a não

aceitação, pelos Estados Unidos, do bloqueio sobre a capital. Benham demonstrou que

não blefava ao reagir com um tiro a uma tentativa dos revoltosos de impedir a atracação

de barcos na Gamboa.

Salvador de Mendonça soube captar todos os aspectos envolvidos nas tomadas

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de decisão por parte do governo norte-americano, fazendo uso da diplomacia a fim de

maximizar os benefícios para o governo republicano. Tendo vivido nos Estados Unidos

por quase duas décadas antes do conflito, demonstrava habilidade em dialogar com a

opinião pública e as instâncias oficiais locais. Em contraste com seu trânsito junto à

sociedade e ao meio político no Brasil, o que talvez ajude a explicar tanto a forma como

foi criticado à época quanto o modo como é percebido pela historiografia majoritária

ainda na atualidade.

A falta de interlocução com a realidade brasileira também esclarece, em parte, a

pouca importância conferida por Salvador de Mendonça a questões intangíveis, como

orgulho nacional e soberania, em benefício de aspectos concretos, como o fim da

revolta e o restabelecimento da normalidade. É o que se pode perceber a partir da

resposta prática que Mendonça oferecia a seus detratores: a intervenção estrangeira

havia, afinal, encerrado o conflito e restabelecido a legalidade, com o fortalecimento do

governo de Floriano.

Em oposição ao caráter pragmático de Salvador de Mendonça, as críticas ao

modo como se pôs fim à rebelião detinham-se sobre aspectos do direito internacional e

recorriam a análises contra-factuais. Nesse sentido, Joaquim Nabuco identifica, na

posição brasileira, subserviência e renúncia ao princípio da não intervenção:

Se as potências estrangeiras tinham o direito de impedir um ataque por

mar à cidade, por haver nela vida e propriedade estrangeira, tinham o

mesmo direito de impedir qualquer operação em terra que afetasse

aqueles interesses e, ainda mais proximamente, qualquer operação

contra a esquadra que provocasse o bombardeamento. Se o governo

reconhecia às potencias o direito de coagir a esquadra, reconhecia-lhe

ipso facto o de coagí-lo a ele. A diferença de ser ele Governo, e

portanto soberano, e a esquadra um simples rebelde, não tem valor em

Direito das Gentes. A soberania não é primariamente dos governos, é

das nações, e nos privilégios de soberania entra o de não poderem os

estrangeiros envolver-se nas questões internas do país. (...) Se o

estrangeiro pode coagir a esquadra, pode coagir o Exército, e se pode

coagir um movimento militar, pode coagir um movimento civil.

(NABUCO, 1939, pg. 130)

Nabuco entendia que ao bem receber a intervenção estrangeira, Floriano

reconhecera o exercício de uma tutela externa sobre o Brasil, indiretamente acusando

Mendonça de ter violado a soberania nacional ao buscar e obter intervenção estrangeira

contra embarcações que arvoravam a bandeira nacional.

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Todo governo pode ser surpreendido pelo levante da esquadra, e,

sendo essa esquadra poderosa, pode ela, bloqueando os portos e

percorrendo a costa, coloca-lo em situação perigosa; qualquer

esquadra estrangeira mais forte que se preste a apresar os navios

rebeldes, ou a impedí-los de se servirem dos seus canhões, enquanto o

Governo prepara a resistência, será um aliado eficaz para ele. A

questão é saber o que mais convém à nação, verificada a

impossibilidade de resistir o Governo sem concurso de fora: que ele

chame o estrangeiro em seu socorro – ou, mesmo sem o chamar, se

aproveite da sua atitude hostil à revolta – ou que procure transigir com

o adversário. O primeiro impulso é para aceitar o auxílio salvador,

venha de onde vier; a razão política porém, estabelece, quase como

um axioma, que é preferível fazer ao adversário todas as concessões a

receber o auxilio material do estrangeiro. Entre o principio da

autoridade e o da soberania, é melhor que a transação recaia sobre o

primeiro. (Ibidem, pg. 144)

O fato de não ter havido combate entre a esquadra estrangeira e os revoltosos,

sendo o fator principal do insucesso da revolta a simples presença dos navios norte

americanos estacionados na Baía de Guanabara, induz à conclusão, esposada por

Clodoaldo Bueno, de que a revolta foi derrotada muito mais em Washington do que no

Rio de Janeiro.

Em 1894, Salvador de Mendonça expressou a Carlos de Carvalho, chanceler de

Prudente de Morais, seu desapontamento por não ter recebido maior reconhecimento

por suas gestões no âmbito da Revolta da Armada. Na ocasião, chegou a transcrever

trecho do “The New York Times” que lhe dava crédito como maior responsável pelo

fim da revolta no Brasil. A história da diplomacia brasileira não reconhece a Salvador

de Mendonça o mérito por estabelecer relações mais estreitas com os Estados Unidos.

Araújo Jorge, por exemplo, nem mesmo o cita em seu estudo sobre a diplomacia nos

primeiros anos da República, embora aplauda o papel consolidador de Floriano e

enalteça o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco por atuarem no sentido da

aproximação com os Estados Unidos.

c. A situação Internacional do Brazil

Em 1913, já afastado do serviço exterior brasileiro (do qual se conseguira aposentar

dois anos antes), Salvador de Mendonça publicou obra em que tratou de sua atuação

diplomática à luz da conjuntura internacional de então. Naquele momento, a

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preponderância dos Estados Unidos era fato dado, não se limitando ao Brasil e à

América Latina, mas estendendo-se ao resto do mundo. Mendonça identificava uma

saturação do pan-americanismo como prática ideológica, o que suscitava temores

quanto aos interesses norte-americanos no restante da América:

As incertezas do futuro, que ainda nos ameaçam, requerem na situação

presente a harmonia e o bom senso de todos os brasileiros. É preciso

que se inicie desde já uma política generosa e de vistas largas, quer no

interior, que no exterior. [...] Para que a América possa vir a ser para a

Humanidade, é indispensável que comece por ser para os americanos,

mas não só os do norte, como os de todo o continente. [...] É preciso

que nós outros sul-americanos iniciemos desde já a política de aliança,

não só do A.B.C., mas do alfabeto inteiro [...] É esta a hora de agirmos

(MENDONÇA, 1913, p.261-266).

Nesse sentido, importa sublinhar que na última década de século XIX, quando os

Estados Unidos iniciavam a rota de ascensão que transformaria o país na potência

mundial dominante a partir do século XX, a República nascia em meio a uma

confluência de tendências políticas diversas, não sendo possível identificar um único

aspecto em que o republicanismo brasileiro tenha sido unívoco. Nem mesmo a

americanização, traço da política externa que viria a ser reforçado dali para a frente,

escapou de controvérsias acerca de seus modos de aplicação e intensidade. A prática

política subsequente não seria feita a partir do vazio e teve suas continuidades e rupturas

baseadas fundamentalmente na diplomacia da americanização, na qual Salvador de

Mendonça formou um paradigma tanto pelo lado dos elogios quanto pelas críticas

(PEREIRA, 2009, p. 168).

À remoção de Salvador de Mendonça de Washington para Lisboa, o

“Washington Post” publicou editorial laudatório ao diplomata brasileiro, em que punha

lado a lado os interesses do Brasil e dos Estados Unidos, reconhecendo a importância de

Mendonça na construção e promoção do pan-americanismo:

(...) Não é demasiado dizer que os Estados Unidos contraíram uma

dívida de gratidão para com o Sr. Mendonça pelas vistas largas de

verdadeiro estadista, que foram sempre seu móvel, pela diplomacia

hábil e cheia de tato de que deu provas e, acima de tudo, pela

inquebrantável amizade que demonstrou a todos nós como nação. Foi

aturado e simpático observador de nossas instituições; acompanhou

nosso desenvolvimento com verdadeiro interesse, e, desde o princípio

até o fim de sua estada entre nós, foi operário industrioso na obra de

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consolidação das relações entre os Estados Unidos e sua progressiva

República. (...) Particularmente ao referir-se à Doutrina Monroe,

acentuou o Sr. Mendonça seu alto apreço pelos grandes princípios que

unem as nações do hemisfério ocidental com laços de fraternidade e

destino comuns. (MENDONÇA, 1913, pg. 234-235)

Salvador de Mendonça expressou, em sua obra, o descontentamento com o

crédito dado pela imprensa brasileira ao Barão do Rio Branco e a Joaquim Nabuco pelas

boas relações entre Brasil e Estados Unidos. O histórico da aproximação entre os dois

países poderia ser traçado desde a acolhida, à época da independência, da Doutrina

Monroe por D. Pedro II, como forma de proteção contra potências europeias

restauradoras. “O Barão do Rio Branco teve sempre a sina, desde os anos da mocidade

em que frequentou o Alcazar Fluminense, de andar arrombando portas abertas”

(MENDONÇA, 1913, pág. 248). Salvador de Mendonça exemplifica a imagem que

formou do Barão por meio de narrativa sobre memorando que ele havia produzido e

apresentado ao então Secretário de Estado James Blaine acerca da questão das Missões.

Segundo Mendonça, a partir da leitura, Blaine se disse convencido pelo pleito brasileiro.

A partir disso, teria querido o governo que o próprio diplomata se encarregasse do

deslinde da questão, o que ele teria recusado por entender incompatível com a missão

ordinária nos Estados Unidos, a qual encarava como prioridade. Como já tinha escrito o

memorando, sugeriu que encontrassem outro diplomata para concluir o assunto,

instando o governo a agir rapidamente, em razão da precariedade da saúde de Blaine.

Assim se teria chegado ao nome do Barão.

Um dia apresentou-se-me Rio Branco muito perturbado dizendo-me

que havia pedido a troca das razões apresentadas por ele e pelo Sr.

Zeballos e que essa troca, que aliás lhe fora prometida, lhe havia sido

negada pelo árbitro e acrescentava que, tendo comunicado ao nosso

governo essa promessa via-se em embaraço para lhe explicar a

negativa. Por isso pedia-me que procurasse o secretário Gresham a ver

se podia descobrir o motivo pelo qual o árbitro se negava a ordenar a

troca das razões apresentadas. Dei o passo que me pedira, mas não lhe

pude dar a resposta do Sr. Gresham, por me haver este recomendado

que a não comunicasse ao Barão; mas declarei logo ao secretário de

Estado que a comunicaria ao meu governo, para o qual não podia ter

segredos. A resposta fora que o presidente Cleveland, já tendo

formado opinião acerca do caso, não carecia de mais esclarecimento.

Fui assim o primeiro a comunicar ao nosso governo essa informação,

tanto mais valiosa quanto o próprio Rio Branco me dissera que o sr.

Zeballos lhe havia recusado a troca por escrito e que só por isso

apelara para o árbitro. (MENDONÇA, 1913, pg. 253)

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Salvador de Mendonça opunha o expansionismo agressivo característico dos

governos de William Taft e Theodore Roosevelt à disposição positiva de Grover

Cleveland, que havia fomentado a aproximação entre Brasil e Estados Unidos por meio

de estímulos ao comércio entre os dois países.

A proximidade com os Estados Unidos à época em que serviu em Washington

era justificada pela acepção da unidade continental como única estratégia possível para

a defesa comum contra qualquer assalto à integridade e à soberania dos países

americanos. Vinte anos depois, Salvador de Mendonça percebia as ameaças vindo dos

próprios Estados Unidos, sem, contudo, considerar a nova postura norte-americana

como resultante da intensidade da aproximação que havia promovido ao longo dos anos

em que serviu em Washington, senão apenas como reflexo da interpretação conferida à

Doutrina Monroe pelos governantes referidos. A esse propósito, Oliveira Lima

apontava, na história dos Estados Unidos, “um perfeito seguimento nas ideias

fundamentais, que seguem sem deserção o desenvolvimento nacional, se bem que

ocasionalmente revestindo um aspecto diferente do que a princípio ofereciam” (LIMA,

1907, pg. 38). As gradações assumidas pela Doutrina nos diferentes momentos da

história norte-americana continham maior ou menor apreço pela soberania das nações

vizinhas, e Oliveira Lima interpretou que Salvador de Mendonça soubera, a seu tempo,

fazer uso da disposição sustentada por aquele governo, enquanto que, ao longo da

primeira década do século XX, o respeito demonstrado pelos Estados Unidos à

soberania alheia passou a encontrar sérias limitações: “O irmão mais velho anda neste

momento armado de cacete (big stick) para chamar à ordem as irmãs malcriadas”

(Ibidem, pg. 39), escrevia o autor, em sua obra Pan- Americanismo, referindo-se à então

recente subtração do Panamá à Colômbia, a exemplo do que havia ocorrido com o

Texas em 1845.

Em primeiro lugar essa doutrina impediu a extensão da influência

europeia na América e até vedou a reocupação das posições perdidas,

conservando, portanto, de fora, concorrentes que seriam para temer na

expansão dos EUA. Em seguida, substituíram violentamente aquela

ascendência tradicional pela sua própria, mais adequada aos tempos,

levando a cabo anexações que aos outros tinham ficado defesas.

(Ibidem)

A feição imperialista assumida pela Doutrina Monroe no início do século XX é

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apontada por Oliveira Lima nas falas de Nabuco enquanto embaixador brasileiro em

Washington, dando conta de que o Brasil “verá, sempre, os Estados Unidos tomar as

grandes iniciativas na direção do nosso comum ideal americano, com o mesmo interesse

continental e a mesma seguridade nacional que até hoje” (ibidem, pg. 41) e de que

“desta administração data a época em que a culminância americana sobreleva todas as

outras culminâncias nacionais” (ibidem). As repúblicas espanholas da América do Sul,

com a Argentina e o Chile à frente, resistiam contra aquela extensão, ciosas de sua

soberania e autonomia. O Brasil, ao contrário, além de não demonstrar temor diante do

expansionismo norte-americano, aspirava, entusiasmado, à possibilidade de dividir com

os Estados Unidos uma “hegemonia hemisférica”, trabalhando para o aumento da

imensa influência moral exercida pela potência norte-americana sobre as duas Américas

e vendo com bons olhos sua crescente preponderância sobre o resto do mundo.

Oliveira Lima contrapunha a temeridade do expansionismo norte-americano

associado, no início do século XX, à política externa executada pelo Barão do Rio

Branco e por Joaquim Nabuco à disposição colaborativa dos governos norte-americanos

nos anos subsequentes à proclamação da República no Brasil, potencializada pela

competência de Salvador de Mendonça. Ao tratar dos aspectos econômicos da

aproximação engendrada por Mendonça e Blaine, Lima se utilizou das

complementaridades econômicas entre os dois países a fim de demonstrar como o

estreitamento dos vínculos comerciais somente poderia ser vantajoso, sendo o Brasil um

país à procura consumidores para a sua produção agrícola e os Estados Unidos, um país

interessado em escoar o excesso de sua produção industrial.

Num relatório que ficou célebre, escreveu em 1897 o atual Ministro da

Fazenda do Brasil, Dr. Murtinho, que é um sonho cogitar agora de um

Brasil industrial. Há coisas que sem artifício podemos e devemos

produzir, mas pretender um imediato e completo desenvolvimento

fabril é manifesta loucura. E se temos de importar, o que aliás

acontece aos países de mais acabada expansão industrial, é natural

fazê-lo de onde encontramos os melhores produtos, por preços mais

vantajosos, e onde nos compram em maior quantidade e com menos

embaraços os nossos produtos. Ora é bem sabido que os Estados

Unidos são os fregueses por excelência do nosso café, e que mesmo a

importação deste gênero que faz subir a importação norte-americana

de produtos sul-americanos a pouco menos de um quarto da

exportação total do continente meridional. (LIMA, 2009, pág. 357-

358)

As impressões de Oliveira Lima corroboravam a interpretação de Salvador de

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Mendonça, que entendia que com McKinley, a Doutrina Monroe havia adquirido caráter

imperialista deletério aos interesses brasileiros. Uma das acusações de Mendonça ao

Barão do Rio Branco se refere à forma como este inverteu a política exterior do Brasil,

que teria adquirido caráter pessoal sob seu comando, tornando-se contraditória e

indecisa. Salvador de Mendonça era crítico à interpretação que Rio Branco dava à

Doutrina Monroe e temia o corolário Roosevelt. Preocupava-se pela soberania brasileira

e pela das demais nações sul-americanas, preocupação que o movia desde 1890, quando

propugnava pela aprovação da cláusula do arbitramento obrigatório atrelada à

eliminação da conquista.

Conclusão

Em sua fase republicana, pré-proclamação, Salvador de Mendonça propalava a

doutrina democrática, pela via parlamentar, expressando uma sede de modernização

afim ao modelo norte-americano, que o então jornalista interpretava com notável

otimismo por seu contraste em relação ao arcaísmo europeu. No caso dos Estados

Unidos, se percebia o homem comum como principal responsável pelo próprio destino,

dispensada a tutela de uma aristocracia. Essa realidade não foi replicada no Brasil: vinte

anos depois de proclamada a República, Mendonça escrevia que o regime republicano

no país não passava de um “ensaio malfeito”, vez que supunha a liberdade pautada na

lei escrita em um país de analfabetos. A República resultou como nova composição das

classes dominantes, em aliança com uma nascente classe média formada em torno das

Forças Armadas. Não se operou transformação significativa dos campos político e

social do Brasil.

O idealismo manifestado por Salvador de Mendonça quando da redação do

Manifesto Republicano deu lugar a um pragmatismo adaptado às idiossincrasias da

política interna brasileira e à limitação das opções que se apresentavam à República

nascente em termos de política externa. No momento em que se colocou a disputa entre

a perpetuação da submissão ao domínio europeu e a inauguração de uma relação

privilegiada com a grande potência ascendente norte-americana, couberam a Salvador

de Mendonça os primeiros passos em direção àquilo que viria a ser o padrão da política

exterior brasileira sob o comando do Barão do Rio Branco.

Para Clodoaldo Bueno, a política externa da Nova República pecou pelo excesso

de idealismo, que o autor atribui ao fato de ter sido executada por republicanos ligados à

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propaganda. Os políticos e diplomatas recém-chegados ao governo defendiam o

enquadramento do Brasil no quadro liberal mundial, sem questionar a estrutura do

sistema econômico e sem vislumbrar a possibilidade de real desenvolvimento para o

país. A este propósito, cumpre observar que o momento histórico em que se

desenrolaram os acontecimentos que marcaram o pensamento e a diplomacia de

Salvador de Mendonça foi marcado por extrema fragilidade política e institucional. A

industrialização e o liberalismo corporativo eram atraentes para muitos integrantes da

burguesia que emergira com o Encilhamento. Ao mesmo tempo, as tendências

patrimoniais do Império de base escravista custaram a desaparecer.

O debate entre os defensores do desenvolvimento nacional autônomo e aqueles

que preferem o enquadramento do Brasil às regras e à dinâmica do mercado global não

foi inteiramente superado até a atualidade, de modo que seria pouco realista esperar,

àquela altura, que a política externa brasileira sofresse algum tipo de guinada. A

alternativa que se colocava ao americanismo era, naquele momento, a restauração do

padrão colonial europeu, e não a possibilidade de o Brasil crescer e se desenvolver de

forma autônoma. Não seria exagero afirmar que Salvador de Mendonça foi, em

realidade, um pragmático, inclusive levando-se em conta o fato de que suas gestões

junto ao Departamento de Estado norte-americano podem ser entendidas como

precursoras da política exterior posteriormente executada pelo Barão do Rio Branco.

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O BARÃO DO RIO BRANCO E A IMPRENSA: INSTINTO

DE PUBLICIDADE E FORMAÇÃO DE IDEAL DE

POLÍTICA EXTERNA

ANA FLAVIA JACINTHO BONZANINI

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a atuação do Barão de Rio Branco na

imprensa brasileira, em particular quando exerceu o cargo de chanceler (1902-1912).

Para tanto, aborda como o Barão manteve, ao longo de toda sua vida, relacionamento

privilegiado com a imprensa, o que lhe permitiu, uma vez chegado ao poder, ganhar

legitimidade a despeito de seu conhecido passado monarquista e de sua primeira prova

de fogo como chanceler ser a resolução da espinhosa Questão do Acre. Em seguida, o

artigo analisa como o Barão do Rio Branco defendeu a ideia de continuidade na política

externa brasileira, matizando as diferenças com o Segundo Reinado, em particular nas

relações com os Estados Unidos e com a Argentina. Conclui-se que o Barão do Rio

Branco foi bem-sucedido em consolidar a imagem de uma política externa desvinculada

das veleidades internas, e que suas intervenções públicas contribuíram para conformar a

identidade brasileira moderna.

PALAVRAS-CHAVE: Barão do Rio Branco; Imprensa; Política externa brasileira;

Identidade brasileira.

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Introdução

A atuação do Barão do Rio Branco (1845-1912) na imprensa foi uma constante ao

longo de sua vida, e acompanharia sua trajetória, de filho de eminente estadista do

Segundo Reinado a chanceler responsável por consolidar as diretrizes da política

externa da Primeira República. Longe de ser uma atividade secundária, a atividade de

Paranhos Júnior na imprensa logrou influenciar a opinião pública da época e consolidar

determinados entendimentos não só da política externa, como também da nacionalidade

brasileira.

No início do século XX, o Brasil passava por profundas transformações: como bem

destacou Angela Alonso (2002), desde a década de 1870, um incipiente espaço público

começara a conformar-se, com a imprensa contribuindo para difundir o “bando de ideias

novas” mencionadas por Silvio Romero. Nesse contexto, o Barão soube fazer uso do

novo espaço de comunicação para difundir seu ideal de política externa, construindo o

que Villafañe chamaria de “o evangelho do Barão”3. O termo usado por Villafañe é

abrangente, e abarca o conjunto de diretrizes da política externa que seriam tomadas

como padrão pelas sucessivas chefias da chancelaria brasileira, as quais veriam na

política do Barão um exemplo a ser seguido e emulado, seja no seu americanismo, seja

na sua constante busca por promover o prestígio brasileiro na cena internacional.

O presente artigo traça um panorama das relações de Paranhos Júnior com a

imprensa, desde antes de assumir o Itamaraty até o período em que foi chanceler. Neste

segundo período busca ressaltar a importância dos artigos publicados pelo Barão.

Seguindo metodologia de Quentin Skinner, analisam-se esses artigos levando em

consideração tanto as ideias que Rio Branco procurava veicular, como para quem elas se

dirigiam e como foram apreendidas pelo público destinatário. O contexto conturbado do

início da Primeira República não é assim visto como um determinante dos discursos do

Barão, mas como um fator a influenciar os significados que um indivíduo, naquelas

circunstâncias e ocupando aquele cargo, poderia ter procurado conferir a suas

intervenções públicas.

Nesse sentido, optou-se por analisar três momentos marcantes da atuação de Rio

Branco como chanceler: sua resolução da questão do Acre; o desenvolvimento de

política americanista; e o novo padrão de relações com a Argentina. Na primeira

questão, o Barão trabalha primordialmente para conferir legitimidade à sua própria

3 VILLAFAÑE, Luís Claudio. O Evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo:

Editora da UNESP, 2012.

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figura no cargo de chanceler de um governo republicano; nas demais, busca defender

linhas de política externa por ele adotadas que representavam, em grande medida, uma

ruptura com longa tradição externa brasileira. Em todos esses episódios, Rio Branco

resgata valores de conciliação do “Tempo Saquarema”, e matiza eventuais rupturas

entre a política externa republicana e a do Segundo Reinado, de modo a consolidar o

conceito de política externa como política de Estado, e não de governo, marcada pela

continuidade a despeito de mudanças de regime.

O sucesso de Rio Branco nessa empreitada decorre do que Álvaro Lins, seu

principal biógrafo, denominou de “instinto da publicidade”4. Rio Branco desenvolveu

uma diplomacia pública5 avant la lettre, pois argumentou amplamente em favor de suas

próprias políticas, de modo que estas ganhassem a simpatia tanto da opinião pública

brasileira como da estrangeira:

Ele próprio orientava essa opinião pública, escrevendo

pessoalmente para a imprensa ou dirigindo os jornalistas mais

chegados ao Itamaraty. Todos os seus atos eram lançados

através de hábeis campanhas de imprensa. Lembrava Graça

Aranha que, ao abrir uma questão, Rio Branco fazia que os

jornalistas, seus amigos, se dividissem. Fornecia em seguida

razões contraditórias aos dois grupos, com o fim de esclarecer o

espírito público em todos os sentidos. Os debates se

movimentavam, animadíssimos, até que o ministro dava o

“golpe espetacular” resolvendo a questão, já com a opinião

pública devidamente preparada e esclarecida (LINS, 1995, p.

306).

A título de conclusão analisar-se-á como, em meio a argumentações voltadas

para a ação externa do país, o Barão do Rio Branco acabou por difundir, conforme

termo de Rubens Ricupero, “uma certa ideia de Brasil”6, contribuindo, em última

instância, para a conformação da identidade brasileira moderna.

4 LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio Branco). Biografia pessoal e história política. São Paulo:

Editora Alfa-Ômega, 1995, p. 114. 5 Adota-se, no presente trabalho, o conceito de diplomacia pública do MRE: “Tradicionalmente, o

conceito de "diplomacia pública" esteve associado à promoção da imagem de um país no exterior. No

Brasil, a "diplomacia pública" é entendida não só nessa acepção tradicional, mas também no sentido de

maior abertura do Ministério das Relações Exteriores e da política externa brasileira à sociedade civil”.

Site MRE http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/diplomacia-publica, acesso em 30/05/2016. 6 RICUPERO, Rubens. Rio Branco: o Brasil no mundo. Rio de Janeiro: Contraponto: Petrobrás, 2000, p.

5.

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1. Uma relação próxima com a imprensa durante o Império

Durante o gabinete de seu pai como Presidente do Conselho de Ministros (1871-

1875), Paranhos Júnior atuou constantemente na imprensa com o intuito de defender as

reformas implementadas pelo Gabinete Rio Branco. As atividades de Paranhos Júnior

em A Nação, onde ocupou o posto de redator, marcaram o início de seu relacionamento

privilegiado com a imprensa: foi nesse periódico que conheceu Gusmão Lobo, quem se

tornaria um de seus maiores amigos e seu principal interlocutor no universo da imprensa

durante o longo período em que viveu no exterior.

Com a queda do Visconde do Rio Branco, Paranhos Júnior deixou A Nação e, após

espera de um ano, seguiu para Liverpool para exercer a função de cônsul. Mais tarde, o

Barão intercedeu em favor de Gusmão Lobo para que este fosse admitido no mais

tradicional diário de imprensa carioca, o Jornal do Commercio. Como se comprova pela

correspondência entre os dois amigos (CdoCHDD, 2004, p. 91-237), por meio de

Gusmão Lobo, o Jornal do Commercio tornou-se um veículo para notícias favoráveis às

atividades de Paranhos Júnior, como, por exemplo, sua gestão como chefe do pavilhão

brasileiro na Exposição de São Petersburgo (1884). Lê-se em carta enviada por Gusmão

Lobo ao Barão, em 29/06/1884,

O Centro está publicando nos EDITORIAIS os artigos de São

Petersburgo. Hoje saiu um deles. A impressão aqui é muito boa.

Eu previa isto: a obra é do Centro e, portanto, ele é interessado

em honrá-la. Várias folhas (o Brasil, Correio Paulistano etc.)

transcreveram ou inspiraram-se na minha última notícia.

(CdoCHDD, 2004, p. 99)

Gusmão Lobo deixou o Jornal do Commercio em 1891, para se juntar a Paranhos na

folha monarquista fundada por Rodolfo Dantas, o Jornal do Brasil. A relação

privilegiada de Rio Branco com o Jornal do Commercio, no entanto, manteve-se:

Paranhos estabeleceu correspondência com o novo dono do jornal, José Carlos

Rodrigues (CdoCHDD, 2004, p. 34-428) desde 1893, nutrindo um relacionamento

privilegiado que continuou durante sua chancelaria. Era natural que Rio Branco

buscasse manter contato com o Jornal do Commercio, pois este era o principal órgão de

imprensa do Rio de Janeiro.

Nos derradeiros anos do Segundo Reinado, Paranhos Júnior foi muito atuante

em termos intelectuais, publicando não só nos tradicionais veículos de imprensa, mas

igualmente na Grande Encyclopédie de Levasseur, onde colaborou escrevendo o

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verbete sobre Brasil, no qual dedicou capítulo à imprensa. Conforme consta no verbete,

aos olhos de Paranhos, os principais jornais do Brasil eram A Gazeta de Notícias, a

Gazeta da Tarde, A Cidade do Rio, O Paiz, O Diário de Notícias e o Jornal do

Commercio. Este último foi considerado o de maior importância, notadamente por

“contar com os melhores redatores e escritores do Brasil”.

A influência da imprensa nesse momento e a importância que Paranhos Júnior

lhe conferia devem ser compreendidas à luz do contexto social e político dos últimos

anos do Império, marcado pela contestação da geração de 1870. Para Ângela Alonso, o

movimento intelectual de 1870 recorreu a uma estratégia inédita na história do Brasil:

“a mobilização coletiva fora das instituições políticas” 7

. De fato, as formas e os espaços

da política foram ampliados, e houve a criação de embrionária esfera pública, graças a

novas tecnologias que permitiram o barateamento da imprensa e a consequente

multiplicação de folhas, panfletos e jornais. Outras formas de ação política e de espaços

de discussão foram igualmente tornando-se comuns: meetings, comícios, banquetes,

sociedades, marchas e conferências ampliaram a participação política. Nesse contexto,

de acordo com Villafañe, o Barão “poderia ser considerado como uma espécie de

representante da “antigeração de 1870””8, pois soube aproveitar-se dessas mudanças

não para subverter, mas sim para defender a “Ordem Saquarema”.

2. A transição para a República

A Proclamação da República representou um importante golpe para Paranhos

Júnior. Em 1888 ele se reconciliara com o Imperador e recebera o título de Barão. Com

a República, não só sua trajetória de ascensão poderia ser obstada, como seu posto como

cônsul em Liverpool estava em risco. Embora Rio Branco nunca tivesse manifestado

publicamente seu antirrepublicanismo, seu apreço pelo Imperador era conhecido.

Assim, para manter sua posição no novo governo era necessário agir: conforme ressalta

Viana Filho, “nem mesmo o silêncio, que os candidatos a Liverpool logo explorariam,

seria possível: impunha-se algo capaz de aplacar as prevenções contra o monarquista

(...) disposto a salvar-se, iniciou um jogo dúplice: embora fiel a suas ideias, acalmaria a

República”9.

7 ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a Geração 1870 na crise do Brasil- Império. São Paulo: Paz e

Terra, 2002, p. 262. 8 VILLAFAÑE, Luís Claudio. O Evangelho do Barão: Rio Branco e a identidade brasileira. São Paulo:

Editora da UNESP, 2012 , p.67.

9 Idem, p. 150.

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Nesse sentido, Rio Branco valeu-se de uma crítica positiva que Rui Barbosa

havia feito, às vésperas da queda da Monarquia, à sua contribuição para a Grande

Encyclopédie, para aproximar-se desse republicano de ilibada reputação e deixar claro

que não se opunha ao novo regime:

A questão hoje não é mais entre Monarquia e República, mas

entre República e Anarquia. Que o novo regime consiga manter

a ordem, assegurar como o anterior, a integridade, a

prosperidade e a glória do nosso grande e caro Brasil, e ao

mesmo tempo consolidar as liberdades que nos legaram nossos

pais – e que não se encontram em muitas das intituladas

repúblicas hispano-americanas – é o que sinceramente desejo

(Rio Branco, 1889 apud VIANA FILHO, 1988, p.150-151).

A paulatina transição de Rio Branco de um regime para o outro, e seu “jogo

dúplice” entre República e Monarquia refletiram-se, naturalmente, em sua atuação na

imprensa, notadamente quando da criação do Jornal do Brasil (1891). Rodolfo Dantas,

amigo de longa data, já mencionara a Rio Branco sua intenção de fundar um jornal

monarquista antes mesmo da Proclamação da República (carta de 14/10/1889,

CdoCHDD, 2004, p. 239-241). O Jornal do Brasil, no entanto, só foi lançado em abril

de 1891, não mais para ajudar a sustentar a monarquia, mas como folha de oposição ao

governo de Deodoro da Fonseca e, depois, Floriano Peixoto. O jornal reunia uma

extensa rede de colaboradores no Brasil e no exterior, entre os quais estavam Joaquim

Nabuco, Gusmão Lobo, Oliveira Lima e, é claro, o próprio Rio Branco.

Embora Rio Branco desse grande apoio à organização do jornal - tornando-se o

correspondente informal do jornal na Europa -, ele buscou ocultar sua participação, pois

não desejava indispor-se com o novo regime. Assim, o Barão colocou seu nome

somente na coluna “Efemérides brasileiras”, de conteúdo mais neutro, e assinou os

demais artigos sob o pseudônimo de Ferdinand Hex. Ao abrigo do pseudônimo publicou

suas “Cartas da França”, nas quais homenageia o Imperador falecido em 1892, e revela

seu repúdio aos “comtistas” e ao “jacobinismo”. Escrevendo como se jornalista francês

fosse, Rio Branco afirma:

O Siècle publicou, dias depois da morte de dom Pedro, um

artigo hostil, mas não injurioso. Deve ser de estrangeiro, pois

ressuma muito comtismo, coisa que nunca foi de moda entre nós

e que hoje não passa de velharia, guardada por pequeno número

de sectários. (Rio Branco, Carte de France, 12/01/1982, apud

PEREIRA, 2012, p.386)

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Com a ascensão de Floriano Peixoto, muitos dos receios de Rio Branco se

concretizaram, pois viveu-se uma exacerbação do jacobinismo, o que levou a redação

do Jornal do Brasil a ser atacada e depredada, com a complacência da polícia. Após o

controle do jornal ser vendido, Rodolfo Dantas e Joaquim Nabuco fugiram para a

Europa, em razão do crescente cerco do regime aos monarquistas. Assim, o círculo de

amigos que possibilitara a Rio Branco empreender oposição velada ao regime passou ao

exílio, o que fez que suas atividades na imprensa como crítico à República cessassem.

A relação de Rio Branco com o regime mudou, definitivamente, quando ele foi

chamado por Floriano Peixoto para assumir o lugar de Aguiar de Andrade, em 1893,

como árbitro brasileiro na questão de Palmas, contra a Argentina. A partir da vitória

brasileira, conhecida em fevereiro de 1895, o monarquista Rio Branco começou a

desfrutar de crescente prestígio junto ao novo regime. E, com a subsequente vitória

obtida contra a França na questão do Amapá (1900), Rio Branco tornou-se uma

celebridade nacional.

O reconhecimento de Rio Branco decorre, evidentemente, da importância de seus

êxitos nas referidas arbitragens. É interessante notar, entretanto, que o Barão realizou

constante campanha de divulgação desses feitos, empreendendo diplomacia pública

avant la lettre que contribuiu para consolidar sua imagem perante a opinião pública.

Nesse sentido, a correspondência do Barão com José Carlos Rodrigues, dono do Jornal

do Commercio, revela que Rio Branco influía diretamente nas matérias de jornal

publicadas sobre seus feitos nas questões do Amapá e de Palmas. O grau de intimidade

e confiança de que o Barão dispunha como “fonte” do jornal é revelado por carta,

datada de 21/11/1900, enviada pouco antes da divulgação do veredito do Conselho

Federal Suíço favorável ao Brasil10

:

“Não haverá inconveniente em que se comece a publicar, uns

cinco ou seis dias depois de conhecida a sentença, o trabalho

que já lhe mandei e de que irá o resto agora. É um resumo

substancial do que há nas alegações das duas partes, e os leitores

compreenderão que a redação do jornal precisa de tempo para

estudar tantos volumes. Da vez passada você começou a

publicar o seu resumo quatro ou cinco dias depois.” (Rio

Branco, apud CdoCHDD, 2004, p. 354)

10

O veredito da questão do Amapá seria oficialmente conhecido dia 1o de dezembro de 1900.

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Fica subentendido no texto que a colaboração entre o Jornal do Commercio e Rio

Branco já ocorrera na questão de Palmas. Ademais, no dia da entrega do laudo suíço,

Rio Branco enviou um telegrama com a descrição da cena em que o laudo da questão do

Amapá é recebido, para que fosse publicada no South American Journal e no próprio

Jornal do Commercio (CdoCHDD, 2004, p. 358-359), o que revela o empenho do

Barão em fazer repercutir suas vitórias no Brasil.

Com a ascensão de Campos Salles (1898-1902), a República iria superar seus

momentos de maior instabilidade político-econômica e reconstituir, em outras bases, a

ordem oligárquica. Como parte do projeto de estabelecer uma “república dos

conselheiros”, figuras monarquistas como Joaquim Nabuco e o próprio Rio Branco

seriam readmitidas nas esferas de poder. Nesse período, o Barão seria designado

ministro em Berlim (1901-1902), posto que ocuparia por pouquíssimo tempo, pois seria

convidado a assumir o cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros pelo Presidente

Rodrigues Alves (1902-1906). Rio Branco hesitou longamente a aceitar o cargo, pois

sabia dos desafios que o aguardavam. Mais uma vez, as relações com a imprensa

permitem adentrar o pensamento de Paranhos Júnior: em carta a José Carlos Rodrigues,

datada de 07/11/1902, expressa seus receios em ter de convencer muitos círculos que

seriam contrários à sua atuação:

Aqui lhe mando em separado coisas que você poderá utilizar no

seu jornal. Sei que me querem conduzir em procissão à Escola

Polit[écnica], onde devo assistir a uma [ilegível]. Veja se me

livra de manifestações excessivas e de me andar dando em

espetáculo. Quem tem vivido no retraimento, como eu, não se dá

bem com essas coisas. Não me obriguem a fazer má figura.

Devo ir logo ao presidente e depois à Secretaria. (...) Pelo que li

na Gazeta de Notícias de 16 de outubro, vejo que não posso ter a

confiança de certos círculos; é que estão atribuindo ao dr.

Rodrigues Alves, pela minha escolha, sentimentos de

reacionário. (Rio Branco, apud CdoCHDD, 2004: 362).

3. Rio Branco chanceler

a. Um chanceler em busca de legitimidade

A despeito da manifestação popular ocorrida quando chegou ao Rio de Janeiro - de

acordo com Álvaro Lins (1995, p. 251), cronistas da época a compararam à chegada da

corte de D. João VI -, a posição de Rio Branco no ministério era frágil, e seria posta à

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prova. Rio Branco deveria superar as prevenções que permaneciam contra ele em razão

de suas inclinações monarquistas, sem renegar completamente seu passado, nem trair

suas convicções. O discurso de separação entre política externa e interna permitiu que o

Barão contornasse esse dilema. Rio Branco deixaria clara sua linha de ação desde o

momento em que chegou ao país, no seu primeiro discurso como chanceler, realizado

no Clube Naval, em 1o de dezembro de 1902:

Desde 1876 desprendi-me da nossa política interna com o

propósito de não mais voltar a ela e de me consagrar

exclusivamente a assuntos nacionais, porque assim o patriotismo

daria forças à minha fraqueza pessoal. Aceitando depois de

longas hesitações e reiterados pedidos de dispensa o honroso

posto em que entendeu dever colocar-me o ilustre Sr. Presidente

da República, em nada modifiquei aquele meu propósito. A

pasta das Relações Exteriores, deu-me S. Ex.a., não é e não deve

ser uma pasta de política interna. Obedeci ao seu apelo como o

soldado a quem o chefe mostra o caminho do dever. Não venho

servir a um partido político: venho servir ao Brasil, que todos

desejamos ver unido, íntegro, forte e respeitado. (Rio Branco,

apud LINS, 1995: 479-480).

A ideia de que política interna e política externa são independentes pode ser

considerada uma herança da “Ordem Saquarema”, que Rio Branco carregava em si.

Cabe lembrar que, ao longo do Segundo Reinado, em particular no seu apogeu, entre as

décadas de 1850 a 1860, a política externa foi elaborada principalmente no âmbito do

Senado vitalício e do Conselho de Estado, com a presença de grandes líderes

conservadores e liberais. Dessa forma, é natural que suas diretrizes fossem mais estáveis

e menos influenciadas pelas mudanças partidárias. Entretanto, dificilmente esse caráter

“apartidário” da política externa seria sustentável a longo prazo: a desvinculação entre

política interna e política externa, mais do que uma regra, decorria de características

específicas do Segundo Reinado, no qual prevaleceu a ênfase na criação de consensos -

embora existissem, evidentemente, visões conflitantes.

Ao assumir a chancelaria, Rio Branco retomou esse discurso para evitar desgastar-se

politicamente perante seus adversários republicanos e perante os monarquistas

extremados. Facilitava-lhe a tarefa o fato de sua fama decorrer do sucesso nas questões

de fronteira: independentemente da filiação partidária, os ganhos territoriais por ele

logrados eram louvados.

Nesses primeiros anos como chanceler, as ideias supracitadas seriam reafirmadas na

polêmica questão do Acre, que motivou reiteradas intervenções do Barão na imprensa,

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por meio de pseudônimos. O episódio revela a estratégia que Rio Branco adotaria em

diversas ocasiões subsequentes para defender seu curso de ação: atuar fora das

instituição políticas tradicionais - influenciando a opinião pública via imprensa -, e

promover constantemente a ideia de estar a serviço de política externa desvinculada de

interesses partidários, apresentados como antipatrióticos.

b. A questão do Acre

As perspectivas que se apresentavam a Rio Branco ao desembarcar no Rio de

Janeiro, em 1902, eram críticas. O Barão foi confrontado com a fase aguda de

insurreição de brasileiros que não reconheciam nem a soberania boliviana na região nem

a atuação do Bolivian Syndicate - conglomerado internacional para o qual a região havia

sido arrendada pelo governo boliviano e que ensaiava os primeiros passos de uma

administração territorial. O Barão, tendo em mente sua experiência com o imperialismo

nos vinte e seis anos que passara na Europa, receava, sobretudo, a atuação das grandes

potências, via Bolivian Syndicate, nas fronteiras brasileiras.

A questão do Acre exigia atenção imediata e seu encaminhamento diferia dos

litígios de Palmas (1895) e do Amapá (1900), os quais puderam ser resolvidos

primordialmente com base em argumentação cartográfica e histórica. No caso do Acre,

o entendimento dado tanto pela Monarquia como pelos governos republicanos

anteriores era que o território acreano era indiscutivelmente boliviano, conforme

disposto no Tratado de Ayacucho (1867), o que limitava o recurso aos argumentos

habituais e favorecia uma gestão política.

Nenhuma outra das questões diplomáticas resolvidas por Rio Branco agitou tanto os

espíritos, suscitando recorrentes ataques por parte da imprensa e do parlamento. A

opinião pública encontrava-se inflamada porque não admitia a indiferença dos governos

anteriores - principalmente o de Campos Sales (1898-1902) - com a sorte dos brasileiros

revoltosos no Acre. Rio Branco percebeu, ao contrário de seus antecessores, que seria

necessário levar a opinião pública em consideração, como explicou na Exposição de

Motivos que redigiu para defender a aprovação do Tratado de Petrópolis no Congresso:

“O sentimento público (...) era outro elemento que não podia

deixar de ser tomado em consideração. Desde a minha chegada

da Europa, observei que se manifestava unânime a simpatia

nacional pelos nossos compatriotas que se batiam no Acre. A

previsão se impunha de que aquele sentimento havia de

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avolumar-se tanto e tomar tal forma que seria impossível a um

governo de opinião como o nosso assistir indiferente ao

sacrifício que faziam esses brasileiros para conseguir um dia

viver à sombra da nossa bandeira.” (Rio Branco apud LINS,

1995, 269)

Conforme ressalta Álvaro Lins, o Tratado de Petrópolis foi debatido intensamente:

“nos fins de 1903 e nos princípios de 1904, nenhum outro nome aprece tanto na

imprensa do Rio de Janeiro quanto o Acre” (LINS, 1995, p. 287). O Barão do Rio

Branco foi um dos protagonistas desse debate por meio de declarações públicas, mas

principalmente por meio de artigos sob pseudônimo, nos quais pôde expor sua opinião

de forma mais clara e incisiva. A imprensa tornou-se um dos campos de batalha no qual

se travou a sorte da questão acreana, pois, uma vez concluído o Tratado em 17 de

novembro de 1903, este encontraria dificuldades em ser aprovado pelo Congresso - só o

sendo em 12 de fevereiro de 1904. Nesse ínterim, Rio Branco seria objeto de inúmeros

ataques que visavam obstar a aprovação do Tratado.

Aqueles que tinham desavenças pessoais de Rio Branco - como Oliveira Lima -

aproveitaram-se da polêmica para criticá-lo. Mas, sobretudo, os monarquistas tomaram

a ocasião para investir contra o regime republicano. As críticas concentravam-se

primordialmente no fato de o Tratado de Petrópolis contradizer o Tratado de 1867 e

ceder territórios à Bolívia. De fato, conforme interpretação de Ricupero (2012, p. 129),

o Barão havia operado uma “revolução coperniciana, que transformou a essência da

questão” ao reinterpretar o Tratado de Ayacucho e declarar a região do Acre litigiosa, o

que atiçou a ira de significativas parcelas da opinião pública.

Diante dos ataques, não surpreende que o Barão tenha feito uso de sua relação

extremamente próxima ao Jornal do Commercio, e publicado uma série de artigos a

respeito da questão do Acre, entre 17/12/1903 e 01/01/1904, sob o pseudônimo Kent.

Neles, o Barão expõe não só o sólido embasamento técnico-histórico que pautou sua

conduta nas negociações, como ressalta constantemente a ideia de que a política externa

é uma política de Estado, marcada pela continuidade desde os tempos do Império.

Importante notar que esses artigos foram também publicados na Gazeta de Notícias, no

Jornal do Brasil, n’A Tribuna e n’O Paiz, o que revela que Rio Branco manteve sua

extensa rede de contatos com a imprensa, construída anteriormente à sua ascensão ao

cargo de chanceler11

. O único jornal que fez constante oposição a Rio Branco no

11

De fato, a correspondência compilada pelos Cadernos do CHDD (2004) revela que Rio Branco

manteve contato não só com José Carlos Rodrigues, do Jornal do Commercio, como também foram

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período foi o Correio da Manhã.

No primeiro desses artigos (A questão do Acre e o tratado com a Bolívia I, Jornal

do Commercio, 17/12/1903), Rio Branco responde categoricamente ao “infatigável

propagandista da restauração, senhor Martim Francisco Ribeiro de Andrada12

”, que o

“imbróglio do Acre” teve origem no Império e não pode ser atribuído à República13

. Ao

afirmar ao polemista que deveria culpar os formuladores de política externa do Império

pela questão acreana, Rio Branco buscava afirmar sua isenção, não sendo afetado por

suas supostas afeições monarquistas, e atendo-se à realidade histórica. Igualmente, Rio

Branco destacou que algumas proposições do Tratado de Petrópolis já haviam sido

aventadas à época do Império, ou seja, que sua atuação não contradizia os desígnios de

grandes estadistas Segundo Reinado:

A construção dessa via de comunicação (Madeira Mamoré), ao

mesmo tempo brasileira e internacional, foi aconselhada e

reclamada pelos primeiros estadistas do Império, de Tavares

Bastos ao marquês de São Vicente, o visconde do Rio Branco e

o barão de Cotegipe, sem excetuar um conselheiro de Estado

que se chamou Martim Francisco Ribeiro de Andrada14

. (Rio

Branco, apud PEREIRA, 2012 p. 447)

Esse artigo mostra-se igualmente interessante por conferir resposta às inúmeras

críticas que condenavam Rio Branco por ter cedido território brasileiro - o Triângulo do

Abunã - e pagado soma considerável ao Bolivian Syndicate para que ele se retirasse do

território litigioso no Acre. A compensação ao Bolivian Syndicate é claramente

colocada como uma estratégia, que permitiu ao Brasil agir de forma livre e autônoma

em suas negociações com a Bolívia:

interlocutores constantes Alcindo Guanabara (A Tribuna e depois A Nação), João de Sousa Lage (O

Paiz), Joaquim Pereira Teixeira (A Nação), Pedro Leão Veloso (Diário de Notícias), Luís Bartolomeu (A

Tribuna) e Eduardo Salamonde (O Paiz). 12

Martim Francisco Ribeira de Andrada Neto (1853-1927) foi senador estadual no início da República,

secretário da Fazenda de São Paulo, constituinte estadual por São Paulo (1891) e deputado federal (1909).

Afastou-se em seguida do país e da política em razão de suas renovadas convicções monarquistas. Ribeira

de Andrade era filho de tradicional político do Império, Martim Francisco Ribeira de Andrada Filho, líder

do Partido Liberal em São Paulo, que ocupou a pasta de negócios estrangeiros em 1866. 13

“As questões do Amapá e de Missões, diz o senhor Martim Francisco, “vinham do Império: poderiam

ter erros, não tinham sujeiras”. A do Acre, acrescenta, “vinha da República: era-lhe inevitável a

indecência.” Muito se ilude o monarquista ilustre. A questão do Acre tem incontestavelmente as suas

raízes no Império. Foi no tempo da monarquia que se negociou o Tratado de 27 de março de 1867 (...).

Foi no tempo do Império que o governo brasileiro começou a dar ao artigo 2o a absurda interpretação de

que resultou a linha oblíqua Javari-Beni, defendida depois pelos ministros da República durante as

administrações Prudente de Moraes e Campos Sales. (Rio Branco, artigo publicado no Jornal do

Commercio, em 17/12/1903 apud PEREIRA, 2012, p. 446).

14 O Barão do Rio Branco, astutamente, faz aqui referência às ideias defendidas pelo pai daquele que o

ataca.

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É impróprio falar em cessão de território nacional quando o que

há, pelo tratado, é uma permuta de territórios, permuta que, por

ser sumamente desigual, explica a compensação em dinheiro

com que o Brasil deve entrar. (...) O Brasil não “vai pagar à

Bolívia, por preço mais avultado, o que já pagou ao sindicato

norte-americano”. O pagamento de £ 112.000 ao sindicato deve

ser levado em conta na soma dos sacrifícios que fazemos para

resolver definitivamente a chamada questão do Acre, mas não

houve nessa operação compra de direitos ou de territórios. O que

fez então o governo brasileiro foi eliminar um elemento

perturbador e perigoso, que andava a suscitar-nos dificuldades

na Europa e na América do Norte, tirar ao governo boliviano a

esperança de apoio estrangeiro, simplificar a questão entre o

Brasil e a Bolívia e facilitar um concerto amigável entre os dois

países. (Rio Branco, Apud PEREIRA, 2012 p. 448-449)

Rio Branco conclui sua argumentação recordando a Martim Francisco os inúmeros

casos em que houve troca de território à época do Império - cita os Tratados com o

Uruguai, de 1857, e com o Peru, de 1874 -, e relembra que a permuta de territórios era

autorizada pela própria Constituição Imperial. A referência a operações realizadas pelo

Império não ocorre para denunciá-las, mas sim para demonstrar que os críticos do

Tratado de Petrópolis (1903) usavam muitas vezes “dois pesos, duas medidas” para

avaliar os méritos da negociação conduzida por Rio Branco. Acima de tudo, a linha de

raciocínio de Rio Branco busca ressaltar os elementos de continuidade na política

externa, projetando a imagem de que a política externa não sofre inflexões bruscas e

responde a interesses transcendentais da nação brasileira.

No artigo do dia seguinte (A questão do Acre e o tratado com a Bolívia II, Jornal do

Commercio, 18/12/1903), Rio Branco defende com mais veemência a importância de

reconhecer-se que a política externa materializa interesses nacionais e que, assim como

ocorria em repúblicas respeitadas como a francesa, os cidadãos deveriam evitar

instrumentalizar a atuação externa para fins partidários:

Em outros países, onde em todos os círculos da política e da

imprensa se tem melhor compreensão de patriotismo e dos

interesses da causa pública, as questões com o estrangeiro são

consideradas sempre questões nacionais. Por isso, na França,

ministros como os senhores Hanotaux e Delcassé têm podido

permanecer em gabinetes sucessivos, de diferentes matizes

políticos. Entre nós, não se dá o mesmo nos dias de hoje, que

infelizmente ainda são de anarquia mental. São precisamente as

grandes questões externas que alguns ambiciosos de mando, ao

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mesmo tempo agitados e agitadores incuráveis, exploram com

mais engenho para intrigas de politicagem, no propósito de

transviar a opinião e urdir conspirações e golpes de Estado. (Rio

Branco, Apud PEREIRA, 2012 p. 453)

Rio Branco desenvolvia, portanto, argumentação que lhe permitia acusar seus

detratores de antipatrióticos15

, pois estes, ao contrário dele, não estariam buscando uma

solução que conferisse prioridade à defesa dos interesses dos brasileiros do Acre, à

estabilidade regional e à resolução honrosa e pacífica da disputa. O discurso do Barão

na imprensa buscava consolidar, aos olhos da opinião pública, que suas políticas

responderiam unicamente a desígnios de patriotismo.

Embora a posteriori se tenha difundido a ideia de que a autoridade de Rio Branco e

seu prestígio seriam garantia de seu sucesso na questão acreana, a extensão da

campanha que o Barão travou na imprensa revela a dificuldade de fazer prevalecer sua

visão. Não por acaso, Álvaro Lins opinou ter sido no caso do Acre que o Barão do Rio

Branco encontrou, ao mesmo tempo, “sua questão mais difícil e obteve sua vitória mais

importante”16

, percepção que reflete a do próprio Barão, conforme exposto na

Exposição de Motivos do Tratado de Petrópolis: “para mim vale mais esta obra (...) do

que as duas outras (Palmas e Amapá), julgadas com tanta bondade pelos nossos

concidadãos e que pude levar a termo em condições sem dúvida muito mais

favoráveis”17

.

A legitimidade do Barão no cargo de chanceler da República só foi alcançada após

ser superada a polêmica questão do Acre. Nesse sentido, sua campanha na imprensa

mostrou-se essencial não só para contribuir para a aprovação do Tratado de Petrópolis

pelo Legislativo brasileiro, como também para consolidar junto aos contemporâneos seu

próprio entendimento sobre como deveria ser conduzida a política externa.

4. O discurso da continuidade

Após ter sido consagrado com a questão do Acre - a qual só foi totalmente concluída

após a assinatura de tratado de limites com o Peru, em 1909 -, Rio Branco desfrutava do

prestígio e da legitimidade necessários para atuar com margem de manobra à frente do

15

“Os impatrióticos incitamentos com que neles se procura resolver a Bolívia a recusar-nos uma

verdadeira vastidão de terras feracíssimas, trabalhadas por milhares de brasileiros.” (23/12/1903 - Jornal

do Commercio - Rio Branco, apud PEREIRA, 2012, p .468). 16

LINS, Álvaro. Rio Branco (o Barão do Rio Branco). Biografia pessoal e história política. São Paulo:

Editora Alfa-Ômega, 1995, p. 282. 17

RIO BRANCO, Barão do. Exposição de Motivos sobre o Tratado de Petrópolis. 27 de dezembro de

1903, apud RICUPERO (2012), p.121.

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Itamaraty e difundir seus principais entendimentos de política externa. Nesse momento,

o Barão realizou continuado esforço de projeção dos princípios da política externa

imperial sobre a republicana e, uma vez mais fazendo uso da imprensa, avançou a ideia

de que a política externa era marcada pela continuidade.

As discussões de limites levadas a cabo por Rio Branco, de modo geral, seguiram as

linhas e princípios mestres definidos no Segundo Reinado. Mantiveram-se as diretrizes

de não se aceitarem negociações coletivas com os vizinhos - como no caso do Acre, em

que havia disputa não só com a Bolívia, mas também com o Peru -, e de pautar-se pelo

uti possidetis, consagrado por Duarte da Ponte Ribeiro na década de 1840. Entretanto,

houve rupturas, as quais o Barão, por meio de suas intervenções na imprensa, buscou

matizar e apresentar como evolução natural da política externa brasileira.

Essa matização das diferenças é particularmente clara em duas das políticas centrais

desenvolvidas por Rio Branco: o esforço no sentido de harmonizar as relações com a

Argentina - e assim promover a estabilidade platina -, e a “aliança não escrita”18

desenvolvida com os Estados Unidos. Em relação à Argentina, o Barão, em lugar de

adotar política de contenção do vizinho platino como ocorrera no Império, procurou

aproximar-se e fomentar a coordenação regional. Quanto aos Estados Unidos, a busca

de aproximação contundente com a potência do Norte não existia à época imperial,

ainda que o comércio já fosse significativo. Nos dois casos, Rio Branco agiu de forma

distinta da tradição imperial por razões pragmáticas, mas procurou ocultar essas

diferenças no discurso.

a. A política americanista

Em artigo intitulado “O Brasil, os Estados Unidos e o Monroísmo” - publicado no

Jornal do Commercio no dia 12/05/1906, sob o pseudônimo de J. Penn -, o Barão

defendeu que a aproximação entre Brasil e Estados Unidos não havia sido instituída no

período republicano, e que o então governo de Rodrigues Alves (1902-1906) não fazia

senão “seguir uma política traçada desde 1822 pelos fundadores da nossa

independência”19

. No texto, o Barão rebate críticas de monarquistas, por ter-se

aproximado dos Estados Unidos, defendido a doutrina Monroe e elevado a legação de

Washington ao status de Embaixada:

18

BURNS, Bradford. The Unwritten Alliance; Rio Branco and Brazilian-American Relations. New York:

Columbia University Press, 1966, p. 200-205. 19

O Brasil, os Estados Unidos e o Monroísmo, Jornal do Commercio, 12/05/1906 IN BATH (2012,

p.127).

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As manifestações de recíproco apreço e amizade entre os

governos do Rio de Janeiro e de Washington têm sido, nestes

últimos anos, censuradas, às vezes com bastante injustiça e

paixão, por alguns raros publicistas brasileiros que se supõem

genuínos intérpretes e propagadores do pensamento político dos

estadistas do Império. (Rio Branco, apud BATH, 2012, p.127)

Para defender a existência de tradição nas relações Brasil-Estados Unidos, o

Barão cita um decreto de D. Pedro I, assinado antes mesmo que proclamasse a

Independência, no qual o príncipe regente manda nomear um encarregado de negócios

nos Estados Unidos da América, a primeira nomeação diplomática assinada pelo

monarca. Ademais, Rio Branco argumenta que o governo imperial foi o primeiro do

continente a aceitar a doutrina Monroe, tendo inclusive proposto aliança ofensiva e

defensiva com a potência do Norte20

. Rio Branco cita anais do parlamento brasileiro,

livros, folhetos e jornais pulicados à época imperial e, também, correspondências

oficias, para demonstrar que muitos dos grandes nomes do Império favoreciam uma

aproximação com os Estados Unidos, notadamente José Bonifácio, Carvalho e Melo, o

Visconde do Uruguai, o Visconde Sepetiba e o próprio imperador D. Pedro II, o qual

teria acolhido com entusiasmo a I Conferência Pan-Americana de 1889:

Desses sentimentos do segundo imperador não foram provas

somente a viagem que ele empreendeu aos Estados Unidos da

América em 1876, durante a qual, ainda a bordo, deu-se ao

prazer de traduzir o popular hino Stars and Stripes, e a pressa

satisfação com que nomeou delegados do Brasil para a I

Conferência Pan-Americana de 1889, em Washington. (Rio

Branco, apud BATH, 2012, p.140)

Rio Branco não perde a ocasião de ressaltar os benefícios pragmáticos da relação

com os EUA: a ocupação militar francesa do Amapá, iniciada em 1826, teria cessado

em 1840 por influência dos Estados Unidos; e a doutrina Monroe teria dissuadido novas

incursões francesas na região no ano de 1895, quando da descoberta de ouro no rio

Calçoene. Ademais, a aproximação com os EUA teria aumentado o prestígio do Brasil

na cena internacional. Finalmente, Rio Branco arremata sua defesa da tese de

20

Em 31 de janeiro de 1824, o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, Carvalho e Melo, assinava as

instruções do governo imperial para o encarregado de negócios do Brasil: “Sondará a disposição desse

governo para uma liga ofensiva e defensiva com este Império, como parte do continente americano,

contanto que semelhante liga não tenha por base concessões algumas de parte a parte, mas que se deduza

tão somente do princípio geral da conveniência mútua proveniente da mesma liga”. (Rio Branco, apud

BATH, 2012, p.132).

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aproximação histórica dos EUA ao argumentar que Washington sempre constituiu a

principal barreira às intrigas realizadas contra o Brasil pelos vizinhos sul-americanos:

Todas as manobras empreendidas contra este país em

Washington, desde 1823 até hoje, encontraram sempre uma

barreira invencível na velha amizade que felizmente une o Brasil

e os Estados Unidos, e que é dever da geração atual cultivar com

o mesmo empenho e ardor com que a cultivaram os nossos

maiores. (Rio Branco, apud BATH, 2012, p.142)

Assim, Rio Branco, ao longo de todo o artigo, coloca ênfase nas políticas de

aproximação e nas vantagens de se continuar uma suposta tradição de amizade e

cooperação com os EUA, que teria existido desde a independência brasileira. O Barão

somente menciona que houve “incidentes desagradáveis levantados por três

representantes diplomáticos dos Estados Unidos”21

. Os casos são diminuídos, mas, de

acordo com Doratioto, os mesmos episódios citados por Rio Branco são demonstrativos

de como as relações entre Brasil e Estados Unidos à época do Império eram delicadas22

.

O caso Wise (1846)23

, por exemplo, ocorre em contexto de fortes pressões norte-

americanas sobre o Brasil para que se abrisse o Rio Amazonas à navegação

internacional, o que despertava preocupações dos estadistas imperiais, temerosos de que

os EUA procedessem na Amazônia da mesma forma que haviam procedido no Texas24

.

Ou seja, ao ressaltar que o governo norte-americano logo desaprovou o procedimento de

Wise e o substituiu por outro, o Barão reduziu a tensão ao nível pessoal, omitindo os

desafios estruturais que acometiam a relação bilateral. Mais significativo, entretanto, é o

fato de o Barão ignorar por completo a atuação dos Estados Unidos na Guerra do

Paraguai (1864-1870), quando a potência do Norte tentou mediar o conflito e, após a

Tríplice Aliança negar essa mediação, atuou de forma explicitamente favorável ao

Paraguai, tendo um representante norte-americano inclusive acompanhado Solano

López em sua fuga.

Houve, portanto, vontade deliberada de Rio Branco de reescrever a narrativa das

relações entre Brasil e Estados Unidos, e difundi-la por meio da imprensa, de modo a

21

Os três incidentes mencionados são: Conde Raguet (1827), Wise (1846) e Webb (1863). 22

DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. O Império do Brasil e as grandes potências. Revista de

Relações Internacionais da Universidade Católica de Brasília. Brasília, Ano 1, n.1, abril. 2005. 23

Em 1846, Henry Wise, representante norte-americano no Rio de Janeiro, foi declarado pesona non

grata em razão de sua postura arrogante quando da prisão de um oficial da corveta norte-americana

Saratoga. 24

Sérgio Teixeira de Macedo, representante brasileiro em Washington, em 1849 advertiu o chanceler

Paulino José Soares de Souza que a abertura do rio Amazonas poderia ser o primeiro passo para ocorrer

“a manobra que se verificou a usurpação do Texas”, apud DORATIOTO (2005).

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consolidar o discurso de continuidade de estreitas relações bilaterais desde o Império.

Dessa forma, amenizava-se a ruptura ocorrida com a mudança de regime, destruindo-se

a identificação do americanismo com a República em contraposição ao europeísmo do

Império. Finalmente, a ideia de permanência da política americanista reforçava, uma

vez mais, o projeto do Barão de representar a política externa como política de Estado,

acima das paixões e das orientações partidárias.

b. Relações com a Argentina

Segundo Doratioto, Rio Branco “rompeu a tradição da política externa brasileira

ao buscar um equilíbrio de poder com a Argentina e, assim, dobrar a resistência a uma

projeção brasileira na América do Sul”25

. Desse modo, a despeito de inovar ao buscar a

aproximação com a Argentina e ao defender a não intervenção nos assuntos internos dos

vizinhos, o Barão, em suas atuações na imprensa, procurou consolidar o discurso de que

havia uma continuidade com a política externa do Segundo Reinado, e de que as

relações bilaterais haviam sido historicamente marcadas pela cordialidade.

Outro aspecto significativo dessa questão é que o Barão não manteve diálogo

exclusivo com a opinião pública interna, mas se preocupou igualmente com a opinião

pública externa, ao dialogar com os meios de imprensa argentinos. A mobilização fora

das instituições políticas tradicionais representa um iniciativa de diplomacia pública

com a Argentina e foi essencial para que Rio Branco difundisse o discurso de que estava

empenhado em construir a harmonia entre as três principais nações sul-americanas -

Argentina, Brasil e Chile. Tal discurso teve o intuito maior de apaziguar temores,

sobretudos argentinos, de que o Brasil pretendesse exercer papel hegemônico na região.

A defesa de discurso de histórica aproximação com a Argentina mostrava-se

premente à época, uma vez que o programa de reaparelhamento naval brasileiro,

defendido por Rio Branco, suscitava desconfianças por parte das elites do país vizinho,

em particular quando Zeballos esteve à frente da chancelaria argentina (1906-1908).

Dessa forma, em “Censuras Platinas”, artigo publicado em O Paiz, em 18/07/1905, Rio

Branco omite não só os atritos que historicamente opuseram o Império às Províncias

Unidas do Rio da Prata como também o fato de que, ao longo da história imperial,

25

DORATIOTO, Francisco. O Brasil no Mundo IN: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.) História do Brasil

Nação: A Abertura para o Mundo (1889-193). Rio de Janeiro. Mapfre e Editora Objetiva, 2012, v.3,

p.155.

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muito do poder de influência do Brasil no subsistema platino se deveu ao país possuir

uma armada mais poderosa do que a de seus vizinhos26

.

Até 1893, e desde a sua Independência, o Brasil foi sempre a

primeira potência naval da América do Sul; no entanto, nem

mesmo no tempo em que a esquadra Argentina se compunha

apenas dos vapores Guardia Nacional e Pavón27

, a Armada

brasileira foi uma ameaça ou um perigo para a República

argentina. Mesmo naquele tempo, compreendendo melhor do

que certos políticos argentinos os verdadeiros interesses desta

parte do continente, procurávamos e queríamos a amizade e a

aliança argentina. (Rio Branco, apud PEREIRA, 2012, p. 479)

Ao abordar o histórico naval da região, Rio Branco estava, em realidade,

rebatendo as críticas do periódico La Prensa, veículo por meio do qual Zeballos e seus

seguidores difundiam, na Argentina, visões negativas sobre o Brasil. No mesmo

“Censuras Platinas”, o chanceler brasileiro defende que “na previsão de futuros perigos,

é conveniente que as três maiores Repúblicas da América do Sul – o Brasil, a Argentina

e o Chile – se ponham em bom pé de defesa.” (Rio Branco, apud PEREIRA, 2012, p.

480), respaldando argumentos de setores argentinos favoráveis a uma aproximação com

o Brasil.

Em suas intervenções na imprensa, Rio Branco atribuiu exclusivamente à figura

de Zeballos a responsabilidade por deteriorar as relações bilaterais, as quais teriam

supostamente sido marcadas, ao longo da história, pela amizade. Em entrevista

concedida à Gazeta de Notícias, em 19/09/1908, Rio Branco avança o argumento de que

a aliança entre Brasil e Argentina teria sido consubstanciada em um longínquo ano de

1851, momento em que o Império e Justo José de Urquiza (1801-1870), governador da

província de Entre Ríos e Corrientes, assinaram um tratado de aliança para derrotar

Manuel Oribe (1792-1857), no Uruguai, e Juan Manuel de Rosas (1793-1877), em

Buenos Aires: 26

“Consolidou-se, em 1851, um padrão de política de sustentação dos interesses do Império do Brasil na

região, que tinha como um dos seus objetivos a defesa das independências do Paraguai e do Uruguai e de

contenção de eventual expansionismo por parte de Buenos Aires, o qual as ameaçaria bem como ao Rio

Grande do Sul. Esse padrão tinha como um dos seus pilares a coordenação entre a ação diplomática e o

poder militar, principalmente da Marinha devido à sua capacidade de bloquear Buenos Aires, único

obstáculo potencial previsível à hegemonia do Império na região.” (DORATIOTO, 2010, p. 20) 27

O Guardia Nacional foi um navio a vapor emblemático na história naval argentina por ter sido

utilizado nas guerras civis que precederam a unificação argentina (1859-1862) e, subsequentemente, na

Guerra do Paraguai (1864-1870). O Pavón, por sua vez, foi utilizado somente durante a Guerra do

Paraguai. Ao mencionar a época em que a aramada argentina era composta somente por esses dois navios,

Rio Branco refere-se aos tempos da Guerra do Paraguai, quando ficou patente a superioridade naval

brasileira. Não por acaso, em 1872, com a Lei n. 498, o presidente Sarmiento (1868-1874) iniciaria um

programa de rearmamento naval da Argentina.

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À outra pergunta, (o Barão do Rio Branco) respondeu que o

desejo sincero do governo brasileiro é prosseguir em uma

política de perfeita cordialidade com a Argentina, como sabem

muitos estadistas e homens políticos nessa República, mas que

tal política foi contrariada pelo doutor Zeballos, o qual, como

era sabido e se está vendo melhor agora, nutre grandes e injustas

prevenções contra o Brasil e, quando ministro, dirigia ou

animava, em vários jornais portenhos, uma odienta campanha de

agressões a este país, sempre firme e leal amigo da nação

argentina, desde a aliança de 1851. (Rio Branco, apud

PEREIRA, 2012, p.512)

O Barão, no entanto, não menciona que após referida aliança, embora tenha

havido momentos de aproximação quando Bartolomé Mitre (1862-1868) ocupou a

presidência argentina, os anos 1870 foram marcados por desconfianças e por atritos em

razão, sobretudo, de disputas por delimitação de fronteiras no pós-Guerra do Paraguai.

Essas disputas levariam Argentina e Brasil a assinarem acordos de paz em separado

com o Paraguai, o que havia sido expressamente proibido pelo Tratado da Tríplice

Aliança (1865). Essa reinterpretação da história demonstra o autêntico empenho de Rio

Branco em lançar novas bases para a atuação no Prata, e evitar atritos com a Argentina,

o que se coaduna, por exemplo, com a decisão de não intervir no Paraguai, em 1904, por

ocasião de um golpe de Estado apoiado pela Argentina que derrubou governo colorado

favorável à influência brasileira no país.

Assim, ainda que tivesse modificado de fato os princípios que orientaram a

política do Brasil no Prata, Rio Branco se contrapôs ao discurso americanista dos

primeiros anos da República que condenava os episódios de intervencionismo levados a

cabo pelo Império. O Barão argumentou que esses episódios constituíam uma etapa

superada, caracterizando-os como uma “missão civilizadora” do Brasil na região, como

se lê no Jornal do Commercio, no artigo “Brasil e Argentina”, publicado em

26/09/1908:

Longo tempo a América do Sul esteve entregue a si mesma, fez

e desfez nacionalidade, ergueu e matou a liberdade, armou e

extinguiu despotismo, estabeleceu preponderâncias e

supremacias, perfeitamente independente em matéria

internacional. Foi por essa época que o Brasil, chamado pelos

partidos políticos em luta, interveio no Prata; entrou naquelas

terras para dirimir, pelas armas e pela diplomacia, desavenças

sanguinárias no período difícil da gestação dos Estados; foi

agente de paz e de liberdade, e à sombra da aliança com o Brasil

realizou Mitre o seu grande feito político, que é a unidade

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nacional da República argentina. Quando se acabou a sua

missão histórica no Prata, o Brasil deixou ali nações

organizadas, e o nosso território não foi aumentado pela fácil

incorporação de províncias desgovernadas. Estávamos

expurgados para sempre do tenebroso espírito de conquista. Há

muito a nossa intervenção no Prata está terminada. (Rio Branco,

apud PEREIRA, 2012, p.518-519)

Ao minimizar a ideia difundida durante a primeira década republicana de que o

novo regime teria rompido com o modus operandi do Império, o Barão cria uma ideia

de continuidade da política externa brasileira platina. Mais uma vez, ressaltava-se o

discurso de consenso na política externa, e perpetuava-se a imagem positiva da atuação

externa do Brasil no “Tempo Saquarema”.

O Barão projetou, portanto, valores imperiais na nova “república dos

conselheiros”, consolidando como base de alteridade do regime republicano não o

Império, mas sim os primeiros anos entrópicos da República. Não por acaso, Angela

Alonso sentenciou: “Na longa duração, o saldo foi monarquista. Se os republicanos

ganharam a batalha política do presente, criando instituições e ícones de um novo

regime, os monarquistas venceram a luta simbólica para o futuro”28

. Certamente, o

Barão, graças a sua influência sobre a opinião pública, foi uma figura central nessa

vitória.

Conclusão: a formação de uma certa ideia de nacionalidade

Rio Branco, em seu período à frente do Itamaraty, manejou a opinião pública a

seu favor por meio de intervenções na imprensa. Nessas ocasiões, o Barão não teve a

intenção de produzir uma doutrina coerente e completa, pois seus artigos foram ditados

pela conjuntura, e marcados pela necessidade constante de defender-se. Contudo, ao

reagir aos fatos do momento, Rio Branco recorreu a argumentos de fundo, reveladores

do entendimento de política externa que desejava consolidar na opinião pública

contemporânea.

As manifestações de Rio Branco na imprensa relativas ao Tratado de Petrópolis,

ao desenvolvimento de política americanista e ao estabelecimento de novo padrão de

relações no Prata consolidaram o discurso de que a atuação externa ideal permaneceria

desvinculada de “paixões partidárias”. Assim, em 13/06/1909, no artigo “As relações

exteriores durante a presidência Afonso Pena”, publicado no Jornal do Commercio, Rio 28

ALONSO, Angela. Arrivistas e decadentes: o debate político-intelectual Brasileiro na primeira década

republicana. Novos estudos - CEBRAP, São Paulo , n. 85, p. 131-148, 2009, p. 137.

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Branco já estava em condições de afirmar que o Brasil teria sido capaz de recuperar o

prestígio perdido durante os primeiros anos republicanos graças ao desenvolvimento de

atuação diplomática baseada no pragmatismo econômico e na defesa da paz, ambos

valores apartidários:

Que o Brasil, pela sua ação diplomática, é hoje considerado de

modo muito diferente do que era julgado ainda há poucos anos,

não é mistério para ninguém. Não há brasileiro, no sertão mais

longínquo que seja, que o não saiba e que não se sinta orgulhoso

pelo melhor conceito que adquiriu a sua pátria. A nossa diretriz

diplomática tem sido a da paz e a da defesa dos nossos

interesses econômicos (Rio Branco, Apud PEREIRA, 2012,

p.525)

Em suma, o Barão consolidou o entendimento de que era possível para o Brasil

modernizar-se e, concomitantemente, guiar-se por diretrizes de política externa

baseadas no consenso, como ocorrera no Segundo Reinado. Mais significativo,

entretanto, é que, ao procurar reconstruir a percepção que o mundo e, especialmente,

parceiros importantes como EUA e Argentina tinham do Brasil, Rio Branco acabou por

moldar a imagem que o Brasil tinha de si mesmo, em momento conturbado da história

nacional.

Como ressaltou José Murilo de Carvalho, “a busca de uma identidade coletiva

para o país, de uma base para a construção da nação, seria tarefa que iria perseguir a

geração intelectual da Primeira República (1889-1930)”29

. De fato, para legitimar-se, a

República precisava conciliar-se com o passado monarquista, incorporar as distintas

vertentes do republicanismo e reconstruir as bases de legitimidade da nacionalidade, as

quais não podiam mais ser dinásticas. Em alinhamento ao que ocorria no restante do

mundo, o Brasil necessitava construir sentimento de cidadania e expandir o espaço

público. Nesse contexto, as intervenções de Rio Branco na imprensa contribuíram para

definir novo sentimento de identidade entre os brasileiros. Embora esse sentimento de

identidade fosse restrito, em razão da baixa taxa de alfabetização da população, o Barão

logrou firmar perante o imaginário nacional nova concepção de Brasil como um país

que deveria orgulhar-se de seus feitos e de suas políticas, o que concorreu para superar o

déficit de legitimidade do regime republicano.

29

CARVALHO, José M. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990, p. 32.

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A identificação de Rio Branco com o processo de definição do território

nacional é, certamente, uma das chaves para entender sua consagração, mas, para além

dessa identificação, como destaca Ricupero, “Rio Branco contribuiu mais do que

nenhum outro para a elaboração de um país fiel à paz e ao direito não por uma

imposição das circunstâncias, mas por uma espécie de espontânea manifestação da

essência profunda do caráter nacional”30

. O respeito ao direto, a generosidade e a

moderação, defendidos em suas intervenções perante a opinião pública, acabariam por

conformar uma certa ideia do Brasil e dos brasileiros que seria profundamente

incorporada ao imaginário nacional.

Rio Branco certamente percebia que a ideia de Brasil que buscava consolidar era

muito distinta do Brasil da Revolta da Vacina (1904), do atraso econômico e do

coronelismo. Assim, ao tentar promover a modernização não só da política exterior,

como também dos valores e das aspirações do país, o Itamaraty de Rio Branco deixou

de ser uma instituição puramente diplomática para, no dizer de Gilberto Freyre, ser um

sistema de organização de “valores superiormente nacionais”31

. Rio Branco buscou

deliberadamente difundir uma ideia de Brasil que impelisse o país para o futuro, e não

se pode descartar a importância da imprensa na consolidação desse discurso. A atuação

do Barão na imprensa deve ser lida, portanto, como tendo um claro propósito político: o

de restaurar entre os brasileiros a crença de que o país deveria esforçar-se,

constantemente, para ser uma nação no caminho da modernidade.

Nada mais exemplificativo dessa mensagem política de Rio Branco do que o

seguinte trecho, do mesmo artigo “As relações exteriores durante a presidência de

Afonso Pena”, no qual o Barão refuta o entendimento de que o Brasil monárquico, pelo

qual sempre demonstrou grande admiração, tivesse sido uma dádiva de D. Pedro II. Os

avanços do país são apresentados como fruto do empenho da população, o que

consubstancia, em última análise, um convite a todas as gerações de brasileiros a refletir

sobre quais “valores superiormente nacionais” as devem guiar:

Não se tinha noção de que éramos uma nacionalidade em

evolução, um povo que registrava, na sua história, se bem muito

curta em comparação com a das antigas nações do velho

continente, lutas sangrentas pela liberdade, pela república, pela

descentralização administrativa; lutas pacíficas no jornalismo,

30

RICUPERO, Rubens. José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio Branco): a fundação da

política exterior da República. IN PIMENTEL, José Vicente de Sá. Pensamento Diplomático Brasileiro:

Formuladores e Agentes da Política Externa. Brasília: FUNAG, 2013, p. 430. 31

FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959, 1o tomo, p. CLI.

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na tribuna popular e no Parlamento pela abolição da escravidão,

pelo casamento civil, pela separação da Igreja do Estado, pela

federação, pelo sufrágio universal, por tantas outras causas em

que, paralelamente com a Europa, afirmava-se a cultura

brasileira, se não com o mesmo brilho e intensidade, pelo menos

com a mesma sinceridade e firmeza e a mesma confiança no

avanço natural das doutrinas liberais, no emprego das forças da

inteligência, no valor desses instrumentos da ação e de vitória

nas sociedades instruídas e policiada, à pena e à palavra. (Rio

Branco, Apud PEREIRA, 2012, p. 521)

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RELACIONES BILATERALES ARGENTINA-BRASIL EN

EL PRIMER CENTENARIO DE INDEPENDENCIA: LA

EMBAJADA DE RUI BARBOSA EN BUENOS AIRES

Micaela Finkielsztoyn

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar o discurso do Embaixador especial em

missão a Buenos Aires, Rui Barbosa, do dia 14 de julho de 1916, na Faculdade de

Direito da Universidade de Buenos Aires, por causa do primeiro centenário da

independência argentina.

O contexto de produção e circulação do discurso será analisado, assim como

também a recepção pela audiência argentina e internacional e as sua influência na

política doméstica e internacional dos dois países.

Pela realização do dito trabalho, se utilizaram fontes primárias – na maioria,

telegramas da Missão brasileira em Buenos Aires, e artigos de diferentes jornais da

época, argentinos e brasileiros–, que são o resultado da pesquisa nos arquivos do

Ministério de Relações Exteriores do Brasil, na sua sede do Rio de Janeiro, e

igualmente serão utilizadas fontes secundarias, sobre o período histórico e a atividade

intelectual e política do Rui Barbosa, a maioria delas consultadas na Biblioteca do

Senado do Brasil, em Brasília.

Palavras chave: Rui Barbosa, Centenário, Argentina, Brasil, discurso.

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Introducción

El objetivo del presente trabajo es analizar el discurso que profirió el Embajador

especial en misión a Buenos Aires, Rui Barbosa, el día 14 de julio en 1916 en la

Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires, con motivo del primer

centenario de la independencia argentina.

Se analizará el contexto de producción y circulación de dicho discurso, así como

también la recepción por parte de la audiencia argentina e internacional y sus

repercusiones en la política doméstica e internacional de ambos países.

Recurriendo a las categorías de análisis de Quentin Skinner (1988), se realizará

también un detallado análisis textual de la totalidad del discurso original –en sus

versiones en español y en portugués–, siguiendo de algún modo las categorías retóricas

ya utilizadas en la Antigüedad clásica.

Para realizar dicha investigación, se recurrirá a fuentes primarias –en su mayoría

cables de la Misión brasileña en Buenos Aires y artículos de diferentes periódicos

argentinos y brasileños–, que resultan de la consulta de los archivos del Ministerio de

Relaciones Exteriores de Brasil, en su sede en Rio de Janeiro, así como también fuentes

secundarias, en su mayoría referidas al período histórico y a la actividad intelectual y

política de Rui Barbosa, habiendo sido estas últimas consultadas en la Biblioteca del

Senado de Brasil, en Brasilia.

El trabajo estará dividido en cuatro partes: una primera parte que describe el

contexto de la visita de Rui Barbosa a Buenos Aires; una segunda parte en la que se

analizará la integridad de la Conferencia “Los Conceptos Modernos del Derecho

Internacional”; una tercera parte, en la que se analizarán las repercusiones políticas de

dicha conferencia y, finalmente, una sección de conclusiones.

La Embajada de Rui Barbosa a Buenos Aires

Una de las principales razones que motivó al gobierno de Venceslau Brás a

enviar una Embajada especial a cargo del Dr. Rui Barbosa a Buenos Aires en 1916 fue

el deseo de resarcir a la Argentina de la ausencia del Brasil en los festejos del primer

centenario de la Revolución de Mayo de 1810. Como señala el diario La Prensa en su

artículo “Brasil y Chile en sus relaciones con la República” del día 11 de junio de 1916:

“El Barón de Rio Branco, secundado por Domicio da Gama y por Souza Dantas,

a quienes, sin embargo se colmaba de distinciones en Buenos Aires, resolvió que

el Brasil no tuviera embajador ni buques de guerra en las fiestas del Centenario

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de 1910; lejos de eso, está probado que el Barón simuló manifestaciones hostiles

a nuestro país [Argentina], con destrucción de escudos y banderas de consulados

argentinos, que él aparecía calmando o reprimiendo en son de amistad. La

opinión brasileña ha despertado de aquella pesadilla que la extravió un momento

y, con motivo del Centenario de 1916, protesta contra los errores del Barón y

pide reparación para nuestro país agredido. Voces de la prensa y de la Cámara

de Diputados en Río han dicho estas palabras nobles y de justicia:

´Como se sabe, no tuvimos propiamente representante en la fiesta de

aquel centenario. El gobierno se limitó a dar al ministro del Brasil en el

país vecino credenciales de embajador especial, lo que fue una

manifiesta e imperdonable descortesía, tanto más de extrañar por el

referido ministro el señor Domicio da Gama quien, inspirado por la

acción funesta [sic] del Barón de Rio Branco, contribuyó, durante su

permanencia en Buenos Aires, a la alteración de las relaciones entre los

dos países.

Hoy disipadas las amenazas de aquella política de la cual no quedaron

discípulos ni adeptos, podemos trabajar con tranquilidad en la obra cada

vez más necesaria y hasta ahora universalmente aceptada del

acercamiento de las relaciones sociales, comerciales e intelectuales del

Brasil y del gran vecino del Sur existente´”.

A pesar del tono inflamado de la nota, y de la selección sin duda parcial de las

declaraciones de los políticos brasileros recogidas en su texto que –además, no citan

fuente política alguna–, lo cierto es que las relaciones bilaterales durante el período del

Barón de Rio Branco como Canciller fueron, cuanto menos, ambivalentes.

En ese sentido, cabe destacar como episodios tensos los enfrentamientos con el

Canciller argentino Estanislao Zeballos –en el que el argentino alega tener “pruebas

escritas y firmadas por el mismo Barón de Rio Branco de que se prepara a agredir a la

República Argentina (…)” (Meneses, 1988: 60)– en el marco del affaire del famoso

“Telegrama 9”, que luego el Barón desmiente; y, muy en línea con dicho episodio, la

escalada de rearmamento naval que emprenden ambos países. En ese sentido, el

Canciller Zeballos ordena la construcción de tres acorazados navales, al tiempo que

Brasil decide no refrendar los acuerdos de limitación del poder naval que se habían

establecido con los gobiernos de la Argentina y Chile en mayo-julio de 1902 y enero de

1903 (Fernández Bengoechea, 2007: 134.135).

Por otro lado, y como momentos de reconciliación en la relación bilateral, resta

enunciar la admiración mutua y excelente relación entre el ex Presidente Roca y el

Barón de Rio Branco, así como el comienzo de las negociaciones por el Tratado del

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ABC, que finalmente se materializó durante la gestión de Lauro Müller como Canciller,

el 25 de mayo de 1915, mediante la firma del Tratado de Buenos Aires.

Lo cierto es que, para 1916, las relaciones bilaterales se encontraban, una vez

más, en un excelente momento –el 26 de agosto de 1915, por ejemplo, se creó en

Buenos Aires la Cámara de Comercio argentino-brasileña-, y el 9 de julio de 1916 fue

una excelente oportunidad para estrechar lazos. Es más, Venceslau Brás ordenó, por

decreto 12.129, que ese día fuese feriado en Brasil, en honor a la Argentina y que se

saludara al pabellón nacional con 21 salvas de cañón y la ejecución del himno nacional,

tal y como lo señalan el Informe de 1917 del Ministerio de Relaciones Exteriores de

Brasil y el extenso artículo del diario O Paiz de Rio de Janeiro dedicado a las

celebraciones que tuvieron lugar en Argentina ese día.

La Embajada especial de Rui Barbosa comenzó el día 28 de junio, cuando Rui

junto con su comitiva partieron en el vapor Júpiter del puerto de Rio de Janeiro rumbo a

Buenos Aires. Integraban la misión los siguientes miembros:

Senador Rui Barbosa, Embajador Extraordinario y Plenipotenciario;

Feliciano Mendez de Morais, General de División, Delegado Militar;

António Coutinho Gomes Pereira, Contra-Almirante, Delegado Naval;

António Batista Pereira y João Rui Barbosa, Secretarios;

Adolfo Cunha Leal, Teniente, Ayudante de órdenes;

Armando Duval, Capitán, Agregado Militar;

Lourival de Guillobel, Secretario de Embajada;

Maria Augusta Rui Barbosa, esposa del Embajador;

Maria Adelia Batista Pereira, Maria Luisa Rui Barbosa y João Rui Barbosa,

hijos del Embajador;

La Sra. João Rui Barbosa [sic], nuera del Embajador;

Antonio Batista Pereira, suegro del Embajador (Monteiro Real, 1966: 16).

Las actividades del Embajador fueron de tipo político, social y académico. La visita

se inició a las 15 horas del día 4 de julio de 1916, con una entrevista con el entonces

Canciller de la República Argentina, Dr. Luis Murature. Ese mismo día, Rui Barbosa

también asistió a una recepción ofrecida por el Embajador de los Estados Unidos –por

el día nacional de dicho país–, Jesup Stimson, y recibió colectivamente a la prensa

argentina.

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Al día siguiente, Rui Barbosa presentó sus cartas credenciales ante el Presidente

Victorino de la Plaza en la Casa Rosada, donde fue recibido en tercer lugar, luego del

Nuncio Apostólico y del Embajador de los Estados Unidos, si bien Regina Monteiro

Real destaca que “su visita fue más prolongada que las demás” (ídem: 11) y el 6 de julio

pronunció un discurso en una sesión especial plenaria de ambas cámaras del Congreso

Argentino, liderada por el Senador Joaquín V. González. Ese mismo día, fue invitado a

una recepción en su honor que realizó el Presidente de la Nación y a una gala en el

Teatro Colón.

El 9 de julio, fecha en la que se iniciaron formalmente los festejos del Centenario,

Rui Barbosa asistió al Te Deum que se realizó en la Catedral Metropolitana, así como

también a los desfiles militares y al espectáculo de gala que se realizó en el Colón. Ese

mismo día, además, tanto Rui como el Presidente De La Plaza fueron víctimas de un

atentado, cuando un anarquista argentino disparó tres tiros contra el palco oficial, con el

objetivo de asesinar al Presidente, en plena revista de tropas. Afortunadamente, ambos

resultaron ilesos.

El 10 de julio se cerraron finalmente los festejos conmemorativos, si bien Rui

Barbosa habría de permanecer dos semanas más en el país, en las que realizó una serie

de actividades, tales como asistir a homenajes en el Círculo Militar, ofrecer un banquete

en el Jockey Club en honor al Presidente argentino, visitar las tumbas de los ex

Presidentes Mitre, Roca y Sáenz Peña en el Cementerio de la Recoleta, entre tantas

otras. La Embajada de Rui Barbosa en Buenos Aires concluyó el día 24 de julio, cuando

su comitiva embarcó en el vapor Rui Barbosa (ex Júpiter), si bien luego pasó por

Montevideo –donde visitó al Presidente Feliciano Vieira– y profirió un discurso final, a

su llegada a Rio de Janeiro, el día 29.

Sin embargo, el evento más destacado de la visita se produjo el día 14 de julio,

cuando el Embajador pronunció su famosa conferencia, “Los Conceptos Modernos del

Derecho Internacional”, en la Facultad de Derecho de la Universidad Buenos Aires, en

la que explicitó las bases de la neutralidad brasileña e hizo una fuerte apelación a la

Argentina y a las demás naciones de Sudamérica a seguir dicho ejemplo.

Marco teórico de análisis del discurso

Antes de proceder al análisis textual del discurso, procederemos a explicar el

marco teórico con el cual habremos de trabajarlo. En su texto “Meaning and

understanding in the history of ideas” (1988: 29), Quentin Skinner habla de dos

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posibles acercamientos a los textos: el estudio del contexto, es decir, de los factores

religiosos, políticos y económicos que “determinarían el significado de un texto”, y el

estudio del texto per se, autónomo y aislado de todo contexto. Sin embargo, Skinner

destaca que, para hacer Historia de las Ideas, ninguno de los dos acercamientos es

suficiente. Skinner relativiza la propia posibilidad de estudiar la historia de una idea

determinada y afirma que “no hay una idea determinada a la que varios escritores

contribuyeron, sino una variedad de afirmaciones hechas con palabras por una

diversidad de agentes con varias intenciones” (1988:56) y que, por lo tanto, la única

historia que se puede hacer de las ideas es aquella que se construye rastreando las

diferentes afirmaciones –y su interacción con el contexto, que tiene una importante

influencia, si bien no es determinante– que se fueron haciendo con dicha palabra.

Skinner, por lo tanto, propone también estudiar aquello que el lingüista Austin

(1962) define como la “fuerza ilocutiva”: es decir, de qué manera el enunciador de

dicho texto intentó transformar la realidad con su acto de habla –en este caso, la

conferencia– y cómo se esperaba que dicho texto fuera recibido por los destinatarios.

En una palabra, si seguimos el marco teórico de Skinner, deberíamos preguntarnos qué

mensaje quiso transmitir Rui Barbosa en Buenos Aires; a quién específicamente quería

dirigirle dicho mensaje y cómo fue recibido y percibido en la Argentina. Al mismo

tiempo, y dado que el diálogo con el contexto es inevitable, cabe preguntarse cómo

interactúa dicha conferencia con el pasado y el presente político de la Argentina y del

Brasil y también qué intertextualidades y relaciones traza con el futuro. Procedamos,

ahora sí, con el análisis del texto.

Los Conceptos Modernos del Derecho Internacional: un texto retórico

Como señala Afonso Celso en su texto Oito Anos de Parlamento, recuperado por

Carlos Cardim, el estilo de Rui Barbosa como orador era macizo y colosal, y “fuera de

las normas generales”. Cardim se atreve a decir incluso que desafiaba las normas de

cualquier manual de diplomacia (2002:182), pero sin embargo, operaba según varios

conceptos de la retórica clásica, como los expresados en De Oratore de Cicerón o en la

Retórica Ad Herennium. Rui Barbosa tenía la particularidad de ser un orador

implacable, capaz de hablar durante horas, con “la misma uniformidad e idéntica

actitud”, realizando un análisis minucioso de la materia sobre la que se proponía

exponer, en exposiciones “repletas de estupenda erudición, desbordantes de hechos,

fechas, leyes, nombres, comentarios”, entre otras cosas (ídem: 183). Definiendo el estilo

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retórico de Rui Barbosa, Cardim incluso afirma que “la forma, más que correcta,

burilada, con lujos de clasicismos y términos raros, siempre literaria y noble, se diría

trabajada con esmero” (ídem). Cabe destacar que, Rui solía “fatigar por la monotonía de

su perfección”, haciendo que rara vez “sus oyentes le prestaran atención continuada”, si

bien hacia el final de sus discursos, el auditorio aplaudía pasmado, contemplando ese

“sagrado terror”.

Esa serie de lítotes y oxímoros que utiliza Cardim para referir al estilo retórico

de Rui Barbosa demuestra que, en realidad, la forma de expresarse de Rui Barbosa,

típica del bacharelismo brasilero decimonónico, no estaba hecha para ser escuchada,

sino más bien, para ser leída y que, por ejemplo, difícilmente un oyente de hoy en día

podría estar en condiciones de recibir la totalidad del mensaje de Rui Barbosa, ya que

los patrones de atención han cambiado, en gran medida gracias a la irrupción de las

nuevas tecnologías de la comunicación.

No obstante, si bien la forma del discurso nos sería ajena, el contenido de las

palabras que Rui profirió en 1916 constituyen las bases de la Teoría de las Relaciones

Internacionales moderna, ya que –sin hacer referencia explícita a ellos–, Rui menciona

conceptos del realismo y del idealismo político liberal, así como también desliza en

numerosas oportunidades discusiones acerca de la forma en la que se debería construir

un nuevo orden global.

Como afirmamos, el discurso de Rui Barbosa responde de algún modo a las

categorías retóricas clásicas, ya que en él se pueden encontrar con facilidad cuatro de las

cinco partes que solían contener los discursos greco-romanos: el exordio, la propositio,

la narratio y la argumentatio.

El exordio busca señalizar el comienzo del discurso y captar la atención del

público. En el discurso de Rui Barbosa, esta apelación inicial se realiza a través de la

captatio benevolentiae, que consiste en llenar de elogios a la audiencia: “la honra

insigne con la que hoy me confundís no cabe en mi persona: sólo puede recibirlo

dignamente mi nación” y luego al lugar donde el discurso es proferido, la Facultad de

Derecho: “el espectáculo en que me envuelve esta asamblea magnífica, entre los acentos

de elocuencia que aún resuenan en ella y bajo la impresión de grandeza del apostolado

que se profesa en esa casa”. La captación de la audiencia se prolonga con una

construcción del sujeto de la enunciación que Rui Barbosa introduce con la pregunta

retórica, “¿Qué soy yo?”, que responde con suma modestia, “Apenas un viejo amigo del

derecho (…) Nada más”, si bien luego comienza a construir su legitimidad como orator,

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haciendo extensas referencias a su carrera política, y sobre todo, a su singular lugar en

el sistema político brasileño y en la construcción de las bases de la incipiente República

(“puesto momentáneamente en el gobierno por una revolución”), en la que siempre

actuó como un “elemento pertinaz de resistencia”.

Estos dispositivos se repiten en el segundo parágrafo del discurso, titulado

“Claridad en la cerrazón”, en el que Rui pareciera afirmar que siente estar

protagonizando una suerte “coyuntura crítica” histórica (Collier & Collier, 1991),

situación que se puede interpretar en forma polisémica, ya que puede hacer alusión al

Centenario Argentino, que vendría a ser un momento de claridad, sobre todo debido a la

bonanza económica y estabilidad política que había logrado nuestro país, o también

puede hacer alusión a la Primera Guerra Mundial, un momento de cerrazón y oscuridad.

Luego de este largo exordio, Rui Barbosa finalmente expone los motivos que lo

traen a la Facultad de Derecho como orador. Se trata de la propositio, que el orador trae

a colación diciendo “¿A qué vendría aquí el extranjero, el desconocido o incompetente?

Señores, a traer a la soberanía de la grandeza argentina el tributo de obediencia de un

corazón libre (…) que me recibís como mensajero de mi Gobierno e de mi Nación, o

hace veintitrés años, cuando no negasteis al expatriado el asilo de vuestro hospedaje, el

refugio de vuestras leyes, la seguridad de vuestra protección” (19). A lo largo de estas

primeras secciones, entonces, Rui Barbosa construyó su figura de orador como un ser

multifacético: por un lado, es el Embajador que viene en representación de Brasil y

habla en tanto que político; por el otro, es también un viejo amigo del derecho y hablará,

por lo tanto, en esta casa de estudios, en tanto que profesional de la disciplina y,

finalmente, hablará como antiguo expatriado, que residió en Buenos Aires, por causa de

la rebeldía de sus opiniones.

Comienza, luego de ello, la narratio, en la que Rui Barbosa expondrá dos ejes

temáticos, sobre los que versará la mayor parte de su discurso. Estos son: a) una

interrogación sobre la libertad y las tensiones que esta ha traído a lo largo de la historia

argentina; b) una disquisición sobre la moralidad de la guerra.

En la primera sección temática, Rui Barbosa entreteje su destino con el de Brasil

y el de la Argentina, a través de los conceptos de libertad y la dicotomía entre

civilización y barbarie que, de hecho, atravesará el discurso entero, yendo desde lo

particular –la vida de Rui– hasta lo más general, la conflagración internacional.

Comienza así el relato con la referencia a su exilio argentino durante la dictadura de

Floriano Peixoto, en 1893, al que compara con el de Juan Bautista Alberdi, durante el

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gobierno de Rosas. Para ello, cita un texto del autor tucumano, que afirma que “yo dejé

mi país en busca de la libertad de atacar la política de su gobierno, cuando ese gobierno

castigaba el ejercicio de toda libertad, como crimen de traición a la patria” (20).

A partir de la cita de Alberdi, Rui Barbosa delinea su concepto de libertad, que

es el mismo del de las democracias liberales de Inglaterra y Estados Unidos: “La

libertad no es sino la seguridad: seguridad de la vida, de la persona, de los bienes (…)

Ser libre es estar seguro de no ser atacado (…) por tener opiniones desagradables al

gobierno (…) La primera y la última palabra de la civilización es la libertad”. Se

construye así un silogismo: la civilización es libertad, y la libertad es seguridad. Por

ende, la civilización es seguridad en el ejercicio de los derechos individuales. Libertad y

seguridad jurídica se vuelven así términos intercambiables. Y continúa Rui Barbosa,

ahora con sus palabras: “Un estado social que no estriba en esta verdad es un estado

social de opresión: opresión de las mayorías por las minorías, u opresión de las minorías

por las mayorías, dos expresiones, en substancia, hermanas de la tiranía, (…)

barbarizadoras” (20). Para ilustrar más patentemente su caso –sin hacer una crítica

explícita a la historia brasileña–, apela a un período de la historia argentina –el gobierno

de Juan Manuel de Rosas– al que denomina “gauchocracia”. Esta alusión histórica, sin

embargo, jamás se hará de forma explícita, sino que se irá construyendo a partir de

sintagmas claves, como “Terror”, “Caudillo”, “mazorca” y “Restaurador de las Leyes”

que, en el imaginario colectivo argentino, remiten inmediatamente a dicho período.

Haciendo alusión a una serie de intelectuales argentinos que debieron exiliarse,

tales como Sarmiento, Alberdi, Cané y Echeverría mezclados con algunos políticos,

como Tejedor, Irigoyen, Rui Barbosa empieza a delinear el perfil de la dicotomía “

civilización vs. barbarie”, sobre todo a partir de las figuras de Sarmiento y Echeverría,

autores del Facundo y de “El Matadero”, respectivamente, que tienen como eje de sus

obras el caudillismo y la violencia política como antítesis del orden civilizatorio.

Sin embargo, y aquí viene la diferencia con el Brasil cuasi contemporáneo, “Ya

están bien lejos, para la Argentina, esos días malditos, de inenarrable negrura, para ella

son pasados, aunque no sean pasados para otras regiones del continente” (21). Rui

Barbosa vivió en carne propia la barbarie de la República Velha y de la dictadura de

Peixoto; Rosas está enterrado por más de 50 años de historia. La referencia se hace aún

más explicita cuando Rui continúa afirmando que “hace apenas 23 años, repúblicas

había, bajo el Cruzeiro do Sul, en las cuales los expatriados políticos eran heridos en el

destierro por el estigma de la traición…”. Esta frase, asimismo, es una autocita de un

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discurso proferido por él mismo en el Senado, el 13 de octubre de 1896, pocos años

luego del fin de la dictadura y de su regreso a Brasil. La alusión a la Cruz del Sur –

Cruzeiro, en portugués– es una metonimia del Brasil, ya que refiere a su nombre

antiguo, así como a gran parte de su simbología patria.

Establecido el Brasil como el lugar de la barbarie contemporánea, Argentina –

por contraposición– pasa a ser el lugar de la civilización. Literalmente, “vosotros, con

todo, hace mucho tiempo que consolidasteis vuestra civilización. Veinticinco años, por

lo menos, de gobierno estable, orden constante y progreso ininterrumpido los liberarán

para siempre del mal de la anarquía”. Aquí Barbosa vuelve a jugar con las competencias

cognitivas de su audiencia. “Orden y Progreso” no sólo es un típico eslogan positivista,

que signó el período de 1880 para adelante, y fue asociado con las características de la

civilización, sino que además es la divisa de la bandera brasileña, tal y como fue

establecida en 1889, sólo que en su discurso es utilizado para denotar al país vecino, la

Argentina.

A partir de allí, y luego de citar al ex Presidente Mitre –considerado uno de los

presidentes “históricos”, junto con Sarmiento y Avellaneda, ya que precisamente,

modernizó la estructura productiva y societal del país–, comienza un largo excursus,

casi podría decirse que una ékfrasis, por tratarse de una descripción dentro de la

narración general, de todo el proceso de consolidación nacional argentino, desde las

Invasiones Inglesas de 1806-1807, pasando por la Primera Junta de 1810, la Asamblea

del año ´13 (a la que erróneamente ubica en el año 1812), la declaración de

Independencia de 1816, hasta la disolución de dicho modelo en la anarquía del año

1820.

En este recorrido histórico, Rui se detiene particularmente en lo que refiere a la

cuestión de la esclavitud, ya que se encuentra en línea con sus ideas políticas

abolicionistas, sobre todo de su juventud. Destaca entonces el decreto del 9 abril de

1812, que pone fin al comercio de esclavos en las Provincias Unidas del Río de la Plata,

y compara esta situación con la de los Estados Unidos y Brasil, a quienes les llevó

considerablemente más años (1857 y 1851, respectivamente) y con una cruenta guerra

civil de por medio, en el caso del primero. Colocándose precisamente del lado de la

civilización y de ese movimiento abolicionista, Rui Barbosa lee entonces un fragmento

de un artículo que él había escrito para la prensa brasileña en 1909, que argüía que “Si

Brasil hubiese impreso en la piedra angular de su independencia y de su organización

política el mismo principio cristiano [la abolición de la esclavitud], el rumbo de nuestra

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civilización, la celeridad de nuestro progreso y la índole de nuestro carácter serían

otros” (25). Asimismo, en ese artículo sostiene que el contacto con los argentinos

contribuyó a la abolición en Brasil, ya que la alianza con las repúblicas del Plata en la

guerra del Paraguay, según algunos políticos brasileros, llevaría a la eliminación de la

esclavitud en Brasil. Señala, asimismo, como dato importante de la relación bilateral,

que la Argentina haya saludado la abolición de la esclavitud en Brasil en 1888: “Más

vale, entre dos pueblos, una tradición de estas en su historia, que la escritura de un

tratado de alianza entre sus cancillerías”.

Luego, y ya en una clara alusión a su pro-americanismo, y de hecho, lejos de las

interpretaciones historiográficas argentinas, en las que la cuestión del reconocimiento

por parte de potencias extranjeras suele no ser un capítulo importante del proceso de

independencia nacional –precisamente debido a las diferencias que este tuvo con el de

Brasil, en el que la autonomía e independencia del Imperio portugués fueron, en un

comienzo, más difusas–, destaca la importancia del reconocimiento de la independencia

de las Provincias Unidas por parte de los Estados Unidos en 1822 y por el Reino Unido

en 1823. Y allí traza una intertextualidad –un poco forzada, si bien el vínculo existe–

entre las palabras del Primer Ministro británico Canning, cuando en 1823 afirma que

“La América Española es libre”, para evitar todo tipo de intromisión de la Santa Alianza

en América del Sur y la cita por parte de Sáenz Peña, representante de la República

Argentina en la Conferencia de La Haya de 1907, cuando profiere la misma frase, sólo

que precisamente para hacer referencia a que la América Española es libre, incluso de

las presiones de los Estados Unidos, ya que precisamente, nos encontramos en un

período en el que la Argentina –a través de las Conferencias Panamericanas– busca

construir un proyecto alternativo y contra hegemónico al de los Estados Unidos

(Escudé, 1998).

El excursus sobre la historia argentina finaliza en la barbarie de 1820, cuando el

Congreso de Tucumán y las autoridades por él constituidas son disueltas y se desata una

guerra civil entre unitarios y federales. Rui utiliza este recurso para trazar un

paralelismo con la situación actual de guerra en 1916 y el fracaso de la Conferencia de

La Haya, que viene siendo desoída por los países beligerantes. En una palabra, la

anarquía y la barbarie están reinando en el mundo, por causa de la guerra, tal y como

sucedía en la Argentina en 1820.

Comienza así la última parte del discurso de Rui, acerca de la doble moral de la

paz y la guerra y los deberes de los neutrales (33), en el que utiliza las categorías

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construidas con anterioridad para referirse a su presente y, finalmente, al tema que

convoca a su conferencia: los problemas del Derecho Internacional contemporáneo.

Inaugura la sección, haciéndose una serie de preguntas retóricas: ¿Dónde, pues, hoy

[están] esta “virtud del derecho”, esa “armonía de las leyes históricas” entre las

naciones, que a vuestro representante en la Conferencia de la Paz [Sáenz Peña]

inspiraban aquellas palabras memorables?” (32). Y aquí esgrime una de las teorías que,

a nuestro entender, son de las más valiosas de su exposición: la Primera Guerra Mundial

es una guerra de ideas, es decir, el racionalismo positivista llevado al paroxismo: “Para

entrar en lucha con la civilización, la fuerza comprendió que era preciso constituirse en

filosofía adecuada, corrompiendo las inteligencias, antes de subyugar las voluntades”

(ídem).

Para Rui Barbosa, el fin del siglo XIX y el principio del siglo XX, con sus

revoluciones nacionalistas, y la propaganda política empleada por los estados en sus

procesos de constitución política como estados-nación, sobre todo en Europa, fue

allanando el terreno para la guerra total. Se fue creando en Europa una ciencia nueva,

que él denomina “culto a la guerra”, que hace de ésta una ciencia política. Rui le

atribuye parte de la responsabilidad en la creación de dicha disciplina a los teóricos de

estrategia militar como Clausewitz, que estilizan la guerra y la transforman en un deber

moral del estado. Nietzsche, por ejemplo, en palabras de Rui Barbosa, habrá de decir

que “la guerra es la divinidad que consagra y purifica los estados…” (34). Por la guerra

nos salvaremos, o por la guerra nos extinguiremos.

Esta divinización de la guerra, a la cual él contrapone la religiosidad y la ética

cristiana, parecería producir una inversión del Derecho Internacional, que terminaría

poniéndose al servicio de la guerra, más que de la paz. Allí, indignado, Rui Barbosa se

pregunta: “¿La ley de necesidad de la guerra manda que se traicionen los tratados? Que

se traicionen; ¿La Ley de la necesidad de la guerra exige que se viole la neutralidad?

Que se la viole”. Estas preguntas retóricas hacen clara referencia al accionar del Imperio

Alemán de donde, no casualmente, provienen Clausewitz y Nietzsche. El culto a la

guerra se perfecciona, además, con el culto al agente que tiene la potestad exclusiva –al

menos en 1916– de hacerla: el Estado. En una situación de guerra, el Estado se reifica y

se escinde de sus ciudadanos, a quienes, como sostiene Alberdi, les niega “la libertad

individual” en pro del estado de necesidad.

Surge así un dualismo moral producido por la fuerza, que Rui Barbosa condena:

en el plano interno, la fuerza se traduce en “razón de estado” y en política externa, la

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guerra se traduce en discriminación entre estados militarmente robustos –que parecerían

tener una serie de derechos– y los estados militarmente débiles. A esa moral de la

fuerza, Rui Barbosa contrapone las fuerzas morales del Derecho Internacional, tal y

como este está establecido en las Convenciones de Ginebra y de La Haya.

A partir de aquí, la conferencia de Rui Barbosa se transforma en, como

habíamos señalado antes, una piedra fundamental de las Relaciones Internacionales, ya

que continúa su discurso haciendo referencia al estado de anarquía internacional, con la

diferencia de que para él dicha anarquía equivale a un estado de barbarie. Y, haciendo

referencia a una de las expresiones más antiguas conocidas del realismo político, cita a

Tucídides en el Diálogo de los Melios, cuando afirma que “en el orden del mundo sólo

se habla de derecho entre iguales en fuerza. Entre fuertes y débiles, los fuertes hacen lo

que pueden y los débiles sufren lo que deben” (43). En el estado de guerra actual, en el

que naciones como Alemania, militarmente más fuertes, invaden a países como Bélgica

–violando todo tipo de tratados–, prima la raison du plus fort, como en la fábula de

Lafontaine, sostendrá Rui Barbosa.

Sin embargo, ya desde la Conferencia de la Haya se habían comenzado a

esbozar principios del Derecho Internacional, tales como la igualdad jurídica de los

Estados, que vienen a limitar la inevitabilidad de las leyes de la anarquía. El Derecho

Internacional sale en defensa de los estados “más pequeños”, o militarmente más

débiles. El problema es la coexistencia de estos dos paradigmas, ya que “¿Cómo es

posible conciliar las Convenciones de La Haya con la violación del territorio de las

naciones neutras? (…) ¿Con el uso de gases asfixiantes y chorros de petróleo

inflamado? (…) ¿Con el torpedeamiento y hundimiento de navíos mercantes neutros, el

sacrificio de sus tripulaciones y pasajeros, sin aviso ni socoro…?” (49-50). Este último

fragmento es particularmente elocuente, ya que el hundimiento de barcos neutrales

brasileros va a ser uno de los principales motivos que invoca, en primer lugar, el

Canciller Lauro Müller para romper relaciones diplomáticas con el Imperio Alemán por

nota del día 3 de abril de 1917, y que luego utilizará el Canciller Nilo Peçanha para

proclamar el estado de guerra con el Imperio Alemán el día 27 de octubre de 1917

(Vinhosa, 1990).

Comienza así la parte más sólida del discurso de Rui Barbosa, la argumentatio,

ya que es la que tiene contenidos más políticos. Sin embargo, en una actitud que ya es

habitual en él, Rui intenta de algún modo salirse del epicentro de la propia tormenta,

alegando que “no me ocupo, señores, de política, sino del aspecto jurídico de estos

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acontecimientos. No fue al embajador de Brasil, cuya misión –además– ya está

concluida que recibisteis y elegisteis miembro de vuestro honorario cuerpo docente: fue

únicamente al jurista” (50). Es como jurista que invoca la necesidad de que las partes

contratantes de La Haya se unan en solidaridad para hacer valer el Derecho

Internacional.

Luego de eso, y en un ejercicio teórico de suspensión de la Convención que

acaba de invocar, Rui Barbosa presenta al auditorio lo que él denomina Las leyes de los

neutrales. Aquí afirma que “hay un punto en el que la indiferencia de los neutros no

podrá dejar de cesar: es, por lo menos, lo que respecta a las violaciones de los derechos

de los neutros, cometidas por los beligerantes” (52). En un contexto de interdependencia

tan fuerte como el que existía ya a principios del siglo XX, resulta imposible para los

neutros escaparse de toda responsabilidad y contacto con la guerra, ora en términos

comerciales –ya que Rui afirma que el comercio de armas con una de las partes

necesariamente afecta a la otra–, ora en términos políticos.

Por lo anteriormente expuesto, y ya acercándose al final de su exposición, Rui

elabora el concepto más importante de toda su conferencia: la verdadera noción de

neutralidad, ya que “entre los que destruyen la ley y los que la observan no hay

neutralidad admisible” (54). Este nuevo concepto de neutralidad no quiere decir

impasibilidad, sino imparcialidad y, afirma Rui “no existe imparcialidad entre el

derecho y la injusticia (…) En presencia de una insurrección armada contra el derecho

positivo, la neutralidad no puede ser abstención, no puede ser indiferencia, no puede ser

insensibilidad, no puede ser silencio” (ídem), ya que todo ello implicaría una

neutralidad abdicante, limitada al egoísmo de la comodidad pasajera, que de algún

modo implicaría –según Rui– complicidad con los beligerantes.

Afortunadamente, según el orador, aún hay tiempo para implementar esta nueva

neutralidad, derivada de las Conferencias de la Haya y basada en tres principios básicos:

la imparcialidad de la justicia, la solidaridad del derecho y la comunión en la

manutención de las leyes escritas. Se trata de una nueva neutralidad organizada que se

impone con la “presión de los pueblos”. Con riesgos de incurrir en un tipo de lectura

proléptica –del tipo que Skinner condena por querer hallar antecesores y sucesores de

movimientos e ideas–, esta presión de los pueblos a la que alude Rui Barbosa podría, de

todos modos, ser considerada como una suerte de invocación a un soft power avant la

lettre, ya que es precisamente este tipo de accionar al que recurrirán los organismos

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internacionales creados en la posguerra para evitar determinadas conductas de estados

poderosos.

Y con esta invocación a la nueva neutralidad, Rui Barbosa sienta ahora las bases

para un nuevo orden global de postguerra, establecido en los términos de una sociedad

internacional y en un entendimiento ideal cristiano. Este orden podría tener diferentes

formas:

“para unos, será la unión de las naciones democratizadas, en el seno de una basta

federación, donde las soberanías convivan, renunciando únicamente los

elementos esenciales a la armonía internacional; para otros, es la constitución de

ese tribunal de potencias que el Sr. Roosevelt esbozaba, hace dos años, con base

asentada en el compromiso común de sustentar ejecutivamente sus sentencias;

otros todavía prevén la inauguración de un sistema en el cual los Estados

soberanos se obliguen, por convenciones prácticamente garantizadas, a no

entregar sus litigios de cualquier naturaleza a la decisión de las armas, antes de

haberlos sometido al examen de una junta internacional; otros, en fin, menos

avanzados en la vía de las conjeturas, creen ver la barrera contra las

inundaciones de la violencia militar en la oposición de los neutros a la

exorbitancia de los poderes beligerantes” (58).

Una vez más, resulta imposible no ver en esta cita una cierta previsión respecto

de la Sociedad de las Naciones y el Sistema de las Naciones Unidas, modelos de

sociedad internacional que serán constituidos luego de las dos posguerras. También se

encuentra presente en este fragmento las bases de un cierto idealismo liberal, tal y como

el que el Presidente Wilson habrá de exponer en su famoso discurso sobre los 14

puntos, del 8 de enero de 1918.

Ya concluyendo su discurso, Rui hace entonces una fortísima apología del

derecho, afirmando que será quien “ha de venir a reinar, restaurado y a reconstruir el

mundo (…) será él quien, al rayar la paz anhelada, presidirá los congresos (…),

sepultará, en una condenación inderogable, las herejías del imperialismo y el

militarismo…” (60). Y luego, hace una fuerte apelación a América, a modo de envoi

final. América, desde California hasta la Patagonia, es hoy la sede de la civilización,

frente a la barbarie de la guerra en Europa y, por ese motivo, está llamada no “a

retraerse ante la pendencia trabada, más allá del océano, entre la civilización y la

militarización del mundo (…) sino a tratar de asumir la iniciativa, y de contribuir de

modo influyente para la constitución de un nuevo sistema de vida internacional” (61).

El Nuevo Mundo será el lugar desde donde saldrá el Nuevo Orden, motivo por el cual

los principales países de la región –Estados Unidos, Brasil y la Argentina– tienen una

misión histórica que cumplir. Todos los ojos están vueltos a América.

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Por último, y de forma paradójica –o más bien sarcástica– Rui Barbosa concluye

su envoi con una cita de los Mensajes a la Nación Alemana de Fichte, en la que se

afirma la esperanza en la regeneración futura de la humanidad. Son Fichte y Goethe

quienes se deben contraponer a Maquiavelo, Nietzsche y Clausewitz para construir un

mundo más pacífico, en el que América y Europa se unan. “Y cuando venga el reino del

espíritu, vendrá por el enlace de la libertad europea con la libertad americana, en una

comunión hostil a la guerra y armada contra ella de garantías inquebrantables” (65). Rui

Barbosa inicia su conferencia con una disquisición sobre la libertad y la cierra

invocando el mismo concepto.

Repercusiones de la Conferencia de Rui Barbosa

El discurso proferido por Rui Barbosa causó una impresión muy positiva en la

sociedad argentina, que se vio reflejada en la prensa, dado que todos los principales

diarios de la época –La Nación, La Razón, La Prensa– dedicaron al día siguiente varias

páginas de sus ediciones para comentarlo. El diario La Razón, de hecho publicó que “el

gobierno de la nación hermana ha sabido adivinar cuál era el agasajo que podía ser más

grato a nuestros sentimientos cuando, para designar su Embajador ha buscado en el

libro de oro de sus personalidades consulares del nombre del pensador eximio (…) Y

será un recuerdo inolvidable para nosotros que en las fiestas del Centenario Argentino

hayan resonado (…) los mismos acentos de soberana elocuencia que en otro tiempo se

levantaran (…) contra el anacronismo de la esclavitud…” (La Razón, julio 1916).

Las repercusiones también fueron de índole política, ya que el Presidente de la

Cámara de Diputados, Demaria, afirmó que “Él [Rui] nos dio la honra de escoger la

tribuna de Buenos Aires para enunciar las más elevadas ideas que se hayan manifestado

en estos trágicos tiempos. Ellas circularán por el mundo… Pero la honra que representa

que haya sido Buenos Aires la ciudad en que el verbo de la nueva doctrina inicie su

peregrinación a través de la conciencia humana es la mayor ofrenda con la que el Brasil

se podría haber asociado a nuestro primer centenario de vida libre” (Monteiro Real,

1966: X).

El discurso fue también incorporado en las órdenes del día de la Cámara de

Diputados y el Senado brasileño y llegó incluso a tener fuertes repercusiones en la

Assemblée Nationale. El propio Clemençeau, en ese momento, Presidente de la

Comisión de Relaciones Exteriores, publica un importante artículo en el diario

L´homme enchaîné el día 21 de julio de 1916, en el que –además de agradecer las

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palabras de Rui Barbosa– señala que ha “escrito a menudo que lo propio de esta guerra

por la civilización es que no permite la instalación, en los países neutros, de un espíritu

de verdadera neutralidad. En ese sentido, he dicho que no hay, en este momento, países

verdaderamente neutros, y que las ficciones de la neutralidad terminarán por

desaparecer, si la crisis mundial se agrava por una prolongación de la guerra” (ídem: 1).

Esta es, precisamente, una de las intenciones más profundas que se encuentra in

nuce en el discurso de Rui Barbosa, y que es la que habrá de crear las divergencias más

profundas entre Argentina y Brasil apenas un año y medio después de que Rui hubiese

abandonado Buenos Aires.

La intencionalidad performativa del discurso de Rui y la neutralidad en Argentina

y en Brasil

A pesar de que gran parte del discurso está dedicado a honrar y saludar a la

Argentina en su primer centenario, leyendo las palabras del Diputado Demaria, resulta

evidente que –incluso para el público argentino– la conferencia tenía el fin claro de

instalar el debate acerca de la neutralidad, en la República Argentina, pero sobre todo en

el mundo. El propio Rui Barbosa destaca que esa fue la verdadera intencionalidad de su

discurso, cuando afirma que “cuando hace seis días tuve el honor de dirigirme desde la

Facultad de Derecho de la Nación Argentina con la esperanza de que por la sonoridad

extraordinaria de la atmósfera en esa ocasión, mi voz pudiese llegar desde aquí hasta el

resto del Continente y transpone el Océano” (La Nota, 1916).

Ahora bien, ¿cuál era la intención performativa de ese discurso? Tanto Rui

Barbosa como Clemençeau coinciden en afirmar que la neutralidad, en los términos en

los que los países la ejercen en 1916, es una ficción. Clemençeau va aún más allá,

afirmando que es una cuestión de tiempo para que estos la abandonen y, si bien Rui

Barbosa en ningún momento hace dicha afirmación, es claro que también comparte esa

visión, sobre todo si se tiene en cuenta que ha sido desde el comienzo un ferviente

defensor de la causa aliada, y Presidente de la Liga Brasilera de Neutrales desde su

creación, en marzo de 1915 (Percy, 1925: 33).

El discurso proferido por Rui en la Facultad de Derecho, en ese sentido, implica

una cierta contradicción en los términos, ya que se pronuncia constantemente a favor de

la neutralidad –vista sobre todo desde una perspectiva legalista–, si bien desde un

comienzo su retórica es marcadamente anti-alemana y pro-aliada, a pesar de que ambas

sean partes beligerantes. De hecho, dicho discurso tiene una fuerte componente de

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política interna, ya que se trata del ágora perfecta en la que Rui Barbosa puede hacer

llegar su mensaje a favor de una neutralidad cada vez más activa al gobierno de

Venceslau Brás y, sobre todo, al Canciller Lauro Müller, uno de sus principales rivales

políticos. El discurso tiene también el objetivo de cumplir la misma función en la

Argentina, quien durante la presidencia de Victorino de la Plaza y luego, más

fervientemente aún, con Hipólito Yrigoyen, habrá de mantenerse estrictamente neutral,

sobre todo en términos comerciales e incluso diplomáticos (Weinmann, 1994).

A diferencia de Brasil, la Argentina mantendrá su postura inalterable, a pesar de

los múltiples incidentes que la enfrentarán con el Imperio Alemán, tales como el

hundimiento de varios barcos y el escándalo del affaire Luxburg, en el que el

Departamento de Estado de los Estados Unidos, con el objetivo precisamente de que la

Argentina entre en guerra (Vinhosa, 1990: 121), publica una serie de cables cifrados de

la Embajada Alemana en Buenos Aires, en los que el Encargado de Negocios alemán

insulta al Canciller Honorio Pueyrredón y al propio Presidente Yrigoyen (Sanchíz

Muñoz, 2013: 209).

De hecho, a medida que la guerra va avanzando, y sobre todo después de que los

Estados Unidos entraran en guerra con Alemania, la posición de neutralidad brasilera se

irá transformando, hasta llegar al momento de la ruptura de relaciones con Alemania. El

texto de la nota enviada por el Canciller Nilo Peçanha al gobierno argentino el día 4 de

junio de 1917, con motivo de la revocación de la neutralidad brasileña en la guerra entre

los Estados Unidos y Alemania es particularmente elocuente, ya que habla de una

“amistad tradicional” y una igualdad en el pensamiento político entre Brasil y los

Estados Unidos que hace que “Brasil no pueda continuar indiferente en el conflicto,

cuando los Estados Unidos son arrastrados a una lucha –sin interés alguno, sólo en

nombre del orden jurídico internacional– y Alemania nos extendía a nosotros y los

demás países neutrales los más violentos procedimientos de guerra”. La nota parecería

haber sido directamente escrita por Rui Barbosa, si bien salió del puño del nuevo

Canciller, Nilo Peçanha.

Ahora bien, para que Brasil operase dicha transformación en su política

internacional, era necesario que se produjese un cambio en la conducción de la

diplomacia. Dicho cambio llegó con la renuncia de Lauro Müller, ex Canciller, el día 3

de mayo de 1917. Rui Barbosa que, como se señaló con anterioridad, era un histórico

rival político de Müller, tuvo un importante rol en dicha renuncia (Fabro, 2007: 11), ya

que se encargó de dar fuerza a los rumores que tildaban a Müller de germanófilo,

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especialmente debido a su origen familiar. Así, Rui Barbosa opinaba de Lauro Müller

que “aún cuando no hubiese motivos para establecer el cuño germánico de su

personalidad, ahí estarían sus actos y sus sentimientos (…) La crueldad de su disimulo,

su indiferencia al uso de los medios exigidos por sus fines, su hábito de acariciar y

apuñalar son las cualidades características de esa mentalidad, peculiar al germanismo,

en que se entretejen moralmente en una sola madeja la guerra, la política y el espionaje”

(Vinhosa, 1990: 31).

Asimismo, cuando Nilo Peçanha asumió la Cancillería, una de las primeras

cosas que hizo fue consultar a Rui Barbosa, demostrando que “ya desde el primer día de

su gestión en Itamaraty, estaba dispuesto a dar un rumbo completamente diferente a la

política externa brasilera, en relación a los beligerantes, que aquel seguido por Lauro

Müller” (ídem: 86).

Lo más impredecible, sin embargo, y lo que consideramos que nadie en las

cancillerías argentina y brasileña, ni el propio Rui Barbosa podía prever en 1916, eran

las derivas tan diferentes que habrían de tener las políticas exteriores de sendos países,

llevando incluso al resentimiento de la relación bilateral, que gozaba de tan buena salud

en 1916. Dicha transformación se ve muy claramente en la prensa, ya que en apenas

cuestión de meses, la opinión de Argentina respecto de Brasil se transforma

radicalmente.

Así, en un artículo del diario La Nación del día 14 de abril –es decir, apenas días

después de la ruptura de relaciones entre Brasil y Alemania el día 11–, se dice que

“pueden estar seguros nuestros Hermanos brasileños de que el pueblo argentino, todo

entero, vibra en una misma y profunda emoción de entusiasmo y simpatía en el

momento en que aceptan una lucha que no ha buscado, pero que no han rehuido” y el

diario La Época, al día siguiente (12/4), afirma que “pudo creerse en los comienzos de

la guerra que no existía esa solidaridad de ideas o que, cuando menos, las naciones

americanas no se encontraban en el punto de incidencia que había de unificar”. Sin

embargo, sólo un mes después, en mayo de 1917 –cambio de Canciller mediante–,

cuando la Argentina ya percibe que la distancia con Brasil se hace cada vez más grande,

debido a su acercamiento con los Estados Unidos, el mismo diario La Nación afirma el

21 de mayo que “la política internacional de la República hermana tiende a definirse en

el sentido de un mayor acercamiento a las potencias en guerra con los imperios

centrales” y el diario La Razón va aún más allá diciendo que “ya les resulta chica la

América del Sur a los políticos tropicales” quienes tendrían “celos de la actitud prudente

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y meditada de la Cancillería Argentina, que sin los enfáticos movimientos del vecino,

marcha tranquilamente hacia un ideal de concordia y unidad americanas, mientras que

Itamaraty se dirige a tomar posición entre los grandes del mundo, sin acordarse de que

es preferible ´ser cabeza de ratón que cola de león´”. Las diferencias empezaban a ser

muy claras y, paradójicamente, sólo Argentina seguirá siendo neutral y abogando por la

causa de los neutrales, en sus esfuerzos por reunir una Conferencia Sudamericana.

Conclusiones

Al analizar la conferencia que dió Rui Barbosa en Buenos Aires el 14 de julio de

1916 percibimos una serie de elementos, que habrán de transformar las Relaciones

Internacionales, así como las relaciones bilaterales Argentina-Brasil por los siguientes

años.

El análisis textual de la conferencia es elocuente respecto de las preocupaciones

políticas de Rui Barbosa: anclado de algún modo en discusiones decimonónicas, su

argumentación está trazada sobre el eje del clivaje entre civilización y barbarie, que

azoló a la Argentina durante los primeros años de consolidación del estado-nación, y

que estuvo presente en Brasil, hasta hacía apenas pocos años, con la dictadura que dio

inicio a la República Velha y que le costó el exilio a Rui Barbosa.

Vemos, asimismo, que dicho clivaje se reproduce en el sistema internacional, en

el que la guerra ha trastocado los imperativos morales y la conducta de los estados,

motivo por el cual es preciso rediseñar un ordo orbis, en el que sea el imperio del

Derecho Internacional quien dicte las normas de relación ente los estados. Esta es una

discusión eminentemente contemporánea y en la que, de hecho, Rui Barbosa se adelanta

a su tiempo, ya que cobrará especial relevancia en la posguerra, a partir de la

introducción de la cosmovisión de Wilson en la forma de hacer política global.

Pero, por sobre todas las cosas, la Embajada de Rui Barbosa nos enseña mucho

respecto de la larga y compleja historia que Argentina y Brasil han construido juntos.

Una historia en donde priman los encuentros –como las coincidencias políticas que

reinaban en 1916, luego de la firma del Tratado del ABC y cuando ambos países

adoptaban una posición neutral frente a la Guerra Mundial–, pero en donde también se

producen numerosos desencuentros, tales como las tensiones entre el Barón de Rio

Branco y Estanislao Zeballos o la gradual parálisis en la que se empieza a sumir el

vínculo, conforme Brasil comienza a tomar un rol más activo en la Guerra. En este

vínculo, resulta a su vez, inevitable pensar en el rol gravitacional de los Estados Unidos,

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como factor de unión o de discordia, ya que, en términos estructurales, podría pensarse

que históricamente Brasil ha adoptado una posición de encuentro y bandwagoning –

como se dice en la jerga de las Relaciones Internacionales– respecto de los Estados

Unidos, con miras a lograr la cooperación de este en la proyección de poder brasileño en

la región de América del Sur, mientras que la Argentina ha adoptado tradicionalmente

una posición de balancing, con una distancia más crítica, que le ha valido numerosas

situaciones de enfrentamiento con los Estados Unidos.

Esta dinámica fraterna, regulada por un tercero extrarregional resulta de notable

actualidad y vigencia, ya que– a pesar de que en los últimos años las políticas de

Argentina y de Brasil convergen de un modo cuasi inusual–, dichas tendencias

estructurales están siempre presentes. Asimismo, resulta interesante traer a colación la

naturaleza de la relación bilateral hace exactamente 100 años, en el contexto del

Bicentenario argentino. Esto demuestra que, a pesar de las circunstancias coyunturales,

Argentina y Brasil han mantenido su vínculo privilegiado desde hace más de un siglo y

la admiración y el respecto que ambas clases políticas se profesan desde hace más de un

siglo se mantiene inalterado.

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ARAÚJO CASTRO: PRÁTICAS DISCURSIVAS EM PROL

DO DESENVOLVIMENTO

LUCAS CORTEZ RUFINO MAGALHÃES

Resumo

O presente artigo busca analisar dois famosos discursos proferidos pelo ex-chanceler

João Augusto de Araújo Castro: o “Discurso dos 3Ds” e o “Congelamento do Poder

Mundial”. São priorizadas as considerações do diplomata a respeito das temáticas de

meio ambiente e comércio internacional, campos das relações internacionais que não

estavam consolidados como regimes à época dos discursos. Buscou-se contextualizar os

argumentos de Castro segundo a realidade internacional e doméstica em que vivia, com

o intuito de aproximar-se da verdadeira intencionalidade do emissor. Acredita-se que a

pesquisa aqui realizada pode servir de contribuição para futuros estudos dedicados à

obra de Araújo Castro, sobretudo no que se refere aos temas específicos abordados.

Palavras-chave:

História da Política Externa Brasileira; Araújo Castro; regime ambiental internacional;

comércio internacional.

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Introdução

A análise em história das ideias costuma ser conduzida em conformidade com

duas linhas de pensamento principais. A primeira está voltada para o entendimento do

contexto dos fatores políticos, econômicos, sociais e religiosos, os quais determinariam

o significado do texto em estudo. Por seu turno, a segunda centra-se sobre a autonomia

do texto como o instrumento primordial para seu entendimento32

. A despeito da

tendência de classificar o não-familiar em termos do familiar, deve-se evitar que,

durante a tentativa de entendimento histórico, as expectativas do analista determinem a

compreensão que se tem do discurso do agente estudado.33

Os discursos analisados no presente trabalho partem do pressuposto de que, para

seu entendimento, é necessária a apreensão tanto de seu significado pretendido quanto

do modo pelo qual se pretendia que tal significado fosse compreendido34

. Entende-se

que os discursos trazem em si uma intenção específica, direcionada à solução de um

problema particular35

. Com base nas concepções de Skinner a respeito de como se

devem analisar as ideias, este artigo buscará estudar os contextos histórico-conceituais

que vigiam à época da enunciação de dois discursos de autoria do ex-chanceler João

Augusto de Araújo Castro.

O primeiro discurso abordado neste artigo está entre os mais emblemáticos da

histórica diplomática brasileira: “Desarmamento, Descolonização e Desenvolvimento”.

Enunciado pelo então chanceler Araújo Castro na Assembleia Geral das Nações Unidas,

na ocasião de sua XVIII sessão, em 1963, o “Discurso dos 3D’s” insere-se no contexto

da Política Externa Independente - PEI. Inaugurada durante a presidência de Jânio

Quadros, a PEI distinguia-se por seu caráter universalista e pragmático, de maneira a

buscar os interesses nacionais sem limitações ideológicas. Antes um processo do que

um plano pré-concebido, a PEI é marcada pela conjuntura internacional favorável: a

32

SKINNER, Quentin. Meaning and understanding in the history of ideas, p. 29. In: TULLY, James (org.). Meaning and context: Quentin Skinner and his Critics. Cambridge: Polity Press, 1988, pp. 193-205. 33

Ibidem, P. 31. 34

Ibidem, P. 63. 35

Ibidem, P. 65.

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descolonização, a Crise dos Mísseis e a retórica terceiro-mundista permitiam maior

margem de manobra para a adoção da postura inovadora na política externa brasileira36

.

Nesse período da política externa brasileira, compreendido entre os anos 1961 e 1964, o

desenvolvimento constitui o objetivo final da intencionalidade pragmática e

desideologizada do Itamaraty.

O início da década de 1960 é caracterizado, na história das relações

internacionais, como o período da “coexistência pacífica”. Marcado pela gradual

flexibilização da ordem bipolar, ainda não vigorava, contudo, a atitude consciente das

duas superpotências no sentido de transigir e negociar suas diferenças, quadro esse que

só se concretizaria ao fim da década37

. A reacomodação das forças nos anos 1960 e a

proliferação de novos estados oriundos da descolonização permitia maior margem de

manobra aos países da América Latina, embora o confronto bipolar ainda fosse a

principal variável a influenciar as negociações. A respeito do discurso dos 3D’s, o

presente trabalho concentrará sua atenção sobre a construção conceitual de Araújo

Castro no que se refere ao regime internacional de comércio e sua relação com a

promoção do desenvolvimento.

O segundo discurso a ser analisado é “O Congelamento do Poder Mundial”,

enunciado em exposição a estagiários da Escola Superior de Guerra, em 1971. Araújo

Castro, agora embaixador em Washington, denuncia o que analisava à sua época como a

tendência de manutenção do status quo no que se refere não só ao poder militar, mas

também ao político, econômico, científico e tecnológico. O momento político no

cenário internacional é bastante distinto em relação ao primeiro discurso e caracteriza-se

pela chamada “détente”. Trata-se de época em que as relações internacionais são

marcadas pela celebração do Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Assinado após mais

de 3 anos de negociações, esse tratado representa um marco para a história das relações

internacionais do século XX, pois simboliza a “erosão do monolitismo ideológico dos

dois blocos”38

. Duramente criticado por países desenvolvidos e subdesenvolvidos, o

tratado ficou conhecido por seu propósito de manutenção de status quo, pois impedia

juridicamente as nações que não possuíam armamentos nucleares de desenvolver essa

tecnologia.

36

CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011, pp. 331-334. 37

SARAIVA, José Flávio Sombra (Org.). História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 212. 38

Ibidem, pp. 233-234.

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No que concerne à política externa brasileira, o período em que é denunciado o

congelamento de poder é conhecido por seu caráter de pragmatismo, o que culminaria

no chamado Pragmatismo Ecumênico nos anos de 1974-1979. A partir de 1971, a

síntese que pautava os pronunciamentos brasileiros nos foros multilaterais era pautada

pela “segurança econômica coletiva”, concentrando sua atenção no progresso material,

em vez do quadro de antagonismo e confrontação típico da bipolaridade. Características

como universalismo e flexibilidade voltaram a fundamentar a política externa brasileira,

entendida, uma vez mais, como vetor indispensável para a promoção do

desenvolvimento39

. Com relação ao discurso “O Congelamento do Poder Mundial”,

serão analisadas as concepções de Araújo Castro no que concerne à discussão sobre os

primórdios do que viria a ser chamado de regime ambiental internacional.

A definição de parâmetros no discurso de Araújo Castro não era vazia:

apresentava intencionalidade objetiva. Para se comprovar essa intencionalidade, é

necessário analisar o contexto em que os atos de fala são proferidos. Nos discursos

analisados no presente trabalho, destaca-se a busca pela promoção do desenvolvimento,

entendido como objetivo maior da política externa brasileira. Para tanto, estudam-se as

contribuições do pensamento diplomático de Araújo Castro na conformação dos

primórdios do que hoje costuma ser chamado de regime multilateral de comércio e

regime ambiental internacional.

As contribuições de Araújo Castro devem ser entendidas a partir do pressuposto

de que o momento histórico de sua enunciação era caracterizado por disputa ideológica.

O resultado final dos embates, hoje amplamente conhecido e codificado, não estava

claro à época do diplomata.

1. Comércio e Desenvolvimento: O Discurso dos 3 D’s

Antes de se iniciar a análise do discurso, é necessário destacar que Araújo Castro

entendia desenvolvimento como sinônimo de industrialização. Em mundo no qual a

revolução tecnológica ainda não alcançara o ritmo acelerado de mudanças do início do

século XXI, a manufatura era o maior agregador de valor concebível para o produto de

um país. Industrializar-se era alcançar a modernidade, e, por isso, o esforço

industrializante adquire tamanha centralidade nos objetivos de longo prazo do país.

39

CERVO, Amado. Op. cit., pp. 425-432.

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O Discurso dos 3Ds é símbolo do importante legado deixado por Araújo Castro

para a diplomacia brasileira. Enunciado por ocasião da realização da XVIII sessão da

Assembleia Geral da ONU, nesse pronunciamento o então chanceler conclamava os

delegados perante aquela arena multilateral a considerar Desarmamento,

Desenvolvimento e Descolonização de modo conjunto. Castro reconhecia, desse modo,

o papel central da ONU para o tratamento desses três temas.

Ao tratar do tema do Desenvolvimento, Araújo Castro destaca o caráter de

urgência para a superação da desigualdade entre os países:

O elemento chave para compreensão do problema com que nos

defrontamos - nós, comunidade internacional - não é contudo a

mera existência de grandes desníveis de riqueza entre as nações

desenvolvidas e as subdesenvolvidas: é, isto sim, o fato de que

esse desequilíbrio vem crescendo e, caso não sejam prontamente

corrigidas as tendências hoje prevalecentes, continuarão a

crescer indefinidamente. É dentro desse quadro de dados e

previsões sombrias que devemos procurar compreender os

esforços dos países subdesenvolvidos para atender aos reclamos

de progresso social e justiça econômica de seus povos. 40

Como costuma transparecer na análise dos discursos do chanceler, o âmbito

multilateral é considerado estratégico para a defesa dos ideais brasileiros de política

externa:

Embora a luta pelo desenvolvimento tenha de ser travada em

várias frentes, cabe às Nações Unidas, pela universalidade de

sua vocação, e coerentes com a letra e espírito da Organização

Internacional, desenvolverem um papel de excepcional

relevância para obterem a redenção econômica e social da

grande maioria da população do globo, que hoje em dia vive em

condições infra-humanas. 41

O diplomata entende que a ação no âmbito da ONU para a promoção do

desenvolvimento deve estar pautada por 3 áreas: industrialização, destinação de capital

e comércio internacional.

A respeito da estrutura que regula o comércio internacional, assim discorre

Araújo Castro:

A terceira área de prioridade - certamente, nessa altura, a mais

importante - é a do comércio internacional, que deve

conseqüentemente receber atenção especial ao contexto das

atividades econômico-sociais das Nações Unidas. É um

lamentável fato da vida que o comércio internacional tenha,

40

AMADO, Rodrigo. Araújo Castro. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, pp. 32-33. 41

Ibidem, p. 33.

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apesar de suas imensas potencialidades, contribuído tão pouco

para o desenvolvimento econômico dos países de baixa renda

per capita, sobretudo nos últimos tempos da história humana.

Em certos casos, através de mecanismos de deterioração das

relações de troca, o comércio internacional tem atuado até

mesmo como fator de empobrecimento relativo dos países

subdesenvolvidos e como veículos de agravamento dos

desníveis de rendas entre os países desenvolvidos e os

subdesenvolvidos.42

Para que se compreenda adequadamente o pensamento de Araújo Castro, é

necessário que se entenda o contexto das discussões sobre comércio internacional

vigentes à época de seu discurso. Não se deve transplantar para o ano de 1963 o atual

modelo de comércio internacional, dotado de variados dispositivos voltados à superação

de desigualdades em termos de desenvolvimento. Tampouco se deve conceber que as

ações tomadas ao curso da década de 1960 conduziriam inescapavelmente ao atual

modelo de regime de comércio internacional. A realidade internacional à época da

chancelaria de Araújo Castro era distinta e particular, e o discurso do chanceler

destinava-se a lidar com esses problemas particulares típicos de sua época. Nesse

sentido, é necessário identificar em que se pautavam as normativas e as discussões que

regulavam o comércio internacional no início da década de 1960.

A Conferência Internacional sobre Comércio e Desenvolvimento, comumente

chamada de Conferência de Havana, reuniu-se sob o mandato da resolução de 18 de

fevereiro de 1946, do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas – ECOSOC.

Como o próprio nome do evento permite inferir, era presente a preocupação com a

promoção do desenvolvimento por meio do comércio. A esse respeito, o texto emanado

da conferência previa formalmente a possibilidade de criação de arranjos tarifários

preferenciais para a promoção do desenvolvimento:

Article 15. Preferential Agreements for Economic Development

and Reconstruction

1. The Members recognize that special circumstances, including

the need for economic development or reconstruction, may

justify new preferential agreements between two or more

countries in the interest of the programmes of economic

development or reconstruction of one or more of them.

2. Any Member contemplating the conclusion of such an

agreement shall communicate its intention to the Organization

and provide it with the relevant information to enable it to

examine the proposed agreement. The Organization shall

promptly communicate such information to all Members. 42

Ibidem, p. 35.

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3. The Organization shall examine the proposal and, by a two-

thirds majority of the Members present and voting, may grant,

subject to such conditions as it may impose, an exception to the

provisions of Article 16 to permit the proposed agreement to

become effective. 43

Em termos práticos, o Artigo 15 do Ato Final da Conferência de Havana

permitia a derrogação do princípio de Nação Mais Favorecida para a promoção do

desenvolvimento econômico. O artigo 16, por seu turno, estabelecia o princípio da

Nação Mais Favorecida como regra geral:

Article 16. General Most-favoured-nation Treatment

1. With respect to customs duties and charges of any kind

imposed on or in connection with importation or exportation or

imposed on the international transfer of payments for imports or

exports, and with respect to the method of levying such duties

and charges, and with respect to all rules and formalities in

connection with importation and exportation, and with respect to

all matters within the scope of paragraphs 2 and 4 of Article 18,

any advantage, favour, privilege or immunity granted by any

Member to any product originating in or destined for any other

country shall be accorded immediately and unconditionally to

the like product originating in or destined for all other Member

countries.44

A leitura desses artigos permite constatar que, já em 1948, era difundida a ideia

de que a promoção do comércio em nível mundial, por meio da cláusula da Nação Mais

Favorecida, não deveria desconsiderar as necessidades diferenciadas dos países em

termos de promoção do desenvolvimento. A não aprovação do texto final da

Conferência de Havana pelo Congresso dos EUA, entretanto, põe por terra a

possibilidade de um instrumento normativo do comércio internacional que desse

atenção à promoção do desenvolvimento por meio de preferências tarifárias.

A derrocada das aspirações da Conferência de Havana deu lugar à estrutura

normativo-institucional do Acordo Geral de Tarifas e Comércio, negociado em

Genebra, em 1947 – GATT 1947. O texto do acordo apresenta diferenças significativas

em relação aos dispositivos do Ato Final da Conferência de Havana, sobretudo no que

se refere à promoção do desenvolvimento. Nesse sentido, o texto original do GATT

1947 apresenta postura negligente quanto às disparidades existentes em termos de

estágio de desenvolvimento dos membros. Além da previsão da cláusula de Nação Mais

Favorecida, que não estabelece tratamento preferencial, havia a notória presença da

43

Organização Mundial do Comércio. United Nations Conference on Trade and Development: Final Acts and Related Documents. Havana, 1947-1948. 44

Idem.

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chamada “cláusula do avô”, que permitia a alegação de legislação nacional pré-existente

para eximir-se dos compromissos assumidos. Quanto à cláusula da Nação Mais

Favorecida, não há disparidades relevantes em relação ao texto constante da

Conferência de Havana. Assim prossegue o GATT 1947:

Part I. Article I. 1. With respect to customs duties and charges of

any kind imposed on or in connection with importation or

exportation or imposed on the international transfer of payments

for imports or exports, and with respect to the method of levying

such duties and charges, and with respect to all rules and

formalities in connection with importation and exportation, and

with respect to all matters referred to in paragraphs 2 and 4 of

Article III,* any advantage, favour, privilege or immunity

granted by any contracting party to any product originating in or

destined for any other country shall be accorded immediately

and unconditionally to the like product originating in or destined

for the territories of all other contracting parties.45

O texto original do GATT 1947, entretanto, não previa a possibilidade de

concessão de tratamento preferencial com vistas à promoção do desenvolvimento. Em

verdade, a Parte IV do referido acordo, a qual dispõe sobre medidas que relacionam

comércio e desenvolvimento, só é aprovada em 1965. É sob a vigência desse quadro

jurídico que Araújo Castro lamenta que o comércio internacional “tenha contribuído tão

pouco para o desenvolvimento econômico dos países de baixa renda per capita”.

A chamada “deterioração das relações de troca”, denunciada por Araújo Castro,

constitui a tônica do argumento dos países em desenvolvimento em prol de tratamento

especial e diferenciado. Esse argumento encontra ampla difusão por meio da publicação

de artigo de Raúl Prebisch quando da realização da segunda reunião anual da Comissão

Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe – CEPAL – em 1949,

em Havana. Nesse documento, o economista argentino faz referência expressa ao estudo

“Post War Price Relations in Trade between Under-developed and Industrialized”,

publicado na ONU no mesmo ano e que fornece o fundamento estatístico da teoria da

deterioração dos termos de troca:

A long-term deterioration in terms of trade, such as has been

found to obtain for primary producers over a long period, may

be an effect of differences in the rate of increase in productivity

in the production of primary commodities and manufactured

articles, respectively. If we can assume that the deteriorating

terms of trade for underdeveloped countries reflect a more rapid

increase of productivity in primary commodities than of

45

Organização Mundial do Comércio. General Agreement on Trade and Tariffs. Genebra: 1986.

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manufactured goods, the effect of worsened terms of trade

would, of course, be less serious. It would merely mean that, to

the extent that primary commodities are being exported, the

effects of increased productivity are being passed on to the

buyers of primary articles in the more industrialized countries.46

Diante desse contexto regulatório internacional desfavorável à utilização do

comércio exterior como instrumento para a industrialização e o desenvolvimento,

Araújo Castro deposita sua esperança no ambiente multilateral das Nações Unidas:

A Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e

Desenvolvimento, convocada pela Assembleia Geral, vai

reunir-se precisamente porque a atual estrutura do comércio

internacional não favorece os países subdesenvolvidos e está

baseada num conjunto de princípios e regras operacionais que,

não raro, atendem preferentemente aos interesses e

peculiaridades dos países industrializados. Essa Conferência

significa a presença viva das Nações Unidas, com sua ética

universalista e sua preocupação com os problemas de

desenvolvimento econômico, no campo do comércio

internacional, até então quase inteiramente fora de sua

alçada.47

Compreende-se, dessa forma, que Araújo Castro não negligenciava o quadro

evolutivo que caracterizara as negociações internacionais em termos de comércio

internacional. Ao denunciar o “conjunto de princípios e regras operacionais” que

ordenavam o intercâmbio mercantil entre os países, Castro demonstrava-se ciente

quanto à viabilidade de se alterar esse quadro. A valorização do foro das Nações

Unidas, espaço no qual as discussões sobre comércio estavam “até então quase

inteiramente fora de sua alçada”, representa escolha estratégica. A natureza universalista

da organização facilitaria não apenas a repercussão das denúncias e das proposições do

chanceler, mas também a formação de blocos negociadores entre atores de interesses

semelhantes.

É necessário que se analise, também, o contexto doméstico à época do

pronunciamento do discurso dos 3 Ds. O Brasil enfrentava momento de dificuldade em

seu quadro macroeconômico geral, com aceleração da inflação e estagnação econômica.

Após crescimento acelerado em 1961 (8,6%) e 1962 (6,6%), o PIB brasileiro

praticamente não cresceu em 1963 (0,6%). Os índices de preços, por seu turno,

indicavam aumento de 30,5% em 1960, 47,8% em 1961 e mais de 100% anualizados

46

Organização das Nações Unidas. "Post War Price Relations in Trade between Under-developed and Industrialized Countries", document E/CN.1/Sub.3/W.5, pp. 115-116. 47

AMADO, Rodrigo. Op. cit. p. 35.

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em dezembro de 196248

. Tendo herdado uma economia mais robusta e complexa do

período Juscelino Kubitschek, os governos de Jânio Quadros e João Goulart buscavam

sanear as finanças públicas, de maneira a atrair capitais externos que possibilitassem a

retomada dos investimentos e do crescimento econômico.

O lançamento do Plano Trienal, em dezembro de 1962, apoiava-se na tradição

cepalina de desenvolvimentistmo. A superação dos gargalos da economia brasileira só

seria possível por meio do aprofundamento da industrialização via substituição de

importações. A relação com o setor externo não se resumia à composição da balança

comercial brasileira, sendo de fundamental importância, também, a solução dos

desequilíbrios da conta financeira do balanço de pagamentos. É nesse contexto que, em

janeiro de 1963, o ministro da Fazenda, San Tiago Dantas, é enviado em missão a

Washington para obter US$ 600 milhões em empréstimos, dos quais só obtém US$ 84

milhões.49

As dificuldades na obtenção de capitais externos em montante suficiente para

equilibrar as contas externas, contudo, indicavam a premência de nova estrutura

regulatória do comércio internacional que estimulasse a entrada de divisas.

Por outro lado, a urbanização acelerava-se e, com ela, aprofundavam-se as

demandas trabalhistas por melhores condições remuneratórias. Em abril de 1963, diante

do insucesso da missão Dantas, João Goulart restitui os subsídios ao trigo e ao petróleo,

além de conceder reajuste do salário mínimo de 56%.50

É nesse contexto macroeconômico de deterioração que Araújo Castro é nomeado

chanceler. Certamente, a realidade com que se defronta influencia a elaboração dos

argumentos de seu discurso. Percebe-se que a negociação de melhores condições para a

inserção econômica internacional do Brasil era, desse modo, oportunidade indispensável

para a retomada do desenvolvimento.

Entende-se que a intencionalidade de Araújo Castro, ao enunciar o Discurso dos

3 D’s, era utilizar-se da arena multilateral para pressionar os países desenvolvidos.

Assim posiciona-se o chanceler a respeito de suas expectativas quanto aos resultados da

UNCTAD:

Ao cabo dessa Conferência e como cristalização de um longo

processo de debates políticos e de intercâmbio de ideias

fecundantes, crê o Governo Brasileiro que deveria ser

proclamada uma Declaração para a Consecução e Manutenção

48

GIAMBIAGI, Fabio; VILLELA André (Org.). Economia Brasileira Contemporânea (1945-2004). Rio de Janeiro: Elsevier. pp.60-75 49

Idem. 50

Idem.

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da Segurança Econômica Coletiva. Tal declaração – já

prenunciada em suas grandes linhas na Declaração Conjunta dos

países em desenvolvimento, em Genebra – seria um ato político

de enorme transcendência, certamente dos mais importantes já

realizados sob os auspícios das Nações Unidas, e que poderia

ocupar um lugar de relevo ao lado das duas outras Declarações

de que tanto podemos orgulhar-nos – a Declaração dos Direitos

Humanos e a Declaração de Outorga de Independência aos

Países e Povos Coloniais. Não se trataria de documento que

viesse a dar, pela rigidez ou fluidez de suas fórmulas, soluções

ideais para a segurança econômica coletiva. Tratar-se-ia, ao

contrário, de propor, em bases claras e objetivas, uma soma de

princípios, que, a longo prazo, possam servir de metas a serem

atingidas pelas Nações Unidas nesse campo.51

Depreende-se do discurso que Castro buscava a negociação de novos

instrumentos normativos de comércio internacional, mais favoráveis às nações em

desenvolvimento. Entretanto, reconhece que a elaboração de texto definitivo, com

regras precisas sobre instrumentos preferenciais de comércio, provavelmente não seria

alcançada de imediato. Expressa, desse modo, a importância de se negociar,

primeiramente, uma declaração de cunho político, a qual embasaria posteriores

formulações técnicas de caráter vinculante.

Trata-se, portanto, de ação com objetivos definidos, direcionada a público

específico. Os resultados concretos da mobilização dos países em desenvolvimento

nesse sentido são vistos na sequência dos acontecimentos, a despeito de não mais contar

o Brasil com a presença de Araújo Castro na chancelaria. A esse respeito, assim dispõe

o relatório final da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento,

realizada em Genebra, em 1964:

General Principle Eight. International trade should be conducted

to mutual advantage on the basis of the most-favoured-nation

treatment and should be free from measures detrimental to the

trading interests of other countries.

However, developed countries should grant concessions to all

developing countries and extend to developing countries all

concessions they grant to one another and should not, in

granting these or other concessions, require any concessions in

return from developing countries. New preferential concessions,

both tariff and non-tariff, should be made to developing

countries as a whole and such preferences should not be

extended to developed countries. Developing countries need not

extend to developed countries preferential treatment in operation

amongst them. Special preferences at present enjoyed by certain

51

AMADO, Rodrigo. Op. cit. p. 36.

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developing countries in certain developed countries should be

regarded as transitional and subject to progressive reduction.

They should be eliminated as and when effective international

measures guaranteeing at least equivalent advantages to the

countries concerned come into operation (grifo nosso)52

.

A relevância do texto é endossada por seu conteúdo, pelo foro em que foi

enunciado e pela participação massiva de representantes da comunidade internacional,

com 120 delegados. Destaca-se, ademais, o fato de que a declaração final foi assinada

por países como Estados Unidos, Reino Unido, França, Espanha e Itália. Trata-se de

consolidação, ao menos em nível de discurso, de ideias que já vinham sendo defendidas

desde 1948 e que foram ressaltadas por Araújo Castro um ano antes da realização da

UNCTAD.

A consolidação jurídica dos instrumentos desejados pelos países em

desenvolvimento não tardou a concretizar-se. Nesse sentido, a II reunião da UNCTAD,

realizada em Nova Déli, em 1968, apresenta, em seu relatório final, a seguinte

resolução:

Resolution 21 (II). Preferential or free entry of exports of

manufactures and semi-manufactures of developing countries to

the developed countries.

The United Nations Conference onTrade and Development,

Having examined the problems relating to the application of a

generalized non-reciprocal, non-discriminatory system of

preferences in favour of the developing countries,

(…)

1. Agrees that the objectives of the generalized nonreciprocal,

non-discriminatory system of preferences in favour of the

developing countries, including special measures in favour of

the least advanced among the developing countries, should be :

(a) To increase their export earnings; (b) To promote their

industrialization; (c) To accelerate their rates of economic

growth;

2. Establishes, to this end, a Special Committee on Preferences,

as a subsidiary organ of the Trade and Development Board, to

enable all the countries concerned to participate in the necessary

consultations.53

Consolidava-se, assim, no discurso multilateral, o consenso quanto à

necessidade do estabelecimento de mecanismo de concessão de preferências comerciais

52

Organização das Nações Unidas. Proceedings of the United Nations Conference on Trade and Development: Final Act and Report. Genebra, 1964. 53

Organização das Nações Unidas. Proceedings of the United Nations Conference on Trade and Development: Report and Annexes. New Delhi, 1968.

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aos países em desenvolvimento em bases não recíprocas e não discriminatórias. O

sistema geral de preferências – SGP – é finalmente estabelecido em 1971 por meio de

waiver à cláusula de nação mais favorecida do GATT/1947. Previsto inicialmente para

durar apenas 10 anos, o mecanismo permitia que os países desenvolvidos

estabelecessem regimes tarifários que beneficiassem países em desenvolvimento, sem a

necessidade de que essas preferências tarifárias fossem estendidas a todos os parceiros

comerciais, tal como estipulava a cláusula de nação mais favorecida. O SGP é

consolidado em bases definitivas em 1979, por meio da chamada enabling clause. Essa

claúsula está descrita na decisão L/4903 das partes contratantes do GATT, que altera o

texto original do GATT/1947:

Decision of 28 November 1979 (L/4903)

Following negotiations within the framework of the

Multilateral Trade Negotiations, the CONTRACTING

PARTIES decide as follows:

1. Notwithstanding the provisions of Article I of the

General Agreement, contracting parties may accord differential

and more favourable treatment to developing countries(1),

without according such treatment to other contracting parties.

2. The provisions of paragraph 1 apply to the following(2):

a) Preferential tariff treatment accorded by developed

contracting parties to products originating in developing

countries in accordance with the Generalized System of

Preferences(3),

b) Differential and more favourable treatment with respect

to the provisions of the General Agreement concerning non-

tariff measures governed by the provisions of instruments

multilaterally negotiated under the auspices of the GATT;54

(...)

Trata-se, sem dúvida, de momento histórico distinto daquele em que Araújo

Castro denuncia a ausência de tratamento preferencial para os países em

desenvolvimento. Entende-se, entretanto, que a análise da evolução contextual do

discurso a respeito de comércio e desenvolvimento no cenário multilateral é essencial

para que se compreenda a intencionalidade de Araújo Castro. Não se defende aqui que o

chanceler já concebia, em 1963, os exatos artigos que hoje definem o SGP no regime de

comércio internacional. Por outro lado, não se pode questionar a semelhança de

objetivos entre os enunciados de Araújo Castro e os dispositivos da enabling clause.

A interconexão entre comércio e desenvolvimento é destacada no discurso dos 3

D’s em 1963. A concretização jurídica definitiva de suas pretensões somente se

54

Organização Mundial do Comércio. General Agreement on Trade and Tariffs. Genebra: 1986.

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consolida, todavia, em 1979. Resta claro, desse modo, que o contexto com que se

deparava Araújo Castro em 1963 era de incerteza quanto ao futuro do comércio

internacional, o que é interpretado pelo chanceler como oportunidade para difundir sua

concepção a respeito do interesse nacional.

2. Meio Ambiente, Demografia e Desenvolvimento: O Congelamento do Poder

Mundial

No discurso “O Congelamento do Poder Mundial”, o uso da palavra como

instrumento de denúncia do congelamento de poder não se restringe às temáticas da alta

política, estendendo-se a searas que ainda ocupavam espaço tímido nas discussões

internacionais na década de 1960. As declarações de Araújo Castro a respeito dos

argumentos neomalthusianos que pautavam as discussões demográficas e ambientais

são emblemáticas:

Existem, entretanto, outros fatores que começam a afirmar-se

dentro deste mesmo processo de congelamento do poder

mundial. Referimo-nos especificamente a algumas tendências

que se manifestam no tratamento dos problemas de população e

preservação do meio humano (environment). Afirma-se que a

chamada population bomb poderá vir a ser mais fatal e mais

nefanda do que a própria bomba nuclear e pronuncia-se uma

tendência para tratar o problema em bases uniformemente

universais, com o esquecimento de que o problema é da

competência exclusiva de cada Estado, que no exercício de sua

plena soberania tem de levar em conta fatos e circunstâncias de

caráter eminentemente nacional. 55

Castro critica a concepção de que o crescimento populacional supostamente

exagerado seria o problema fundamental a impedir o crescimento econômico dos países

em desenvolvimento:

Argumenta-se que o crescimento demográfico neutraliza as

vantagens do crescimento do Produto Nacional Bruto, na

avaliação da renda per capita, agora tomada, de maneira um

tanto simplista, como índice único e absoluto de

desenvolvimento econômico. Em uma palavra, ao invés de

insistir-se no aumento do dividendo, ou seja, do Produto

Nacional Bruto, insiste-se agora na imobilização do divisor, isto

é, do contingente populacional. Ainda em outras palavras: tenta-

se converter o grave problema do subdesenvolvimento em um

mero problema de estabilização, com o esquecimento do fato de

55

AMADO, Rodrigo. Op. cit. p. 203.

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que se fôssemos estabilizar muitos países no nível econômico

atual, procederíamos a uma estabilização em nível

extremamente baixo.56

As potenciais implicações destrutivas do discurso ambiental neomalthusiano em

iniciativas concretas de promoção do desenvolvimento são ressaltadas:

Por isso mesmo, causam apreensões as recentes declarações do

senhor MacNamara – contraditadas pelo Brasil no Conselho

Econômico Social – de que o Banco Mundial doravante não

autorizará qualquer projeto de desenvolvimento econômico sem

uma avaliação minuciosa de eventuais repercussões sobre o

environment.57

As declarações de Araújo Castro a respeito da temática ambiental e das teses

demográficas neomalthusianas devem ser compreendidas a partir da identidade histórica

de seu discurso. Nesse sentido, para se compreender qual o impacto pretendido pelo

diplomata em seu ato de fala, deve-se entender em qual contexto político-social-

normativo foi enunciado. A esse respeito, resta claro o caráter inédito com que se

introduzia a agenda ambiental nas discussões internacionais ao fim da década de 1960,

com a organização, pela UNESCO, da Conferência da Biosfera de Paris em 1968. Trata-

se da ocasião em que o termo “biosfera” insere-se no vocabulário das conferências

internacionais58

, sendo seu uso, até então, restrito ao ambiente científico. A

característica mais marcante dessa conferência foi a declaração de que “a utilização e a

conservação de nossos recursos terrestres e aquáticos devem andar lado a lado, em vez

de em sentidos opostos”59

. A organização da Conferência de Paris é, desse modo,

louvada por ter promovido o conceito do que atualmente se entende por

“desenvolvimento sustentável”, tal como consagrado na Conferência das Nações Unidas

sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio-92).

É precisamente a desconstrução dessa visão teleológica que deve ser

empreendida para que se apreenda a intencionalidade da prática discursiva. A leitura

dos pronunciamentos de Araújo Castro segundo os conceitos e normas vigentes na

contemporaneidade poderia denunciar um Brasil retrógrado, pois contrário ao

tratamento da temática ambiental em nível multilateral. Entretanto, trata-se de época em

que o conceito contemporâneo de desenvolvimento sustentável ainda estava longe de se

56

Ibidem. p. 204. 57

Idem. 58

UNESCO, The Biosphere Conference: 25 Years Later. UNESCO, Paris, França: 35 pp. 1993. p.4. 59

Idem

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consolidar. Em verdade, o contexto de fins dos anos 1960 era de embate entre discursos,

de maneira que dispunha de bastante força a retórica dos países do Norte.

A esse respeito, é necessário que se analisem as publicações da época, para que

se compreenda o real propósito de Araújo Castro. É notório o caso do relatório “Limits

to Growth”, publicado em 1972 com o patrocínio de entidades como a Fundação

Volkswagen. A obra estava organizada no âmbito do Clube de Roma, entidade formada

ao fim dos anos 1960, pautada pela convicção de que enormes problemas ecológicos se

mostravam presentes, o que demandava medidas políticas extraordinárias. À época de

seu lançamento, a publicação obteve repercussão alarmante, dando origem a manchetes

como “Scientists Warn of Global Catastrophe60

”. A leitura de trechos originais do

relatório é esclarecedora quanto ao tom de crítica utilizado para relacionar os supostos

impactos ambientais decorrentes do crescimento demográfico:

One of the most commonly accepted myths in our present

society is the promise that a continuation of our present patterns

of growth will lead to human equality. We have demonstrated in

various parts of this book that present patterns of population and

capital growth are actually increasing the gap between the rich

and the poor on a worldwide basis, and that the ultimate result of

a continued attempt to grow according to the present pattern will

be a disastrous collapse.

The greatest possible impediment to more equal distribution of

the world's resources is population growth. It seems to be a

universal observation, regrettable but understandable, that, as

the number of people over whom a fixed resource must be

distributed increases, the equality of distribution decreases.

Equal sharing becomes social suicide if the average amount

available per person is not enough to maintain life.61

[…]

The final, most elusive, and most important information we need

deals with human values. As soon as a society recognizes that it

cannot maximize everything for everyone, it must begin to make

choices. Should there be more people or more wealth, more

wilderness or more automobiles, more food for the poor or more

services for the rich?62

O Relatório “The Limits to Growth” constitui o exemplo mais famoso de como a

retórica neomalthusiana condenava o crescimento demográfico e as políticas

desenvolvimentistas como nocivas ao meio ambiente. Entretanto, essa publicação não

60

LOMBORG, Bjørn; OLIVIER, Rubin.. "Limits to Growth." Foreign Policy, no. 133 (2002): 42-44. 61

MEADOWS, Donella H. et al. Limits to growth: A report for the club of Rome's project on the predicament of mankind. New York: Universal Books, 1972. p. 178. 62

Ibidem, p. 181.

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foi a única do gênero, de maneira que o termo “population bomb”, nominalmente

expresso por Araújo Castro em seu discurso, refere-se à obra homônima, publicada em

1968, a qual condena o rápido crescimento da população humana como causa de uma

perigosa deterioração dos recursos naturais. A obra, que se assemelha mais a um

manifesto do que a um artigo científico, propugna pela pressão sobre o poder público

para que desenvolva políticas de controle da população mundial:

The battle to feed all humanity is over. In the 1970s and 1980s

hundreds of millions of people will starve to death in spite of

any crash programs embarked upon now. At this late date

nothing can prevent a substantial increase in the world death

rate, although many lives could be saved through dramatic

programs to “stretch” the carrying capacity of the earth by

increasing food production and providing for more equitable

distribution of whatever food is available. But these programs

will only provide a stay of execution unless they are

accompanied by determined and successful efforts at population

control. Population control is the conscious regulation of the

numbers of human beings to meet the needs not just of

individual families, but of society as a whole.63

Americans are beginning to realize that the underdeveloped

countries of the world face an inevitable population-food crisis.

Each year food production in these countries falls a bit further

behind burgeoning population growth, and people go to bed a

little bit hungrier. While there are temporary or local reversals of

this trend, it now seems inevitable that it will continue to its

logical conclusion: mass starvation.64

As estratégias desenvolvimentistas dos países do Sul constituíam obstáculo ao

projeto de “congelamento do poder mundial”, pois, pautadas na industrialização por

substituição de importações, significavam perda concreta de mercados às exportações

do Norte. Ademais, a presença de mercado consumidor nacional de grandes dimensões

constituía elemento fundamental para o sucesso da estratégia industrializadora.

A crítica ao suposto descontrole demográfico e seus potenciais impactos sobre o

meio ambiente, consubstanciadas nas teses neomalthusianas, era vista por Araújo Castro

como instrumento a obstruir as tentativas de superação do subdesenvolvimento do país.

Em momento em que o discurso ambiental era dominado pelas formulações do Clube de

Roma, a estratégia soberanista aparecia como a mais viável. Trata-se de contexto em

que o discurso está na base da formulação dos conceitos e normas futuras, de maneira

63

EHRLICH, Paul R. The population bomb. New York: Ballantine Books, 1968. Prólogo. 64

Ibidem, p. 3.

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que não está nada claro que o regime ambiental será pautado pelos princípios da

Conferência Rio-92.

A comparação entre o teor das declarações da Conferência das Nações Unidas

sobre Meio Ambiente Humano e a Conferência das Nações Unidas sobre Meio

Ambiente e Desenvolvimento é elucidativa. Assim prossegue a Declaração da

Conferência de Estocolmo:

5. The natural growth of population continuously presents

problems for the preservation of the environment, and adequate

policies and measures should be adopted, as appropriate, to face

these problems.

[…]

Principle 3. The capacity of the earth to produce vital renewable

resources must be maintained and, wherever practicable,

restored or improved.

Principle 4. Man has a special responsibility to safeguard and

wisely manage the heritage of wildlife and its habitat, which are

now gravely imperiled by a combination of adverse factors.

Nature conservation, including wildlife, must therefore receive

importance in planning for economic development.

Principle 5. The non-renewable resources of the earth must be

employed in such a way as to guard against the danger of their

future exhaustion and to ensure that benefits from such

employment are shared by all mankind.

Principle 16. Demographic policies which are without prejudice

to basic human rights and which are deemed appropriate by

Governments concerned should be applied in those regions

where the rate of population growth or excessive population

concentrations are likely to have adverse effects on the

environment of the human environment and impede

development.65

Por seu turno, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento

apresenta tom conciliatório entre a promoção do desenvolvimento e a preservação do

meio ambiente:

65

Organização das Nações Unidas. Declaration of the United Nations Conference on the Human Environment. Estocolmo, 1972. Disponível em: http://www.unep.org/documents.multilingual/default.asp?documentid=97&articleid=1503 (Acesso em 21 de maio de 2016).

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Principle 3. The right to development must be fulfilled so as to

equitably meet developmental and environmental needs of

present and future generations.

Principle 4. In order to achieve sustainable development,

environmental protection shall constitute an integral part of the

development process and cannot be considered in isolation from

it.

Principle 6. The special situation and needs of developing

countries, particularly the least developed and those most

environmentally vulnerable, shall be given special priority.

International actions in the field of environment and

development should also address the interests and needs of all

countries.66

A retórica neomalthusiana que predominou nos debates internacionais de fins da

década de 1960 ao começo dos anos 1970, é adaptada, de maneira a inserir-se no

conceito de desenvolvimento sustentável:

Principle 8. To achieve sustainable development and a higher

quality of life for all people, States should reduce and eliminate

unsustainable patterns of production and consumption and

promote appropriate demographic policies.

Araújo Castro, ao condenar a visão simplista que pautava as discussões de sua

época, destaca a compatibilidade entre políticas de promoção do desenvolvimento e a

valorização do “environment”. É, portanto, à luz desse embate conceitual que se deve

compreender o posicionamento do diplomata:

É claro que os países em desenvolvimento não quererão incorrer

nos mesmos erros em que incorreram os países altamente

industrializados, mas é evidente que não poderíamos aceitar a

ressurreição, em pleno século XX, da teoria do “selvagem feliz”,

de Rousseau, que deu sabor e colorido a todo o romantismo

francês. [...] Ora, esses países em desenvolvimento partem da

premissa de que qualquer programa adequado para a

preservação do meio humano deve ter em linha de conta os

fatores básicos do desenvolvimento, já que o

66

Organização das Nações Unidas. Rio Declaration on Environment and Development. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: http://www.unep.org/documents.multilingual/default.asp?documentid=78&articleid=1163 (Acesso em 21 de maio de 2016).

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subdesenvolvimento representa, por si só, uma das piores

formas de poluição do environment.67

No que se refere ao quadro macroeconômico vigente à época do discurso do

Congelamento do Poder Mundial, percebe-se que se trata de momento bastante distinto

do relacionado ao discurso dos 3 D’s. Após o período de ajustes e reformas do PAEG,

durante o governo de Castello Branco, a situação fiscal estava em quadro favorável.

Além disso, as pressões inflacionárias foram efetivamente combatidas com reformas

monetária, fiscal e salarial restritivas68

. Em verdade, o período em que Araújo Castro

profere o discurso do Congelamento do Poder é caracterizado pela vigência do chamado

“Milagre Econômico” (1968-1973), em que o PIB cresceu à média de 11% ao ano,

acompanhado de queda, ainda que moderada, da inflação, e de melhora no saldo da

Balança de Pagamentos69

.

O quadro macroeconômico, ainda que favorável, não indicava a solução

definitiva dos objetivos de desenvolvimento nacional. O crescimento econômico

observado no período do Milagre era acompanhado de aprofundamento da concentração

de renda e de acentuada urbanização. O sucesso do modelo de Industrialização por

Substituição de Importações não implicava o alcance do estágio desejado em termos de

desenvolvimento. Não se podia prescindir, desse modo, dos instrumentos que

permitissem a continuação do processo industrializante, entendido como interesse

nacional. A atuação de Araújo Castro reflete essa compreensão e permite vislumbrar sua

percepção de longo prazo quanto às necessidades da economia brasileira.

Em vista da documentação acima analisada, não se pode inferir que as críticas

proferidas por Araújo Castro ao tratamento da questão ambiental na seara internacional

constituem postura contrária à promoção do desenvolvimento sustentável. Pelo

contrário, poder-se-ia argumentar que é justamente a não aceitação do debate nos

termos estabelecidos que permite a evolução conceitual e discursiva da temática. Se o

atual conjunto de valores pelo qual se rege a comunidade internacional está fundado

sobre a compatibilidade entre crescimento demográfico, desenvolvimento e a

conservação do meio ambiente, isso não estava de modo algum claro em 1968. Não se

objetiva, no presente trabalho, defender que Araújo Castro apoiava, já na década de

67

AMADO, Rodrigo. Op. cit. p. 204. 68

GIAMBIAGI, op. cit. pp. 81-90. 69

Idem.

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1960, o modelo de desenvolvimento sustentável ou economia verde que vigem no

século XXI, mas contextualizar seu posicionamento sobre o assunto.

Considerações Finais

A perspectiva analítica de Araújo Castro ao longo dos discursos é caracterizada

pela presença de “visão global do movimento e destino das relações internacionais”70

. O

diplomata, ao rejeitar concepção meramente reativa da política externa, entende que é

possível conceber soluções criativas para a diplomacia nacional. Os temas de soberania

e desenvolvimento são uma constante ao longo de sua trajetória na chancelaria.

Entretanto, esses conceitos são avaliados e reavaliados conforme a conjuntura do

momento se apresenta.

Este artigo buscou tratar de temas que, embora não sejam o foco da bibliografia

tradicional sobre Araújo Castro, são de inegável relevância para o modo como o Brasil

se inseriu internacionalmente em período crucial para a formação de regimes

internacionais que hoje pautam a política externa. O discurso do diplomata por ocasião

da XVIII sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas contribuiu para que a

chancelaria nacional denunciasse a inércia da comunidade internacional em promover

instrumentos normativos de comércio internacional que propiciassem tratamento

especial e diferenciado aos países em desenvolvimento. Por outro lado, o excessivo

ativismo de organizações não-governamentais, corporações e acadêmicos na

condenação dos padrões demográficos e desenvolvimentistas do chamado terceiro

mundo também foi atacado por Castro, que sustentava postura soberanista e o não

envolvimento de outras nações.

A leitura desatenta do discurso de Araújo Castro sobre comércio e

desenvolvimento proferido em 1963 poderia sugerir que o diplomata era um

incondicional defensor da arena multilateral como instrumento para a promoção do

desenvolvimento. Se lido a partir da perspectiva do engajamento brasileiro nos diversos

regimes internacionais a partir do fim da década de 1980 – meio ambiente, direitos

humanos e comércio –, o discurso de Araújo Castro significaria uma antecipação do

novo modelo de inserção internacional da política externa nacional com a

70

SARDENBERG, Ronaldo Mota. João Augusto de Araújo Castro: Diplomata. In: PIMENTEL, José Vicente de Sá (Org.). Pensamento Diplomático Brasileiro. Brasília: FUNAG, 2013. p. 1094-1095.

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redemocratização. A intransigência do então embaixador em Washington quanto à

tentativa de consolidação de conceitos neomalthusianos e preservacionistas seria, desse

modo, apenas um irrelevante desvio no padrão histórico da conduta do diplomata. Tal

interpretação incorreria na chamada mitologia da prolepse de Skinner, segundo a qual a

ação tem que aguardar o futuro para adquirir seu significado71

.

A análise dos discursos insere-se no contexto da história das ideias, constituindo

perspectiva analítica que demanda profundidade e responsabilidade no resgate histórico

dos conceitos. Trata-se, portanto, de atividade complexa, que demanda cuidado do

pesquisador para que não incorra em alguma das mitologias descritas por Skinner.

Araújo Castro discursa para interlocutores de seu tempo, embora o faça considerando

perspectivas de longo prazo sobre o que considera os caminhos mais promissores para a

política externa brasileira. O papel do multilateralismo e o engajamento em regimes

internacionais são instrumentos cujo valor varia ao longo do tempo e não podem,

portanto, ser considerados como objetivos em si para Araújo Castro. A apropriada

consideração dos contextos doméstico e internacional é, dessa forma, essencial para a

compreensão da intencionalidade de seus discursos.

71

SKINNER, op. cit., p. 45.

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ÍTALO ZAPPA - 90 ANOS

Alexandre de Paula Oliveira

RESUMO

Ítalo Zappa (1926-1997) é um dos grandes nomes que passaram pelo Itamaraty no

século XX. Ao longo de quase cinco décadas de carreira, demonstrou ter uma

abordagem pragmática e realista da ordem mundial. Pensava o Brasil como um país

destinado a ser grande e enfatizava a função eminentemente política do Itamaraty e dos

diplomatas. Confiando em sua intuição e ressaltando a importância da imprensa para a

gestão doméstica da política externa, Zappa teve papel de destaque na condução da

ousada política africana concebida por Geisel e por Azeredo da Silveira e na

aproximação com a República Popular da China e com Cuba após o reatamento das

relações diplomáticas. Acreditava que sua principal função, como diplomata, era

construir relações e desbravar novos caminhos, sempre na defesa do interesse nacional.

PALAVRAS-CHAVE

Ítalo Zappa; Política Africana na década 1970; Reatamento com a China; Reatamento com Cuba; Papel da Imprensa na Política Externa.

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”Caminante, son tus huellas

el camino, y nada más;

caminante, no hay camino:

se hace camino al andar.

Al andar se hace el camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

Caminante, no hay camino,

sino estelas en la mar.”72

Introdução

Falar do Embaixador Ítalo Zappa e de seu pensamento diplomático não é uma

tarefa fácil. Zappa afirmava categoricamente seu desejo de não deixar uma obra escrita,

dizia que dificilmente alguém se interessaria pelo que ele viesse a escrever. Excesso de

modéstia ou reflexo de seu caráter mais pragmático e menos teórico, o fato é que, para

analisar seu pensamento diplomático, foi preciso recorrer a outras fontes: entrevistas

que concedeu, discursos que proferiu, participações que teve em eventos oficiais,

notícias da época e, principalmente, depoimentos de quem conviveu com Zappa, tanto

no nível pessoal quanto no profissional. Por questões técnicas no Arquivo Histórico do

Itamaraty, os telegramas referentes ao período em análise estão temporariamente

indisponíveis.

Assim, faz-se necessário agradecer os gentis depoimentos e contribuições de

Regina Zappa, filha de Ítalo Zappa, do Embaixador Antônio Carlos do Nascimento

Pedro, que trabalhou com Zappa quando era Segundo Secretário na embaixada em

Pequim e Primeiro Secretário em Havana, Embaixador João Inácio Oswald Padilha,

então Segundo Secretário em Pequim, Embaixador Paulo Antônio Pereira Pinto, então

Terceiro Secretário na recém-aberta embaixada em Maputo, e do Ministro Arthur

Henrique Villanova Nogueira, que era Segundo Secretário na embaixada em Havana.

Este ensaio é uma sistematização dos principais temas comuns que foram trazidos à

tona durante essas conversas combinados com as outras fontes mencionadas. Buscaram-

se respostas para três questionamentos de caráter abrangente: qual era a visão de Zappa

sobre a política externa brasileira e o papel do Itamaraty? Quais eram os desafios de

72

MACHADO, Antonio. Caminante no hay camino. In: Campos de Castilla - Proverbios y cantares, 1917.

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implementação dessa visão e as resistências internas e externas? Como era sua forma de

trabalho?

Notas biográficas

Ítalo Zappa nasceu na pequena cidade de Paola, na Itália, no dia 30 de março de

1926 e emigrou para o Brasil com seus pais. O filho de Santo Zappa e Julieta Fuoco

Zappa tornou-se oficialmente brasileiro apenas após completar 18 anos, conforme

dispunha a Constituição de 193773

. A família fixou-se em Barra do Piraí, pequena

cidade74

no sul do Estado do Rio de Janeiro cortada pelos rios Piraí e Paraíba do Sul. A

cidade, também terra natal de seu futuro amigo e colega de profissão Ovídio de Andrade

Melo75

, com o qual Zappa protagonizaria, décadas mais tarde, alguns dos episódios

mais importantes para a política externa em relação à África, permaneceu como

memória viva ao longo da carreira de Ítalo Zappa, que frequentemente citava sua cidade

“natal” em seu vasto anedotário.

Em 1950, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito da

então Universidade do Brasil e ingressou diretamente no Instituto Rio Branco, onde se

formou em 1952, aos 26 anos. Sua primeira remoção aconteceu em 1955, para Genebra,

onde ocupou os cargos de vice-cônsul e consul-adjunto até 1957. Na Suíça, Ítalo Zappa

foi promovido a Cônsul de Segunda Classe e participou da XVIII e da XIX

Conferências Internacionais de Instrução Pública, da IX Reunião de Trabalho das Partes

Contratantes do GATT para Problemas de Comércio de Produtos de Base e da XXXIX

Sessão da Conferência Internacional do Trabalho.

Em 1957, foi removido para a missão do Brasil junto à Organização dos Estados

Americanos (OEA) em Washington, onde foi promovido Segundo Secretário e onde

permaneceu até 1959. Nos Estados Unidos, participou da Reunião do Comitê dos

“Vinte e Um”, incumbido de dar execução à Operação Pan-americana (OPA) proposta

por Juscelino Kubitschek. A delegação brasileira era chefiada por Augusto Frederico

73

Art 115 - São brasileiros: b) os filhos de brasileiro ou brasileira, nascidos em país estrangeiro, estando os pais a serviço do Brasil e, fora deste caso, se, atingida a maioridade, optarem pela nacionalidade brasileira. 74

Segundo o Recenseamento Geral do Brasil de 1940, Barra do Piraí tinha 14.846 habitantes naquela época. 75

Regina Zappa conta que Zappa e Ovídio eram amigos de infância. No entanto, enquanto Ovídio pertencia a uma família de classe média mais abastada, Zappa morava “do outro lado da linha do trem”, onde ficavam as casas mais simples. Entre as frequentes brincadeiras e discussões, após Ovídio reclamar que Barra do Piraí teria crescido sem organização e ficado muito confusa, Zappa retrucava que, na verdade, Barra do Piraí havia ficado mais democrática, pois as pessoas que moravam na periferia passaram a frequentar o centro, participar da vida da cidade.

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Schmidt. A OPA foi uma boa ideia, mas faltaram a ela projetos específicos para que

pudesse passar a ação76

, e Zappa foi testemunha dessa dificuldade de avançar com o

projeto.

Na primeira metade da década de 1960, período da Política Externa

Independente, Zappa fez passagens curtas por diversos postos na América do Sul e pela

Secretaria de Estado. De Washington, o Segundo Secretário foi removido para Buenos

Aires, onde ficou entre 1960 e 1961, ano em que foi promovido a Primeiro Secretário.

Em 1962, voltou pela primeira vez de forma permanente para a Secretaria de Estado e

assumiu o cargo de Chefe da Divisão de Conferências, Organismos e Assuntos Gerais.

No ano seguinte, foi removido para Montevidéu e, em 1964, para Lima, onde participou

da II Reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social (CIES) da OEA.

Em 1966, já na vigência da ditadura militar e no meio do período que ficou

conhecido como “passo fora da cadência”, pelos retrocessos em relação à ideologia da

Política Externa Independente, Ítalo Zappa retorna para a Secretaria de Estado por um

período mais longo. Foi chefe da Divisão de Orçamento entre 1966 e 1967, chefe da

Divisão da OEA entre 1967 e 1968, ano em que foi promovido a Ministro de Segunda

Classe, e chefe do Gabinete de Magalhães Pinto em 1969. O político mineiro, antigo

líder da UDN e subscritor do Ato Institucional n. 5, era uma figura muito admirada por

Zappa e uma das mais frequentemente citadas por ele. Ítalo Zappa gostava de se

espelhar no chanceler de Costa e Silva, pela astúcia e pelo domínio do clássico estilo

mineiro de fazer política.

Entre 1970 e 1974, retorna à missão do Brasil em Washington, como Ministro-

Conselheiro (1970 a 1973) e Encarregado de Negócios (1970 e 1974). Em 1972,

participa, como delegado-suplente, da XXVII Assembleia Geral da ONU. A biografia

de Zappa até esse momento demonstra que pode ser reducionista a caracterização de

“Embaixador Vermelho”77

para descrevê-lo. Genebra, Washington (duas vezes),

Buenos Aires, Montevidéu, Lima e uma chefia de Gabinete de um dos antigos líderes da

UDN precederam Maputo, Pequim, Havana e Hanói.

76

CERVO, Amado e BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil, Brasília: Editora UnB, 2002. P. 292-293. 77

Questionado, em entrevista à Revista Veja, de 03 de março de 1993, se era antiamericano, tendo em vista o apelido de “embaixador vermelho”, respondeu: “Não sou contra nem a favor dos Estados Unidos, sou a favor do Brasil. Os americanos cuidam de seus interesses, nós é que não cuidamos. Todo mundo reclama do protecionismo americano, mas é claro que eles não praticam o livre mercado - e querem que nós pratiquemos. Os Estados Unidos têm de pensar primeiro no fabricante de calçados em Chicago. Depois, se for preciso, eles dão uma oportunidade ao fabricante de calçados de São Leopoldo”.

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O ano de 1974, no entanto, marca o início da trajetória que levou o nome de

Ítalo Zappa para a história da política externa brasileira. Nesse ano, tornou-se chefe do

Departamento de África, Ásia e Oceania, cargo que ocupou até 1977. Azeredo da

Silveira o promove a Ministro de Primeira Classe em 1975, quando Zappa tinha 49

anos. A divulgação de uma viagem secreta a Angola, para conversar com Agostinho

Neto, líder do MPLA, e a Moçambique, para conversar com Samora Machel, líder da

FRELIMO, nos preparativos para o reconhecimento da independência das colônias

portuguesas, torna Zappa conhecido nacionalmente. Foi durante seu período à frente do

Departamento de África, Ásia e Oceania que se deu o reconhecimento de Guiné Bissau,

Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique.

Tem início em 1977 o período de treze anos que lhe rendeu o apelido de

“Embaixador Vermelho”: Maputo (1977-1981), onde foi o primeiro embaixador do

Brasil, Pequim (1982-1986) e Havana (1986-1990), onde também foi o primeiro chefe

da missão diplomática do Brasil em Cuba. Em dezembro de 1990, volta de Havana e

passa ao Quadro Especial. Sua última missão é reabrir a Embaixada do Brasil em

Hanói, em 1995. No entanto, em 1996, pede afastamento por problemas de saúde.

Zappa chegou a fumar 6 maços de cigarro por dia e respondia às críticas invocando

nomes de fumantes famosos, como Deng Xiaoping.

Ítalo Zappa faleceu no dia 04 de novembro de 1997, no Rio de Janeiro, vítima de

câncer, e foi enterrado em sua Barra do Piraí.

A Ordem Mundial segundo Ítalo Zappa

Um discurso do recém-promovido embaixador Ítalo Zappa, então Chefe do

Departamento de África, Ásia e Oceania, no Painel de Assuntos Internacionais da

Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, em 1975, revela alguns

aspectos basilares de seu pensamento diplomático.

Zappa não poupa críticas à Organização das Nações Unidas (ONU). Para o

Embaixador, consiste em

“uma organização que reflete em sua estrutura os desígnios ditados por

esquemas abstratos de poder; uma entidade criada para consolidar privilégios

ou responsabilidades, como quer os chamemos; preparada para impor

disciplina, dividir os frutos da vitória na Segunda Guerra”78

.

78

ZAPPA, Ítalo. Nova ordem mundial: aspectos políticos. In: Revista Brasileira de Política Internacional, n. 69/72, 1975, p. 83.

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No entanto, Zappa revela uma posição peculiar a respeito da função da ONU.

Ele não acreditava que o papel fundamental da organização fosse resolver conflitos e

encaminhar soluções. Para esse objetivo, seria melhor criar um “Tribunal de

Arbitragens”. Ele ressalta a importância da ONU como

“elemento que contribui para evitar isolamentos e radicalizações. Se a isto

acrescentarmos que a principal função do foro é assegurar a convergência até

os extremos em que ela for possível, ou seja, um tipo de convergência que

muitas vezes subsiste mesmo quando as relações bilaterais entram em

colapso, aí então encontraremos o seu mais alto significado, pois o não

isolamento e a persistência do convívio diplomático são inegáveis fatores de

todas as evoluções benignas no campo dos conflitos internacionais”79

(não

grifado no original).

Assim, o ceticismo e as críticas em relação à falha da ONU em resolver conflitos

eram injustificados, não “corresponde a uma genuína decepção”, pois não é essa a

função da organização.

Zappa já identificava, em 1975, portanto em um contexto de détente, Guerra do

Vietnã e primeira crise do petróleo, um ensaio de multipolaridade, e afirmava que os

centros do poder mundial, nos quais ele inclui Estados Unidos, União Soviética, China,

Europa Ocidental e Japão, “já não podem, contudo, pretender o controle do universo”80

.

Além disso, revelava concepção sofisticada e moderna a respeito das características do

poder:

“O mundo periférico em relação aos Centros do Poder pode não revestir uma

expressão de poder comparável à daqueles Centros. Mas a questão é saber se

o poderio militar, os arsenais atômicos, a avançada capacidade tecnológica e

científica, os recursos econômicos esgotam os componentes do Poder. A

questão é saber se outros elementos, notadamente os recursos naturais,

inclusive humanos, e até fatores psicológicos, não representam formas

latentes do poder prontas a emergir e a se converter em Poder configurado”.

Zappa não elabora o que quer dizer com “fatores psicológicos”, mas é possível

conjecturar que seja uma referência, ainda que não intencional, ao que atualmente se

denomina “soft power”, termo que seria cunhado apenas na década de 1990, por Joseph

Nye. Segundo Ítalo Zappa, as nações da periferia passaram a demonstrar que o poder

está muito mais diluído e menos concentrado do que se imaginava, assumia formas

múltiplas e não estaria restrito ao campo econômico, militar, científico ou tecnológico.

Em seu discurso, Zappa transita entre essa visão mais liberal das relações

internacionais e uma abordagem mais realista. Mais de uma vez ele ressalta a

79

Idem, p.84. 80

Ibidem, p. 85.

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importância da nação como “o elemento, a base, a matéria-prima” da ordem mundial,

que “tem seus pilares inelutáveis, que são as nações”81

. O processo de descolonização

indicaria que a ordem mundial não se pode formar senão com base no elemento nação:

“Se a nação, identificada no Estado soberano, é a base necessária e

insubstituível da ordem mundial, é preciso preservá-la no seu atributo

essencial da independência verdadeira. Falsificá-la ou degradá-la, por

qualquer forma, significará fazer ruir os fundamentos desta ordem mundial,

que se pretende construir. (...) A igualdade jurídica dos Estados, consagrada

na Carta das Nações Unidas, não pode ser um simples conceito sem valor,

mas um princípio respeitado que corresponda a uma regra indispensável da

convivência internacional”82

.

Zappa não era um teórico das relações internacionais. Seu viés era pragmático,

executivo. Ao final de sua apresentação na Comissão de Relações Exteriores da

Câmara, ele explica sua opinião em relação às teorias das relações internacionais. Em

sua opinião, essas teorias que tentam explicar as relações formais entre os Estados

surgem a todo momento, e a tendência é que se multipliquem ou se repitam sob nomes

diferentes, em virtude da “ansiedade” nessa área – visão profética, tendo em vista a

evolução recente da Teoria das Relações Internacionais e seus múltiplos debates. No

entanto, essas teorias e o próprio objeto que elas pretendem analisar não existiriam

meramente para servir aos interesses dos teóricos. Zappa conclui revelando um aspecto

que surgiria em outros momentos de sua trajetória – seu humanismo:

“É o homem comum que se interroga sobre a grande questão do seu destino,

é ele, a sua sorte, os seus receios e esperanças, que constituem o objeto final e

a razão de ser de todo o esforço especulativo”83

.

O Brasil e o Itamaraty segundo Ítalo Zappa

Ítalo Zappa pensava o Brasil de maneira grande. Para ele, o Brasil não era um

país de Terceiro Mundo, nem de Segundo ou Primeiro: o Brasil era o Brasil – fórmulas

prontas eram insuficientes para caracterizar e analisar o país. Segundo ele, os países

podem ser parecidos, mas não se confundem, pois cada um tem uma personalidade que

o torna único. O que alimentava sua forma de fazer política externa era a ideia de

projeção internacional do país. Buscava contribuir para a construção de um Brasil

81

Ibidem, p. 88. 82

Ibidem, p. 87. 83

Ibidem, p. 88.

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soberano e independente, ligado à sua própria força e que pudesse caminhar sozinho,

falar de igual para igual com todos os outros países do mundo.

Em seu discurso de Paraninfo da Turma de 1990 do Instituto Rio Branco, Zappa

afirmou:

“A exortação que vos faço é simples: não vos deixeis intimidar. (...) O Brasil

está igualmente condenado a possuir uma política externa própria, que não

será do primeiro mundo como não foi do terceiro mundo, e que não pertence

a ninguém porque é patrimônio de todos”.

Tinha concepção semelhante à de Joaquim Nabuco sobre a necessidade de

desenvolvimento nacional em bases duradouras e sustentáveis, sem voluntarismos

diplomáticos ou de outro tipo. Nabuco escreveu em seu diário, sobre a tentativa

malograda de Rui Barbosa em Haia, que “Não se fica grande por dar pulos. Não

podemos parecer grandes, senão o sendo. O Japão não precisou pedir que o

reconhecessem grande potência, desde que mostrou sê-lo84

”. Zappa, em entrevista à

Revista Veja, afirmou:

“É claro que todos nós gostaríamos de ser do Primeiro Mundo, de ser

prósperos, de elevar infinitamente o nível de vida da população do país. Mas

não se faz isso como ato de vontade, não é uma conquista que ocorre de fora

para dentro.85

Seu estilo simples e direto, seu comportamento modesto e humilde no

cotidiano86

, despreocupado com luxos, contrastava com o profissional exigente, que

frequentemente trabalhava aos fins de semana e cobrava dedicação em nível pessoal de

sua equipe, um profissional com pensamento sofisticado e profundo senso de missão,

embora fosse um homem de poucas ilusões. Adjetivos como “concreto”, “prático”,

“realista” são frequentemente utilizados para se referir a Zappa, sobre o qual também

comumente se ressalta o espírito aventureiro87

, a coragem pessoal88

e a capacidade de

convencimento.

84

RICÚPERO, Rubens. A Política Externa da Primeira República (1889-1930). In: Pensamento Diplomático Brasileiro, Vol. II. Brasília: FUNAG, 2013. P. 354. 85

ZAPPA, Ítalo. Entrevista. In: Revista Veja, Ano 26, n. 9, edição 1.277, de 03 de março de 1993. 86

Iniciou seu discurso de Paraninfo da Turma de 1990 afirmando que: “se preferistes, com um traço de caráter inequívoco e extrema generosidade, escolher para vosso paraninfo quem já se encontra no recesso e não tem ou nunca teve outros títulos senão o de haver-se dedicado ao trabalho profissional é porque vossa opção não buscou compor o brilho da cerimônia (...). Quisestes, ao contrário, premiar um velho servidor e abrir ao colega veterano a oportunidade de ser ouvido no reconto de sua experiência (...).” 87

Exemplo desse espírito é a viagem sigilosa que fez à África para se encontrar com os líderes da luta contra Portugal, como Samora Machel. Zappa viajou para o meio da selva, só com o piloto do avião, na década de 1970, antes das independências.

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Gostava de dizer que estava acima das ideologias e que, acima de tudo, era

brasileiro. Regina Zappa diz que seu pai “não era comunista, era progressista”. Para o

embaixador Antônio Carlos do Nascimento Pedro, Ítalo Zappa “respirava diplomacia” e

“era um gigante na defesa do Brasil”, razão pela qual considera Zappa um dos cinco

maiores nomes da política externa brasileira.

Seu Itamaraty ideal não era aquele tradicional e taxado de elitista ou com

referência a “punhos de renda” – conta-se que Zappa não gostava de se referir ao

Itamaraty como “a Casa” (embora a expressão tenha aparecido algumas vezes em seu

discurso de paraninfo em 1990). Inconformista, afirmava que fazer política externa ia

além de frequentar jantares e recepções89

. Por não ser um membro da elite e ser um

imigrante italiano, Zappa tinha menos, ou nenhum, compromisso com a tradição

lusófona da alta burocracia estatal. Adorava dizer que “era pobre” – “não ser elite” era

quase uma bandeira de atuação, um espírito que pautou sua atuação no Itamaraty. Esse

estilo, adicionado à tentativa de intensificar relações com outros polos de poder que não

os tradicionais, encontrou resistências internas, sobre as quais ele mesmo falou como

Paraninfo da Turma de 1990:

“Recordo que anos a fio vi se renovarem, nas manifestações oficiais de

diferentes ocasiões e no discurso anual que levamos ao foro da Assembleia

Geral das Nações Unidas, conceitos irrefragáveis que definem princípios

cardeais de nossa política externa. Vi, porém, que transmudá-los em ação

diplomática equivale a suscitar a dissensão e, em consequência, não poucas

vezes, verdadeiras negociações no âmbito interno. E não será um

despropósito afirmar que essas negociações são quase sempre mais difíceis e

ásperas do que as que devemos enfrentar nas relações com o interlocutor

estrangeiro. Quer dizer, diplomacia lá fora é fácil; difícil é praticá-la aqui

dentro”.

Política Africana

A Política Africana, com a qual Ítalo Zappa esteve diretamente envolvido

enquanto era Chefe do Departamento de África, Ásia e Oceania (1974-1977) e,

posteriormente, enquanto era Embaixador do Brasil em Maputo (1977-1981), é um dos 88

Nesse mesmo discurso de paraninfo, afirmava que “cometer erros e deles recolher lições é infinitamente mais valioso que acomodar-se ao ritual da falsa disciplina onde frequentemente se esconde a tendência a não assumir responsabilidade, mas simplesmente imputar a outrem o motivo da omissão”. 89

Zappa selecionava muito as atividades sociais que frequentava, não costumava ir a festas e recepções. Em seu obituário, magistralmente intitulado “Arquiteto e Pedreiro”, e publicado na Revista Veja, Silvio Ferraz escreve que Zappa teria um dia explicado a um amigo: “A primeira vez que vesti um smoking, outro convidado colocou a mão no meu ombro e pediu: um uísque só com gelo, por favor. Eu tenho cara de garçom".

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capítulos mais detalhadamente estudados da história recente da política externa

Brasileira. Não cabe ao escopo deste ensaio descrever novamente os detalhes desse

processo tão marcante para a diplomacia nacional. Cabe analisar, no entanto, o contexto

com o qual Zappa dialogava, sua atuação e principais condicionantes.

A Política Africana insere-se no período da política externa que ficou conhecido

como “Pragmatismo Responsável e Ecumênico”, levado a cabo durante o governo de

Geisel (1974-1979). Para Gelson Fonseca Jr, era uma “continuidade matizada”90

da

Política Externa Independente. Geisel e Azeredo da Silveira elaboraram um discurso

didático para a atuação externa do país. O pragmatismo tinha que ser “responsável” da

mesma forma que a abertura tinha que ser “lenta, gradual e segura”. A atuação do Brasil

seria sem inibições, passaria do nível ideológico, típico da Política Externa

Independente, para o nível tático.

O universalismo era uma forma de se afastar do campo hegemônico e ampliar a

autonomia, mas o obstáculo à adoção do universalismo era sistêmico, uma vez que a

bipolaridade, ainda que cada vez mais “frouxa”, para usar o conceito de Kaplan, definia

os limites diplomáticos. O Pragmatismo Responsável foi uma imposição da lógica

diplomática, tendo em vista as novas circunstâncias da presença internacional do país,

permitidas pelo salto de poder ocorrido entre a década de 1960 e a de 1970, e os novos

parâmetros para interpretar o mundo, num contexto de détente consolidada, de ascensão

da Europa e do Japão como polos importantes do capitalismo, do primeiro choque do

petróleo, do fim do padrão dólar-ouro e declínio relativo do poder dos EUA e da

descolonização afro-asiática.

É com esse contexto que Azeredo da Silveira e Zappa dialogavam. No conflito

Leste-Oeste, o Brasil criticava menos a Guerra Fria, que já estava mais flexível, embora

mantivesse as ressalvas e os argumentos tradicionais. Apesar da lealdade ao Ocidente, o

país não tomou partido e não elogiou o comportamento das superpotências, que

considerava irresponsável. O Pragmatismo Responsável foi um “claro ponto de

inflexão”91

na política externa brasileira. A prioridade geográfica eram as relações com

a África e com a América Latina e a prioridade temática eram as questões econômicas.

90

FONSECA JR., Gelson. Mundos diversos, argumentos afins: notas sobre aspectos doutrinários da política externa independente e do pragmatismo responsável. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de. Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990): crescimento, modernização e política externa. São Paulo: NUPRI/USP, 1996. 91

SOUTO MAIOR, Luiz Augusto P.O Pragmatismo Responsável. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de. Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990): crescimento, modernização e política externa. São Paulo: NUPRI/USP, 1996, p. 438.

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O objetivo político do Brasil era o desenvolvimento econômico e social, e a

ordem internacional vigente representava um obstáculo à consecução desse interesse.

As divergências com os Estados e os países desenvolvidos eram subprodutos desse

objetivo. Se, conforme afirmou Azeredo da Silveira em Conferência na Escola Superior

de Guerra, “num mundo em constante mutação, não há coincidências permanentes nem

divergências perenes”92

, não podia haver alinhamentos automáticos.

Na África, o Brasil finalmente romperia com a orientação diplomática anterior,

reconhecendo o governo do MPLA em Angola. A Revolução dos Cravos, ocorrida um

mês após Geisel assumir o poder, facilitou, mas não condicionou a abordagem brasileira

com a África portuguesa, e impôs um teste de coerência logo no início do governo de

Geisel.

Já com os EUA, os principais pontos de atrito eram o apoio brasileiro ao

governo marxista de Luanda e o acordo nuclear com a Alemanha (RFA). No entanto,

segundo Luiz Augusto Souto Maior, o pragmatismo de Kissinger o fez compreender o

“pragmatismo responsável” de Azeredo da Silveira. No entanto, quando Carter tomou

posse, em 1977, a abordagem dos EUA mudou, e o governo americano passou a

defender veementemente os direitos humanos e a democracia. Afrontado pela Emenda

Harkin, o Brasil dispensaria ajuda militar e denunciaria o Acordo Militar de 1952.

Na busca do “ecumenismo”, o Brasil tentou preencher vazios diplomáticos na

África, no Oriente Médio e na China. Até 1974, o Brasil mantinha relações com Taipé,

e não com Pequim. Manter essa orientação seria incoerente com o discurso diplomático

e com os interesses econômicos, afinal, a China era a República Popular da China, e não

Formosa. Assim, nesse ano, o Brasil estabelecia relações diplomáticas com Pequim.

O governo Geisel foi um hiato entre dois períodos muito distintos. Até 1974, o

Brasil viveu o milagre econômico, com abundância de reservas, de crédito e de

investimentos, e o auge do regime autoritário. Após 1979, teria início a década perdida,

a dívida externa tornar-se-ia impagável e a democracia retornaria ao país.

Antes de adentrar na atuação de Zappa, faz-se necessário falar do chanceler

Azeredo da Silveira. “Sem Azeredo da Silveira, não haveria Zappa”, afirma o

Embaixador João Inácio Oswald Padilha. Uma mudança de direção tão complexa e

92

FONSECA JR., Gelson. Mundos diversos, argumentos afins: notas sobre aspectos doutrinários da política externa independente e do pragmatismo responsável. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de. Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990): crescimento, modernização e política externa. São Paulo: NUPRI/USP, 1996, p. 407.

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relevante não pode, de fato, ser colocada na conta de apenas uma pessoa. Zappa é

frequentemente caracterizado como o “idealizador da nossa política africana”93

, mas a

influência dele sobre Azeredo da Silveira deve ser relativizada94

. “Silveirinha” tinha

pensamento próprio, grande parte das decisões cabia a ele e dependia de suas gestões

junto a Geisel. Certamente Zappa influenciava, mas o fato de essa influência ter sido ou

não determinante permanece no terreno das especulações.

A política africana foi, portanto, uma corajosa obra feita com diversas mãos,

entre elas as de Geisel, Azeredo da Silveira, Zappa e Ovídio de Melo, amigo de infância

de Zappa e também natural de Barra do Piraí, fatos que não garantiam um

relacionamento sempre amistoso entre ambos. Eram momentos de muita adrenalina e

tensão, diante de um quadro sempre movediço e arriscado.

Para Ítalo Zappa, a Política Externa Brasileira deveria ser uma política

internacional ativa, uma política de dentro para fora que não apenas reagisse a fatos. O

desafio era como fugir de camisas de força e ficar à esquerda em uma ditadura militar

de direita. Por isso, “coragem” é um adjetivo que sempre surge quando se aborda a

Política Africana do Brasil na década de 1970. As resistências e pressões vinham de

todos os lados: dos próprios militares, particularmente do General Sylvio Frota, então

Ministro do Exército; dos Estados Unidos, polo capitalista da Guerra Fria; de Portugal,

da comunidade portuguesa no Rio de Janeiro e de seu lobby nas mais distintas esferas

de governo; e de outros grupos de resistência dentro dos países africanos, como a

UNITA e a FLNA em Angola.

No entanto, Zappa afirmava que cabia ao Brasil se expressar sobre os eventos

que ocorriam na África. Após reconhecer a Guiné-Bissau, primeira colônia portuguesa a

se tornar independente, o Brasil foi o primeiro país ocidental a reconhecer Angola. Para

Zappa, o MPLA deveria ser considerado de forma independente da orientação política

do movimento, mas como os legítimos os representantes da nação angolana e como tal

deveria ser reconhecido.

Os relatos de uma suposta conversa entre Zappa, quando era chefe do

Departamento de África, Ásia e Oceania, e o embaixador dos Estados Unidos, quando

este foi lhe fazer uma visita, revelam a linha de raciocínio que estava por trás da

93

Assim o caracterizou Roberto Abdenur na 4ª Reunião Extraordinária da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, da 1ª Sessão Legislativa Ordinária da 53ª Legislatura, em 27 de fevereiro de 2007. 94

Não se pode esquecer que, em 1972, Mario Gibson Barboza, chanceler de Médici, fez seu “périplo africano”, assinou acordos bilaterais de cooperação técnica e de comércio com vários países, e o Brasil tornou-se parte do Banco Africano de Desenvolvimento.

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investida brasileira na África. Zappa teria invocado Barra do Piraí95

e contado ao

embaixador, com seu estilo simples, que era uma pequena cidade perto do Rio de

Janeiro, pela qual passava um rio muito bonito e largo onde ele e as outras crianças da

cidade gostavam de nadar. Ele e seus amigos tinham como passatempo preferido

atravessar o rio nadando, mas não gostavam de atravessar contra a corrente. E

arrematava a conversa afirmando que acreditava que, na África, os Estados Unidos

estavam navegando contra a corrente.

A metáfora revela que, para o “idealizador da política africana”, as novas

condições das nações africanas eram uma realidade incontornável para o Brasil, país

não podia se furtar ao risco de conviver. Como embaixador em Moçambique, entre

1977 e 1981, após, portanto, a fase dos reconhecimentos, Zappa teve a oportunidade de

dar continuidade ao aggiornamento brasileiro na África. Apesar da altivez do gesto, o

pronto reconhecimento das independências não fora suficiente para reparar as décadas

de apoio ao colonialismo português. Segundo Elio Gaspari, “a aproximação com os

movimentos nativos que passariam a governar o ultramar português parecia um ato de

generosidade. (...) Os dirigentes dos movimentos vitoriosos queriam cobrar ao Brasil a

frustração que ele lhes impusera ao aliar-se, desnecessariamente, aos portugueses”96

.

Em 1974, Samora Machel teria dito a Ovídio de Mello que os moçambicanos “não

estavam acostumados a considerar o Brasil um país amigo”97

.

Em Maputo, o objetivo de Zappa foi construir essa amizade, cooperando com

Moçambique de acordo com as necessidades do governo moçambicano e as

possibilidades do Brasil. O embaixador procurou demonstrar que o Brasil, que sequer

fora convidado para as cerimônias de independência, não estava na África como novo

colonizador substituto de Portugal, mas estava em busca de cooperação. Em um

contexto de polarização de ambos os países, Moçambique à esquerda e o Brasil à

direita, esse relacionamento não foi dos mais fáceis.

Um dos episódios mais controversos da carreira de Zappa se deu durante sua

passagem por Maputo. Ítalo Zappa chamou a colônia de brasileiros exilados em

Moçambique e concedeu certidões de nascimento aos filhos desses brasileiros nascidos

durante o período no exílio e emitiu passaportes. Esse exemplo de coragem, de

humanismo e de exaltação da cidadania como princípio balizador da ação foi

95

Zappa conseguia ver em sua cidade natal um microcosmo. O embaixador achava que o mundo era uma Barra do Piraí. 96

GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 97

Idem, p. 147

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reconhecido na homenagem ao Embaixador Ovídio de Melo, prestada pela Comissão de

Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados durante o seminário

“Política Externa do Brasil para o Século XXI - Perspectivas das relações do Brasil com

o mundo lusófono”, em 2002, onde se afirmou:

“É possível encontrar ainda hoje pessoas que se depararam com as atividades

do Embaixador Ítalo Zappa nos tempos difíceis do regime de exceção.

Principalmente em Moçambique, colhemos vários desses depoimentos. Era

comum ativistas de esquerda, militantes de partidos de contestação ao

Governo da época, sofrerem restrições em repartições consulares do Brasil.

Recentemente, o próprio Senador José Serra fez publicamente queixa nesse

sentido. Mas aqueles que viviam em Moçambique registram que essas

dificuldades não existiam enquanto lá estava o Embaixador Ítalo Zappa”98

.

Relações com a Imprensa

Um assunto comum a todos os depoimentos colhidos sobre Ítalo Zappa foi a

forma como ele se relacionava com a imprensa. Segundo Regina Zappa, ele gostaria de

ter sido jornalista. Amigo pessoal de vários deles, principalmente após ser chefe de

gabinete de Magalhães Pinto, Ítalo Zappa foi um dos diplomatas que mais procurou ter

a mídia por perto. Afirmava que tinha de tentar “ganhar” o noticiário, pois o editorial

dos jornais já estava “perdido”. Recebia de dez a vinte jornalistas diariamente e, se, de

fato, os editoriais da grande mídia eram frequentemente hostis à linha adotada pelo

Itamaraty em relação à África, as notícias eram mais favoráveis.

Essa relação com a imprensa também tinha como pano de fundo um desejo de

tornar o Itamaraty mais aberto. Zappa buscou aproximar o Itamaraty da sociedade civil

e acreditava que a política externa, num contexto de ditadura militar de direita, não

devia ser ideologizada. Por meio de seu contato frequente com jornalistas, tentou tornar

a Política Externa mais transparente e expô-la para a população, na esperança de

influenciar formadores de opinião. Esse esforço de aproximação da imprensa não era,

portanto, para se promover, mas para promover a política na qual acreditava.

Conta-se que, em uma reunião com jornalistas, Zappa chegou a deixar,

propositalmente, sobre a mesa um telegrama cujo conteúdo ele queria “deixar saber”,

mas que não podia revelar deliberadamente. No meio da reunião, inventou uma

desculpa e se ausentou por um momento, deixando apenas os jornalistas na sala e a

informação sobre a mesa. Depois de um tempo, voltou à sala, tomando o cuidado de

98

Reunião n. 0752/02 da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, em 15 de agosto de 2002.

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fazer barulho, para que os jornalistas percebessem sua chegada. A informação era

divulgada como ele queria, mas a “fonte” era preservada.

Zappa julgava que o respaldo da imprensa era essencial para fazer avançar uma

agenda progressista na política externa. A maneira eficaz como ele conseguiu “vender”

a ideia da importância de reconhecer os países africanos fez com que as primeiras

páginas dos jornais estampassem a sua visão do assunto, ainda que o editorial interno

criticasse. Sob a luz da teoria de Quentin Skinner sobre o significado e a compreensão

na história das ideias, é possível afirmar que a divulgação permanente e consistente do

pensamento e da ação política do governo pela imprensa ajudaria a legitimar a mudança

ideológica pela qual passava a política externa, particularmente em relação à África. Por

meio do diálogo com a imprensa, Zappa buscava deliberadamente dialogar com a

sociedade brasileira.

China

As relações diplomáticas com a República Popular da China foram reatadas em

agosto de 1974. Segundo Souto Maior, a China era “a lacuna mais evidente na rede de

vínculos internacionais do Brasil”99

. A reaproximação fazia parte da busca do

ecumenismo na política externa de Geisel e da tentativa de preencher vazios

diplomáticos. As relações com Taipé em detrimento de Pequim apenas se justificavam

sob o prisma ideológico, tendo em vista as características do modelo chinês. No entanto,

“a percepção que as autoridades da época tinham da posição do Brasil no mundo não se

coadunava com a exclusão apriorística de determinados países do âmbito da atuação

diplomática brasileira”100

. O empresariado nacional, em busca de mercados externos

para suas exportações, objetivo que também era incentivado pelo governo de Geisel,

apoiara a aproximação entre Brasil e China101

:

“Não obstante a estratégia de enfatizar as vantagens econômicas decorrentes

da aproximação com Beijing, é preciso sublinhar o papel do Itamarati no

sentido de ‘esclarecer’ os militares sobre as novas circunstâncias em que a

China se encontrava no sistema internacional. Assim, fosse através das

99

SOUTO MAIOR, Luiz Augusto P.O Pragmatismo Responsável. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de. Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990): crescimento, modernização e política externa. São Paulo: NUPRI/USP, 1996, p. 448. 100

Idem, p. 446 101

PINHEIRO, Letícia. Restabelecimento de relações diplomáticas com a República Popular da China: uma análise do processo de tomada de decisão. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 12, 1993, p. 247-270.

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conferências na Escola Superior de Guerra ou de artigos publicados na

Revista do Clube Militar, procurava-se preparar o terreno junto aos

conservadores com relação ao reconhecimento da RPC”102

.

O primeiro embaixador do Brasil na República Popular da China foi Aluísio

Napoleão de Freitas Rego, que Ítalo Zappa substituiu em 1982. Zappa ficaria até 1986 à

frente da embaixada em Pequim. A experiência foi mais uma oportunidade de fortalecer

as relações Sul-Sul. Zappa entendia a China como centro de poder emergente

independente, fora da bipolaridade clássica. Aos questionamentos sobre as razões de

deixar Taiwan respondia que era devido a uma visão estratégica maior.

Em Pequim, articulou a criação da Adidância Militar chinesa em Brasília, feito

notável tendo em vista a China ser um país comunista e o Brasil uma ditadura de viés

conservador. Foi durante sua passagem por Pequim que foi negociada a visita do

presidente Figueiredo, a primeira de um Chefe de Estado brasileiro ao país e ocasião na

qual diversos acordos relevantes e estratégicos foram assinados103

. Como afirma o

Embaixador Paulo Antônio Pereira Pinto, a ideia de Zappa era buscar parceiros com a

mesma forma de pensar o sistema internacional. Se defendia-se a multipolaridade, era

preciso criar esses polos. A aproximação mútua, para Zappa, era reflexo da vontade

comum de se descolar das duas superpotências e das camisas de força ainda impostas

pela bipolaridade.

Comércio Exterior

Se o empresariado, como era de se esperar, estava interessado nos ganhos

comerciais e econômicos que poderiam resultar do reatamento entre Brasil e China,

Zappa entendia essa aproximação como um ato eminentemente político. Apesar disso,

entre 1982 e 1986, o comércio bilateral subiu de pouco mais de trezentos milhões de

dólares para 1 bilhão de dólares104

. Apesar desse incremento considerável, conta-se que

102

Idem, p. 262 103

Protocolo Adicional ao Acordo de Comércio, Ajuste Complementar entre o CNPq e a Academia de Ciências da China nos Campos das Ciências Puras e Aplicadas, Memorando de Entendimento sobre Cooperação nos Usos Pacíficos de Energia Nuclear, Ajuste Complementar ao Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica, Protocolo entre o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e a Comissão Estatal de Ciência e Tecnologia no Campo da Cooperação Científica e Tecnológica. Além desses 5 acordos, após a visita, outros 8 ainda foram assinados até o final de 1985, incluindo o da criação de Consulados em São Paulo e em Xangai. 104

ABREU, Alzira Alves de e LAMARÃO, Sérgio. Personalidades da Política Externa Brasileira. Brasília: FUNAG, 2007.

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Zappa e os membros da embaixada reuniam-se para pensar o que poderia ser comprado

da China na década de 1980.

Vista sob as perspectivas atuais, a concepção de Zappa sobre a relação entre

comércio exterior e diplomacia é polêmica e controversa. Para ele, comércio exterior e

política não deviam se misturar – o foco deveria ser esta, pois um bom relacionamento

político, em sua opinião, levaria naturalmente ao comércio. Ele esboçava resistências à

atuação do Departamento de Promoção Comercial e à busca do “comércio pelo

comércio”. A função do Itamaraty deveria ser abrir portas e ser um facilitador.

Questionado, em entrevista à Revista Veja, se a facilitação de relações

comerciais não seria um aspecto importante da atividade diplomática, Zappa foi

enfático:

“Facilitar politicamente. E para isso é só o Itamaraty exercer as suas funções

plenamente, em vez de ficar preocupado com setor comercial.

(...)

Não se forma um oficial do Exército para ser delegado de polícia. Da mesma

forma, não se pode preparar um diplomata para ser um agente comercial. A

função principal do Ministério das Relações Exteriores é auxiliar o presidente

da República na formulação da política externa e na sua execução.

(...)

Sempre fui contra serviços comerciais prestados pela diplomacia, pois dá no

pior resultado possível. Acaba-se utilizando o endosso político em favor de

uma empresa. E as empresas não precisam disso, elas sabem muito bem

como chegar lá.

(...)

As representações diplomáticas brasileiras devem dedicar toda a atenção à

defesa de nossos interesses. A economia é um elemento fundamental na

política externa.

(...)

Nesse momento em que toda a ênfase é colocada na retirada do Estado da

economia e no primado da iniciativa privada, parece incoerente e talvez

impróprio se falar de um novo Itamaraty, dedicado a intensificar o comércio.

O Itamaraty nunca deixou de cumprir o papel que lhe cabe nessa área. Mas

não pode ser utilizado passivamente por esse ou aquele empresário, ou grupo

de empresários, em detrimento de outros”105

.

Em resumo, para Ítalo Zappa, “o Itamaraty deve ter uma função política”106

. Em

seu discurso como Paraninfo da Turma de 1990, ele deixou isso claro:

“Parece-me fundamental compreender que esta não é uma carreira de

burocratas e que em qualquer área de atuação, aqui e no exterior, terá sempre

um inelutável conteúdo político. E aí se encontra talvez o grande desafio: se

se trata de função política, não se pode exercer com mansidão, a coberto da

variação de critérios, das diferentes interpretações dos matizes decisivos, de

um sem-número de vicissitudes que impõem ao agente do serviço exterior a

constante necessidade de empenhar-se para sobrelevar todos os empecilhos

na procura do rumo certo, da dose adequada e da composição aceitável”.

105

ZAPPA, Ítalo. Entrevista. In: Revista Veja, Ano 26, n. 9, edição 1.277, de 03 de março de 1993. 106

Idem

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Intuição

Em um ensaio sobre o pensamento diplomático de uma personalidade da política

externa, é de se esperar a identificação e a análise das principais obras e autores,

possivelmente nacionais e estrangeiros, que influenciaram essa personalidade no

exercício de sua função de diplomata. É razoável esperar também uma perscrutação das

obras que essa personalidade deixou, para encontrar ali, nesses recursos tangíveis,

indícios de seu pensamento diplomático.

Como se sabe, Zappa não deixou livros ou outras obras escritas. Essa ausência,

no entanto, não surpreende: Ítalo Zappa não era um teórico nem um intelectual, mas

eminentemente um político da diplomacia, característica que o aproxima de outros

grandes diplomatas-políticos, como Azeredo da Silveira, Roberto Campos, Paulo

Nogueira Batista, seu colega de turma107

, e Paulo Tarso Flecha de Lima – homens

práticos, fazedores, e que o distingue de diplomatas “cerebrais”, como Gelson Fonseca

Junior ou Ronaldo Sardenberg, que estudavam com apuro, produziam papéis e

construíam as narrativas. Entende-se, a partir dessa característica, a admiração de

Araújo Castro por Ítalo Zappa: o grande perfil analítico do primeiro complementava o

pragmatismo do segundo.

Nos depoimentos que serviram como uma das fontes para este ensaio, a

intangível “intuição”, ou “gut feeling”, expressão usada pelo Ministro Arthur Henrique

Villanova Nogueira para descrevê-la, foi uma palavra mencionada de forma quase

unânime para se referir a Zappa. Destacou-se também sua sensibilidade política e

diplomática e seu poder de análise das situações. “Ítalo Zappa não era uma figura

acadêmica, se deixava governar por sua intuição, confiava nela e a cultivava”, afirma o

Embaixador João Inácio Oswald Padilha. Em tempos em que as informações não

107

Em “O Negociador: um perfil do Embaixador Paulo Nogueira Batista”, publicado na revista “JUCA: diplomacia e humanidades”, ano 4, 2010, o autor, Lucas Barbosa Lima, reproduz um depoimento de Ítalo Zappa sobre seu colega: “Paulo Nogueira Batista era político dos pés à cabeça. Um ser que não podia viver sem elaborações políticas. Ele a fazia todos os dias e era marcado pelo conflito com as pessoas. Um homem que tinha inimigos unilaterais. Alguns o consideravam inimigo, mas ele não se considerava inimigo de ninguém. Agora, os contrariados, os que não queriam debater, os que não aceitavam argumentos, esses se tornavam inimigos a tal ponto que tive de adverti-lo: Paulo, você vai acabar ficando com um único interlocutor na turma. Eu!”

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estavam prontamente disponíveis nem fluíam com facilidade, a intuição tornava-se um

ativo ainda mais importante.

Quando chegou a Pequim, procurou o Ministério das Relações Exteriores para

apresentar ao chanceler as cópias figuradas de suas credenciais. Ao voltar da visita ao

chanceler Huang Hua, teria comentado na embaixada que o chanceler provavelmente

renunciaria ao cargo brevemente e enviou telegrama afirmando que Huang Hua

apresentou todas as evidências de que pediria demissão. Perguntado sobre a razão dessa

conclusão, Zappa teria afirmado que o chanceler passara o tempo todo reclamando da

saúde e das dores que sentia, e que um chanceler que, no primeiro contato com um

embaixador até então desconhecido, reclama tanto sobre a vida está, na verdade,

demonstrando um pretexto para sair. Huang Hua, que de fato já estava sendo muito

criticado na condução das relações entre China e URSS, caiu alguns dias depois dessa

visita.

Outro exemplo de “feeling” político foi uma mensagem de congratulações pela

eleição de Tancredo Neves como governador de Minas Gerais em 1982. Aos diplomatas

presentes no momento em que redigia a mensagem108

, Zappa teria dito que o fazia, entre

outros motivos, porque aquele seria o próximo presidente do Brasil. Ainda se vivia uma

ditadura militar e não havia qualquer informação disponível que permitisse aquela

conclusão, a não ser sua intuição e seu poder analítico.

Em seu discurso de Paraninfo da Turma de 1990 do Instituto Rio Branco, Zappa

não utiliza a palavra “intuição”, preferindo usar “discernimento”. As duas palavras não

são sinônimas, mas ilustram o pensamento do Paraninfo:

“A serviço da nação, o funcionário diplomático tem que confiar em si

próprio, no seu discernimento, que se aperfeiçoa na medida em que avança

sua experiência”.

108

Todos os dias, pela manhã, costumava chamar todos os diplomatas para sua sala, onde liam os despachos telegráficos que chegavam da Secretaria de Estado e comentavam o contexto; Zappa, então, com o onipresente cigarro na mão, ditava a resposta ou elaborava outras comunicações.

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Cuba

Ítalo Zappa foi removido para Cuba em 1986, assim que as relações

diplomáticas foram retomadas, no governo de Sarney, e permaneceu na ilha até 1990. O

reatamento era defendido unanimemente pelos partidos políticos da época. Em 1986,

eram poucos os países que ainda não tinham retomado suas relações diplomáticas com

Havana. Segundo Seixas Corrêa, a ausência de relações com Cuba era “uma das

principais hipotecas remanescentes do regime militar”109

, e liquidá-la era essencial para

que o Brasil pudesse assumir o papel que lhe cabia no cenário regional, tendo em vista a

prioridade conferida pelo governo de José Sarney ao relacionamento com a América

Latina. Sob o ponto de vista doméstico, reatar com Cuba significava afirmar a

preponderância civil na ordem institucional recém-implantada.

No entanto, o histórico do período de não relações oficiais (1964-1986) indicava

que a construção de confiança, assim como na África, não seria imediata. Além de Fidel

ter recebido presos políticos libertados na ocasião do sequestro do embaixador

americano, Cuba era acusada de ter financiado a guerrilha urbana no Brasil.

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) rapidamente organizou uma missão

comercial para identificar as oportunidades de negócio com o país. Fidel Castro e José

Sarney se falaram por telefone, indicando que os frutos do reatamento poderiam

eventualmente ser promissores. No entanto, as crises econômicas em ambos os países

dificultaram o relacionamento comercial e econômico. Nos anos de Zappa em Cuba, o

diálogo se deu principalmente na área de cooperação cultural e educacional e

cooperação científica, técnica e tecnológica. Apenas ao fim do período, em 1989, foi

estabelecido um convênio comercial.

Em Cuba, Zappa tornou-se amigo de Gabriel García Marquez e de Fidel Castro,

que chegou a frequentar a cozinha da casa do embaixador e acreditava que Zappa podia

ajudar a melhorar a relação entre Brasil e Cuba. Entre os desafios frente à nova

Embaixada e ao regime democrático recém-implantado no Brasil, estava o tratamento a

ser dispensado à comunidade brasileira em Cuba, composta por muitos fugitivos e

exilados do regime de exceção. Zappa trabalhou para atualizar a imagem do governo do

109

SEIXAS CORRÊA, Luis Felipe de. A Política Externa de José Sarney. In: ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de. Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990): crescimento, modernização e política externa. São Paulo: NUPRI/USP, 1996.

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Brasil perante essa comunidade, evitando que os brasileiros em Cuba deixassem de

procurar a embaixada por receios injustificados. O embaixador não aprovava

abertamente a ditadura cubana e seus abusos, embora soubesse que existiam.

Zappa serviu em Cuba até 1990, quando voltou ao Brasil e passou para o Quadro

Especial do Ministério das Relações Exteriores. Entre 1990 e 1994, voltou para o seu

apartamento no Baixo Leblon e não exerceu nenhuma função específica no Itamaraty. A

política externa promovida por Collor de Mello, próxima a Washington e aos preceitos

liberais, ia de encontro ao que Zappa defendera ao longo de sua carreira.

Em 1995, Zappa assumiu seu último posto: embaixador em Hanói. No entanto,

serviu por pouco tempo no Vietnã. Com o início dos sintomas do câncer de fígado que

causaria seu falecimento, voltou ao Brasil para se tratar e não teve autorização médica

para retornar a Hanói. Fidel teria lhe oferecido tratamento em Havana; os vietnamitas,

as possibilidades da medicina oriental. Zappa faleceu no dia 04 de novembro de 1997,

aos 71 anos.

Conclusão

Em 1953, ano seguinte ao término do curso de formação no Instituto Rio

Branco, Ítalo Zappa, então com 27 anos, foi a Santiago como estagiário em um curso

promovido pela recém-criada CEPAL sobre os problemas do desenvolvimento

econômico. Ao longo do curso, frequentou a embaixada do Brasil no Chile e ali

trabalhou temporariamente. Sua atuação em Santiago lhe rendeu um telegrama elogioso

do embaixador Cyro de Freitas-Valle:

“3. Eu acho natural o que o Senhor Zappa fez, mas por experiência sei não

ser isso habitual. O resultado é que voltou ele para o Brasil rico de suas

observações a respeito de como funciona uma chancelaria diplomática. Mas,

sobretudo, voltou com o apreço nosso por seu voluntário apoio aos colegas

que trabalhavam e, por causa de um obrigado contato, com a admiração pelo

caráter, por sua inteligência e pelo seu patriotismo. Não sou amigo de

louvaminhas, bem se sabe no Itamaraty. Mas as maiores de mim merece o

Senhor Zappa, tão infante em nosso serviço no qual, depois de curta

permanência em Santiago, pelas qualidades que demonstrou, entre nós deixa

um misto de gratidão e de saudade”110

.

110

Telegrama n. 120, de 04 de julho de 1953, enviado pela Embaixada do Brasil em Santiago.

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Não é difícil compreender a admiração que o jovem Ítalo Zappa causou no

experiente Freitas-Valle, referência da diplomacia nacional pelo seu conhecimento e

atuação nos primeiros anos de funcionamento da ONU. Segundo Eugênio Vargas

Garcia,

“Voltado para a ação e preocupado em resolver problemas à medida que se

apresentavam, Freitas-Valle representava uma tradição de diplomatas que,

eficientes em sua função, não se sentiam compelidos a teorizar em

profundidade sobre o seu ofício ou sobre as magnas questões internacionais

que os absorviam no trabalho de cada dia”111

.

Um experiente “caminante”, como nos versos de Antonio Machado, encontrava

outro, um jovem em início de carreira.

No entanto, se as palavras de Freytas-Valle foram possivelmente as primeiras de

um grande nome do Itamaraty sobre Ítalo Zappa, certamente não foram as únicas.

Décadas depois, já olhando a carreira de Zappa em retrospectiva, tom semelhante ao

que Freytas-Valle adotou em 1953 era utilizado por chanceleres como Francisco Rezek,

em 1990, e Luiz Felipe Lampreia, em 1999:

“O embaixador Ítalo Zappa é o paraninfo da Turma. Sua trajetória no

Itamaraty, sua lealdade à causa pública, seu desempenho tanto na Secretaria

de Estado como no exterior, constituem hoje patrimônio desta Casa, onde as

mais jovens gerações o homenageiam com justiça, afeto e profundo

agradecimento”.112

“Como chefe do Departamento da Ásia, África e Oceania, o Embaixador

Ítalo Zappa, patrono da turma que hoje se forma, participou ativamente do

planejamento e execução dessas decisões. Zappa tinha gosto em ser um

desbravador de novas frentes diplomáticas e transformou a sua carreira em

exemplo de trabalho pela afirmação da autonomia de nossa política externa.

E eu entendo que seja esse o sentido da homenagem que os novos diplomatas

resolveram fazer-lhe, a qual eu me junto, como Chanceler e, sobretudo, como

colega e amigo do Embaixador Zappa”113

.

Para Zappa, o verdadeiro trabalho do diplomata estava em construir as relações,

em todas as áreas, mas sobretudo a política. Daí porque acreditava que não teria muito o

que fazer nas grandes embaixadas dos países desenvolvidos, tendo preferido Maputo,

Havana, Pequim e Hanói. É nesse sentido também que Zappa se aproxima do

“caminante” de Antonio Machado: para construir novas relações era preciso abrir novos

111

GARCIA, Eugênio Vargas. Cyro de Freitas-Valle: Nações Unidas, o Brasil Primeiro. In: Pensamento Diplomático Brasileiro, Vol. III, Brasília: FUNAG, p. 716. 112

Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Francisco Rezek, na cerimônia de formatura da Turma “Azeredo da Silveira” (1990) do Instituto Rio Branco, da qual Ítalo Zappa foi paraninfo. 113

Discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, na cerimônia de formatura da Turma “Ítalo Zappa” do Instituto Rio Branco (1999).

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caminhos, por searas desconhecidas e na ausência de regras claras que garantissem o

sucesso – o “business as usual” não funciona diante de situações atípicas. Havia o

interesse nacional a defender, mas, diante do quadro inédito e arriscado, inerente ao

desbravar de novos horizontes, a tática a ser adotada era igualmente inédita e arriscada:

se fazia o caminho ao caminhar.

Ítalo Zappa não era, nem pretendia ser, uma unanimidade, mas seu senso de

missão, sua coragem e seu estilo de ser o credenciam para o rol dos grandes diplomatas

brasileiros. O Embaixador João Inácio Oswald Padilha oferece uma síntese simples,

mas potente, sobre o diplomata objeto deste ensaio: “Zappa era muito diferente”.

Bibliografia

A) Depoimentos

Embaixador Antônio Carlos do Nascimento Pedro

Embaixador João Inácio Oswald Padilha

Embaixador Paulo Antônio Pereira Pinto

Ministro Arthur Henrique Villanova Nogueira

Regina Zappa

B) Outras fontes

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2003.

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Reunião Extraordinária da 1ª Sessão Legislativa Ordinária da 53ª Legislatura, realizada

em 27 de fevereiro de 2007.

Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Ata da

Reunião n. 0742/02 – Homenagem ao Embaixador Ovídio de Andrade Melo e

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12 de outubro de 1997.

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JOSÉ GUILHERME MERQUIOR:

O PENSAMENTO DIPLOMÁTICO E A DIPLOMACIA DO

PENSAMENTO DO ESGRIMISTA LIBERAL

Arthur Cesar Lima Naylor

RESUMO

O presente trabalho busca apresentar o processo de elaboração do pensamento

diplomático de José Guilherme Merquior, enfatizando a maneira orgânica como esse

pensamento se articula com outras ideias do autor, o que dá origem a um todo bastante

coerente. Esse processo é narrado de forma cronológica, e não tópica, opção que se

justifica na medida em que se defende a tese de que o pensamento diplomático de

Merquior não era senão faceta de uma visão de mundo mais ampla que abarcava

filosofia, política, relações internacionais, economia e cultura. Apresentam-se três fases

básicas para a compreensão dessa trajetória intelectual: a juventude, momento no qual o

autor, mais devotado à literatura que à política, apresenta os primeiros elementos, ainda

que carentes de desenvolvimento, de seu pensamento maduro; a transição, fase na qual

o autor lança-se a desenvolver os pressupostos já presentes em seu pensamento anterior,

embora sem ainda extrair-lhes todas as consequências; e a maturidade, quando o autor,

já seguro da consistência de sua produção intelectual, busca intervir de maneira mais

decidida no debate público brasileiro. Identifica-se no liberalismo o conjunto de ideias

que funciona como eixo organizador básico dessa trajetória.

PALAVRAS-CHAVE: diplomacia, liberalismo, ideias, política, cultura.

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1 Introdução

Antes de passar ao desenvolvimento do tema, convém utilizar o espaço da

introdução para um esclarecimento de ordem metodológica. À diferença da prática

adotada pelo professor Ministro Tarcísio Costa em suas aulas de Pensamento

Diplomático Brasileiro, o presente trabalho não se iniciará com algumas notas

biográficas sobre o personagem em análise, passando, a seguir, à exposição de seu

pensamento diplomático. Isso se justifica quando se leva em conta o personagem

analisado, José Guilherme Merquior, cuja atividade intelectual, segundo Rubens

Ricupero, “definiu e deu forma à existência toda, integrando e absorvendo os demais

elementos. […] Para Merquior a vida cultural se confundia com a própria vida,

constituía a essência de cada gesto e atitude”114

.

Como vida, pensamento e diplomacia eram quase que uma coisa só em

Merquior, a estrutura do presente trabalho não será dividida em tópicos. Optou-se por

uma narrativa cronológica da trajetória intelectual e profissional do diplomata carioca,

de modo a que se possa notar como, progressivamente, vai-se formando seu pensamento

diplomático, no final das contas meramente uma faceta de seu pensamento mais amplo

sobre a política, a economia e a cultura.

2. Desenvolvimento

a. A juventude: a paixão pela literatura, os primeiros anos na carreira

diplomática e as primeiras manifestações de seu pensamento diplomático

José Guilherme Merquior nasceu na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, em 22

de abril de 1941. Filho de um advogado, Danilo Merquior, e de uma dona de casa,

Maria Alves Merquior, era o mais velho de quatro irmãos. Embora nascido em uma

família de classe média sem particular vocação intelectual, José Guilherme Merquior,

desde cedo, mostrou grande afeição pelos livros.

114

RICUPERO, Rubens. José Guilherme Merquior: a diplomacia da inteligência. In: LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 18-9.

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No colégio Lafayette e, depois, nas faculdades de Direito e de Filosofia, em que

se graduou, sempre impressionou a todos pela inteligência e pela precocidade. Uma

terceira característica, porém, talvez seja mais relevante para a compreensão de sua

trajetória intelectual, em geral, e de seu pensamento diplomático, em particular: a

versatilidade. Os professores que mais o influenciaram na faculdade de Direito,

curiosamente, não eram desse campo de estudos: Dirce Cortês Riedel, de Literatura, e

Antonio Gomes Penna, de Psicologia.115

Assim como o aprazia a variedade de temas, diferentes abordagens teóricas

também eram acolhidas sem preconceitos ideológicos. Comprova-o o fato de que, em

sua primeira viagem à Europa, aos 15 anos, trouxe de lembrança um busto de Voltaire,

expoente da filosofia iluminista. Por outro lado, cinco anos depois, em 1961, ajudou a

organizar um festival de cinema soviético, onde conheceu e tornou-se amigo do filósofo

marxista Leandro Konder.116

Tratava-se, pois, de alguém de múltiplos interesses. Por

força dessa versatilidade, e para utilizar uma díade muito tradicional para classificar

diplomatas, Merquior era mais um generalista que um especialista. Ou, na feliz

classificação de José Arthur Giannotti, era um intelectual de vilegiatura, capaz de

“passear com elegância por diversos temas”, em vez de um intelectual obsessivo,

dedicado a um único problema.117

Apesar desses múltiplos interesses, pode-se dizer que, em seus primeiros anos de

atividade intelectual, a área de atuação predileta de Merquior foi a crítica literária. Esse

foi o campo em que, ainda adolescente, emplacou seus primeiros artigos em jornais de

grande circulação. Em 1959, com meros 18 anos, publicou seus primeiros ensaios

críticos no Jornal do Brasil, vindo a vincular-se ao prestigioso “Suplemento Dominical”

do periódico carioca no ano seguinte. Sua coluna, intitulada “Poesia para Amanhã”,

trazia análises argutas, marcadamente originais, de poetas e poemas — e, ao mesmo

tempo, revelava faceta que ficaria mais evidente em sua maturidade: o gosto pela

polêmica.

É razoavelmente pacífico entre os conhecedores de sua obra que o melhor de sua

produção situa-se, justamente, no campo da crítica literária.118

Antonio Candido, talvez

o mais respeitado crítico literário brasileiro, não poupou elogios a Merquior, tendo dito

115

PEREIRA, José Mário. O fenômeno Merquior. In: SILVA, Alberto da Costa e (org.). O Itamaraty na

cultura brasileira. FUNAG, Brasília, 2002. p. 361. 116

KONDER, Leandro. Uma estranha amizade. O Globo, Rio de Janeiro, p. 6. 13 jan. 1991. 117

GIANNOTTI, José Arthur. Um ‘guloso’ intelectual. O Globo, Rio de Janeiro, p. 6, 13 jan. 1991 118

ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita diplomática: a trajetória intelectual de um liberal precoce. Folha

de S. Paulo, São Paulo, caderno Ilustríssima. p.4. 23 ago 2015.

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dele que “foi sem dúvida um dos maiores críticos que o Brasil teve, e isto já se

prenunciava nos primeiros escritos”119

. O gosto pela polêmica dava-se a ver nas análises

impiedosas — dir-se-ia pouco diplomáticas — de alguns nomes respeitados das letras

nacionais. Sobre “Vento Geral”, do poeta amazonense Thiago de Mello, Merquior foi

corrosivamente sucinto: “T.M. é mau poeta: e só”120

.

É difícil vislumbrar esboços de um pensamento propriamente diplomático, ou

mesmo político, na produção do jovem Merquior. Há, porém, um traço de personalidade

muito marcado, que orientaria toda a sua produção intelectual e seria a força motriz por

trás da longa gestação de suas ideias sobre o Estado, a política e as relações

internacionais: a crença inabalável na razão. Seu primeiro livro, Razão do Poema, uma

coletânea das melhores críticas publicadas no Jornal do Brasil, editado em 1965,

demonstra esse fato já no título. E, ao longo do volume, como ademais de toda a

produção da primeira fase de Merquior, a de crítico literário, o que se manifesta é a

racionalidade crítica como expressão do pendor filosófico. É essa “vocação

especulativa” que, em profícua interação com a expressividade estilística, fará de

Merquior uma referência da crítica literária brasileira. Sobre isso, disse Antonio

Candido:

Num de seus ensaios mais recentes ele disse que a falta de informação

filosófica prejudicava a maioria da crítica brasileira. Ora, deste mal ele estava

galhardamente livre. A sua acentuada vocação especulativa e a vasta erudição

que a nutria lhe permitiram fazer do trabalho crítico uma investigação que

não se satisfazia em descrever e avaliar os textos, mas desejava descobrir o

sentimento entesourado e em seguida ligá-lo a outros produtos da cultura. Daí

um cruzamento fertilizador, característico do seu trabalho: o pensador José

Guilherme Merquior era capaz de expor os seus pontos de vista com a

expressividade de um escritor versado na melhor literatura, enquanto o crítico

José Guilherme Merquior era capaz de interpretar os textos ou traçar a

articulação dos movimentos com a capacidade dialética de discriminar e

integrar, própria da mente filosófica.121

Se, durante sua fase de crítico literário, seu pensamento diplomático não era

senão um apanhado de ideias enfeixadas pelo laço da racionalidade, ou mesmo apenas

um conjunto de traços de personalidade, seu ingresso no Itamaraty propiciou, pelo fértil

119

CANDIDO, Antonio apud PEREIRA, José Mário. O fenômeno Merquior. In: SILVA, Alberto da

Costa e (org.). O Itamaraty na cultura brasileira. FUNAG, Brasília, p. 361 120

ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita diplomática: a trajetória intelectual de um liberal precoce. Folha

de S. Paulo, São Paulo, caderno Ilustríssima. p. 4. 23 ago. 2015. 121

CANDIDO, Antonio apud PEREIRA, José Mário. O fenômeno Merquior. In: SILVA, Alberto da

Costa e (org.). O Itamaraty na cultura brasileira. Brasília, FUNAG, .p. 361

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ambiente intelectual do Ministério, pela facilidade de acessar os grandes centros

difusores de ideias e pela própria obrigação cotidiana de lidar com a temática

internacional, que aquele pensamento fosse, pouco a pouco, ganhando forma.

Em 1962, com apenas 21 anos de idade, José Guilherme Merquior ingressa na

carreira diplomática. E, como foi comum ao longo de toda a vida, chegou ao Itamaraty

impressionando a todos com sua inteligência. “Naquele ano houve dois concursos para

nossa turma. Ele foi o primeiro colocado em um, eu em outro. Isso criou certa

solidariedade entre nós”, disse o ex-Chanceler Luiz Felipe Lampreia.122

O embaixador

Marcos Azambuja, ex-Secretário-Geral das Relações Exteriores, que entrara na carreira

cinco anos antes, em 1957, assinala que Merquior já chegou ao Itamaraty gozando de

grande reputação intelectual, embora ainda muito jovem: “Sempre que tínhamos alguma

dúvida sobre qualquer assunto, íamos falar com ele. Era uma pessoa realmente

extraordinária, agradabilíssima”123

.

Se, em sua primeira fase, Merquior era muito mais um crítico literário que um

pensador político, que dirá diplomático, suas inclinações ideológicas também estavam

distantes daquelas pelas quais se tornaria conhecido anos mais tarde, por meio de obras

que até hoje constituem referência inescapável para a história das ideias no Brasil. O

jovem diplomata carioca era então vinculado a ideias de esquerda. Embora, segundo

Leandro Konder, não pudesse ser classificado como marxista, mostrava interesse na

teoria estética do marxismo, especialmente em György Lukács.124

No pensamento

diplomático, essa inclinação se traduzia na adesão a um dos dois polos em que Helio

Jaguaribe dividia o pensamento sobre a posição do Brasil no mundo na virada da década

de 1950 para a de 1960, nomeadamente o nacionalismo, em contraposição ao

cosmopolitismo.125

A amizade com San Tiago Dantas, principal tradutor dessa concepção

nacionalista para a política externa brasileira, dando origem à Política Externa

Independente, era em certa medida um reflexo das inclinações esquerdistas do jovem

Merquior, embora também fosse admiração intelectual genuína, que transcendia

qualquer categorização ideológica. Nesse sentido, é sintomático que, mesmo quando já

esmaeciam suas posições de esquerda, em 1969, Merquior tenha dedicado à memória de

122

LAMPREIA, Luiz Felipe apud ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita diplomática: a trajetória

intelectual de um liberal precoce. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Ilustríssima. p. 4. 23 ago. 2015. 123

AZAMBUJA, Marcos apud ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita diplomática: a trajetória intelectual

de um liberal precoce. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Ilustríssima. p. 4. 23 ago. 2015. 124

KONDER, Leandro. Uma estranha amizade. O Globo, Rio de Janeiro, p. 6, 13 jan. 1991. 125

JAGUARIBE, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira. Brasília, FUNAG, 2013.

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San Tiago Dantas o livro Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, primeira

análise sistemática, e profundamente crítica, da Escola de Frankfurt publicada no

Brasil.126

Em 1963, Merquior convidou San Tiago para paraninfar sua turma no

Instituto Rio Branco, ao que este, após responder afirmativamente, convidou Merquior

para ser o orador da turma.

O discurso feito na qualidade de orador da turma pode ser apontado como a

primeira manifestação do pensamento diplomático merquioriano. Trata-se, segundo

observação de Gelson Fonseca Jr., de peça “longe do feitio analítico”, mas que “faz uma

bela, e vigorosa e retoricamente jovem, defesa da não-intervenção”127

. Além disso, há

contundente elogio ao paraninfo, apresentado como a encarnação perfeita de uma

política externa que buscava conjugar visão e razão e, por meio de uma síntese entre

essas duas disposições, alcançar a modernidade. Nas palavras de Merquior, em um

estilo algo barroco, distinto da austeridade que marcaria sua prosa na maturidade:

Vós sois, de há pouco, oficialmente, mas na realidade, de muito mais longe, o

homem de visão. Mas tendes sido louvado, sobretudo, como o homem de

razão, e é especialmente essa virtude, entre nós ainda mais escassa que a

outra, que vos tem feito tão precioso ao país. O que sustento agora é que vos

elegemos pela lúcida verificação do equilíbrio, que em vós se dá, dessas duas

disposições radicalmente essenciais ao Brasil moderno, se o Brasil moderno

quiser fazer-se e não simplesmente viver por aí.128

Eis, pois, ainda que em estado embrionário, mais uma das marcas daquilo a que

se poderia chamar pensamento diplomático maduro em José Guilherme Merquior: além

do compromisso com a razão, encontradiço já em sua crítica literária, surge a busca

irrefreável da modernidade, norte do qual o Brasil não deveria desviar-se se quisesse

desenvolver-se, realizando todas as suas potencialidades. Embora não se possa, sem

prejuízo da precisão analítica, afirmar que Merquior estabeleceu a primazia da

modernidade em relação à identidade, para utilizar a dicotomia apresentada pelo

sociólogo chileno Eduardo Devés Valdés129

como caracterizadora do pensamento

latino-americano no século XX, é significativo que, em um elogio à Política Externa

Independente, que de certo modo buscava um equilíbrio entre as duas vertentes, a

126

SINGER, André. O enigma Merquior. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Mais+. p 6. 15 jul. 2001. 127

FONSECA JR., Gelson. Introdução ao texto O problema da legitimidade em política internacional. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 33-4 128

MERQUIOR, José Guilherme. Discurso como orador da turma do Instituto Rio Branco de 1963. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 42 129

VALDÉS, Eduardo Devés. El pensamiento latinoamericano en el siglo XX: entre la modernización y

la identidad, Tomo III. Buenos Aires, Editorial Biblios, 2004.

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primeira ideia tenha sido mencionada e a segunda não. Talvez fosse a primeira

manifestação, ainda inconsciente, do “liberal neo-iluminista”130

da década de 1980.

Embora seja possível identificar traços, ainda que desarticulados, do pensamento

maduro de Merquior sobre o fenômeno internacional, seu discurso na formatura da

turma de 1963 do Instituto Rio Branco é, antes de tudo, uma elegia à Política Externa

Independente e a San Tiago Dantas. Lá está, como já dito, uma defesa da

autodeterminação, feita a partir do estabelecimento de uma conexão profunda entre a

“nova política externa” e o “ser interno do país”. Afirma Merquior:

Quanto mais se alimente da vida interna do Brasil, quanto mais nutrida e

abeberada na fonte dessa intimidade, mais será nossa política externa um

instrumento agudo de política interna, um tema eficaz para intervir com

felicidade na condução da nossa problemática. Desde Alexandre de Gusmão,

a diplomacia em que se acha envolvido o Brasil revelou-se capaz de erigir-se

em motor da unidade nacional. À consecução da unidade do território sucede

hoje, nas tarefas mais importantes do nosso comportamento diplomático, a

conquista de uma unidade social […]131

Na vontade de “conquista de uma unidade social”, vê-se o jovem esquerdista

Merquior, que, dando azo aos seus pendores filosóficos, expande a ideia de

autodeterminação dos povos apresentada no discurso do paraninfo San Tiago Dantas.

Enquanto San Tiago justifica a autodeterminação pela “compreensão de que as

modificações sociais devem reger-se por um movimento interior, endógeno, de

dentro”132

, Merquior busca ir além, ressaltando que esse movimento social orgânico a

que alude o paraninfo pode ser de dois feitios, um conservador e um progressista. O

conservador remete ao historicismo romântico, que defendia a elaboração lenta e

autônoma das formas sociais, sem o auxílio de qualquer força aceleradora de cunho

revolucionário. O progressista, defendido por Merquior, defende que “o reconhecimento

da imprescindível organicidade da evolução social não implica, absolutamente, em

hostilidade à intervenção da vontade política”133

. O Estado, pois, teria papel importante

a cumprir como agente ordenador da evolução social, e a política externa então

desenvolvida no Brasil não era senão um aspecto dessa intervenção.

130

MERQUIOR, José Guilherme. Crítica (1964-1989): ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro,

Nova Fronteira, 1990. 131

MERQUIOR, José Guilherme. Discurso como orador da turma do Instituto Rio Branco de 1963. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 40 132

Idem. p. 41 133

Ibid

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No ano seguinte à sua formatura no Instituto Rio Branco, sobrevém o golpe

militar, com forte impacto sobre a política externa brasileira e a vida cultural do país.

Merquior havia participado da organização de um já referido festival de cinema

soviético, no Rio de Janeiro; de uma exposição de fotógrafos cubanos, em Brasília; e

dado conferências no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), principal centro

difusor de ideias nacionalistas e berço intelectual da Política Externa Independente. Em

razão disso, foi objeto de um processo administrativo interno do Itamaraty, por alegadas

ligações com o antigo regime. "Ajudei a fazer a defesa dele e de Sergio Paulo

Rouanet"134

, disse o Embaixador Marcílio Marques Moreira, sobre os processos ao final

dos quais os dois jovens diplomatas acabaram absolvidos. Entre as nove perguntas que

compunham o questionário a que foi submetido Merquior no âmbito do processo, uma

tratava de conflitos ideológicos no mundo moderno, e a resposta do jovem diplomata

era sutilmente atrevida ante a ordem autoritária recém instaurada. Além disso, deixava

entrever mais um traço de seu pensamento político da maturidade, o pluralismo:

Uma das características do mundo moderno é o pluralismo. [...] É evidente

que a solução dos conflitos ideológicos mais gritantes do nosso tempo deverá

ser buscada através da prática de uma atitude em que prevaleça o espírito de

franco debate e o ânimo de solidariedade internacional.135

De todo modo, as ideias de esquerda já começavam a ser abandonadas por

Merquior, que, em algum momento dos anos seguintes, iniciará lento processo de

aproximação ao ideário liberal. Segundo Leandro Konder, em uma carta do início de

1964, Merquior “revia Lukács e aderia a Lévi-Strauss”, de quem seria aluno em Paris e

sobre cuja obra escreveria um ensaio em 1975: A estética em Lévi-Strauss. Antes de

chegar a essa obra, porém, José Guilherme Merquior ainda viveria momentos

importantes, alguns deles determinantes, na trajetória intelectual que culminará na

maturidade de sua última década.

Após atuar por três anos na Secretaria de Estado, onde trabalhou,

sucessivamente, como assistente na Divisão de Cooperação Intelectual, como Oficial de

Gabinete do Ministro de Estado e como assistente na Divisão Consular, José Guilherme

Merquior foi removido pela primeira vez para o exterior. O destino era Paris, para onde

foi levado, em 1966, por Bilac Pinto, e onde deu vazão a seus múltiplos interesses

intelectuais. Além da obra sobre Lévi-Strauss, fruto temporão, uma vez que publicado 134

MOREIRA, Marcílio Marques apud SINGER, André. O enigma Merquior. Folha de S. Paulo, São

Paulo, caderno Mais+. p.6. 15 jul. 2001. 135

MERQUIOR, José Guilherme apud ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita diplomática: a trajetória

intelectual de um liberal precoce. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Ilustríssima. p.4. 23 ago. 2015.

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anos depois da experiência que lhe deu origem, dos seminários do antropólogo

estruturalista a que assistiu durante sua temporada francesa, Merquior inicia processo de

doutoramento na Sorbonne, que concluiu quando já deixara Paris rumo a Bonn. A tese,

de certo modo a coroação de sua fase de crítico literário, é sobre a poesia de Carlos

Drummond de Andrade e foi aprovada com louvor em junho de 1972. Em carta enviada

após receber alguns capítulos da tese enviados por Merquior, o poeta itabirano cobre o

diplomata carioca de elogios, afirmando ter descoberto aspectos sobre sua própria obra

que ele mesmo antes ignorava:

Senti-me confortado, vitalizado, vivo. Meus versos saem sempre de mim

como enormes pontos de interrogação, e constituem mais uma procura do que

um resultado. Sei muito pouco de mim e duvido muito — você vai achar

graça outra vez — de minha existência. Uma palavra que venha de fora pode

trazer-me uma certeza positiva ou negativa. A sua veio com uma afirmação,

uma força de convicção que me iluminou por dentro. E também com uma

sutileza de percepção e valorização crítica diante da qual me vejo orgulhoso

de nobre orgulho e... esmagado. Eis aí, meu caro Merquior. Estou feliz, por

obra e graça de você, e ao mesmo tempo estou bloqueado na expressão dessa

felicidade.136

b. A transição: a ida para Londres, a tese de CAE e o caminho para a

maturidade liberal

João Cezar de Castro Rocha divide a trajetória intelectual de José Guilherme

Merquior em três fases. A primeira, abarcando a década de 1960, era voltada para as

preocupações de ordem estética. A segunda, compreendendo a década de 1970, é menos

analítica e mais panorâmica. A arte deixa de ser vista em sua autossuficiência e passa a

ser vista como símbolo da crise da cultura. O liberalismo passa a ser o eixo da reflexão.

A terceira fase, que se iniciou na década de 1980 e restou inconclusa com a precoce

morte do diplomata, seria uma tentativa de passar do pensamento à ação.137

Como toda

periodização, a proposta por Castro Rocha apresenta inconsistências. É possível

identificar obras que melhor se encaixariam em uma fase tendo sido publicadas no

período abarcado por outra, assim como obras que não podem ser facilmente

136

ANDRADE, Carlos Drummond de apud PEREIRA, José Mário. O fenômeno Merquior. In: SILVA,

Alberto da Costa e (org.). O Itamaraty na cultura brasileira. Brasília, FUNAG, 2002. p. 366 137

ROCHA, João Cezar de Castro apud ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita diplomática: a trajetória

intelectual de um liberal precoce. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Ilustríssima. p.4. 23 ago. 2015.

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catalogadas como de uma ou outra natureza. De todo modo, ela parece adequada em

termos gerais e confere um certo sentido à trajetória intelectual de Merquior.

Quanto ao pensamento político, ou, em sentido aplicado aos propósitos deste

trabalho, diplomático, embora seja possível notar seus primeiros traços ainda na fase de

crítico literário, é ao longo da segunda fase que ele se forja, e na terceira fase que ele se

afirma. O eixo organizador do pensamento diplomático de Merquior são, sem lugar à

dúvida, as ideias liberais, que ele cataloga, analisa e atualiza, sempre tendo presentes a

realidade internacional, a maneira como o Brasil responde às mudanças no cenário

externo e o estágio do debate público nacional. Não se pode, pois, compreender a

evolução do pensamento diplomático em José Guilherme Merquior sem compreender

sua adesão progressiva ao liberalismo.

Não há consenso sobre em que momento se dá a transição de Merquior das

ideias de esquerda da juventude para o liberalismo da maturidade. Segundo Gilberto

Vasconcellos, o turning point teria sido a intervenção soviética em Praga, na primavera

de 1968, o que teria convertido Merquior, que vivia em Paris à época, acompanhara os

eventos de perto e já se desencantava com as ideias de esquerda, em um “neoliberal

iluminista”138

. Outra versão atribui à sua ida para Londres, em 1974, a convite do amigo

e então embaixador naquele país, Roberto Campos, sua aproximação às ideias liberais.

Segundo Enrique Krauze,

como ocurrió con Montesquieu, Voltaire, Constant, Tocqueville y varios

otros espíritus franceses a través de la historia, Merquior experimentó una

profunda transformación intelectual al vivir en Inglaterra. Por un acto reflejo

de concreción intelectual, se volvió críticamente contra buena parte de su

experiencia parisina, no tanto quizá contra su maestro Lévi-Strauss, sino

contra París como capital ideológica del siglo XX.139

Outros, ainda que sem apontar quando teria ocorrido a conversão liberal,

descartam ter sido ela um produto automático de sua ida para Londres. É o que diz

André Singer, ao comentar que não foi o fato de estar em Londres e de fazer um

segundo doutoramento, dessa vez em Ciência Política, na London School of Economics,

que levaram José Guilherme Merquior ao liberalismo, o que fica claro a partir de uma

análise de sua tese e das palavras do próprio Merquior:

138

VASCONCELLOS, Gilberto. A razão da astúcia. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Mais+. p. 18.

15 jul. 2001. 139

KRAUZE, Enrique. José Guilherme Merquior: el esgrimista liberal. Vuelta, Cidade do México. p. 39.

no 182. jan. 1992.

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Atribui-se, sem razão, ao ambiente popperiano da London School, onde, sob

a orientação do sociólogo Ernest Gellner, o diplomata escreveu "Rousseau

and Weber - Two Studies in the Theory of Legitimacy" (Routledge e Kegan

Paul, 1979), a conversão liberal de Merquior. Na verdade, a tese é antes

favorável a Rousseau do que a Weber. "Em 1978, achava-me ainda

razoavelmente impregnado do utopismo de Maio, que eu vivera dez anos

antes em sua sede parisiense", escreveu Merquior, como para justificar-se da

falta de liberalismo, no prefácio à edição brasileira, publicada apenas dez

anos mais tarde. O caminho para o liberalismo foi lento, e a verdadeira

cruzada liberal de Merquior ocorrerá apenas nos anos 80.140

Seja como for, parece claro que o abandono das ideias de esquerda, que Leandro

Konder situa ainda em meados da década de 1960, é sucedido por uma lenta

aproximação das ideias liberais, que vai ganhando forma ao longo dos anos 1970 e

chega à maturidade na década de 1980. Marco importante nesse percurso,

principalmente na medida em que constitui, “talvez, a única reflexão teórica de

Merquior sobre relações internacionais”141

, é a sua tese apresentada ao I Curso de Altos

Estudos (CAE) do Ministério das Relações Exteriores. A tese, intitulada “O problema

da legitimidade em política internacional”, é o primeiro movimento de uma tríade de

reflexões sobre a questão da legitimidade empreendidas por Merquior a partir de 1978.

O segundo foi uma conferência apresentada na edição de 1979 dos Encontros

Internacionais de Brasília, promovidos pela UnB, e teve por título “A legitimidade na

perspectiva histórica”. O terceiro foi justamente a tese de doutoramento na London

School of Economics, orientada por Ernest Gellner, apresentada em 1980 e intitulada

“Rousseau and Weber: two studies in the theory of legitimacy”.

Ao passo que a segunda abordava a problemática de acordo com a perspectiva

histórica, e a terceira o fazia dentro dos parâmetros da teoria política, a primeira

investida de Merquior no estudo da legitimidade situava-se especificamente no campo

das relações internacionais.142

Embora tenha se interessado por quase todos os campos

das ciências humanas, e produzido obra que, por sua versatilidade, atravessava os

muitas vezes arbitrários limites entre as disciplinas, Merquior pouco se dedicou

especificamente às relações internacionais. Isso talvez se deva, como argumenta Gelson

Fonseca Jr., aos cuidados exigidos pelo Itamaraty, e sempre observados por Merquior, à

140

SINGER, André. O enigma Merquior. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Mais+. p.6. 15 jul. 2001. 141

FONSECA JR., Gelson. Introdução ao texto O problema da legitimidade em política internacional. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 31. 142

LAFER, Celso. José Guilherme Merquior: o problema da legitimidade em política internacional. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 10.

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hora de tratar de temas sensíveis de política internacional.143

Ou então se explique pelo

fato de que, segundo o diplomata carioca, em declaração que honra sua fama de

polemista, as relações internacionais são “território acadêmico volta e meia ocupado por

teorias que não passam de primas pobres parasíticas, porém altamente pretensiosas, da

nossa já dúbia e precária ciência política”144

.

De todo modo, é possível dizer que José Guilherme Merquior sempre se

interessou pelas relações internacionais, tanto na sua dimensão prática, com a qual se

confrontava em seu dia-a-dia como diplomata, quanto na sua dimensão teórica, como

convinha à sua já mencionada “vocação especulativa”. Raymond Aron, amigo e

paradigma intelectual de Merquior, fez da reflexão teórica sobre as relações

internacionais campo privilegiado de sua atividade intelectual.145

Isso, porém, ainda não

diz nada da qualidade da tese apresentada ao I CAE. Por que, então, se justifica a

análise dessa tese? Apenas porque constitui ela raro momento em que a reflexão de

Merquior volta-se especificamente para a problemática internacional? Ou haveria algum

valor na obra que a faz de algum modo destacar-se em meio à copiosa produção

bibliográfica do pensador em análise? A resposta a essa última pergunta é afirmativa e,

nos próximos parágrafos, buscar-se-á demonstrar por quê.

“O problema da legitimidade em política internacional” divide-se em duas

partes. A primeira, de cunho teórico, busca delinear o que Merquior define como uma

“analítica do poder”, na medida em que a definição de legitimidade proposta como

adequada à análise da política internacional condiciona, simultaneamente, uma

determinada configuração de poder. Dessa parte não constam, senão incidentalmente,

referências à especificidade do campo das relações internacionais, embora a análise seja

conduzida de modo a que se chegue a uma discussão que leve em conta certas

perspectivas do cenário internacional, mormente aquelas das chamadas potências

emergentes. Já a segunda parte procede a uma análise de caráter histórico, repassando a

evolução do cenário internacional até o ano de apresentação da tese, sempre tendo por

referência a discussão desenvolvida na primeira parte acerca dos problemas relativos à

legitimidade de políticas e mecanismos institucionais, os quais seriam, a um só tempo,

causa e consequência daquela evolução.

143

FONSECA JR., Gelson. Introdução ao texto O problema da legitimidade em política internacional. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 35. 144

MERQUIOR, José Guilherme. O problema da legitimidade em política internaiconal. In: LAFER,

Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 50. 145

LAFER, Celso. José Guilherme Merquior: o problema da legitimidade em política internacional. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 10.

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A primeira parte da tese inicia-se com uma discussão de cunho metodológico a

respeito do campo de análise das relações internacionais. Merquior diferencia os estudos

de política externa, de política internacional e de relações internacionais. O estudo da

política externa seria uma ponte entre o estudo da política interna, que cabe à ciência

política, e o da política internacional, que cabe às relações internacionais. Já a política

internacional deve ser entendida como a soma e/ou o contexto das políticas externas e

está intimamente relacionada às relações de poder estatal. Já as relações internacionais

são objeto mais amplo, compreendendo não apenas a dimensão estatal mas também a

não-estatal do fenômeno do poder, que Merquior define como elemento “crático”. “O

problema da legitimidade em política internacional”, segundo o próprio autor, tem como

áreas temáticas a política externa e a política internacional, o que se deve ao fato de a

análise se concentrar na legitimidade das ações de Estados nacionais, especificamente as

chamadas potências emergentes.

Em seguida, Merquior elenca e analisa as concepções de legitimidade. Aborda,

primeiramente, a concepção subjetivista, que equipara a legitimidade à convicção dos

súditos de que se deve obediência ao soberano, não defluindo essa convicção de

nenhum fator objetivamente verificável. Em seguida, passa à análise da concepção

objetivista, em que a legitimidade decorre da compatibilidade entre a prática do governo

e os valores da sociedade. Aponta, porém, defeitos insanáveis nas duas: a primeira

apoia-se em realidade contingente, a crença dos governados nos governantes, o que

resulta em uma concepção trivializante da legitimidade; a segunda, por sua vez, ao fazer

referência aos valores sociais como paradigma de legitimidade, carece de instrumentos

de verificação empírica da adequação entre os atos do governo e esses valores, o que

limita seu poder analítico. A alternativa proposta por Merquior é de uma segunda

modalidade de concepção objetivista, mas dessa vez de fundamento “crático”, baseada

no poder, em contraposição ao fundamento “fiduciário” das outras duas, baseadas na

confiança. Segundo essa concepção, que tem em Arthur Stinchcombe sua referência, a

legitimidade decorre da existência de uma reserva de poder, na medida em que o

respaldo a um poder só se verifica caso este tenha acesso a outros centros de poder para

se garantir.

Terminando a primeira parte da tese, Merquior analisa a aplicação da ideia de

legitimidade à política internacional. Toma como referência as teses de Araújo Castro

sobre o congelamento do poder mundial e de Celso Lafer sobre a disjunção entre ordem

e poder para indagar de uma crise de legitimidade internacional à época da publicação

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do trabalho. Conclui que a legitimidade no plano internacional se deixa analisar de

modo muito mais eficaz quando se adota sua concepção crática, a única que permite

uma avaliação em termos realistas e concretos, com ênfase na dialética entre poder e

estrutura.

A segunda parte se inicia com mais considerações metodológicas de Merquior:

dessa vez, a reflexão recai sobre o que ele chama de “o fantasma sistêmico”, em que

aponta a tendência imoderada dos teóricos das relações internacionais em tratar seu

objeto de estudo a partir de uma perspectiva sistêmica. Merquior aponta a falta de rigor

lógico, metodológico e empírico dessa abordagem, a que chama, com sua proverbial

mordacidade, de “forma particularmente virulenta de sarampo estrutural-

funcionalista”146

. Decide, no entanto, e apenas após essas ressalvas, usar a expressão

“sistema internacional” ao longo do trabalho, deixando claro que se refere apenas a um

feixe de aspectos estruturais, por oposição aos conjunturais, da cena internacional.

Passa então o diplomata carioca a analisar o fundo histórico e a estrutura política

presente do sistema internacional. Distingue, inicialmente, duas vias de investigação

dessa estrutura: a primeira teria por foco as unidades integrantes do sistema, e a

segunda, as interações entre essas unidades. Elege a segunda via como a mais adequada

e identifica na interação de tipo econômico aquela de maior relevância para a

compreensão do cenário internacional. Detecta, ao longo do segmento, três momentos

relevantes produzidos pela interação econômica: a formação e posterior expansão de

uma “world economy”, no sentido empregado por Immanuel Wallerstein, entidade

integradora sucedânea dos impérios políticos; o advento, como decorrência da formação

da “world economy”, de uma Transição industrialista, entendida como a passagem da

pobreza ao desenvolvimento, da tradição à modernidade, na medida em que a difusão

do industrialismo passa a ser entendida como o acontecimento dominante da nossa

época; e a difusão planetária de condutas atímicas, isto é, o empreendimento de esforços

industrializantes pela maior parte dos países do mundo.

É apenas no terceiro e último segmento da segunda parte que Merquior, após

haver estabelecido os parâmetros conceituais, metodológicos e históricos relevantes

para a compreensão do problema da legitimidade em política internacional, passa a uma

análise mais concreta dessa problemática no mundo do final da década de 1970.

Tomando como referencial cronológico o período que vai do fim da Segunda Guerra

Mundial até 1978, quando defende sua tese de CAE, Merquior debruça-se justamente 146

Idem. p. 64

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sobre os trinta anos gloriosos de democratização, crescimento econômico e bem-estar

social que foram a tônica do pós-guerra até as crises do petróleo. O momento em que

escreve é justamente aquele em que os pressupostos do longo período de progresso,

basicamente os relacionados à intervenção do Estado na economia, eram colocados em

questão. O liberalismo, após décadas de proscrição, voltava à ribalta do debate político-

econômico. Logo, voltaria também ao poder, primeiro com Margaret Thatcher, na Grã-

Bretanha, depois com Ronald Reagan, nos Estados Unidos.

José Guilherme Merquior, que, como visto, sempre esposara valores

identificados com o ideário liberal, mesmo quando jovem de esquerda, apreende o

Zeitgeist e faz, na sua tese de CAE, talvez a primeira exposição do “argumento”147

que

defenderia com tanto denodo até o fim da vida. Aplicando-o ao problema da

legitimidade na política internacional, Merquior afirma que décadas de prosperidade e

expansão econômica criaram o nexo entre legitimidade e eficácia, o qual poderia

resultar em crise caso se estabelecesse um desequilíbrio entre ambas. É precisamente o

que ocorre no final da década de 1970, quando os pressupostos do alto desempenho

econômico (consumismo e welfare state nas áreas ricas; forte crescimento das áreas em

desenvolvimento) são, em grande medida, suspensos, ao passo que os critérios de

legitimação, produzidos ou confirmados durante a vigência daqueles pressupostos,

permanecem em vigor. Isso teria produzido o cenário de ilegitimidade que Merquior

entrevê no mundo de então.

Ora, se a estagnação econômica tisnava a legitimidade dos países do Ocidente

desenvolvido, que buscarão no liberalismo a saída para essa crise, o faz com ainda mais

força em relação ao bloco socialista liderado pela União Soviética. Merquior fala em

uma “ilegitimação crescente do socialismo de estado”148

, a qual decorreria do seu

fracasso em termos econômicos, tanto ou mais do que da insatisfação com os aspectos

repressivos do comunismo. Se os países do Ocidente não tiravam maior proveito dessa

situação, atraindo os países em desenvolvimento que buscavam manter certa

neutralidade entre os blocos que então se opunham no cenário internacional, era porque

sofriam de dois outros fatores de ilegitimidade: o hiato tecnológico que havia entre eles

e os países em desenvolvimento, cuja expressão mais visível era o oligopólio nuclear,

embora não fosse a única; e o neoprotecionismo a que recorreram como resposta às

147

MERQUIOR, José Guilherme. O argumento liberal. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983. 148

MERQUIOR, José Guilherme. O problema da legitimidade em política internaiconal. In: LAFER,

Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 72.

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crises do petróleo, uma resposta míope que ignorava o fato fundamental da

interdependência na “world economy” capitalista. De todo modo, e citando seu

orientador Ernest Gellner, o espírito da época apontava para a passagem “do mito da

revolução ao desejo de liberalização”149

.

Pode-se dizer que a tese de CAE – que, cabe ressaltar, Merquior não precisaria

ter apresentado, na medida em que o curso só se converteria em requisito de ascensão

funcional cinco anos após sua criação, mas que defendeu espontaneamente como

resposta a um desafio intelectual e como “oportunidade de afiar instrumentos para

criações maiores”150

– foi a primeira expressão da maturidade liberal de Merquior.

Cumpriu o papel, como afirmou Celso Lafer, de ponte na travessia das letras para a

política.151

Deve-se, contudo, dar feições mais claras à maneira muito própria como o

diplomata carioca esposava o liberalismo. João Cezar de Castro Rocha assim define o

credo liberal de Merquior: “democracia como valor universal; racionalismo como

estrutura de pensamento; pluralismo como método intelectual; economia de mercado,

porém com a presença do Estado como força de equilíbrio das desigualdades”152

. Como

se verifica pela leitura deste trabalho, são todas ideias que já haviam sido apresentadas

por Merquior ao longo de sua trajetória intelectual, mas que encontram em seu

liberalismo maduro o veículo por meio do qual podem expressar-se de maneira

coerente.

c. A maturidade: as intervenções no debate público, a “diplomacia da

inteligência” e a “chegada ao poder” com Collor

O Merquior da maturidade liberal é também o Merquior do gosto pela polêmica.

Traço pouco associado à têmpera de um diplomata, o polemismo foi, segundo José

Mário Pereira, o fruto do amor de Merquior pelo debate de ideias, que os meios de

comunicação modulavam a seu gosto para fins publicitários. O resultado foram embates

célebres com figuras da academia, da imprensa e da cultura brasileira em geral. Sobre

Marilena Chauí, Merquior notou que, em seu livro Cultura e democracia, a professora

149

Idem. p. 73 150

FONSECA JR., Gelson. Introdução ao texto O problema da legitimidade em política internacional. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 31. 151

LAFER, Celso. José Guilherme Merquior: o problema da legitimidade em política internacional. In:

LAFER, Celso et al. José Guilherme Merquior, diplomata. Brasília, FUNAG, 1993. p. 10. 152

ROCHA, João Cezar de Castro apud ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita diplomática: a trajetória

intelectual de um liberal precoce. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno Ilustríssima. p.4. 23 ago. 2015

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de filosofia da USP praticamente transcrevia trechos inteiros da obra de Claude Lefort,

sem as devidas aspas. Sem poder negar o fato, Chauí disse que a proximidade entre ela e

o professor francês, de quem fora aluna, fez com que as ideias de ambos houvessem

nascido praticamente juntas, para em seguida atacar Merquior com a pecha de direitista.

Com Eduardo Mascarenhas, psicanalista carioca, Merquior manteve uma longa

discussão, nas páginas do Jornal do Brasil, sobre a validade científica e epistemológica

da psicanálise, a qual considerava, ao lado do marxismo e da arte de vanguarda, uma

forma de rejeição à racionalidade iluminista, à modernidade e ao progresso científico.153

Mas em que medida isso interessa para a revelação do pensamento diplomático

de Merquior? Interessa na medida em que, em Merquior, o pensamento diplomático,

como já assinalado na introdução, não é senão um momento de um pensamento mais

amplo sobre a política, a economia e a cultura. Em sua maturidade, os objetivos desse

pensamento podem ser resumidos em dois temas fundamentais, como aponta Marcos

Vinícios de Araújo Vieira: “a crítica às perspectivas niilistas da história moderna –

identificadas com o neo-estruturalismo de Michel Foucault e com o marxismo ocidental

de Theodor Adorno – e a defesa do liberalismo social”154. De certo modo, esses dois

objetivos podem ser entendidos como as duas facetas do Merquior da terceira fase, que

passa da contemplação intelectual à intervenção decidida no debate público: o do

pensamento “contra” e o do pensamento “a favor”155

.

Sobre a primeira faceta, trata-se do combate sem trégua que Merquior faz ao

que chamava de “cidadelas do irracionalismo”, ou, como coloca André Singer, “uma

certa cultura de esquerda que ele qualificava de romântica e atrasada”156

. São dessa

natureza obras como Michel Foucault, ou o niilismo de cátedra, de 1985, e O marxismo

ocidental, de 1987, além da já citada, e extemporânea, uma vez que publicada em 1969,

153

No prefácio de As ideias e as formas, Merquior chega a indagar-se se era possível “atacar o marxismo,

a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética”,

concluindo afirmativamente. Segundo Sérgio Paulo Rouanet, a resposta traçava seu roteiro intelectual,

pois “o que Merquior estava nos dizendo, em síntese, é que seu pensamento era vertebrado por três linhas

de força, uma reflexão sobre a política, sobre o homem e sobre a arte; que, nessa reflexão, o autor tomava

partido do progresso e da modernidade; e que, nessa tomada de partido, ele rejeitava o marxismo, o

freudismo e o formalismo estético”. ROUANET, Sérgio Paulo. Um roteiro intelectual. Folha de S. Paulo,

São Paulo, caderno Mais+. p.12. 15 jul. 2001. 154

VIEIRA, Marcos Vinicios de Araújo. José Guilherme Merquior: um diplomata de 900 anos.

JUCA:diplomacia e humanidade, ano 5, p. 9. 2011. 155

TRIGO, Luciano. Merquior, um mestre na defesa e no ataque. O Globo, Rio de Janeiro, p. 6-7. 13 jan.

1991. 156

SINGER, André. O enigma Merquior. Folha de São Paulo, São Paulo, caderno Mais+. p.6. 15 jul.

2001.

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Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Sobre as duas primeiras obras, disse

Marcos Vinicios de Araújo Vieira:

Acerca de Foucault, Merquior publicou uma obra em que critica tanto o

irracionalismo do filósofo francês, na medida em que não partilha a crença no

papel emancipatório da razão iluminista, quanto seu neo-anarquismo,

decorrente da absoluta descrença nas instituições. No que concerne ao

marxismo ocidental, tradição de pensamento à qual se filiam Adorno e

Marcuse, o diplomata brasileiro não poupou críticas ao pessimismo

epistemológico em relação à modernidade. Com perspicácia, argumenta que,

ao contrário de Karl Marx, um herdeiro do iluminismo e entusiasta do

progresso, os frankfurtianos se esmeraram no combate à cultura moderna,

ignorando seus aspectos emancipatórios e os avanços no campo da

liberdade.157

A segunda faceta, a do pensamento “a favor”, corresponde à transição de

Merquior da “consciência liberal” para a “pregação liberal”, como definiu Roberto

Campos158

, e consistiu na compilação, exposição e análise das ideias liberais.

Enquadram-se nesse contexto obras como A natureza do processo, de 1982, O

argumento liberal, de 1983, e Liberalismo: antigo e moderno, de 1991. O liberalismo

proposto por Merquior não se confunde com a versão caricatural, deliberadamente

construída para propósitos de luta política, apresentada por seus adversários. Não se

trata, portanto, de um conjunto de ideias do qual não faz parte a dimensão social que o

Estado, sobretudo em um país profundamente desigual como o Brasil, deve

necessariamente assumir. Na definição dada por Merquior em entrevista a José Mário

Pereira, publicada no jornal Última Hora, em 13 de novembro de 1982,

o liberalismo moderno é um social-liberalismo, é um liberalismo que não tem

mais aquela ingenuidade, aquela inocência diante da complexidade do

fenômeno social, e em particular do chamado problema social, que o

liberalismo clássico tinha. O liberalismo moderno não possui complexos

frente à questão social, que ele assume. É a essa visão do liberalismo que eu

me filio.159

Enquanto assumia uma postura mais ativa no debate nacional de ideias, a

carreira diplomática seguia seu curso, levando Merquior, em 1979, após o profícuo

período em Londres, à embaixada em Montevidéu. Na capital uruguaia, onde atuou

157

VIEIRA, Marcos Vinicios de Araújo. José Guilherme Merquior: um diplomata de 900 anos.

JUCA:diplomacia e humanidade, ano 5, p. 9. 2011. 158

CAMPOS, Roberto. Réquiem para um liberal. O Globo, Rio de Janeiro, p. 7. 13 jan. 1991. 159

MERQUIOR, José Guilherme apud PEREIRA, José Mário. O fenômeno Merquior. In: SILVA,

Alberto da Costa e (org.). O Itamaraty na cultura brasileira. Brasília, FUNAG, 2002. p. 367.

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como conselheiro, Merquior ressentia-se do isolamento e da falta da família, que

permanecera em Londres em razão do estudo dos filhos, mas teve seu interesse

despertado pela história do país, em especial pela figura de José Battle, presidente

reformista do início do século XX por quem desenvolveu grande empatia ideológica.

Após a temporada uruguaia, em 1981, Merquior é convidado a trabalhar como assessor

no gabinete do ministro da Casa Civil do governo de João Figueiredo, Leitão de Abreu,

fato que abriu o flanco para que prosperassem ataques de seus adversários no debate

público, que, muitas vezes sem ter como contestar com argumentos as críticas de

Merquior, o acusavam de ser uma espécie de intelectual da ditadura.

Se é verdade que o isolamento deste ou daquele aspecto do pensamento de

Merquior tem sempre algo de artificioso, dada a articulação notavelmente orgânica de

sua multiplicidade de interesses e o amálgama entre sua vida intelectual e sua vida

diplomática, não é impossível identificar uma vertente propriamente diplomática no

social-liberalismo de sua maturidade. Pensamento diplomático no sentido mais

generoso do termo, isto é, considerado não na dimensão tópica das premências de uma

agenda internacional, mas na concepção ampla de um modo de estar no mundo:

organização interna, posicionamento externo e interação internacional. Em artigo escrito

na Folha de São Paulo, em 10 de março de 1985, Merquior apresenta como que um

projeto de país, para um Brasil que se redemocratizava e tinha diante de si múltiplas

possibilidades.

Com um otimismo algo exagerado visto de hoje, mas plenamente justificado

ante a magnitude histórica do encerramento de mais de vinte anos de autoritarismo,

Merquior começa assinalando o quanto o Brasil desmentia, até aquele momento, os

estereótipos renitentemente associados à América Latina: não tínhamos uma demografia

explosiva; nosso grau de violência política era consideravelmente menor do que nos

vizinhos; e estávamos plenamente satisfeitos com nossa identidade cultural. Apesar

disso, não convinha uma atitude autocomplacente, devendo o Brasil, na oportunidade

histórica que se oferecia, atacar suas carências mais salientes: as das condutas do

Estado, dos governantes e dos cidadãos.

Quanto ao Estado, Merquior afirma que ele é, a um só tempo, opressivo e

omisso, pois promovia sufocante grau de controle e praticava ações de baixo grau de

efetividade. Caberia à democracia rediviva a superação desse estado de coisas, sempre

considerando a necessidade premente de integração social em um país vincado por

grandes desigualdades, na conjugação do “renascimento da política com uma inadiável

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prioridade ao social”160

. A carência de conduta dos governantes foi associada por

Merquior ao baixo nível de institucionalização do país e ao alto grau da demanda por

atitudes salvacionistas. Era necessário que se instaurasse “de uma vez por todas a

mentalidade adequada ao governo da lei e não à libido ‘dominandi’ de salvadores

autodesignados”161

. Já quanto à carência da conduta dos cidadãos, Merquior a atribui à

degenaração do individualismo do homem moderno, em si um traço positivo, em

egoísmo predatório, estando sua superação no enraizamento dos valores sociais

promovidos pela prática da democracia.

Merquior diz também que o modelo de sociedade encampado pela ordem

política que então se instaurava era pautado pelo pluralismo político e pela economia de

mercado. Após anos de um regime que conjugava autoritarismo político e controle

econômico, os novos tempos, no Brasil e no mundo, pareciam anunciar um modelo em

tudo contrário ao que vinha vigorando havia mais de duas décadas no país, com

resultados funestos tanto na política, com o “entulho autoritário”, quanto na economia,

com a década perdida de 1980. Cumpria, porém, regular de maneira adequada essa

relação, pois a economia de mercado, embora condição necessária, não era suficiente

para garantir o pluralismo político, o qual dependeria do pronto estabelecimento das

“regras do jogo” que o “constitucionalismo inerente às sociedade liberais” acaba por

produzir. Uma nova constituição, democrática e pluralista, seria promulgada três anos

depois.

Como encerramento do artigo, Merquior retorna ao tema do Estado, pois

identificava no Brasil de então dois impulsos contrários que minavam sua autoridade:

“a estadolatria autoritária (nada mais nocivo à autoridade que o autoritarismo) e essa

indiscrimida estadofobia que serve, paradoxalmente, de denominador comum ao

irrealismo da nova direita e à irresponsabilidade da esquerda neo-anarquista”162

. E,

elogiando o presidente-eleito Tancredo Neves, dá os últimos retoques na primeira

versão de um projeto social-liberal para o novo Brasil democrático, que combinava

democracia, ação social, economia de mercado, pluralismo e abertura ao mundo, e que

“será tudo menos, no essencial, uma simples restauração da instável democracia liberal-

populista derrubada em 64”163

:

160

MERQUIOR, José Guilherme. Nova República: o horizonte social-liberal. Folha de S. Paulo, São

Paulo, caderno Folhetim. p.3. 10 mar. 1985. 161

Idem 162

Ibidem 163

Ibidem

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Graças a seu senso histórico-filosófico do papel do Estado, Tancredo

regenera a noção da autoridade legítima entre nós. Daí a tranqüila, suave

impressão que cerca, nesse homem proverbialmente afável, o sentido no

entanto vivíssimo da autoridade. […] No discurso de Vitória, Tancredo

preconizou o reforço da democracia e a reanimação do princípio federal. O

poder, na Nova República, admite, deseja desconcentrar-se. E pode fazê-lo,

porque o que perder em concentração será ganho em autoridade. No ciclo

atribulado da nossa Quarta República, Juscelino nos ensinou o convívio com

o desenvolvimento. A grande, sóbria esperança da Nova República é que

com Tancredo, nosso príncipe civil, a nação interiorize de vez a vivência da

democracia. Qualquer coisa aquém disso seria indigna do Brasil moderno.164

Promovido a Ministro de Primeira Classe com apenas 44 anos, em dezembro de

1986, é designado, no ano seguinte, embaixador do Brasil na Cidade do México.

Naquele país, exercerá com máxima intensidade, agora na condição de chefe de posto,

vertente da diplomacia que desde cedo soube cultivar, a qual o Embaixador Jerônimo

Moscardo denominou, como que sob medida para Merquior, “diplomacia da

inteligência”. Trata-se da atividade diplomática que se desenvolve no contato direto

com a intelligentsia do país em que se serve, o que permite não apenas o intercâmbio

cultural em seu sentido mais estrito, mas também o acercamento prazeroso promovido

pelo debate de ideias. O momento era propício para as ideias liberais também no

México, atingido naquele momento pelas tribulações da crise da dívida, uma

decorrência dos desequilíbrios fiscais da industrialização por substituição de

importações.

Sem descurar dos aspectos concretos de suas obrigações profissionais, de que é

exemplo o enorme esforço feito para comprar e reformar o imóvel que hoje serve de

sede da embaixada do Brasil no México, Merquior promoveu o nome do Brasil

principalmente por ações como a criação da cátedra Guimarães Rosa na Universidad

Nacional Autónoma de México, marco das relações culturais bilaterais, ou pelas

conversas com intelectuais do quilate de Octavio Paz, prêmio Nobel de literatura e

também diplomata, em cuja revista Vuelta assinou diversos artigos. Segundo Enrique

Krauze, a maior contribuição de Merquior à diplomacia brasileira no México

no ocurrió en los pasillos de las cancillerías o a través de informes y télex,

sino en la tertulia de su casa, com gente de cultura de este país. […] La

embajada de Brasil se volvió lugar de reunión para grupos diversos y aun

encontrados de nuestra vida literaria. Allí, por momentos, se olvidaban las

164

Ibidem

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186

pequeñas y grandes mezquindades y se hablaba de libros e ideas, y de libros

de ideas. Merquior invitaba a tirio y troyanos, escribía en nuestras revistas y

procuraba ligarnos con publicaciones homólogas en su Brasil. Practicaba un

cierto ecumenismo intelectual.165

O desejo de Merquior de influenciar os rumos do Brasil encontrou sua melhor

oportunidade quando, antes e depois de eleito Presidente da República, Fernando Collor

de Mello lhe telefonou “para colher ideias sobre a modernidade”166

. Naquele fim de

1989, Merquior estava em Paris, onde, desde agosto daquele ano, ocupava o posto de

chefe da representação brasileira junto à UNESCO. Tornou-se amigo e conselheiro de

Collor, chegando a ser cogitado para o cargo de Ministro das Relações Exteriores,

embora, afinal, tenha sido convidado apenas para a então inexpressiva Secretaria de

Cultura, cargo que recusou. De todo modo, seguiria colaborando com o presidente,

escrevendo para ele seu discurso de posse e o programa de um partido político social-

liberal que Collor manifestara a intenção de criar nos anos seguintes, embora jamais o

tenha feito.

O discurso de posse, definido por Roberto Campos como a “melhor fala

presidencial do Brasil recente”167

, estruturava-se em seis eixos: democracia e cidadania;

a inflação como inimigo maior; a reforma do Estado e a modernização econômica; a

preocupação ecológica; e, finalmente, a posição do Brasil no mundo contemporâneo.

Trata-se de um discurso claramente merquioriano, social-liberal, que repisava, agora

não mais como mera divulgação de ideias, mas como programa de ação governamental,

aspectos do pensamento que Merquior vinha desenvolvendo sobre o Brasil havia pelo

menos uma década. Embora todo o discurso seja uma exposição do pensamento

diplomático de Merquior, no sentido amplo que lhe atribuímos anteriormente, convém

que nos detenhamos em sua última seção, intitulada “a posição do Brasil no mundo

contemporâneo”, especificamente voltada para as relações internacionais do país.

Como que a referendar a tese apresentada neste trabalho de que o pensamento

diplomático de Merquior não pode ser separado, sem grave prejuízo de entendimento,

do seu pensamento sobre a política, a economia e a cultura em sentido mais amplo, a

última seção é a mais longa das seis, ocupando sete páginas de um discurso de quinze, e

165

KRAUZE, Enrique. José Guilherme Merquior: el esgrimista liberal. Vuelta, Cidade do México. p. 39.

no 182. jan. 1992.

166 MERQUIOR, José Guilherme apud CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa. Rio de Janeiro,

Topbooks, 1994. p. 1230. 167

Idem

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em grande medida sintetiza o projeto de país que se apresentava já no título do discurso:

“O Brasil aberto ao mundo”.

A seção se inicia com um breve panorama das grandes transformações que o

mundo atravessava naquele 15 de março de 1990 em que Collor tomou posse. A Guerra

Fria se encerrava e, com ela, a bipolaridade que caracterizara as relações internacionais

nos quarenta e cinco anos anteriores. “Repensam-se alianças. Cancelam-se

alinhamentos. Enquanto isso, novas áreas preparam-se para adotar as leis da economia

de mercado, com democracia, respeito aos direitos humanos e cultura da liberadade, que

são hoje tendências universais”168

. Além disso, faz-se menção à formação de novos

espaços econômicos, novas configurações às quais o Brasil deveria adaptar-se por meio

da ampliação de sua competitividade.

Vinculando democracia e política externa, Collor diz que a ação exterior do

Brasil deve buscar atender à vontade popular, que se expressara meses antes por meio

do voto e cujo desejo era a modernização do Brasil. Eis a modernidade, velho norte de

Merquior, alçada a eixo da ação externa brasileira. Esse desejo de modernização,

portanto, deveria traduzir-se em ativa participação do Brasil nas grandes decisões

internacionais, “não por pretensão de hegemonia ou por vontade de poder, que a

tradição brasileira repele. Mas porque, hoje, a interdependência exige que todo ato de

governo seja uma permanente combinação de variáveis internas e externas”169

.

O toque social do social-liberalismo merquioriano viria a seguir, após

apreciações sobre a paz que, vistas de hoje, soam ingênuas, mas faziam sentido no

imediato pós-Guerra Fria. Para alicerçar “um momento raro na história da humanidade,

em que se prenuncia a efetiva construção da paz e da segurança”, seria necessário um

esforço coletivo de redução das desigualdades no planeta, pois a miséria e a estagnação

são fatores de potencial perturbação de uma ordem pacífica. Ademais, “os anseios de

justiça, no plano nacional, devem ter contrapartida na ação da política externa”170

.

Em seguida, o cerne do discurso: a necessidade de integrar-se ao mundo. Cabe

citar integralmente este trecho, de modo a realçar suas sutilezas e não sonegar

informações involuntariamente:

Queremos integração, crescente e competitiva. A diplomacia atuará, de forma

intensa, no plano bilateral e coletivo, buscando a cada momento formas

168

COLLOR, Fernando. O Brasil aberto ao mundo:discurso de posse na Presidência da República.

Brasília, Senado Federal, 2008. p. 12 169

Idem. p. 13 170

Ibidem

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novas de cooperação, seja no campo da economia, seja em ciência e

tecnologia, seja no diálogo político. O momento é único na história do País e

do mundo, e o papel da ação diplomática é estratégico para aproximar a

nação dos tempos novos em que vivemos. A impressionante dinâmica das

mudanças ora em curso no cenário internacional torna mais grave o risco de

cairmos numa situação de confinamento e marginalização. A esse espectro

devemos contrapor a clareza de nosso projeto e de nosso desempenho. É

imperioso abdicar do discurso estéril e irrealista, do pseudonacionalismo que

induz ao isolamento, da desconfiança, da ilusão míope de auto-suficiência.

Temos, ao contrário, que demonstrar com fatos o potencial e a pujança do

Brasil. É preciso que o mundo se convença da necessidade de abrir as portas

ao Brasil, e que possamos acreditar na conveniência de nos abrirmos ao

mundo.

Seguem apreciações relativas aos parceiros do Brasil, considerados

individualmente ou em bloco, sempre com ênfase nas oportunidades de cooperação

econômica e tecnológica e no diálogo político como meio de construção de consensos.

Assim, a menção a América Latina, Estados Unidos, Europa, Japão, África e Oriente

Médio demonstra que, se a ordem era integrar-se ao mundo, o universalismo, que foi se

consolidando na política exterior do Brasil desde a Política Externa Independente, seria

instrumental para a consecução desse objetivo. Chamam a atenção as relativamente

minuciosas referências ao Leste Europeu, que se democratizava e abria perspectivas de

uma nova inserção internacional, livre das amarras que o prendiam ao bloco soviético, e

à emergência da Ásia e do Pacífico, especialmente de Índia e China, gigantes

demográficos e territoriais que prometiam afirmar-se como grandes players globais no

no século XXI, como de fato tem ocorrido.

A palavra de ordem do meu governo, no plano internacional, é só uma: o

Brasil não aceita ficar a reboque do processo de transformação mundial. O

único caminho apontado pelo interesse nacional é a integração gradual, mas

constante e segura, a plenitude do processo econômico. Essa é a realidade dos

países mais desenvolvidos do planeta. Essa é a real vocação do Brasil.171

O fechamento do discurso de posse de Fernando Collor, citado acima, foi de

certa maneira o resumo das ideias de Merquior sobre o Brasil, sobre sua vocação como

nação e sobre o modo como deveria projetar-se no cenário internacional. Um resumo de

seu pensamento diplomático, enfim. A aproximação com Collor, tão criticada mesmo

171

Ibidem. p. 17

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por grandes amigos172

, foi resultado do desejo genuíno de intervir mais diretamente nos

rumos do país. “Certa vez, ele me disse que havia se preparado intelectual e

culturalmente para dar o pulo na política, tal como o fizera, décadas antes, San Tiago

Dantas"173

, disse Paulo Mercadante. Rubens Ricupero corrobora a tese, afirmando que

“seu desejo era coroar uma brilhante carreira de crítico e pensador com uma atividade

renovadora na política interna e externa do país, unificando pensamento e ação. Faltou-

lhe, infelizmente, tempo”174

. Menos de um ano após a posse de Collor, em 7 de janeiro

de 1991, Merquior morre nos Estados Unidos, vitimado por um devastador câncer no

intestino, diagnosticado apenas quatro meses antes. Tinha 49 anos.

Conclusão

A breve vida de José Guilherme Merquior foi marcada por algumas importantes

transições. Da crítica literária para a teoria política. Das ideias de esquerda para o

liberalismo. Essas transições, porém, nunca implicaram ruptura. Talvez pela formação

diplomática, na qual a conciliação é uma virtude a ser sempre cultivada, Merquior

nunca descartou os aspectos que considerava válidos nos interesses que ia superando.

Assim, nunca abandonou a literatura, paixão que manteve viva mesmo quando eram as

reflexões políticas que o absorviam. Do mesmo modo, embora tenha abandonado o

esquerdismo da juventude, soube incorporar a preocupação social à versão do

liberalismo que passou a esposar na maturidade.

A formação do pensamento diplomático de Merquior, portanto, é uma história

muito mais de síntese gradual de experiências acumuladas, pessoais, profissionais e

intelectuais, do que de guinadas bruscas dadas em direção a essa ou aquela posição. É

notável como suas ideias sempre estiveram de acordo com as demandas do tempo em

que vivia, embora nem sempre essas demandas fossem percebidas como tal por aqueles

em posição de poder. Isso denota compromisso com a racionalidade, honestidade

172

Marcos Azambuja, em entrevista à Folha de S. Paulo, disse que Merquior fizera uma “uma avaliação

errada daquele momento. Acreditava que o Brasil tinha maturidade para encontrar o caminho racional.

Ele achava que o Collor era o que parecia ser, o jovem político idealista, e não viu o que era na realidade,

o velho político de Alagoas.” AZAMBUJA, Marcos apud ALMEIDA, Marco Rodrigo. A direita

diplomática: a trajetória intelectual de um liberal precoce. Folha de S. Paulo, São Paulo, caderno

Ilustríssima. p.4. 23 ago. 2015. 173

MERCADANTE, Paulo apud SINGER, André. O enigma Merquior. Folha de São Paulo, São Paulo,

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intelectual e ausência de dogmatismo. Esperamos ter dado contribuição para que seu

pensamento, em geral, e sua vertente diplomática, em particular, possam ser mais

conhecidos.

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