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OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 4 DE JANEIRO DE 2015 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Febres da terra (III): Os Conflitos V ocê seria capaz de distinguir um Bach de um Haendel se ouvisse uma música a dis- tância - sem saber quem era o autor? Pode ser apenas uma questão de amor: eu, por exemplo, porque amo muito Johann Sebastian Bach e apenas admiro Georg Friedrich Haendel, con- sigo distinguir um do outro por alguns acordes apenas – os de Haendel soam nos meus ouvidos, os de Bach nos ou- vidos da minha alma. Assim, também jamais confundiria uma página de Franz Kafka com a de outro escritor, mesmo semelhante a ele, como, por exemplo: Dino Buzzati – ainda que ache a página jogada na rua, arrancada do livro, e sem qualquer indicação do título do livro nem do autor. Questão de amor: Buzzati eu leio com olhos fí- sicos, Kafka com olhos metafísicos. Por que isso acontece? Além das intuições afetivas que tornam inconfundível um autor original e Único, como Bach ou Kafka, há outro elemento que os dis- tingue dos outros: eles são como holo- gramas: em cada palavra suas ecoam todas as suas palavras – como cada parte do corpo da pessoa amada evoca sua totalidade, mesmo que seja só um pedacinho cortado de unha, e do pé, e do seu dedo mindinho. Hoje, avançan- do na jornada do meu livro Breve é a febre da terra mostrado na página Sim por partes, na forma de um folhetim - como os jornais antigos publicavam os livro, antes que eles fossem para as livrarias - eu gostariam que essas pági- nas houvessem levado a você, hologra- ficamente, todos os dezesseis já edita- dos livros visíveis de Viagem a Andara oO livro invisível. Mas como isso, como foi dito – também, e sobretudo, é uma questão de amor pelo autor, talvez es- teja querendo demais. Vamos ao terceiro fragmento do livro, relembrando, antes, o final do fragmento anterior: Dizendo o homem: e tendo te visto através da febre e das águas amargas dos meus olhos, o anjo de mãos de água derramada sobre mim Dizendo: pois tendo pedido aos sóis negros que me iluminassem, mas tendo eles mais se escondido de mim, enquanto tu, com mãos de água apa- gando o fogo que me queimava e tra- zendo de volta a luz mais branda deste sol que agora sobre nós nesta praia Dizendo E assim ali foram ditas muitas coi- sas entre eles, ou só um falasse língua humana. Não saberemos Breve é a febre da terra (III) no que já os encontramos, mais adiante, a caminho, deixando aquela praia E o homem, o náufrago, ainda dizia à sua sombra: - Pois foste escolhido para me servir, por confiança, nesta nova terra E assim agora seguem eles no livro que um dia Andara um deserto, será achado na areia. Onde por serem homens ali a vida infernalmente vivida Quanto às coisas por que passaram, os lugares irritados e uns bichos que choravam e a melancolia das es- trelas e uns fantasmas que viram pelo caminho, ah, isso foi completamente apagado pela areia não fará falta, não fará já se viu em outras páginas que a areia ainda não apagou dos livros de An- dara, páginas que ela ainda irá apagar Literatura, se diz. A Areia, se diz. as sombrazinhas menores que ha- viam caído na rua por toda a noite atra- vessadas pelos punhais das sombras grandes Quanto a estas, tendo vindo a ma- nhã, evitavam a luz. Se fechavam novamente nas casas De direita/esquerda se diz: Tendo o náufrago repetido para a Sombra essas coisas, ali na árvore em que estavam, ainda ocultos, enquanto a manhã nascia Se diz: - A direita é a direção do Paraíso, a esquerda é a direção do Inferno. Quando o último dia vier, os justos ficarão à direita, os injustos à esquer- da, se diz. Se diz: O primeiro homem era ho- mem do lado direito, mulher do lado esquerdo. Homem e mulher tendo nascido assim do que cortou ao meio direita/ esquerda. E se diz: - Marca com um sinal no olho es- querdo as crianças ao nascerem, para que se consagrem ao mal. - Essas coisas se dizem, contava o Velozmente, então e diretamente ao ponto em que seus pés teriam chegado após os círculos que fizeram pela vida, ei-los aqui: De tanto andarem, um dia teriam achado uma rua. Só ela. Aquela rua. Na floresta An- dara. A ruazinha solitária. Com umas ca- sinhas de terra de um lado e do outro, e mais nada, bem no meio da floresta. Só aquela rua, aquelas casas E as suas janelas, fechadamente isso, uma Visão, de febres seria? Dos dois lados daquela rua onde tinham ido parar, certamente viviam uns homens - Esquerdos e Direitos, como o náufrago logo passou a cha- mar, tendo eles chegado nesse lugar on- de só uma ruazinha em plena floresta, e aí a Vida, infernalmente A vida um espinho sem ternuras Sentimentos mais negros eram fan- tasmas no ar. Se via ali, naquela rua Mágoas cavavam o chão para comer terra com raiva naquela rua Aquela rua era um antro por sapos com rancores. Tendo a achando na floresta, eles entrariam nela ou não entrariam? É que já vindo a noite, o náufrago decidiu pela observação oculta. Subiram numa árvore. O que obscuramente é narrado no livro achado na areia os dois, uma só sombra, e iriam ver uns acontecimentos bem estranhos ali se dando. Se ouvia, do alto da árvore em eles haviam se instalado, a voz do náufrago, dizendo à Som- bra: - Se ainda és homem, teme esta vida se para os homens ela tem dois lados tendo eles se escondido para ver sem serem vistos. - Que o teu lado direito tema o teu lado esquerdo, sussurrava o náufrago à Sombra, e eles escondidamente olhando aquela rua Esperavam a manhã. - Há casos, os enlouquecidamente, em que a própria mão direita corta a esquerda sussurrava o náufrago à Sombra, e eles, ali, os escondidos. Ele falan- do de uns ódios que o corpo pode ter contra si mesmo. Dizia o náufrago: - É só por sermos Foi então que uns gritos, os horríveis, começavam a vir da- quela ruazinha entre árvores. E umas vozes há de desespero, hor- ríveis E uns lamentos tão os sem esperan- ça, horrivelmente E uma só sombra olhando, foram outras sombras o que eles viram. Sombras grandes, e outras, pe- quenas. Saindo das casas, dos lados esquerdo e direito da rua, e à traição caíam as maiores sobre as sombrazi- nhas, e essas, ah, elas, essazinhas, fica- vam ainda menores, se dando a feridas e indo para a morte. Pois cediam uns suspiros, murchando na noite essas flores, feneciam. Punhais agiram durante toda aque- la noite, cintilando as estrelas. Até que finalmente a manhã veio. E a luz da manhã vinha desfazer, aqui e ali, náufrago à Sombra, havendo uns que ainda dizem que teu lado esquerdo é noturno e o teu la- do direito diurno, ele dizia. - E outros dizem deita o homem morto do seu lado direito e a mulher morta do lado esquerdo dela. - Mas há também quem diga que é com a mão esquerda que se deve dar, e com a direta receber, numa inversão do que foi dito antes, para que se insta- le um novo bem - Com que mão tu apagaste o fogo em mim com as águas do Atlântico? Perguntava Dizendo: - Mas a verdade é que, de tudo isso, como pudeste ver com poucos olhos e muitos ouvidos, nesta noite que agora se acabou e nesta rua que achamos em nosso caminho, tudo se torna um mal sem prefe- rência de lados se se trata de homens, estando todo o mal em dividir a vi- da à direita e à esquerda, como aqui se faz. E muitas coisas mais ele disse. Antes de desceram da árvore, tendo agora então já nascido inteiramente a manhã, e eles entrando na ruazinha onde um inferno, nas noites, vinha revelar os homens aos homens O outro, o Outro, a Sombra. Aquele outro e seus silêncios. Só ouvia Sombras e aves. Sombras e aves. As sombrazinhas humanas ali se dando à luz, se desfazendo na manhã no chão da rua, aves também vieram voar por ali. E eram espertas aves, vinham se fazendo de invisivelmente Umas asas leves, uns voos silencio- sos Para não espalhar uns fios de pó em que aquelas sombrazinhas iam se tor- nando, antes de se desfazerem na luz. Queriam esses fiapos de sombras para levar nos bicos para seus ninhos, onde filhos A fome vindo ferozmente para to- dos na manhã que nascia. E pousando, ficavam por ali cis- cando uns restos das sombrazinhas humanas. Pegavam nos bicos uns fiapos do que havia sido um sorriso, no que havia sido gente, e voavam, depressa depressa, para os ninhos. Tinham que ser mais rápidas do que a luz. Uns fios de carnes de sombra flu- tuavam assim nos bicos daquelas aves naquela manhã. Elas, enfim, leves naqueles voos, essas carnes Mas por mais rápido que voassem Andara busca o homem além de si, fora de si: no Umanoh. O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua queda que irá descobrir sua leveza possível. vFc as aves, depressa depressa, a luz era mais veloz, e quando atingiam os ni- nhos: só uns bicos vazios para dar aos filhos nada, nada E grasnavam umas decepções. Nos olhos das aves então umas surpresas, e uma pena de repente envelhecendo nas suas asas. Delicados como as aves, o náufrago e a Sombra agora entrando pela rua, onde direitos e esquerdos. Evitando pisar naqueles restinhos de sombras humanas pelo chão Algumas delas ainda vivessem o tempo de um sorriso de passagem pa- ra eles, o tempo de quase dizer bom-dia para eles na manhã que nascia, uns restos de lábios ainda ali pelo chão. Foi quando uma das aves, deixando a companhia das outras, e era negra, veio de repente e pousou no ombro do náufrago. Sentindo os seus ossos, pois bem magro. Se firmou neles, ossos O homem ainda tentou arrancar a ave de si, temendo um ataque. Mas então a reconheceu. Com emo- ção. E foi também o reconhecido pela ave. Pois se era a ave antes de pano bor- dada na bandeira da sua nau branca branca, aquela nau que agora se dando ao esquecimento no fundo do Atlântico Ela, depois de ter fugido do mastro durante o ataque da nau negra, devia ter vivido ali entre aquelas aves. A soli- tária ave antes de pano agora se torna- do ave real, como as outras Menos por um remendo na bandei- ra feito de um outro tecido, que apa- recia agora em seu peito, aquela parte permanecendo de pano sem ter ganha- do vida. Mas no mais, ave. Agora seguirá assim o homem, o náufrago. Tendo ele, por companhia, além da sua perna de madeira, aquela Sombra, e essa ave negra pousada no seu ombro E ali no chão uma última sombra- zinha humana via eles passarem, se dando à luz, o que sobrava dela, só uns olhos Via eles chegarem, entrando por aquela rua onde homens dividiam a vida, só por serem homens De Breve é a febre da terra/Viagem a Andara oO livro invisível

Sim 82 Febres da terra (III) Os Conflitos

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Fragmento III do livro Breve é a febre da terra, de Vicente Franz Cecim

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Page 1: Sim 82 Febres da terra (III) Os Conflitos

O LIBERALBELÉM, DOMINGO, 4 DE JANEIRO DE 2015 MAGAZINE 11

sim [email protected] CECIM

Febres da terra (III): Os Conflitos

Você seria capaz de distinguir um Bach de um Haendel se ouvisse uma música a dis-tância - sem saber quem era

o autor? Pode ser apenas uma questão de amor: eu, por exemplo, porque amo muito Johann Sebastian Bach e apenas admiro Georg Friedrich Haendel, con-sigo distinguir um do outro por alguns acordes apenas – os de Haendel soam nos meus ouvidos, os de Bach nos ou-vidos da minha alma. Assim, também jamais confundiria uma página de Franz Kafka com a de outro escritor, mesmo semelhante a ele, como, por exemplo: Dino Buzzati – ainda que ache a página jogada na rua, arrancada do livro, e sem qualquer indicação do título do livro nem do autor. Questão de amor: Buzzati eu leio com olhos fí-sicos, Kafka com olhos metafísicos. Por que isso acontece? Além das intuições afetivas que tornam inconfundível um autor original e Único, como Bach ou Kafka, há outro elemento que os dis-tingue dos outros: eles são como holo-gramas: em cada palavra suas ecoam todas as suas palavras – como cada parte do corpo da pessoa amada evoca sua totalidade, mesmo que seja só um pedacinho cortado de unha, e do pé, e do seu dedo mindinho. Hoje, avançan-do na jornada do meu livro Breve é a febre da terra mostrado na página Sim por partes, na forma de um folhetim - como os jornais antigos publicavam os livro, antes que eles fossem para as livrarias - eu gostariam que essas pági-nas houvessem levado a você, hologra-ficamente, todos os dezesseis já edita-dos livros visíveis de Viagem a Andara oO livro invisível. Mas como isso, como foi dito – também, e sobretudo, é uma questão de amor pelo autor, talvez es-teja querendo demais.

Vamos ao terceiro fragmento do livro, relembrando, antes, o final do fragmento anterior:

Dizendo o homem: e tendo te visto através da febre e das águas amargas dos meus olhos, o anjo de mãos de água derramada sobre mim

Dizendo: pois tendo pedido aos sóis negros que me iluminassem, mas tendo eles mais se escondido de mim, enquanto tu, com mãos de água apa-gando o fogo que me queimava e tra-zendo de volta a luz mais branda deste sol que agora sobre nós nesta praia

Dizendo

E assim ali foram ditas muitas coi-sas entre eles, ou só um falasse língua humana. Não saberemos

Breve é a febre da terra (III)no que já os encontramos,mais adiante,a caminho, deixando aquela praiaE o homem, o náufrago, ainda dizia

à sua sombra:- Poisfoste escolhido para me servir, por

confiança, nesta nova terra

E assim agora seguem eles no livro que um dia Andara um deserto, será achado na areia.

Onde por serem homens ali a vida infernalmente vivida

Quanto às coisas por que passaram,os lugares irritados e uns bichos

que choravam e a melancolia das es-trelas e uns fantasmas que viram pelo caminho,

ah,isso foi completamente apagado

pela areianão fará falta, não farájá se viu em outras páginas que a

areia ainda não apagou dos livros de An-dara, páginas que ela ainda irá apagar

Literatura, se diz. A Areia, se diz.

as sombrazinhas menores que ha-viam caído na rua por toda a noite atra-vessadas pelos punhais das sombras grandes

Quanto a estas, tendo vindo a ma-nhã, evitavam a luz.

Se fechavam novamente nas casas

De direita/esquerda se diz:

Tendo o náufrago repetido para a Sombra essas coisas, ali na árvore em que estavam, ainda ocultos, enquanto a manhã nascia

Se diz:- A direita é a direção do Paraíso, a

esquerda é a direção do Inferno.Quando o último dia vier, os justos

ficarão à direita, os injustos à esquer-da, se diz.

Se diz: O primeiro homem era ho-mem do lado direito, mulher do lado esquerdo.

Homem e mulher tendo nascido assim do que cortou ao meio direita/esquerda.

E se diz:- Marca com um sinal no olho es-

querdo as crianças ao nascerem, para que se consagrem ao mal.

- Essas coisas se dizem, contava o

Velozmente, entãoe diretamente ao ponto em que seus

pés teriam chegado após os círculos que fizeram pela vida, ei-los aqui:

De tanto andarem, um dia teriam achado uma rua.

Só ela. Aquela rua. Na floresta An-dara.

A ruazinha solitária. Com umas ca-sinhas de terra de um lado e do outro, e mais nada,

bem no meio da floresta.Só aquela rua,aquelas casas E as suas janelas, fechadamenteisso, uma Visão,de febresseria?

Dos dois lados daquela rua onde tinham ido parar,

certamente viviam uns homens- Esquerdos e Direitos,como o náufrago logo passou a cha-

mar, tendo eles chegado nesse lugar on-de só uma ruazinha em plena floresta,

e aí a Vida, infernalmenteA vida um espinho sem ternurasSentimentos mais negros eram fan-

tasmas no ar. Se via ali, naquela ruaMágoas cavavam o chão para comer

terra com raiva naquela ruaAquela rua era um antro por sapos

com rancores.Tendo a achando na floresta, eles

entrariam nela ou não entrariam?É que já vindo a noite,o náufrago decidiu pela observação

oculta.Subiram numa árvore.O que obscuramente é narrado no

livro achado na areiaos dois, uma só sombra, e iriam ver

uns acontecimentos bem estranhosali se dando.Se ouvia,do alto da árvore em eles haviam se

instalado,a voz do náufrago, dizendo à Som-

bra:- Se ainda és homem, teme esta vida

se para os homens ela tem dois ladostendo eles se escondido para ver

sem serem vistos.- Que o teu lado direito tema o teu

lado esquerdo,sussurrava o náufrago à Sombra,e eles escondidamente olhando

aquela rua

Esperavam a manhã.

- Há casos, os enlouquecidamente, em que a própria mão direita corta a esquerda

sussurrava o náufrago à Sombra,e eles, ali, os escondidos. Ele falan-

do de uns ódios que o corpo pode ter contra si mesmo.

Dizia o náufrago:- É só por sermos

Foi então que uns gritos,os horríveis, começavam a vir da-

quela ruazinha entre árvores.E umas vozes há de desespero, hor-

ríveisE uns lamentos tão os sem esperan-

ça, horrivelmenteE uma só sombra olhando,foram outras sombras o que eles

viram. Sombras grandes, e outras, pe-quenas. Saindo das casas, dos lados esquerdo e direito da rua, e à traição caíam as maiores sobre as sombrazi-nhas,

e essas, ah, elas, essazinhas, fica-vam ainda menores, se dando a feridas e indo para a morte. Pois cediam uns suspiros,

murchando na noite essas flores, feneciam.

Punhais agiram durante toda aque-la noite, cintilando as estrelas.

Até que finalmentea manhã veio.E a luz da manhã vinha desfazer,

aqui e ali,

náufrago à Sombra,havendo uns que ainda dizem que

teu lado esquerdo é noturno e o teu la-do direito diurno, ele dizia.

- E outros dizem deita o homem morto do seu lado direito e a mulher morta do lado esquerdo dela.

- Mas há também quem diga que é com a mão esquerda que se deve dar, e com a direta receber, numa inversão do que foi dito antes, para que se insta-le um novo bem

- Com que mão tu apagaste o fogo em mim com as águas do Atlântico? Perguntava

Dizendo:- Mas a verdade é que, de tudo isso,

como pudeste ver com poucos olhos e muitos ouvidos, nesta noite que agora se acabou e nesta rua que achamos em nosso caminho,

tudo se torna um mal sem prefe-rência de lados

se se trata de homens,estando todo o mal em dividir a vi-

da à direita e à esquerda, como aqui se faz.

E muitas coisas mais ele disse.Antes de desceram da árvore, tendo

agora então já nascido inteiramente a manhã,

e eles entrando na ruazinha onde um inferno, nas noites, vinha revelar os homens aos homens

O outro, o Outro, a Sombra. Aquele outro e seus silêncios.

Só ouvia

Sombras e aves.Sombras e aves.As sombrazinhas humanas ali se

dando à luz, se desfazendo na manhã no chão da rua,

aves também vieram voar por ali.E eram espertas aves, vinham se

fazendo de invisivelmenteUmas asas leves, uns voos silencio-

sosPara não espalhar uns fios de pó em

que aquelas sombrazinhas iam se tor-nando, antes de se desfazerem na luz.

Queriam esses fiapos de sombras para levar nos bicos

para seus ninhos, onde filhosA fome vindo ferozmente para to-

dos na manhã que nascia.E pousando, ficavam por ali cis-

cando uns restos das sombrazinhas humanas.

Pegavam nos bicos uns fiapos do que havia sido um sorriso, no que havia sido gente, e voavam, depressa depressa, para os ninhos. Tinham que ser mais rápidas do que a luz.

Uns fios de carnes de sombra flu-tuavam assim nos bicos daquelas aves naquela manhã.

Elas, enfim, leves naqueles voos, essas carnes

Mas por mais rápido que voassem

Andara busca o homem além de si, fora de si: no Umanoh. O homemprecisa se deixar cair do ponto insustentávelonde se instalou para ter o direito deadquirir asas. Será durante a sua quedaque irá descobrir sua leveza possível.vFc

as aves, depressa depressa, a luz era mais veloz, e quando atingiam os ni-nhos: só uns bicos vazios para dar aos filhos nada, nada

E grasnavam umas decepções. Nos olhos das aves então umas surpresas, e uma pena de repente envelhecendo nas suas asas.

Delicados como as aves, o náufrago e a Sombra agora entrando pela rua, onde direitos e esquerdos.

Evitando pisar naqueles restinhos de sombras humanas pelo chão

Algumas delas ainda vivessem o tempo de um sorriso de passagem pa-ra eles,

o tempo de quase dizer bom-dia para eles na manhã que nascia,

uns restos de lábios ainda ali pelo chão.

Foi quando uma das aves, deixando a companhia das outras, e era negra, veio de repente e pousou no ombro do náufrago.

Sentindo os seus ossos, pois bem magro. Se firmou neles, ossos

O homem ainda tentou arrancar a ave de si, temendo um ataque.

Mas então a reconheceu. Com emo-ção.

E foi também o reconhecido pela ave.

Pois se era a ave antes de pano bor-dada na bandeira da sua nau branca branca, aquela nau que agora se dando ao esquecimento no fundo do Atlântico

Ela, depois de ter fugido do mastro durante o ataque da nau negra, devia ter vivido ali entre aquelas aves. A soli-tária ave antes de pano agora se torna-do ave real, como as outras

Menos por um remendo na bandei-ra feito de um outro tecido, que apa-recia agora em seu peito, aquela parte permanecendo de pano sem ter ganha-do vida.

Mas no mais, ave.

Agora seguirá assim o homem, o náufrago.

Tendo ele, por companhia, além da sua perna de madeira, aquela Sombra, e essa ave negra pousada no seu ombro

E ali no chão uma última sombra-zinha humana via eles passarem, se dando à luz,

o que sobrava dela, só uns olhos

Via eles chegarem, entrando por aquela rua onde homens dividiam a vida, só por serem homens

De Breve é a febre da terra/Viagem a Andara oO livro invisível