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Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico, de Michel Tournier, uma releitura da tradição em
termos pós-coloniais
Carla Denize Moraes
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)
Resumo: Este estudo consiste na análise de dois romances, pertencentes a momentos históricos
e literários distintos. O recente Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico (1967), de Michel
Tournier, desenvolve-se como uma releitura contemporânea do clássico Robinson Crusoé
(1719), de Daniel Defoe. A reescrita da tradição se apresenta como uma das estratégias
discursivas do pós-colonialismo que, de acordo com Bonnici (2000), apropria-se do texto
canônico e problematiza seu enredo de forma crítica, discutindo sua ideologia sob nova
perspectiva. Ao retomar o texto de Daniel Defoe, Michel Tournier tece reflexões sobre a
relação entre colonizador e colonizado, atualizando perspectivas e problematizando o discurso
dominante apresentado por meio da autodiegese em Robinson Crusoé. O objetivo deste
trabalho é investigar de que maneira se dá a desconstrução da tradição colonialista na narrativa,
de forma a reverter o processo de silenciamento do colonizado.
Palavras-chave: Pós-colonialismo; Releitura contemporânea; Desconstrução; Sexta-feira ou
Os Limbos do Pacífico; Robinson Crusoé.
Abstract: This work consists in na analisis of two novels both belonging to distincts literary
and historical moments. The recent Sexta-feira ou Os Limbos do Pacífico (1967), by Michel
Tournier, develop itself as a contemporary rewriting of the classic Robinson Crusoé (1719), by
Daniel Defoe. The rewriting of the tradition presentes consists in one of the discoursive
strategies of the Post-colonialism which, according to Bonnici (2000), appropriate itself the
canonic text and render problematic its plot in a critical way, discussing its ideology under a
new perspective. When bringing Daniel Defoe’s text back, Michel Tournier introduces
reflexion about the relationship between colonizer and colonized, updating perspectives and
rendering problematic the dominant discourse presented by means of auto-diegesis in Robinson
Crusoé. The aim of this work is investigate in which way the deconstruction of the tradition
occurs in the narrative, to revert the process of making silent the colonized.
Key-words: Post-colonialism; Contemporary re-reading; Deconstruction; Friday or The Other
Island; Robinson Crusoe.
A leitura, seja de um autor por outro, ou de uma época por outra, é também uma releitura
ou uma atualização dos sentidos do texto recuperado pela voz do presente histórico. Ao olhar
para o passado com as lentes do presente, se estabelece um diálogo crítico com o pensamento
de uma época, o que se evidencia nos dois romances que constituem a base deste estudo e sobre
os quais empreenderemos uma análise com vistas a demostrar de que maneira a estética pós-
colonial ressignifica a tradição, despindo-a de seu caráter totalizante.
As obras que serão analisadas pertencem a momentos históricos distanciados no tempo.
Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, escrito no século XVIII e Sexta-Feira ou os Limbos do
Pacífico, no século XX, de Michel Tournier. Nascido na França, este último é um escritor
considerado muitas vezes pela crítica um dos maiores romancistas do século XX entre os
franceses. Escrito em 1967, o romance premiado pela Academia Francesa, Sexta-feira ou os
limbos do Pacífico, cujo título em francês é Vendredi ou les limbes du Pacifique, é o primeiro
do autor e o mais aclamado pela crítica e pelos leitores. Foi também seu primeiro romance a
ser traduzido para o Português, pelas mãos de Fernanda Botelho. O autor estudou filosofia,
tendo como colega de classe Gilles Deleuze, que se tornaria crítico de sua obra e também amigo
- o que influenciou o teor do romance, repleto de implicações filosóficas e que circundam o
mito de Robinson Crusoé.
Tournier almejava ser lido por todas as camadas de leitores, sem aspirações elitistas, o
que fez com que não fosse popular entre os círculos dos intelectuais franceses. Esse
posicionamento se reflete no conteúdo de sua escrita que busca a desconstrução da imagem do
colonizador europeu tradicional. Essa aspiração o leva a escrever de forma límpida, despida da
influência estética vanguardista, o que não o impede de realizar uma reelaboração crítica da
tradição literária, mais precisamente, do romance Robinson Crusoé, de Daniel Defoe.
Autor inglês, nascido em Londres, Daniel Defoe viveu entre a segunda metade do
século XVII e o início do século XVIII. Antes da publicação de seu mais famoso romance, já
havia escrito vários textos dos mais variados assuntos, incluindo artigos, tratados políticos e
poemas. Todavia, foi com Robinson Crusoé, em 1719, que de fato iniciou sua carreira como
romancista, produzido uma obra que o tornaria um dos autores mais importantes de seu tempo.
Entre suas mais famosas produções encontra-se Moll Flanders (1722), romance a frente de seu
tempo, uma vez que traz como protagonista uma mulher, que é considerada pela crítica uma
das grandes narradoras da literatura universal.
Nota-se em Robinson Crusoé traços característicos de sua experiência pessoal. Defoe
era um burguês protestante, condição herdada da tradição de sua família, o que traz para a obra
questões relacionadas à ideologia protestante e burguesa (COSTA LIMA, 2009). Foi
comerciante e empreendeu muitas viagens pela Europa, de forma semelhante a seu
personagem. Robinson Crusoé é um modelo típico da classe burguesa protestante europeia,
que acredita no comércio, na religião e no progresso. Isso reflete a visão de mundo do autor e
consequentemente expõe questões históricas e sociais de seu tempo.
Em ambos os textos evidencia-se a presença da ideologia histórico-política do período
histórico dos respectivos autores. Enquanto Defoe retrata a face da sociedade europeia do
século XVIII, período em que o tráfico de escravos e a subjugação dos povos colonizados ainda
figurava como estrutural, ou seja, naturalizada, Tournier vem representar a mudança de
mentalidade ocorrida no século XX em relação a tal ideologia.
Como aponta Linda Hutcheon (1991), na esteira das ideias pós-colonialistas, a literatura
contemporênea dá voz ao “outro lado”, ou seja, dá visibilidade à perspectiva dos povos
marginalizados. Este gesto de incluir o discurso periférico na literatura pós-moderna tem o
efeito de “[...] transformar o diferente, o off-centro, no veículo para o despertar da consciência
estética e até mesmo política.” (HUTCHEON, 1991, p.103).
Essa problemática se desenvolve de formas muito distintas em ambos os textos, o que
está atrelado ao olhar com que cada um dos autores olha para sua realidade e, particularmente
em Tournier, também para o passado. Dessa forma, procuraremos mostrar como o texto
contemporâneo lê a tradição criticamente e como subverte - e por isso propõe reflexão - a
ordem estabelecida e as certezas tidas como universais no pensamento colonialista do século
XVIII.
Olhando para o passado criticamente
O romance parece estar constantemente se renovando, alimentando-se de seu tempo
como matéria poética viva. A literatura contemporânea, cuja estratégia privilegia o diálogo
entre textos, nutre-se da tradição, fazendo imergir do discurso literário perspectivas
atualizadoras,
A literatura potencial e conflituosa de nosso tempo tenta dar-nos, pois, a parte
não-escrita ou não-lida do mundo. Mas como o disse e compreendeu
supremamente Borges, as grandes obras do passado são parte do futuro. [...]
O novo romance igualmente nos diz que o passado pode ser a maior novidade
de todas. (FUENTES, 2007, p.32).
Assim, Robinson Crusoé, ao ser lido na década de 1960 do século XX por Michel
Tournier, passa a assumir um novo sentido na medida em que é decodificado para ser
recodificado em Sexta-feira ou os limbos do Pacífico. Nesse sentido, o romance pós-moderno
traz o passado para o texto contemporâneo, refletindo sobre ele e o ressignificando,
Todas as obras de artes [pós-modernas] usam e abusam, estabelecem e depois
desestabilizam a convenção de maneira paródica, apontando auto-
conscientemente para os próprios paradoxos e o caráter provisório que a elas
são inerentes, e, é claro, para a reinterpretação crítica ou irônica em relação à
arte do passado. (HUTCHEON, 1991, p.43).
O pós-modernismo, cuja poética inclui em grande medida a vertente pós-colonial por
questões ideológicas e estilísticas (HUTCHEON, 1991), traz consigo uma estética que se volta
para a interpretação dos textos canônicos a qual possibilita que se faça uma leitura analítica
(BONNICI, 2000) dos textos coloniais.
Nesse contexto, é importante destacar que o cânone é um produto do poder. Quem
determina as obras que podem ser definidas como tal é quem tem a força controladora da
ideologia, guiada por uma complexidade de fatores, muitas vezes externos à própria literatura.
Assim, a centralidade europeia “cria” determinadas regras, ou seja, estabelece que uma obra,
para ser canônica, precisa atender a certos critérios estabelecidos pelo bloco dominante,
refletindo sua cultura e sua postura social, política e econômica, relegando às outras culturas o
estereótipo de inferiores:
Não somente a ligação entre o cânone literário e o poder é um fato
indiscutível, mas também sua utilização para fixar a superioridade do
colonizador, degradar o ‘primitivismo’ do colonizado e relegar à periferia
qualquer manifestação cultural e literária oriunda da colônia. (BONNICI,
1998, p.16).
Bonnici afirma que o interesse que a obra de Daniel Defoe suscita aos críticos de vários
períodos deve-se, principalmente, à problemática colonialista que o texto, por mais que busque
camuflar, não consegue esconder. Ao ler o texto com atenção, facilmente se pode perceber o
“posicionamento do personagem europeu diante do não-europeu” (BONNICI, 2000, p. 79).
Para Robinson, o encontro com o outro não significa repensar a si mesmo na diferença, pelo
contrário, julga sempre a priori que o diferente necessita de alguém que o “salve” da
ignorância, da condição de selvageria em que se encontra. Para ele, de forma muito
naturalizada, a sujeição do nativo às condições do homem branco europeu não significam senão
que cada coisa está em seu lugar,
A dominação colonial existiu para convencer os nativos de que a proposta
colonial nada mais era do que banir a escuridão da inexistência da cultura na
sua vida e esclarecê-los sobre a única cultura, a europeia, que eles, quisessem
ou não, teriam de assimilar. (BONNICI, 2000, p.28).
Com efeito, a problemática colonialista pode ser mais bem percebida graças ao
distanciamento temporal que há entre o colonial e o pós-colonial. Através da perspectiva da
narrativa contemporânea, compreendida aqui a partir de traços pós-modernos e pós-coloniais,
é possível lançar um olhar reflexivo sobre a literatura colonial, o que possibilita que Robinson
Crusoé seja agora “lido” criticamente, colocando em evidência as lacunas deixadas por Defoe
e seu discurso colonialista.
Desestabilizar essa ordem tão estratificada sem perder o estatuto de literatura séria foi
um desafio para os pós-modernistas, cuja saída foi encontrada “na subversão, ou seja, a resposta
ao centro” (BONNICI, 1998, p. 18), o que levou ao surgimento, no seio da teoria pós-moderna,
de uma autêntica literatura pós-colonial.
Uma das principais estratégias do pós-colonialismo consiste em questionar a visão
central europeia e para isso, adota-se a reinterpretação e a reescrita promovendo, assim, a
reflexão sobre o passado, mostrando que é possível olhar para ele sob um novo ponto de vista,
através de um outro ângulo, ou seja, com o olhar do “outro”. Chamar-se-á atenção aqui para a
reescrita, que consiste na “[...] retomada de obras literárias do cânone... para a reestruturação
das ‘realidades’ europeias em termos pós-coloniais. A finalidade não é a reversão da ordem
hierárquica, mas interrogar os pressupostos filosóficos sobre os quais tal ordem estava
baseada.” (ASHCROFT, 1991 apud BONNICI, 1998, p. 19, grifo do autor).
De outro lado, temos a releitura que trata de descontruir as certezas contidas nos textos
de ideologia colonial, uma forma de diálogo com esses textos, promovendo reflexões sobre
seus pressupostos, “A finalidade da releitura pós-colonial consiste em demonstrar (1) o grau
de contradição existente no texto, que subverte seus próprios pressupostos, ou seja, a
civilização, a justiça, a estética e a sensibilidade, e (2) as estratégias e as ideologias coloniais.”
(BONNICI, 2000, p. 43)
Este é o trabalho que as literaturas pós-coloniais procuram realizar, procurando
problematizar a dicotomia império-colônia, o que significa um movimento em direção a
“descolonização” (BONNICI, 1998, p.17). Assim, para que haja uma escrita pós-colonial, é
necessário que haja um processo descolonizador, ou seja, que a escrita literária se liberte das
amarras coloniais e conte a história dos oprimidos. Da mesma forma, é necessário que críticos
e leitores também alterem sua perspectiva ao entrar em contato com tais obras (BONNICI,
1998), pois a leitura se completa em sua recepção.
Desta forma, cabe agora ao autor desvelar os mecanismos que tão bem encobriam as
adversidades vividas pelos povos colonizados. Desse modo, percebe-se que a produção literária
contemporânea, ao fazer referência ao passado, acaba por reconstruí-lo, uma vez que ela, por
si só, não tem a propriedade de determinar “verdades” históricas, mas, é seu compromisso tecer
reflexões sobre a ideologia da sociedade de onde se originam os textos canônicos.
O texto de Tournier, apesar de apresentar traços do romance tradicional, carrega
consigo uma abordagem temática atual - e atualizadora -, bem ao gosto da pós-modernidade.
A forma linear da escrita e as longas descrições, sem experimentações com a linguagem,
aludem às formas tradicionais do romance, porém, há a presença clara de características
próprias das narrativas pós-modernistas, como o uso da ironia e da paródia, esta última, não
mais como forma de texto humorístico exclusivamente, mas como retomada crítica, com
pinceladas de humor, como forma de problematizar criticamente as “verdades” inquestionáveis
no texto canônico. (RODRIGUES, 2008).
No aspecto formal, o que rompe com o romance tradicional é o uso de mais de uma voz
narrativa, pois o texto apresenta intercaladas as vozes do narrador autodiegético e de um
narrador heterodiegético. A narrativa em primeira pessoa aparece nas páginas do Log-book, o
diário de Robinson, no qual não mais se registram exclusivamente a sucessão de
acontecimentos - em tom realista de um náufrago preso em uma ilha deserta - como se dá na
obra de partida, mas também os pensamentos, impressões e reflexões intrínsecos ao sujeito
Robinson e é, em parte, por meio deles que o leitor acompanhará sua transformação, “As
reflexões dão a medida exata do estágio da evolução da personagem.” (RODRIGUES, 2008),
ao passo que a narração em terceira pessoa age articuladamente com a voz de Robinson,
inserido na narrativa de modo a torná-la fragmentada estilisticamente, recurso que dialoga com
o caráter fragmentário da personagem, que se vê entre dois mundos e por isso oscila entre suas
certezas e incertezas.
Crusoé e Sexta-feira e a intersecção das individualidades
Ambos os textos trazem em sua bagagem se não todas as suas marcas estilísticas em
sua forma mais original, a discussão essencial que percorre todos os relatos de viagem, ou seja,
o que a viagem representa em relação à construção do indivíduo. Ora, primeiramente porque
ela proporciona o contato com o outro (ESTEVES; ZANOTO, 2010, p.15), e esse contato é
fator imprescindível na construção do olhar deste indivíduo, afinal “o eu não existe sem um
tu” (TODOROV, 2006, p.238, grifos do autor). Ela também ganha outras dimensões na medida
em que pode ser pensada como viagem interior, processo de mudança disparado quando do
contato com o diferente, o que reverbera no texto de Michel Tournier, como veremos mais
adiante.
Esta construção proporciona o encontro, ou desencontro, isto é, a relação de choque
cultural que se dá no contato entre diferentes culturas, e contribui significativamente “na
construção da identidade, seja individual, cultural, política ou ideológica.” (ESTEVES;
ZANOTO, 2010, p.15). Pelo menos num primeiro momento, o desencontro e o conflito, em
razão de que o viajante, na maioria das vezes, julga negativamente tudo que é diferente de si,
e tenta submeter o outro à sua dominação. Mais precisamente, o sentimento de superioridade,
o pedantismo, os costumes tidos como civilizados, oriundos da propriedade intelectual,
científica ou tecnológica europeia faz com que tenham os instrumentos necessários para
subjugar os povos mais primitivos. A certeza de sua superioridade origina-se na mentalidade
de uma sociedade guiada por novos valores e costumes,
A sociedade inglesa do final do século XVII e começo do século XVIII
produz uma nova classe de pessoas, desligadas da realeza, da igreja
estabelecida e da sociedade rural. Busca-se a salvação no negócio e na união
da consciência com Deus. Toda a narrativa de Robinson Crusoé está imbuída
da consciência de desígnios divinos e de uma industriosa (embora não
obsessiva) preocupação com bens materiais adquiridos pelo trabalho contínuo
e inteligente. É nesse ponto que o problema do outro se realça mais, porque o
fatores acima mencionados decididamente deixam seu impacto no encontro
entre o europeu e o indígena. (BONNICI, 2000, p. 80).
Para Watt (1990, p.56) a base dessa nova ordem social já não estava mais na família,
na igreja ou qualquer entidade coletiva, mas sim no indivíduo, e isso em grande parte se deve
ao “[...] advento do moderno capitalismo industrial e a difusão do protestantismo, sobretudo
em suas formas calvinista ou puritana.” (WATT, 1990, p.56). Esse indivíduo, segundo o autor,
era tido como ser autônomo, responsável pelo seu próprio desenvolvimento e se permitia fazer
escolhas pautada unicamente em seus valores pessoais.
Esse contexto se refletiu obviamente no campo da literatura, cuja polêmica gerou uma
divisão de opiniões entre os escritores da época. Havia aqueles que defendiam a tradição, que
está intimamente atrelada à visão de coletivo, e outros que aderiram ao movimento
transformador, entre eles Daniel Defoe, o qual foi educado segundo os preceitos não-
conformistas.
Neste sentido, Ian Watt afirma que o personagem Crusoé ilustra de maneira simbólica
o “homem econômico” da era do capitalismo industrial. Um homem que, apesar das reflexões
sobre o valor do dinheiro enquanto vivia na ilha deserta, revela-se sempre guiado pelo seu
empreendedorismo,
Desci um pouco pela encosta desse vale encantador, examinando-o com uma
espécie de prazer secreto (embora misturado a outros pensamentos que me
atormentavam), ao pensar que tudo isso era meu, que era rei e senhor
incontestável de toda essa terra, que dela tinha o direito irrevogável de posse,
e que se a conseguisse legitimar publicamente poderia transmiti-la por
herança tão bem quanto o feudo de um lorde na Inglaterra. (DEFOE, 2010,
p.108).
O Robinson Crusoé de Defoe é um homem que procura reproduzir na ilha a sua
realidade anterior de homem civilizado, o homem que, por meio de seu engenho, tem o poder
civilizatório da conquista, de dominar a natureza e estabelecer nela sua ordem civilizatória. Ao
passo que o Robinson de Tournier, por mais que tente a princípio ter o domínio sobre o
desenvolvimento da ilha, vê sua tentativa fracassar diante da “desordem” já estabelecida pela
natureza.
Por mais que tente controlar os processos que culminariam na realização plena de seu
projeto civilizatório, Robinson Crusoé acaba percebendo ao longo da narrativa que está
travando uma luta vã, frente a uma ordem natural que é anterior a ele, cuja resistência se dá
principalmente por meio da figura de Sexta-feira, um espírito livre que interage de forma
orgânica com a ilha e os seres que a habitam.
Aos poucos, Robinson vai percebendo as particularidades da ilha e do nativo, ao mesmo
tempo que, paulatinamente, passa a sofrer um processo de transformação. De forma
conflituosa, Robinson fica dividido entre os dois mundos, é quando começa a questionar seus
hábitos de homem civilizado e mesmo o próprio conceito de civilização,
Pela primeira vez perguntou-se se as suas exigências de delicadeza, as suas
repugnâncias, as suas náuseas, todo esse nervosismo de homem branco seriam
um último e precioso testemunho de civilização ou, pelo contrário, um
balastro morto, que seria necessário um dia rejeitar para entrar numa vida
nova. (TOURNIER, 1991, p. 153).
Aos poucos, vencido pela constância da indisciplina do araucano, passa a observá-lo
em sua existência, que para Robinson era exoticamente inferior, e começa a perceber que ali
naquele corpo de cor e tez tão diferentes das suas havia um indivíduo pleno em suas
particularidades. Certo dia, ao observar o nativo, Robinson se detém por alguns instantes na
forma do olho, perguntando-se como um ser tão repugnante poderia ter um órgão tão perfeito
como aquele, se vê, repentinamente, questionando-se o que mais havia no araucano que passara
desapercebido pelo seu olhar, “Robinson debate-se interiormente com esta dúvida. Pela
primeira vez, entrevê nitidamente, no mestiço grosseiro e estúpido que o irrita, a possível
existência de um outro Sexta-feira [...] (TOUNIER, 1991, p. 161).
Trata-se, portanto, de uma forma simbólica de reverter narrativamente o curso de
desenvolvimento da história oficial tido como único possível e demostrar que há um outro lado,
que há maneiras outras de se relacionar com o novo e desconhecido. Trata-se de demonstrar
que o encontro com o outro não é uma via de mão única e sim, é possível que a partir dele se
estabeleça também uma transformação em sentido contrário. Em Tournier, as culturas sofrem
uma espécie de simbiose, em que há aprendizado de ambos os lados.
Ao inserir essa perspectiva o autor francês promove uma desnaturalização do olhar, em
que a representação do mito robinsoniano veste-se de uma nova roupagem, rompendo com as
interpretações cristalizadas, e desse modo refletindo o novo sistema de pensamento, que
problematiza o modelo anterior. Essa característica significa o retorno na diferença, segundo
as concepções estabelecidas pelos autores chamados desconstrucionistas (COSTA LIMA,
2000, p. 236). Apesar de manter-se o fundo de semelhança, no texto de Michel Tournier
percebemos um sujeito que elabora sua realidade de uma forma totalmente nova, guiado pelo
espírito de seu tempo.
As personagens representantes da relação com a alteridade são construídas de uma
forma totalmente diversa. A partir deste ponto, para fins de garantir clareza, passaremos a nos
referir ao nativo como Sexta-feira, quando se tratando da personagem de Defoe, e Vendredi,
para nos referirmos à personagem de Michel Tournier.
Enquanto em Defoe vemos Sexta-feira deixar-se dominar por Robinson, tornando-se
seu fiel criado, em Tournier, Robinson acaba deixando-se contaminar pelos modos de agir do
nativo, que, num primeiro momento, causam estranhamento, mas depois o fazem refletir a
ponto de começar a questionar os termos de sua civilidade, “[...] perguntou-se se as suas
exigências de delicadeza, as suas repugnâncias, as suas náuseas, todo este nervosismo de
homem branco seriam um último e precioso testemunho de civilização ou, pelo contrário, um
balastro morto, que seria necessário um dia rejeitar para entrar numa vida nova.” (TOURNIER,
1991, p. 153).
Dessa forma, há um movimento de retorno ao primitivo, um abandono da condição de
ser social da personagem, conforme aponta Rodrigues (2008), em que o sujeito, aos poucos,
retorna a um estado orgânico natural, em outras palavras, ele retorna a um estágio de comunhão
com a natureza, despindo-se, pouco a pouco, de todos os comportamentos construídos
socialmente.
Enquanto o Robinson de Defoe, apesar de todas as experiências vividas em seu
isolamento de 28 anos na ilha, volta à civilização sem sinais de mudança, ou seja, o afastamento
só fez reforçar em si as suas certezas socialmente construídas, tanto que, assim que foi
resgatado, tratou de retomar os negócios e, ainda, de oficializar a posse da terra descoberta. Já
a personagem de Tournier passa por um grande processo de transformação ao longo da
narrativa, que é promovido por meio de seu potencial caráter reflexivo, o que evidencia o tom
filosófico do relato. Sua experiência na ilha coloca a sua frente novas possibilidades de
existência, as quais ela abraça e interioriza, tornando Robinson um novo homem.
Robinson Crusoé de Tournier se caracteriza como um homem fraturado (COSTA
LIMA, 2000), dividido entre o mundo conhecido, o civilizado, e um mundo totalmente novo e
cheio de possibilidades, que lhe são apresentadas pelas mãos de Vendredi, que desestabiliza as
certezas de Robinson. Dessa forma, há uma desestabilização da representação tradicional,
retrabalhada agora sob uma nova perspectiva. Há, portanto, uma reavaliação crítica que faz
imergir do texto o posicionamento em consonância com as estratégias pós-coloniais, uma vez
que proporciona a desconstrução das certezas, tanto da personagem como do leitor e, por
conseguinte, do pensamento de uma época.
Ao reconstruir, no início de sua narrativa, os valores burgueses presentes na obra de
partida, Michel Tournier, de forma irônica, os está criticando, e mostrando a irracionalidade de
certas obcessões e motivações burguesas, que, no contexto da ilha Sperannza, deixam de fazer
sentido.
A figura de Vendredi ganha lugar de destaque e se faz substancial para o
desenvolvimento da narrativa contemporânea, uma vez que é por meio dele que se reelaboram
as concepções de existência na narrativa. Ele representa, portanto, a “[...] ruptura com um
sistema de dominação do senhor em relação ao escravo e, por extensão, com toda forma de
colonialismo evocadas pelas relações entre Robinson e Friday no início de seu
relacionamento.” (RODRIGUES, 2008, p. 71)
O pensamento escravocrata de Robinson é revertido para uma relação em que ele
também aprende com o nativo, afinal, este também tem uma cultura e forma de ler a realidade.
Por sua vez, Vendredi diverge em muitos aspectos de Sexta-feira. Neste último, fica
clara a subalternidade, a submissão sem resistência, como se um nativo só pudesse se
comportar dessa maneira. Sexta-feira aceita passivamente a destruição de tudo que ele é antes
de Robinson, como se sua presença na narrativa não tivesse outra função, senão promover e
afirmar a superioridade e o triunfo do europeu (RODRIGUES, 2008b, p. 86).
Sexta-feira se apresenta como um criado fiel que consente sua escravidão como forma
de gratidão por ter sido salvo da morte. Robinson o não o vê em sua individualidade, tampouco
isso se expressa para o leitor. Narrativamente, não há espaço para o desenvolvimento da
personagem, o que evidencia o apagamento de sua cultura, reflexo da visão de mundo de
Robinson, no texto, e do pensamento do homem branco europeu da época.
Para Robinson, Sexta-feira é somente um criado e uma companhia que chegou em boa
hora, “Em todos esses anos de vida solitária, nunca havia desejado tão fortemente a companhia
de meus semelhantes e jamais sentira essa falta de forma tão profunda como agora” (DEFOE,
2010, p. 197). Sexta-feira era para Robinson aquele a quem deveria tudo ensinar, porque
ignorava, ou melhor, a ele não interessava saber quem era Sexta-feira ou se ele era alguém, se
tinha crenças, modos de pensar ou agir, “Estava de fato muito satisfeito com ele e fiz questão
de ensinar-lhe tudo o que podia para torná-lo útil, capaz e prestativo.” (DEFOE, 2010, p. 219),
ao que o criado respondia com muita lealdade e gratidão, “[...] nunca alguém teve um servo tão
fiel, amável e sincero como Sexta-feira. Sem cólera, má-vontade ou segundas intenções,
mostrava-se profundamente adaptado e sempre disposto;” (DEFOE, 2010, p. 218).
Vendredi, por outro lado, assume uma posição diferente na narrativa de Tournier. No
início da narrativa, há igualmente a tentativa de dominação cultural por parte de Robinson,
porém, o nativo não se dobra naturalmente às ordens do suposto mestre, obedecendo
pacificamente suas ordens somente quando está em sua presença. Quando Robinson se afasta,
Vendredi volta a ser e fazer tudo que é de sua natureza.
São tantas as demonstrações de autonomia, que, aos poucos, Robinson vai mudando
sua forma de ver o nativo, e passa a perceber que há algo ainda desconhecido nele e que merece
ser considerado. À medida que Robinson vai reelaborando suas percepções e entrando cada
vez mais em conexão com o todo orgânico da ilha, se percebe um indivíduo formado a partir
de uma civilização que agora, diante da nova experiência, já se torna passível de
questionamentos. Nessa direção, a narrativa elabora o processo de mudança de Robinson, que
ao final, abandona sua identidade de homem branco, europeu, civilizado, para tornar-se um
novo indivíduo em harmonia com o espaço natural que o rodeia.
Considerações finais
Durante muito tempo o encontro de culturas foi entendido pelo pensamento colonialista
como uma via de mão única, em que se tinha de um lado a civilização e, de outro, a barbárie.
Opondo-se a isso, a literatura pós-colonialista empreende o trabalho de descontruir tais certezas
e construir um pensamento voltado para a complexidade existente nas relações entre o velho e
o novo mundo.
A reescrita de Robinson Crusoé coloca em foco as nuances do contato entre indivíduos
diferentes e que são, antes de tudo, seres humanos dotados de uma bagagem de experiências
únicas que não podem e não devem ser enquadradas em nenhum rótulo. Ao contrário do
clássico, Michel Tournier traz para a narrativa questões intrínsecas de cada personagem,
demonstrando a relatividade dos conceitos socialmente estratificados.
A viagem, que proporciona experienciar o mundo do outro, é capaz de proporcionar a
desestabilização de certezas e promover mudanças na percepção pessoal. Vista desse modo, a
descoberta do novo pode ser algo a se tomar como positivo, mas isso só é possível se ambas as
partes estiverem abertas para a descoberta e para a reflexão.
Quando Robinson chega à ilha, ele se depara com um mundo que não é o dele. Aquela
realidade não é dele. Tudo aquilo faz parte de Vendredi, é Vendredi. É assim que o nativo
torna-se mestre de Robinson. Naquela ilha, não se obedecem regras externas a ela. É nesse
contexto que Robinson precisa abandonar sua condição mesquinha e seu pensamento
limitadamente racional, para penetrar e descobrir uma nova forma de existência. Da mesma
forma, isso não significa que nada mudará em Vendredi, afinal, ele também irá conhecer um
outro mundo, o mundo que Robinson traz consigo.
Referências
BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: Estratégias de Leitura. Maringá:
Eduem, 2000.
______. “Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais”. Mimesis. Bauru, v. 19, n. 1, p.
07-23, 1998.
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
______. O controle do imaginário e a afirmação do romance. São Paulo: Cia das Letras,
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DEFOE, Daniel. As aventuras de Robinson Crusoé. Tradução de Albino Poli Jr. Porto
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