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Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health 48 Adrian Gramary Médico Psiquiatra Centro Hospitalar Conde de Ferreira Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto e-mail: [email protected] “As iniciais H.L.M. da empresa parisiense de construção imo- biliária são, aos seus olhos, uma saudação, um grande sorriso que lhe enviam. A megalomania, tão agradável, com o senti- mento delicioso de já estar no centro de todos os aconteci- mentos, surge-lhe como um estado de eleição.” Este excerto, que pertence ao livro autobiográfico “O Homem-Jasmim”, foi escrito pela artista surrealista alemã Única Zürn. O sentimento expresso nele pela autora, essa sensação “de estar no centro de todos os acontecimentos”, corresponde à vivência que Klaus Conrad descreveu, no seu livro clássico “A esquizofrenia incipiente”, como sendo a experiência nuclear da denominada fase apofánica da esquizofrenia, a anastrofé, “a vivência que tem o doente esquizofrénico de que tudo gira a sua volta”. O texto de Única Zürn é pródigo em transcrições de conceitos psicopatológicos da esquizofrenia, no entanto, o que torna este livro um testemunho único, é o talento que a autora mostra para transformar a vivência do adoecer psicótico num texto poético de rara beleza. Única Zürn nasceu em Berlim, durante a Primeira Grande Guer- ra, no bairro residencial de Grunewald, no seio de uma família abastada – o pai era oficial de cavalaria, profissão que abando- nou para trabalhar como editor e jornalista. A sua adolescência, que decorreu durante os conturbados anos da República de Weimar, ficou marcada pela separação dos pais. A partir de 1931, e ao longo da era nazi, trabalha na UFA, a maior produtora cinematográfica alemã na altura, primeiro como auxiliar de escritório e depois como argumentista de filmes de publicidade. Em 1942, casa com Erich Laupenmühlen, com quem teve dois filhos (Katrin e Christian). Após a separação, em 1949, perde a Unica Zürn, a Alucinada Subtil Unica Zürn, the Subtle Hallucinated Fig. 1- Unica Zürn por Man Ray.

Unica Zürn, a Alucinada Subtil

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Page 1: Unica Zürn, a Alucinada Subtil

Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health

48

Adrian GramaryMédico Psiquiatra

Centro Hospitalar Conde de FerreiraRua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Portoe-mail: [email protected]

“As iniciais H.L.M. da empresa parisiense de construção imo-

biliária são, aos seus olhos, uma saudação, um grande sorriso

que lhe enviam. A megalomania, tão agradável, com o senti-

mento delicioso de já estar no centro de todos os aconteci-

mentos, surge-lhe como um estado de eleição.” Este excerto,

que pertence ao livro autobiográfico “O Homem-Jasmim”, foi

escrito pela artista surrealista alemã Única Zürn. O sentimento

expresso nele pela autora, essa sensação “de estar no centro

de todos os acontecimentos”, corresponde à vivência que

Klaus Conrad descreveu, no seu livro clássico “A esquizofrenia

incipiente”, como sendo a experiência nuclear da denominada

fase apofánica da esquizofrenia, a anastrofé, “a vivência que

tem o doente esquizofrénico de que tudo gira a sua volta”. O

texto de Única Zürn é pródigo em transcrições de conceitos

psicopatológicos da esquizofrenia, no entanto, o que torna este

livro um testemunho único, é o talento que a autora mostra

para transformar a vivência do adoecer psicótico num texto

poético de rara beleza.

Única Zürn nasceu em Berlim, durante a Primeira Grande Guer-

ra, no bairro residencial de Grunewald, no seio de uma família

abastada – o pai era oficial de cavalaria, profissão que abando-

nou para trabalhar como editor e jornalista. A sua adolescência,

que decorreu durante os conturbados anos da República de

Weimar, ficou marcada pela separação dos pais.

A partir de 1931, e ao longo da era nazi, trabalha na UFA,

a maior produtora cinematográfica alemã na altura, primeiro

como auxiliar de escritório e depois como argumentista de

filmes de publicidade.

Em 1942, casa com Erich Laupenmühlen, com quem teve dois

filhos (Katrin e Christian). Após a separação, em 1949, perde a

Unica Zürn, a Alucinada Subtil

Unica Zürn, the Subtle Hallucinated

Fig. 1- Unica Zürn por Man Ray.

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Volume XI Nº2 Março/Abril 2009 Leituras / Readings

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custódia dos filhos, e passa a viver como jornalista e escritora,

frequentando os círculos artísticos de Berlim. Para financiar a

sua subsistência, escreveu cerca de 140 contos para a impren-

sa diária berlinesa e diversas peças radiofónicas.

Após a Segunda Guerra Mundial, em 1953, conhece o pintor e

fotógrafo surrealista Hans Bellmer (1902-1975), artista inclas-

sificável, famoso como criador de fetiches surrealistas, graças

a sua famosa série de bonecas (Poupées). Apaixona-se por

ele e, nesse mesmo ano, o casal parte para Paris.

Na cidade das luzes, incitada por Bellmer, Única Zürn começa

a desenhar e a escrever anagramas, uma espécie de jogo de

palavras, que resulta do rearranjo das letras de uma palavra

ou frase para produzir outras palavras. O anagrama foi uma

das técnicas usadas pelos surrealistas – como a “escrita au-

tomática” ou os “cadáveres esquisitos” – para tentar reduzir

ao mínimo o efeito das instâncias de controlo e repressão do

subconsciente. Se as frases representam o mundo organizado

e lógico, então a busca de outras frases numa frase significa

a busca de outros mundos atrás do mundo do dia-a-dia. A

escrita anagramática, assim como a cabala, tornaram-se para

Zürn quase uma obsessão, com as quais se afastava cada vez

mais do mundo real. Ela própria descreveu este comportamen-

to. “Prazer inesgotável o de procurar uma frase dentro doutra

frase. A concentração e o grande silêncio que este trabalho

exige dão-lhe a oportunidade de poder isolar-se completa-

mente do mundo que a

rodeia e até de esquecer

a realidade – é isso o que

ela quer.”

Por intermédio de Bell-

mer, Zürn conhece os

artistas do círculo surrea-

lista parisiense: Man Ray,

Marcel Duchamp, Max

Ernst, Hans Arp e Hen-

ri Michaux. O primeiro

deixou-nos dela um fa-

moso retrato fotográfico

em escorço. O encontro

com Michaux, por quem

se diz que esteve apaixo-

nada, será decisivo para

a sua obra posterior: ele tornar-se-á, na forma duma relação

imaginada e sob as iniciais H.M., no protagonista do livro O

Homem-Jasmim.

A relação com Bellmer tinha, sem dúvida, muito na linha do

transgressor mito surrealista do amour fou, um componente

sadomasoquista, que ela teve a coragem de reconhecer: “O

meu destino é ser uma vítima eterna”, escreveu. Nesse sentido

é inevitável recordar a chocante série de fotografias que Bell-

mer fez, em 1958 - usando a perfomance própria dos rituais

de bondage sadomasoquista - nas quais o corpo de Única

Zürn aparece, em diferentes posições, atado com um cordel,

como se fosse um pedaço de carne para assar. “Ela gostava

de experienciar a dor com o prazer”, confessa Zürn num dos

seus escritos. Bellmer, por sua vez, era um grande perverso

que, sublimou, como outros artistas, as suas pulsões sádicas

através da arte, mas também foi o seu companheiro, o seu

principal apoio artístico e emocional e o fiel defensor dos seus

direitos quando Única, já muito desequilibrada, demonstrava

não ter capacidade para tratar com os marchantes. Única Zürn

tinha por ele sentimentos que oscilavam entre a admiração e a

submissão. Talvez ela se tenha vingado dele no fim, quando em

19 de Outubro de 1970, se atirou pela janela do apartamento

de Bellmer em Paris. Ele, paralisado desde há alguns anos,

nada pôde fazer para evitar o desenlace fatal, e não teve outra

escolha senão contemplar impotente o gesto dela desde a sua

cadeira de rodas. Bellmer morreu em 1974 e foi enterrado ao

lado de Única no cemitério do Père-Lachaise, sob uma campa

Fig. 2- Unica Zürn e Bellmer - desenho de Hans Bellmer.

Fig. 3- La poupée de Hans Bellmer.

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com uma inscrição onde parece ecoar a história de amor além

da morte d´O Monte dos Vendavais, romance tão caro para os

surrealistas: “o meu amor seguir-te-á até a Eternidade”.

Os primeiros sinais de esquizofrenia surgiram em Zürn em

1957. A partir dessa altura a doença acompanhou-a, em sur-

tos, até a morte, tendo de ser várias vezes internada em diver-

sas clínicas psiquiátricas: Wittenau, em Berlim; e Sainte-Anne,

Maisson Blanche, La Chesnai e La Rochelle, em Paris. Durante

os internamentos recebeu inúmeras visitas de Henri Michaux,

que se encarregava de levar papel para ela desenhar.

Os seus desenhos e pinturas, de carácter automático, muito

próximos de alguns desenhos das colecções de Prinzhorn ou

de Dubuffet, representam, com um traço denso, obsessivo e

repetitivo, fantásticas criaturas: quimeras, híbridos de animais,

plantas e humanos, ou seres bizarros reticulados que nos fa-

zem pensar em constelações, animais abissais ou organismos

microscópicos. A sua obra pictórica foi exposta, com prefácio

de Max Ernst na galeria Le Point Cardinale de Paris em 1962

e 1964, mas só se tornaria mais conhecida após a grande

exposição retrospectiva realizada na Alemanha em 1998.

A sua obra literária, em grande parte publicada postumamente,

foi criada à margem dos círculos literários, e sem perspectivas

de publicação. A par dos contos e folhetins em jornais berlinen-

ses, durante a vida de Zürn só foram publicados o pequeno

volume de anagramas Hexentexte (1954) (Textos de Bruxas) e

o conto Dunkler Frühling (1969). Nesta última obra (Primavera

Sombria), a autora descreve o acordar psico-sexual de uma

rapariga. O próprio título do livro torna clara a óptica com que

Zürn aborda o tema e o expõe; narra as alegrias e os desejos,

mas sobretudo os lados sombrios da sua infância: os medos,

a violência sexual e o aparecimento de pulsões masoquistas.

“Com toda a força da sua imaginação, chamava ardentemente

por um homem selvagem, de instintos assassinos”, lemos nas

suas páginas. O texto oferece-nos imagens perturbadoras e

violentas, como o episódio em que a protagonista inicia-se

na masturbação com uma tesoura; ou aquele sonho em que

rodeada por um grupo de homens encapuçados e vestidos de

preto, e violada com uma faca que finalmente se transforma na

língua de um cão. A narrativa, que tem muito de confissão ou

de livro de segredos, inicia-se com as primeiras percepções

conscientes da rapariga: a descoberta do próprio corpo e

o fascínio pelo sexo oposto, dirigido inicialmente ao pai. No

entanto, é molestada sexualmente pelo irmão, mas não tem a

possibilidade de se defender contra tal violência ou procurar

protecção junto de outras pessoas com quem se relacione,

pois não encontra o afecto necessário na mãe e o pai está

muitas vezes ausente em viagem, limitando-se a digerir sozinha

a sua dor. A saída é a fuga para a imaginação: “Com toda a

violência tem de se salvar na fantasia para suportar a vida”.

O seu consolo é o amor passivo por um homem adulto, que

só conhece de vista da piscina. Quando o seu amor secreto

é descoberto pela família, proíbem-lhe as idas à piscina. Tal

proibição corta-lhe a derradeira saída. A realidade torna-se-

lhe insuportável sem aquele amor – mesmo que totalmente

passivo. Desespera-se. “Não o ver mais é para ela a morte”.

Nessa mesma noite, pressagiando o suicídio real que produzir-

se-á quarenta e dois anos mais tarde, atira-se pela janela do

quarto, pondo fim à vida.

Os seus contos impressionam pela mistura de exibicionismo

emocional e radical honestidade e pela facilidade com que

diluem as fronteiras entre o real e o surreal, o sonho e a rea-

lidade. Mostra predilecção pelo paradoxo, pelo absurdo. As

histórias, reflectindo a fidelidade pelo mundo da sua infância,

desenrolam-se na Alemanha da República de Weimar; e em

Fig. 4- Desenho de Unica Zürn.

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termos de atmosfera são marcadas por motivos extraídos de

mitos e contos fantásticos, bem como pelo mundo do circo,

dos saltimbancos e vagabundos. Os protagonistas são muitas

vezes crianças, a quem, abandonada a realidade do dia-a-dia,

acontecem coisas maravilhosas.

A sua obra mais conhecida, O Homem-Jasmim, permaneceu

inédita durante muito tempo, sendo publicada postumamente,

primeiro em tradução francesa (Paris, 1971) e depois em ale-

mão, em 1977. Até onde nós sabemos, esta é a única obra

de Zürn da qual existe uma cuidada tradução em português,

publicada pela editora & Etc. Nesta crónica documental e poé-

tica da sua loucura, Zürn narra o surgimento e a evolução dos

seus delírios e alucinações, falando de si própria em terceira

pessoa, como se se contemplasse de fora.

A protagonista encontra em 1957, em Paris, um homem

que considera a personificação da sua visão de infância do

“Homem-Jasmim”. Mantém uma relação imaginária com esse

homem, sabe-se hipnotizada à distância e segue as suas

instruções. Surgem assim as vivências de influência e as alte-

rações da consciência do eu. Os actos e estados próprios do

eu são vivenciados não como próprios mas sim como dirigidos

ou influenciados pelo Homem-Jasmim. “Um magnetizador

maravilhoso, dotado de uma extraordinária força de vontade a

hipnotiza, vá ela para onde for. Impõe-lhe a sua vontade e ela

nada pode fazer contra isso. Foi assim que cometeu os actos

mais extravagantes porque ele assim o queria”, podemos ler no

livro. Em breve se separa dele. Deixa Paris e viaja para Berlim,

sua cidade natal, onde é esperada por amigos. Durante a via-

gem, e já em Berlim, continuam os delírios, as alucinações, os

fenómenos de automatismo mental. Primeiro saboreia o insólito

do novo estado em que se encontra. “Se alguém lhe tivesse

dito que era preciso ficar louca para ter estas alucinações,

sobretudo a última, de bom grado teria aceitado. São a coisa

mais espantosa que algum dia lhe foi dado ver.” A narradora

faz esta apreciação; a protagonista age consciente de que as

suas invulgares experiências são normais. Não se apercebe da

diferença entre as alucinações e o mundo “real”, “parecendo-

lhe absolutamente normal tudo quanto faz, não compreende a

súbita cólera dos amigos.” O seu comportamento bizarro (por

exemplo, atira pela janela os óculos dum homem desconheci-

do) leva-a por fim ao internamento numa clínica psiquiátrica. Os

amigos berlinenses apoiam-na e animam-na durante a estadia

na clínica. Finalmente é libertada, volta para Paris e retoma a

vida que levava. Mais em breve surgem novos delírios e aluci-

nações; volta a deixar o ambiente onde vive e esforça-se por

conseguir uma nova vida independente. Também esta tentativa

acaba numa clínica psiquiátrica.

O livro tem linhas de contacto com o interesse do surrealismo

pela loucura e pelas experiências que transcendem, através

de alucinações induzidas, a realidade do dia-a-dia, como

foi a experimentação com drogas (pensemos em Cocteau,

Michaux ou Artaud). A alternância de perspectivas interior e

exterior (vivência e comentário da loucura) cria uma tensão que

se mantém até ao final da narrativa. Esta tensão é suportada

através da excelente manipulação da alternância de planos da

realidade e da memória, sonho e alucinação.

O seu amigo André Pierre de Mandiargues, que definiu como

“diabólica” a beleza de Única Zürn, referiu-se a ela como “uma

alucinada subtil”. Sabemos que no fim do livro, ela própria

questiona-se se a sua paixão pelo extraordinário e pelo mundo

da imaginação não será a causa das frequentes recaídas na

psicose, como se esta fosse uma válvula de escape ou um

refúgio face à insatisfação provocada pelo mundo real. A sua

foi, sem dúvida, uma vida vivida testando os limites, pondo

a prova continuamente uma frágil estrutura psicoemocional,

pendurada em equilíbrio instável na corda bamba entre a

perversão e a psicose.

Bibliografia:

Combalía V (2006): Amazonas con pincel. Vida y obra de las grandes

artistas del siglo XVI al siglo XXI. Destino – Imago Mundi. Barcelona

Foster H (2008): Dioses prostéticos. Akal. Madrid

Zürn U (2000): O Homem-Jasmim. Editora & Etc. Lisboa

Zürn U (2004): El trapecio del destino y otros cuentos. Siruela. Madrid

Zürn U (2005): Primavera sombría. Siruela. Madrid

Zürn U (2006): El hombre Jazmín. Siruela. Madrid

Fig. 5- Capas dos livros de Unica Zürn.