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Desenvolvimento, dependência e dominação financeira
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INTRODUO
Esta tese busca contribuir para o debate sobre o tema do desenvolvimento
econmico no Brasil. Mais precisamente, almeja contribuir para a busca de
explicaes a respeito da estagnao pela qual passa a economia brasileira desde a
dcada de 80, aps ter apresentado por quase meio sculo elevadas taxas de
crescimento e um rpido processo de modernizao e transformao estrutural,
passando de uma economia agrrio-exportadora nos anos 30 para uma diversificada
economia industrial, cuja matriz intersetorial estava praticamente completa no incio
dos anos 80.
Contrariamente s teorias endogenistas, que do destaque aos fatores
internos para a compreenso do desenvolvimento capitalista no Brasil, daremos
destaque aqui s interpretaes que destacam a condio perifrica e dependente
da economia brasileira no capitalismo mundial. No se pretende com isso ignorar a
importncia dos fatores internos e negar que houve, em certos momentos histricos,
certa autonomia das decises domsticas. Trata-se, antes, de destacar os limites e
as possibilidades abertas pela expanso do capitalismo mundial e pelas formas de
interao entre nossa economia com a economia mundial ao desenvolvimento
econmico no Brasil.
O debate sobre o peso dos condicionantes internos e externos na explicao da
evoluo da economia brasileira permeou toda a historiografia. Sobre o perodo
colonial, temos as interpretaes clssicas de Caio Prado Jr em Formao do Brasil
Contemporneo e Celso Furtado na sua Formao Econmica do Brasil, seguidos
mais tarde por Fernando Novais, que defenderam a noo de que a economia
colonial era dependente, ou seja, sua dinmica no poderia ser compreendida seno
por meio dos seus laos de dependncia com relao ao desenvolvimento do
capitalismo na Europa.
Isso se devia ao que Caio Prado Jr chamou de o sentido da colonizao, que
era a orientao primrio-exportadora dessa economia, que a tornava fortemente
dependente das flutuaes do mercado externo e que limitava seu desenvolvimento.
Esse sentido definiu os contornos da estrutura econmica da colnia, baseada na
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monocultura para exportao, na grande propriedade rural e no trabalho escravo,
no havendo elementos que dinamizassem o mercado interno e possibilitassem o
desenvolvimento autnomo da economia colonial.
Segundo esta vertente, mesmo aps a independncia poltica formal (fim do
pacto colonial), permaneceu o sentido da colonizao e a relao de dependncia
e heteronomia da economia nacional, pela manuteno dos seus vnculos com o
mercado mundial, baseados na mesma estrutura da diviso internacional do
trabalho, pela qual as colnias exportavam produtos primrios e importavam
manufaturados.
De outro lado, temos as interpretaes que questionaram a noo de
dependncia destacando a autonomia de nossa sociedade mesmo no perodo
colonial, como a presente na obra O Escravismo Colonial de Jacob Gorender.
Nesta obra, este autor desenvolve uma anlise centrada no conceito de modo
de produo escravista colonial, criticando a vertente circulacionista de Caio Prado
Jr e Fernando Novais, as quais se centrariam apenas na esfera da circulao e no
capital comercial para caracterizar a colnia, quando o procedimento correto, na
perspectiva marxista seria partir do modo de produo.
Em outro texto, Gorender (1980) chamou tal postura de integracionismo, na
qual ele inclui as teorias da dependncia. Tal postura se caracteriza, segundo ele,
pelo esquecimento das particularidades internas e pelo tratamento de todas as
sociedades que estabelecem vnculos com o capitalismo mundial como sendo
tambm capitalistas.
Uma abordagem na mesma linha a presente em O Arcasmo como Projeto,
de Joo Fragoso e Manolo Florentino, que trataram a economia colonial com a
categoria formao econmico e social, destacando a existncia de acumulaes
endgenas na economia colonial que lhe confeririam independncia face s
flutuaes da economia europia. As posturas como a de Gorender, bem como a de
Fragoso e Florentino, tendem a minimizar os fatores externos e a forma de
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integrao da economia domstica ao capitalismo mundial para explicar sua
evoluo no tempo. 1
Entretanto, entre o final do sculo XIX e incio do sculo XX, houve importantes
transformaes que comearam a alterar esta situao abrindo novas perspectivas
para a economia brasileira As principais foram a abolio da escravido (que abriu
espao para a mudana das relaes de produo, ou seja, para o trabalho
assalariado), a Primeira Guerra Mundial e a Crise de 1929, que possibilitaram o
desenvolvimento do mercado interno ao mesmo tempo em se restringia a
capacidade para importar e a disponibilidade das importaes de manufaturados,
criando incentivos indstria domstica.
Aps a dcada de 30, houve o que Celso Furtado (Furtado, 1959) chamou de
deslocamento do centro dinmico da economia, que passa do setor primrio
voltado exportao para a indstria voltada ao mercado interno. A discusso sobre
a existncia ou no de uma autonomia da economia nacional se recoloca pois, a
partir de ento, sua dinmica passa a ser determinada mais e mais pelo seu prprio
mercado interno, com os efeitos multiplicadores da renda subjacentes a ele e o
crescimento do setor industrial. Dentro do pensamento cepalino, a industrializao
seria a condio necessria e suficiente para a autonomia, ou seja, para o
rompimento com os laos assimtricos de dependncia e restrio externa ao
desenvolvimento, que advinham da deteriorao dos termos de troca (Prebisch,
1949).
1 Sobre o perodo colonial, expus minha posio em artigo recente (Teixeira, 2006), no qual defendo
que o perodo colonial no deve ser compreendido fora dos marcos do desenvolvimento do
capitalismo, e que por isso no se deve tratar a sociedade colonial com as categorias modo de
produo postura que j havia sido criticada por Costa (1999, 1985) como se houvesse l um
novo modo de produo, como o faz Gorender (1985), ou com a categoria formao econmico
social, como fazem Fragoso e Florentino (2001). O uso destas categorias parte de uma viso da
concepo marxiana da histria como se esta se tratasse de uma teoria geral da histria, postura que
se distancia da dialtica marxiana pois no respeita a contradio entre o particular e o geral, estando
mais prxima do positivismo ou do estruturalismo. Defendemos, no referido artigo, a noo de Caio
Prado Jr sobre o sentido da colonizao, mas com uma ligeira modificao: tal sentido foi, em nossa
opinio, a constituio da periferia do sistema capitalista mundial.
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Entre as dcadas de 30 e 50, ocorreu o chamado processo de substituio de
importaes, cuja lgica foi explicitada no texto clssico de Tavares (1975). Neste
processo, a dependncia e a restrio externa se colocam de outra forma, qual seja,
pelo estrangulamento externo gerado pela necessidade de divisas, j que a
produo domstica de bens de consumo exige novas importaes, seja de
matrias-primas e insumos bsicos, seja de mquinas e equipamentos cuja
produo domstica no existia.
A partir da dcada de 60, quando o setor de bens de produo j estava se
internalizando, alguns autores vo explicar a estagnao do incio dos anos 60 como
sendo produto das flutuaes cclicas de uma economia industrial madura, pelas
desproporcionalidades nas relaes entre os setores de produo de bens de
consumo e de bens de produo (Tavares, 1975; Melo, 1986). Ou seja, a crise agora
seria endgena, como em qualquer economia capitalista madura, e no mais
causada pelos estrangulamentos externos.
Outros autores (Cardoso e Faletto, 1975), destacando a importncia dos
vnculos externos, buscam compreender a mudana nos laos de dependncia que
unem o Brasil economia mundial. Segundo eles, desde a dcada de 50 estaria
havendo uma reconfigurao das relaes entre o centro e a periferia, um novo
carter da dependncia: o desenvolvimento da periferia, principalmente nos setores
mais dinmicos da indstria, estava sendo impulsionado pelos grandes grupos
industriais dos pases centrais, principalmente as multinacionais norte-americanas.
Em outra linha interpretativa, como Castro (1985) escreve que o II Plano
Nacional de Desenvolvimento (II PND) cumpriu seu objetivo de levar s ltimas
conseqncias a substituio de importaes, com a internalizao do setor produtor
de bens de capital e insumos intermedirios, criando assim uma autonomia completa
de nossa economia. Esta postura tambm foi bastante otimista quanto ao
rompimento com os laos de dependncia.
Ainda que tenha havido mudanas estruturais que criaram uma dinmica
interna com a industrializao, a nosso ver essas mudanas devem tambm elas ser
compreendidas no contexto do desenvolvimento e expanso do capitalismo mundial
e da forma dependente de vinculao dos pases perifricos economia mundial.
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Apesar de as teorias do imperialismo por muito tempo terem defendido a viso
segundo a qual o capital estrangeiro e as multinacionais, aliadas s elites
retrgradas do setor primrio-exportador, buscavam impor barreiras
industrializao e ao desenvolvimento econmico da periferia, as dcadas de 50 e
60 mostraram a importncia das multinacionais na industrializao, particularmente
no setor de bens de consumo durveis, tal como observado por Cardoso e Faleto.
O capital estrangeiro teve importante papel no desenvolvimento industrial que
seria, na viso da esquerda da poca (em particular dos tericos do Partido
Comunista Brasileiro, o PCB), uma tarefa domstica, que deveria ser levada a cabo
por uma aliana entre os trabalhadores e a burguesia industrial, numa perspectiva
desenvolvimentista e nacionalista. De maneira anloga, na dcada de 70, o setor
privado domstico e o setor pblico no dispunham de recursos suficientes para
financiar os projetos do II PND, de modo que a marcha forada da economia
brasileira (Castro, 1985) foi levada a cabo com o recurso poupana externa. Isso
s foi possvel pela ampla liquidez internacional do incio da dcada de 70, cujas
fontes foram os dficits fiscal e comercial dos EUA e a reciclagem dos petrodlares,
associada ao fato de que os pases centrais j passavam por queda nas taxas de
crescimento, de modo que as oportunidades internas de investimento haviam se
reduzido.
Assim, apesar da existncia de uma dinmica interna aps a dcada de 30,
foroso reconhecer que os movimentos da economia mundial, fortemente
influenciados pela dinmica dos pases centrais, so fundamentais para
compreender a evoluo no tempo das economias perifricas, tanto no que diz
respeito difuso do progresso tecnolgico, que gerado no centro, como no que
tange disponibilidade do financiamento externo, ligada esta ltima s flutuaes
das economias centrais, ao sistema monetrio internacional e s estratgias das
multinacionais.
A crise da dvida nos anos 80 e a reinsero internacional da economia
brasileira nos anos 90, particularmente a sua insero no mercado financeiro
internacional, no podem ser compreendidos, a nosso ver, sem que se analisem as
transformaes do capitalismo mundial nas ltimas dcadas, transformaes essas
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que se difundiram a partir do centro, no s no plano econmico (esferas financeira e
produtiva), como tambm nas formas do Estado e no plano das idias. As relaes
de dependncia mudaram, mas continuam muito presentes, talvez at mais do que
antes. preciso, portanto, compreender as novas formas de vinculao das
economias perifricas ao capitalismo mundial e da o grande espao ocupado nesta
tese pelo estudo do capitalismo contemporneo, apesar de seu objetivo ser a
economia brasileira.
Assim, buscamos nesta tese resgatar a literatura latino-americana a respeito do
subdesenvolvimento e das relaes centro-periferia, particularmente os trabalhos
que se pautaram pela noo de dependncia. O objetivo ser compreender a
especificidade das economias perifricas, particularmente as latino-americanas, no
intuito de explicar porque, mesmo naquelas que se industrializaram, como o Brasil,
no se logrou criar um padro de desenvolvimento sustentado e autnomo. Ou seja,
busca-se explicar por que, aps o final do modelo anterior, no se logrou a
construo de um novo modelo de desenvolvimento. Esta pergunta s pode ser
respondida se olharmos para a prpria natureza do capitalismo enquanto um sistema
mundial e assimtrico, bem como para a maneira como se deu a insero externa da
economia brasileira durante as transformaes do capitalismo mundial que
ocorreram a partir da dcada de 70, quando se gesta um novo regime de
acumulao mundial,2 sob a gide da dominncia financeira.
interessante notar que, de certa forma, o pensamento crtico latino-americano
em meados do sculo XX pode ser compreendido como uma transposio, para o
plano das relaes internacionais, da Teoria Crtica da sociedade. Refiro-me aqui
distino feita por Max Horkheimer entre Teoria Tradicional e Teoria Crtica. Isto
porque o pensamento latino-americano se constituiu no apenas buscando
compreender um conjunto de relaes dadas, no foi apenas a busca de conexes
causais entre estados de coisas. As formulaes tericas desenvolvidas aqui, desde
o pensamento cepalino at os estudos sobre dependncia, numa postura prpria da
teoria crtica, buscavam fazer o diagnstico do tempo presente para identificar no 2 Regime de acumulao um termo terico criado pela chamada escola francesa da regulao
(Aglietta, Boyer, Lipietz etc). Na seo 2.4 do captulo 2 deste trabalho apresentaremos brevemente
este e outros conceitos dessa escola terica.
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funcionamento do capitalismo mundial os bloqueios e ao mesmo tempo as
possibilidades de emancipao dos pases perifricos, buscando transformar a
realidade, ou seja, buscando superar o subdesenvolvimento e a heteronomia dessas
sociedades.
Claro que tal emancipao no era a mesma identificada pela teoria crtica.
Esta tratava (ao menos no incio) da emancipao enquanto libertao do homem
com relao ao capital, quando o homem deveria tornar-se ento o sujeito histrico,
autnomo e autodeterminado. No caso do pensamento latino-americano, nem
sempre a soluo proposta pelos tericos foi o fim do capitalismo (como ntido no
caso da CEPAL), mas o tema comum era a conquista da autonomia e da
autodeterminao da Nao, rompendo com os laos de dominao que amarravam
as economias latino-americanas aos pases centrais, laos estes que insistiam em se
perpetuar. Os clssicos de nossa historiografia, como Caio Prado Jr. na sua
Formao do Brasil Contempornea e Celso Furtado em Formao Econmica do
Brasil, destacam exatamente esta noo de dependncia e falta de autonomia que
se perpetuou no sculo XX, mesmo aps a independncia poltica, o que estaria na
raiz do subdesenvolvimento do Pas.
Ainda que no se tenha logrado a emancipao de fato, ao menos no plano das
idias desenvolveu-se na Amrica Latina um pensamento crtico e autnomo, que
ficou esquecido, mas que deve ser retomado. Faremos aqui, portanto, uma retomada
do pensamento crtico latino-americano, que ficou ofuscado nas ltimas dcadas
pelo neoliberalismo.
A interao entre teoria e poltica foi muito forte na Amrica Latina, muito
visvel, por exemplo, pela relao entre o pensamento cepalino e a industrializao.
Tal interao tambm ser fundamental em nossa argumentao pelo fato de que na
dcada de 90, quando se iniciam as reformas neoliberais no Brasil com a abertura
econmica e as privatizaes, tivemos no comando da nao um dos principais
tericos que integraram a tradio do pensamento crtico latino-americano: Fernando
Henrique Cardoso.
Seguiremos ento a trilha do pensamento latino-americano, em particular a dos
autores brasileiros e a verso vitoriosa (pois chegou ao poder) da teoria da
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dependncia, que defendeu a tese da possibilidade de um desenvolvimento
econmico mesmo na situao de dependncia, ou seja, um desenvolvimento
dependente-associado. As questes centrais aqui sero duas. Em primeiro lugar,
mostrar a coerncia do governo de Cardoso com relao sua obra, ou a coerncia
do presidente com relao ao socilogo. Isto essencial na medida em que as
reformas neoliberais de seu governo levantaram forte polmica pelo seu passado de
intelectual de esquerda, levando famosa polmica em torno da frase que teria sido
atribuda a Cardoso de esqueam o que escrevi.
Em segundo lugar, mostrada tal coerncia, que na verdade reflete, como se
ver, uma convergncia entre a verso da dependncia de Cardoso e a ascenso do
neoliberalismo enquanto doutrina, trata-se de buscar o ngulo cego da teoria, visto
que a reinsero externa da economia brasileira, no bojo das reformas neoliberais
que foram aceleradas durante o governo de Cardoso, ampliaram a dependncia sem
trazer a to esperada retomada do desenvolvimento. Nossa tese que, para
responder por que as reformas empreendidas por Cardoso no trouxeram o
desenvolvimento, mas apenas ampliaram a dependncia (em particular do mercado
financeiro internacional), preciso compreender as mudanas pelas quais passou o
capitalismo mundial desde a dcada de 70, quando houve a instaurao de um novo
regime de acumulao, caracterizado pela dominncia financeira. preciso,
portanto, investigar como se deu a insero internacional do Brasil nesta nova fase
do capitalismo, quais so os limites que ela criou ao desenvolvimento e autonomia.
* * *
Para dar conta dessas tarefas, esta tese est dividida em 4 captulos, alm
desta introduo. O primeiro trata da abordagem metodolgica seguida na tese, que
a leitura dialtica de Marx e do seu mtodo da economia poltica.
O segundo captulo apresenta as bases tericas contidas em O Capital que
auxiliam na compreenso da idia de que vivemos hoje uma autonomizao da
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esfera financeira, noo que surgiu com a escola regulacionista, cujas bases esto
no pensamento de Marx. Defende-se que no prprio desenvolvimento categorial do
valor, do dinheiro e do capital em Marx (que um desenvolvimento lgico-dialtico),
mas principalmente com a forma capital (com o capital portador de juros e o capital
fictcio), est presente a possibilidade lgica de tal autonomizao, ainda que ela
aparea aqui como ilusria e temporria. Descrevem-se ainda as transformaes
recentes no capitalismo, em particular o desenvolvimento do dinheiro mundial numa
moeda puramente fiduciria e o processo de mundializao financeira, caracterizado
pela indita importncia assumida pela forma capital portador de juros e pela enorme
expanso do capital fictcio em nvel mundial. Defendemos as idias de autores que
vem nestas transformaes a origem de um novo regime de acumulao do
capitalismo, caracterizado pela dominncia financeira da valorizao: a possibilidade
lgica da autonomizao da esfera financeira, presente em Marx, ganhou efetividade
histrica, quando o capital portador de juros apoiou-se em slidas bases
institucionais que lhe deram uma autonomia que, ao contrrio da que Marx descreve
e que ocorre em ocasies pontuais e apenas temporariamente (que geralmente
precedem as crises ou o fim de uma fase de expanso da reproduo real),
possibilitaram ao capital portador de juros ocupar o centro das relaes sociais e
imprimir sua lgica prpria esfera produtiva de forma estvel e duradoura.
No terceiro captulo, defendemos a tese da dominncia financeira contra duas
interpretaes do marxismo contemporneo que consideramos ser as mais
importantes, e que divergem da interpretao de que h uma mudana no regime de
acumulao ou de que estamos diante de uma nova fase do capitalismo. Apontamos
as insuficincias e incoerncias destas teses. A primeira a abordagem das ondas
longas, que v a expanso financeira atual apenas como caracterstica comum da
fase descendente de um ciclo ou onda longa do capitalismo. A segunda a tese de
que estaria havendo uma mudana no prprio modo de produo, o que desloca a
discusso sobre o capitalismo contemporneo da esfera financeira para as
transformaes na esfera produtiva: a substncia do valor teria deixado de ser o
tempo de trabalho, e o prprio capital produtivo, com o conhecimento se tornando
uma mercadoria, teria assumido uma forma rentista nos setores mais dinmicos
(recebimento de rendas de propriedade intelectual, patentes, direitos autorais etc.),
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que produziria essa aparncia de dominncia da esfera financeira dentro do velho
modo de produo, quando se trata na realidade, segundo esta interpretao, da
consolidao de um novo modo. Criticamos esta tese a partir da crtica noo de
que o tempo de trabalho estaria deixando de ser a substncia do valor, mostrando a
coerncia da teoria do valor de Marx para explicar as transformaes na esfera
produtiva que ocorreram nas ltimas dcadas, e defendendo que as principais
transformaes que regulam a dinmica do capitalismo contemporneo esto na
esfera financeira.
O captulo 4 conduz a discusso anterior sobre o capitalismo mundial para o
plano das relaes entre os pases centrais e perifricos, com o foco na economia
brasileira. apresentada uma reviso da literatura sobre as relaes entre o centro e
a periferia, o subdesenvolvimento e a dependncia, discusso esta que esteve
presente em todo o sculo XX, em particular no pensamento latino-americano. Alm
disso, busca-se relacionar a temtica da dependncia com a temtica da
dominncia financeira. Defende-se que a insero internacional de vrias economias
perifricas como mercados emergentes na dcada de 90, entre elas o Brasil,
mudou os vnculos destas economias aos pases centrais, configurando um novo
carter da dependncia. Assim, desenvolvemos uma reinterpretao da evoluo da
economia brasileira no final do sculo XX, dando especial ateno forma como se
deu a insero externa do Brasil na dcada de 90, no bojo da dominncia financeira
da valorizao, e apresentando suas conseqncias perversas do ponto de vista do
desenvolvimento econmico.
Finalmente, o ltimo captulo apresenta as concluses.
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CAP. 1 QUESTES METODOLGICAS: A DIALTICA MARXISTA3
Introduo
Este captulo inicial tem como objetivo fazer os esclarecimentos necessrios a
respeito da abordagem metodolgica seguida na tese. Como nossa argumentao
se desenvolver no bojo do campo denominado Economia Poltica, dentro da
perspectiva marxista, e como existem muitas leituras e diferentes abordagens que se
colocam sob o extenso guarda-chuva do marxismo, convm esclarecer a viso do
mtodo e a leitura de Marx que norteia este trabalho. Acompanhamos os esforos de
outros autores que buscam livrar o marxismo das interpretaes vulgares,
resgatando a leitura dialtica, que busca se contrapor leitura positivista que marcou
o marxismo oficial das cartilhas dos partidos comunistas, bem como leitura
estruturalista de Althusser e outros4, e tambm mais recente investida do marxismo
analtico, que busca introduzir o individualismo metodolgico e a escolha racional5
para aproximar o marxismo dos cnones cientficos, tal como definidos nos marcos
da cincia positiva.
Apesar de muitos autores defenderem a leitura dialtica de Marx6, a reflexo a
respeito da dialtica enquanto lgica e concepo das significaes e inclusive a
3 Este captulo uma verso modificada do captulo 4 de minha dissertao de mestrado (Teixeira,
2006). Naquela dissertao, defendemos a dialtica como um discurso da contradio com o qual o
discurso cientfico pode superar a dicotomia colocada pelo positivismo e pelo historicismo nas cincias
humanas. Nesta tese, retomamos o discurso dialtico para aplic-lo interpretao de Marx (cap. 2),
e para defender a tese da dominncia financeira e criticar a idia de que houve uma mudana na
substncia do valor (cap. 4). Para tanto, utilizamos a distino, que ser apresentada neste captulo,
entre pressuposio e posio, a partir da apresentao de Fausto (1988, cap. 2) sobre a concepo
dialtica das significaes. 4 Ver Althusser (1979). 5 Ver Przeworski (1996). 6 O combate ao marxismo oficial vem de longa data: Lukcs, os frankfurtianos, Sartre, Gramsci e
outros, desde as primeiras dcadas do sculo XX, combatiam as interpretaes mecanicistas e
esquemas abstratos do marxismo vulgar. No pensamento latino-americano, h vrios exemplos de
12
distino, paradoxalmente muito famosa e ao mesmo tempo pouco conhecida em
sua forma rigorosa, entre as dialticas de Hegel e Marx - entretanto, s
recentemente ganhou bases mais slidas, nos trabalhos do filsofo brasileiro Ruy
Fausto. Boa parte dos textos em que desenvolve seu projeto de apresentar a
dialtica enquanto lgica e a leitura dialtica da obra marxiana encontra-se nos seus
trs tomos de Marx: lgica e poltica, cujo subttulo Investigaes para uma
reconstruo do sentido da dialtica.
Coloca o autor, na introduo do Tomo I da obra supra citada, que o marxismo
envelheceu mas, ao mesmo tempo, ele desconhecido. E ele desconhecido
porque a dialtica desconhecida, pois se perdeu em meio s dialticas vulgares ou
s leituras que buscaram expurgar a dialtica e a herana hegeliana de Marx, como
a leitura estruturalista e o marxismo analtico.
Faremos aqui uma exposio da concepo dialtica das significaes, tal
como apresentada por Ruy Fausto no seu texto Pressuposio e posio: dialtica e
significaes obscuras (Fausto, 1988, cap. 2). O objetivo mostrar a diferena entre
a maneira dialtica e a da concepo usual de cincia (centrada na lgica formal) de
se trabalhar com as significaes, alm de mostrar tambm as diferenas entre as
dialticas de Hegel e Marx, ambas as tarefas realizadas por Fausto.
Como coloca Fausto, no se deve retirar a obscuridade (contradio) do
discurso (que o que procura fazer a cincia convencional) sob a pena de distorcer
seu significado, mas deve-se procurar trabalhar tanto o seu ncleo de significaes
claras (a posio) quanto o halo de significaes obscuras (a pressuposio).
Segundo o autor, a obscuridade do discurso est no campo das pressuposies, que
o campo da contradio, e nele que o discurso dialtico deve atuar, pois no o
dizer claro da cincia, mas sim o dizer obscuro da dialtica que pode esclarec-lo.
Para trabalhar dialeticamente com as noes de posio e pressuposio
preciso romper com o pensamento de Kant, de que a posio (o ser, a existncia)
caberia apenas ao objeto e a pressuposio (as determinaes, o conceito, bem
como as contradies) apenas ao sujeito. Deve-se faz-lo, no entanto, sem cair na autores que desde cedo j desenvolveram crticas quela viso estreita do marxismo, como
Maritegui, Caio Prado Jr., Srgio Bagu e outros.
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verso clssica da prova ontolgica. A prova ontolgica foi objeto da crtica de Kant,
que no aceitava a passagem do pensar ao ser (presente em Descartes, Leibniz e
outros filsofos clssicos). Kant distanciou desta forma o pensamento, a conscincia
(o sujeito) da realidade concreta (o objeto): a conscincia no seria capaz de
conhecer objetivamente a realidade, de se apropriar dela, mas apenas de
represent-la em conceitos, de forma meramente subjetiva, independentemente da
textura do real concreto, conhecendo-se dela, portanto, apenas o fenmeno (a coisa
tal como se apresenta para nossa conscincia). A dialtica de Hegel veio resgatar a
prova ontolgica, mas no da forma como era colocada pelos clssicos. E Fausto vai
mostrar - a despeito das opinies contrrias que acham que no se pode fazer uma
leitura de Marx a partir de Hegel, como a leitura althusseriana - que com Hegel (e
com a dialtica) que Marx vai acompanhar este resgate, mas tambm perceber os
limites da dialtica hegeliana, o que o levar ao rompimento com este autor.
Procuraremos mostrar aqui, com base em Fausto: 1) a inadequao da cincia
baseada na lgica formal e a adequao da dialtica para trabalhar com os objetos
obscuros (objetos pressupostos e, portanto, contraditrios), o que lhe conferiria a
capacidade de dizer um mundo mais amplo que aquele que pode ser dito pelo dizer
claro da cincia, particularmente no dizer os objetos sociais, que so nossa
preocupao; 2) a tentativa de resgate, pela dialtica hegeliana, da prova ontolgica;
3) a relao entre as dialticas de Hegel e de Marx, buscando a legitimidade, obtida
pelo ltimo, para a noo de que as contradies existem na realidade concreta
(contradies postas) e no apenas na articulao das categorias pela conscincia,
como advogava Kant (e como postula a cincia convencional). Busca-se responder
aqui como possvel a existncia de pressuposies objetivas, ou seja, objetos
pressupostos, contraditrios. Mostrando que tais objetos existem, admitimos a
possibilidade (e a necessidade) de se investir a dialtica nestes campos obscuros do
conhecimento, nos quais a clareza do discurso da concepo usual de cincia no
consegue iluminar (apenas obscurece ainda mais).
1.1 - Dialtica e obscuridade - Ser e no ser, eis a questo
14
Como coloca Fausto (1988), a principal caracterstica que distingue a dialtica
dos discursos fundados na lgica formal a sua concepo das significaes:
enquanto estes ltimos consideram que no campo das significaes existem apenas
regies claras ou que possam ser clareadas, ou seja, esclarecidas, para a
dialtica este campo, alm de um ncleo claro contm um halo escuro, no qual a
clareza obscurecimento.
Para Fausto, a regio clara do campo das significaes corresponde posio,
enquanto que o halo escuro o campo das pressuposies, que o campo das
significaes que ao mesmo tempo so ditas e no ditas. a este ltimo que as
concepes no dialticas so cegas, pois este o campo da contradio. Nele a
lgica formal no consegue adentrar, pois a forma de seu discurso, baseado na
viso do mundo perfeito (no contraditrio), no se encaixa neste mundo
contraditrio, no se adequa a ele.
Vamos ver por que o campo das pressuposies obscuro (contraditrio). Esta
idia parte de Hegel. H basicamente duas maneiras de se pensar a pressuposio
na dialtica. Na primeira, temos o pressuposto como o possvel. Mas, considerado como o apenas possvel, o pressuposto no pode ser (ter existncia efetiva). Isto
porque, sendo ele apenas possvel, essa efetividade que constitui a possibilidade de
uma coisa no em conseqncia a sua possibilidade prpria, mas o ser-em-si de
um efetivo outro. (Fausto, p.162).
Assim, Hegel pensa a possibilidade no de forma positiva aquilo que pode vir
a ser mas de forma negativa aquilo que de fato no . A possibilidade remete
no-efetividade. Assim, no porque o ser possvel (ou ento contingente) , que o
ser existente (ou ento necessrio) . Pelo contrrio porque o ser possvel ou
contingente no , que o ser existente ou necessrio . (Hegel, apud Fausto,
p.163). A existncia (o ser) implica ento um movimento, a negao da possibilidade,
ou seja, como a possibilidade em si uma negao, a existncia implica ento a
negao da negao. O pressuposto considerado como possvel , portanto, o ainda no posto, que nos remete histria do Conceito, ou mais precisamente sua pr-histria. O que ocorre neste caso que o Conceito j tem todas as suas
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determinaes, mas falta uma: a determinao posio, que a existncia efetiva do Conceito.
Mas o pressuposto pode ser tambm posio negada, o posto como negativo,
ou seja, o posto como no posto, ou ainda, o posto como pressuposto. (Paulani,
1992, p.103). No primeiro caso - o pressuposto como possvel - ele no pode ser,
pois ele no est posto. Na primeira situao ele se nega pela no posio, na segunda, pela posio negada. Aqui a determinao posio est presente, mas ela negada, suprimida, a posio torna-se pressuposta. Mas tal negao, como
aponta Fausto, no uma negao vulgar: trata-se da Aufhebung hegeliana, uma
negao que tambm tem o sentido de conservar e superar: a significao posta
negada, mas ela se conserva como pressuposio. Sendo posio pressuposta,
como pressuposto o Conceito no pode ser, mas se apesar disto est posto, nega o
seu prprio enunciado, nega sua posio, ou seja, nega a si mesmo.
Nas duas situaes, o pressuposto ento contraditrio, ele e no . O
campo das pressuposies um espao de contradio: no universo das
pressuposies, as significaes esto e ao mesmo tempo no esto presentes
(Fausto, p. 156, nota 14). Vejamos ento porque ele no pode ser dito pelo dizer
claro da cincia, aquele cuja razo baseia-se na lgica formal. Tal concepo da
cincia busca sempre dizer o que , ou seja, ela sempre procura clarificar: (...) a
cincia convencional, por seu carter analtico, esfora-se por saber e dizer o que ;
ela precisa e constitui-se de fundamentos, de definies, e definies so
proposies sobre o que (...) (Paulani, 1992, p.103).
Apenas a regio clara das significaes, portanto, onde a cincia
convencional se prope a (e apenas onde consegue) adentrar; as portas da regio
obscura (as pressuposies) lhe esto fechadas, pois esta no pode (nem deve) ser
clareada. A cincia convencional pode ento dizer o que e mesmo o que no ,
mas ela no pode dizer o que ao mesmo tempo e no . A sua maneira de
trabalhar, clarificando (esclarecendo), cria um dizer que no capaz de se
apropriar, portanto, das significaes pressupostas, pois (...)[neste campo] o
mximo de clareza na realidade obscurecimento (Fausto, p.150).
16
Por que a clareza neste campo obscurecimento? Como mostra Fausto, este
espao obscuro, ao contrrio do que atestam as concepes no dialticas, no
representa os limites do entendimento, no sentido de intenes no preenchidas,
ou do que ainda no foi esclarecido - ele no pode (nem deve) ser clarificado: Longe
de representar o limite, em sentido negativo, das significaes, as zonas de sombra
lhes so essenciais. Sem elas, o discurso no significa mais o que significa (Fausto,
p. 150). As zonas de sombra no podem ser vistas como ainda no clarificadas ou
ainda no preenchidas a no ser que o preenchimento seja pensado no como
processo subjetivo, mas processo objetivo, de posio do Conceito, como veremos.
A concepo usual de preenchimento, neste campo, , portanto, no
preenchimento.
E se no se pode ver na obscuridade com o discurso claro, porque para a
dialtica a obscuridade no est apenas no pensamento, ela real, e por isto s
pode ser capturada pelo dizer (Conceito) se este for ao mesmo tempo um no dizer:
a obscuridade capturada pelo conceito como determinao do conceito (Fausto,
p.150, grifos do autor). E o dizer capaz de realizar esta tarefa o discurso dialtico.
A clareza da lgica formal ento obscurecimento, pois, para a dialtica, o discurso
claro aquele cujos fundamentos primeiros so de algum modo obscuros (isto ,
afetados de negao) (...) (idem), pois estes fundamentos levam em considerao a
existncia de contradies (negaes) que no podem nem devem ser ignoradas ou
retiradas do discurso: eles procuram refletir nos conceitos a obscuridade do prprio objeto.
Assim, para a dialtica as contradies so reais, no so meros limites do
sujeito pensante, mas pertencem ao domnio do prprio objeto, e por isso qualquer
fundao que no contenha em si a sua prpria negao, a conscincia dos seus
limites, no estar adequada ao objeto, pois no estar respeitando a obscuridade
deste, venha ela da sua no posio (e a deve-se respeitar o devir, o tempo, e por
isto a necessidade do olhar histrico) ou de sua posio negada (e a deve-se ser
capaz de notar as contradies reais).
A adequao da dialtica para os objetos obscuros ento justificada pelo fato
de que apenas um dizer obscuro pode se aplicar a um objeto como tal: Visada
17
obscura do objeto obscuro quer dizer visada clara do objeto obscuro, adequao do
objeto obscuro pensado coisa obscura real (Fausto, p.156), o que tambm pode
ser dito da seguinte forma: (...) clareza significa respeito obscuridade [do objeto]
(Paulani, 1992, p.4).
A questo da adequao da dialtica no acaba aqui. Apesar de ela ter sido
apresentada como adequada aos objetos obscuros, deve-se responder o que
confere legitimidade para pensar a existncia de tais objetos, a existncia de
pressuposies objetivas. Em outras palavras, teremos que apresentar as razes pelas quais legtimo se falar em contradies reais, o que vai de encontro
concepo usual de cincia, baseada na lgica formal, de que elas existem apenas
na conscincia, no movimento das categorias que ela produz. Para isto, preciso
investigar como Hegel rompeu com o mundo kantiano onde s existem posio
objetiva e pressuposio subjetiva, o que traduz o anteriormente exposto, que h um
abismo entre sujeito e objeto e que s h contradio no ato de pensar, nunca no
objeto enquanto tal.
1.2 - A tentativa de resgate da prova ontolgica em Hegel
A cincia tal como a conhecemos herdou de Kant a sua concepo das
significaes. O fato de que para este autor as zonas escuras do conhecimento so
os limites do entendimento derivam da recusa deste autor s vrias formas da prova
ontolgica. Esta , como se sabe, a expresso que designa as vrias tentativas dos
filsofos durante a Idade Mdia de provar a existncia de Deus. Para isto,
entretanto, eles partiam de um conceito previamente aceito do que era Deus. Assim,
a transgresso do pensar ao ser era caracterizada por esta circularidade.
A crtica forma clssica da prova ontolgica por Kant fundamenta-se na idia
de que no possvel passar do pensar ao ser, que no se pode deduzir o ser a
partir do seu prprio conceito. O autor faz uma distino entre a coisa-em-si,
enquanto ser-para-si, e a coisa enquanto fenmeno ou ser-para-ns. Sendo apenas
da ltima forma que o sujeito pode perceber a coisa, atravs da experincia sensvel,
e por isto apenas de uma maneira puramente subjetiva, Kant acabou por afastar o
18
sujeito do objeto, atacando os abusos do poder especulativo da razo realizados por
Mendelssohn, Descartes, Leibniz e outros (a prova ontolgica em suas vrias
formas), que acreditavam ser a razo capaz de determinar objetos, no sentido
ontolgico, ou seja, de conferir posio a estes objetos (Kant: 1974 (b) e 1979), assegurando a existncia de Deus pela razo (por argumentos lgicos).
A posio (o ser ) s caberia, para Kant, ao objeto, a conscincia no seria
capaz de chegar a ele: esto estabelecidos aqui os limites da razo, no h posio
subjetiva. Segue-se tambm que a pressuposio s cabe ao sujeito: as
contradies ou as antinomias da razo s existem no plano do sujeito. No
existiriam, desta forma, objetos pressupostos (cujas determinaes existem, mas
falta a determinao posio), alm do que a conscincia no seria capaz de pr determinaes, em sentido forte, ou seja, captar as determinaes reais do objeto.
Os conceitos para Kant seriam uma mera representao subjetiva.7 O sujeito
transcendental de Kant (que est alm do sujeito emprico, da experincia sensvel),
do campo supra-sensvel, condenou ento a razo, que ao mesmo tempo r e
juza no seu prprio tribunal (a crtica da razo pura), ao plano subjetivo, da
representao dos fenmenos, no podendo jamais chegar aos objetos ( coisa em
si). O resultado a que se chega ento a separao entre o pensar e o ser, entre o
sujeito e o objeto: o ato de pensar o objeto independente do ser-em-si deste
prprio objeto. Nas palavras de Paulani (1992):
Na concepo usual o conceito o conjunto das determinaes - percebidas
pelo sujeito - que constituem o objeto; sua existncia enquanto tal no
7 A rigor, o conceito kantiano representao de uma representao. Isto porque, para ele, todo
nosso contato com o mundo objetivo mediado pelos sentidos (exceto o espao e o tempo, que so
imediatos), de forma que a maneira como o mundo percebido pelo sujeito pensante j
predeterminado pelas estruturas a priori do entendimento humano. Assim, a matria usada na
confeco dos conceitos j uma representao do sujeito, porque mediada pelos sentidos. Ao
construir o conceito, o sujeito do conhecimento faz uma representao subjetiva (a abstrao e a
criao de categorias no pensamento) a partir de outra representao subjetiva (a apreenso do
mundo pelos sentidos).
19
determinao (eu no acrescento nada ao conceito do objeto se digo que ele ). A
posio, pois, s cabe ao universo objetivo. (p. 105).
Da mesma forma, prossegue Paulani, para esta concepo a pressuposio s
cabe ao universo subjetivo:
(...) no cabe, no mundo objetivo, uma existncia pressuposta, onde as
determinaes existem, mas a coisa mesma no, sendo que a pressuposio o
conjunto de determinaes entre as quais no se inclui a existncia. (p. 105).
Vejamos, acompanhando Fausto (1988), como Hegel reaproxima sujeito e
objeto. Apesar de chamarmos o rompimento com esta viso kantiana do mundo de
resgate da prova ontolgica, cumpre esclarecer a ressalva de Fausto - que este
resgate no se d nos moldes clssicos. Assim, para Hegel (como para Kant), o ser
no pode ser deduzido do conceito por anlise, que foi o que fizeram Descartes e os demais clssicos. A identidade entre o pensar e o ser em Hegel existe, mas ela exige
uma passagem, um movimento, uma sntese. Porm esta sntese negativa, ela implica um movimento dialtico, de negao da possibilidade (o no ser). Como
vimos anteriormente, o ser existente (ou necessrio) , no porque se pode afirmar
sua possibilidade, mas pela negao dela. por isto, dir Fausto, que Hegel rejeita a
idia de Leibniz, que exige uma prova prvia da possibilidade (no contradio) da
idia de Deus.
A reaproximao entre sujeito e objeto notada pela diferena entre as noes
de conceito para Kant e para Hegel. Enquanto que para Kant o conceito apenas
algo subjetivo, para Hegel escreve Fausto - enquanto o conceito no for posto, ele
permanece como uma determinao subjetiva e, aqum disso, apenas o nome do
objeto (p. 161). A conscincia para Hegel ento capaz de posio. Enquanto no
est posto, ele apenas possibilidade, mera contingncia. Mas como se d esta
negao da possibilidade? Como se realiza esta passagem da possibilidade
efetividade ou, perguntando de outra forma, como se d a transgresso da posio
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pensada posio objetiva? o que veremos a seguir, pois aqui que entra a
questo da adequao do discurso e onde ser necessrio estabelecer a diferena
entre as dialticas de Hegel e Marx.
Por enquanto, o que temos com este resgate de Hegel a aceitao de que
podemos pensar tanto a textura do sujeito como a do objeto sob a forma do
conceito, isto , como conjunto de determinaes (o que, se se supuser que estas
determinaes podem ser separadas da posio, s deveria convir ao sujeito)
(Fausto, p.157). Recusar a separao de Kant implica tambm que o conceito
entendido aqui como universal concreto, isto , como conjunto de determinaes que
tanto no objeto como no sujeito podem ser postas (idem). Em outras palavras, esta
recusa permite dizer que o sujeito capaz de pr determinaes (ele capta as
determinaes do real e por isto o conceito no mera subjetividade), que a
posio subjetiva (determinao posio), assim como permite dizer a existncia de objetos pressupostos ou pressuposies objetivas (objetos cujas determinaes existem, mas eles mesmos no, ou seja, suas determinaes
existem, mas no a determinao posio). Temos ento que para a dialtica (tanto
a de Marx como a de Hegel) a posio tambm uma determinao do conceito, ao
passo que para Kant no.
neste sentido - coloca Fausto - que so injustificadas as crticas ao resgate da
prova ontolgica por Hegel baseadas na idia de que se trata de puro idealismo, ou
seja, que no se teria rompido com o distanciamento kantiano entre sujeito e objeto
pois aqui se teria abolido o objeto. Fausto procura mostrar, como resultado deste
rompimento com Kant realizado por Hegel e no qual o acompanha Marx, que tanto a
dialtica de Hegel , at certo ponto, objetiva, quanto a de Marx reserva espao para
o idealismo: temos tanto o idealismo objetivo - os objetos do mundo tm a textura dos conceitos, o que significa que a generalidade no real concreto que permite a
generalidade no pensamento - quanto o idealismo subjetivo - o pensamento pe determinaes. Daqui se conclui que a relao entre as duas dialticas muito mais
sutil, no meramente uma inverso, como comum ouvir, na direo de uma
comparao mecanicista de que a dialtica de Marx pode ser obtida colocando a de
Hegel de cabea para baixo.
21
1.3 - A adequao do discurso dialtico: legitimidade para dizer os objetos obscuros
Fausto observa que apesar de a questo da adequao estar presente em
Hegel, ele no a resolve, por isto no reabilita o entendimento. Isto ocorre devido
dupla transgresso realizada por este autor: a primeira, que conduz posio subjetiva ou posio pensada (assim como conduz tambm existncia de pressuposies objetivas) que o rompimento com o mundo kantiano, que vimos anteriormente; e a segunda, que a passagem da posio pensada posio objetiva, constituindo este segundo movimento a prova ontolgica ela mesma. A primeira transgresso tambm foi realizada por Marx, e at a que ele caminha na
dialtica de Hegel. Mas a partir da posio pensada que surge o problema da
adequao: ser esta posio pensada adequada ao objeto posto?
Como escreve Fausto, o problema da adequao surge quando h divrcio
entre o objeto e o sujeito: (...) exterioridade do objeto em relao ao pensamento do
objeto. (p. 169/170). O autor procura esclarecer que o problema da adequao
tambm existe em Hegel, apesar das crticas de que o seu idealismo aboliria este
problema, j que o sujeito teria absorvido o objeto, no havendo assim o referido
divrcio. Porm, a adequao em Hegel se d justamente com esta transgresso da
posio pensada posio objetiva, ou seja, se a partir da posio pensada se
constri a posio objetiva, se a posio pensada se confunde com a posio
objetiva, ento o discurso (o pensado pelo sujeito) adequado ao objeto, pois o
prprio objeto. Mas aqui aparecem os problemas com esta adequao, que resultam
da reduo do objeto. Esse objeto ao qual se adequa a idia um objeto puro ou
reduzido, [a] idia se liberta progressivamente de toda necessidade enquanto
necessidade.(Fausto, p.170). O objeto cria autonomia no pensamento para se tornar
uma idia absoluta, se confundindo com a prpria idia, distanciando-se da
materialidade. A adequao perde assim a legitimidade, e a prova ontolgica no
pode ser considerada, a rigor, como prova.
22
Como vimos, Marx tambm realiza junto com Hegel a primeira transgresso,
que implica a reaproximao do sujeito e do objeto permitindo, ao contrrio do
pensamento kantiano, conduzir posio pensada. No entanto, coloca Fausto, a
segunda transgresso no aceita pela dialtica marxiana. Da posio pensada no
se pode passar livremente para a posio objetiva. Se para a dialtica, tanto a de
Marx quanto a de Hegel, a posio determinao, para Marx, no entanto, ao
contrrio de Hegel, a posio objetiva no est contida na determinao posio, na
medida em que esta ltima (apesar de influenciada e inspirada pela totalidade
concreta, o objeto) apenas produto do crebro, do sujeito (que limitado pelo prprio
objeto).8
Fausto coloca que Marx entende a posio objetiva de uma outra maneira, com
um argumento que lembra a prova cartesiana pela causa da idia de Deus. Ele cita
numa nota de rodap o trecho em que Descartes coloca esta prova: Ora, uma
coisa manifesta pela luz natural, que deve haver pelo menos tanta realidade na
causa eficiente e total quanto no seu efeito; pois de onde que o efeito pode tirar a
sua realidade se no da sua causa? E como esta causa lhe poderia comunicar se
no tivesse [realidade] nela mesma? (Fausto, nota n. 35, p.167)
O que Descartes quer dizer, em outras palavras, que se se pode pensar em
Deus, criar um conceito de Deus (efeito) ento necessrio que ele exista
efetivamente (causa), que as determinaes que constituem este conceito estejam
postas na realidade. A percepo destas determinaes reais pelo sujeito que
torna possvel a construo do conceito Deus.
De forma semelhante, Fausto procura resumir o argumento de Marx, quando
este fala de Aristteles a respeito do valor no primeiro captulo de O Capital:
Aristteles no chega idia de valor (isto , ele chega s determinaes,
em sentido estrito, do valor, mas no posio) porque na sociedade antiga no
8 O todo, tal como aparece no crebro, como um todo de pensamentos, um produto do crebro
pensante que se apropria do mundo do nico modo que lhe possvel, modo que difere do modo
artstico, religioso e prtico-mental de se apropriar dele. O sujeito real permanece subsistindo, agora
como antes, em sua autonomia fora do crebro, isto , na medida em que o crebro no se comporta
seno especulativamente, teoricamente. (Marx: 1978, p.117)
23
havia objetivamente valor, isto , posio objetiva do valor, mesmo se as
determinaes estavam objetivamente l [o valor era um objeto pressuposto -
RT]. (Fausto, p. 166).
E continuando, acrescenta:
A noo de produo de uma idia (a idia de Deus) por Deus assim
traduzida na noo de um campo de objetividades sociais, que ao mesmo tempo
um campo de possibilidades de pensar o social. A idia do valor s pode ser
produzida (posta) se a conscincia pertencer a esse campo em que se encontra o
objeto valor: necessrio que haja pelo menos tanta realidade nesse campo
como h na idia dela.9 (p. 167).
Dito de outra forma, se existe determinao na posio pensada necessrio
(mas no suficiente, como Fausto faz questo de destacar) que exista tanta ou mais
determinao no objeto.
As categorias no so mera idealidade, elas so concretas, a abstrao no se
d apenas no pensamento, mas real. A posio pensada ento realmente
posio (do objeto), e neste sentido temos uma prova ontolgica, mas ao contrrio: no se vai do pensar ao ser, mas do ser ao pensar, e por isto a dialtica de Marx
uma dialtica materialista. o movimento objetivo que faz primeiro com que o objeto passe da pressuposio posio, ou seja, a abstrao que possibilita a
confeco do conceito uma abstrao objetiva, uma abstrao real. Enquanto tal, ela uma contradio: temos tanto o momento privilegiado pelo positivismo, que o
momento da abstrao ou da generalidade, quanto o momento privilegiado pelo
historicismo, pois se trata de uma generalidade posta, e se a generalidade posta
9 Cumpre ressaltar tambm aqui - a observao de Fausto - que Marx no est fazendo uma
sociologia do conhecimento, no sentido de tratar a obra de Aristteles como determinada pelos
interesses subjetivos deste autor, seja da sua religio ou classe social. A limitao colocada pelo
campo social se d no prprio objeto: O argumento de Marx nada tem a ver assim com uma
sociologia do conhecimento enquanto sociologia da subjetividade, isto , enquanto anlise das bases
objetivas dos interesses de Aristteles. No vamos aqui dos interesses objetivos aos interesses de
Aristteles, mas dos objetos-objetivos da sociedade grega aos objetos-subjetivos de Aristteles. No
no nvel da noese que se d a limitao do campo de possibilidades, mas no nvel do noema".
(Fausto: 1987, p.167) .
24
quer dizer que ela pertence a um determinado momento histrico. Temos ento no
apenas um universal abstrato, como em Kant, mas um universal concreto.
Esta viso no representa apenas uma ponte entre o pensar e o ser, mas
tambm acrescenta ao ser (o mundo objetivo) uma qualidade que no existia em
Kant, que a contradio, e por isto permite a contradio tambm no discurso, o que para Kant era inadmissvel, um defeito do pensamento. Para a dialtica
marxiana, ento, o sujeito pe determinaes, desde que elas j existam no objeto10.
Assim, temos em Marx, como em Hegel, uma primeira transgresso que um
argumento ontolgico subjetivo (que vimos, no entanto, no se dar nos moldes
clssicos), que admite a existncia da posio pensada e da pressuposio objetiva.
Mas para chegar posio objetiva Hegel opera um segundo argumento tambm
subjetivo que acaba por reduzir o objeto e deixar inacabada a questo da
adequao. Marx por sua vez rejeita esta segunda transgresso e opera um
segundo argumento ontolgico, porm este objetivo, resgatando a adequao do
discurso dialtico, mas agora do lado do objeto, da realidade material. Ele funda
ento a dialtica materialista (o objeto regula melhor dizer limita - a idia). Assim, mais do que dizer que os objetos do mundo tm a textura dos conceitos,
que se deriva do rompimento de Hegel com Kant, em Marx podemos dizer que os
conceitos que tm a textura dos objetos do mundo.
Com isto, podemos dizer que a passagem da posio pensada posio
objetiva em Marx tambm existe, mas esta passagem percebida pela conscincia
na ordem inversa do que acontece na realidade. A passagem ocorre no como em
Hegel, que acabou no se distanciando muito do mesmo movimento que criticou
(assim como Kant) nos clssicos, obtendo a posio objetiva atravs das
determinaes (por maiores que sejam as diferenas entre as noes de conceito
para Hegel e para os clssicos). Para Marx, a negao da possibilidade, ou seja, a
passagem existncia ocorre na prtica, ela um processo, uma sntese, mas uma
sntese no objeto. O seu argumento ontolgico aqui objetivo, pois o movimento
10 mister uma produo de mercadorias totalmente desenvolvida antes que da experincia mesma
nasa o reconhecimento cientfico (...) (Marx: 1983, p.73).
25
do prprio objeto que vai pr a existncia do que antes era apenas possvel. a
realidade material na sua transformao que vai pr as determinaes que sero
percebidas pelo sujeito, possibilitando a este a confeco do Conceito conforme a
textura desta prpria realidade transformada. necessrio, antes, que o objeto
passe da pressuposio posio, para que o sujeito opere a posio subjetiva.
Desenvolvendo mais a questo, Fausto mostra que em Hegel a prova
ontolgica que regula a adequao. Isto , a adequao depende da segunda
transgresso, que uma passagem ontolgica subjetiva (assim como a primeira),
que vai da posio pensada posio objetiva, com a conseqente reduo do
objeto. Em Marx, a adequao que regula a prova ontolgica: no pela posio
pensada que se chega objetiva, pelo contrrio, se existe determinao na posio
pensada necessrio que ela exista, antes, no objeto; o argumento ontolgico aqui objetivo e realmente uma prova ontolgica, ainda que para a conscincia, pois na
realidade o movimento inverso.
Esta supremacia do objeto (do campo social), que o ponto de partida da
representao, melhor, da reapresentao do mundo pelo sujeito, no existe em Hegel. Por isto na introduo de Para a Crtica da Economia Poltica, Marx dir que
este autor incorreu no erro de confundir a apropriao da totalidade concreta pela
conscincia, ou seja, a representao do concreto pelo sujeito, com a origem deste
mesmo concreto: a crtica segunda transgresso.11
Por ltimo, faamos uma observao importante. Apesar do fato de o dizer em
Marx depender primordialmente do objeto, e que sempre ir captar determinaes
objetivas (mesmo os economistas polticos e a Economia atual captam
determinaes objetivas, apesar de acharem que seus conceitos so aistricos), a
riqueza de determinaes que o dizer pode reapresentar depende do sujeito, do
11 (...) Hegel caiu na iluso de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si,
se aprofunda em si e se move por si mesmo; enquanto que o mtodo que consiste em elevar-se do
abstrato ao concreto no seno a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do
concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este no de modo nenhum o processo da
gnese do prprio concreto. E mais a diante: (...) [a totalidade concreta] no de modo nenhum o
produto do conceito que pensa separado e acima da intuio e da representao, e que se engendra
a si mesmo, mas da elaborao da intuio e da representao em conceitos. (MARX: 1978, p. 117)
26
prprio dizer. A defesa da dialtica empreendida por Fausto e Paulani a de que a
dialtica o dizer mais adequado para certos objetos, particularmente os objetos do
campo social, pois ela vai apreender da melhor forma as determinaes objetivas,
quando o objeto contraditrio.
* * *
Como vimos, Marx aceitou a primeira transgresso de Hegel, que aproxima
sujeito e objeto, trazendo a objetividade para o conhecimento. Mas ao se recusar a
acompanhar Hegel num segundo momento e buscar, como Kant, um limite para a
razo, ele busca uma legitimao para a objetividade cientfica que no como a
kantiana da subjetividade mas baseada num limite da razo dado pelo prprio
objeto. A possibilidade de um conhecimento objetivo ento trazida por um
argumento ontolgico objetivo: as idias no so desvinculadas do contexto social
onde surgiram. Elas refletem as transformaes do prprio objeto, e por isto contm
determinaes da realidade, ainda que no se identifiquem com ela (como em
Hegel), pois a reflexo cientfica e filosfica, segundo Marx (1979b, p.117), assim
como a arte e a religio, apenas uma das formas possveis de se apropriar da
realidade, e no a realidade ela mesma. A dialtica no apenas um mtodo, como
na cincia convencional, mas um discurso lgico-ontolgico, no qual mtodo e
ontologia so inseparveis.
O surgimento do materialismo dialtico deve ser entendido ento como um
rompimento filosfico e epistemolgico, em que h um rompimento na viso que at
ento se tinha do Esclarecimento (Aufklarung), quando este era visto como um
processo centrado no sujeito (sujeito do conhecimento), e tambm uma
transformao na prpria forma de ver a razo, ambos agora sendo voltados para o
objeto (para o sujeito histrico).
O objeto, no entanto, ganha um carter subjetivo, onde se destaca o papel do
homem como sujeito da histria. Assim, Marx realiza uma dupla reaproximao entre
sujeito e objeto. A primeira, que reconhece que os conceitos so histricos, que o
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sujeito do conhecimento limitado pelo seu campo social12. A segunda, que encara
o objeto no seu aspecto subjetivo, no sentido de que o homem , mais do que sujeito
cognoscente, sujeito histrico, agente das transformaes.
Aqui possvel fazer uma relao entre o materialismo dialtico e o
materialismo histrico. pelos limites estabelecidos pela posio objetiva que em O
18 Brumrio de Lus Bonaparte Marx vai dizer que os homens fazem a histria, no
como a querem, mas segundo as condies que ela prpria lhes fornece. Eles so
limitados pelas condies histricas, pelas limitaes objetivas do campo social do sujeito. A estrutura histrica em dado momento permite assim tanto um campo de
possibilidades de pensar o social, como tambm um campo de possibilidades de
transformao social. No h determinismo, como existe, por exemplo, nas idias de
sucesso de modos de produo e de leis inexorveis do desenvolvimento
histrico que equivocadamente se imagina serem derivadas de Marx. O meio social
limita o campo de possibilidades, mas no determina qual o rumo a ser seguido. Este
ser construdo pelos homens na prxis, na esfera da poltica, quando as classes-
em-si, da estrutura, passam a atuar como classe-para-si, na esfera da poltica.
12 No estamos falando aqui de uma limitao do sujeito no sentido do historicismo ou da sociologia
do conhecimento. Como escreveu Fausto (1988), ao dizer que Aristteles era limitado por seu tempo
para compreender o conceito de valor, Marx no falava de limitaes subjetivas, no sentido dos
preconceitos de Aristteles para com os escravos gregos. Segundo esta leitura, Aristteles no teria
percebido que o trabalho que determina o valor porque seus preconceitos subjetivos o impediriam
de ver o trabalho escravo e o trabalho de um cidado grego como iguais, e sem chegar ao trabalho
abstrato no haveria como pensar o valor. Mas Fausto defende que a limitao do sujeito que Marx
coloca no subjetiva (no sentido da cultura ou interesses de classe), mas objetiva: no que o valor
existia na Antigidade mas Aristteles, pelos preconceitos subjetivos, no percebia, mas sim que o
valor no existia na Antigidade (ainda que algumas de suas determinaes estivessem l, postas)
porque o trabalho abstrato, fundamento do valor, s adquire posio no capitalismo.
28
CAP. 2 A DOMINNCIA FINANCEIRA: CAPITAL PORTADOR DE JUROS, CAPITAL FICTCIO E AS CRISES FINANCEIRAS
Introduo
Embora vrios autores, acompanhando Chesnais, vejam hoje uma dominncia
financeira no capitalismo contemporneo, ainda no foi suficientemente explorada, a
nosso ver, a articulao das categorias de O Capital que permite perceber,
logicamente, a tendncia autonomizao da esfera financeira, ou do domnio da
forma financeira de valorizao, caracterizado pela busca da valorizao mantendo o
capital em sua forma lquida (sem passar pela produo), o que apresentado por
Marx na seo V do livro III de O Capital, na frmula do capital portador de juros, D
D.
Isso seria importante inclusive para combater os autores que vem no perodo
atual de predomnio da valorizao financeira nada mais do que um processo normal
de transio, que ocorre no final de um ciclo de acumulao capitalista (Wallerstein,
2003; Arrighi, 1996). Assim, neste captulo buscaremos mostrar como Marx,
apresentando o conceito de dinheiro de uma maneira dialtica, mostra
sucessivamente, ao longo de sua obra mais conhecida, a tendncia de a esfera
financeira autonomizar-se com relao esfera produtiva, tendncia que est
inscrita na prpria natureza do objeto dinheiro. Esta tendncia abre a possibilidade
da autonomizao da esfera financeira e das crises financeiras.
O dinheiro em Marx apresentado como um desenvolvimento lgico da forma
mercadoria, uma conseqncia do processo histrico de desenvolvimento do
capitalismo. Este processo de constituio lgica do dinheiro pode ser percebido nas
seguintes passagens, nas quais iremos nos centrar: se inicia no primeiro captulo do
livro I de O Capital, onde o autor deriva o conceito de dinheiro da circulao das
mercadorias, como uma necessidade lgica do desenvolvimento desta; passa pelo
captulo III do livro I, intitulado O Dinheiro ou a Circulao das Mercadorias, no qual o
29
autor fala das funes 13 do dinheiro; passa depois pela transformao do dinheiro
em capital, no captulo IV, segunda seo, ainda do livro I; e chega finalmente
seo V do livro III, onde o autor discute o sistema financeiro, o crdito e a
especulao, chegando aos conceitos de capital portador de juros e capital fictcio.
Defendemos que esta apresentao dialtica do dinheiro e do capital mostra a
tendncia que tais formas tm de autonomizar-se do substrato material que lhes d
suporte.14 Esta tendncia aparece j na apresentao do prprio dinheiro, quando
Marx mostra que ele, enquanto equivalente geral e forma de manifestao do valor
das mercadorias, tende a se autonomizar com relao aos valores de uso (as
mercadorias), formas cristalizadas do trabalho abstrato. Aps a transformao do
dinheiro em capital, esta autonomizao crescente, culminando na demonstrao
de que o processo de valorizao pode se autonomizar com relao criao e
realizao da prpria mais-valia, no mbito da produo e circulao de mercadorias
(autonomizao do lado monetrio-financeiro com relao ao chamado lado real
da economia, no jargo da teoria econmica convencional).
O pice desta autonomizao est na seo V do livro III, quando Marx
desenvolve sua anlise do capital portador de juros e do capital fictcio, chegando s
crises financeiras. Com a apresentao deste movimento, Marx apresenta tambm,
paralelamente, o movimento em direo maior fetichizao das relaes sociais, 13 Embora em O Capital Marx use a expresso funes (functionem) do dinheiro, nos Grundrisse ele
utiliza a expresso determinaes do dinheiro. A diferena no de forma alguma devida a um mero
uso de palavras, pois o termo determinao (Bestimung), da lgica hegeliana, se refere a um
predicado que tenta exprimir um sujeito, mas que apenas o reflete (o que Fausto chama de juzo de
reflexo): o sujeito no se esgota no predicado e mesmo negado por ele. A expresso funo,
entretanto, est dentro dos limites do discurso do entendimento. Quando se expressa o sujeito por
uma de suas determinaes (o predicado), o sujeito na verdade fica pressuposto e o predicado
aparece como posto (Fausto, op.cit). Daqui por diante nos referiremos, seguindo os Grundrisse, s
determinaes do dinheiro. 14 Esta autonomizao semelhante, a nosso ver, idia de desmedida do valor tratada por Grespan
(1996), quando fala das crises (o negativo do capital), como as crises de desproporcionalidade
setorial e de sobreacumulao. Nosso foco aqui, entretanto, uma dimenso da desmedida no
tratada por este autor, que no chegou, na obra referida, seo V do livro III de O Capital, que
quando Marx trata da esfera financeira, particularmente do capital portador de juros e do capital
fictcio, bem como das crises financeiras.
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movimento este que constitutivo da forma mercadoria e se exacerba com a forma
dinheiro e seu desenvolvimento em capital, culminando com a forma capital portador
de juros.
No que se segue, acompanharemos passo a passo a possibilidade lgica dessa
autonomizao, tal como ela se apresenta em O Capital, o que faremos nas seo 1
deste captulo. Nas sees 2 e 3, apresentamos as mudanas histricas que
abriram espao para que a possibilidade lgica da autonomizao ganhasse
efetividade histrica, expondo inicialmente as principais transformaes no sistema
monetrio internacional no sculo XX, do ponto de vista da anlise dialtica do
dinheiro mundial realizada por Paulani (1992), e descrevendo em seguida o
processo de mundializao financeira ocorrido no capitalismo do final do sculo XX,
perodo no qual a instabilidade e as crises financeiras se tornaram freqentes. A
ltima seo destina-se a mostrar, tomando por base fundamentalmente os trabalhos
de Franois Chesnais, a emergncia, nas dcadas finais do sculo XX, de um
regime de acumulao com dominncia da valorizao financeira.
2.1 O desenvolvimento lgico do dinheiro e do capital em Marx e a tendncia autonomia da esfera financeira
Marx inicia O Capital com a mercadoria, percebendo nela um duplo carter: o
valor (que aparece como valor de troca) e o valor de uso15. Mas as mercadorias so
produtos do trabalho humano, desta forma, o trabalho humano tambm tem um
duplo carter: o trabalho concreto, que corresponde ao valor de uso, e o trabalho
abstrato, que corresponde ao valor .
15 Cabe destacar que em Marx, como nos economistas clssicos ingleses, o valor de uso vem das
propriedades fsicas do objeto, no uma atribuio subjetiva de valor pelo indivduo, tal como
apareceu posteriormente na teoria do valor utilidade. Valor de uso no se confunde assim com o
conceito de utilidade desta ltima teoria.
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o trabalho abstrato, para Marx, a substncia do valor de uma mercadoria16. O
valor, como mostra Fausto (1987, cap.3), visto ento por Marx como uma fora
social. Ele passa a existir efetivamente17 quando a concorrncia entre os produtores
impe um tempo social como fora coercitiva na produo, ou seja, regula
socialmente o tempo de trabalho necessrio para a produo das mercadorias.
Aps colocar o trabalho abstrato como fundamento do valor e de sua
manifestao, o valor de troca, Marx, ainda no primeiro captulo de O Capital, deriva
logicamente o conceito de dinheiro da circulao de mercadorias, com a forma
dinheiro sendo a forma mais adequada de manifestao do valor18, pois ela , tal
como a forma geral do valor da qual deriva, ao mesmo tempo simples (isto
unitria), comum e completa: todas as demais mercadorias tero a expresso de
seus valores de forma simples, porque numa nica mercadoria, comum, porque na
mesma mercadoria, e completa, porque est preparada para receber a constante
entrada de novas mercadorias no processo de circulao. A mercadoria que cumpre
o papel de dinheiro assim o equivalente geral para a expresso do valor de todas
as outras mercadorias, e se impe como necessidade lgica do desenvolvimento das 16 Marx, nas Teorias da mais-valia, ressalta este carter de substncia, pois o valor para ele uma
coisa social: social porque foi criado no meio social, como um desenvolvimento da prxis humana,
mas tem o peso da coisa porque, tal como os objetos da natureza, se apresenta como um objeto
exterior ao sujeito cognoscente, pois no capitalismo os homens no tm mais o domnio da
reproduo material. Ela aparece autonomizada na esfera do mercado, na mo invisvel. Neste
sentido, e apenas neste sentido, deve-se fazer um corte epistemolgico e perceber o objeto como
exterior ao sujeito, como coisa, mas como coisa social, e no como coisa natural, como vem os
positivistas. Para um trabalho que desenvolve a noo do valor como substncia social, ver Borges
Neto (2002). 17 De fato, o valor no tem existncia efetiva antes do capitalismo, l ele um objeto apenas
pressuposto, ou seja, em outras sociedades em que havia a troca, algumas determinaes do valor
esto postas, mas falta a sua posio (Fausto, 1987, cap.3). A posio do valor s efetuada quando
todos os produtos j so mercadorias antes mesmo de irem ao mercado, pois j so produzidos
exclusivamente para o mercado, e assim o valor de troca das mercadorias no determinado
segundo os tempos individuais de trabalho dos agentes da troca, mas segundo um tempo
estabelecido socialmente pela concorrncia antes da troca efetiva. 18 Valor para Marx no se confunde com valor de troca: o valor a substncia, o fundamento, o
contedo da relao. O valor de troca a forma fenomnica do valor, o modo como o valor aparece
efetivamente.
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trocas. As mercadorias eleitas historicamente foram os metais preciosos, como o
ouro e a prata.
Assim, a contradio entre valor de uso e valor que antes era externalizada na
forma simples de expresso do valor (x de mercadoria A = y de mercadoria B)19,
quando se chega na forma preo (x de mercadoria A = 1 ona de ouro; ou x de A =
R$ 1,00) 20, resolvida agora em outra contradio, aquela que aparece entre a
mercadoria e o dinheiro: a mercadoria aparece agora apenas enquanto valor de uso,
enquanto que o dinheiro aparece apenas enquanto valor, com sua forma material
(valor de uso) tornando-se aqui secundria (Paulani, 1992). Aqui temos uma primeira
manifestao da tendncia autonomizao: na forma de expresso do valor,
quando no lado da forma equivalente est o dinheiro, ele j no figura l como valor
de uso, mas apenas como valor, ainda que o dinheiro seja uma mercadoria, como o
ouro. Isto porque a mercadoria que se torna dinheiro, nesta condio de equivalente
geral, no figura na expresso do valor com seu valor de uso intrnseco, ela aparece
a apenas com seu valor de uso formal, ou seja, seu valor de uso de ser medida dos
valores e meio de troca (moeda), figurando, a rigor, apenas como forma
autonomizada do valor21.
19 H aqui contradio porque, na forma simples, em que temos uma mercadoria a expressar o valor
de outra, ocorre que o valor de uso (da mercadoria B, no caso) torna-se forma da expresso de seu
oposto, o valor (da mercadoria A). Assim, abstraindo as quantidades, estamos dizendo que valor
igual a valor de uso, mas eles so opostos, da a contradio. 20 Cabe notar que esta derivao lgica do dinheiro da circulao, chegando forma preo, no
aparece em lugar algum na cincia econmica, o preo que aparece em Marx o preo mesmo, em
unidades monetrias, no simplesmente o preo relativo. O fato de a teoria convencional no ter um
lugar para o dinheiro, mas apenas para os preos relativos (veja-se, por exemplo, a teoria do
equilbrio geral), a motivao principal de Paulani (1992) para defender a dialtica, percebendo que
a concepo de lgica e razo qual se filia a cincia econmica convencional no consegue
capturar o objeto dinheiro em sua plenitude. por isto, acrescentamos, que as teorias convencionais
no conseguem ver, com a riqueza possibilitada pelo mtodo de Marx, a evoluo do sistema
monetrio internacional, sua configurao recente e a instabilidade atual. , de resto, o que
procuramos defender neste trabalho. 21 Marx diz, por isso, que a existncia formal (social) do ouro absorve sua existncia natural (enquanto
metal que serve para determinados fins) to logo ele seja historicamente posto como dinheiro.
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por isto que Marx escreve que o fetichismo da mercadoria, ou seja, o fato de
as relaes sociais entre os produtores aparecerem na troca como relaes naturais
entre os produtos do trabalho, d um salto ainda maior com o surgimento do
dinheiro: como o dinheiro aparece como sendo apenas valor (seu valor de uso
pressuposto na forma de expresso do valor da mercadoria), a idia de que o valor
algo natural, intrnseco aos metais preciosos, torna-se atraente para os incautos22.
Assim, o fetiche do dinheiro um aprofundamento do fetiche da mercadoria.
Aps chegar ao dinheiro, de uma maneira ainda puramente formal23, ou seja,
derivando logicamente a forma preo da mercadoria, no captulo 3 da mesma obra
Marx vai tratar especificamente do dinheiro, apresentando suas funes. A primeira
funo do dinheiro ele ser medida dos valores. O importante a destacar aqui que o autor lembra que no por meio do dinheiro que as mercadorias se tornam
comensurveis:
Ao contrrio. Sendo todas as mercadorias, enquanto valores, trabalho
humano objetivado, e, portanto, sendo em si e para si comensurveis, elas
podem medir seus valores, em comum, na mesma mercadoria especfica e com
isso transformar esta ltima em sua medida comum de valor, ou seja, em
dinheiro. Dinheiro, como medida de valor, forma necessria de manifestao da
medida imanente do valor das mercadorias: o tempo de trabalho. (Marx, 1983,
p.87).
Ou seja, o autor reafirma o que dissera no captulo 1, isto , que o dinheiro
surge logicamente do interior das mercadorias, como seu equivalente geral, e a
expresso mais acabada do trabalho abstrato. As mercadorias no se tornam
comensurveis pela existncia do dinheiro, o dinheiro que tem sua existncia
logicamente derivada a partir de uma sociedade de produtores de mercadorias.
22 Vale registrar aqui uma das irnicas passagens de Marx:At agora nenhum qumico descobriu
valor de troca em prolas ou diamantes. Os descobridores econmicos desta substncia qumica, que
se pretendem particularmente profundos na crtica, acham, porm, que o valor de uso das coisas
independente de suas propriedades enquanto coisas, que seu valor, ao contrrio, lhes atribudo
enquanto coisas. (Marx, 1984, p.78). 23 Pois, como observa Paulani (1992) e veremos melhor adiante - o dinheiro como Conceito, no
sentido hegeliano, ainda no est plenamente constitudo aqui.
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A segunda funo do dinheiro ser meio de circulao, e a circulao de mercadorias representada pelo conhecido circuito M D M. O autor divide esta
funo em trs tpicos:
1) Em primeiro lugar, Marx fala da metamorfose das mercadorias. A
primeira metamorfose, a venda, traduzida pela frmula M D, o que o autor chama
de salto mortal da mercadoria: numa sociedade em que se produz exclusivamente
para a troca, com uma intensa diviso do trabalho, o produtor para sobreviver
depende de conseguir vender seu produto, obtendo dinheiro para comprar os
produtos de que necessita. A separao entre os atos de compra e venda,
introduzida pelo dinheiro como meio de circulao, abre a possibilidade formal de
uma crise. A segunda metamorfose, a compra (D M), acontece quando a
mercadoria vai para a esfera individual, o consumo, e encerra assim o seu ciclo;
2) Ainda dentro da funo do dinheiro como meio de circulao, Marx fala
do curso do dinheiro. O importante a destacar aqui que o dinheiro na circulao
sempre repelido, pois o fim, o objetivo da circulao, no o dinheiro (o valor), mas
a mercadoria (o valor de uso): na circulao simples de mercadorias, o produtor
vende seu produto para obter dinheiro, mas no fica com o dinheiro, ele quer
comprar mercadorias para o seu consumo. Aqui o dinheiro apenas o mediador, o
facilitador das trocas, para que no se precise trocar diretamente uma mercadoria
pela outra e contornar assim a necessidade da dupla coincidncia de interesses de
uma economia de trocas diretas;
3) Em terceiro lugar, Marx fala da determinao do dinheiro como moeda,
que ele chama de signo do valor. O importante a reter aqui que o autor mostra que
o ouro passa a deixar de ser equivalente verdadeiro das mercadorias. Antes as
mercadorias tinham seus valores expressos em quantidades de ouro que
representavam igual quantidade de trabalho, pois o prprio ouro uma mercadoria
produzida pelo trabalho humano. Com o passar do tempo, as moedas de ouro se
desgastaram, ou mesmo alguns governantes passaram a cunhar moedas com valor
de face menor que o valor do ouro nelas contido (da a origem da expresso
senhoriagem). O contedo nominal comeou a se dissociar do contedo real. O
dinheiro passou ento a poder ser substitudo por smbolos, que no precisavam
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necessariamente ser mercadorias, produzidas pelo trabalho humano e com valor de
uso. Ele passa ento a poder ter representantes, e aqui est a possibilidade do
surgimento da moeda papel. A funo monetria do dinheiro pode assim prescindir
do seu valor, ou seja, sua funo pode ser desempenhada por uma mercadoria cujo
valor (em tempo de trabalho abstrato) no corresponda ao valor das mercadorias
pelas quais ser trocado.24
Com o surgimento da moeda como signo do valor, temos aqui uma nova
dimenso da autonomizao: o dinheiro j no precisa mais, ao menos em sua
essncia, ser uma mercadoria (na aparncia ele ainda foi mercadoria, at o fim do
padro ouro), pois se sua funo monetria no depende de seu valor intrnseco, ele
pode perfeitamente ser um signo qualquer, sem valor de uso (pelo menos sem valor
de uso intrnseco, ficando apenas com o valor de uso de ser meio de troca, a que
Marx chama de valor de uso formal).
Vejamos ento a ltima funo do dinheiro apontada por Marx no captulo III.
Como vimos, as duas primeiras so medida dos valores e meio de circulao. O
curioso que o autor, dentro do captulo em que, pelo ttulo, se pensa estar falando
o tempo todo do dinheiro, chama a ltima funo do dinheiro de ... dinheiro. A
explicao para esta curiosidade no ser encontrada dentro da concepo
tradicional das significaes, vinculada lgica formal, pois Marx no compartilha da
concepo kantiana, que separa sujeito e objeto, mas um legtimo herdeiro da
tradio hegeliana. De fato, para Marx, enquanto medida dos valores ou meio de
circulao, o dinheiro ainda no est plenamente constitudo, ele apenas moeda,
ele meio e no fim. Apenas quando acrescenta ao dinheiro suas funes de
tesouro e meio de pagamento que Marx o pe efetivamente como dinheiro. No
plano da lgica (que aqui no a formal, mas a dialtica), isto equivale a dizer que o
24 Claro que isto pode trazer problemas, como a inflao (e a relao entre senhoriagem e inflao
bastante conhecida na teoria econmica), pois uma questo essencial natureza do dinheiro a
confiana na sua funo de reserva de valor, que ser apresentada a seguir. Entretanto, como
veremos na seo 4 deste captulo, o prprio dinheiro mundial hoje uma moeda puramente
fiduciria, sem lastro em metal algum. Ou seja, enquanto aqui dizemos que o dinheiro pode ter
representantes, como a moeda papel, no capitalismo contemporneo uma moeda papel o prprio
dinheiro.
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dinheiro, enquanto apenas moeda, no ainda dinheiro, ou, para usar as
categorias de Fausto (1988, cap. 2), o dinheiro pressuposto, vale dizer, suas
determinaes esto l, mas falta uma: a prpria posio, que equivale existncia
efetiva do conceito25. Enquanto moeda, o dinheiro pertence ainda ao campo da
pressuposio.
Em outras palavras, enquanto moeda, o dinheiro est logicamente determinado,
ou seja, j contm todas as suas determinaes essenciais, mas no tem ainda
existncia efetiva, no tem a determinao posio26: nesta, ele desenvolve todas as
suas potencialidades, quando mostra-se ainda mais autonomizado, quando um fim
em si mesmo e no apenas meio.
Como tesouro, ele visto ento como reserva de valor, forma por excelncia da
riqueza. Ele aqui a prpria encarnao do valor. Como meio de pagamento, ele
no precisa estar presente na circulao, s aparece nela depois que a mercadoria
dela j se retirou: a alienao da mercadoria separa-se temporalmente da
realizao de seu preo (Marx, 1983, p.114). Vendedor e comprador tornam-se
assim credor e devedor.
O dinheiro j no media o processo. Ele o fecha de modo autnomo, como
existncia absoluta do valor de troca ou mercadoria geral. O vendedor converte
sua mercadoria em dinheiro para satisfazer a uma necessidade por meio do
dinheiro, o entesourador, para preservar a mercadoria em forma de dinheiro, o
comprador que ficou devendo, para poder pagar. Se no pagar, seus bens so 25 Como vimos no captulo anterior, na concepo kantiana das significaes, a posio (existncia
efetiva) no uma determinao do conceito, ela s cabe ao objeto. Na concepo dialtica de Hegel
e tambm de Marx, entretanto, a posio tambm uma determinao do conceito: enquanto no se
acrescenta ao conceito sua posio ele existe apenas como pressuposio. O que diferencia Marx de
Hegel, entretanto, que para este ltimo a determinao posio (construda pelo sujeito) contm a
posio objetiva (o objeto), o que caracteriza uma autonomizao do sujeito face ao objeto, e por isto
a dialtica de Hegel cai no idealismo, ao passo que para Marx a posio objetiva no est contida na
determinao posio, mas antes um pressuposto para ela (dialtica materialista). Ver Fausto
(op.cit). 26 Cabe lembrar aqui que para Kant a posio no uma determinao do conceito: ela pertence
apenas coisa-em-si, ou seja, ao campo objetivo. O conceito ou a representao, por sua vez,
pertence apenas ao campo subjetivo.
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vendidos judicialmente. A figura de valor da mercadoria, dinheiro, torna-se,
portanto, agora um fim em si da venda, em virtude de uma necessidade social que
se origina das condies do prprio processo de produo. (Marx, 1983, p. 115).
No seu desenvolvimento, o dinheiro passa a ser substitudo pelos certificados
de dvida (os ttulos de toda espcie), que entram na circulao (dinheiro ideal).
Nas palavras de Marx:
O dinheiro de crdito se origina diretamente da funo do dinheiro como
meio de pagamento, j que so colocados em circulao os prprios certificados
de dvidas por mercadorias vendidas, para transferir os respectivos crditos. Por
outro lado, ao estender-se o sistema de crdito, estende-se a funo do dinheiro
como meio de pagamento. Enquanto tal, recebe forma prpria de existncia, na
qual ocupa a esfera das grandes transaes comerciais, enquanto as moedas de
ouro e prata ficam confinadas esfera do varejo. (Marx, 1983, p. 117).
Exatamente aqui Marx coloca numa nota de rodap uma citao de Defoe, um
autor ingls da poca: O carter do comrcio mudou de tal maneira que agora, em
vez da troca de bens por bens ou entrega e recepo, h venda e pagamento e
todos os negcios (...) apresentam-se atualmente como negcios puros de dinheiro.
(p. 117, nota 104).
Nesta funo do dinheiro, temos ento outro passo com relao
autonomizao: como tesouro, ele apar