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Teoris das nulidades
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UIVERSIDADE FEDERAL DO PARA UFPR
SETOR DE CICIAS JURDICAS
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO
RICARDO JACOBSE GLOECKER
UMA OVA TEORIA DAS ULIDADES: PROCESSO PEAL E
ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL
CURITIBA
2010
UIVERSIDADE FEDERAL DO PARA UFPR
SETOR DE CICIAS JURDICAS
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO
RICARDO JACOBSE GLOECKER
UMA OVA TEORIA DAS ULIDADES: PROCESSO PEAL E
ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran, Como requisito parcial obteno do ttulo de doutor.
Curso de Doutorado em Direito do Estado
CURITIBA
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN UFPR
SETOR DE CINCIAS JURDICAS
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO DOUTORADO
RICARDO JACOBSEN GLOECKNER
UMA NOVA TEORIA DAS NULIDADES: PROCESSO PENAL E
INSTRUMENTALIDADE CONSTITUCIONAL
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran, Como requisito parcial obteno do ttulo de doutor.
Orientador: Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Dr Clara Roman Borges
1 Arguidor
Dr. Luis Antonio Cmara
2 Arguidor
Dr. Aury Lopes Jnior
3 Arguidor
Dr. Fauzi Hassan Choukr
4 Arguidor
CURITIBA
2010
Dedico este trabalho a Joseane
cuja indemonstrabilidade de
minha gratido no pode ser
expressa seno na fractalidade
das palavras. Para alm e
atravs delas, todo meu amor,
como se fora a nica dimenso
do real...
Esta investigao seria insustentvel sem uma pessoa que a tornou possvel: Joseane, pelo
amor e acima de tudo compreenso, que fazem de cada palavra por mim tecida uma
declarao de amor! Obrigado por tudo!
Me, pelo incentivo e a quem devo minha formao!
Obrigado Ninha, pela costumeira e no menos importante responsabilidade pelo meu
ingresso na seara acadmica, cujo trabalho um pequeno continuar...
Obrigado Leandro, pela contnua e fraternal ajuda!
Agradeo ao professor Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, a quem sou
profundamente devedor. A importncia do professor para o aluno servir como a
Referncia e manter-se assim, para que possam vir a ser... por isso seus alunos jamais
deixam de ser alunos... somente assim possvel continuar...
Agradeo ao prof. Dr. Aury Lopes Jnior quem, pacientemente, contribuiu para o
desenvolvimento da pesquisa. Como em outro lugar j escrevi s um verdadeiro
processualista, cuja seriedade em suas atividades inquestionvel. Se por um lado aprendi
algo de processo penal ainda no Mestrado da PUC/RS em meio s orientaes, no menos
verdade que diariamente levo adiante o principal legado daqueles tempos: o de que
devemos constantemente aprender a desaprender...Obrigado pela valiosas lies e pela
confiana imerecida!
Minha gratido ao colega de longa data Jeferson Dutra, por ser um grande companheiro e
amigo, pessoa da mais digna considerao!
Minha profunda estima ao amigo e colega Augusto Jobim do Amaral, sem o qual seria
impossvel em sua substancialidade, a pesquisa. Meus sinceros agradecimentos.
Ao amigo Marco Antnio de Abreu Scapini, meus profundos agradecimentos pela amizade
inabalvel.
Aos colegas e amigos de doutorado, em especial Maurcio Dieter e Rafael Zanlorenzi, cujas
valiosas lies soube guard-las.
Ao amigo Rodrigo Moretto, pessoa de extrema generosidade e honestidade!
Finalmente, meus agradecimentos aos colegas da Faculdade de Direito do IPA, alunos e
todas aquelas pessoas que fazem parte diretamente deste trabalho, meus sinceros
agradecimentos.
E eu estudei Direito, pois. Isso significou que
nos poucos meses antes das provas, com rgio
prejuzo dos nervos, eu alimentava o esprito
literalmente de serragem, que alm do mais j
tinha sido mastigada por mil bocas antes de
mim (KAFKA, Franz. Carta ao Pai).
Antes no saber nada do que saber muitas
coisas pela metade! Antes ser louco por seu
prprio critrio, que sbio segundo a opinio
dos outros! (IETZSCHE, Friedrich. Assim
Falou Zaratustra)
El pienso, luego soy cartesiano queda
invalidado; decir pienso es postular el yo, es
una peticin de principio (BORGES, Jorge
Luis. ueva Refutacin del Tiempo. In Otras
Inquisiciones)
RESUMO
A presente investigao pretende apresentar a teoria da invalidade no processo penal. A
anlise do processo penal no Brasil comea com o desenvolvimento do que foi chamado
de instrumentalidade constitucional do processo penal. Em palavras simples, isso
significa que o processo penal necessita ter sua fundao na preservao dos direitos
fundamentais do acusado. Alm disso, a fim de colocar o processo penal a servio dos
direitos fundamentais, a reviso da teoria da invalidade precisa ocorrer. O sistema
inquisitorial necessita de uma ilegalidade gentica para permitir a sua melhor
funcionalidade. Esta ilegalidade uma das principais estruturas da teoria da invalidade
no processo penal, permitindo uma relao entre o processo e a verdade. Ento, como
uma conseqncia da mudana democrtica no Brasil, o processo penal precisa operar
com uma nova teoria dos atos irregulares. Uma nova fundao da teoria das invalidades,
baseada desde os direitos fundamentais, gerando uma nova espcie de princpios o
principal objetivo do estudo.
Palavras-chave: processo penal; teoria da invalidade; direitos fundamentais.
ABSTRACT
The present investigation intends to present the invalidity theory on criminal procedure.
The analysis of the criminal procedure in Brazil starts with the development of what
was called constitutional instrumentality of the criminal procedure. In simple words, it
means that criminal procedure needs to have its foundation in the preservation of the
fundamental rights of the accused. Besides, in order to put the criminal procedure in
service of the fundamental rights, the revision of the invalidity theory in criminal
procedure needs to occur. The inquisitorial system needs a genetic illegality to permit
his best functionality. This illegality is a major structure in the invalidity theory in
criminal procedure, allowing a relationship between process and the truth. So, as a
consequence of the democratic change in Brazil, the criminal procedure needs to
operate with a new theory of the irregular acts. A new foundation of the invalidity
theory based upon the fundamental rights of the accused, generating a new kind of
principles is the mean goal of the study.
Key Words: criminal procedure; invalidity theory; fundamental rights.
RESUME
La presente investigacin pretende presentar la teora de la invalidad en el proceso
penal. El anlisis en el proceso penal en Brasil empieza con el desenvolvimiento de lo
que fue llamado instrumentalidad constitucional del proceso penal. En palabras simples,
eso significa que el proceso penal necesita tener su fundacin en la preservacin de los
derechos fundamentales de lo acusado. Adems de eso, para colocar el proceso penal a
servicio de los derechos fundamentales, la revisin de la teora de la invalidad precisa
ocurrir. El sistema inquisitorial necesita de una ilegalidad gentica para permitir su
mejor funcionalidad. Esta ilegalidad es una de las principales estructuras de la teora de
la invalidad en el proceso penal, permitiendo una relacin entre proceso y verdad.
Entonces, como una consecuencia del cambio democrtico en Brasil, el proceso penal
precisa operar con una nueva teora de los actos irregulares. Una nueva fundacin de la
teora de la invalidad, basada desde los derechos fundamentales, generando una nueva
especie de principios es el principal objetivo del estudio.
Palabras-clave: proceso penal; teora de la invalidad; derechos fundamentales.
SUMRIO
ITRODUO.......................................................................................................01
1. PROCESSO PEAL E DIREITOS FUDAMETAIS: ITRODUO ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL DO PROCESSO PEAL...08
1.1 Processo e Instrumentalidade: identificao preliminar da temtica de estudo........08
1.2 A Particular Instrumentalidade do Processo Penal...................................................16
1.3 A Natureza Jurdica do Processo Penal (?) Reviso de Algumas Premissas
Fundamentais............................................................................................................34
1.3.1 O Processo Como Contrato e Quase-Contrato....................................................38
1.3.2 Bulow e o Processo Como Relao Jurdica: a aplicabilidade civilstica do
conceito...............................................................................................................42
1.3.3 Goldschmidt e a Situao Jurdica: incorporando a complexidade ao processo
penal refutao de conceitos civilsticos e assuno de uma teoria do processo
penal....................................................................................................................52
1.3.3.1 As Crticas a Goldschmidt..................................................................................63
1.3.3.1.1 Rosenberg e a Ruptura da Unidade Processual.............................................64
1.3.3.1.2 Satta e a Patologia Processual.......................................................................66
1.3.3.1.3 As Crticas de Jaime Guasp e Pedro Aragoneses .........................................67
1.3.3.1.4 As Crticas de Rosemiro Pereira Leal...........................................................70
1.3.3.1.5 As Crticas de Francesco Invrea...................................................................71
1.3.3.1.6 Calamandrei e as Crticas a Goldschmidt.....................................................73
1.3.3.1.7 As Crticas de Liebman.................................................................................77
1.3.3.2 Goldschmidt, Um Maestro do Liberalismo Processual.......................................81
1.3.3.2.1 Carga e Processo Penal.................................................................................84
1.3.4 Couture, Guasp, Fairen Guilln - o Processo como Instituio: da insuficincia
do conceito de instituio para abarcar a complexidade das formas
processuais..........................................................................................................88
1.3.5 Fazzalari e o Processo Como Procedimento em Contraditrio..........................98
1.4 A Relao Entre O Sistema Acusatrio e a Forma Processual: ou da norma
forma.......................................................................................................................108
1.5 O Processo Penal e os Sistemas Processuais...........................................................118
1.6 Processo Penal e Sistema Inquisitorial: ncleo fundante e princpios
informadores...........................................................................................................128
1.6.1 A Crena e o Religare: entre Lacan e Gil ........................................................144
1.6.2 O Princpio da Neutralidade do Inquisidor......................................................153
1.6.3 O Princpio da Concentrao das Atividades de Acusar e Julgar....................158
1.6.4 A Verdade e o Seu Papel Fundamental na Fundao do Processo
Inquisitorial.......................................................................................................176
1.6.5 A Tortura Como Meio de Prova: aspectos essenciais entre o modelo acusatrio e
o modelo inquisitorial.......................................................................................194
1.6.6 A Concepo Ontolgica do Delito e significante essenciais da ordem do
discurso.............................................................................................................202
1.6.7 Decisionismo e Cultura do Arrependimento? Delao Premiada, Colaboradores
Confession Revival........................................................................................207
2 ITRODUO AO ESTUDO DAS FORMAS PROCESSUAIS: PROBLEMAS
FUDAMETAIS DE UMA TEORIA GERAL DAS ULIDADES.................216
2.1 Possvel Falar-se Contemporaneamente em Uma Teoria Geral das Nulidades dos
Atos Processuais?..........................................................................................................216
2.2 Fragmentos Histricos: pontos de apoio.................................................................226
2.3 Os Princpios Gerais da Teoria das Nulidades.......................................................231
2.3.1 e Pas de ullit Sans Grief ou Instrumentalidade das Formas........................232
2.3.2 e Ps de ullit Sans Texte...............................................................................246
2.3.3 Princpio da Causalidade......................................................................................255
2.3.4 O Princpio da Convalidao do Ato Processual Penal Defeituoso.....................265
2.3.5 Princpio do Interesse...........................................................................................277
2.4 A Transposio Civilstica de Conceitos Gerais da Teoria das Nulidades ao Campo
do Processo Penal..........................................................................................................282
2.5 Perspectivas Tericas da Teoria das Nulidades......................................................290
2.5.1 Nulidade Como Vcio do Negcio Jurdico Processual Penal.............................294
2.5.2 A Nulidade Como Sano Processual..................................................................300
2.5.3 A Nulidade Como Ato Jurdico Invlido.............................................................309
2.5.4 A Doutrina do Tipo Processual e Constitucional.................................................319
2.6 Anulabilidade e Inexistncia dos Atos Processuais: duas categorias frustradas.....325
2.7 Nulidade Relativa....................................................................................................334
2.8 A Nulidade Absoluta...............................................................................................343
2.9 Ato Irregular............................................................................................................350
2.10 Os Efeitos do Ato Jurdico Irregular: a nulidade e a ilicitude dos atos processuais
defeituosos.....................................................................................................................352
2.11 Proibio de Proteo Deficiente e as Gradativas Eroses aos Limites Prova:
novamente a verdade real?............................................................................................365
2.11.1 A Teoria dos Frutos da rvore Envenenada e suas Limitaes.........................384
2.11.2 O Princpio da Proporcionalidade......................................................................389
2.11.3 Limitao da Fonte Autnoma (Independent Source Limitation)......................388
2.11.4 Limitao da Boa-F (Good Faith Limitation)..................................................391
2.11.5 Limitao da Descoberta Inevitvel (Inevitable Discovery)..............................398
2.11.6 Limitao da Descontaminao (Purged Tainted Limitation)...........................403
2.11.7 Limitao da Destruio da Mentira do Acusado.............................................406
2.11.8 Limitao da Teoria do Risco............................................................................408
2.11.9 Limitao da Plain View Doctrine ou Teoria dos Campos Abertos..................409
2.11.10 A Renncia do Acusado..................................................................................410
2.12 Prova Ilcita: golpe de cena e eficientismo na persecuo penal..........................411
3 UMA OVA TEORIA DAS ULIDADES O PROCESSO PEAL E SUA
ADEQUAO ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL DO PROCESSO
PEAL...............................................................................................................................420
3.1 A Instrumentalidade do Processo Penal: legitimao desde os direitos fundamentais do
acusado: a forma e a proteo do equilbrio processual......................................................420
3.2 Por Uma Teoria Integrada das Nulidades e da Ilicitude dos Atos Processuais
Irregulares...........................................................................................................................433
3.3 Princpios Reitores da Teoria das Nulidades no mbito Processual Penal: a natureza
dplice das normas relativas forma..................................................................................434
3.4 Nova Teoria das Nulidades: construo de um novo sistema principiolgico luz da
instrumentalidade constitucional do processo penal...........................................................446
3.4.1 O Princpio da Nulidade Absoluta dos Atos Processuais Penais: independncia de
argio de prejuzo e a recusa instrumentalidade das formas.........................................447
3.4.2 Nulidade Relativa e Precluibilidade de Sua Arguio: entre a flexibilizao das
formas e a rigidez garantstica.............................................................................................453
3.4.3 Nulidade Relativa e Sanabilidade: imperfeio do ato processual e sua manuteno no
processo penal.....................................................................................................................460
3.4.4 A Necessidade de Demonstrao de Prejuzo na Nulidade Relativa: inadequao
metodolgica ao processo penal..........................................................................................467
3.4.5 Nulidade Relativa e Comportamento Processual da Parte Interessada: dependncia da
atuao jurisdicional arguio das partes?.......................................................................476
3.4.6 Relativizao da Forma e Degenerao Inquisitria: a instrumentalidade como
acessoriedade da forma ao projeto substancialista..............................................................480
3.4.7 O Princpio da Estrita Jurisdicionalidade no Marco da Teoria das Invalidades:
refutao concepo instrumentalista-funcional-teleolgica do processo penal..............493
3.5 Princpio da Inutilizao do Ato Processual Nulo........................................................500
3.6 Princpio da Precluso Probatria: limites produo da
prova....................................................................................................................................508
3.7 Princpio da Escusa Absolutria (Proibio da Declarao de Nulidade do Ato
Processual Nos Casos de Absolvio)................................................................................518
3.8 Princpio da Prevalncia das Nulidades Legais taxatividade temperada...................532
3.9 Limitao Alegao de Invalidade Processual pelo Ministrio Pblico....................543
3.10 Princpio da Extensibilidade Jurisdicional: as nulidades na investigao
preliminar............................................................................................................................550
3.11 Nulidade Como Categoria nica: abandono da inexistncia dos atos processuais e das
irregularidades.....................................................................................................................560
3.12 Orientao Normativa das Formas Processuais: repensando o processo penal no marco
de um modelo acusatrio ou inquisitorial minimizado.......................................................564
3.13 Concretizando a Base Principiolgica das Nulidades: demonstrao de viabilidade da
nova teoria das nulidades: a ttulo de sugesto legislativa (?)............................................573
COCLUSO.......................................................................................................578
REFERCIAS....................................................................................................584
ITRODUO
O presente estudo possui como norte a discusso acerca da contempornea teoria do
ato processual penal irregular. Teoricamente, a teoria das nulidades representa uma sntese
entre aquela concepo de invalidade que determina os defeitos dos atos jurdicos em geral
e a sua recepo pelo sistema inquisitorial.
Esse caldo cultural que (ainda) implementa uma lgica inquisitorial depe em
desfavor de inmeras garantias estabelecidas na Constituio da Repblica, alm de
comprometer a dialtica acusatria. A garantia elementar estrutura processual penal,
revestida pelo conceito de forma1, desempenha uma funo destacada na reduo da
irracionalidade do poder punitivo. Todavia, a forma do ato processual, apesar de se
perfectibilizar em um dos elementos centrais do princpio da estrita jurisdicionalidade,
norte da instrumentalidade constitucional do processo penal, pode ser facilmente deturpado,
inviabilizado, escamoteado. O primado da forma, que nas lies de Binder2 constitui um
escudo protetor contra a arbitrariedade estatal, quando desprovida de qualquer ligao
proteo de princpios fundamentais, obstaculiza o aparecimento e eficcia daquilo que
justamente deveria ser sua ateno principal: a violao do equilbrio processual.
A forma serve proteo de princpios fundamentais. Todavia, na lgica que
governa o sistema inquisitorial, a forma desvela-se apropriada para preservao do ritual,
to importante ao mesmo. Ou, quando necessrio, desrespeit-la. Percebe-se que o modelo
inquisitorial permite a flexibilizao da forma, ora permitindo uma aplicao rigorosa dos
requisitos dos atos processuais, ora criando-se excees aos mesmos requisitos. Cuida-se
do que posteriormente ser identificado como amorfismo do sistema inquisitrio (Cordero).
Assim que se pode utilizar a forma contrariamente aos interesses do acusado (forma como
contragarantia).
Analisando-se o sistema de nulidades sob a tica do processo acusatrio e demais
garantias implementadas pela Constituio da Repblica verifica-se que a proteo da
forma pela forma coloca em xeque muitos desses princpios. Razovel durao do processo, 1 A forma, em matria penal, a garantia necessria de uma justia exata, esclarecida e imparcial. Por isso adaptada defesa do direito individual em luta com o interesse social. GARRAUD, Ren. Trait Thorique et Pratique DInstruction Criminelle et de Procdure Pnale. p. 426. 2 BINDER, Alberto. Introduo ao Direito Processual Penal.
2
princpio da presuno de inocncia, contraditrio e ampla defesa podem ser vilipendiados
justamente pela obedincia a uma teoria das nulidades formal e privatstica, como tratada
pela maioria da doutrina3. Por exemplo, a nulidade relativa cujo prejuzo deve ser alegado
pelo ru, compatvel com o princpio de presuno de inocncia? Como se separar o
prejuzo da teoria da prova?
Portanto, o estudo proposto justifica-se como uma tentativa de (re)visitar o Direito
com os olhos tambm orientados a uma fundamentao que filtre elementos que to
somente pertenam seara do processo penal. Para tanto, preciso considerar que
importantes elementos para essa empreitada se encontram em campos de saberes diversos
do direito e processo penal. Alicerando-se na antropologia, filosofia do Direito, sociologia,
foroso concluir que ele (Direito), no pode ser apartado do todo. Dessa forma,
obliterada, que o pensamento jurdico ensimesmado representa um perigo. Para a
sociedade e para o prprio Direito, como um efeito autofgico desencadeado por essa
postura de monovalncia discursiva.
De outro lado, importante frisar que ao tema exposto no dado o destaque devido
pela doutrina nacional, requerendo, para tanto, um aprofundamento terico. Mais
especificamente, no mbito da dogmtica ptria, o direito processual penal deixado de
lado. Esquece-se que somente atravs do processo que a pena, sano drstica, pode
adquirir legitimidade. No processo penal que se tornam cristalinas as mazelas que recaem
sobre o acusado. Nele que se fazem ainda mais concretas as suas misrias, o suplcio que
desde o primeiro momento caracterstica do mbito penal, lio desde h muito referida
por Carnelutti4.
Assim, resgatando a teoria do processo penal como situao jurdica - de James
Goldschmidt, que traduz o processo como guerra - muito combatida e preterida pela
teoria de Blow5, do processo como relao jurdica, que se torna visvel o que est to
somente implcito: o fato de o processo penal ser dinmico, tal como a sociedade. preciso
resgatar uma teoria bastante criticada e por vezes mal compreendida, a fim de que muitas
questes tornem-se pertinentes. Entre elas sem dvida est a questo dos direitos
3 Cf GRINOVER, Ada Pellegrini FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhes. As ulidades no Processo Penal. 4 CARNELUTTI, Francesco. Las Miserias del Proceso Penal. 5 BLOW, Oskar von. La Teora de las Excepciones Dilatorias y los Presupuestos Procesuales.
3
fundamentais do acusado frente teoria geral do processo, mormente no que diz respeito
teoria das nulidades no processo penal.
A construo privatstica do processo e da teoria das nulidades encontrou respaldo
no modelo inquisitivo de processo penal. Maximizar o primado da forma, alienada da
proteo de qualquer preceito fundamental garante a construo do mundo onrico e das
cabalas intuitivas, cuja ateno j havia sido chamada por Cordero6. Finalidade processual,
proteo do sistema, construo de um objeto cuja pretenso punitiva. Eis alguns dos
fatores ligados teoria das nulidades cuja inconsistncia conceitual, luz da
instrumentalidade constitucional do processo, salta aos olhos.
Voltando construo terica do maestro do liberalismo processual - James
Goldschmidt - at o presente momento incontestada, a no ser por contra-argumentaes
superficiais e laterais, preciso, nessa senda, ajustar as contas7 com uma teoria que foi
praticamente desdenhada pela dogmtica processualista da poca, rano que sobrevive at
os dias atuais. Necessrio retomar as proposies alinhavadas por Goldschmidt para se ter a
notcia de que o processo por definio o setor mais importante para o acusado e,
paradoxalmente, aquele que menos recebe ateno.
Deslocar a ateno do processo dos deveres processuais para as cargas como
imperativos de interesse da prpria parte8 se torna curial. Analisar a teoria das nulidades
conjuntamente com a teoria da prova e das cargas; verificar em que momentos um princpio
fundamental resta maculado pelo mero descumprimento da forma; estabelecer limites
decretao da nulidade, principalmente quando o acusado no d causa irregularidade do
ato; evitar que a anulao de um ato torne a situao processual do acusado mais grave.
Esses so alguns pontos, meramente exemplificativos, que no obtm resposta satisfatria
por parte da dogmtica processual penal ptria.
Assim, religar pontos da teoria do processo penal e reconstruir o sistema de
nulidades a partir de uma tica voltada instrumentalidade constitucional do processo
penal encontra amparo nessa resignao da doutrina e prtica processuais para com o
6 CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. t. 1. 7 Trata-se de uma analogia ao pensamento de Umberto Eco referente Idade Mdia: A Idade Mdia inventa todas as coisas com as quais ainda estamos ajustando contas... ECO, Umberto. Dez Modos de Sonhar a Idade Mdia. in Sobre os Espelhos e Outros Ensaios. p. 78. 8 GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso: problemas jurdicos y polticos del proceso penal. Buenos Aires: Europa-Amrica, 1935.
4
modelo vigente. Assim, o exame da forma processual, que deve ser revisado, optando-se
por um mecanismo de proteo mais rigoroso quanto s garantias e mais criterioso quanto
ruptura da forma pela forma, configura o ncleo da investigao. Em sntese apertada,
nesses termos que adquire relevncia a presente investigao. Em um primeiro nvel
enfrentando, com o auxlio da interdisciplinaridade, questes emergentes do
desenvolvimento histrico-cultural do processo penal e, de outro, resgatando uma teoria de
extrema importncia que restou margem da discusso terica do direito processual penal:
a teoria da situao jurdica, que possibilita uma reconstruo liberal9 do processo penal.
Num segundo momento, tratando da teoria da forma processual a partir do enfrentamento
dos sistemas processuais para posteriormente apresentar uma nova teoria das nulidades.
Justificada a relevncia do estudo, atravs do trabalho procurou-se relacionar o
processo penal o que se pode denominar de instrumentalidade constitucional do processo
penal. Para alm, no primeiro captulo do estudo partiu-se para a discusso acerca das
teorias que procuram explicar a natureza jurdica do processo. A concepo mais difundida,
a do processo como relao jurdica guarda especial relao com a ideologia da defesa
social, o que permitir o desenvolvimento de uma teoria das nulidades que nutre especial
predileo pela corrupo da forma. Apresentar a dinmica do processo em detrimento de
uma esttica processual foi a tarefa executada neste segundo captulo. No por puro
exerccio acadmico. Pensar a forma processual a partir de uma dinmica trar severas
alteraes para a proteo dos direitos fundamentais do acusado. Assim, desta maneira,
recorreu-se principalmente s lies de Goldschmidt e Fazzalari a fim de se encontrar solo
frtil para uma teoria das nulidades que se aproxima de uma oxigenao constitucional.
Alm disso, no captulo I a fim de se aprofundar o estudo das nulidades recorreu-se
ao conceito de sistemas processuais. Torna-se imprescindvel para uma devida
conformao constitucional da teoria das nulidades uma investigao que centralize este
modelo terico junto de sua matriz epistemolgica. Assim as coisas, a contraposio entre
sistema acusatrio e inquisitrio procurou ser sistematizada a partir de determinados
aspectos epistmicos desta distino. Desta arte, ao revs de se alicerar a distino sistema
acusatrio e inquisitrio com base em modelos ideais, com caractersticas bem delimitadas,
9 O termo empregado no sentido de Goldschmidt e nada tem a ver com sua acepo em termos de economia e mundo globalizado em suas novas vertentes.
5
preferiu-se a montagem dos sistemas a partir de um construto epistemolgico. A partir de
ento foi possvel a verificao da forma processual e o papel que representa em um e outro
modelo de sistema. Parece infrutfero, como si acontecer com a grande maioria da
doutrina ptria salvo raras excees tratar da teoria das nulidades como se se tratasse de
um corpo terico dcil e neutro. Qualquer teoria das formas guardar uma ntima
conexo com a problemtica dos sistemas processuais e sua respectiva conformao. Por
esta razo que a teoria das nulidades deve ser pensada em consonncia com os sistemas
processuais penais.
A conformao da teoria das nulidades a partir dos sistemas processuais permite-se
entender como se consolidou no processo penal uma forma hbrida, pela justaposio de
conceitos privatsticos que aderiram perfeitamente ao funcionamento do sistema
inquisitorial. Para se pretender uma teoria das formas processuais no subserviente ao
sistema inquisitorial, foroso reconhecer-se a insuficincia dos atuais princpios
informadores da teoria das nulidades.
Num segundo captulo apresenta-se um novo objetivo. Esta tarefa de examinar os
postulados contemporneos que permitem a construo da teoria das nulidades foi o objeto
desenvolvido neste ponto. Assim, a pretenso a ser exercida neste momento foi a de
explicar os princpios fundamentais que atualmente compem a teoria da invalidade.
Demais disso, procurou-se tambm examinar a teoria da prova ilcita, que guarda estreita
relao com a teoria das nulidades. Assim, como objetivo geral do captulo procurou-se
explicar os fundamentos principiolgicos e epistemolgicos da contempornea teoria das
nulidades, procurando-se, medida do possvel, traar a crtica a tais postulados tendo
como filtro a instrumentalidade constitucional do processo penal.
Saliente-se que a opo por uma anlise meramente principiolgica possui sua razo
de ser. A primeira justificativa baseia-se na limitao do objeto de estudo. Instruir uma
rediscusso completa das normas reguladoras da teoria das nulidades foge ao escopo da
empreitada. At mesmo pelo fato de que as normas que regulam as nulidades, no processo
penal brasileiro so produtos da ideologia da defesa social que radicalizada ao mximo,
permitiu um cdigo de processo penal maximizador da razo de Estado em detrimento dos
direitos individuais.
6
Uma segunda justificativa se faz necessria. O principal objetivo de uma nova teoria
das nulidades permitir o pensamento inovador, criador, avesso aos autoritarismos. Desta
maneira, ao revs de uma mera renovao legislativa, o objetivo desenvolvido partiu das
bases epistemolgicas que daro sustentao nova teoria das nulidades.
Isso posto como tarefa final e derradeira, demonstrada a insuficincia da atual teoria
das nulidades e a sua imprestabilidade como ferramenta de controle do poder punitivo, o
objetivo foi tentar apresentar uma nova teoria das nulidades, expondo-se princpios e
caractersticas das nulidades que melhor se afiguram ao sistema acusatrio ou, numa
empreitada mais modesta, que permitem uma minimizao do modelo inquisitorial.
Expostos os objetivos tratados ao longo do captulo, cumpre, para finalizar a
presente introduo, que se procurou, mediante uma anlise interdisciplinar, consolidar a
investigao, sem descurar de saberes outros que se fazem necessrios boa compreenso
do processo penal contemporneo.
A realizao da investigao centrou-se principalmente, na reviso bibliogrfica de
obras literrias que tratam dos diversos temas que compem o estudo. Assim,
exemplificativamente, obras provenientes da Sociologia, Filosofia, Direito e Processo
Penal, Teoria do Direito, Antropologia e ainda setores outros que se fizerem necessrios ao
exame do estudo, comporo o embasamento terico a partir do qual ser examinado o
problema de pesquisa.
Dentro da perspectiva interdisciplinar, as obras consultadas, nacionais e
estrangeiras, seguiram as quatro principais categorias que formam o corpo da investigao.
Essas categorias podem ser elencadas como: processo, ato processual, nulidades, direitos
fundamentais. A partir delas que a produo de autores como Franco Cordero, Leo
Rosenberg, James Goldschmidt, Luigi Ferrajoli, Eugenio Ral Zaffaroni dentre a literatura
estrangeira e, entre a literatura nacional, Aury Lopes Jr., Salo de Carvalho, Jacinto Nelson
de Miranda Coutinho, etc., cristalizou o quadro terico de base.
Partindo-se da instrumentalidade constitucional que se abordou como referido, o
processo penal. Como modelo ideal de correo do direito existente10, o garantismo penal
servir como um filtro a fim de se estabelecer o grau de irracionalidade no e do processo
penal brasileiro. Voltando-se aos direitos fundamentais do acusado, ser indispensvel
10 BOBBIO, Norberto. Prlogo. In FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 15.
7
ferramenta para examinar os mecanismos de limitao do poder estatal11. A partir desse
marco que ser realizado o contraponto terico de (re)construo do processo penal,
fulcrado especialmente na proposta de uma poltica criminal minimalista e na
(re)orientao do mesmo com base em garantias mnimas, imprescindveis a um Estado
Democrtico de Direito.
Uma anlise crtica do processo penal se faz necessria para um diagnstico de
como as teorias dominantes, nesse campo, se encontram demasiado fechadas para poder
avaliar em que p anda as condies sociais e de que maneira processo penal e sociedade
acabam interagindo. A inexistncia de deveres processuais entre as partes, heuristicamente
concebida por Blow, a perspectiva dominante que entende pela existncia de uma relao
jurdica processual, fruto de uma teoria geral do processo desempenha um papel
fundamental na ausncia de questionamentos mais profundos sobre o tema. A teoria das
nulidades, arquitetada sob um modelo privatstico, regida por categoriais intransponveis ao
domnio do processo penal so alguns dos objetos a serem examinados. Tendo como
escopo final uma possvel conteno do poder estatal.
Importante referir, por fim, que a investigao e as obras consultadas seguem um fio
condutor, definidor da abrangncia do estudo, a saber: o tratamento jurdico-penal do ato
processual defeituoso. Assim, os conceitos de validade/invalidade, que predominaram na
teoria geral do direito, mormente a partir do positivismo jurdico, expandindo-se para os
demais campos do saber jurdico passam a ser contemplados como uma categoria relevante
para a concretizao do estudo: atravs dele que questes como risco processual, processo
penal e direitos fundamentais sero entrelaados e examinados.
Desta forma, uma vez presentes todos esses elementos que se tornou possvel a
consolidao do objetivo geral da investigao, concretizados a trs tempos: a) verificar a
leso a direitos fundamentais do acusado diante da atual estrutura da teoria das nulidades;
b) demonstrar a incapacidade de tal teoria em se adequar instrumentalidade constitucional
do processo penal E, finalmente c) reestruturar a teoria das nulidades a partir de uma teoria
do processo penal voltada sobre a instrumentalidade constitucional.
11 En esta perspectiva el modelo penal garantista equivale a un sistema de minimizacin del poder y de maximizacin del saber judicial, en cuanto condiciona la validez de las decisiones a la verdad, emprica y lgicamente controlable, de sus motivaciones. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 22.
CAPTULO I - PROCESSO PEAL E DIREITOS FUDAMETAIS:
ITRODUO ISTRUMETALIDADE COSTITUCIOAL DO PROCESSO
PEAL
O presente captulo tem por objetivo central apresentar as bases epistemolgicas das
quais partir o estudo. Assim sendo, antes mesmo de se ingressar na teoria das nulidades
objeto do captulo seguinte, foroso alicerar-se o processo penal em sua estrutura
constitucional.
Desta arte, a empreitada que ser realizada daqui para diante ter como fio condutor
a possibilidade de pensar democraticamente o processo penal. Para tanto, o conceito de
instrumentalidade constitucional do processo ser imprescindvel. Demais disso, ser
preciso ainda, apresentar as principais teorias que procuram explicar a natureza jurdica do
processo bem como apresentar as matrizes dos sistemas processuais, a fim de tornar o
exame da teoria da invalidade mais proveitoso.
Assim apresentados sucintamente os escopos do captulo, chega-se ao conceito de
instrumentalidade, que inaugura o captulo.
1.1 Processo e Instrumentalidade: identificao preliminar da temtica de estudo
Existe uma estrita e necessria interconexo entre o que se pode definir processo, objeto
da presente investigao e sua instrumentalidade. Relao que se nutre reciprocamente, que
se complementa, se deixa orientar por uma cumplicidade mtua, enfim, que se torna
paralelamente, como um objeto e sua sombra, impossvel de ser fracionada, sem
comprometer a qualidade do estudo.
A advertncia inicial se faz relevante, no no intuito de se evitar responsabilidades ou
apontar o desvelamento de uma relao cuja pretenso de verdade, to totalizante quanto
cega, tornaria incua cada tentativa de reconstruo de uma caminhada gradativa, pelos
obscuros campos do processo e sua existncia. Assim as coisas, a jornada que aqui se
pretende levar adiante se inicia pela demonstrao de que a identificao de categorias
como processo e instrumentalidade no pode ser haurida sem tambm se tecer
9
consideraes sobre o pano de fundo processual: os direitos do acusado, protagonista por
excelncia do dinamismo processual e sua cadeia de significantes, que fluem no
caleidoscpio em que chances, perspectivas e expectativas de uma sentena favorvel ou
desfavorvel acompanham o reger das formas1.
Caracterizar o processo como mecanismo dotado de instrumentalidade no tarefa das
mais simples. A diagnose desta bvia embora no menos complexa caracterstica do
processo exige no mnimo, cautela. Todavia, antes de se examinar a instrumentalidade
especfica do processo penal, se assim se pode denominar tal estruturao, faz-se mister
entender o porqu de tal instrumentalidade desempenhar inegvel amparo teortico, cujas
conseqncias recobrem o andar processual de um lado e, de outro, como podem trazer
implicaes para a dialtica processual, principalmente sobre os direitos do acusado.
Iniciar o estudo do processo como um exame sobre a sua instrumentalidade diz respeito,
sobretudo reflexo que se faz sobre a sua legitimao2. Em primeiro lugar, com isso
afastamo-nos das perguntas pelo princpio, pela causa e pela origem. Em segundo, perquirir
a sua legitimao , nessa senda, questionar sobre a sua justificativa, como o desenrolar de
um processo, nos quais seus elementos componentes dialogam, numa espiral a qual no se
anuncia a chegada da sntese perfeita. A dialtica sem sntese (Merleau-Ponty) na qual se
move o presente estudo pretende recorrer o campo normativo do processo, sem descuidar
de suas bordas, algumas obscuras outras j visivelmente preenchidas pelo jogo dos signos.
Nesse caso, ilustrar o primeiro captulo tambm referendar alguns apontamentos
realizados na Introduo. O principal deles situa-se, derradeiramente, no plano da
interdisciplinaridade, do interstcio entre cincia (!?) e mito (?), da conjuno do
metabolismo desconstrutivista com a pregnncia da falta, do vazio, enfim, daquilo que no
da ordem do racional embora no possa se dar a no ser como linguagem.
1 Utilizam-se aqui as categorias de James Goldschmidt acerca do processo como situao jurdica. No momento, entende-se contraproducente ingressar no mbito tcnico de tais categorias. Deixemo-las para mais adiante, quando a sim ser examinada a obra do maestro do liberalismo processual penal, nos dizeres de Calamandrei. 2 Prefere-se, na esteira de Vattimo, o termo legitimao, prprio da modernidade, ao termo fundamento j que segundo o autor, este representativo da metafsica. Ainda segundo Vattimo, a metafsica pode ser reconhecida como a filosofia da histria, predominantemente ilustrada, que deposita na razo uma espcie de crena sobre seu progressivo esclarecimento. O historicismo corresponde assim, ltima grande metafsica objetivista. Segundo Heidegger, de maneira diversa embora complementar, a metafsica traduziria o verdadeiro por aquilo que se d ante os olhos, mantendo-se com carter estvel e de uma vez por todas definido. VATTIMO, Gianni. ihilismo y Emancipacin: tica, poltica, derecho. Barcelona: Paids, 2004. p. 175-177.
10
Retornando ao tema em apreo, o estudo da instrumentalidade do processo penal no
pode ser equiparado ao questionamento pelo princpio. Isto pelo fato de que o princpio
uma proposio de onde se podem extrair outras, muito embora no seja passvel de
regressar a outras proposies que lhe do sustentao lgica3. O princpio sempre um
ponto de partida. Desta concluso, por bvio, se constata que a instrumentalidade do
processo no se confunde com um princpio qualquer, seja ele orientador, nuclear ou
perifrico. Oferecer a equiparao de um princpio orientador para a instrumentalidade
processual seria, na melhor tradio metafsica, conceber o processo como um universal,
apesar das advertncias que remontam a Kierkegaard4 e o nascimento do existencialismo.
De que maneira seria possvel arraigar o processo num princpio de ordem universal, sem,
contudo desprezar sistemas, culturas jurdicas e sentidos normativos diversos? evidncia,
o processo no se legitima a partir de um princpio de ordem kantiana, se por este conceito
pudermos traduzir um elemento cuja transcendncia dote de validade universal determinada
pretenso5. Conclusivamente, resta o rechao idia de se buscar em um princpio a noo
de legitimao do processo penal.
Seguindo os passos na direo de uma construo normativa do processo penal, a
instrumentalidade do processo, nesse nterim, da mesma maneira que restou demonstrado
na anlise da categoria princpio, no pode ser confundida com a sua causa. A causa pode
ser compreendida como um nexo explicativo de um fato. No pode, contudo, exercer-lhe a
justificativa, muito menos lhe oferecer suporte de direito para o que pretende explicar. A
causa responde pergunta do como. Ao se tratar de uma noo explicativa para um
determinado processo ou evento, da as cincias ditas naturais responderem sua exigncia
de racionalidade munidas da causa (processos fsicos e matemticos), esta categoria, para o
estudo em comento no pode oferecer mais do que uma noo vaga e imprecisa, para no
falar em inadequada para o Direito. O sentido jurdico, movido em meio a imperativos
normativos e no processos lgico-causais, responderia seus problemas no mbito do
dever-ser e no do ser. Se se aceitar que a lgica ou at mesmo a metodologia jurdica no
3 Cf CONCHE, Marcel. O Fundamento da Moral. So Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 20. 4 Nossa poca tem sido incansvel no desejo de conferir sentido universal a tudo. Com que af, com que perseverana tantas vezes vemos um mistagogo espiritual qualquer pronto a prostituir uma mitologia inteira para extrair, de cada mito, por meio de profundo golpe de vista, caprichosos acordes em sua harmonia?. KIERKEGAARD, Soren. O Conceito de Angstia. So Paulo: Hemus, 2007. p.93. 5 Cf KANT, Immanuel. Crtica da Razo Pura. 4 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
11
so meros reflexos de processos naturais, bem crvel que o termo imputao6 desenvolva,
na seara dogmtica, importantes conseqncias para o processo penal. De fato, o conceito
de nexo causal pouco destaque adquire no plano processual, gerido via de regra por
categorias que recebem impulso to somente da normatividade jurdica, no encontrando
simulacros ou elementos sgnicos que traduzam a idia de um objeto existente,
inconfundvel, universal, nos mesmos termos que a metafsica da presena contribuiu para
incrementar uma falsa noo de totalidade. Pelo contrrio, o processo penal se erige em to
somente mais uma categoria artificial dentre outras, posto que o que seria o Direito seno
uma linguagem artificial?7 Ao se pensar o Direito e o processo penal distante das
concepes que procuram enquadr-lo como um objeto passvel de ser encontrado,
domesticado e reduzido a signos convergentes e afeitos a uma idia de sistematicidade, com
isso se quer dizer que a linguagem, que representa o mundo e os limites8 que constituem o
processo nada mais so do que smbolos fugazes. O simulacro e sua repetio governam
suas entranhas, movidas algumas vezes pela racionalidade, por outras, por aquilo que da
ordem do incontrolvel ou do incomensurvel. Nessa esteira, verifica-se que a causa de
existncia do processo no pode ser entabulada como sua instrumentalidade.
Ademais, concebendo-se o processo nesta mesma trilha, nota-se que o conceito de
instrumentalidade no pode ser analisado como a referncia origem. A categoria de
origem responde pergunta do quando. Perseguir a origem se debruar sobre os
estilhaos, rastros, que se sabem movedios e nas mais das vezes inacessveis. Mediante a
procura pela origem promove-se uma busca pela reconstruo, at se chegar a um momento
6 Para se ter noo da importncia que o termo assume, muito embora no coincida semanticamente com o conceito de imputao desenvolvida por Kelsen, basta analisar-se, exemplificativamente, o panorama que a teoria da imputao objetiva desenvolve, nutrida principalmente a partir dos antecedentes de Hnig e Larenz. Note-se, en pasant, que o conceito de imputao foi vital no escopo de superao, no mbito da teoria geral do delito, da teoria causalista da ao, firmada a partir de postulados meramente lgico-causais, como o prprio nome est a indicar. Demais disso, o prprio conceito de estruturas lgico-reais de Welzel, o antecedente para o conceito de ao, no permite dispensarem-se critrios de imputao, ao contrrio da lgica consequencialista da estrutura Liszt-Beling entre outros desenvolvimentos subseqentes. Crimes omissivos e culposos nada mais so do que a resposta, em termos de reflexividade dogmtica, do critrio de imputao levados necessidade de ordem normativa no plano sistemtico da teoria finalista da ao. Para um panorama da teoria da imputao objetiva e sua similaridade com a teoria finalista da ao, em termos de adequao fundacional Cf ROXIN, Claus. Funcionalismo e Imputao Objetiva no Direito Penal; GRECO, Luis. Um panorama da Teoria da Imputao Objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 7 Essa pergunta j foi anteriormente levantada por autores da expresso de Franco Cordero e Luigi Ferrajoli, com a qual no s concordamos como tomamos como ponto de partida. 8 Esta idia tomada de Wittgenstein, em Suas Investigaes Filosficas. Cf WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes filosficas. 4 ed. Petrpolis: Vozes, 2005.
12
primevo, geralmente tratado pela antropologia como mito9. No raro a inacessibilidade
originria da origem, que no representa uma tautologia paralisante, mas todo o contrrio:
da ordem da pregnncia e criatividade, gerando certo mal-estar para fenmenos que, luz
do historicismo, perdem fora racional-explicativa para algumas propenses10 ainda no
refutadas (a lgica conjuntural da cincia11), representa a advertncia nietzschiana
consumada. No Aforismo 44 de Aurora, Nietzsche12 afirma: com a penetrao na origem
aumenta a insignificncia da origem. nesse entrecruzamento entre o arcano e o
aportico, entre o profano e o sagrado que a narrativa mtica surge como distribuio
temporal, como nomeao de um significante primeiro, geralmente (para no dizer
absolutamente) da ordem do interdito13. E ao se falar em interdito a concluso que pode ser
extrada a de que onde aquele aparece, surge da mesma forma um desejo travado e
limitado14. No existe origem possvel para alm do significante e do rastro: a origem
um arqui-rastro, que fundamenta a prpria possibilidade do aparecer e do significar na
ausncia de origem 15. E justamente esta opo, a proibio do incesto que constitui o
9 Cf LEVY-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem; PAZ, Octavio. Claude Levy-Strauss ou o ovo Festim de Esopo. So Paulo: Perspectiva, 1977. 10 Utiliza-se aqui o termo propenso no mesmo sentido atribudo a POPPER, Karl. Un Mundo de Propensiones. Madrid: Tecnos, 2000. 11 A lgica do trial and error, que anuncia uma cincia j consciente de seus limites, a impossibilidade da certeza pode ser verificada em POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. v.1 e 2, 3 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. 12 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexes sobre os preconceitos morais. So Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 41-42. 13 FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Aqui se pode ventilar algumas relaes entre o mito e a negatividade. Por que a passagem da natureza cultura, nos termos de Levy-Strauss representada a partir de um no? Que poder exerce o no a ponto de servir como momento fundacional? O interdito aquilo que possibilita a cultura. No possvel a cultura sem o no, que serve como limite, como significante primeiro, dos quais decorre tudo o mais. O no faz a ciso, absolutamente necessria entre o que representativo da natureza (por excluso) e da ordem do cultural (invocado mediante a mesma excluso) e que vem tona num segundo momento reflexivo, fundando sem ser remetido a uma causa ltima causadora. O sujeito se constitui na linguagem e esta opo que no pode mais ser reconstituda, nem tampouco ser reconstituda, com um voltar atrs. A imerso na linguagem no permite um retorno a um estado anterior, cuja conseqncia seria uma autonegao. Caso contrrio, estaramos diante de uma meta-linguagem, o que advertidamente Lacan demonstrou como impossvel. De fato como assevera Lebrun acerca do sistema linguageiro, nesse lugar que, precisamente, se manter o pai. Tambm nesse lugar que os homens coletivamente designam os mitos. Entendamos estes ltimos precisamente como uma maneira de fazer entrar na linguagem o que no pode ser apreendido nela, como uma maneira de colonizar essa hincia. Alis, funo da mitologia assegurar uma espcie de genealogia, reconstituir com palavras a questo sempre irresolvel da origem. LEBRUN, Jean-Pierre. Um Mundo Sem Limite: ensaio para uma clnica psicanaltica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004. p. 30. 14 ROSA, Alexandre Morais da. Deciso Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 05. 15 AGAMBEN, Giorgio. Estncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 247.
13
sujeito (Lacan), a partir de sua imerso e inafastabilidade do seu prprio ser (a linguagem,
ao constituir o sujeito, agencia verdadeira estrutura componente, da ordem do ser).
obviedade, a instrumentalidade do processo no pode se dar como sua origem. No se trata
aqui de fazer decorrer o processo de algo que lhe antecede. A problemtica se encontra
envolta do ponto de justificao, que oferecido pela legitimao. Da a pergunta
inevitvel: que se pode entender por legitimao?
O fundamento, nas lies de Conche16, pode ser descrito como o Princpio. Com isto
se quer referir ao fato de que este incondicional. Seria a configurao de um princpio
reitor dos outros princpios. Em outras palavras, trata-se daquilo que legitima, justifica,
fornece as bases de determinado conceito ou categoria. A incondicionalidade do
fundamento se d no momento em que sua legitimao no depende de outros fatores os
quais estariam submetidos, por seu turno, a razes diversas que em ltima instncia
remeteriam a novas legimitaes, num processo infindvel. Aqui, surge uma das facetas,
qual Hidra de Lerna, a justapor cadeias infindveis de graus racionalizantes, tendentes ao
infinito. Como no famoso trilema de Munchausen, o retorno ao infinito aparece para
denunciar as metanormas que grassam pontos cruciais e orbitais da racionalidade,
insistentemente incorporada mediante artifcios da modernidade (a racionalidade
estruturada a partir do binmio: tese x anttese, positivo e negativo, etc., esquecendo-se da
complexidade que paira sobre o enfeixar caracterstica da terceiridade).
Via de conseqncia, a instrumentalidade do processo se caracteriza como seu
fundamento 17. No entanto, resta ainda um ponto a ser discutido. Por instrumentalidade se
pode entender a caracterstica do processo para a aplicao do Direito18. Em termos amplos,
a instrumentalidade do processo corresponde caracterstica que o torna uma pea
dinmica, a fim de dar vida ao direito material. No processo penal, esta caracterstica se
acentua de tal maneira, a ponto de se poder afirmar que o direito penal possui uma
dependncia umbilical deste.
A instrumentalidade do processo penal assume contornos tcteis de mais fcil
visualizao, no momento em que se traz colao o seu princpio norteador. Se no direito
16 CONCHE, Marcel. O Fundamento da Moral. p. 26-27. 17 Em outras palavras, legitimao. 18 A instrumentalidade do processo no significa que ele seja um instrumento a servio de uma nica finalidade, qual seja, a satisfao de uma pretenso (acusatria). LOPES JNIOR, Aury. Introduo Crtica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004.p. 08.
14
penal a pedra de toque, seu leitmotiv pode ser concebido como a garantia da legalidade
(nulla poena sine lege), no processo penal o fundamento se repete. Aqui, a nortear a
estrutura processual se encontra o princpio da necessidade do processo19 em relao pena
(Gmez-Orbaneja). Trata-se do princpio de que no h pena sem processo. Evidentemente,
isto encontra suas razes conjugadas ao princpio da presuno de inocncia (ningum pode
ser considerado culpado antes do trnsito em julgado da sentena condenatria in dubio
pro reo).
Portanto, se o processo o caminho necessrio para a aplicao da pena, que se torna
absolutamente viciada sem que seja percorrido todo o iter, pode-se vislumbrar o processo
como um instrumento indispensvel ao sistema punitivo. No entanto, no esta mera
caracterstica de ser um instrumento para a aplicao da pena que o legitima. Sua
legitimidade (sua instrumentalidade) nada significa se no estiver preocupada com outro
aspecto a ser examinado.
Sabe-se que o fenmeno punitivo est associado figura do poder. Poder e punio so
elementos interligados. O sistema penal fruto de dispositivos de poder, que compem
uma rede, constituindo-se num dos mais facilmente perceptveis de seus ns. Com efeito,
assim como a sociedade composta de aparelhos, dispositivos, malhas de poder que
percorrem a sociedade sob uma forma capilar (Foucault), o poder no se basta a si mesmo.
A tendncia do poder exaurir seus limites, romper suas barreiras, enfim, ultrapassar todos
os obstculos a si impostos20. Como afirma Schmidt, el poder estatal se coloca frente a los
individuos en forma drstica y peligrosa. Todo manejo del poder envuelve la posibilidad de
abusos 21.
A legitimidade ou a instrumentalidade do processo penal assume relevncia, ento, no
como a face aparente e inexata de sua existncia, erigida a vetor principal, como insiste em
sua grande maioria, a doutrina. A instrumentalidade do processo penal somente assume sua
19 De acordo com Pisapia o processo penal seria o meio necessrio e indefectvel para a aplicao da lei penal substancial, afrimando-se no sentido de que a pena no pode ser aplicada se no atravs do processo. PISAPIA, Gian Domenico. Appunti di Procedura Penale. v I. Milano: Cisalpino-Goliardica, 1973. p. 44. Tambm Conso e Gallo traam o princpio da necessidade como distintivo da esfera cvel e penal, medida que a nota da necessariedade vem a distinguir o processo penal do processo civil contencioso. GALLO, Marcello, CONSO, Giovanni. Istituzioni di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffr, 1964. p. 05. 20 BOBBIO, Norberto. Prlogo. In FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2004. 21 SCHMIDT, Eberhard. Los Fundamentos Tericos y Constitucionales del Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Lerner, 2006. p. 26.
15
legitimidade quando associada preservao dos direitos fundamentais22 do acusado. Em
outras palavras, se o poder tendente expanso, cabe ao processo limitar tal poder
punitivo, de molde a minimizar ao mximo os riscos de leso aos direitos primordiais do
acusado. Desta arte, o termo instrumentalidade aqui tratado como instrumentalidade
constitucional do processo. A sua legitimao se encontra respaldada no momento em que
tenciona evitar que a vontade de punir estatal produza violaes queles direitos que o
prprio Estado se obrigou no-ingerncia. A esfera do indisponvel, aquilo que o Estado
no pode tocar (os direitos fundamentais de liberdade) configura um dos pontos cardeais do
processo, cuja existncia deve necessariamente impedir atos arbitrrios do poder punitivo
estatal.
Da mesma forma como o direito penal constitui uma garantia, o processo penal tambm
assume este prisma. Desde Von Lizst (o direito penal como a Carta Magna do Delinqente)
a Dorado Montero (o direito penal protetor dos criminosos), o processo penal deve tratar de
relaes despticas, nas quais o primado da hipossuficincia23 estabelece um vnculo
indecomponvel com os direitos fundamentais e o papel que desempenham para a
sustentao democrtica de determinado Estado. Quer dizer que a preservao dos direitos
fundamentais do hipossuficiente guarda estreita relao com o grau de democracia de
determinado Estado. Por isso nos dizeres de Goldschmidt24, o processo penal como um
termmetro, capaz de medir o grau de elementos corporativos ou democrticos de um
Estado. Para alm, o processo penal, nas lies de Winfried Hassemer25 constitui direito
constitucional aplicado.
22 O termo direitos fundamentais ser utilizado aqui via de regra no sentido de direitos de liberdade, aqueles deveres de no-ingerncia estatal, verdadeiras obrigaes de no-interferncia do Estado em certas esferas de liberdade dos indivduos. Com isso no se est aqui propondo um retorno teoria liberal dos direitos fundamentais. Todo o contrrio. Por se dar o campo de estudo em matria na qual assume primordialidade tais direitos, no se v aqui razo alguma para iniciar investigao que examine os direitos sociais e transindividuais, que pouco contribuiria para acurar a temtica enfrentada. 23 A relao de hipossuficincia resta muito bem demonstrada por CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 24 Los principios de la poltica procesal de una nacin no son otra cosa que segmentos de su poltica estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nacin no es sino el termmetro de los elementos corporativos o autoritarios de su Constitucin. GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso: problemas jurdicos y polticos del proceso penal. Buenos Aires: Europa-Amrica, 1935. 25 Boa parte da doutrina aponta que este pensamento remonta o de Henkel, embora utilizado por Hassemer. Cf HASSEMER, Winfried. Crtica al Derecho Penal de Hoy. Bogot: Universidad Externado de Colombia, 2001. Cf HASSEMER, Winfried. Introduo aos Fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: SAFE, 2005. Cf HASSEMER, Winfried. Trs Temas de Direito Penal. Porto Alegre: AMP: Escola Superior do Ministrio Pblico, 1993.
16
A sua legitimao, desde o espectro aqui alicerado, assume uma conotao protetiva
daquele que, num paralelo, no pender de foras a serem medidas no jogo processual, desde
j, numa presuno no sujeita a inverso, mais fraco em relao ao Estado. Ademais, se
os direitos fundamentais podem ser descritos como componentes do ncleo do Estado
Democrtico, o processo penal deve, por assim dizer, ser concebido como o instrumento
mximo de sua realizao, proteo, maximizao.
Esta a razo pela qual o processo, em que pese as inexatas concepes difundidas e
alastradas em mbito dogmtico, que o consideram como motor da punio, podem ser
consideradas como totalitrias e antidemocrticas. De fato, como legitimar a
instrumentalidade do processo penal se este serviria apenas para punir? Em outras palavras,
para que necessitaria o Estado do processo to somente para punir? Se o Estado, detentor
do poder punitivo almejasse a punio, bastaria uma imediata e sumria demonstrao de
poder em face do hipossuficiente para que a sano fosse ento aplicada. Todavia, num
Estado Democrtico, no qual at mesmo o lupus artificial necessita de legitimidade para seu
agir, bem crvel que o exerccio do poder deve estar condicionado a algum tipo de forma.
Tal forma, como escudo protetor contra a arbitrariedade (Binder) o processo.
Em sntese, a instrumentalidade do processo penal a que corresponde sua legitimao,
trata-se da proteo dos direitos fundamentais do hipossuficiente. O processo penal forma
e medida da resistncia aos avanos do poder, na inteno de preservao de direitos
inalienveis e no passveis de flexibilizao.
1.2 A Particular Instrumentalidade do Processo Penal
Como exposto ao incio do presente captulo, o termo instrumentalidade aqui
empregado cinge-se ao processo de legitimao que o processo penal deve adquirir no
cerne do Estado Democrtico de Direito26 correspondente preservao dos direitos
fundamentais do acusado.
26 En trminos generales el proceso se puede considerar como un instrumento, si se quiere algo sofisticado, de control social. GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. Madrid: Taurus, 1997. p. 105.
17
Nos dizeres do prprio Ferrajoli existe uma tendncia do poder em se livrar das
amarras jurdicas, fazendo-se invisvel, deslocando-se para fora das sedes institucionais27.
Esta tendncia do poder em se justapor e se cristalizar, na falta de limites, em formas
absolutas, caracteriza um dos traos indelveis dos regimes autocrticos.
O primeiro aspecto de uma instrumentalidade do processo penal remete questo
do limite, bem verdade. A segunda, paradoxalmente, reside na falta, remisso originria da
inevitabilidade do abandono da relao causal28. No entanto, salientadas tais caractersticas,
possvel afirmar-se que as caractersticas do processo penal no se encontram esgotadas
nestes traos. Para alm, a instrumentalidade do processo penal, nos termos aqui
alavancados pode ser construda em moldes semelhantes ao do garantismo de Ferrajoli29, a
partir de um modelo corretivo da arbitrariedade, decorrente da anttese liberdade x poder
penal.
Com relao ao primeiro aspecto, o do limite, afigura-se imprescindvel o
apontamento que faz, por exemplo, Rui Cunha Martins, ao analisar o que denomina de
esttica do limite30. Embora esteja reportando-se teoria do Estado, o alicerce do
pensamento de Martins pode nos ser til no momento. Isto porque o fenmeno punitivo
constitui uma das formas da chamada violncia institucionalizada e como tal necessita do
desvelamento das metamorfoses pelas quais passa o Estado. Ademais, o conceito de limite
se torna relevante, pois justamente ele quem determina uma das mais importantes
distines para a teoria do direito: aquela entre poltico e jurdico. O Direito, na origem
desta posio, aparece sempre como um limite ao poder 31. Ao lado do limite exsurge a
figura da ilimitao. Ilimitao que justamente a marca do poder, sempre tendente a
27 FERRAJOLI, Luigi. Prlogo a la Edicin Espaola. In Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 10. 28 A causalidade dos princpios da ordem do Real, eis que inexistem condies de enunciao de alguma relao de causalidade clssica (causa e efeito), mas o encontro com o impossvel, com a falta. ROSA, Alexandre Morais da. Deciso Penal: a bricolage de significantes. p. 112. 29 O termo garantismo empregado por Ferrajoli, em trs acepes. A primeira delas entende o garantismo como um modelo normativo de direito, responsvel pela correo do ordenamento jurdico-penal, a partir de seu construto heurstico. A segunda acepo concebida como uma teoria crtica do direito, que rompe com o dogma positivista da validade enquanto existncia da norma jurdica, para traar um contorno diverso da matria, destinando o termo vigncia para tal designao. A terceira e ltima acepo do termo garantismo versa sobre um modelo de filosofia do direito e crtica da poltica, baseada, sobretudo na separao entre direito e moral. Para uma abordagem destas trs esferas vide a seo V do livro Direito e Razo. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p.851-854. 30 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. Vol. 26. p. 309. 31 BINDER, Alberto M. Introduo ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2003. p. 26.
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extravasar. A transgresso outra figura do limite que trabalha em prol da ilimitao32. O
poder penal cuja tendncia expansiva e ilimitada encontra na figura da transgresso
(geralmente de direitos e garantias fundamentais) o seu suporte diferencial relativo ao
desvio, responsvel pela engrenagem estatal que corresponde violao dos direitos dos
sujeitos e que, como tal, aparece na teoria do poder como algo necessrio, inerente
dinmica do maquinrio punitivo. Aqui, como bem apontado por Foucault33, a gesto
diferencial das ilegalidades e o tratamento do Estado para determinadas espcies da
criminalidade emergem como algo funcionalmente adequado sociedade. O abuso por
parte do poder punitivo, nesta senda, no pode ser considerado, como faz boa parte da
criminologia tradicional, como algo extraordinrio, anormal ou brbaro. O funcionamento
da justia penal baseia-se e tem como sustentculo esta constante tenso entre a limitao
estatal e a tendncia transgresso, figura da ilimitao. Como destaca Martins34, existe
uma pulso centrpeta do limite, que significa que as fronteiras trabalham para dentro.
As fronteiras nada mais so do que faces do centro. Transportando-se este pensamento
relativo ao Estado para a criminologia, possvel chegar-se concluso de que a
delimitao do poder as reas de fronteira outro semblante do centro. O poltico,
assim, constitui outra face do jurdico e vice-versa. Esta zona fronteiria, que se caracteriza
como uma espcie de fundo alucinatrio da crena 35 principalmente permeada pela
teoria da pena, que torna maleveis os discursos jurdicos e polticos. Desta maneira, apesar
da existncia de uma relao estreita entre pena e processo36, a instrumentalidade do
processo penal no pode atender s teorias absolutas ou relativas da pena, preferindo-se, a
fim de delimitar o campo jurdico e o poltico, a concepo agnstica. As teorias da pena
so marcas indelveis da ilimitao37. Relacionadas tambm, a mais uma grande questo
que o garantismo no consegue responder: os espaos irredutveis de disposio.
32 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. Vol. 26. p. 310. 33 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da priso. 34 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. Vol. 26. p. 317. 35 CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. p. 318. 36 O processo, como instituio estatal, a nica estrutura que se reconhece como legtima para a imposio da pena. LOPES JNIOR, Aury. Introduo Crtica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). p. 03. 37 A ilimitao a possibilidade sempre em aberto de que ocorram todas as diversas figuras do limite, em regime de potencial absoro de todas elas da demarcao, da transgresso, do impulso centrpeto e interior, da ilimitao propriamente dita e de todos [sic] as entidades que nelas se fundamentam dos Estados, inclusive, tambm eles absorvidos, mais que diludos, sob a forma de imprio. CUNHA MARTINS, Rui. Estado, Tempo e Limite. In Revista da Histria das Idias. p. 325.
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Esta expanso do poder judicial38, em face do declnio do patriarcado nas
sociedades ps-industriais39 responsvel por uma minimizao dos espaos de deciso
institucionais, o que demanda uma segunda problematizao a ser extrada do conceito de
limite: trata-se da necessidade de se (tentar) controlar (mesmo que precariamente) o
processo de judicializao40. Esta tarefa cujo incessante incremento legislativo e uma
perceptvel demanda pelo reencontro com o terceiro (nomeadamente o juiz, numa falsa
pressuposio de que este possa realmente constituir terceiridade) destina a borrar as
fronteiras entre legislao, jurisdio e administrao41. Justamente a temperana entre as
esferas poltica e jurdica acaba sendo dilapidada, expropriada por uma vontade de ascese
como instncia ltima, como a panacia para os males que afligem a sociedade. A extenso
dos poderes judiciais e as funes que passam a ser desempenhadas pelo juiz dependem
significativamente das distintas formas de limitao42. A forma instrumental do processo
ganha aqui corpo, justificada pelas barreiras opostas poltica. Uma vez mais o papel das
garantias43 e direitos fundamentais e principalmente pela concepo de instrumentalidade
que se lhe atribua fundamental para o desenvolvimento conclusivo desta questo44.
Conceber o processo penal como instrumento de aplicao da pena45 ou ento, como limite
38 Esta judicializao acaba por impor uma verso penal a qualquer relao poltica, administrativa, comercial, social, familiar e at amorosa doravante descodificada na perspectiva binria e redutora da relao vtima/agressor. GARAPON, Antoine. O Guardador de Promessas: justia e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 24. 39 Cf MELMAN, Charles. O Homem Sem Gravidade: gozar a qualquer preo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. 40 GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Prefacio. In Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 09. 41 GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 21. 42 GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 107. 43 Para uma relao entre direitos e suas garantias, importante a definio de Ferrajoli, para quem Los derechos fundamentales, de la misma manera que los dems derechos, consisten em expectativas negativas o positivas a las que corresponden obligaciones (de prestacin) o prohibiciones (de lesin).Convengo em llamar garantias primarias a estas obligaciones de reparar o sancionar judicialmente las lesiones de los derechos, es decir, las violaciones de suas garantias primarias. FERRAJOLI, Luigi. Derechos Fundamentales. In _______. Los Fundamentos de los Derechos Fundamentales. Madrid: Trotta, 2001. p. 26. 44 O pensamento clssico oficial, apesar de romper com o barbarismo do processo penal, instaurar regime de legalidade e humanizar a pena, no deixa de apresentar um ncleo ideolgico anti-iluminista (ou uma confuso ps-iluminista entre direito e moral) calcado nos princpios ideolgicos da Defesa Social, representado, principalmente, no que Alessandro Baratta denomina de princpio do bem e do mal. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. p. 58. 45 O primeiro e mais sensvel efeito da adoo do modelo penal de garantias a negao, a priori, das teorias de preveno especial positiva (ressocializadoras) como argumento justificacionista da pena, e, posteriormente, das prprias justificaes jurdicas s sanes. CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. p. xxv.
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ao poder poltico46 (a pena fundamentalmente conceito poltico e no jurdico, como
leciona Tobias Barreto) significa assumir uma posio de limitao ao poder judicial ou
sua ampliao desmesurada47. Da que as formas inquisitoriais de processo encontram nas
novas formas de administrao de justia penal campo frtil para a propagao de institutos
que ampliam as funes acusatrias tributveis aos rgos de magistratura48.
Assim, possvel determinar, segundo o conceito de instrumentalidade haurido
junto s bases epistemolgicas de uma determinada cultura jurdica aqui a continental
se esta instrumentalidade corresponde aplicao da pena ou pelo contrrio, se limitativa
desta.
No Brasil, predomina a formulao que concebe a instrumentalidade em ntido
carter tico-poltico, minando justamente a idia de limitao do poder estatal. Assim, por
exemplo, Dinamarco sustenta o carter tico do processo, criticando a existncia de
nveis intolerveis de prevalncia do princpio dispositivo, em pleno Estado
intervencionista 49. Alm disso, esta instrumentalidade guarda estreita relao com o
conceito de forma processual50. A relativizao das formas, aliada ampliao dos espaos
de poder judicial constitui inegvel pea de engrenagem de um processo penal pautado por
46 A instrumentalidade do processo penal o fundamento de sua existncia, mas com uma especial caracterstica: um instrumento de proteo dos direitos e garantias individuais. uma especial conotao do carter instrumental e que s se manifesta no processo penal, pois trata-se de instrumentalidade relacionada ao Direito Penal, pena, s garantias constitucionais e aos fins polticos e sociais do processo. o que denominamos instrumentalidade garantista. LOPES JNIOR, Aury. Introduo Crtica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). p. 10. 47 En todo caso, se perciba o no, hoy las democracias se encuentran ante el juez poltico. As el problema de su responsabilidad se agudiza. GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 165. 48 Son poderes que pueden derivar de la tradicin inquisitoria en el proceso, que con frecuencia perdura ms all de las formas concretas o del hecho de que, en pases como Francia e Italia, el juez y el fiscal pertenezcan al mismo cuerpo. GUARNIERI, Carlo; PEDERZOLI, Patrizia. Los Jueces y la Poltica: poder judicial y democracia. p. 166. 49 DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 12 ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 41. Ainda: Sua natureza instrumental impe que todo o sistema processual seja permeado dessa conotao, para que realmente aparea e funcione como instrumento do Estado para a realizao de certos objetivos por ele traados; com o aspecto tico do processo no se compadece o seu abandono sorte que as partes lhe derem, ou uma delas em detrimento da mais fraca, pois isso desvirtuaria os resultados do exerccio de uma atividade puramente estatal e pblica, que a jurisdio. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 64. 50 Segundo Dinamarco, no uso de uma concepo tica e substancialista de processo, o juiz criar modos de tratar a prova, de colher a instruo ou de sentir as pretenses das partes: interrog-las- livremente, dialogar com elas e permitir o dilogo entre elas ou delas com as testemunhas, visitar o local dos fatos, ou examinar coisas trazidas com sinais ou vestgios de interesse para a instruo; permitir que argumentem a qualquer tempo e lhes dirigir perguntas ainda quando declarada finda a instruo e tudo sem as formas sacramentais do processo tradicional. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 156.
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parmetros de eficincia51, compondo uma dimenso eticizante de sistema punitivo52, no
sentido hegeliano de um Estado tico. Obviamente, esta dimenso de um Estado tico deu
azo para que se consolidassem, durante o sculo XXI, formas estatais de esmagamento e
compresso da diferena. Neste sentido, no parece fantasiosa a advertncia de
Goldschmidt, de que o processo penal o termmetro que aponta o grau de elementos
democrticos ou autoritrios de um determinado Estado.
Retornando-se instrumentalidade do processo, percebe-se que no se pode auferi-
la nem avali-la a partir de um lcus neutro do discurso. preciso assumir uma
determinada concepo de processo, para que a partir de ento as conseqncias de tal
postura possam trazer todos os seus efeitos. Com o constitucionalismo ps-guerra e com a
assuno da Constituio da Repblica condio de validade das demais normas
(movimento este que se d precisamente a partir de Kelsen53, que estabelece as bases
epistemolgicas para que a Constituio da Repblica assuma este ranking) se encontra
alicerada a primeira categoria fundamental para a contempornea teoria da Constituio da
Repblica. No entanto, no basta que a Constituio da Repblica seja elevada a um status
hierarquicamente superior. Passo decisivo para uma eficcia constitucional plena se deu
com o denominado ps-positivismo e a preocupao para com os princpios, que se
consolidam como normas54.
Logicamente, se a Constituio da Repblica, que disciplina via de regra a imensa
gama de princpios jurdicos do Estado Democrtico de Direito depositria de uma srie
de normas, no mais pode ser considerada como mera coadjuvante, carta de intenes ou
mesmo documento poltico e programtico, identificado como o conjunto dos valores de
determinada sociedade. Certamente, a diferena ontolgica esculpida por Alexy, que
51 Exemplo disso pode ser encontrado em Dinamarco, para quem relativizar as nulidades eis a chave instrumentalista a ser inteligentemente acionada por juzes empenhados em fazer justia, sem o comodismo intelectual consistente em apoiar-se no formalismo e esclerosar o processo. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 157. 52 O formalismo e lentido dos procedimentos, associados estreiteza da via de acesso ao Poder Judicirio e impunidade consentida pelos tribunais nestes tempos de verdadeira neurose em face da violncia urbana, so fatores de degradao da legitimao do poder perante a sociedade brasileira contempornea. DINAMARCO, Cndido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. p. 171. 53 Cf KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. Cf KELSEN, Hans. Teoria Geral das ormas. Porto Alegre: SAFE, 1986. 54 Cf ALEXY, Robert. Teora de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estdios Constitucionales, 1993. GARCA DE ENTERRA, Eduardo. La Constitucin Como orma y el Tribunal Constitucional. 3 ed. Madrid: Civitas, 1994. HESSE, Konrad. A Fora ormativa da Constituio. Porto Alegre: SAFE, 1991.
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estabelece os princpios e regras como espcies de normas contribuiu significativamente
para que a Constituio da Repblica pudesse assumir-se como pice do ordenamento,
suplantando e debelando a posio positivista, que distinguia normas e princpios,
relegando-os a um papel secundrio, geralmente da ordem da integrao e colmatao das
lacunas.
Retornando-se ao processo penal e sua instrumentalidade, o papel central assumido
pela Constituio da Repblica no diverso. Nesta que se encontram positivadas a
imensa maioria das garantias processuais penais. E se de fato assim , a instrumentalidade
do processo no pode ser outra, pena de se subverter a mxima piramidal kelseniana, que
aquela advinda da prpria Constituio da Repblica. Desta arte, fala-se, na esteira de Aury
Lopes Jnior, de instrumentalidade constitucional55. Esta instrumentalidade
constitucional no quer dizer outra coisa que o processo penal contemporneo somente se
legitima medida que se democratizar e for devidamente constitudo a partir da
Constituio 56.
A instrumentalidade do processo penal comea a ser construda a partir do que
Ferrajoli denomina de estrita jurisdicionalidade. Antes mesmo de ingressar mais
profundamente nesta categoria, preciso uma parada mais detida nos pressupostos
epistemolgicos do garantismo. O primeiro deles dirige-se fundao de um
conhecimento jurisdicional oposto ao autoritarismo judicial. Este aspecto cognoscitivo
do Direito constituiria uma das metas do modelo corretivo do Direito proposto por
Ferrajoli. O modelo penal garantista trata da minimizacin del poder y de maximizacin
del saber judicial, en cuanto condiciona la validez de las decisiones a la verdad, emprica y
lgicamente controlable, de sus motivaciones57. Um segundo aspecto, no to relevante
para o desfecho da presente investigao quanto o primeiro, diz respeito filosofia do
direito, num sentido valorativo e poltico, da justia penal mais especificamente o
problema da pena. Um terceiro fundamento epistemolgico do garantismo penal radica-se
na teoria da validade e no seu imbricamento a um modelo constitucional de legalidade58.
55 LOPES JNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. v. I. 56 LOPES JNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. v. I. p. 08. 57 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p. 22. 58 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn: teora del garantismo penal. p 23.
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Os princpios garantistas, portanto, so concebidos como esquemas identificadores
de graus de irracionalidade penal. Tendentes, nesta senda, a servir de parmetro
relativizao da arbitrariedade. Evidentemente, possvel, como estampa Ferrajoli59,
reconhecerem-se dois momentos fundadores deste sistema: num primeiro plano, a prpria
definio legislativa do delito e em um segundo, a sua comprovao emprica
(jurisdicional). No primeiro plano situam-se as garantias penais e no segundo as
processuais60.
Pela extenso da presente investigao, to somente ser examinado este segundo
espectro. O cognitivismo processual e a estrita jurisdicionalidade correspondem seara
delineada naquele referido segundo ponto. O princpio da estrita jurisdicionalidade requer,
por seu turno, duas condies de consubstanciao. A primeira delas pode ser concebida
como verificabilidade ou refutabilidade das teses acusatrias61, que significa a proibio de
um juzo apodtico. Trata-se de um controle emprico submetido verificao/refutao que
se consolida mediante a remisso da assertiva acusatria a um teste de procedncia, jungida
teoria da prova. Como corolrio desta postura, Ferrajoli adota, em rechao
epistemologia inquisitria, a verdade processual em detrimento da substancial ou material.
Apesar de o presente tpico versar to somente sobre a estrita jurisdiciona