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C&S – São Bernardo do Campo, v. 37, n. 1, p. 169-192, jan./abr. 2015 169 Mídias, tecnologias e infância: consumo musical na década de 2000 Media, technology and childhood: Music consumption in the 2000s Medios de comunicación, la tecnología y la infancia: el consumo de música en la década de 2000 Maria José Dozza Subtil UEPG – Universidade Esta- dual de Ponta Grossa. Possui graduação de licenciatura em Música pela Faculdade de Educação Mu- sical do Paraná, mestrado em Educação (UEPG) e dou- torado em Engenharia de Produção - Mídia e Conhe- cimento (UFSC). Professora e pesquisadora sênior do mestrado em Educação da UEPG. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Comunicação e Arte (Gepeac). É bolsista Pesquisador Sênior Funda- ção Araucária desde 2013. Lattes: http://buscatextual. cnpq.br/buscatextual/visuali- zacv.do?id=K4707744H9 Egon Eduardo Sebben UEPG – Universidade Esta- dual de Ponta Grossa. Licenciado em Música e mestre em Educação (UEPG). Professor assistente do curso de licenciatura em Música da UEPG. Lattes: http://buscatextual. cnpq.br/buscatextual/visuali- zacv.do?id=K4232258H1

SUBTIL, SEBBEN. Mídias, Tecnologias e Infância - Consumo Musical

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Artigo sobre mídias, tecnologias e infância.

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  • C&S So Bernardo do Campo, v. 37, n. 1, p. 169-192, jan./abr. 2015 169

    Mdias, tecnologias e infncia: consumo musical

    na dcada de 2000

    Media, technology and childhood: Music

    consumption in the 2000s

    Medios de comunicacin, la tecnologa y la infancia: el

    consumo de msica en la dcada de 2000

    Maria Jos Dozza SubtilUEPG Universidade Esta-

    dual de Ponta Grossa.

    Possui graduao de

    licenciatura em Msica pela

    Faculdade de Educao Mu-

    sical do Paran, mestrado

    em Educao (UEPG) e dou-

    torado em Engenharia de

    Produo - Mdia e Conhe-

    cimento (UFSC). Professora

    e pesquisadora snior do

    mestrado em Educao da

    UEPG. Coordena o Grupo

    de Estudos e Pesquisas em

    Educao Comunicao e

    Arte (Gepeac). bolsista

    Pesquisador Snior Funda-

    o Araucria desde 2013.

    Lattes: http://buscatextual.

    cnpq.br/buscatextual/visuali-

    zacv.do?id=K4707744H9

    Egon Eduardo SebbenUEPG Universidade Esta-

    dual de Ponta Grossa.

    Licenciado em Msica

    e mestre em Educao

    (UEPG). Professor assistente

    do curso de licenciatura em

    Msica da UEPG.

    Lattes: http://buscatextual.

    cnpq.br/buscatextual/visuali-

    zacv.do?id=K4232258H1

  • RESUMOO artigo apresenta anlise de dados de pesquisa realizada em 2009-2010 sobre tecnologias, mdias e consumo musical com crianas de 9 a 11 anos da 4 srie do ensino fundamental de escola pblica e escola privada, tendo como objetivo pro-blematizar uma noo de infncia constituda pelo aporte tecnolgico. A pesquisa constitui uma anlise longitudinal na dcada, ao efetuar continuidade de coleta realizada no incio dos anos 2000 na mesma realidade escolar. Ao acompanhar os eventos tecnolgicos e miditico-musicais, o texto prope uma reflexo sobre permanncias e rupturas quanto ao consumo musical e uso de tecnologias que mostram inflexes econmicas e culturais na constituio da noo de infncia atualmente. As referncias terico-metodolgicas, aliceradas em uma perspectiva crtica na anlise dos questionrios, propem a compreenso da singularidade dos sujeitos na particularidade de classe e gnero como instituidores de uma nova universalidade do conceito de infncia, fruio e gosto musical.Palavras-chave: Mdia. Tecnologias. Gosto musical. Histria da infncia.

    ABSTRACTThis paper reports the analysis of a research conducted in 2009-2010 on technol-ogy, media and music consumption. The subjects were 9-11 year-old children from the 4th grade of elementary schools, both public and private. The aim is to discuss the notion of childhood based on technological support. The study is a longitudinal analysis with an ongoing data collection during the early 2000s in the same school reality. By following up technological, media and music events, the study proposes a reflection on continuities and ruptures in musical consumption and the use of technologies that show economic and cultural inflections in the current constitu-tion of the notion of childhood. Grounded on a critical analysis of questionnaires, the theoretical and methodological references propose the understanding of the subjects uniqueness in the particularity of class and gender as founders of a new universality of the concept of childhood, enjoyment, and musical taste.Keywords: Media. Technologies. Musical taste. Childhood history.

    RESUMENEl artculo presenta el anlisis de datos de una investigacin llevada a cabo en el perodo de 2009-2010 sobre tecnologa, los medios de comunicacin y el consumo de la msica. Los sujetos eran nios de 9-11 aos de edad, en el cuarto grado de las escuelas primarias, tanto pblicas como privadas. El objetivo es discutir la nocin de la infancia basada en el apoyo tecnolgico. El estudio es un anlisis longitudinal, al hacer una continua coleccin de datos en la dcada de 2000, en la misma realidad escolar. Para mantenerse al da con los acontecimientos tecnolgicos y los medios de comunicacin y la msica, el texto propone una reflexin sobre las continuidades y rupturas en el consumo musical y el uso de tecnologas que muestran las inflexiones econmicas y culturales en la constitucin de la nocin de la infancia hoy. Las referencias tericas y metodolgicas, basadas en una perspectiva crtica en el anlisis de los cuestionarios, proponen entender la singularidad del sujeto en la particularidad de clase y de gnero como fundadores de un nuevo concepto de la universalidad de la infancia, el disfrute y gusto musical.Palabras clave: Medios de Comunicacin. Tecnologas. El gusto musical. Historia de la niez.

    Submisso: 13/5/2014Deciso editorial: 20/4/2015

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    IntroduoCompletaram-se dez anos de defesa da tese

    de Subtil (2003) sobre mdias e consumo musical da infncia. Essa pesquisa foi realizada entre 1999 e 2002, abordando a produo social do gosto musical de crianas de 9 a 12 anos, considerando as intervenincias das mdias (em especial a televiso) e da escola nesse processo.

    Em 2009-2010, foi real izada uma coleta de dados com as questes da pesquisa anterior no mesmo contexto, objetivando discutir a noo de infncia hoje, na particularidade da relao com as tecnologias, em especial para o consumo e prticas musicais, avanando nessa compreenso a partir da anlise comparativa de dados coletados em pocas diferentes.

    As questes versaram sobre o uso e posse de equipamentos eletrnicos para o consumo de msicas e imagens, a relao com a msica (dentro e fora da escola), o gosto musical, a forma de aquisio das tecnologias de consumo, tempos e espaos da audincia e as atividades realizadas nos tempos livres.

    Neste texto ser abordada, especificamente, uma interpretao (possvel) das questes que cercam a constituio da noo de infncia em uma perspectiva de evoluo temporal, social e

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    econmica, a partir das contradies inerentes ao avano de uso e posse das tecnologias pelas crianas de 9 a 11 anos, de distintas classes sociais, para a fruio da msica.

    Fundamentos tericos iniciaisOs fundamentos terico-metodolgicos calcados

    no materialismo histrico e dialtico embasam a anlise das tecnologias/mdias em sua inflexo sobre a cultura musical, especialmente na constituio de uma determinada noo de infncia. Essa anlise est ligada s determinaes sociais e econmicas da sociedade mais ampla, como a universalidade, que situa a singularidade da infncia, mediada pela particularidade de classe e gnero (CHASIN, 2010), na concreo do consumo e apropriao tecnolgica e musical.

    A relativa submisso da cultura miditica aos intervenientes econmicos no visvel de imediato, dado que os fenmenos nem sempre revelam em sua pseudoconcreticidade a essncia que lhe substantiva. Investigar esse processo na singularidade dos sujeitos permite entender como a apropriao tecnolgica e musical produz formas de consumo, apropriao e subjetivao que tangenciam questes de classe e gnero.

    O c o n c e i t o d e i n d s t r i a c u l t u r a l ( I C ) (HORKHEIMER; ADORNO, 1982) fo i apropr iado nesta anlise evidentemente, resguardando-se a contradio inerente aos objetos miditicos e s tecnologias de fruio musical em sua dimenso afirmativa/negativa , uma vez que, em lt ima instncia, remete universalidade das relaes econmicas na produo oligopolizada da cultura, a fruio e usufruto singular das msicas pelas crianas.

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    A viso tendencialmente negativa do sistema macro de produo cultural relativizada por Benjamin, quando af i rma a dimenso pol t ica da IC ao social izar o que, em sua gnese, era destinado a poucos: A obra de arte, na era de sua reprodutibilidade tcnica revoluciona o estatuto da cultura, dissolve o conceito burgus de arte, transforma a cultura de elite em cultura de massa (BENJAMIN, 1982, p. 217).

    A ideia de socializao da cultura tem a ver com

    um espao de insero que antecede ao prprio sujeito, no qual se realizam as prticas reais e atuais dos indivduos e grupos. Nesse espao incidem as instituies socializadoras famlia, mdia e escola. (JACKS, 1999, apud SUBTIL, 2003, p. 69).

    Isso se relaciona com a potencial idade de acesso s culturas mais diversas que os modernos equipamentos digitais e eletrnicos oferecem s cr ianas desde o nascimento, o que pode ser encarado em sua dimenso contraditr ia, dependendo do grau e da qualidade de mediao exercidos por essas instituies.

    Considerando a dialeticidade da relao entre crianas e mdias para alm dos determinantes econmicos, cabe lembrar que uma particularidade dessa relao tem a ver com duas caractersticas dos objetos digitais contemporneos: 1) a mixagem som/movimento/imagem que resulta altamente performtica; 2) a interao em rede, cujo resultado o permanente estado de troca e fruio. Mais do que uma interveno hipodrmica das mdias sobre os sujeitos, como acusavam os primeiros estudos da comunicao, para Belloni (2009), o que ocorre

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    uma nova vivncia produzida por elas, mas superada nas relaes simblicas partilhadas.

    Nessa perspectiva, as caractersticas inerentes aos objetos tecnolgicos de acesso s msicas so tambm expl icat ivas das relaes que se estabelecem entre sujeitos e mdias em uma viso quase antropomorfizante:

    c o m o a q u e l e s o u t r o s s e r e s [ ] f r u t o s d a engenhosidade humana, essas mquinas maravilhosas [] artefatos criados pelo homem, quase-objetos, quase-sujeitos`, dispositivos, mquinas, tecnologias [] redes sociotcnicas hbridas. (LATOUR, 1997, apud BELLONI, 2009, p. 132, grifos da autora).

    A pesquisa most ra que na l t ima dcada acentuou-se a entrada das crianas no universo desses dispositivos, especialmente os celulares, independentemente de poder aquisitivo.

    O d e t e r m i n a n t e c l a s s e s o c i a l a q u i considerado tendo em vista as caracter st icas diferenciadas da escola privada e da escola pblica, onde foram coletados os dados, e que remetem s divises socioeconmicas dos que detm a posse e fruio de equipamentos e dos que participam relativamente, e com menor qualidade, deste acesso.

    Essas diferenas objetivas so comprovadas quando a incluso digital pelo uso instrumental dos aparelhos de fruio e socializao das msicas das crianas da escola pblica no acompanhada da aquisio de conhecimentos significativos sobre obras, estilos e cultura em geral. Essas aprendizagens aparecem acentuadamente na realidade privada com a possibilidade de diversificao e acesso a outras formas de apropriao musical e cultural mais ampla.

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    Como pano de fundo, temos que o consumo musical est relacionado a uma poderosa estrutura comercial e mercadolgica que procura atingir, no apenas a homogeneizao, como tambm a diferenciao, hoje, via tecnologias digitais que permitem busca e fruio individualizadas negando a audincia/assistncia como grupos passivos diante de estmulo-resposta.

    Msica, prticas e consumo: pretexto para estudar a infncia

    Os dados da realidade especfica 4 srie (primeira coleta) e 5 ano do ensino fundamental (segunda coleta) foram levantados por meio de questionrio com perguntas abertas e fechadas, com 65 crianas, em 1999-2002, e aproximadamente 80 crianas, em 2009-2010, nas escolas ST (privada) e TR (pblica), com paridade de gnero. Nas duas coletas aparecem idades de 9 a 11 anos, mas com predominncia dos 10 anos (75%).

    Na segunda coleta, ao final da dcada, foi feito um levantamento do bairro onde residem as crianas para atualizar a zona socioeconmica de moradia1. Em torno de 56% delas residem em bairros de classe mdia e a maioria pertence escola privada ST. Essa uma escola confessional, cujos pais, em grande parte, so profissionais liberais, funcionrios pblicos, professores e comerciantes. Os alunos da escola pblica TR residem, majoritariamente, em bairros de classe baixa, situados na periferia, mas com gradativa ascenso nos ltimos cinco anos para uma melhoria

    1 A cidade onde foi realizada a pesquisa Ponta Grossa, no Paran.

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    de condio de vida, segundo a direo da escola2. Desses, 17% moram em duas vi las com favelas remanescentes em processo de urbanizao.

    Crianas e tecnologias: apropriao e usosAo conclui r a tese, Subti l (2003) chegou a

    algumas constataes: relativa autonomia das crianas para compra, escolha e fruio de msica; definio de msica como miditica; audincia confer indo nfase na v i sua l idade da f ru io musical; revelao de conhecimento da dinmica da indst r ia cul tural nomeando hits efmeros (aqueles que caem) e permanentes (aqueles que ficam), incluindo-se a msicas, artistas e programas; construo de noo de gnero pelo aporte de msicas como funk, ax, pagode, em especial pelas letras e movimentos rtmico-corporais de apelo ertico; aproximao do universo adulto pelo gradativo afastamento dos programas, msicas e contedos tpicos do universo infantil; uso ascendente de tecnologias domsticas para consumo musical privado. Segundo a autora,

    Alguns indicadores reforam a tese de que as diferenas socioeconmicas no alteram de forma decisiva as prticas e vivncias musicais. As distines so mais de ordem quantitativa do que propriamente qualitativa: nessa idade, todos consomem tudo, alguns mais do que outros pelo poder de compra e acesso s tecnologias. (SUBTIL, 2003, p. 92).

    2 Essa ascenso econmica das periferias resulta das polticas sociais dos ltimos governos, que tm proporcionado s classes menos favorecidas maiores possibilidades de acesso a bens de consumo. Com a estabilizao econmica e poltica na dcada de 1990, possvel observar melhoria nos indicadores sociais.

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    A autora conclui que a situao de classe, embora no determinante, interfere na produo social do gosto, ao poss ib i l i tar mais acesso e diversificao na fruio musical. Essa situao, de certo modo, permanece, embora os dados mostrem um maior nvel de aquisio das tecnologias pelo aumento do poder aquisitivo dos mais pobres, mas sem uma interferncia qualitativa na fruio e apropriao musical.

    Os dados mostram que a posse de televiso, rdio, som-CD, universalizou-se sem distino de classe. interessante notar, na segunda coleta, que o aparelho de DVD aparece na totalidade do universo pesquisado. Ressalte-se que esse um complemento do aparelho de TV. Provavelmente, o DVD, anteriormente distintivo de padro socioeconmico, vem sendo substitudo pelo computador, TV a cabo e internet no universo das crianas de classe mdia. Os brinquedos tecnolgicos Walkman e videogames foram incorporados ao brincar, inclusive das crianas mais pobres, agora possuidoras tambm de outros artefatos.

    Quanto ao computador e in te rnet , fo i possvel averiguar que houve aumento de uso nas duas realidades. No entanto, nota-se um grande diferencial de acesso, j que, na escola privada, a posse alcana cerca de 70% a mais que em relao realidade pblica.

    Quanto ao gnero, a pesquisa atual evidencia que os meninos fazem mais referncia ao uso do computador e da internet do que as meninas, e isto j se evidenciava anteriormente, ainda que de modo menos claro.

    O desenvolvimento da circulao de msicas na internet reforou a formao de um mercado mais

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    vasto, ainda que fundamentalmente informal. As novas mdias digitais tambm so mais potentes na divulgao e consumo privado. Players, celulares etc. esto a servio da exposio intensiva e extensiva msica miditica.

    Aqui se apresenta a contradio do massivo/individual do mercado musical, evidentemente atendendo s demandas de uso das classes mdias. Importa refletir que o grau de massif icao vs . heterogeneidade est intimamente associado interatividade do sistema e aos avanos tecnolgicos pela possibilidade de downloads da internet.

    H uma grande variedade de equipamentos revelados na escola privada: cmera filmadora, mquina digital, mquina fotogrfica. Na escola pblica tambm so citados, de forma espordica, MP3, MP4, MP5, MP7 e MP113, miniaparelhos multimdia para udio e som/ imagem, os quais no so necessariamente para consumo musical, enquanto que na escola privada em torno de 70% das crianas fazem uso de celulares, MP3, MP4, 5, 6 etc. para acesso e arquivamento de msicas.

    evidente que o consumo de msica promovido pelas novas tecnologias MP3 etc. , que se consolidaram exponencialmente nos anos 2000, provocou mudanas na distribuio e consumo de msica como constituda at ento. H significativa t ransformao nas re laes ent re produtor e consumidor, entre artista e pblico. Isso demonstra que, pelo menos para a classe mdia, os aparelhos domsticos de reproduo de CDs tornam-se quase obsoletos diante dos players digitais mveis. Tambm

    3 Os demais, por serem mais sofisticados e tambm transmitirem imagem, j apresentam custo mais elevado.

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    se entende que apenas uma questo de tempo o barateamento e consequente generalizao desses objetos, como ocorreu com os celulares. Vianna (1990) destaca a importncia das novas tecnologias nesta mudana de foco da homogeneizao heterogeneizao, da totalizao segmentao , j que o barateamento e o acesso amplo possibilitam novas oportunidades artsticas sem o intermdio das grandes empresas do setor.

    O s d a d o s m o s t r a m u m a v e r d a d e i r a democratizao no uso dos celulares, uma vez que aparecem na proporo 85% / 100% na relao pblica/privada. H indicao de quatro a cinco aparelhos nas casas, tanto da classe mdia quanto dos mais pobres. Importa lembrar que essa tecnologia permitir, gradativamente, o acesso msica para uma ampla maioria.

    Nas duas pesquisas investigou-se o grau de privacidade para uso de equipamentos pelas crianas para aferir dados da real idade em relao ao consumo e autonomia desse segmento na construo de uma nova noo de infncia. Na coleta anterior (SUBTIL, 2003), o som/rdio no quarto das crianas era mais mencionado que a televiso, esta ltima quase que exclusivamente na realidade da escola privada.

    Na segunda coleta, do total invest igado, 59% possuem TV no quarto, 45%, som/rdio, 32%, computador e 72%, celular para seu uso pessoal. No corte por realidade pblica/privada, quanto aos equipamentos no quarto, temos: televiso 49% / 70%; som/rdio 32% / 60%; computador 17% / 47%.

    A banalizao da TV na atualidade leva a essa duplicao de aparelhos para espaos privados das crianas, mesmo de classe econmica baixa.

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    Tal situao repete-se com os outros equipamentos, embora em nmero menos significativo. O registro do computador no quarto dessas ltimas (17%) o que causou certa surpresa mostra que, mesmo sendo dividido com outros, as crianas tm privilgio em relao aos adultos, como uma forma de investimento dos pais por esse uso privativo. Tambm de supor que os adultos da classe mdia, mais escolarizados, usem o computador em maior grau do que os adultos das classes baixas.

    necessrio apontar, entretanto, que esses nmeros, relativamente positivos na escola pblica, provavelmente se referem s crianas que moram nos bairros que tiveram maior ascenso socioeconmica na dcada de 2000.

    Quando indagados se possuem celular para seu uso pessoal, a resposta positiva para 76% da totalidade, sendo 87% na escola privada e 65% na pblica. Quanto ao gnero, no total, as meninas apresentam 82% em relao aos meninos, com 73%. Se levarmos em considerao a idade das crianas pesquisadas (entre 9 a 11 anos), o dado aponta para uma concepo de infncia que se define pela posse e acesso a tecnologias em ambos os segmentos econmicos delimitados nessa pesquisa.

    Em todos os quesitos h um avano no acesso das crianas s tecnologias, embora permanea a distncia entre os universos de classe, ou seja, as crianas da escola pblica consomem mais tecnologias, mas as cr ianas da classe mdia assumem uma posse diferenciada e mais sofisticada de produtos.

    A discusso de Bourdieu sobre essa corrida pode ser apropriada, mantendo-se em perspectiva

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    o contedo aqu i re fe renc iado consumo e apropriao das mdias:

    todas as vezes em que as foras e os esforos de grupos em concorrncia, por determinada espcie de bens ou de diplomas raros, tendem a se equilibrar como numa corrida onde, ao termo de uma srie de ultrapassagens e de ajustamentos, as distncias iniciais encontrar-se-iam mantidas, isto , todas as vezes em que as tentativas dos grupos inicialmente mais desprovidos para se apropriarem dos bens ou dos diplomas at a possudos pelos grupos situados imediatamente acima deles na hierarquia social ou imediatamente sua frente na corrida, so quase compensados, em todos os nveis, pelos esforos que fazem os grupos mais bem colocados para manter a raridade e a distino de seus bens e de seus diplomas. (BORDIEU, 1998, p. 177).

    Na questo especfica sobre o acesso s musicas, os dados mostram a onipresena do rdio para a audio musical, inclusive nos carros da classe mdia e no cotidiano de todos. O computador e a internet, como tecnologias musicais, ainda so acessveis majoritariamente s crianas com maior poder aquisitivo, embora aparea gradativamente entre as mais pobres.

    Apesar do uso declarado dos players (MP3, MP4 etc.), as crianas no os citam como especficos para a fruio musical. Talvez prevalea uma ideia ainda estabelecida de exclusividade do que seja aparelho musical. Outra surpresa a inexpressiva citao da TV neste quesito, o que parece justificado pelo significativo decrscimo do gosto por programas de auditrio que mais veiculavam performances musicais. Ressalte-se que, na primeira coleta de dados (SUBTIL,

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    2003), TV e rdio eram citados majoritariamente como fontes de aprendizagem das msicas.

    Os dados revelam a contradio da incluso/excluso s mdias e cultura tecnolgica pelo universo da escola pblica na relatividade com que se manifesta em todas as formas de aquisio e posse, como os dados mostram. De todo modo, foi possvel perceber que a entrada dos celulares e derivados no universo das crianas de ambas as realidades investigadas produziu diferenas nas formas de fruio musical, interaes intersubjetivas e acesso a informaes. Belloni (2009, p. 82) aponta os modos e tcnicas de fruio, no mais como indutoras de um processo de inculcamento, mas como formas de apropriao e construo do mundo, tendo em vista o impacto nas estruturas s i m b l i c a s d a s o c i e d a d e e d a s c r i a n a s e adolescentes [] provocados pelas mdias digitais e pelas redes telemticas

    O que as crianas visualizam, ouvem e apreciam

    N a p e s q u i s a a n t e r i o r ( S U B T I L , 2 0 0 3 ) , o s produtos miditicos (programas, artistas, msicas) que apareciam e desapareciam em um espao m a i s c u r t o d e t e m p o f o r a m c a t e g o r i z a d o s como efmeros; os que se mantinham foram denominados permanentes (SUBTIL, 2003). Essas categorizaes mostram-se adequadas hoje, quando esse corte temporal permite analisar tais situaes longitudinalmente.

    Os dados da primeira coleta mostravam os nmeros relativos audincia da televiso em mais de quatro horas na seguinte proporo: 32% na

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    Mdias, tecnologias e infncia: consuMo Musical na dcada de 2000

    escola pblica e 52% na privada. Evidenciava-se, pela enumerao de atividades realizadas na rua, que as crianas de classe baixa usavam outras formas de passar o tempo. Importa salientar que a pesquisa revela, ainda hoje, maior disponibi l idade para brincadeiras de rua no segmento da escola pblica.

    O que parece evidente que as crianas das duas realidades continuam assistindo muita televiso por dia. Algo em torno de 40% delas assistem mais de quatro horas dirias, conforme dados da segunda coleta. No entanto, h que se demarcar nesta pesquisa a manuteno da menor assistncia das crianas da escola pblica. A nfase na televiso pelas crianas de classe mdia acontece pelo fato de acessarem os canais pagos, pela referncia a uma grande variedade de programas, tais como Disney, Ben 10, Discovery Channel, Zaping Zone, veiculados somente nos canais fechados. As crianas da escola pblica nomeiam somente programas de redes abertas.

    No computo geral da pesquisa anterior (SUBTIL, 2003), as novelas eram apontadas como preferncia na proporo 14% na escola pblica e 28% na privada, aparecendo as meninas com percentual significativamente mais alto, invertendo-se quanto aos programas de auditrio (49% na pblica e 16% na privada), com nfase para os meninos. poca, essas preferncias, somadas a outros dados, mostravam as inferncias na construo da ideia de gnero pelo aporte da televiso com as novelas (romance) para as meninas e os programas de auditrio (grupos de funk ax e pagode) para os meninos.

    Evidencia-se, agora, maior diversificao em relao aos programas e s redes. Na pesquisa

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    anter ior , havia hegemonia da Rede Globo, o que no acontece na coleta atual, mantendo-se apenas a preferncia pelas novelas, citadas (menos do que antes) pelas meninas. Percebe-se um aumento da oferta de programas televisivos (mais de cinquenta citados), msicas, cantores e possibilidades tecnolgicas de fruio musical e visual em geral, at pela posse generalizada dos celulares, particularmente na realidade da escola privada.

    Essa diversificao de audincia, de certa forma, desconstri o discurso que vigorava na poca da anlise dos dados da primeira coleta quanto ao papel hegemnico da televiso na conformao de uma relativa passividade das crianas e na construo social do gosto musical (SUBTIL, 2003).

    Programas de humor continuam evocados, principalmente pelos meninos (A grande famlia e programas de piadas, por exemplo), alm de desenhos animados, os quais tambm aparecem com maior frequncia nos dados da escola privada, mas com menor incidncia do que anteriormente. Outra preferncia masculina so os programas que abordam o sobrenatural, cujo contedo (vampiros, epopeias fantsticas etc.) tem aparecido sistematicamente nos relatos dos meninos.

    O gosto por programas infantis, que j continha ressalvas na primeira coleta, mas ainda evocava programas como Xuxa, Bom dia e cia., Eliana etc. (SUBTIL, 2003) agora desapareceu do universo de audincia das crianas e tambm dos investimentos das redes televisivas. Esse dado mostra claramente que a ideia de programas, apresentadores, msicas e produtos infantis decorrentes, no mais atrativa para a indstria cultural. Na perspectiva de analisar

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    a via de mo dupla que constitui a produo e o pblico consumidor miditico, possvel dizer que o sistema captou e adaptou-se a uma nova concepo de infncia. Alm dessa retrao, um dado que merece ateno o gradativo aparecimento do gosto das crianas por canais, programas, cantores e msicas religiosos desde meados da dcada de 2000 (SUBTIL, 2006).

    No contexto sociocultural contemporneo, as re l ig ies , especia lmente as evangl icas e neopentecostais, mas tambm a catlica, tm usado os meios de comunicao como forma de ampliar o acesso, de agregar pessoas e criar laos sociais, bem como de vincular interesses e orientar aes coletivas (ORTIZ, 2006, p. 136). Nesse contexto aparece a preocupao com outros estilos musicais, para alm da msica religiosa convencional, na expectativa de aproximar os adolescentes e jovens por meio do apelo da chamada msica gospel. Ressalte-se que as cr ianas so apreciadoras dos shows e eventos religiosos. Entende-se que a mediao da famlia nessa forma de socializao essencial, como revelam os dados das influncias no gosto musical, no analisados neste texto.

    Somando-se todas as evidncias, parece que a construo de uma noo de infncia, nesta ltima dcada, passou por substancial vinculao ao universo adulto em todas as esferas de sociabilidade, inclusive pela fruio da msica religiosa.

    poca da segunda coleta dos dados (agosto de 2009), o cantor Michael Jackson havia falecido recentemente (25 de junho). No quesito cantor e msica preferida, a maior referncia (33%) a esse cantor, seguido por Luan Santana (8%), que

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    atualmente se afirma como cone, mas estava em incio de carreira na poca. Esse art ista foi mencionado apenas na escola privada. O dado revela a maior possibilidade de acesso da classe mdia aos programas, notcias sobre msica, CDs, DVDs e inclusive shows. Assim, refora-se a hiptese de que as novidades aparecem mais na realidade da classe mdia pelo poder de compra e acesso.

    Na escola pblica, o artista Daniel, com 18%, um permanente, j que, na primeira coleta, tambm ocupava o pr imei ro lugar. poss vel reforar esse trao de fidelidade pela dificuldade de compra dos CDs novos e uso dos CDs antigos, como explicado acima. Tambm citado genericamente cantor religioso, com 18%. Esse dado confirma uma identificao forte com os produtos religiosos por parte dessas crianas.

    As cantoras mais referidas, no geral, so Claudia Leite (24%) e, na sequncia, Ivete Sangalo (17%). A primeira preferncia na escola privada: 34% contra 12% na pblica; j Ivete Sangalo inverte a preferencia: 10% na privada e 23% na pblica. Ambas pertencem ao estilo musical ax. A ltima constitui-se em uma permanncia pelo alto ndice de preferncia na primeira coleta (SUBTIL, 2003), ou seja, um gosto musical que se tornou clssico para as crianas (assim como Daniel).

    No cruzamento por gnero, Ivete Sangalo mais citada pelos meninos, tal como constatado em pesquisas anteriores (SUBTIL, 2003, 2006). Na anlise dos dados, captamos a suscetibi l idade dos meninos aos atributos fsicos das cantoras e s suas performances corporais, o que, em nossa compreenso, demarca uma forma de construo social de gnero masculino nessa idade.

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    Ressalte-se que o percentual de respostas sobre a assistncia a programas e gosto por msicas e artistas no mbito geral das 15 escolas que constituram a base de dados da tese (SUBTIL, 2003) manteve-se, no aspecto restrito s duas escolas aqui nomeadas. Nesse caso, parece evidente que a singularidade, pela mediao da indstria cultural, contempla a universalidade da noo de infncia em alguns aspectos, independentemente da classe social.

    A citao de msica, art istas e programas estrangeiros pelas crianas da escola privada, ao inverso da escola pblica, que centra o seu conhecimento na realidade musical nacional, permite outra constatao: as crianas de classe mais baixa so mais suscetveis s modinhas ou efmeras, e agora msica religiosa, do que as crianas da classe mdia, possuidoras de outras formas de acesso.

    De manei ra geral , os est i los mus icais que aparecem em grau de igualdade nas duas realidades so: sertanejo e ax, com a preferncia por Ivete Sangalo e Claudia Leite. O forr foi mais lembrado na escola pblica. Rap e hip-hop foram pouco mencionados e, de modo geral, na pblica. Heavy metal foi evocado nas duas escolas, mas com pouca incidncia. Alm desses gneros h meno ao funk, reggae, samba, MPB, pagode e at msica erudita. O estilo pop incluindo-se a o romntico e a msica estrangeira citado majoritariamente na escola privada, e a msica religiosa ou gospel citada mais na pblica. Essas evocaes relativamente vastas de gneros e estilos musicais confirmam as possibil idades socializadoras da mdia em geral quanto ao conhecimento musical, ainda que no sistematizado e aprofundado.

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    Conforme Costa (2012), a disseminao miditica de estilos musicais permite uma apropriao particular desses gneros, gerando um incontvel nmero de tipos de msica. Ressalte-se que um dos atrativos dos cultos das igrejas justamente a apropriao musical dessas formas para mensagens de cunho religioso.

    Para o autor, esses estilos geram novas formas de padronizao como recurso de competitividade e estruturao do mercado, pontuando a ideia de que a estandardizao a regra (COSTA, 2012). Para o autor, a particularidade dos gneros musicais dilui e dissolve as singularidades na ascenso a um universal de consumo proposto pela indstria cultural (COSTA, 2012, p. 135). Essa a nica universalizao possvel via sistema miditico.

    Na viso das crianas, h msicas para cantar e msicas para danar, sendo esta ltima a preferncia de prtica musical nomeada pelas meninas (entre cantar, danar, ouvir e tocar). Os ritmos marcados e marcantes dos hits musicais so motivadores desse gosto. Costa (2012) diz que h uma diferenciao entre ouvir e danar forr, por exemplo. Isso se manifesta na separao entre o consumo musical privado (tecnologias domsticas) e o consumo em festas. Importa ressaltar que as prticas de sada (SUBTIL, 2003) festinhas, aniversrios so nomeadas como espaos significativos de aprendizagem e fruio musical nas duas pesquisas, especialmente para as crianas da classe mdia.

    Em sua pesquisa com univers i tr ios, Costa (2012) diz que em todos os gneros elencados (ax music, samba/pagode, sertanejo universitrio, pop internacional, gospel), com exceo do ltimo, prevalece a trade festa, amor e sexo. Sem forar

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    uma adequao dessa constatao s revelaes das crianas, possvel dizer que a trade, pelo menos em parte, est presente na fruio dos investigados. Nesse sentido, h evidente contradio entre uma preferncia pela msica religiosa (gospel, cano de louvor, msica de religioso), sem citar ttulos, e a nomeao de msicas preferidas com as letras erticas e nomes provocativos (Voc no vale nada, Selinho na boca etc.).

    Consideraes finais, sem a pretenso de concluir o debate

    A pesquisa, em uma dimenso longitudinal, b u s c o u a c o m p a n h a r a p r o d u o s o c i a l d o gosto musical e as prticas musicais miditicas de uma dada faixa etria na dcada de 2000. A partir de coletas de dados realizadas em um intervalo aproximado de dez anos, objetivou-se compreender uma noo de infncia que se constitui contemporaneamente na esteira da relao das crianas com as mdias e tecnologias.

    Foi possvel averiguar algumas continuidades o gosto musical por msicas efmeras e permanentes, as inflexes de gnero e classe social no consumo e uso das tecnologias e rupturas nesse processo. Em uma perspectiva dialtica, possvel perceber que as rupturas do-se dentro das continuidades. Por exemplo, a afirmao do gosto musical via tecnologias, mas com o progressivo abandono da audincia aos programas hegemnicos da Rede Globo, apontando para diversificaes.

    T a m b m s e c o n s t a t a q u e , a p e s a r d a s possibilidades ampliadas de acesso s tecnologias por um aumento gradativo do poder econmico das

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    crianas de classe baixa, permanece a diferenciao de classe social pelo acesso aos canais pagos e aos produtos miditicos sofisticados que o sistema da indstria cultural oferece, permitindo uma cultura musical mais ampla e variada.

    Subtil afirmava, na primeira pesquisa, que

    o advento das tecnologias para consumo domstico, particularmente a televiso, vai provocar outras discusses sobre o ser criana na esteira das crticas aos processos e produtos postos disposio pela indstria cultural e que afetam decisivamente essa categoria social. (2003, p. 77).

    Buckingham (2000, p. 9) complementa, dizendo que o prprio significado de infncia nas sociedades atuais se cria e se define atravs das inter-relaes das crianas com os meios eletrnicos.

    Os debates do final do sculo passado e incio deste sculo reforavam a perplexidade com a medianizao de contedos, comportamentos e processos sociais promovidos pelas mdias, mas tambm pelos impactos na adult izao das crianas. A pesquisa confirmou a anuncia das crianas aos programas adultos, sem interferncias.

    H uma autonomia crescente, no s na fruio, como no uso individualizado de tecnologias, em especial na escola privada, mas tambm na rede pblica. Isso aferido pela quantidade de tecnologias digitais de gravao de msicas. A dialtica obsolescncia-renovao das velhas tecnologias como TV, rdio, DVD, CD revela um fator de progresso econmico que permite a alguns adquirir as novidades e a outros ascenderem ao consumo bsico dos novos equipamentos.

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    Parece confirmado que o acesso intensivo e extensivo s tecnologias determinante na forma de consumir e gostar de msica, e at na banalizao da arte musical. Se entendermos a msica como construo humana e potencialmente emancipadora (SEBBEN, 2009; SUBTIL, 2006), o consumo fetichizado dos produtos musicais revela-se como um redutor das experincias estticas.

    Entretanto, no se pode negar que a cultura miditica na produo de significados musicais indutora de uma nova noo de infncia no sculo XXI. Assim, necessrio entender a mdia como um dos espaos sociais nos quais essa cultura construda. O que as crianas apreciam, valorizam e assumem em msica foi expresso em diferentes momentos e de diversas formas durante o tempo da pesquisa. Cabe ressaltar que elas interpretam e vivem as culturas miditicas a partir dos filtros intermedirios e de experincias e significados compartilhados, ou seja, das mediaes (SUBTIL, 2010), entre as quais a famlia, os amigos, a igreja etc.

    Proporcionar, efetivamente, prticas musicais humanizadoras como fator de educao esttica, crtica, criativa e emancipadora a todas as crianas o desafio que se coloca aos que lidam com a infncia hoje, dentro e fora da escola, nos diferentes espaos de sociabilidade, com ou sem as mdias/tecnologias.

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